Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Mushoko Tensei - Volume 04
Mushoko Tensei - Volume 04
Era uma cidade com um sabor único, diferente das outras que eu tinha visto
antes. Além do porto, em frente à cidade, o mar se espalhava de forma vasta e larga.
Quando foi a última vez que vi o oceano? Foi provavelmente na época em que
frequentei uma escola secundária no litoral.
Este mundo era diferente do nosso, mas o mar não. Era da mesma cor azul,
tinha o mesmo som de ondas quebrando e pássaros que pareciam gaivotas. Havia
até veleiros. Foi a primeira vez que coloquei meus olhos em um. De vez em quando
os via em filmes, mas ver a coisa real – feita de madeira e com suas velas de pano
desenroladas, deslizando pela água – fez meu coração bater como se eu ainda
fosse um menino.
Devia haver algum mecanismo neste mundo que permitia a um barco navegar
contra o vento. Na verdade, considerando o mundo em que eu estava, talvez os
impulsionassem para frente usando magia de vento.
— Olhe!
Por outro lado, eu não tinha a ensinado nenhuma magia desde que fomos parar
no Continente Demônio. Portanto, ela não só não podia lançar feitiços não verbais,
como provavelmente também havia esquecido os próprios cânticos.
— Eris, espere! Aonde você vai? Nós nem descobrimos onde vamos passar a
noite!
Ela parou no meio do caminho quando a chamei. Foi a terceira vez que tivemos
essa discussão desde que fomos parar no Continente Demônio. Na primeira vez, a
garota se perdeu; na segunda, brigou em algum lugar. Eu não queria um terceiro
incidente.
— Ah, sim! Vou me perder de novo se não decidirmos sobre uma pousada logo!
— Ela saltou de volta para nós, constantemente olhando por cima do ombro na
direção do mar.
Pensando bem, esta foi provavelmente a primeira vez que viu algo assim. Havia
alguns rios perto de Fittoa e, aparentemente, Sauros a levava lá em seus dias de
folga e a deixava brincar na água. Infelizmente, nunca fui com eles, então não tinha
ideia do quanto ela sabia sobre corpos d’água.
— Podemos nadar?
— Isso!
Eu podia ter desejado isso por motivos egoístas, mas era um desejo destinado
a ser insatisfeito. Nomeadamente porque faltava um componente importante nesta
equação.
Sua resposta foi tão chocante que não consegui esconder minha confusão. O
que diabos é um maiô, eu não preciso de um, ela disse. Então pretendia nadar
totalmente nua…? Não, de jeito nenhum, não poderia ser isso. O mais provável é
que pretendia nadar usando suas roupas de baixo. A imaginei vestida com nada
além de calcinha, com água caindo sobre seu corpo. O tecido úmido grudaria em
seu corpo e, através do tecido transparente, eu seria capaz de ver a cor de sua pele,
bem como as pequenas protuberâncias em seu peito.
Por que nunca me juntei a eles quando ela foi brincar na água em Fittoa? Ah, é
claro, porque estava ocupado. Mesmo nos meus dias de folga, estava preocupado
com alguma coisa. Ainda assim, deveria ter ido junto ao menos uma vez.
Não, agora não era hora de pensar nisso. Eu precisava me concentrar na cidade
bem diante de mim. Viver o agora. Isso mesmo, viver o agora! Woo-hoo, o oceano!
— Não, você não deveria nadar neste oceano. — Uma voz cortou tudo como
se fosse um balde de água fria.
Quando olhei para trás, Ruijerd estava sentado ali com a cabeça raspada e uma
cicatriz cruzando o rosto, como um yakuza. Seu nome completo era Ruijerd
Superdia. Ele era um demônio que amava as crianças e assumiu a responsabilidade
de nos escoltar desde o início, quando estávamos tão perdidos que não sabíamos
nem onde estávamos. Agora que estava careca, era impossível dizer que tinha o
infame cabelo verde-esmeralda da raça Superd. Neste mundo, demônios com
cabelo verde-esmeralda eram considerados um símbolo de medo. O homem cortou
o seu por nossa causa. Restaurar a honra ao nome de seu povo era apenas uma
maneira de pagar minha dívida para com ele.
Nah. Mesmo assim, ainda devíamos poder nadar um pouco, certo? Nadar no
porto poderia ser bem perigoso, mas eu poderia pelo menos usar magia da terra em
uma praia próxima para fazer nossa própria piscina.
Não… ainda havia uma chance de ser perigoso. Havia bestas lá fora com seus
próprios poderes. Alguns deles poderiam ser capazes de atravessar minha barreira.
Poderia ser um encontro sexy se fosse com um polvo, mas se fosse um tubarão,
estaríamos em um tipo de reconstrução das cenas de Tubarão.
— Nada de banho no mar desta vez. Vamos encontrar nossa pousada e então
visitar a Guilda dos Aventureiros.
— Mesmo que não possamos entrar na água, poderíamos pelo menos brincar
na praia, certo?
— Na praia?
— Há algo chamado areia por perto do oceano. Na beira da água, a areia forma
uma margem bem grande — expliquei.
Enquanto eu tentava tirar o olhar lascivo do meu rosto, Eris voltou os olhos para
o oceano e sorriu.
— Mas parece interessante! Depois vamos fazer isso! — Ela alegremente deu
um salto e voou pelo ar, retornando ao lagarto. Foi um salto incrível. Apenas o som
de sua decolagem me fez pular – foi como o ruído de uma batida surda. A garota
realmente tonificou suas pernas e parte inferior do corpo. No momento isso
realmente complementava sua constituição, mas eu a imaginava ficando ainda mais
forte e musculosa no futuro, e isso me preocupou um pouco.
Dito isso, se tivéssemos tempo para matar antes que nosso navio estivesse
pronto, provavelmente aceitaríamos um dos empregos locais. Geralmente, isso
significaria missões de rank B. As missões de rank A e S não eram apenas
perigosas, como a maioria delas levava mais de uma semana para ser concluída.
Se quiséssemos uma renda diária consistente, tarefas de rank B eram nossa melhor
opção. Também era por isso que eu não tinha planos de elevar nosso grupo
ao rank S, porque isso significaria que não poderíamos mais aceitar missões
de rank B.
— Do porto, é claro.
— Sim senhor.
Fui até o balcão. Atrás dele estava uma mulher humana. Na verdade, a maioria
dos funcionários tendia a ser mulheres e, por algum motivo, tendiam a ser
generosamente dotadas, provavelmente para fins estéticos.
— Posto de controle?
— Depois de subir em um barco, você estará além das fronteiras de nosso país.
— Ei, você!
Uma voz alta ecoou pelo lugar. Quando olhei para trás, Eris havia socado algum
homem humano. Parecia que nossa ogiva nuclear estava se sentindo
particularmente explosiva.
— F-foi um acidente! Afinal, quem iria querer tocar em um traseiro igual ao seu?
— Vá em frente, pegue-o!
— Vamos lá, não deixe uma criança chutar seu traseiro!
Brigas entre os membros da guilda eram uma ocorrência diária tão comum que
a guilda nem se importava em se envolver. Na verdade, parte do pessoal até
participava fazendo apostas.
— M-me desculpe, eu admito a derrota. Por favor, deixe-me ir, não agarre minha
perna, paaaare!
— Pare — disse.
Alguém gritou:
Hein?
— Ouvi dizer que são brutais, mas ele não é um cara de coração ruim.
Foi a primeira vez que passamos por algo do tipo. Pelo visto, nosso grupo havia
se tornado bastante famoso. Acho que, no final das contas, não precisaríamos
divulgar o bom nome de Ruijerd desta vez, hein?
Os dois tinham apelidos! Cão Louco e Cão de Guarda, hein? Fiquei curioso
sobre o motivo para ambos serem cães. Além disso, que tipo de cão será que eu
era? Tentei imaginar isso por um minuto. Certamente não seria um cão de briga. Eu
não tinha feito nada grande o suficiente para ganhar tal título, e também não parecia
algo galante. No passar do tempo, fui sempre o líder do grupo. Então, talvez um
nome mais intelectual, como Cão Fiel.
Como assim!!
— Ei, ei! Dizem que se você o insultar, ele solta os cães em você!
— Gahahaha!
Antes que eu percebesse o que estava acontecendo, estavam todos rindo de
mim por causa de algo completamente sem sentido. Entretanto, isso só era pior para
eles. Eu ainda estava crescendo (e muito bem), então, sim, podia ser só um brotinho
de bambu no momento. Mas o dia em que aquilo cresceria e se tornaria uma árvore
robusta e magnífica não estava longe.
— N-não é nada!
Heh heh heh. Se você está tão interessada, por que não dá uma olhada
enquanto eu tomo banho esta noite? Não se preocupe, explicarei tudo para Ruijerd.
Se quiser, podemos até ficar juntos. Claro, uma mão, perna, corpo ou mesmo uma
língua pode acabar escorregando no processo…
— Hmph!
— Quanto isso nos custará? Nosso grupo é composto por dois humanos e um
demônio.
— Superd.
O oficial do posto de controle desviou o olhar para Ruijerd com um sobressalto.
Quando percebeu que ele era careca, soltou um suspiro pesado, como se estivesse
incomodado por apenas se dirigir a nós.
— D-duzentas?! — Agora foi a minha vez de ficar em choque. — P-por que tão
caro?!
Claro que sabia! Eu tinha viajado com Ruijerd por um ano inteiro, como não
saberia? Havia tanto desprezo pela tribo Superd que todos os seus membros foram
perseguidos sem motivos. Mesmo assim, essa taxa era muito alta.
Eu pressionei.
— Uh, bem, para prevenir o terrorismo, tenho certeza, no caso de alguém trazer
algum como escravo e o soltar no Continente Millis. — Bem, essa era a sua
interpretação. Em outras palavras, eles estavam tratando o Superd como se fosse
uma bomba-relógio. — Vocês são aqueles caras, Fim da Linha, certo? Do falso
Superd. Quando embarcarem, verificarão sua sub-raça. Não seja inflexível e
desperdice duzentas moedas de minério verde aqui, já que de qualquer jeito vão
descobrir tudo.
— Se você mentir sobre sua tribo, não precisa pagar multa, não é?
Munch, munch.
— Bem, eu sei que ainda estamos no meio de nossa refeição, mas vamos
começar nossa reunião de estratégia.
Deixá-lo para trás seria a maneira mais rápida de fazer a travessia. Nós dois já
éramos aventureiros bastante experientes, então poderíamos continuar nossa
jornada mesmo sem ele. Mas, mesmo assim, eu não tinha a menor intenção de fazer
isso. Ruijerd ficaria conosco até o fim de nossa jornada. Afinal, nossa amizade era
eterna e inquebrável.
— O que faremos?
— Ah.
O Superd poderia facilmente detectar criaturas vivas com seu sexto sentido,
mas as armadilhas dentro de um labirinto provavelmente seriam um assunto
diferente.
Podíamos ficar bem se procedessemos com cautela, mas como eu era bastante
descuidado com meus passos, com certeza cometeríamos um erro fatal em algum
ponto. Pareceu prudente ouvir as palavras de Ruijerd sobre a ideia.
— Onde há fronteiras de dois ou mais países, você geralmente tem que pagar
impostos para transportar as coisas. É por isso que nos disseram para pagar uma
taxa. Se for um comerciante, provavelmente terá que pagar impostos sobre suas
mercadorias, certo?
— Sim, precisa — respondi. Caso contrário, não haveria sentido em cobrar uma
taxa maior com base na raça de uma pessoa. — E provavelmente vão cobrar taxas
absurdas para alguns itens. Portanto, deve haver alguém aqui que faça esse
trabalho por um preço mais barato, além de lidar com mercadorias ilegais. — Bem,
talvez não houvesse. Mas, se houvesse, certamente poderíamos fazer com que nos
levassem por um preço muito mais baixo do que duzentas moedas de minério verde.
Era claro que havia algo de errado com a taxa no posto de controle. Aquele oficial
nos disse que não seríamos punidos mesmo se mentíssemos sobre a tribo de
Ruijerd.
Nenhuma delas era particularmente boa. Ah, claro, tinha mais uma. Eu poderia
vender meu cajado, Aqua Heartia. Ele tinha um enorme cristal mágico e era uma
obra-prima do Reino Asura. Isso renderia pelo menos dinheiro suficiente para um
membro da raça Superd cruzar o oceano.
Prós e contras à parte, eu não queria vendê-lo, se possível. Era um precioso
presente de aniversário que ganhei de Eris, e também estava fazendo bom uso dele.
E os dois provavelmente não aceitariam a ideia com muita facilidade.
Parece um verdadeiro pé no saco. Mas, como não tenho outras opções, tentarei
ser otimista e tentar.
— Então você vai fazer isso só porque não tem outra escolha?
Nah, é só que já sei o que vai acontecer desde que você disse as palavras
“comida” e “beco”.
— Sabe mesmo?
Sim, muito clichê, não acha? Deixe-me adivinhar, vou encontrar uma criança
faminta que se perdeu. E ela vai ter um cara estranho tentando pegá-la. Algo tipo
isso?
Então a criança vai acabar sendo neta do líder da Guilda dos Armadores ou
algo parecido, certo?
Que surpresa? Não houve uma única surpresa agradável durante todo esse
tempo. Além disso, cara! Mas que inferno? Já se passou um ano desde que você
fez isso. Até pensei que nunca mais veria sua cara!
— Ah, veja, da última vez meu conselho não funcionou tão bem para você, não
foi? Então foi um pouco difícil para eu aparecer de novo.
Huh! Então, no final das contas, parece que o Deus Homem tem um pouco de
vergonha na cara. Mas não tenha a ideia errada, entendeu? Da última vez fui eu
quem errou. Dito isso, o que eu devia ter feito?
— Bem, se você quiser usar o termo “correto”, então isso depende de você. A
escolha “normal” teria sido transformar aquele grupo em guardas, assim
solidificando sua amizade com Ruijerd.
O quê? Você está me dizendo que a solução era tão simples?
— Isso mesmo. Nunca imaginei que você os tornaria seus aliados e ganharia a
atenção daqueles malandrinhos coniventes da Guilda dos Aventureiros. Foi bem
divertido de se assistir.
— Não gosta, eh? Bem, aí é com você. De qualquer forma, você parece estar
de mau humor, então vou embora.
— E o que é?
Se eu não preciso pensar muito sobre o conselho que você me deu, isso
significa que as coisas vão correr bem?
Aha, então é isso! Esse é o seu jogo. Agora entendi. Valeu pela dica. Da
próxima vez você não vai se divertir tanto.
No dia seguinte, saí e carreguei meus braços com comida de uma das barracas
antes de vagar um pouco pelos becos. Toda a comida era assada e espetada. Havia
algumas vieiras semelhantes às que tínhamos no Japão, um peixe semelhante à
cavalinha e algumas outras criaturas marinhas que não consegui identificar. O dono
da barraca não esclareceu quais eram seus produtos, e as barracas de rua tinham
uma variedade delas. Então decidi comprar o que fosse mais fácil de carregar.
Pensei demais nas coisas da última vez que o Deus Homem me deu conselhos.
Assim como um cozinheiro amador adiciona ingredientes demais a um prato, pensar
demais me fez cair em uma pilha de merda figurativa. Desta vez, seguiria seu
conselho ao pé da letra. Iria seguir suas instruções sem nem pensar, comprar a
comida que me disse para comprar e, então, da mesma forma, traçar meu rumo
através de qualquer evento que iria acontecer em algum beco. Isso era interpretação
de papéis. O que quer que ocorresse a partir do momento seria completamente não
planejado. Não pensaria muito em nada; agiria da maneira mais simplória possível.
Aquele idiota gostava de se divertir. Estava contando comigo para mais uma vez
pensar demais nas coisas. Se eu não fizesse isso, ele não se divertiria.
Fui enganado! Ele me conduziu com sua impressionante conversa mole e agora
eu estava prestes a fazer exatamente o que ele queria que eu fizesse. Quando
percebi isso, fiquei irritado. Estava dançando bem na palma da sua mão.
Tudo bem então, seria a última vez que eu faria o que ele disse. Seguiria seu
conselho e veria como as coisas acabariam desta vez, mas não o obedeceria nunca
mais. De jeito nenhum me tornaria sua marionete e o deixaria me amarrar! Isso!
Marchei pelos becos. Por minha vontade, é claro.
Afinal, por que eu precisava estar sozinho? Esse foi o principal detalhe de seu
conselho. Devia ser algo que Ruijerd e Eris não aprovariam. Não, não pense
demais, disse a mim mesmo. Se você quer pensar em algo, então pense em como
ficará feliz se acabar sendo algo sexy.
Eu tinha dito a Ruijerd e Eris que ficaria sozinho durante o dia. Era perigoso
deixar Eris por conta própria, então confiei sua proteção a Ruijerd. Talvez, no exato
momento, os dois estivessem indo à praia.
Não, não, não! Sem chances! S-só fique calmo, certo? É sobre Eris e Ruijerd
que estamos falando, certo? Essa não é nenhuma fantasia sexual. Não é nada mais
do que servir como babá. Babá!
Ah! Mas Ruijerd era muito forte, afinal, e Eris parecia respeitá-lo muito! E
ultimamente, ela vinha me tratando como nada mais do que um Mestre do Canil.
Não, não, por que diabos você está entrando em pânico? Me repreendi. Respira
fundo, está tudo bem. Senhor Ruijerd, você não a roubaria de mim, certo? Não tenho
nada com que me preocupar, certo? Quando eu voltar, vocês dois não terão
misteriosamente se aproximado, certo? C-confio em vocês, entendeu?!
Na minha cabeça, simulei uma luta com Ruijerd. Não havia como vencer em um
combate de curta distância. Se eu quisesse lidar com ele, precisava começar em
algum lugar fora do seu alcance de detecção. Então teria que usar a água para
acabar com o homem. Afinal, foi ele que atrapalhou nossa diversão à beira-mar. Eu
o atacaria com água como uma retribuição por isso. Se produzisse uma grande
quantidade de água, poderia jogá-lo no oceano. Fim! Ele poderia ficar à deriva no
mar até se afogar. Mwahaha!
Foi fácil deduzir o que estava acontecendo. Aquele que se movesse primeiro
venceria, então preparei meu cajado. Depois criei um Canhão de Pedra modificado
com a velocidade e a força de um jab de um pugilista e mirei nas costas do homem.
No último ano fiquei muito bom em limitar o poder de meus feitiços.
— Owch!!
Quando ele olhou por cima do ombro, fiz outro disparo. Desta vez, foi um
ligeiramente reforçado.
— Gah!
— S-sim… — Ela era jovem e vestia um traje de couro preto revelador: botas
de cano alto, shorts curtinhos e um top tubinho. A pele pálida de sua clavícula,
cintura fina, umbigo e coxas estava toda exposta. Além de tudo isso, ela tinha chifres
de cabra e um cabelo roxo volumoso e ondulado.
Com apenas um olhar eu soube: era uma súcubo. E uma das jovens. Não havia
dúvida de que ela era mais jovem do que eu. Talvez fosse a maneira de o Deus
Homem me recompensar pelo meu trabalho árduo. Talvez, afinal de contas, o sujeito
tivesse algum bom senso.
Não, espera, não era uma súcubo. Até onde eu sabia, não havia nenhuma delas
entre as raças de demônios. Se bem me lembrava, as súcubos habitavam o
Continente Begaritt. Paul estava com uma expressão estranhamente tensa no rosto
quando me disse: “Nossa raça não tem chance contra elas.” Mesmo eu poderia ficar
impotente diante de uma súcubo se realmente encontrasse alguma. Súcubos eram
o inimigo natural da família Greyrat.
Tirando isso, não havia monstros nos limites da cidade. Em outras palavras, ela
não era uma súcubo. Era apenas uma criança demônio em roupas minúsculas.
— V-você… você aí, o que…? — Ela estava tremendo como uma corça. — E-
este homem é… Ele é…! — Ela tinha uma expressão de total descrença no rosto.
Um olhar de: Ai, minha nossa, senhor, o que você fez?!
— Minha barriga dói de tanta fome… e este homem ia me dar uma refeição. —
Um estrondo ruidoso e gorgolejante pontuou sua frase, alto o suficiente para que
pudesse ser o prenúncio de um terremoto. Quando o barulho parou, os joelhos da
garota cederam e ela desabou.
Parecia que tinha tropeçado no set de filmagem de algum mini-drama. Este traje
era realmente um cosplay ou algo assim?
Munch, munch. No momento em que a comida entrou em sua boca, seus olhos
se abriram e permaneceram assim enquanto ela devorava a carne em segundos.
Então a garota tomou os outros espetos de mim. Eu tinha um total de doze, mas em
um estalar de dedos ela já havia comido dez deles.
— Um ano? Não sei quais são as suas circunstâncias, mas isso é um pouco
extremo. — Não era como se ela fosse um isópode gigante que poderia viver anos
sem comer e não morrer de fome.
— Hm? Bem, não é como se eu tivesse contado o nascer e o pôr do sol, mas
com o quão vazio meu estômago estava, deve ser mais ou menos isso.
Uh, sim, nem preciso dizer que foi um choque. Já fazia muito tempo desde a
última vez que alguém me olhou no rosto e me chamou de nojento. Então, parando
para pensar, achei a mesma coisa quando olhei para ela. Pelo visto, ao menos
estávamos quites.
— Poderia ser isso? Você era um dos gêmeos no ventre, mas o outro morreu
quando você nasceu, é isso?
— Sim.
A minha o que era maior que a de quem? Eu não tinha ideia do que ela estava
falando. Desde seu jeito estranho de falar até seus olhos esquisitos, essa criança
era uma enorme decepção.
— Rudeus Greyrat.
Suas coxas apareceram na minha frente tão de repente que passei minha
língua sem nem pensar.
— Aaaaah! O que está fazendo?! Que nojento! — Ela virou os dedos dos pés
para dentro e esfregou vigorosamente as coxas no local onde a lambi, antes de
voltar a olhar para mim.
Ainda assim, agora eu entendi. O Grande Imperador do Mundo Demônio
Kishirika Kishirisu era um nome que eu já tinha ouvido antes: o imortal Imperador
Demônio que liderou os demônios na Grande Guerra Demônio Humano, apenas
para se deparar com uma derrota esmagadora.
Ela era a coisa real? Afinal, fui ao local seguindo um conselho do Deus Homem.
Havia uma possibilidade de que ela realmente fosse quem afirmava. Ainda assim,
como a coisa real poderia estar em um beco de uma cidade nos limites do
Continente Demônio, à beira da morte por inanição? Simplesmente não parecia
provável, não importa quanto pensasse no assunto.
Supus que o Grande Imperador do Mundo Demônio, Kishirika, era outra das
grandes pessoas da história, mas nunca tinha visto nenhuma criança fingindo ser
ela antes. Essa garota devia ser uma fã apaixonada do Grande Imperador. E ela
não tinha amigos com quem brincar, era por isso que estava aqui, sozinha, em um
beco como este. Era a maneira mais lógica de interpretar a situação.
Hm. Ficar sozinho era algo solitário. Então fiquei sem escolhas. Teria que
participar da brincadeira.
— Oh? Aah, claro! Muito bom, muito bom! Esta é a reação que eu estava
esperando! Os jovens de hoje em dia não têm mais educação, sabe! — Ela balançou
a cabeça satisfeita.
— Que tolo fui por não perceber que você tinha revivido. Por favor, perdoe-me
por minhas maneiras precárias!
Sua vida? Tudo o que fiz foi dar um pouco de comida porque ela estava com
fome.
Mas ela disse que eu poderia pedir qualquer coisa! Não, espera, talvez isso
fosse parte da encenação. Talvez tenha havido algum episódio em que alguém
pediu dinheiro ao Grande Imperador apenas para ela responder que não tinha nada.
— O quê?! Metade do mundo, você diz?! Isso é demais! E, bem, isso continua
sem graça. Por que só metade?
— Ah, isso é porque não preciso dos homens. — Ah, merda, sem querer deixei
meus verdadeiros sentimentos transparecerem. Isso não era algo que ela deveria
ouvir.
— Entendo, então é isso. Você pode ser jovem, mas é um dos lascivos. Ainda
assim, sinto muito. Não consegui tomar o mundo nem para mim.
— Tudo bem, então fico satisfeito com o seu corpo. Por favor, pague-me com
seu corpo.
— Ehh? Meu corpo? Por ser tão cheio de luxúria mesmo na sua idade, fico
preocupada com o seu futuro.
Enquanto tentava dizer que estava brincando, ela pegou em seu short colado.
— Ah, bem, acho que não há como evitar. Esta é a minha primeira vez desde
que revivi, então seja gentil comigo, certo? — As bochechas de Kishirika brilharam
enquanto ela lentamente começava a abaixar os shorts.
Hein? É sério? Eu só estava falando aquilo como uma piada. Não, espere!
Agora era tarde demais para dizer que estava apenas brincando. Teria que apenas
a observar se despindo e, depois de recusar, alegaria que era indigno de Sua
Majestade.
— Ah, não, eu não devo fazer isso. — Antes que eu pudesse fazer qualquer
coisa, Kishirika se conteve. — Já tenho noivo. Sinto muito, mas não posso fazer
isso. — A pele que ela expôs sumiu quando ela puxou a roupa para cima. Parecia
que estava brincando com meu pobre e puro coração.
Então era isso. Bem, eu não era muito versado na mitologia heróica deste
mundo. Pensando bem, Ghislaine também não tinha um olho demoníaco?
— Por “olhos demoníacos”, quer dizer olhos que podem ver a linha vital de
alguém? Uma linha que, se cortada, vai com certeza absoluta matar a pessoa?
— Que horrível! O que no mundo é esse poder?! Não tenho nada tão assustador
assim!
Então não era o caso. O único outro tipo de olho demoníaco que eu conhecia
era o que transformava a pessoa para quem se olhava em pedra. Percebi que olhos
que disparam raios ou lasers não poderiam ser considerados olhos demoníacos.
— Para você cobiçar um poder tão perigoso… Diga-me, guarda tanto rancor
contra alguém? — perguntou ela.
— Nada de bom vem com a vingança. Já fui morta duas vezes, mas agora não
invejo aqueles que me mataram. O rancor é uma corrente que o pressiona. Foi isso
que deu início à Grande Guerra Demônio Humano.
— Para ser honesto, realmente não sei muito sobre olhos demoníacos — falei.
— Que tipos existem?
— Hm? Quer dizer que não sabe? Sinceramente, os jovens de hoje em dia não
dedicam tempo suficiente aos estudos… — Apesar dessas reclamações, ela
começou a explicar: — Primeiro, os Olhos de Poder Mágico. Com eles, poderá ver
a mana. São os mais comuns. Uma em cada dez mil pessoas possui um deles.
Ela continuou:
— Olhos de Absorção. Esses olhos podem consumir mana. Isso inclui a mana
que você usa, então eu realmente não os recomendo.
Kishirika era muito experiente. Devia ter aprendido todas essas coisas em
algum lugar. Talvez seus pais fossem bem instruídos. Ou talvez houvesse um livro
sobre todos os tipos de olhos demoníacos por aí.
— Tudo bem, então vou querer dois, para que meus dois olhos possam ser
olhos demoníacos.
— Você quer dois desde o início? — perguntou ela. — Você é mais ganancioso
do que parece.
Estendi meus dois últimos espetos e ela os pegou com um enorme sorriso.
— Ahh, agora que você mencionou, eu conheço alguém que usa um tapa-olho.
— Ghislaine, minha mestra da espada, usava um. Mais tarde descobri que não era
porque havia perdido um olho, mas porque tinha um olho demoníaco.
— Além disso, uma pessoa que vive várias centenas de anos pode ser capaz
de controlar dois olhos demoníacos ao mesmo tempo, mas uma criança como você
ficaria louca tentando.
O Olho da Visão à Distância podia ser útil, mas no momento não precisava de
algo do tipo. Eu já podia adivinhar o que Ruijerd e Eris estavam fazendo sem um
Olho de Visão à Distância, mas se tivesse um, provavelmente veria ela ameaçando
alguém enquanto ele tentava a impedir.
— Se você pode ver pelo menos um segundo do futuro, pode controlar o mundo.
— Mesmo assim, os espadachins deste mundo eram rápidos. Eu poderia não ser
capaz de vencê-los, mesmo com o poder da previsão. Afinal, havia a Espada Longa
da Luz.
— Então não vai querer o Olho da Visão de Raio-X, hein? Não quer ver o corpo
nu de todas as garotas que desejar?
Essa garotinha com certeza não entendeu, não é? Claro, eu podia ver o corpo
nu de qualquer garota ou mulher bonita que passasse na rua e isso provavelmente
me excitaria. Mas era só isso. Logo ficaria farto. De qualquer forma, o processo de
imaginá-las se despindo era o que eu mais gostava.
— Certo.
— Gyaaah!
— Sua idiota! Há uma diferença enorme entre o que é e o que não é bom fazer
quando se está brincando!
— Eu sou o Grande Imperador do Mundo Demônio. Não iria “brincar” sobre lhe
dar um olho demoníaco.
Droga, meu olho… Meu olho está… Aaaaaaah… espera, o quê? Fiz uma pausa
em meio à confusão. Eu conseguia ver. Mas tudo parecia em dobro…? O que diabos
estava acontecendo? Isso era nauseante.
— Dependendo de como você fornecer mana a ele, deve ser capaz de tornar
tudo o mais fino possível. Bem, faça o seu melhor para aprender como usá-lo.
— Muito bom… então no final das contas você consegue ver isso. Pois bem,
vou embora. Preciso procurar Badigadi. Muito obrigada pela comida.
Houve um efeito doppler quando ela partiu, o som de sua risada alta foi
gradualmente desaparecendo. Ouvi aquilo espantado.
Capítulo 03 - Conexões
Perdidas, a Continuação
— Seus olhos não estão bons, eh? Então ande fora do caminho! Sabe, parece
que todo mundo que não vê ou escuta direito gosta de sair pedindo desculpas
enquanto anda por aí!
Eu não queria que as coisas piorassem ainda mais, então apenas segurei minha
língua e olhei para o outro lado.
Eu vi assim que ele olhou para mim: um vaso de flores quebrando bem na sua
cabeça. O que aconteceu a seguir foi instantâneo. Canalizei mana com minha mão
direita e lancei magia do vento para o tirar do caminho.
Foi então que o vaso de flores bateu no chão, se espatifando. Nós dois
seguimos sua trajetória com o olhar. Uma mulher de meia-idade olhou para nós com
uma expressão perplexa no rosto.
Ela voltou para a casa depois que eu respondi. O olhar do bandido voou entre
mim, o local onde o vaso havia caído e sua posição atual. Ele engoliu em seco.
— Umm… sobre aquele cara bêbado, acho que desmaiou em um dos becos.
Provavelmente brigou com alguém. De qualquer forma, vou embora. — Falei o mais
rápido possível antes de virar as costas para a cena. Não queria me envolver ainda
mais com aquele bandido.
O olho parecia ter sua utilidade, embora fosse um incômodo se causasse
problemas como esse o tempo todo. Decidi trabalhar para dominá-lo rapidamente.
Voltei para a pousada. Quando disse a Eris e Ruijerd que tinha encontrado o
Grande Imperador do Mundo Demônio, os dois ficaram pasmos.
— O Grande Imperador do Mundo Demônio? Não pensei que ela iria reviver. —
Ruijerd tinha uma rara expressão de surpresa no rosto.
— E nunca sonhei que receberia algo como um olho demoníaco tão de repente.
— E quem é que sabe? Eu não tenho ideia do que se passava nas mentes dos
Reis Demônios ou Imperadores Demônios — disse Ruijerd encolhendo os ombros.
Eris, por outro lado, estava maravilhada com o título de “Grande Imperador do
Mundo Demônio”.
— Você quer?
— Sério? Isso é muito ruim — disse Eris. De qualquer forma, ela provavlemente
verificaria os becos à sua procura, mesmo depois do que eu disse.
— De qualquer forma, dito isso, vou ficar na pousada. Vocês dois estão livres
para sair por conta própria.
Um dos tipos de foco controlava a opacidade, era parecido com o modo como
se muda a opacidade das janelas de um jogo erótico. No início, estava no máximo,
então tudo parecia totalmente duplicado. Coloquei a opacidade no mínimo possível.
Ao canalizar mana para a parte interna do meu olho, poderia enfraquecer minha
capacidade de previsão o suficiente para ver apenas o presente. Vislumbres do
futuro seriam benéficos, então, ajustei a opacidade para o ponto exato em que não
fosse se tonrar uma distração, mas que ainda continuasse visível. Então tentei
manter as coisas assim. Se eu perdesse o foco por um segundo, a opacidade
mudaria. Levei três dias até conseguir manter tudo consistente.
Eu podia ver até três ou quatro segundos com mais mana, mas se tentasse ver
cerca de cinco segundos do porvir, a imagem se dividia e embaçava tanto que me
dava dor de cabeça. Isso representava o tanto de formas que o futuro poderia ter.
Além disso, quanto mais tentava ver o futuro, aparentemente mais isso
sobrecarregava o cérebro. Kishirika até disse que ter dois olhos demoníacos poderia
resultar em loucura. Talvez fosse graças à influência de todos seus olhos
demoníacos que ela parecia uma cabeça de vento.
Mas, independentemente disso, eu sabia que poderia ver um segundo do futuro
e continuar em segurança. Levei três dias para dominar isso, depois um dia extra
para aprender como controlar ambos os fatores ao mesmo tempo. No total, levei
sete dias para aprender o básico do uso do meu Olho da Previsão.
— Só por saber mesmo, mas gostaria de perguntar. O que vocês dois estão
fazendo?
Então estava fazendo algo em segredo que não podia me contar? Ah, entendi.
Algumas tardes de prazer, eh? Acho que a única coisa que eu poderia fazer era me
afogar no cheiro daquele trapo encharcado de suor que ela segurava.
Não tenha a ideia errada – eu não estava particularmente preocupado com isso.
Eles só deviam estar saindo para treinar. Embora sua atitude pudesse sugerir o
contrário, Eris, na verdade, era do tipo que trabalhava duro em segredo. Quando
estávamos na região de Fittoa, fazia a mesma coisa, frequentemente treinando com
Ghislaine nos dias de folga. Naquela época, sempre que eu perguntava o que estava
fazendo, a garota exibia o mesmo sorriso cheio de confiança no rosto e dizia: “É
segredo!” Então, eu tinha certeza que desta vez também devia estar treinando.
— Você realmente acha que pode me vencer agora só porque tem esse olho
demoníaco?! — Eris estava se sentindo particularmente confiante. Devia ter
aprendido alguma técnica nova ou algo do tipo na semana que passou.
— Não, tudo bem se eu perder. Só quero saber o quanto posso ver com este
olho durante uma batalha, só isso. — Era por esse motivo que não usaria magia. Eu
também queria ver os frutos do meu próprio trabalho. Ajustei meu olho para poder
ver um segundo do futuro e a luta começou.
Eu podia ver o que ela faria mesmo enquanto a garota ainda estava
falando. Eris vai de repente balançar o punho esquerdo na minha direção. Se eu
não tivesse esse olho, não teria sido capaz de reagir a tempo. Seus ataques
preventivos eram algo quase que natural.
— Hah!
Então surgiu a próxima visão. Eris não vai sequer recuar – na verdade vai dar
início a um ataque violento, usando a espada empunhada em sua mão direita. Esse
era o seu ponto forte. Ela poderia ignorar qualquer número de ataques e lançar-se
direto à ofensiva. A parte inferior de seu corpo era tão forte que a maioria dos
ataques não a faria cambalear. Na verdade, quanto mais dano a garota tomasse,
mais aumentava sua raiva e mais agressivos seus ataques se tornavam.
— Tah!
Em outras palavras, foi apenas uma de suas fintas. Ela largou a espada para
me fazer baixar a guarda.
Eris vai se segurar com as mãos, usar o rebote e o torque para dar um giro e
se agarrar à minha perna direita.
Graças à maneira como ela contorceu seu corpo em uma tentativa desesperada
de me morder, o corpo de Eris ficou todo torcido. Um braço estava esmagado
embaixo dela, enquanto uma de suas pernas estava dobrada em direção ao seu
traseiro. Me perguntei o que ela faria a seguir, mas tudo que podia prever era mais
luta.
Saí de cima dela. A garota se levantou devagar e limpou a sujeira de sua roupa.
A expressão de Eris azedou quando parei seu punho com minha mão.
— Estou indo para casa! — declarou em voz alta. Seus ombros tremeram
quando ela se retirou em direção à pousada.
Realmente a irritei? Não, não era isso. Provavelmente só a fiz perder um pouco
de confiança. Até então ela sempre me derrotou com bastante facilidade. Agora eu
tinha ficado repentinamente mais forte. Se estivesse no lugar dela, provavelmente
também ficaria com inveja.
— Isso é normal para a idade dela — respondi antes de olhar para ele.
— Bom trabalho.
— Qualquer um que tivesse um olho demoníaco poderia fazer isso.
— Um olho demoníaco não é algo que uma pessoa pode dominar logo após
conseguir.
— Ah, sério?
Ah, certo. Tá, certo. Sim, entendi o que ele quis dizer.
Bem, trabalhei muito para controlar meu fluxo de mana e dominei o uso dele em
apenas uma semana. Então eu era o único capaz de controlar isso tão rapidamente,
hein? Entendo, entendo. Mwahaha!
— E em combate próximo?
— Quer tentar?
Ruijerd colocou sua lança de lado e assumiu uma postura de mãos vazias. Em
outras palavras, não precisava de sua arma característica para lutar contra um
nanico como eu.
Eu conseguia ver. Podia ver o que ele iria fazer e reagir a isso.
— Ow! — Inclinei meu corpo para trás, evitando seu ataque por pouco.
Eu conseguia ver. E podia ver tudo nos mínimos detalhes. Mas meu corpo já
estava contorcido após evitar seu último ataque. Mesmo se pudesse ver o que ele
faria a seguir, não seria capaz de me mover a tempo de desviar.
— Bwah!
Seu punho acertou o meu rosto em cheio. Minha cabeça bateu na areia da praia
enquanto eu caia no chão. Fiquei ali deitado de bruços.
Levantei a mão para verificar se havia algum ferimento. Eu estava bem, certo?
Esperava que ele não destruísse todo o meu lindo rosto. Agora não estava com o
rosto todo distorcido igual ao de um pug, certo?
— Se rende?
— Sim, admito a derrota. — Achei que poderia vencer quando tive a primeira
visão, mas parecia que as coisas não eram tão simples.
— Não, eu não entendo. O futuro que eu vi ficou borrado. Como é que você fez
aquilo?
— Não tenho ideia do que você viu, mas decidi que se tentasse se defender
com a mão eu a agarraria, e se não o fizesse, daria um soco. Isso foi tudo que
passou pela minha cabeça.
— Mais importante, eu lutei com alguém com o mesmo olho demoníaco antes.
Desde então, tenho lutado seguindo a suposição de que todos têm a mesma
habilidade. Você e eu temos diferentes níveis de experiência.
— Isso é verdade.
Então ele usou sua experiência para combater o Olho da Previsão. Talvez os
estilos de espada deste mundo também tivessem maneiras de se opor ao poder de
um olho demoníaco – por exemplo, a Espada Longa da Luz, do Estilo Deus da
Espada. Tive a sensação de que, mesmo se pudesse ver, não seria capaz de me
esquivar.
Deixando tudo isso de lado, esse olho ainda tinha seu encanto. Afinal, venci
Eris. Só de pensar em como poderia usá-lo no futuro, meu coração disparava. Eu
tinha previsto tudo o que Eris faria. Foi totalmente diferente de como as coisas
costumavam ser. Em outras palavras, com prática, poderia até ser capaz de prever
os movimentos de Ruijerd.
Foi então que o eremita apareceu com um puf dentro da minha cabeça, com
sua careca brilhante e óculos escuros. Agora você não precisa ser espancado o
tempo todo para ver o quão longe chegou! disse ele.
Então tudo certo. Obrigado, eremita amante de seios. Hmm. Pensar em todas
as maneiras como eu poderia usar esse olho realmente fez meu coração disparar!
Quando voltei para a pousada, com um olhar sonhador no rosto, encontrei Eris
empoleirada na cama abraçando os joelhos. Ah, claro, eu tinha esquecido dela. Ela
estava deprimida. Enquanto isso, meu eremita interior pulou em seu casco de
tartaruga e desapareceu indo para outro lugar.
— Um, Eris?
Ela venceu Ruijerd uma vez. Isso era extraordinário. Eu provavelmente nunca
faria isso em toda a minha vida. Pelo visto, Eris ficou muito arrogante por causa
disso. É por isso que o Superd me usou para esvaziar seu ego.
Sério, mas que diabos? Foi seu próprio erro e ainda assim aquele aspirante a
guerreiro amante de crianças me fez limpar sua bagunça. Ainda assim, foi efetivo.
Seu ego tinha inchado muito depois de reivindicar vitória contra um oponente que
nunca havia vencido antes (Ruijerd), apenas para ser perfurado ao perder para um
oponente que nunca a havia derrotado antes (eu).
Dito isso, não acho que essa fosse a maneira certa de lidar com isso. Eu sabia
como era finalmente começar a pensar: Ei, será que peguei o jeito disso? apenas
para provar o contrário. Isso deixaria qualquer um se sentindo completamente
miserável, como se tudo o que tivesse feito até o momento fosse inútil.
Claro, talvez tenha ajudado a esfriar sua cabeça. Talvez assim ela evitasse
cometer grandes erros. Mas Eris provavelmente estava em um período de
crescimento acelerado. Não achei que ferir o ego dela seria a resposta certa. Em
vez disso, era melhor deixá-la ir mais além para que pudesse se desenvolver ainda
mais rápido. Então, poderia apontar suas deficiências e corrigi-las depois.
— Está tudo bem, não precisa me confortar. De qualquer forma, eu sabia que
não iria conseguir te derrotar. — Ainda irritada, ela esticou o lábio e fez beicinho.
Hmm, o que eu poderia dizer? Eu não tinha boas frases para momentos como
este.
Ruijerd não tinha voltado para o quarto comigo. Para começo de conversa, foi
por culpa dele que o ego dela ficou fora de controle, então desejei que ele fizesse
algo sobre isso, embora fosse verdade que eu era o único que realmente tinha
estourado sua bolha.
— Não perca toda a sua confiança com isso. Ouvi dizer que você conseguiu
derrotar Ruijerd uma vez. Isso é incrível, certo? — Sentei-me ao lado dela enquanto
falava. Quando fiz isso, Eris encostou seu corpo contra o meu. O doce aroma de
suor encheu minhas narinas. Era um cheiro bom, mas eu precisava me controlar.
Em situações assim precisava ser um cavalheiro.
— Isso é trapaça, Rudeus. Você ganhou um olho demoníaco enquanto eu tive
que trabalhar duro…
Congelei. Minha cabeça ficou dormente. Meu lobo interior recuou com a cauda
enfiada firmemente entre as pernas. Não havia nada que eu pudesse dizer em
resposta.
Ela estava certa. Por que eu estava ficando tão feliz? Era trapaça. O que eu fiz
foi desonesto. O poder do olho demoníaco não era algo que trabalhei duro para
conquistar. Simplesmente caiu no meu colo. Tudo o que fiz foi comprar comida em
alguma barraca e vagar pelos becos. Verdade, levei uma semana para dominar seus
poderes. Mas era só isso. Não precisei me esforçar. O que diabos estava fazendo
ao usar esse poder e agir feliz por ter vencido Eris quando ela passou uma semana
inteira trabalhando duro, ficando encharcada de suor?
— Sinto muito.
— Não se desculpe.
Depois disso Eris ficou em completo silêncio. Entretanto, não se afastou de mim.
Meu coração normalmente estaria batendo forte com o cheiro dela ou o calor de seu
corpo, mas desta vez não o fez. Em vez disso, apenas me senti envergonhado,
como se seu calor e o cheiro de seu suor estivessem me criticando. O ar estava
pesado.
Talvez fosse melhor para mim não usar o olho demoníaco, a menos que fosse
absolutamente necessário. Sua conveniência podia atrapalhar meu crescimento. Eu
entendi isso depois de lutar com Ruijerd.
No momento, a coisa mais importante não era pensar em como usar esse olho
demoníaco. Em vez disso, precisava aprimorar minha habilidade de combate. É
verdade, eu me tornava um lutador melhor quando usava o olho. Mas minhas
habilidades acabariam estagnando se dependesse disso. Depender de alguma
coisa só serviria como algo para me assombrar mais tarde. Isso era perigoso. Quase
me permiti pular direto nos esquemas daquele diabo traiçoeiro, o Deus Homem.
No final das contas, ainda não havíamos encontrado uma maneira de cruzar o
oceano. Eu fiz alguma confusão? Segui o conselho do Deus Homem ao pé da letra,
mas tudo que ganhei foi o olho demoníaco.
Isso deveria ajudar em algo? Tipo em apostas? Mas prazeres como apostas
não existiam no Continente Demônio. Se o fizessem, provavelmente estavam na
forma de apostas em brigas entre duas pessoas. Isso não me renderia muito
dinheiro. Poderíamos usar Ruijerd como um gladiador e cobrar uma taxa de
participação de um ferro bruto com um prêmio de cinco moedas de minério verde,
mas ele eventualmente ficaria sem oponentes.
— Certo… acho que devo vender isso. — Dizer as palavras em voz alta ajudou
a fortalecer minha determinação.
Felizmente Ruijerd não estava por perto nesta noite, e Eris já estava debruçada
em sua cama e com a barriga para fora. Seria problemático se ela pegasse um
resfriado, então puxei um cobertor sobre seu corpo.
Ruijerd apareceu no meu caminho. Ele não estava no quarto, então pensei que
estivesse em outro lugar. Mas claramente estive errado. Droga, o que ele estava
tentando fazer, espiar as pessoas? Tinha que, de alguma forma, o enganar.
— E você precisa de seu cajado para fazer sexo com uma mulher?
— Sim… — Seu palpite foi tão preciso que tive que confessar.
— Sim. Este cajado é feito de materiais de qualidade realmente boa, então deve
custar uma boa quantia.
— Eu não estou falando sobre isso. Ele não é importante para você? Assim
como este pingente. — Ele ergueu o pingente de Roxy, pendurado em seu pescoço.
— Sim, é igualmente importante.
Parei.
— Se for necessário.
Ele respirou fundo. Achei que fosse gritar, embora não fosse do tipo que
levantava a voz, a menos que tivesse algo a ver com crianças. Ele não gritou. Em
vez disso, soltou um suspiro enquanto falava.
O espírito de um guerreiro, hein? Essas eram palavras elegantes, mas não nos
ajudariam a atravessar o oceano.
— Mencionei — concordei.
— Não mencionavam.
Parecia que ele iria me repreender por mentir. Não, nunca tive a intenção de
mentir. Vender meu cajado fazia parte da opção de ataque frontal.
Desviei meus olhos com a pergunta. Eu sabia que ele não aprovaria meu plano.
É por isso que não falei com ninguém sobre isso. Talvez pudessem dizer que isso
era a prova de que eu realmente não confiava nele.
A única coisa que descobri foi uma opção melhor, não a melhor das opções. A
melhor opção, aquela em que tudo funcionaria perfeitamente, era muito difícil e
provavelmente terminaria em fracasso. Então, eu não sabia a solução correta, assim
como não sabia antes. Por isso também não estava convencido de que usar um
contrabandista fosse realmente a opção certa.
— Mesmo se for a opção certa, não adianta criar um desacordo dentro do nosso
grupo — falei.
— Rudeus.
— Sim?
Por outro lado, se ele não estivesse conosco, poderíamos ter nos deparado com
um desastre no meio do caminho. Ruijerd nos ajudou inúmeras vezes.
— Mesmo se você resolver o problema vendendo seu cajado, meu orgulho não
pode aceitar isso.
— Mas a vergonha que vou sentir porque você vendeu isso ainda vai
permanecer. Eris também ficará incomodada. Não é esse o desacordo que você
estava falando querer evitar?
— Se, durante a viagem, você vir algo desprezível de verdade e não conseguir
se conter, por favor, me diga. Devemos ao menos ser capazes de ajudar alguma
criança.
Se Ruijerd estivesse tão sério sobre isso, então desistiria do plano, por mais
inteligente que achasse que fosse. Contaríamos com um contrabandista para cruzar
o mar. Mas desta vez eu não iria dar atenção ao desnecessário. Se o Superd não
pudesse se conter, nós os trairíamos sem hesitação e ajudaríamos quem
precisasse. Usaríamos os criminosos conforme necessário e depois os jogaríamos
de lado.
— Digo o mesmo.
— Ooh, que assustador. E eu aqui pensei que tudo o que tinha ouvido sobre a
raça Superd era um monte de merda, mas aqui está você, a coisa real. — Ele exibia
um sorrisinho ao se aproximar. Eu já tinha visto esse cara em algum lugar antes. —
Em primeiro lugar, poderia guardar essa arma de aparência perigosa? Não vim
procurando por briga. Estava te procurando para agradecer.
— Ainda é um pouco cedo para ir para a terra dos sonhos, não acha?
Ah, agora lembrei. Era o homem com o qual me encontrei antes, o cara com
quem esbarrei logo depois de ganhar meu Olho da Previsão. Nunca sonhei que ele
apareceria para me agradecer no meio da noite. Com certeza era um bandido.
Sério?
Bom. O homem com quem topei podia até ser um lolicon pervertido, mas pelo
menos não estava com a boca aberta.
— Isso, e por usar sua magia para me empurrar para fora do caminho. Você me
ajudou a não ter a cuca esmagada.
— No meu ramo de trabalho, não há nada pior do que uma dívida de gratidão.
Não importa o quão pequena seja, se você não pagar de volta, ela acabará por
alcançá-lo e você pode ficar preso em uma situação em que terá de trair seus
camaradas. É por isso que é melhor pagar de volta, e pagar logo. — Ele balançou a
cabeça dramaticamente e apontou para mim. — Eu estava ouvindo, Mestre do Canil,
e você está com sorte. Acontece que você topou com alguém que é membro de uma
organização de contrabando.
Ruijerd e eu nos viramos para olhar um para o outro. Esse cara era membro de
uma organização de contrabando? Mas que desenvolvimento conveniente. Eu teria
suspeitado que ele estava mentindo, mas havia também o conselho do Deus
Homem. Talvez o objetivo principal fosse que eu encontrasse esse homem.
Enquanto eu lutava para tomar uma decisão, o homem pareceu interpretar mal
o nosso silêncio e estendeu a palma da mão em nossa direção.
— Dito isso, não tenha a ideia errada. Estou retribuindo um favor, mas
contrabandear um Superd está em um nível completamente diferente. Não acho que
minha vida valha apenas duzentos minérios verdes.
Sem saber o que ele quis dizer, virei meus olhos para o homem e o encorajei a
continuar.
O sujeito sorriu.
— Imagino que o Fim da Linha seja muito forte, então quero um favor. Quer
ouvir?
Ele iria retribuir um favor, mas também queria outro? Isso parecia um pouco
estranho. Então, novamente, o homem me viu usando magia não verbal. Sua
conversa sobre pagar uma dívida provavelmente era apenas uma distração; ele
estava na verdade procurando alguém competente para fazer algum trabalho. Foi
por isso que apareceu após ouvir nossa conversa.
Ruijerd lançou um olhar na minha direção. Afinal, negociar era meu trabalho.
— Nada muito difícil. — No entanto, as condições que ele listou foram um pouco
inesperadas. — Veja, temos que armazenar os produtos contrabandeados antes de
entregá-los e depois mantê-los seguros até que o contratante apareça para os
buscar. Em um mês a partir de agora, vamos armazenar alguns bens antes de
despachá-los. Quero que você liberte algumas pessoas. Se possível, gostaria que
tomasse providências para que voltem para suas casas.
— Por que você não pode fazer isso? Com sua espada e suas habilidades,
deveria ser capaz, certo?
— Isso mesmo. Posso não parecer, mas sou o mais forte entre meus amigos.
Ainda assim, Senhor Superd, não é como se eu quisesse trair meus camaradas.
Tenho que considerar o que aconteceria depois, sabe. Mesmo se eu os salvasse,
não teria mais para onde ir, então não faria sentido. Só porque você é o mais forte,
não significa que está no topo da hierarquia.
Pela expressão no rosto de Ruijerd, era difícil dizer se entendia ou não o que o
homem queria dizer. Ele parecia entender de forma lógica, mas não emocional.
Considerei isso. Era tudo muito suspeito. Ainda assim, era um dos resultados
do conselho do Deus Homem. Embora fosse verdade que eu não podia confiar no
próprio deus, provavelmente era melhor não pensar demais nas coisas e seguir o
fluxo, assim como fiz da última vez.
Com base no que ouvimos, não estaríamos cometendo nenhum crime. Havia
uma boa chance de a pessoa que estávamos ajudando ser um monstro horrível,
mas salvar alguém ainda era salvar alguém, independentemente de seu caráter.
Além disso, poderíamos até usar um contrabandista para nos conduzir através
do oceano. Este não seria um mau negócio se pudéssemos cruzar sem quaisquer
encargos ou taxas. Com tudo isso, foi fácil tomar uma decisão.
— Tudo bem então, vou confiar em você para fazer um bom trabalho. Meu nome
é Gallus Cleaner.
— Rudeus Greyrat.
E foi então que trocamos nossos nomes e decidimos assumir a missão de uma
organização de contrabando.
História Paralela -
Conexões Perdidas,
História Extra
Roxy Migurdia , a mulher que era mestra de Rudeus, desembarcou de sua
viagem marítima na cidade de Porto Vento no Continente Demônio.
Ela parou assim que desembarcou. A paisagem urbana de Porto Vento era
muito parecida com a da cidade ao norte de Millis, Porto Zant. Mesmo aqueles que
colocavam seus olhos nela pela primeira vez seriam acertados por uma sensação
de déjà vu.
No entanto, o déjà vu não era a razão pela qual Roxy fez uma pausa. Era por
haver uma clara diferença entre o ar do local e aquele do Continente Millis.
Já faz tanto tempo, pensou. A nostalgia surgiu lá do fundo de seu peito. Quando
foi a última vez que ela esteve no lugar? Já deviam fazer cerca de quinze anos.
Quando pensou nisso, percebeu quanto tempo havia passado desde que começou
a invejar os humanos e fugiu de seu vilarejo.
Naquela época, quando foi parar no Continente Millis e comeu os doces feitos
por humanos, ficou chocada em como aquela comida deliciosa poderia existir no
mundo. Decidiu então que nunca iria comer comida do Continente Demônio
novamente, e que também nunca iria voltar.
Na verdade, ela não tinha retornado desde que trocou o Continente Millis pelo
Continente Central, e nunca sequer considerou retornar. Havia muita coisa no
Continente Central. Tudo o que viu lá era refrescante e excitante, e, antes que
percebesse, já havia vivido no Continente Central por tanto tempo quanto viveu no
Continente Demônio.
O nome daquela mulher magnífica era Elinalise Dragonroad. Ela era uma
guerreira elfa, perfeita para a vanguarda na linha de frente. Estava equipada com
um escudo e uma estoque, que usava principalmente para atacar com estocadas.
Suas habilidades eram tão magníficas quanto sua aparência.
Uma estoque não era uma arma comum entre os aventureiros. No Reino Asura,
era usada pelos nobres durante os duelos, e na região norte era usada por
guerreiros quando estavam totalmente equipados com armaduras. A que estava na
posse de Elinalise era um item mágico encontrado nas profundezas de um labirinto.
Era mais resistente do que a maioria das espadas e um único movimento poderia
criar um vácuo de vento capaz de derrubar árvores a metros de distância. Seu
broquel também era um item mágico com a habilidade de mitigar qualquer ataque
que recebesse.
Seu nome era Talhand. Formalmente, era conhecido como Talhand do Arrojado
Grande Pico da Montanha. Ele tinha quase a altura de Roxy, com mais de duas
vezes sua circunferência. Este homem, com sua barba volumosa e armadura
pesada por todo o corpo, era um mago.
Por que um mago estava usando tanta armadura? No começo até Roxy
questionou. Mas os pés de Talhand eram lentos e sua agilidade inexistente. Se uma
besta o atacasse, ele não teria como escapar. No entanto, com essa armadura
volumosa o protegendo, poderia usar magia mesmo na linha de frente.
— Você está bem, Senhor Talhand? Devo lançar alguma cura em você?
— Não, não precisa. — Ele balançou a cabeça para frente e para trás e deslizou
seu corpo lento para frente. O anão era normalmente um pouco mais ágil do que
isso, mas ficou enjoado e isso o enfraqueceu.
Os dois eram rápidos em começar a brigar um com o outro, então cabia a Roxy
intervir.
— Vamos brigar sobre isso mais tarde, por favor. Senhorita Elinalise, você não
tem que comentar a respeito de tudo. Algumas pessoas são predispostas a enjoar.
Ainda assim, nunca percebeu que Paul e Zenith eram membros dos Presas do
Lobo Negro. Foi impossível esconder sua surpresa. E os dois ficaram igualmente
surpresos com ela. Afinal, era Roxy Migurdia, bem conhecida pelo povo como uma
maga da Água do nível Rei, uma jovem garota de cabelo azul, nativa do Continente
Demônio. Alguém que entrou na Universidade de Magia e dentro de alguns anos
obteve o título de maga de Água de nível Santo, e então atravessou um labirinto nos
arredores do Reino Shirone, um que tinha 25 níveis de profundidade. Depois disso,
se tornou uma das magas da corte do Reino Shirone.
De acordo com a dupla, a estação das chuvas logo chegaria à Grande Floresta,
então deveriam se mover rápido enquanto podiam. Mas com a maneira como
forçavam os cavalos a se moverem constantemente, mesmo à noite, parecia que
apenas não queriam estar no Continente Millis por um segundo a mais do que o
necessário. Roxy presumiu que o verdadeiro motivo era que simplesmente não
queriam voltar para casa.
Roxy fez uma careta diante das palavras de Elinalise. A elfa podia até parecer
casta, mas amava os homens. Com aquela silhueta era difícil imaginar, mas
provavelmente tinha vários filhos. De acordo com a elfa, tudo isso era parte da
maldição que foi lançada sobre ela, mas a mulher não parecia nada ofendida com
isso. Na verdade, parecia até gostar. Roxy não conseguia acreditar.
— Senhorita Elinalise, não estamos procurando por homens.
— Eu sei disso.
Não, você não sabe, Roxy fez uma careta. Elinalise podia não ter nenhum
problema com sua assim chamada maldição, mas Roxy desejou que ela pensasse
no grupo com a qual estava viajando. Estava tudo bem para a elfa fazer o que
quisesse em seu próprio tempo, mas esta era uma emergência. Além disso, se
engravidasse, isso só atrasaria ainda mais a viagem.
Gostaria que você fosse com um pouco mais de calma, pensou Roxy.
Quando Roxy entrou, encontrou um grupo que obviamente era de novatos. Três
meninos, todos vestidos com roupas de guerreiro. Eles se aproximaram dela
timidamente.
O trovador havia dito que escreveria canções sobre ela, mas Roxy nunca
esperou se tornar tão famosa.
— Roxy, que tal pensar um pouco? Afinal, você está sendo convidado por
ótimos garotos! — Elinalise deu um tapinha na cabeça dela.
Ela nunca imaginou que o trovador deixaria de reconhecer sua raça. Em vez
disso, ele presumiu erroneamente que ela tinha apenas doze anos e havia chegado
ao rank A em apenas dois anos. Não apenas isso, mas a versão atual da música
era tão dramatizada que dizia que ela viajou pelo Continente Demônio e chegou
ao rank A em apenas um ano.
Não se iluda, pensou Roxy. Na realidade, ela levou cerca de cinco anos para
chegar ao rank A. Com o Continente Demônio como sua base de operações, subiu
ao rank B em três anos. A partir de então, passou dois anos pulando de grupo em
grupo. Entretanto, essa ainda foi uma ascenção rápida. Se ela recomeçasse
do rank F, poderia conseguir chegar ao rank A em apenas um ano, mas um grupo
de crianças sem experiência nunca conseguiria fazer isso.
Um deles era muito sarcástico, sempre inventava mentiras para tudo, mas era
muito bom em cuidar das pessoas. Outro adorava xingar as pessoas e tinha uma
boca suja, mas também era muito determinado. O terceiro era incrivelmente
inteligente e mantinha o grupo unido. Ele morreu durante a jornada.
Seu grupo se dissolveu quando chegaram a Porto Vento, mas ela se perguntou:
Os outros dois ainda estavam vivos e bem? Depois de se aventurar pelo Continente
Central, entendeu o quão severas eram as condições do Continente Demônio. Havia
uma grande chance de que já estivessem mortos.
Nokopara e Blaze… Espero que ainda estejam bem. Ela se pegou rindo quando
pensou nisso. Já fazia vinte anos. Os dois não tinham expectativa de vida
particularmente longa, então talvez já tivessem se aposentado das aventuras há
muito tempo. A única que permaneceu igual foi Roxy.
A partir das informações que coletaram, descobriram que o Fim da Linha estava
na cidade — um novo e promissor grupo de aventureiros que rapidamente fez seu
nome.
Fim da Linha. Não havia nenhuma pessoa no Continente Demônio que não
conhecesse esse nome. Mesmo entre os Superds, eram considerados
especialmente perigosos, bestas que visavam principalmente as crianças. Quando
Roxy era apenas uma criança, sua mãe sempre a ameaçava com esse nome. “Se
você não se comportar, o Fim da Linha virá para te levar embora”, ela sempre dizia.
Eles voltaram para a pousada. O rosto de Roxy azedou quando juntaram todas
as informações que tinham sobre este “Fim da Linha”.
— Em qual parte?
O que havia de tão assustador nisso? O fato de que o grupo real existia. Aqueles
no Continente Central não sabiam disso, mas o nome definitivamente se referia
a alguém lá fora. Claro, Roxy nunca os tinha visto, mas todos os rumores que ouviu
eram aterrorizantes. Eram as criaturas mais terríveis do Continente Demônio.
A Guilda dos Aventureiros nunca listou seus nomes exatos, por medo de
retaliação, mas se houvesse um pedido de extermínio para aqueles demônios, seria
definitivamente classificado como rank S. Era o tipo de trabalho que daria o rank S
instantaneamente aos aventureiros que o realizasse.
De acordo com as informações que ela reuniu, o homem que afirmava ser o Fim
da Linha tinha pele clara, era careca e carregava uma lança consigo. E também era
muito bonito.
— Já que disseram que ele é um cara bonito, por que não o convido para minha
cama para conseguir mais respostas?
De acordo com o que Talhand havia descoberto, o Fim da Linha era um grupo
de três pessoas. Eles se referiam a si próprios, respectivamente, como Cão Louco
Eris, Cão de Guarda Ruijerd e Mestre do Canil Ruijerd. Os dois últimos eram irmãos.
O Cão Louco tinha cabelo ruivo, o Cão de Guarda era um varapau e o Mestre do
Canil era um baixinho. O Cão Louco usava uma espada, o Cão de Guarda uma
lança, e o Mestre do Canil um cajado que aparentemente era um item mágico. A
reputação deles não era lá muito boa.
— O Cão Louco perde a paciência bem rápido, e o Mestre do Canil só faz coisas
horríveis. Mas, pelo visto, o Cão de Guarda não é um cara mau. Ama crianças, tem
um forte senso de justiça e se recusa a fechar os olhos ao mal.
Essa é uma avaliação muito estranha para as pessoas fazerem, pensou Roxy.
Talvez o próprio grupo tenha criado os rumores. Se um grupo de malfeitores fizesse
algo de bom, isso se espalharia como um incêndio. Mas, pelo visto, não eram
apenas violentos, mas também astutos e espertos.
— Tudo bem, então vamos passar para a agenda principal — disse Roxy,
redirecionando a conversa. O propósito de irem para a Guilda dos Aventureiros não
tinha sido reunir informações sobre o Fim da Linha. — Houve algum boato sobre
pessoas da Região de Fittoa?
O Continente Demônio não era o tipo de lugar tranquilo no qual alguém poderia
sobreviver ao ser teletransportado sem o equipamento adequado. Era uma terra
onde simplesmente sobreviver durante um ano poderia ser difícil, mesmo para os
habitantes locais. Além disso, já havia se passado um ano desde o deslocamento
da Região de Fittoa.
Roxy ensinou Talhand e Elinalise como eles poderiam identificar cada um deles.
Aisha era a única sobre a qual não sabia nada, porque só soube sobre ela através
das cartas de Rudeus.
— Sem dúvida.
Os dois conheciam Zenith, então não expressaram nenhuma preocupação.
Roxy, por outro lado, não sabia o quão capaz a mulher era, mas confiava nesses
ex-membros do Presas do Lobo Negro que a apoiaram. Se Elinalise e Talhand
achavam que Zenith ficaria bem, então ela ficaria bem.
Roxy se sentiu genuinamente irritada com a forma atroz como o Reino Asura
estava lidando com um desastre tão grande. Possuíam um enorme poder, então ela
achou que deveriam tomar ações mais proativas. Na verdade, as únicas pessoas
que realmente participaram dos esforços de busca foram Paul e as pessoas ligadas
a ele. Em outras palavras, apenas aqueles afetados pelo desastre.
Parece que toda aquela conversa sobre o círculo interno do Reino Asura ser
corrupto era mais do que um boato, pensou. Era o país com a história mais longa
do mundo, então ainda estava se mantendo, mesmo com a deterioração de seu
poder e tradições.
Roxy não era do tipo que enrolava com as coisas. Não importa onde estivesse,
nunca perdia tempo. Ela sempre terminava as coisas rapidamente e então partia.
Essa parte de sua personalidade transpareceu quando inicializou Rudeus,
ensinando-lhe sua técnica especial e imediatamente partindo para outro lugar.
Tomar decisões rápidas era seu forte, mas também parte do motivo pelo qual
Rudeus a via como uma cabeça de vento. Outros haviam apontado para essa sua
característica, mas Roxy ainda considerava isso um ponto forte.
Foi por isso que definiu um cronograma para enviar um pedido à guilda no
primeiro dia, pesquisar no segundo e partir no terceiro. Uma programação rápida e
concisa, sem furos. Se ficassem por uma semana, os resultados poderiam ser um
pouco diferentes.
No segundo dia, a curiosidade de Roxy tomou conta dela e ela foi ver o que o
Fim da Linha estava fazendo. O grupo deles se destacava, então foi fácil encontrá-
los.
Sua informação dizia que o Fim da Linha era um grupo de três pessoas, com
uma pessoa alta e duas baixas. Parece que o pequeno Mestre do Canil não está
com eles, pensou.
Ela os observou de longe, espiando por trás da sombra de uma rocha. Era
quase como se isso fosse um jogo de beisebol profissional e ela fosse a irmã mais
velha de um arremessador que usava bolas de magia como sua arma na batalha.
Os dois eram fortes, até mesmo para Roxy, que havia viajado pelo mundo como
uma aventureira. Essa não era uma força que poderia ser alcançada apenas pela
técnica.
No final das contas, poderia acabar sendo bom entrar em contato com eles.
Assim que ela pensou isso, o Cão de Guarda olhou por cima do ombro.
Ah…!
Parecia que seus olhos se encontraram. Seu olhar era tão intenso que deu a
Roxy um indescritível sentimento de terror. O suficiente para lhe dar a ilusão de que
era uma presa sendo caçada.
Ela fugiu na mesma hora.
Ruijerd a sentiu desde o início. Ele não tinha certeza do que ela queria, ou se
estava apenas assistindo. Quando casualmente olhou em sua direção, viu o rosto
de uma garota espreitando por trás de uma pedra.
Não, não uma garota, percebeu. Uma mulher Migurd adulta. Ele não poderia
dizer só de relance, mas não havia como enganar o terceiro olho de Ruijerd. O
homem não reconheceu a presença dela, mas também existia mais de um
assentamento Migurd.
Ele percebeu que ela provavelmente estava apenas olhando por curiosidade,
mas quando olhou para trás, a mulher se virou e saiu correndo para algum
lugar. Hm. Eu a assustei? se perguntou.
— Guh!
Depois de trocar três golpes, Eris atingiu as costas da mão de Ruijerd e o fez
largar a espada.
— Yay! Eu fiz isso?! Eu fiz isso, certo?! Siiiim! — Eris pulou e balançou as duas
mãos esbanjando alegria.
Ruijerd soltou um suspiro, baixo o suficiente para que Eris não ouvisse.
Roxy olhou por cima do ombro inúmeras vezes enquanto corria de volta para a
pousada. O tempo todo, temia estar sendo seguida e que um ataque pudesse estar
chegando. Se fosse lutar contra alguém daquele calibre, precisava preparar um
cristal mágico. Ela podia precisar até mesmo de um círculo mágico desenhado em
um pergaminho.
Não parecia que iriam atacar só porque ela estava os observando, mas se eram
loucos o suficiente para se chamarem de Fim da Linha, Roxy queria estar preparada.
Ela ficou exasperada ao ouvir os gemidos de Elinalise por trás da porta. A elfa
nem se preocupou em reunir informações; simplesmente encontrou um homem para
trazer para a pousada com o qual pudesse se divertir.
— Sério…?
Mas duvido que viriam até a pousada, pensou, ao entrar em seu quarto para
conduzir os preparativos para a batalha.
As paredes não eram particularmente finas, mas ainda podia ouvir os gemidos
de Elinalise ressoando. Ouvi-los a deixou com um humor estranho.
Não, pare aí, pensou, e agarrou a mão direita com a esquerda bem no momento
em que estava pensando em fazer alguma coisa. Ela não tinha tempo para isso
agora.
Eles já estão fazendo isso há bastante tempo, pensou quando três horas se
passaram. Roxy continuou esperando em silêncio. Parecia que o encontro de
Elinalise jamais acabaria. Certo, também não havia indicação de que o Fim da Linha
iria lançar qualquer ataque contra eles.
Roxy se sentiu uma idiota. Ela não só não conseguia fazer o que precisava,
como também não conseguia expressar sua frustração por Elinalise ser tão egoísta.
Foi especialmente enfurecedor, pois, ao contrário da elfa, Roxy estava
demonstrando autocontrole e dizendo a si mesma que agora não era hora de se
ocupar.
Quando sua raiva atingiu o auge, ela finalmente arrombou a porta de Elinalise.
— Por quanto tempo você vai continuar fazendo isso! Deveríamos estar
reunindo…
— Quer participar?
— Uh, o qu…
A cena diante dela era tão repreensível que a maga não conseguiu nem
processar.
— Aaaaaaaaaaaaah!
Roxy soltou um grito inútil ao sair correndo do quarto. Ela voou para o primeiro
caminho que encontrou, completamente sem fôlego e segurando seu cajado.
— Algum dia você vai entender. Uma aventureira forte e bonita como eu sendo
subjugada e tratada como um brinquedo sexual por cinco daqueles bandidos? Ah,
só pensar nisso já é o suficiente para me deixar grávida.
Quando Roxy estava na Universidade de Magia, ainda era uma criança e não
entendia o apelo de ter um amante ou ser casada. A primeira vez que pensou em
querer algo assim foi quando viu como Paul e Zenith eram íntimos um com o outro.
Foi quando finalmente decidiu que queria o mesmo para si mesma.
Ainda assim, como? Ela se perguntou na época. Então se lembrou do que uma
conhecida da universidade lhe disse. Essa conhecida conheceu seu marido nas
profundezas de um labirinto. A luta compartilhada e a maneira como a superaram
levou ao casamento.
Essa fantasia tomou proporções cada vez maiores em sua cabeça. Ela iria de
alguma forma esbarrar em alguém que era alto, viril e elegantemente vestido – um
jovem homem com um apelo juvenil – nas profundezas de um labirinto, e ele a
salvaria. Então os dois combinariam suas forças para escapar e, ao fazê-lo, seu
amor germinaria e floresceria. O jovem descobriria que um de seus amigos havia
morrido e Roxy o confortaria. Essa seria sua primeira noite juntos.
Mas quando realmente foi para um labirinto, essas fantasias foram rapidamente
destruídas. Um labirinto era um lugar hostil, e os aventureiros que entravam nele
eram muito brutos. A única pessoa de aparência jovem entre eles era a própria Roxy.
No quinto andar, não havia mais nenhum aventureiro solitário. No décimo, ela
decidiu que as coisas estavam difíceis o suficiente para que precisasse de um grupo,
mas as pessoas zombavam dela por sua aparência infantil e riram dela inúmeras
vezes. Depois disso sua teimosia aumentou e ela continuou fazendo tudo sozinha.
Ah, a estupidez da juventude. Roxy chegou perto da morte várias vezes, mas teve
a sorte de escapar de suas garras. Ela nunca mais queria passar por aquilo.
— Bem, de qualquer forma, você devia encontrar seu primeiro homem logo.
Que tal isso? Da próxima vez, nós duas podemos…
— Definitivamente não.
O sonho foi destruído. Ainda assim, ela mantinha alguma esperança. Talvez
fosse impossível encontrar algo bom dentro de algum labirinto, mas ela ainda
poderia acabar se apaixonando do método normal e tendo um casamento normal.
Nesse meio tempo, não tinha absolutamente nenhuma intenção de entregar seu
corpo a um homem cujo nome não sabia só porque Elinalise conseguiu atraí-lo.
— Além disso, não tenho tempo para tudo isso. — Bem, Roxy decidiu que era
melhor ficar sozinha enquanto vagava pelo Continente Demônio.
Foi assim que deu o primeiro passo errado e começou sua aventura pelo
Continente Demônio.
O contrabandista não disse uma palavra. Ele apenas acenou com a cabeça,
guiou Ruijerd para o barco e colocou um saco na cabeça do Superd. O barco tinha
um único barqueiro, mas havia muitos outros a bordo com sacos na cabeça. A julgar
por suas alturas, não havia nenhuma criança.
No dia seguinte, vendi o lagarto no qual cavalgamos no ano anterior. Ele havia
nos carregado desde a cidade de Rikarisu até onde estávamos, e era confiável o
suficiente para que eu desejasse levá-lo para a Região de Fittoa conosco, mas
custaria muito caro para o levar junto. Além disso, no Continente Millis, poderíamos
usar cavalos. Os cavalos deste mundo eram rápidos e sua resistência estava em
um nível totalmente diferente. Não precisávamos mais montar o lagarto.
— Este é realmente obediente. Você deve ter o treinado muito bem durante
suas viagens, hein? — O comerciante que lidava com lagartos ficou impressionado.
Foi Ruijerd quem o treinou. Não que ele fizesse algo especial, mas certamente
havia uma dinâmica de mestre e servo entre o homem e Guella Ha. O lagarto devia
ter percebido quem era a pessoa mais poderosa do nosso grupo. Por outro lado, o
animal não gostava nem um pouco de mim e me mordeu várias vezes.
Bem, é melhor deixar essa coisa de nome para lá. Isso só está me fazendo
sentir apego, decidi. Então adeus, lagarto sem nome. Nunca vou esquecer como foi
cavalgar em você.
— Wah… — Ouvi Eris fungando.
O navio tinha velas e era feito de madeira. Era um modelo totalmente novo,
concluído há apenas um ano. Essa não era apenas sua primeira viagem, mas
também um desafio aos limites impostos ao viajar até Porto Zant.
— Você já viu um navio antes, Eris? — Ela não disse que esta era a primeira
vez que via o oceano?
Ah, claro, lembro de ter feito alguns desses. Era uma boa memória. Naquela
época, eu queria trabalhar na minha magia da terra, então comecei a criar coisas.
Assim que percebi que poderia vendê-los, comecei a fazer figures da Roxy em
escala 1:10. Entretanto, há algum tempo não fiz nenhuma outra. No momento, não
sabíamos quando precisaria usar minha mana, então não tinha feito nenhum
treinamento que consumisse tal precioso recurso. O único treinamento que fiz foi o
físico, ao lado de Ruijerd e Eris. Nos últimos tempos realmente comecei a relaxar.
Depois que as coisas se acalmassem, provavelmente precisaria voltar a aprimorar
minhas habilidades.
— Eu os fiz usando minha imaginação, então não é surpresa que não sejam
uma réplica perfeita — disse. Sem mencionar que este era para ser um novo tipo de
navio. Quanto a que parte era nova, eu não tinha ideia.
— É incrível, não é? Que algo tão grande possa cruzar o oceano. — Eris ficou
incrivelmente impressionada.
Sim, não, não era bem isso… Ah! Sim! Quando se pensa em um navio, se pensa
em ser atacado no mar! Um polvo, uma lula, uma serpente, piratas ou um navio
fantasma, algo assim. Um desses nos atacaria e nos afundaria. Seríamos deixados
à deriva e depois acabaríamos encalhados. Chegaríamos a uma ilha deserta, onde
a heroína e eu, apenas nós dois, começaríamos nossas vidas juntos. No início, ela
me odiaria, mas depois de superar vários obstáculos, gradualmente se tornaria
menos tsun e mais dere.
Além disso, havia apenas uma coisa para um homem e uma mulher presos em
uma ilha deserta fazerem juntos. A troca de olhares, o calor febril… Dois jovens de
sangue quente, começando a suar em meio ao eco das ondas do mar. Depois,
desfrutaríamos do nascer do sol juntos. Um paraíso só para nós dois.
Eris estava sentada na cabine com o rosto pálido e um balde na sua frente. Sua
empolgação com a primeira viagem de barco rapidamente se transformou, no meio
do caminho, em náusea. Eu me perguntei por que ela ficava bem cavalgando em
cima de um lagarto, mas de alguma forma não tinha estômago para um navio.
Como alguém que nunca sentiu enjôo, eu não conseguia compreender. Embora
houvesse uma coisa que pudesse dizer: Por mais brando que fosse o balanço do
navio, não parecia aliviar o sofrimento de quem ficava enjoado.
No quarto dia, um polvo apareceu. Pelo menos, foi isso que eu presumi que
fosse. Era de uma cor azul marinho, surpreendente e extremamente grande. Por
azar, não conseguiu capturar nenhuma garota. Em vez disso, foi abruptamente
despachado por um grupo de guarda-costas de rank S.
Para ser honesto, chorei de tanto rir quando vi seus pontos fortes individuais
pela primeira vez. O espadachim lutando em sua vanguarda era forte, mas não tão
forte quanto Ghislaine2. Aquele que atuava principalmente em desviar os ataques do
inimigo e chamava a atenção também era um guerreiro forte, mas nada parecido
com Ruijerd. Na retaguarda estava quem parava o polvo, um mago que certamente
era mais fraco do que eu.
Fiquei desapontado. Era realmente assim que um grupo de rank S deveria ser?
Achei que a maioria das pessoas neste mundo era muito forte, mas essas não eram
tão impressionantes quanto imaginei.
Ruijerd também era forte demais. Na verdade, poderia matar nossos oponentes
sozinho, mas estávamos forçando-o a trabalhar com uma equipe durante as
batalhas. Eu não chamaria isso exatamente de ruim, mas não havia dúvida de que
as coisas acabavam distorcidas. Achei que sabia o que significava lutar em equipe,
mas isso era apenas na teoria. Saber a teoria não significava que seria capaz de
colocá-la em prática. Eu tinha o hábito de me concentrar nos inimigos que vinham
em minha direção e, quando estavam em maior número que nós, confiava muito no
Superd.
Eris era horrível. Ela ouvia as instruções muito bem, mas quando se tratava de
uma batalha real, não conseguia combinar seu ritmo com o nosso. Ficava muito
fixada no inimigo à frente e se jogava em batalhas intensas. Quanto mais a luta
durava, menos ela escutava. Mesmo se a chamássemos, nunca cobriria nenhum de
nós, nem mesmo uma vez.
Dia cinco. Eris estava na cabine e, como sempre, passando mal, e eu estava
constantemente cuidando dela.
— Tá bom, tá bom.
Pelo menos, é assim que deveria ter funcionado. Eu não conseguia lançá-lo
continuamente, e a magia de cura não eliminava toda a náusea.
— Não…
Não havia mais ninguém na cabine. O navio em si era gigantesco, mas não
havia muitas pessoas viajando do Continente Demônio para o Continente Millis. Eu
não tinha certeza se isso era porque as taxas de passagem eram muito mais caras
para os demônios do que para os humanos, ou porque os demônios simplesmente
achavam mais fácil viver no Continente Demônio.
No lugar silencioso e mal iluminado, lá estava ela, sem poder para lutar. E lá
estava eu ao seu lado, tendo passado os últimos cinco dias observando-a
enfraquecer.
No começo não houve problema com isso. Exceto a cura. Isso era um problema.
Para curá-la, eu precisava tocar sua cabeça. Como precisava lançar meu feitiço
regularmente, ela estava usando meu colo como travesseiro enquanto eu mantinha
minhas mãos em volta de sua cabeça, curando-a repetidamente.
Foi quando comecei a me sentir estranho. Não, estranho era uma palavra
enganosa para se usar. Para ser franco, eu estava começando a ficar com tesão.
— Por favor, estou implorando, por favor, apenas faça isso (me cure).
Não havia nada inerentemente sexual em tocar outra pessoa. Ainda assim, ela
era maior de idade e eu podia sentir o calor de seu corpo. Só isso era estimulante,
mesmo que o toque não fosse de natureza sexual. A excitação que isso produziu foi
pouca, mas fazer isso continuamente por um tempo resultaria em problemas para
mim.
Tocar seu corpo, não importa onde, ainda era tocar. Tocar indicava que
estávamos próximos. Estar próximos significava que seu corpo estava totalmente à
vista. A testa, banhada pelo suor frio, a nuca, o peito, tudo.
Ahh, claro, não era apenas o Santo Graal. O corpo de Eris estava mudando dia
a dia, especialmente seu seio. Ela estava no meio da puberdade. Eu não tinha
certeza se era genético, mas estava se desenvolvendo rapidamente de uma forma
que lembrava sua mãe. Se continuasse nesse ritmo, se tornaria uma beleza
voluptuosa.
Alguns homens poderiam dizer: “Eh, acho que os menores são perfeitos.” Todos
tinham suas preferências, mas eu poderia dizer que estaria junto no momento de
descrever os seios de uma mulher como “perfeitos”. Eu poderia pegar seus seios
em minhas mãos neste exato momento, enquanto ainda eram pequenos.
Sua voz me acertou em cheio. Uma voz que normalmente era tão alta e forte.
Desta vez foi na altura perfeita, o suficiente para fazer meu peito formigar.
Eu não teria que me forçar? Então, em outras palavras, não teria que negar isso
a mim mesmo? Isso significava que poderia fazer o que quisesse?
Certo, disse a mim mesmo, vamos agir como uma máquina. Uma máquina. Eu
era uma máquina de cura. Me tornaria um robô sem sangue ou lágrimas. Não veria
nada, porque se visse o rosto dela, faria algo impulsivo. Com esse pensamento em
mente, decidi fechar meus olhos. Também não ouviria nada. Se ouvisse sua voz,
faria algo imprudente. Então, bloqueei minha audição também.
Eu era um pária silencioso e anti-social. E como não tinha desejos terrenos, não
podia fazer nada impulsivo. Com isso em mente, fechei meu coração. No entanto,
ainda podia sentir o calor de sua cabeça e o cheiro de seu corpo. Diante dessas
duas coisas, minha vontade foi instantaneamente destruída. Parecia que minha
cabeça ia ferver.
— Ah, então é isso que você estava segurando. Certo… Te vejo daqui a pouco.
A garota aceitou isso facilmente. Dei a ela um olhar de soslaio antes de sair da
cabine. Me movi rapidamente. Eu precisava de um lugar deserto, e logo o encontrei.
Lá, tive um momento de felicidade suprema.
— Uff…
— Certo, voltei.
— Sim, mas teremos que fazer isso uma última vez para ir do Continente Millis
ao Continente Central.
Ela pareceu desanimada com isso, então ficou ansiosa ao se lembrar do que
havia acontecido no navio.
— E-ei. Quando essas coisas acontecerem, você vai me curar o tempo todo de
novo?
— Claro, mas da próxima vez posso fazer algo pervertido com você — falei com
naturalidade.
Não foi crueldade. Eu era o único sofrendo. Agora entendia como um cachorro
se sentia, tendo uma refeição deliciosa à sua frente, apenas para ser impedido de
dar uma mordida. Ali estava, com o estômago completamente vazio e com a comida
o chamando, implorando para que a devorasse, e não conseguia. Poderia engolir a
quantidade de água que quisesse para tentar temporariamente satisfazer a dor na
barriga, mas seria um esforço inútil. A refeição não iria desaparecer e seu estômago
voltaria a ficar vazio.
— B-bem, acho que é assim que tem que ser. Da próxima vez pode me tocar,
mas só um pouco, tá? — Seu rosto estava vermelho e brilhante como um tomate.
Era realmente adorável. No entanto, havia uma lacuna muito grande entre a
enormidade do meu desejo e o “pouco” que ela oferecia.
— Infelizmente, “só um pouco” não vai resolver. Por favor, vamos esperar até
que você esteja pronta para eu mergulhar e fazer o que quiser com você.
Eris ficou sem palavras. Eu não queria que ela alimentasse minhas
expectativas. Queria que me deixasse manter a promessa que fiz. Se eu a
quebrasse e colocasse minhas mãos na garota, nós dois ficaríamos chateados com
isso.
A paisagem urbana diante de nós não era muito diferente daquela de Porto
Vento. Mas isso era Porto Zant, uma cidade no extremo norte do Continente Millis.
Continente Millis. Finalmente estávamos em tal lugar, mas ainda tínhamos um longo
caminho a percorrer.
Seria melhor esquecer quanto tempo nossa jornada ainda duraria. O importante
agora era partir para a próxima cidade.
Havia várias colinas onduladas ao seu redor e um porto que era mais animado
do que a própria cidade. A Guilda dos Aventureiros ficava, da mesma forma, mais
perto do porto do que do centro da cidade.
Dito isso, existiam alguns contrastes. Evidentemente, havia muito mais prédios
de madeira neste lugar do que em Porto Vento. Eles também eram pintados com
cores fortes, talvez para proteger o material da maresia. Árvores ladeavam a estrada
e era possível ver uma floresta além da orla da cidade.
Havia verde por toda parte. Era um contraste enorme com o Continente
Demônio, que era todo branco, cinza e marrom. Um oceano era tudo o que separava
os dois continentes e, no entanto, eram como mundos diferentes.
Eu já deveria esperar por isso, afinal, este era o Continente Millis, mas as
pessoas que vagavam pelas ruas não eram a mesma mistura estranha de diferentes
tribos de demônios que eu tinha visto antes. Em vez disso, havia gente-fera, elfos,
anões e hobbits – raças de pessoas que se assemelhavam muito aos humanos.
Antes de irmos encontrar uma pousada, tive que verificar o estado de nossas
finanças. Na moeda do Continente Demônio, tínhamos duas moedas de minério
verde, dezoito moedas de ferro, cinco moedas de sucata e três moedas de pedra.
Era isso. Quando as trocamos, recebemos três moedas de ouro Millis, sete moedas
de cobre grande Millis e duas moedas de cobre Millis. Menos do que presumi que
conseguiríamos, mas suspeitei que fosse por causa das taxas de transação. Se
tivéssemos usado uma casa de câmbio que não tivesse sido licenciada pela guilda,
certamente teriam cobrado mais. Isso ainda estava dentro de uma faixa aceitável.
A maioria das pessoas normalmente evitaria ficar presa em um lugar como este
durante a estação das chuvas, mas pelo visto certos monstros só apareceriam
durante essa época, graças às chuvas que os levaram em direção à cidade. Os
materiais pegos desses monstros eram vendidos por muitas moedas, então muitos
aventureiros iriam para a cidade e permaneceriam durante esta temporada.
Ainda assim, seria melhor não contar com os ovos dentro das galinhas, certo?
Não tínhamos muito dinheiro e também não conseguimos encontrar uma pousada
para nos hospedar. Os únicos lugares com quartos disponíveis estavam fora do
nosso orçamento ou eram extremamente ruins.
Seria impossível pagar com o dinheiro que não tínhamos, então só nos restava
uma opção: ficar em um lugar desagradável e permanecer no que era, francamente,
uma favela. Uma noite custava três moedas de cobre grande e não havia outros
serviços inclusos, incluindo refeições. Mas, apenas para dormir, parecia barato e
decente. De volta ao Continente Demônio, tínhamos ficado em lugares muito piores.
Mas valeria à pena ir para outro lugar assim que conseguíssemos economizar
algumas moedas.
— Hmm, acho que não é tão ruim! — Eris era filha de uma família nobre, mas
não tinha escrúpulos quanto ao estado dilapidado do edifício ou sua falta de
serviços.
Decidi não “agir como um bebezão”. Tudo o que pude fazer foi usar magia para
criar um vento quente que aniquilaria todos os ácaros da poeira e, em seguida, daria
uma limpada rápida no quarto. Eu não tinha mania de limpeza. Honestamente, até
gostava que as coisas ficassem um pouco bagunçadas, mas, às vezes, em
pousadas como essa, as pessoas que pernoitavam esqueciam algumas de suas
coisas. Poderia haver alguma moeda deixada debaixo da cama ou um pequeno
anel que caiu de uma bolsa. Podíamos embolsar qualquer dinheiro que
encontrássemos, mas, às vezes, se houvesse um anel ou algo semelhante deixado
para trás, poderia haver um pedido de busca na guilda. Isso poderia nos render uma
recompensa em dinheiro, independentemente do rank do pedido. Normalmente,
seria algo pequeno, mas poderia acontecer de render uma grande quantia. Foi por
isso que cuidadosamente limpei o quarto.
Nesse meio tempo, Eris pegou alguns trocados emprestados para cuidar da
limpeza das roupas. Em seguida, rapidamente realizou os cuidados de rotina do seu
equipamento. Quando terminamos, o sol estava começando a se pôr.
Uma vez, ficamos em uma pousada perto das favelas. Um ladrão entrou em
nosso quarto enquanto estávamos trabalhando. Ruijerd havia seguido os rastros do
bandido e os puniu severamente, mas as mercadorias que roubaram de nós já
haviam sido repassadas para outra pessoa e nunca as recuperamos. Na época,
aquelas coisas não eram lá muito importantes.
— A única pessoa que roubaria algo assim é você! — Após esse corte eu gemi
por dentro.
Mas, sabe, Eris, eu nunca tentei roubar sua calcinha depois que você a lavou…
Nem uma vez.
Durante a noite, andei sozinho pela cidade. Levou algum tempo para persuadir
Eris. Entretanto, a prevenção ao crime era realmente importante.
Com a lança de Ruijerd em uma das mãos, fiz meu caminho até o cais e, em
seguida, até a orla. Lá estavam quatro grandes armazéns de madeira. Deslizei para
dentro daquele rotulado como “Armazém Três”.
Dentro havia um único homem, limpando tudo em silêncio. Ele tinha um dos
penteados mais comuns da virada do século: um moicano. Fui até ele e perguntei:
— Yo, Steve. Como está Jane, sabe, aquela que mora perto da praia? — Essa
era a nossa senha.
Ah, merda, fiz errado? Não, não era isso – talvez ele simplesmente não
acreditasse em mim, já que eu era criança.
— Eu estou em uma missão para meu mestre. Estou aqui para pegar uma
carga.
O homem pareceu entender quando eu disse isso. Ele acenou com a cabeça
calmamente e disse:
— Siga-me. — Então se dirigiu mais para dentro no armazém.
Quando fiz isso, percebi que estávamos em uma caverna úmida. O Moicano
apareceu atrás de mim com sua tocha acesa e continuou em frente. Eu o segui,
tomando cuidado onde pisava para não escorregar.
— Tenho certeza de que você já sabe disso, mas é melhor manter este lugar
em segredo. Se não…
O Moicano bateu na porta da frente. Bang, bang. Bang, bang. Devia haver
algum ritmo combinado para abrirem a porta.
— Entrem.
Foi então que o mordomo de cabelos brancos olhou para mim, com suspeita
em seus olhos e perguntou:
— E quem o indicou?
— Ditz. — Esse era o nome que Gallus nos disse para usar.
— Ele, hein? Ainda assim, eu não esperava que ele usasse uma criança para
isso. Com certeza é um homem cauteloso.
— Hm, de fato. Então faça isso logo. É assustador e está além do nosso poder.
— O mordomo tirou um molho de chaves do bolso da camisa e passou uma para o
Moicano. — Quarto 202.
Eu podia ouvir o barulho do chão sob seus pés, bem como o som de alguém
gemendo em algum lugar do prédio. O cheiro de algum animal também
ocasionalmente surgia. Foi quando percebi que havia uma sala adjacente à área
principal, cercada por barras de ferro. Espiei lá para dentro. Mesmo sob a luz fraca,
pude ver um círculo mágico no chão. Contida dentro de seus limites estava uma
grande besta que estava acorrentada e estatelada. Estava muito escuro para ter
certeza, mas eu nunca tinha visto aquele tipo de criatura no Continente Demônio.
Devia ser algo nativo do Continente Millis.
Isso significava que os itens do segundo andar não eram motivo para
preocupação, caso alguém os encontrasse. Bens que eram altamente tributados ou
que, de outra forma, seriam condenados a duras penas se contrabandeados, seriam
mantidos no andar de baixo.
— Isso aí. — O Moicano parou em frente a uma porta com uma placa que dizia
“202”. Quando olhei para dentro, vi Ruijerd com as mãos algemadas atrás das
costas, cheio de ramos de cabelo esmeralda começando a brotar em sua cabeça.
Não foi nenhuma surpresa que agora tivesse algum cabelo nascendo em sua
cabeça, já que foi deixado assim por uma semana.
O Moicano acenou com a cabeça e assumiu seu posto do lado de fora da porta
da frente. Um vigia, presumi.
— Não tire suas algemas aqui. Não há nada que possamos fazer para impedir
um Superd se ele ficar fora de controle. — O homem parecia um pouco pálido ao
dizer isso.
Pelo visto, mesmo o pouco cabelo de cor esmeralda na cabeça de Ruijerd já
era eficaz. O Moicano ficaria ainda mais apavorado se eu removesse as amarras do
Superd e começasse a comandá-lo. Nah, não havia necessidade de fazer alguma
coisa do tipo – pretendendo ser um gênio do mal fracote capaz de controlar um
monstro.
Agora, onde coloquei a chave para suas algemas? Procurei no bolso da camisa,
mas não estava em lugar nenhum. Talvez tivesse deixado na estalagem. Me
preocupar seria muito incômodo, então decidi apenas usar minha magia. Quando
me aproximei de Ruijerd, percebi uma expressão sombria em seu rosto.
Sim, eu sabia disso. As pessoas ficam irritadas quando estão com fome,
pensei. Espere um pouco mais e vamos pegar um pouco de comida para…
— O que foi?
Quando coloquei meu rosto mais perto, o Moicano pareceu entrar em pânico e
disse:
Nah, não esquenta. É de Ruijerd que estamos falando, ele vai no máximo fingir
que me mordeu, pensei enquanto me inclinava para mais perto.
— Não sei. Mas parece que não há mais ninguém por aqui.
Crianças. Escravas, presumi. Entre elas estava a pessoa que Gallus disse que
causaria problemas no futuro. Ou talvez fosse outra pessoa, alguém importante.
De qualquer forma, poderíamos verificar cada quarto para ter certeza. Restava
apenas um problema.
Mesmo que fosse de Ruijerd que estávamos falando, ainda seria difícil passar
despercebido e libertar todos aqueles escravos.
— Matar todos.
Assustador!
Mas não era como se eu tivesse me oposto. Gallus nunca especificou quais
métodos poderíamos ou não usar. A julgar pela maneira como ele falava,
provavelmente presumiu que eu deixaria Ruijerd massacrar todos. Mas
originalmente planejei libertá-lo e partir, para depois me infiltrar furtivamente e
libertar os cativos. Parecia que meus planos foram muito ingênuos. Matar todos
poderia não refletir de maneira honrosa o nome da tribo de Ruijerd, pelo menos na
minha opinião, mas dessa vez não tínhamos escolha.
Eu não tinha certeza do que Gallus faria depois disso. Ele poderia enviar
assassinos atrás de nós para manter nossas bocas fechadas. Enquanto Ruijerd
estivesse conosco, não precisávamos ter medo de assassinos, mas não
conseguiríamos dormir em paz. Também não havia garantia de que o Superd ficaria
conosco o tempo todo.
Assustador. Uma veia azulada apareceu em sua testa. Ultimamente, achei que
ele tinha amolecido um pouco, mas o homem acabou revelando sua sede de
sangue. O que esses contrabandistas fizeram para irritá-lo tanto?
— Não. — Suas palavras foram como um espinho que acertou meu coração. —
Eu… também vou.
É verdade que, no último ano, evitei tirar a vida de alguém. Matei bestas sem
questionar, mesmo aquelas que eram humanóides. Eu, entretanto, não cometi
assassinato. Em parte, porque não precisava, mas também havia muitos motivos
para não o fazer. Também nunca havia sentido o impulso de matar alguém antes.
Este mundo era implacável. Era um mundo onde as pessoas travavam batalhas
de vida ou morte todos os dias. Eu, eventualmente, teria que matar alguém. Essa
era uma situação que algum dia teria de enfrentar. Achei que tinha me preparado
mentalmente para isso, mas o que fiz não foi uma preparação mental. Tudo o que
fiz foi reduzir a força do meu Canhão de Pedra a um nível em que não seria capaz
de matar ninguém.
— Não faça essa cara. Suas mãos são para proteger Eris.
Ah, bem. Eu acho que ele estava certo. Não havia sentido em me forçar a matar.
Decidi deixar todo o trabalho para Ruijerd. Se ele podia fazer isso sozinho, então
seria melhor confiar nele. Se isso me tornava um covarde, tudo bem. Era melhor me
concentrar no que era capaz de fazer do que no que não era.
— Então vamos lá. Vou libertar as crianças. Você sabe onde elas estão?
— Na porta ao lado.
— Então vamos lá. Tente reunir os cadáveres. Depois vamos queimar todos
eles.
— Entendido.
Sem falar mais nada, tirei suas algemas. A porta rangeu quando Ruijerd se
levantou lentamente.
— Hã…?
O Moicano foi a primeira vítima. Ruijerd o matou sem fazer qualquer barulho.
Então ele silenciossamente correu em direção às escadas. Fui na direção oposta à
sala onde as crianças estavam presas.
— Gaaaaah!
O quarto estava escuro. Dentro das sombras estavam meninos e meninas com
olhares nervosos em seus rostos, seus corpos se contorciam. Havia quatro garotas
e três garotos, um total de sete crianças. Todos tinham mais ou menos a minha
idade. Estavam nus, e tinham orelhas de feras ou de elfos. Suas mãos foram
amarradas atrás deles, e todos se encolheram quando eu apareci.
Mas que visão – foi como uma versão jovem de Kannon, a Deusa da
Misericórdia, uma Bodisatva budista. Este era o Éden. Não, talvez fosse o paraíso.
Finalmente cheguei ao céu? Não, eu ainda nem tinha encontrado o bebê verde!
Não era hora para ficar excitado. Com apenas uma exceção, seus olhos
estavam todos inchados de tanto chorar, e vários tinham hematomas preto-azulados
em seus rostos. Minha cabeça esfriou na mesma hora. Estavam chorando e
gritando, então provavelmente apanharam por fazerem barulho.
Normalmente, eu olhava para garotas nuas e meus olhos logo eram atraídos
para seus seios, mas agora, meu pervertido interior estava enfraquecido. Afinal,
antes de desembarcar do navio eu tinha recém decidido virar um eremita.
Infelizmente, minha nova profissão não havia aumentado minha inteligência em
nada.
Três das meninas ainda choravam, as lágrimas escorriam pelos seus rostos.
Dois dos meninos me olharam com olhares aterrorizados em seus rostos.
— Eu vim para te salvar. Vocês três, vigiem a porta. Se virem alguém chegando
me avisem na mesma hora.
— Vocês são homens, certo? Podem fazer ao menos isso, não podem?
Comecei a remover as amarras das garotas. Algumas eram mais fartas do que
as outras, mas não as classifiquei. Admirei todas da mesma forma e tirei tudo que
as prendia. Também não toquei em nada além do necessário. Queria que
pensassem no Rudeus diante delas como nada menos que um cavalheiro.
Outra tinha uma costela quebrada. Isso não podia ser algo bom… E uma delas
teve o fêmur quebrado. Aqueles homens foram realmente cruéis.
Quando todas concordaram, soltei um suspiro de alívio. Pelo visto, dava para
entender tudo o que eu falava na língua do Deus Fera.
Parecia que Ruijerd ainda não havia terminado, e eu não poderia levar essas
crianças a um matadouro. Isso poderia causar ainda mais traumas, então talvez
devesse apenas admirar o cenário um pouco mais… ou não. Provavelmente deveria
perguntar o que aconteceu.
— Mew?
Dirigi minha pergunta para a menina com orelhas de gato, aquela que parecia
a mais teimosa. Ela era a única entre os sete que não tinha um rastro de lágrimas
escorrendo pelo rosto. Em vez disso, seu corpo parecia o mais surrado, quebrado e
machucado. Não sofreu tanto quanto Eris naquela ocasião, mas seus ferimentos
ainda eram os piores. O segundo pior era o primeiro menino que ajudei, mas, ao
contrário dele, ela ainda tinha um brilho vivo nos olhos.
Essa garota poderia ser ainda mais obstinada do que Eris. Não, ela
provavelmente era mais velha do que Eris era naquela época. Se tivessem a mesma
ideia, sem chances de que Eris perderia.
Foi um choque para o meu sistema. Mew! A frase dela terminou em “mew”! Um
verdadeiro mew! Completamente diferente da imitação de Eris. Essa garota era uma
verdadeira e genuína gata. Não era apenas porque estava falando na língua do
Deus Fera. Definitivamente disse “mew” no final da frase. Sensacional.
— Então isso significa que todos vocês foram levados contra sua vontade? —
Tentei conter minhas emoções e permanecer calmo enquanto perguntava.
As meninas fizeram que sim com a cabeça. Bom. Se tivessem sido vendidas
por pais passando por necessidades, ou se tivessem sido vendidas porque não
tinham mais meios de viver, nossos esforços para libertá-las teriam sido em vão.
Bom. Estávamos salvando pessoas. Fiquei muito feliz com isso.
— Acabou. — Ruijerd retornou. A cor verde musgosa tinha sumido de seu couro
cabeludo e um protetor de testa foi colocado em volta de sua cabeça. Suas roupas
estavam imaculadas. Não havia uma única gota de sangue nelas. Eu não esperava
nada menos.
— Ninguém.
— Então vamos encontrar algumas roupas para eles. Vão pegar um resfriado
se os deixarmos assim.
— Entendido — respondeu Ruijerd.
— Hm? — Por acaso, olhei pela janela, apenas para ver uma montanha de
cadáveres. Cada um deles tinha um único ferimento de faca, no coração ou na
garganta. Há algum tempo, uma cena dessas me deixaria apavorado, mas desta
vez foi até reconfortante. Ainda assim, não esperava que houvesse tantos deles. O
forte cheiro de sangue pairava no ar. Isso atrairia monstros.
— Opa!
O fogo resultante foi claramente muito poderoso, já que se espalhou por todo o
prédio na mesma hora. Rapidamente lancei uma magia de água para extinguir as
chamas.
Que merda, talvez devesse ter tirado suas roupas primeiro, pensei. Elas
provavelmente cheirariam a sangue e fariam meu estômago revirar, mas ainda
poderiam ser usados depois que eu as lavasse.
— Rudeus. Terminei.
— Arranquei as cortinas.
Acendi as tochas na entrada da frente do prédio e fiz cada uma das crianças
pegar uma. Decidi seguir um caminho diferente no retorno. Seria problemático se
outro contrabandista nos encontrasse, e aquela rota subterrânea provavelmente foi
criada para proteger as pessoas das feras da floresta. Nós não precisávamos disso.
— Havia um.
Ah, vamos, pensei. Nós salvamos vocês. Não há razão para nos olhar assim.
Quando eu disse isso, todos curvaram suas cabeças para o Superd. Bom,
pensei. Todos deviam ficar ainda mais gratos.
Para onde deveríamos levá-las depois disso? Era uma pergunta difícil. No
início, pensei em levá-las para a Guilda dos Aventureiros. Então, poderíamos fazer
um pedido dizendo: “Temos crianças sob nossa custódia; por favor, procurem por
seus pais” e confiar as crianças à guilda. Isso poderia representar o fim de tudo.
Hmm. Isso era preocupante. Talvez eu não tivesse pensado o bastante nas
coisas. Eu tinha certeza de que poderíamos libertá-los, mas pensei muito pouco no
que viria depois disso. Será que devíamos culpar outra pessoa pelo ataque? Sim,
talvez fosse uma boa ideia. Se escrevesse que “O Grande Imperador do Mundo
Demônio Kishirika esteva aqui” na parede, poderiam realmente acreditar. Afinal,
Kishirika disse para contar com ela se acabasse precisando de alguma coisa.
— Que seja. — Retornei ao prédio, ainda indeciso sobre o que fazer a seguir.
Encontrei o lugar onde tinha visto aquele círculo mágico. Quando entrei, a besta
me cumprimentou com um olhar suspeito. Ela não abanou o rabo nem latiu. Estava
letárgica.
— Definitivamente é um cachorro.
Quando o vi pela primeira vez pensei que seu pelo era branco, mas ao ver mais
de perto, percebi que na verdade era prateado. Parecia brilhar, mas provavelmente
era só por causa da iluminação. Um grande Shiba Inu bebê prateado, com um olhar
refinado e inteligente em seu rosto.
— Eu vou te ajudar – aaaaai!
No momento em que tentei entrar no círculo mágico, ele me repeliu. Não foi
algo como um choque. A sensação seria difícil de explicar, mas era como se os
receptores de dor em meu cérebro estivessem sendo ativados. Parecia que o círculo
mágico era na verdade uma barreira. Uma barreira do tipo de cura mágica – um tipo
de construção desconhecido para mim.
— Hmm. — Estudei as bordas do círculo mágico. Ele emitia uma luz branco-
azulada, iluminando um pouco do lugar. A luz proveniente dele indicava que havia
circulação de mana. Se eu pudesse cortar a fonte de seu combustível, o círculo
desapareceria. Roxy me ensinou isso. Era o método quintessencial de remoção de
armadilhas mágicas.
No entanto, pelo que pude ver, não havia tal cristal para ser encontrado. Não…
isso só indicava que eu ainda não tinha o encontrado. Onde o esconderam?
Provavelmente no subsolo. Será que devia usar magia de terra para remover o
círculo? O que aconteceria no caso de tentar forçar a dissipação de um círculo
mágico como este?
Hm, espere, pensei. Espera, espera, espera. Vamos pensar nisso de forma
mais simples.
Em primeiro lugar, como planejavam tirar esse cachorro do círculo mágico? Não
havia nenhum mago no meio dos cadáveres que eu tinha visto. Então devia haver
alguma maneira para um iniciante poder remover essa armadilha.
Primeiro, considerei onde poderia estar o cristal mágico. Pensei que só poderia
estar no subterrâneo. No entanto, se estivesse lá, aqueles caras não seriam capazes
de retirá-lo. Tinha que estar em algum lugar do qual pudessem extraí-lo. Mas
também tinha que estar em algum lugar onde ainda pudesse aplicar mana na
armadilha.
Decidi verificar no andar de cima. Fui para o cômodo logo acima, onde encontrei
um círculo mágico menor e o que parecia ser uma lanterna de madeira. Nela estava
o que eu presumi ser um cristal mágico.
— Grrr…!
O cachorro me olhou de um jeito ameaçador e começou a rosnar quando me
aproximei. Bem, os animais nunca gostaram de mim, pelo menos desde que eu
lembrava. Isso não mudou.
Estudei a condição física do cachorro. Seu rosnado ainda era poderoso, mas
seu corpo já não estava forte como costumava. Parecia exausto. O animal sem
dúvidas estava com fome.
Hm.
— Se não me morder, vou tirar essa coleira de você e devolvê-lo ao seu mestre.
O que acha disso? — Falei com ele na língua do Deus Fera e, quando o fiz, o
cachorro parou de rosnar e se deitou silenciosamente no chão. Parecia estar
entendendo. Bem, estar em um mundo diferente era algo conveniente. Era possível
falar até com cães.
Tentei usar magia para cortar a corrente. Quebrou facilmente. Assim que isso
foi feito, o poder instantaneamente retornou ao corpo do cão. Ele se levantou na
mesma hora e tentou sair correndo, mas eu o parei.
Tentei o meu melhor para remover a coleira, mas não tinha nenhuma fechadura
nela. Se não houvesse fechadura, não havia como destrancar. Que coisa estranha.
Como pretendiam removê-la? Ou nunca tiveram a intenção de fazer isso? Foi bem
difícil, mas consegui encontrar uma junta na coleira. Pelo visto, era uma daquelas
que só seria possível remover se conhecesse o truque.
— Vou tirar ela, então não se mova. — Conjurei magia da terra com todo o
cuidado e apontei para a pequena junta da coleira, usando a magia para forçar uma
abertura. Houve um tinido e, finalmente, saiu.
— Isso aí.
— Ei!
Ele colocou uma de suas patas dianteiras em um dos meus ombros e seu peso
acabou me derrubando. Eu caí no chão, todo mole, e o cachorro começou a babar
sobre o meu rosto.
— Woof!
Tentei empurrar a grande bola de pelo prateado de cima de mim, mas ela era
muito pesada e, além disso, macia e fofa. Sedosa e macia. Isso parecia tudo muito
bom e gostoso, mas era pesado. Seu peso sobre o meu peito foi o suficiente para
fazer meus ossos rangerem. Movê-lo parecia ser algo difícil. Desisti de não ser
lambido, pois não havia nada que eu pudesse fazer. Em vez disso, concentrei-me
em apreciar a sensação de seu pelo até que o animal cansasse de lamber meu
rosto.
Para ser tão macio assim… Ei, espera… Você usa algum tipo de amaciante,
não usa? pensei, apenas para outra voz na minha cabeça responder na mesma
moeda. Aww, mas eu não estou usando nada…
— Hein?
Assim que a bola de pelo finalmente pareceu satisfeita, uma voz ressoou. Ainda
jogado no chão, olhei para cima, me perguntando se um daqueles contrabandistas
havia conseguido sobreviver.
Fui saudado por uma pele cor de chocolate, orelhas de animal e cauda de tigre.
Ghislaine…? Não, não era. Eram parecidos, mas não era ela. A parte peluda e a
musculosa eram as mesmas, mas havia algo um pouco diferente. A maior
característica de Ghislaine estava ausente. O peito – o desta pessoa era plano. Esta
pessoa tinha peitorais enquanto Ghislaine tinha seios fartos. Um homem.
Ah, merda! Ele está prestes a fazer algo. Eu preciso fugir. Mas não posso me
mover!
— Cachorrinho, sai. Preciso fugir desse cara! — O cachorro se mexeu.
Eu me levantei e ativei meu olho demoníaco. Pude ver o que estava prestes a
acontecer.
Achei que não fosse fazer nada, mas de repente ele rugiu.
Quando percebi o que estava acontecendo, desmaiei. Não aguentei. Isso era
ruim. Eu tinha que me curar, mas não conseguia mover minhas mãos. O que diabos
foi aquilo, algum tipo de mágica?
Merda. Merda, merda, merda. Eu não poderia usar magia? Tentei canalizar
minha mana, mas… não adiantou.
Ah, eu parecia estar seguro. Graças à deusa. Fiquei feliz por parecer uma
criança.
Outro homem apareceu. Ele também parecia com Ghislaine, mas tinha os
cabelos brancos. Um homem mais velho.
— Hm.
N-não, você está errado. Tenho doze anos. Não sou um homem de quarenta e
cinco anos por dentro, pode confiar, protestei balançando a cabeça.
— Woof!
— E pensar que esse garoto colocaria as mãos sobre vossa santidade… Gah…!
— Woof!
Quem era Tona? Pelo contexto da conversa, imaginei que fosse uma das
crianças do povo-fera.
— Vamos levar esse menino de volta para a aldeia e interrogá-lo. Ele pode tê-
los levado para algum lugar. E assim que o fizermos abrir a boca, partiremos
novamente e voltaremos a procurar…
— Não temos tempo. O último navio parte amanhã. — Gyes cerrou os dentes.
— Não temos escolha a não ser desistir. Considere que tivemos sorte, já que
conseguimos resgatar a Fera Sagrada.
— Leve-o para casa conosco. Ele pode ser uma criança, mas se estava
trabalhando com aqueles contrabandistas, então será punida.
Gyes assentiu e amarrou minhas mãos atrás de mim usando uma corda. Então
me colocou em seu ombro. O cachorro cambaleou por trás do homem, olhando para
mim com preocupação.
Tudo bem. Não se preocupe. Esses caras não parecem ser contrabandistas,
disse a mim mesmo. Só vieram até aqui para resgatar aquelas crianças. Então, se
eu falar com eles, vão entender. Só tenho que esperar até que me libertem.
— Está fraco, mas é o cheiro de Tona e dos outros. E há mais um. O cheiro
daquele demônio.
No momento em que mencionou “aquele demônio”, a expressão de Gyes
endureceu.
— Gyes. Eu vou seguir o rastro. Você pega o menino e a Fera Sagrada e volta
para a aldeia.
— Você é muito temperamental. E no final das contas o garoto pode não ser
um daqueles contrabandistas, sabe? — Como esperado, as palavras do velho
transbordavam sabedoria.
Isso aí, pensei. Eu não sou um contrabandista, por favor, deixe-me explicar.
— Mesmo assim, não há dúvidas de que ele tocou a Fera Sagrada com suas
mãos imundas. O garoto cheira como um humano excitado. Por mais inacreditável
que pareça, ele mostrou sinais de excitação sexual em relação à Fera Sagrada.
O quê?!
Mas que completa mentira! pensei. Não tenho nenhum interesse sexual por
cães! Mas por jovenzinhas… Não! Essa também não é uma boa defesa!
— Nesse caso, jogue-o em uma cela. Mas não coloque suas mãos nele até eu
voltar para casa.
— Sim senhor!
— Então, Fera Sagrada, vamos correr um pouco. Tenho certeza de que você
deve estar exausta, mas…
— Woof!
— Foi o que pensei!
E assim, deitado sobre o ombro de Gyes, fui carregado para o fundo da floresta.
Ruijerd estava perto da cidade, mas Rudeus ainda não tinha voltado. Será que
se perdeu? Não, ele teria usado magia para enviar um sinal para o céu. Então isso
significava que se deparou com problemas? O Superd havia se livrado de todos os
humanos naquele prédio, mas talvez o garoto tivesse encontrado algum
remanescente que surgiu de um local diferente. Ele provavelmente deveria voltar e
verificar, só para ter certeza.
Não. Rudeus não era uma criança. Mesmo se um inimigo aparecesse, ele seria
capaz de lidar com os problemas. As defesas do menino podiam ser fracas, talvez
porque era jovem, mas não era tão ingênuo a ponto de baixar a guarda em território
inimigo.
Além disso, Eris não estava lá, então ele não teria motivos para se preocupar.
Se Rudeus usasse toda a extensão de seus poderes, não poderia ser derrotado. O
único problema era que estava em conflito sobre tirar a vida de uma pessoa. Se
limitasse muito os seus poderes, poderia acabar levando a pior. Não… ele com
certeza não era tolo.
Mas já fazia muito tempo desde que ele usara a língua do Deus Fera. A última
vez em que a usou… Hmm, quando foi mesmo? Desde a Guerra de Laplace ele não
lembrava de ter a usado muito.
— Então é isso. Eu não sabia disso, mas ainda assim, peço desculpas. — Ela
sorriu para Ruijerd quando ele disse isso. O homem realmente gostou do modo
como as crianças não demonstraram medo diante dele. — Hmm…
O vencedor seria aquele que atacasse primeiro. Ele cuidaria de tudo com um
único golpe.
Ou assim pensou, mas o oponente de Ruijerd parou bem perto de seu alcance.
Era um homem-fera, segurando uma machadinha grossa na mão. O homem estava
claramente cauteloso ao assumir sua postura. Ele era velho, mas tinha um ar calmo,
sereno e digno. O ar de um guerreiro. Ainda assim, Ruijerd o mataria se o sujeito
estivesse em alguma aliança com aqueles bastardos de antes. Alguém que deixasse
algo assim acontecer com crianças de sua própria raça não era um verdadeiro
guerreiro.
— Ah, Vovô, mew! — A garota gata falou com o guerreiro velho e correu para
ele.
A garota com orelhas de cachorro também parecia conhecê-lo e correu até ele.
— De nada.
— Ruijerd, não é? Sou Gustav Dedoldia. Sem dúvidas pagarei por essa dívida.
Mas, primeiro, preciso devolver essas crianças aos seus pais.
— Mas é perigoso andar com crianças por aí à noite. Primeiro gostaria que você
explicasse exatamente o que aconteceu. — Ao dizer isso, o homem começou a
caminhar em direção à cidade.
— O que foi?
— Havia uma pessoa. Um homem com forma de criança. Ele parecia manter
um sorriso depravado enquanto acariciava a Fera Sagrada.
Na mesma hora ele notou quem era. Rudeus. Então o garoto ainda mostra
aquele tipo de sorriso, pensou.
— Ah não!
“Você o matou?”
Além disso, Eris era um motivo para preocupação. Rudeus sempre confiou a
proteção dela ao Superd. Ele sempre se preocupou mais com a garota do que
consigo mesmo. O Superd faria melhor protegendo-a do que perseguindo Rudeus.
— Tenho minhas razões para não expor minha verdadeira identidade — disse
Ruijerd. — Mas gostaria que você levasse as crianças ao encontro de seus pais.
— Hm… tudo bem. — Gustav acenou com a cabeça e Ruijerd partiu para a
cidade.
Capítulo 07 - Apartamento
Grátis
Servem apenas duas refeições. Para o povo moderno, isso pode ser muito
pouco. Ainda assim, a comida é incrível, uma exuberante especialidade regional
com frutas e legumes. E carne. O tempero é leve, ressaltando o sabor natural dos
ingredientes, o suficiente para fazer qualquer pessoa acostumada com a vida no
Continente Demônio estalar a língua com o sabor maravilhoso.
Mas de certo não existe nenhum ladrão que olharia para elas e pensaria: Ei!
Acho que dá para passar! Entretanto, irão sempre dar uma olhadinha, já que este
apartamento gratuito é uma cela de prisão.
Com a cabeça pendurada nas costas de Gyes, continuei minha cavalgada pela
floresta. Incapaz de me mover, não tive escolha a não ser me permitir ser carregado.
Enquanto viajávamos pelas sombras da floresta em uma velocidade vertiginosa, vi
algo pelo canto do meu olho. Lá, entre o borrão de árvores que passavam voando,
havia um monte de cabelo prateado nos seguindo.
O que diabos estava fazendo comigo? Eu não conseguia nem mover meu
corpo!
Depois de um tempo, consegui voltar a mover meu corpo. Produzi uma pequena
chama na ponta do meu dedo e a usei para verificar o que estava ao meu redor. Vi
aquelas barras firmes e percebi que se tratava de uma cela. Fui jogado em uma
cela.
Tudo bem. A julgar pela conversa que tiveram, eu sabia que isso iria acontecer.
Me confundiram com um contrabandista. É por isso que não entrei em pânico. Esse
mal-entendido logo seria resolvido. Ainda assim, qual era a necessidade de me
despir? Pensando bem, aquelas crianças também tinham sido despojadas de todas
as suas roupas.
Por enquanto, guardaria minhas palavras para o dia seguinte. Mesmo se não
acreditassem em mim, eu ainda ficaria bem. O homem mais velho aparentemente
saiu atrás de Ruijerd, então já devia ter encontrado as crianças. O Superd era uma
pessoa fácil de interpretar mal, mas as crianças certamente não abandonariam o
guerreiro que surgira em seu auxílio. Elas voltariam em segurança e eu não seria
mais confundido com um contrabandista.
Mas seria melhor não citar que, apesar de não ser um contrabandista, tinha uma
relação de negócios com eles. Ruijerd também nunca quis trabalhar com os
bandidos, então não diria nada que nos colocaria em apuros. Por enquanto, a
principal preocupação era a minha própria segurança. O guerreiro mais velho disse
para não colocar a mão em mim até o seu retorno. Isso significava que eu estava
seguro. Provavelmente não jogariam nenhum monstro cheio de tentáculos em
mim… certo?
De qualquer forma, senti que finalmente entendi o significado por trás das
palavras de Gallus. Se isso fosse o que iria acontecer com eles, certamente estariam
em grandes problemas.
Enquanto eu pensava nessas coisas, um dia inteiro se passou. O tempo estava
voando. Na manhã do dia seguinte ao que fui jogado na cela, uma guarda apareceu.
Era uma mulher. Ela tinha a constituição de uma guerreira, mas era mais magra do
que Ghislaine. Porém seu peito também era enorme.
Eu disse:
— Fui falsamente acusado, não fiz nada. — Prossegui explicando que não
estava associado à organização de contrabando, que apenas descobri que aquelas
crianças estavam detidas naquele prédio e que, movido por uma justa indignação,
comecei a libertá-las.
A mulher não ouviu sequer uma palavra do que eu disse. Em vez disso, levou
um balde de água para minha cela e jogou-o sobre minha cabeça enquanto eu
protestava. Aquilo estava congelante, então fiquei parecendo um ratinho assustado.
Ela então olhou para mim como se eu fosse nada mais do que lixo.
— Pervertido…!
Senti um tremor me atravessando. Lá estava eu, nu, com esta bela mulher mais
velha com orelhas de animal me devastando com os olhos. Ela não apenas me
molhou, como também abusou verbalmente de mim. Era assim que se fazia para
destruir o psicológico de alguém.
Parecia que não tinham intenção de seguir o comando do guerreiro mais velho.
Então o que aconteceria comigo…? Ahh, Deusa (Roxy), dê-me sua proteção! E não,
Deus Homem, não me refiro a você!
— Achoo!
Dia dois.
Ruijerd ainda não tinha aparecido para me resgatar. Depois de ficar nu por dois
dias inteiros, minha ansiedade estava começando a transparecer. Me perguntei se
havia acontecido algo de ruim com o Superd. Ele acabou lutando contra aquele
guerreiro mais velho? Ou as coisas com Gallus azedaram? Ou talvez algo tivesse
acontecido com Eris e ele estava cuidando disso?
Fiquei ansioso. Incrivelmente ansioso. Era por isso que estava bolando um
plano de fuga. No início da tarde, quando terminei de comer, comecei a usar minha
magia não verbal. Misturei fogo e vento, criando uma corrente de ar quente que
fustigou o cômodo e tornou toda a área agradável e quentinha. A guarda bem dotada
ficou sonolenta e começou a adormecer. Que fácil.
Destranquei a porta da cela e verifiquei se não havia ninguém por perto
enquanto saía do prédio.
— Ooh…
A visão que se espalhou diante de mim foi como algo saído de um sonho. Era
um assentamento construído acima das árvores. Os edifícios foram colocados entre
as copas das árvores, tendo tablados em torno de cada árvore para dar espaço para
caminhar. Também havia pontes que conectavam as árvores para que se pudesse
entrar e sair sem ter que subir e descer as escadas.
Não havia realmente nada no solo abaixo. Eu podia ver o que parecia ser um
simples barraco e os vestígios de um campo, mas não pareciam estar em uso. Pelo
visto, não havia ninguém morando lá.
Não havia tantas pessoas assim. Eu podia ver alguns homens-fera aqui e ali,
movimentando-se nos tablados. Se uma pessoa atravessasse uma ponte, ficaria
totalmente exposta a qualquer um que estivesse abaixo, e qualquer um que se
movesse abaixo estaria totalmente exposto àqueles de cima.
Ah, a floresta. Eu não sabia como sair dela. Gyes havia corrido em alta
velocidade por muito tempo, então devíamos estar bem longe da cidade. Mesmo se
eu corresse com todas as minhas forças, indo sempre para frente, provavelmente
precisaria de cerca de seis horas. E eu tinha certeza de que me perderia no meio
do caminho.
Poderia usar magia da terra para construir uma torre, dando-me um ponto de
vista elevado para olhar para o horizonte. Essa era uma opção. Claro, se fizesse
algo que chamasse a atenção, Gyes ficaria na minha cola de imediato.
Ainda não sabia o que estava por trás da magia que ele usou. Se não
conseguisse encontrar uma maneira de contra-atacar em uma luta, poderia perder.
Além disso, da próxima vez o homem poderia cortar minhas pernas para que eu não
pudesse correr. Talvez fosse melhor esperar um pouco mais para que minhas
circunstâncias mudassem.
Só tinham passado alguns dias. Aquele guerreiro mais velho ainda não havia
retornado. Ruijerd poderia ainda estar procurando pelos pais das crianças. Não
havia necessidade de ficar impaciente, decidi, e voltei para minha cela.
Dia três.
A comida que a guarda me levou estava deliciosa. Foi como esperado – a terra
do local era tão rica e natural. Havia uma diferença notável se comparado ao
Continente Demônio. As refeições consistiam em uma sopa de grama selvagem ou
pedaços de carne grelhada que eram difíceis de rasgar, mas era tudo delicioso.
Talvez fosse assim por eu ter me acostumado com a comida do Continente
Demônio. Se esta era a comida que ofereciam a alguém em uma cela, então o resto
do assentamento deveria desfrutar, sem dúvidas, de um banquete.
Dia quatro.
Fiquei entediado. Não havia mais nada para fazer. Talvez pudesse criar algo
com minha magia, mas se o fizesse, poderiam me amordaçar ou amarrar meus
pulsos. Então realmente não haveria nada que eu pudesse fazer. Não havia razão
para correr o risco de perder a pouca liberdade que possuía.
Dia cinco.
Recebi um colega de cela. Ele foi carregado por dois homens do povo-fera de
cada lado. O jogaram para o lugar sem rodeios, isso fez com que o homem caísse
dando uma cambalhota para trás.
— N-não, não é exatamente assim que eu descreveria. — Ele olhou para mim
confuso.
Vamos, vou ficar com vergonha se você ficar olhando assim, pensei.
— Você está nu, mas age terrivelmente cheio de si.
— Ei, novato, é melhor tomar cuidado com o que fala. Estou aqui há mais tempo
do que você. Isso significa que sou o mestre desta cela, seu ancião. Mostre algum
respeito — ordenei.
— S-sim.
— Sim senhor.
Por que, pergunta, eu estava agindo tão cheio de mim mesmo na frente de
alguém que acabei de ver pela primeira vez? Porque estava entediado, é claro.
— Infelizmente não há nenhum tapete para você se sentar, então sente-se aqui
em algum lugar.
— S-sim senhor.
— Então, novato. Por que você foi jogado aqui? — Tentei soar o mais hostil
possível quando perguntei.
Alguém do lado de fora com certeza estava usando palavras bem atrevidas.
Mas, para começo de conversa, era uma falsa acusação. Porém eu não iria ganhar
nada falando sobre isso.
— Novato, se você é um homem, então entende, certo? A luxúria que se sente
por uma criatura adorável.
— Não mesmo. — Seus olhos mudaram e ele começou a olhar para mim com
certa suspeita. Bem, seu olhar na verdade não mudou. Seus olhos eram os mesmos
desde o começo.
— Geese — respondeu.
Geese. Vejamos, eu pensei já ter ouvido esse nome antes. Mas onde? Não
conseguia lembrar. Parecia que havia muitas pessoas com esse nome, então ele
provavelmente não era o Geese que eu conhecia.
— Eu sou Rudeus. Sou mais jovem que você, mas aqui sou seu chefe.
— Tá, tá. — Geese encolheu os ombros, caiu sobre onde estava e apoiou a
cabeça. — Hm? Rudeus… Já ouvi esse nome antes.
— Ei, novato.
— É claro. Agora já faz dias que eu estou meio largadão. Pela primeira vez em
muito tempo sinto como se tivesse voltado a ser alguém.
— Chefe, você não precisa falar de um jeito tão polido.
Nossa guarda nos observou com uma expressão sombria no rosto, mas não
disse nada.
— Claro que não — respondi. — Gosto das mulheres de até quarenta anos e,
a menos que pareça com uma mulher, não tenho interesse em homens.
— O que foi?
Aha! Mas eu não estava mais nu! Além disso, era uma acusação falsa. Eu não
era um pervertido.
Geese explicou:
— Ahh, bem, uma das minhas conhecidas de muito tempo atrás era uma Doldia,
então eu vim pensando em encontrá-la.
— E encontrou?
— Então, mesmo ela não estando aqui, você resolveu fazer algumas apostas?
E ainda por cima trapacear? — Eu pressionei.
— Oho, então pode segurar um dragão com uma mão e derrubar outra pessoa
usando ele?
Para minha última pergunta, abaixei minha voz o suficiente para que a guarda
não pudesse nos ouvir e disse:
Ei, você, pare com isso, pensei. Se colocar dessa forma, faz parecer que meus
amigos me abandonaram.
— Então se vire por conta própria. Não tem nada a ver comigo — disse Geese.
Expliquei:
— Salvou?
— E enquanto estávamos lá, tirei a coleira que tinha sido colocada naquele
filhote, e quando a tirei aquele cara apareceu de repente e gritou comigo. Então não
consegui mais me mover e me trouxeram aqui.
Perplexo, Geese voltou a coçar a cabeça. Talvez eu não tivesse explicado bem
o suficiente.
— Ahh, então foi isso que aconteceu. Você sofreu uma acusação falsa?
— Exatamente.
Ele pôde dizer tudo o que quisesse, mas ainda assim não quis me ajudar a
encontrar um caminho. Se eu me perdesse na floresta enquanto tentava ir ajudar
Ruijerd, isso não seria motivo para rir.
— Mas se for realmente uma acusação falsa, você deve ficar bem. Vão
entender.
Do meu ponto de vista, Gyes não era do tipo que dava ouvidos às pessoas. Mas
ainda assim era verdade que ajudei aquelas crianças a escaparem. Se voltassem,
a acusação contra mim seria retirada.
— Sim, você deveria — ele concordou. — Fugir não vai resolver nada. — Geese
virou para o outro lado.
Decidi esperar, assim como sugerido. Eu, felizmente, ainda tinha algumas
opções restando. Se fosse necessário, poderia envolver toda essa área em um mar
de chamas e escapar. Me senti mal pela tribo Doldia, mas foram eles que me
prenderam sob falsas acusações, então estávamos quites.
Mesmo assim, Ruijerd com certeza estava demorando muito. Presumi que
estava demorando muito para encontrar os pais das crianças, mas ainda assim, isso
era demais.
Dia seis.
Mesmo assim, fiquei ansioso com o fato de não estar recebendo notícias. Já
fazia quase uma semana desde que fui capturado. Ruijerd não estava atrasado
demais? Não era normal presumir que algo devia ter acontecido? Será que apareceu
algum tipo de problema com o qual o Superd não poderia lidar sozinho?
Eu não fazia ideia de que tipo de coisa seria. Talvez já fosse tarde demais.
Mesmo assim, precisava partir. No dia seguinte. Não, em dois dias. Esperaria por
dois dias.
Uma vez que esse tempo passasse, iria reduzir o vilarejo a um campo em
chamas. Ou não, porque me sentiria mal ao fazer isso. Em vez disso, tomaria a
guarda como minha prisioneira e fugiria.
Dia sete.
Seria meu último dia na cela. No fundo da minha mente, estava cuidadosamente
elaborando um plano, enquanto, externamente, apenas comia e dormia
despreocupado. Eu não conseguia continuar com isso – a mentalidade de recluso
da minha vida anterior retornaria. No dia seguinte, precisaria me animar.
— O quê?
— Bem, é que normalmente não colocam duas pessoas na mesma cela sem
motivo, certo? — Apresentei meu pensamento.
Então eram enviados para Porto Zant, hein? Então a Tribo Doldia só jogava
criminosos especiais nesta cela? Fui confundido com um contrabandista e também
falsamente acusado de tentativa de bestialidade à sua Fera Sagrada. Isso devia ser
muito impactante, o suficiente para me dar algum tipo de título especial. Isso me
tornava um criminoso ainda mais extraordinário.
Mas espere.
— Então por que você foi colocado aqui? Foi preso por trapaça, certo?
— Não me questione. Provavelmente porque aconteceu na aldeia e não foi
grande coisa, certo?
— Hm? Ah, sim, faz um tempo que não lavo — disse Geese.
— Ei, eu tenho observado você fazer isso há um tempo. Claro, é incrível. Mas
como faz isso?
— Yo, novato.
— O quê?
— Tá, tá.
Sentei-me com as pernas cruzadas e Geese ficou atrás de mim. Ele começou
a coçar.
— Sim, aí, bem aí. Ah, sim, você é muito bom nisso.
— Eu falei, não falei? — disse. — Não posso fazer nada. Se quiser, depois
também posso massagear seus ombros. — Quando Geese disse isso, moveu suas
mãos para meus ombros. Droga. Ele realmente era bom nisso.
Instintivamente endireitei minhas costas.
— Ooh, você é realmente bom. Isso é tão bom. Ahh, um pouco mais pra baixo.
Mm, sim, bem aí… hm?
Só então percebi que algo estava muito errado. Mas, o quê? Algo estava
diferente do normal.
— Ei, novato…
— O que foi agora? Quer que eu vá mais para baixo? Quer que eu coce a sua
bunda também?
— Sério? — Escutei com atenção e, com certeza, ouvi os sons de alguma briga.
Mas também parecia que podia ser apenas minha imaginação.
— Agora que você mencionou, é verdade, hoje está muito quente. — Percebi.
Ele tinha razão. Havia um fino véu de fumaça infiltrado no local. A fumaça estava
saindo da claraboia e da entrada da frente.
Capítulo 08 - Emergência
Incendiária
— Mmm? Espere só um… Ei! — Geese saltou para a claraboia e deu uma
espiada. — Você não estava brincando! O-o que devemos fazer, chefe?!
— Vamos dar o fora daqui, é claro! E usaremos o caos para fugir! — declarei.
— Só é algo que preparei para o caso de uma coisa assim acontecer, arrumei
isso quando comecei a planejar minha fuga!
Geese disse:
— Entendo, então você é o tipo de criminoso que espera até que todos fiquem
distraídos por uma crise antes de atacar.
A porta foi aberta e uma onda de ar quente nos deu um tapa na cara. As chamas
dançaram violentamente enquanto as labaredas, brilhantes e ferozes, devoravam a
floresta com uma fome voraz. As casas nas copas das árvores foram engolidas,
ameaçando até desmoronar.
— Então quer dizer que você não sabe? — gritei de volta. — Você disse que
sabia o caminho, não disse?
Hmm… bem, agora que ele mencionou, até que fazia sentido. Afinal, a frase
“cortina de fumaça” não teria significado se alguém pudesse apenas ver através da
fumaça preta e das chamas vermelhas.
Estava apontando para uma criança. Uma criancinha com orelhas de gato. Ela
estava esfregando os olhos e tossindo enquanto cambaleava em nossa direção,
tinha inalado um pouco da fumaça. Perto dali, a folhagem de uma árvore explodiu
em chamas que estalaram enquanto a coisa toda ameaçava desabar. A criança
olhou para a árvore, mas tudo estava acontecendo tão de repente que ela só
conseguiu olhar, estupefata.
— Cuidado! — gritei, instantaneamente liberando magia do vento para tirar a
árvore fora do caminho.
A fumaça havia turvado sua visão, mas a criança nos viu e se aproximou.
— S-socorro…
A peguei em meus braços e usei magia de água para limpar seus olhos. Ela
também tinha algumas queimaduras leves em seu corpo, então resolvi usar alguma
magia de cura. Eu não tinha certeza do que deveria estar fazendo, mas imaginei
que seria bom ajudar ao menos um pouco. O que estavam fazendo? Não
conseguiam dar um jeito de fugir?
— Isso é bem possível — disse Geese. — Os incêndios são muito raros quando
a estação das chuvas se aproxima… uau!
Outra árvore desabou. Uma pequena casa que estava acima de nós também
estava colapsando, espalhando pedaços de chamas que serviam como pólvora.
Parecia que nenhum esforço estava sendo feito para apagar o fogo. Se eu
continuasse perdendo tempo, também acabaria em perigo. Ainda assim, não
poderia simplesmente deixar essa criança para trás e fugir.
— Certo… — Tomei minha decisão. — Novato, você sabe onde fica o centro do
vilarejo?
Depois que falei isso, Geese sorriu, pegou a criança nos braços e começou a
correr.
Me movi para o seguir… mas depois lembrei das minhas roupas. Ainda deviam
estar trancadas naquela prisão. Logo usei minha magia da água para envolver o
prédio em gelo antes de começar a seguir Geese.
— Então… chefe.
— O que foi?
Estava óbvio qual era o lado da justiça. Mas qual seria o pior para mim?
Eu não tinha ideia de quem eram esses humanos. Visto que estavam
sequestrando crianças, provavelmente estavam trabalhando com traficantes de
escravos ou contrabandistas, com os quais eu tinha uma dívida. Os sujeitos
atravessaram Ruijerd pelo mar para mim. Entretanto, compensamos as coisas
aniquilando todos daquela base, então estávamos quites.
— Haha! Falou e disse! — gritou Geese antes de pegar uma espada do cadáver
mais próximo e tomar uma posição. — Tudo bem, deixe a linha de frente comigo!
Posso não ser muito bom com uma espada, mas posso ao menos servir como uma
parede para você!
— Sim, estou contando com você para me proteger — falei e levantei as duas
mãos para o céu.
Primeiro, teria que apagar as chamas. Usei Rajada, uma magia de água de nível
avançado. Canalizei mana em minha mão direita, conjurando nuvens cinzentas no
céu. Me certifiquei de que o alcance e o poder do feitiço seriam grandes. Eu não
tinha ideia de quão longe o fogo havia se espalhado, mas provavelmente poderia
apagar a maior parte dele se expandisse meu feitiço tanto quanto possível. Também
aumentei a taxa de precipitação para que caísse como uma grande chuva torrencial.
— Uau… — Geese olhou para cima por reflexo, bem quando a chuva começou
a cair sobre nós como se fosse a água de uma cachoeira.
Foi um dilúvio que chegou até todos. A área ficou inundada em segundos. As
chamas soltaram alguns assobios enquanto se dissipavam. As pessoas olharam
para o céu, algumas até mesmo desconfiadas da chuva repentina. Logo me notaram
de pé com as duas mãos levantadas. O humano mais próximo sacou sua espada e
começou a correr em minha direção.
Bem, não exatamente. Geese estava comigo. Mas suas habilidades pareciam
meio inúteis, então não esperava que ele fosse de muita ajuda.
— D-droga! Então cai pro pau! Não vou deixar vocês colocarem a mão no meu
chefe! — gritou Geese bravamente, embora estivesse recuando um passo de cada
vez. Inútil.
Ele falou na língua do Deus Fera. Era um homem-fera com uma cauda de
cachorro espessa que já estava com a espada desembainhada e cortou um dos
homens que corria em nossa direção. Seu único golpe o decepou e enviou sua
cabeça voando.
— Não seremos derrotados por sua laia, ainda mais agora que a chuva limpou
meu rosto e meu nariz está funcionando direito!
Ooh, que fala mais heróica! Mas foi exatamente como ele disse: Todos os
homens-fera da área estavam retornando.
— Certo!
Ao fazer uma inspeção, encontramos uma pessoa-fera sendo acuada por três
humanos. Eles pareciam desfrutar de sua vantagem numérica injusta, assim como
gatos atormentando um rato. Isso também significava que sua guarda estava baixa.
— Não é nosso inimigo. Foi ele quem conjurou a chuva. Sua roupa é meio
estranha, mas está nos ajudando.
Sua confusão não era só porque apenas um colete de pele cobria meu corpo
nu (ou melhor, seminu). Eu a conhecia. Acabei de descobrir seu nome, mas
conhecia aqueles seios fartos e mãos habilidosas para cozinhar. Era ela quem
guardava nossa cela.
Ela alternou seu olhar entre mim e Gimbal, seu rosto ficando pálido.
Provavelmente se lembrou de como me tratou mal e percebeu o erro que cometeu.
Não se preocupe. Na verdade não tenho nada contra você, pensei. As pessoas
às vezes entendiam as coisas errado e cometem erros. Eu sou Rudeus, o iluminado
e compassivo!
— T-tudo bem…! — Ela não agradeceu. Mas parecia que queria dizer algo,
mesmo enquanto seguia as ordens de Gimbal e saia correndo.
— Aquele é o último!
— Bem, muita coisa aconteceu… e você, Senhor Gallus, por que está aqui?
— Por quê? Hmph, esse foi o meu plano desde o começo.
Ugh… eu realmente não queria falar sobre isso, mas também não poderia ficar
em silêncio.
— Foi você quem nos pediu para salvar as crianças do povo-fera. Você disse
que, de outra forma, isso te causaria problemas. Mas está aqui as sequestrando…
então quais são as suas verdadeiras intenções?
Gallus sorriu e olhou para os lados. Mesmo cercado por mim, três guerreiros do
povo-fera e Geese, ainda parecia relaxado.
Pelo visto, o problema era aquele filhote. Eu gostaria que ele tivesse dito isso
desde o começo. Poderia pelo menos ter me dito para soltar o cachorro.
Durante a estação das chuvas, a maioria das pessoas não conseguia sair de
onde estava. Os contrabandistas deviam ter pensado que poderiam isolar seus
perseguidores no momento certo.
— Você com certeza faz as coisas de uma maneira muito indireta — falei.
— Já te falei, não somos uma organização muito unida. Não posso deixar meus
camaradas chegarem na minha frente.
Que vulgar. Ele libertaria os escravos de seus camaradas e depois venderia os
seus próprios. Conseguiria um lucro enorme, enquanto os outros não receberiam
nem um centavo. Sua posição subiria enquanto a de seus camaradas fracassados
cairia. Depois de semear suas sementes com bastante cuidado, Gallus colheria as
recompensas.
Ah, sim. Acho que sei de qual família ele estava falando.
— Não saiu exatamente como planejado, mas seu Superd manteve o bando de
guerreiros Doldia preso em Porto Zant. Então por que você está aqui?
Com essas palavras, Gimbal voltou seu olhar para mim. Parecia entender um
pouco da língua humana, e me observava com cautela. Eu realmente não queria
que ele fizesse isso.
— Senhor Gallus … Desculpe, mas quando resgato crianças, não sou o Mestre
do Canil Ruijerd. Sou Ruijerd, da tribo Superd. E Ruijerd nunca perdoa aqueles que
querem vender crianças como escravas.
— Hah, então o Fim da Linha gosta de fingir que está do lado da justiça, hein?
As negociações falharam.
Eu literalmente acabei de dizer que não sou o Mestre do Canil, sou Ruijerd,
gracejei comigo mesmo.
— E-ei, chefe, isso é ruim. Esse aí é o Estilo Deus do Norte. E também ao estilo
Atofe. Não usa truques inteligentes, é só um estilo de luta bruto que é moldado pela
experiência de enfrentar vários oponentes em batalha.
— Você sabe das coisas, homem macaco. Isso mesmo, eu sou o Cleaner, o
Santo do Norte Gallus. — Quando Gallus disse isso, já tinha o refém de volta em
suas mãos.
Isso era ruim. Eu não achava que ele era tão forte quanto Ruijerd, mas,
naquele rank, provavelmente seria mais do que eu poderia lidar. O que poderia fazer
ao lutar usando o Olho da Previsão?
— Muito interessante, não é? O estilo Deus do Norte ainda tem uma tática para
lutar usando um refém.
— O quê, então realmente não vai me encarar? Então tá bom. É um favor para
nós dois.
— Tudo bem — Gallus começou a falar. — Nos vemos por aí, Mestre do Canil.
Se voltarmos a nos encontrar em algum lugar…
— RAAAAH!
Naquele momento, assim que ele baixou a guarda e puxou o refém para os
braços, um borrão branco o atacou pelo lado. Mordeu sua mão que empunhava a
espada.
Um cão. Aquele enorme Shiba Inu branco saltou de repente do meio dos
arbustos e cravou suas presas no bandido.
Me movi por reflexo, usando magia para criar uma onda de choque entre Gallus
e o refém.
— Guh?!
— Droga, Mestre do Canil! Eu sabia que você não me deixaria em paz! — Seus
olhos ardiam de ódio, como se fosse eu quem tivesse lançado o primeiro
ataque. — É como os rumores diziam! Você realmente joga seus cães sobre as
pessoas. Que truque mais baixo!
Que tipo de boato era esse?! Não, deixando isso de lado, o mais importante era
que eu acabei recebendo alguma ajuda para lidar com o contrabandista.
— Foi mal, Gallus. Mas Ruijerd do Fim da Linha não pode ser um cara mau.
As palavras soaram heróicas o suficiente, mas minha situação não era ideal.
Estávamos atualmente em três contra um, mas no chão também estavam os
guerreiros do povo-fera, que certamente pareciam mais fortes do que nosso grupo
atual, e todos foram massacrados em um instante. No momento o bandido não tinha
seu refém, mas tudo o que tínhamos era um grupo não confiável de três: o novato,
o filhote e eu. Queria muito que Ruijerd estivesse entre nós, mas… Não, esta seria
uma boa oportunidade para praticar.
Enquanto eu tentava preparar minha mente, o novato sussurrou para mim. Ele
tinha algum tipo de plano?
— Como ele é um espadachim do Estilo Deus do Norte, acho que tenho algo
que o pegará.
— Certo… — Pisei bem diante do homem. Então isso indicava que eu teria que
enfrentar um espadachim de nível Santo de frente? Merda, meu coração estava
batendo furiosamente. Acalme-se, apenas acalme-se, disse a mim mesmo.
— Woof! — Como se para injetar coragem em mim, a bola de pêlo ao meu lado
latiu.
O cara vai dar a volta e lançar um ataque cortante por baixo da Fera
Sagrada. Eu conseguia ver. Se usasse meu Canhão de Pedra… Não, a Fera
Sagrada ficaria no meio da trajetória do meu disparo. Eu precisava usar um feitiço
diferente. Qual? O novato me disse para chamar sua atenção, então…
— Explosão!
— Gaaah!
Assim que a Fera Sagrada saltou sobre Gallus, conjurei uma pequena explosão
bem na frente de seus olhos.
— Ha!
Recuei para evitar o ataque. Foi por pouco. Se eu não tivesse o Olho da
Previsão, teria morrido no mesmo instante..
Ele vai cortar a lateral do meu abdômen, então irá usar o impulso para dar um
golpe de retorno.
Se eu pudesse ver, poderia me esquivar. Ele era mais rápido do que Eris, mas
não tinha aquele seu ritmo único que era tão difícil de ler. Não havia aberturas para
lançar um contra-ataque, mas vi a Fera Sagrada voltando para a periferia da minha
visão, para que pudesse aparecer e morder o bandido por trás.
Ele vai trocar a mão que empunha a espada repentinamente, depois torcer o
corpo e dar um salto.
Por um momento não consegui entender. Não entendi a motivação por trás de
seus movimentos.
— Gah…!
Por reflexo, dei um passo para o lado em vez de recuar. No momento em que
percebi o que estava acontecendo, sua espada curta foi direto para cima para mim
e atingiu o meu pé. Mesmo com a dor intensa que percorreu meu corpo, pude ver o
que aconteceria a seguir.
— Cain! — O filhote guinchou ao ser jogado para longe, batendo com força em
uma árvore.
— Tsk!
Meu feitiço voou em direção a ele em alta velocidade, mas Gallus apenas o
partiu em dois no meio do ar. Faíscas saíram da lâmina quando ela quebrou mesmo
na mão dele. Bom, agora poderia usar a oportunidade para arrancar a espada curta
do meu…
Ele vai pegar a espada nos seus pés e vai acabar com isso.
Ah, não. Foi então que percebi que em algum momento o sujeito conseguiu me
colocar de volta no lugar onde os corpos daqueles homens-fera estavam. A lâmina
aos seus pés pertencia a eles. O cara me guiou ao local.
Ele se moverá para cortar a bolsa cheia de pó pela metade, mas depois hesitará
e cobrirá o rosto com os dois braços.
Suportei a dor que devastou meu corpo e meus pés e me forcei a retornar. O
ferimento no meu pé estava… bem. O impacto, pelo visto, fez a faca ser solta. Todos
os meus dedos continuaram intactos. Eu poderia usar magia de cura para me
recuperar disso. Para ser honesto, doeu o bastante para que não pudesse andar,
mas não era hora para reclamar. No momento precisava ficar de pé e lutar. A batalha
ainda não havia acabado.
— Hã…?
Gallus já estava no chão, de barriga para cima. Seu corpo nem mesmo
estremecia.
Eu não tinha ideia do que isso significava, mas pelo visto aqueles treinados
neste estilo em específico tinham algum hábito estranho. Apesar de tudo, abordei
Gallus com enorme cautela.
Sim, sim, você é um bom garoto, pensei. Mas vamos jogar frisbee outra hora,
tá bom?
Esse era um caso de sequestro. Foi uma operação em grande escala planejada
pela organização de contrabando. Planejavam roubar a Fera Sagrada, a divindade
guardiã dos Doldia. Suas motivações exatas não eram claras, mas pelo visto muitas
pessoas desejavam a Fera Sagrada por causa de quão especial ela era.
Dito isso, mesmo o simples ato de sequestrar a Fera seria um desafio. Supondo
que conseguissem, o povo-fera, com seu olfato apurado, ficaria no encalço dos
contrabandistas e imediatamente recapturaria a Fera. É por isso que a organização
executou seu plano perto da estação das chuvas.
A estação das chuvas duraria três meses. Cada povoado se ocupava com os
preparativos e os guerreiros de cada vilarejo ficavam de mãos amarradas. Dito isso,
seria impossível conseguir um navio bem no meio da estação das chuvas. Então,
um pouco antes das chuvas começarem, roubariam a Fera e a carregariam para o
Continente Demônio. Dessa forma, poderiam escapar facilmente e os guerreiros não
conseguiriam os perseguir.
Foi aí que começou a história que eu não conhecia: uma sobre o que Ruijerd
fez na semana seguinte, quando me deixou naquela cela.
Foi exatamente aí que Ruijerd entrou. Ele disse com orgulho que poderia usar
o cristal em sua testa para procurá-los. Quanto a Eris, ela não participou, pois havia
assumido a responsabilidade de cuidar das crianças.
Com um grande sorriso no rosto, devo acrescentar. Com certeza era influência
de seu sangue Greyrat.
Isso era uma violação do tratado. Se deixado como estava, criaria uma grande
fissura no relacionamento entre o povo-fera e o País Sagrado de Millis. Na pior das
hipóteses, acabaria resultando em uma guerra. Foi então que toda a conversa ficou
complicada. Por ordem de Gustav, os guerreiros foram chamados ao Porto Zant e
ficaram na entrada da cidade em um impasse com sua guarnição.
Bem, não era como se houvesse outra escolha. Na verdade, achei incrível que
conseguiram fazer tanto em apenas uma semana.
Foi aí que Gallus tirou vantagem da situação. As defesas da aldeia dos Doldia
foram enfraquecidas quando Gyes chamou seu bando de guerreiros para o Porto
Zant. Acompanhado por suas tropas, o bandido invadiu o assentamento. O sujeito
fez tudo exatamente pelo motivo que mencionou antes. Ele e os camaradas em
quem confiava sequestrariam as crianças e, então, conseguiriam um enorme lucro.
O bandido mirou o período logo antes do início da estação das chuvas. Ele se
preparou para isso, tendo até mesmo ameaçado o líder dos armadores para que
construísse um navio em segredo. O homem devia ter passado muito tempo
planejando tudo. As coisas não aconteceram exatamente como esperava, mas
foram o suficiente para que agisse. Mas, para seu azar, suas ambições foram pelo
ralo. No final, seu plano falhou e acabou sendo entregue aos funcionários do Porto
Zant. Assim o assunto foi resolvido e tivemos nosso final feliz.
Eris, no entanto, não o fez. Ela ficou chateada quando soube pelo que eu tinha
passado, e deu um Soco Boreas na barriga exposta de Gyes, antes de jogar água
em sua cabeça. Uma vez que o homem ficou parecendo um rato afogado, ela olhou
para ele e disse:
Éramos oito: Eris, Ruijerd e eu, além do líder tribal Doldia, Gustav, e seu filho
Gyes, o líder dos guerreiros. Uma das garotas que resgatei dos contrabandistas, a
filha do meio de Gyes, Minitona, também estava presente. Sua filha mais velha,
Linianna, aparentemente estava estudando em um país diferente. E havia outra
garota que tínhamos resgatado que era da tribo Adoldia: a filha do meio do líder
tribal Adoldia, Tersena. Ela era uma menina com orelhas de abano e bastante
desenvolvida para sua idade. Estava planejando voltar para casa, mas isso se
tornou impossível quando a estação das chuvas começou, e passaria os próximos
três meses no lugar.
— Estou tão feliz por não ter sido levada. Ouvi dizer que há uma família nobre
louca e doente em Asura que só tem interesse sexual pelo povo-fera. Vai saber o
que aconteceria comigo.
Gallus também falou sobre como uma certa família nobre paga especialmente
bem por gente-fera com sangue Doldia. Parecia que aqueles que eram fáceis de
treinar eram vendidos pelos preços mais altos.
Eris pareceu lembrar de algo, já que de repente mostrou a todo o anel que
estava em seu dedo.
— A propósito, conhecem Ghislaine? Ganhei este anel aqui dela. — Eris não
conhecia a língua do Deus Fera, então falou na língua humana. Dos presentes, os
únicos que podiam entender a língua, além de Ruijerd e eu, eram Gustav e Gyes.
— Hein?
Sua voz estava cheia de desgosto. Ele cuspiu as palavras como se deixassem
um gosto amargo em sua língua.
— Ela é uma mancha no nome da nossa tribo.
E isso foi apenas o começo do ataque de Gyes a Ghislaine. Ele falou na língua
humana, para que Eris pudesse entender. Sua voz estava cheia de uma emoção
imprópria para um irmão mais velho falando de sua irmã mais nova, enquanto falava
sem parar sobre a falha que a mulher era como pessoa.
Foi difícil para mim ouvir tudo, visto que ela já até salvou minha vida. Parecia
que a mulher tinha feito algumas coisas realmente desprezíveis no vilarejo, mas
ainda assim, tudo isso aconteceu quando era uma criança. A Ghislaine que eu
conhecia era desajeitada, mas esforçada. Ela mudou, se reajustou como pessoa.
Não merecia que falassem assim dela. Era uma instrutora de espada altamente
respeitável, bem como uma excelente aprendiz de magia.
— Esse anel também, isso foi algo que nossa mãe deu a ela para que parasse
de ficar furiosa sem motivos. Mas não é como se tivesse funcionado. Não passava
de uma garota surtada e inútil.
— Ah, cala a boca! O que você sabe sobre Ghislaine?! — Eris me cortou,
berrando em voz alta o suficiente para dividir a casa em duas. Os outros ficaram
pasmos com sua explosão. Afinal, apenas Gyes e Gustav podiam entender a língua.
Senti medo de que ela pudesse acabar ficando violenta. Mas, em vez disso, a
garota parecia frustrada, com lágrimas nos olhos. Ela cerrou os punhos trêmulos,
mas não os balançou.
— Vamos parar essa conversa aqui — sugeri, colocando meus braços ao redor
dos ombros de Eris.
— Certo… — Eris não parecia satisfeita, mas pelo menos parecia aliviada com
o que eu disse.
— Sinto muito…
A terra ficou inundada e o caos chegou ao máximo quando uma criança caiu na
água. As pessoas ficaram bastante chocadas, mas gratas quando usei minha magia
para salvá-la. Achei que talvez devesse usar minha magia para afastar as nuvens
de chuva, mas logo desisti. A própria Roxy disse: manipular o tempo não seria uma
boa ideia. Se eu forçasse a chuva a parar, algo terrível poderia acontecer com a
floresta.
Para ser honesto, só queria que isso andasse logo e parasse para que
pudéssemos seguir em frente. Mas, novamente, só iria parar depois de três meses.
Eu teria que suportar.
Estava chovendo quando decidi dar um passeio pela aldeia. Como se tratava
apenas de um vilarejo, não havia nenhum armeiro, armadureiro ou estalagem de
qualquer tipo. Na maior parte, eram moradias particulares e depósitos, ou guaritas
para seus guerreiros. E estava tudo sobre as árvores.
Ele parecia feliz e acenou para mim. O homem também recebeu anistia por
suas contribuições quando a aldeia estava em apuros.
— Aham. “Nunca mais faça isso”, disseram eles. Idiotas, todos. Claro que vou
fazer de novo.
— Ei! Vamos lá, pare com isso. Não posso fugir agora, não antes que a estação
das chuvas termine.
Em outras palavras, ele estava planejando repetir seu erro. Sério, que caso
perdido.
— Além disso, permita-me devolver o seu colete.
— Eu disse para você parar com essas merdas polidas. Só fique com ele —
disse.
— Tem certeza?
Bem, Geese ao menos não parecia ser um cara totalmente mau. O jeito como
era gentil, mas evasivo, me lembrava Paul. Paul… Gostaria de saber se ele estava
bem.
Eu aprendi que os Doldia tinham sua própria magia secreta. Permitia que
encontrassem inimigos usando um uivo de longo alcance e, com suas vozes
especiais, podiam fazer os oponentes perderem o senso de equilíbrio. A maneira
como Gyes me paralisou com sua voz era um desses tipos de magias. Pelo que
ouvi, parecia ser uma do tipo que manipulava o som.
Nesse ponto, Gustav ficou bastante chocado com a forma como eu usava magia
não verbal.
— Uau, você já está nesse nível e ainda está motivado a melhorar? — Aquilo
fez eu me sentir bem.
Não podíamos ficar parados enquanto essas criaturas adoráveis eram atacadas
por monstros. Foi por isso que propus que Ruijerd ajudasse nas defesas da aldeia,
mas ele se opôs à ideia.
Ruijerd fez uma pausa e pensou por alguns segundos antes de se voltar para
Gyes para dar sua opinião.
Ruijerd estava certo sobre uma coisa: No começo os guerreiros do vilarejo nos
desaprovaram. Mas assim que aniquilamos impiedosamente qualquer monstro que
entrasse na vila e perceberam que a estação das chuvas iria passar sem nenhuma
vítima, finalmente começaram a sorrir.
— Achei que a tribo deles tivesse mais orgulho do que isso. É uma vergonha
confiar a proteção de sua aldeia a outra raça. — O Superd era o único incomodado.
Parecia que o povo-fera de várias centenas de anos atrás era bem diferente de suas
contrapartes modernas.
Um mês se passou.
Eris estava ensinando a língua humana a elas. Sim, isso mesmo. Estava
ensinando uma língua para outras pessoas! Não era a hora nem lugar para eu
invadir e tentar ajudá-la; se fizesse isso iria apenas destruir sua imagem. Bem, no
final das contas, eu era um homem que sabia ler o clima.
Foi a primeira vez que Eris conseguiu fazer amigas de sua idade. Fiquei
orgulhoso ao vê-la se dando tão bem com as meninas. O cabelo ruivo, as orelhas
de gato e as orelhas de cachorro… Ver todas brincando felizes era mais do que
suficiente para mim.
Embora Eris devesse ter cuidado ao envolver os braços em volta delas sem
pensar. Poderiam interpretar mal as suas intenções, assim como fizeram comigo.
Na verdade, o Senhor Gyes ficava sempre observando. Como ele se sentiria como
pai, vendo Eris com as narinas dilatadas, jogando os braços ao redor de sua filha?
— Ah, Lady Eris, aprecio você se dar tão bem com minha filha.
Mas o quê…? Esta foi uma reação totalmente diferente da que ele me deu! O
homem deveria ter sido capaz de cheirar a emoção que irradiava de Eris agora,
então por que não o fez? Essa era apenas a diferença entre homens e mulheres,
imaginei. Sim, tinha que ser isso. Claro que seria.
— A propósito, sinto muito pelo assunto envolvendo Ghislaine. Não nos vemos
há muito tempo, então talvez eu tenha entendido mal. Parece que minha irmã mais
nova cresceu um pouco durante seu tempo mundo afora. — Ele abaixou a cabeça.
Parecia que havia aceitado isso no último mês. Que bom.
— Claro que sim. Ela é o Rei da Espada Ghislaine! E sabe o que mais? Agora
Ghislaine consegue usar até magia — disse Eris se gabando.
— Hahaha, Ghislaine usando magia? Lady Eris, suas piadas são muito
inteligentes.
— Sério! — Ela insistiu. — Rudeus ensinou ela a ler, fazer cálculos e usar
magia.
— Lorde Rudeus…?
— Ah, sim, parece um hobby muito nobre para se ter. A propósito, como você
ensinou Ghislaine a ler?
— Quando ela era aventureira, passou por muitas dificuldades porque não sabia
das coisas. Faz sentido que você não seja capaz de imaginar.
— Então essa é a história… Quando ela era pequena, minha irmã nunca ficava
feliz, a menos que pudesse bater em alguém quando acontecesse algo que não
gostasse.
A julgar pelo que ele estava dizendo, Ghislaine parecia ter sido exatamente
como Eris quando era mais nova. Especialmente nas partes em que arrumava briga
com as pessoas e que, por ser forte, poucos podiam impedi-la. Gyes deve ter se
queimado várias vezes com seu fogo. Ele não seria um irmão mais velho muito bom
se fosse muito mais fraco do que sua irmã mais nova.
Falando em irmãos mais velhos, eu também era um. Gostaria de saber como
Norn e Aisha estavam. Sempre quis escrever uma carta para elas, mas acabava
esquecendo. Assim que a chuva parasse, seguiríamos para a capital do País
Sagrado de Millis, onde enviaria uma carta para Buena Village. Se eu tivesse
enviado uma lá do Continente Demônio, provavelmente não teria chegado, mas com
certeza não teria problemas se enviasse de Millis.
— Sim?
Até que elas fossem se trocar bem na minha frente, é claro. Afinal, estava quase
de noite. No momento iriam brincar na água, mas teriam que colocar suas roupas
de dormir depois.
— O quêê?! Sem chances; mas que absurdo. Será que não tem nenhuma
garota do povo-fera se dando prazer e chegando ao êxtase justo agora?
— Mestre Rudeus. Estou grato pelo que você fez antes. E também me desculpo,
mesmo agora, por ter te entendido mal. — Do nada seu tom mudou. — Mas se
colocar a mão na minha filha, será uma história completamente diferente. Se não
sair dessa caixa agora, vou jogá-la na água da enchente.
Ele estava sério. Eu não hesitei. Saltei daquela caixa em um instante, na mesma
velocidade de um daqueles Pula Pirata.
— Eu sou um protetor deste vilarejo. Não queria ter que te dizer isso, mas…
controle-se um pouco.
— Sim senhor.
Ruijerd e Gustav se davam tão bem quanto irmãos. O Superd fazia visitas
frequentes à casa dos Dedoldia, e os dois bebiam juntos e trocavam histórias de
seus passados. As histórias eram banhadas a sangue, mas na verdade eram bem
interessantes de se ouvir. Era quase como ouvir um ex-membro de uma gangue de
motoqueiros exagerando sobre o quão fodão foi em sua juventude. Mas as coisas
que Ruijerd e Gustav falavam pareciam ter realmente acontecido.
Então havia os Dedoldia, parecidos com gatos, e os Adoldia com uma aparência
de cachorro. Essas eram as duas famílias principais que foram divididas em uma
dúzia de ramos familiares. Em outras palavras, a realeza da Grande Floresta.
Embora não estivessem fazendo muito para merecer o título, eram eles que
liderariam todos quando surgisse a necessidade.
Quanto aos anões, eles viviam não na Grande Floresta, mas mais ao sul, no
sopé das Montanhas Wyrm Azul. Os dragões azuis voavam pelo mundo e só
retornavam à cordilheira para fazer seus ninhos quando colocavam ovos ou criavam
seus filhotes, como aves migratórias. Ao contrário das aves migratórias, no entanto,
retornavam apenas uma vez a cada dez anos.
Para se opor a isso, Ruijerd sacou seu trunfo, a história sobre o Clã Superd
durante a Guerra de Laplace. Os dois trocaram gracejos como se estivessem
competindo, mas como ambos eram velhos, isso meio que se transformou em um
sermão sobre os bons e velhos tempos.
— Eu entendo muito bem o que você quer dizer, Mestre Ruijerd. Muitos deles
são fracos e decepcionantes.
— Exatamente — disse Ruijerd. — Quando eu era jovem, os homens eram
fortes e durões.
Eram literalmente espíritos gêmeos. Este podia até ser um mundo diferente do
meu primeiro, mas a camaradagem dos velhos era a mesma.
— Você está extremamente correto. Gyes pode até liderar os guerreiros, mas
seu julgamento é pobre. Ele é bom em liderar as pessoas, mas se pudesse avaliar
melhor as situações, então Mestre Rudeus não teria passado por tudo aquilo —
disse Gustav.
Ruijerd discordou.
Ai. Por mais verdade que isso fosse, doeu. Ruijerd tinha fé em mim, e foi por
isso que me permitiu voltar sozinho. No entanto, fui pego bem facilmente. De certa
forma, traí sua confiança.
— Mas Mestre Ruijerd, isso não é um pouco cruel? Aconteceu algo horrível com
seu camarada.
Cara, Ruijerd, você com certeza está exagerando, pensei. Talvez você possa
escapar por conta própria se for pego, mas tente não esperar muito de mim. Meus
poderes não são ilimitados, sabe?
Sempre que eu estava em meu quarto, a Fera Sagrada entrava lentamente. Ela
vivia nas profundezas da aldeia ao lado das flores e das borboletas, mas uma vez
por dia durante o tempo de caminhada vagava livremente por onde quisesse. Sua
rota favorita (e atual) era onde quer que eu estivesse.
— Olhe só, se não é a Fera Sagrada. Que negócio você tem aqui com um
viciado em sexo como eu?
— Ruff!
— Ruff para a vida, hein?
— Ruff!
Não tinha certeza sobre a Fera Sagrada ser macho ou fêmea, mas, de qualquer
forma, ela se acomodou ao meu lado. No momento, eu estava segurando o molde
de uma estatueta em minhas mãos. Parecia que demoraria algum tempo até a chuva
parar, então decidi tentar fazer uma.
O modelo era Ruijerd. Talvez esteja se perguntando por que eu o escolhi, mas
pense bem: Os Superd eram como bichos papões sem rosto.
As pessoas tremiam de medo ao ver um cabelo verde, mas não havia cor na
figura que fiz. Era apenas algo feito de pedra Quem sabe, se deixasse uma
impressão forte o suficiente, as pessoas o aceitariam melhor.
— Não tenho mais nada para fazer, então estou criando algo.
— Quer brincar?
— Woof!
Então, nós dois nos agarramos e rolamos. Comecei a desfrutar de seu pêlo
macio e fofo, e a Fera Sagrada fez uma quantidade moderada de exercícios. Foi
uma verdadeira situação de ganho mútuo.
— Hm? Entre.
— Perdão. — Uma mulher com roupa de guerreira entrou. Era Laklana. Ela era
uma das responsáveis pela Fera Sagrada e viria buscá-la quando seu tempo de
caminhada estivesse perto do fim.
— É um prazer te rever.
— Digo o mesmo, Mestre Rudeus. Além disso, daquela vez… — Cada vez que
ela me via, Laklana se desculpava pela vez em que jogou água fria em mim. O
primeiro pedido de desculpas foi mais do que suficiente. — Deixando aquilo de lado,
você poderia, por favor, parar de ser tão apegado à Fera Sagrada?
— Do que está falando? Estou apenas me divertindo enquanto brinco com ela.
O quê, mais uma acusação falsa? Ela realmente não sentia muito por nada, não
é? Se não tomasse cuidado com suas palavras, da próxima vez ficaria nua em uma
cela e eu seria o único jogando algum líquido.
A verdadeira razão era porque toda vez que ela vinha e abaixava a cabeça,
meu pervertido interior começava a sussurrar: “Ei, moça, se você pudesse resolver
isso com um simples pedido de desculpas, não precisaríamos chamar a polícia,
certo? Se realmente quer resolver isso, sabe o que precisa fazer, certo? Vamos dar
umazinha.”
A Fera Sagrada era um tipo de fera mágica que nascia uma vez a cada poucas
centenas de anos. Não tinha nome próprio. Desde eras longínquas, só aparecia
quando o mundo enfrentava uma crise, e quando se tornava adulta partia ao lado
de um herói, usando seu grande poder para salvar o mundo.
Bem, ao menos era essa a lenda. Era por isso que a Fera Sagrada recebia uma
criação tão cuidadosa, bem no fundo do Vilarejo Doldia, em uma área restrita onde
havia uma grande árvore que chamavam de Árvore Sagrada. Então é claro que vivia
sendo protegida. Eles tomavam o cuidado de não expor o filhote ao mundo exterior,
do qual o animal pouco sabia. Ainda era um cão, então liberavam um tempo para
caminhar todos os dias.
Pelo visto, levaria mais cem anos até que a Fera Sagrada atingisse a idade
adulta. Se as histórias fossem verdadeiras, o mundo enfrentaria uma calamidade.
Nesse meio tempo, Laklana supervisionaria a proteção da Fera Sagrada. Quanto à
Árvore Sagrada, estava localizada além do caminho bloqueado que eu havia
visitado antes.
— Arf!
— Eu entendo, mas…
— Woof!
— Entendo…
Por que diabos você está falando com este cão como se estivesse tendo uma
conversa normal? pensei. Eu podia ouvi-lo latindo. Essa com certeza não era a
língua do Deus Fera. Como ela estava entendendo isso? Estava usando algum tipo
de tradução bilingual?
— Eh? Fiquei naquela cela o tempo todo, então imaginei que tinha se esquecido
de mim.
— Woof!
— Lamentável, ela disse, mas ela nos pediu para alimentá-lo com alguma
comida deliciosa. Mestre Rudeus, você gostou das refeições que fornecemos, sim?
De fato. A comida era no mínimo muito boa. E também pude repetir sempre que
quis. Realmente achei aquilo estranho, já que se tratava de uma prisão. Então foi a
Fera Sagrada que pediu aquele tratamento para mim? Usar a comida como forma
de gratidão soava exatamente como algo que um cão faria.
— Mas já que fizeram aquilo, eu teria gostado que tivesse me soltado de minha
cela.
Continuamos um pouco após isso, tendo uma conversa com Laklana como
nossa intérprete. Parecia que a Fera Sagrada não sabia todos os detalhes sobre o
que aconteceu. Isso incluía não ter consciência do cheiro de excitação que Gyes
alegava estar saindo de mim, ou por que o homem resolveu me levar sob custódia.
Também não parecia saber muito sobre que seu sequestro implicava, além de que
aquilo foi uma experiência aterrorizante. Em outras palavras, ainda era apenas uma
criança. Não era certo exigir reparações de uma criança, então desisti.
Heh heh, você com certeza é fofo, pensei enquanto acariciava seu pescoço,
apenas para ser empurrado para o chão. Aah, você não pode! Não onde as
pessoas possam nos ver…!
— Você está entendendo mal, o cheiro que está sentindo é minha excitação
por sua causa.
— Hã?!
— Foi rude da minha parte; desconsidere isso. — Merda, merda. Deixei meus
verdadeiros sentimentos escaparem.
— Woof!
A fera obedientemente se virou para sair, como foi dito, e partiu sem uma única
reclamação.
Isso se tornou algo diário. Mas vamos manter em segredo entre nós que, alguns
dias depois, Laklana ficou incrivelmente chateada comigo quando tentei ensinar a
Fera Sagrada a se sacudir.
Capítulo 10 - A Estrada da
Espada Sagrada
Um dia antes de deixarmos o Vilarejo Doldia, Eris e Minitona brigaram. Nem
seria necessário mencionar, tenho certeza, mas Eris ganhou facilmente. Claro que
sim. Afinal, conseguiu suportar até mesmo o treinamento de Ruijerd. Com a outra
pessoa sendo mais jovem e destreinada, dificilmente ofereceria algum desafio. Isso
estava mais para algo como o forte intimidando o fraco.
Achei que deveria ao menos alertá-la sobre isso. Eu sabia que Eris era esse
tipo de pessoa, mas ela logo faria quatorze anos. Embora tecnicamente ainda fosse
uma criança, quatorze anos era idade suficiente para não poder simplesmente sair
socando os outros sem motivos. Mas como eu iria fazer isso?
Segundo ela, como a estação das chuvas havia acabado, Eris disse que ia
deixar a aldeia e Minitona tentou impedi-la. Eris ficou feliz com Minitona querendo
que ela ficasse, mas explicou que teria que continuar sua jornada, apontando para
o tanto que o pedido da garota era egoísta. Normalmente isso aconteceria ao
contrário.
Mas, após isso, continuaram conversando por algum tempo. No início, as duas
estavam calmas, mas a discussão logo azedou. Minitona começou a lançar insultos.
Inclusive direcionados a Ghislaine e eu. Eris parecia irritada, mas suportou tudo e
respondeu com calma.
No final, Minitona deu o primeiro soco. Foi ela quem tentou arranjar uma briga
com Eris. Isso exigia bastante coragem. Dei até alguns créditos a isso.
Definitivamente era algo que nem eu poderia fazer. Eris não recuou. Como
esperado, bateu em Minitona sem qualquer piedade, até ela virar polpa.
— Eris.
— O quê?!
— Claro que sim — disse ela, virando-se. No passado, a garota nunca teria
mostrado misericórdia a alguém que a mostrasse os dentes, nem mesmo se fosse
uma criança. Eu sabia muito bem disso.
Hm. Parecia que estava ao menos um pouco arrependida por ter socado
Minitona. Isso era algo que eu nunca tinha visto antes. Em três meses, talvez tivesse
ficado um pouco mais adulta. Ela estava amadurecendo sem que eu percebesse.
Nesse caso, havia apenas uma coisa a dizer.
— Não quero…
Estávamos ocupados nos preparando para nossa partida no próximo dia, então
não me encontrei com a Fera Sagrada. Em vez disso, recebi duas visitantes no meio
da noite.
Abaixei meu cajado. Então foi por isso que Ruijerd não disse nada.
— Owie, mew…
As duas talvez estivessem tentando sussurrar, mas suas vozes eram altas o
suficiente para que eu pudesse as ouvir claramente. Qual era o objetivo delas?
Dinheiro? Fama? Ou estavam mirando o meu corpo?
— Mew…!
Eram Minitona e Tersena. Cada uma delas usava um vestido de couro liso com
uma abertura na parte traseira, onde suas caudas balançavam para fora. Essas
roupas de dormir peculiares do povo-fera eram realmente adoráveis.
— O que vocês estão fazendo aqui tão tarde da noite? O quarto de Eris fica ao
lado.
Hã, T-Tona?
— Obrigada por nos salvar, mew. Disseram que eu poderia ter morrido se você
não tivesse lançado sua cura em mim, mew.
Provavelmente era verdade. Suas feridas eram muito graves. Pelo menos
graves o suficiente para que eu ficasse muito traumatizado se estivesse no lugar
dela. Achei sua atitude destemida impressionante.
— Graças a você, também não tenho nenhuma cicatriz, mew. — Ela enrolou a
bainha do vestido, revelando as pernas nuas. Estava escuro o suficiente para que
eu não pudesse ver o que havia entre elas. Lady Kishirika, por que você não tinha
olhos de demônio que pudessem ver no escuro?
— Não é como se ele não tivesse visto antes, então está tudo bem, mew.
— Mas o Tio Gyes disse que os homens humanos têm uma longa temporada
de acasalamento, então, se não os abordar com cautela, pode ser atacada.
Uma longa temporada de acasalamento? Isso era algo rude a se dizer. Mas não
é como se fosse mentira.
— Além disso, se ele ficar excitado olhando para o meu corpo, então é uma boa
maneira de eu agradecer… mew?! Que frio!
Naquele ponto, eu nem estava focando nas pernas de Minitona. Um suor frio
desceu pelas minhas costas enquanto eu enrolava meus dedos em torno do cajado
que deveria estar deitado ao meu lado. Uma intenção cruel e assassina exalava do
quarto vizinho.
— A-ahem. Vou aceitar sua gratidão. Eris está no quarto ao lado do meu, então
sigam em frente.
Isso mesmo, não importava se ela era uma criança. Não deveria ter mostrado
seu corpo com tanta falta de cuidado assim. Afinal, causaria sérios problemas se
fosse agredida por algum velho doente tentando brincar de médico.
A imaginei em sua pose usual, com os braços cruzados sobre o peito. As vozes
de Minitona e Tersena estavam um pouco difíceis de ouvir. Ou talvez a voz de Eris
é que fosse muito alta. Escutei ansiosamente, mas sua voz foi ficando mais calma.
Parecia que as coisas ficariam bem. Aliviado, voltei para a minha cama.
Era hora de partir! Ou pelo menos deveria ser, quando por algum motivo um
homem com cara de macaco se aproximou de nós.
— Ah, cara, este é o momento perfeito. Estava pensando em voltar para Millis.
Deixa eu ir com vocês — disse Geese, puxando-se descaradamente para dentro.
Os outros dois não pareciam tão irritados com sua presença quanto eu. Quando
perguntei se o conheciam, a resposta deles mostrou que estavam gradualmente
começando a gostar do sujeito sem que eu percebesse. Isso incluía se aproximar
de Eris, Minitona e Tersena e contar piadinhas engraçadas. Ele também se juntou a
Gustav e Ruijerd durante suas conversas, onde ajustou sua maneira para se
adequar ao tom da conversa. O homem realmente tinha uma fala mole e era hábil
na manipulação. Conseguiu se enturmar com os dois facilmente, sem que eu
percebesse nada. E ambos o receberam de braços abertos. O quê, estavam me
traindo com Geese?!
Acenamos um adeus ao povo-fera que se reuniu para ver nossa partida. Foi um
pouco comovente ver Eris com lágrimas nos olhos enquanto observava Minitona e
os outros.
Ainda assim, algo pesava em meu coração e era tudo culpa de Geese. Se ele
queria ir junto, deveria ter me contado desde o começo. Não havia necessidade para
agir de forma suspeita e se esgueirar pelas minhas costas. Eu não teria o recusado
se me pedisse categoricamente. Depois que comemos a mesma comida e pegamos
as pulgas um do outro, parecia que estávamos nos distanciando.
Ele tinha um rosto encantador e também não era um cara mau. Mesmo assim,
desde o incidente com Gallus, tive a sensação de que havia algo mais sombrio por
trás de tudo isso.
— Rudeus.
Eu não tinha ideia de qual era o método que Ruijerd adotava para medir esses
casos. A companhia de Geese era até boa, mas os padrões indefinidos de Ruijerd
eram um problema. Não, talvez tudo isso fosse resultado da conversa mole do
sujeito. O macaco bastardo com certeza tinha feito um bom trabalho.
— Heh heh. Eu gosto de apostar, mas acho que nunca fiz nada
verdadeiramente desprezível para os outros. Mestre Ruijerd, você tem um bom olho
para as pessoas.
Francamente, eu tinha uma dívida com esse homem. Ele me deu seu colete
quando eu estava com frio e também me ajudou durante a luta com Gallus. Eu não
tinha certeza do que ele estava planejando, mas não tinha motivo para o afastar.
Estava um pouco irritado com seus métodos indiretos, isso é tudo.
— Não me importo se você vier conosco, novato. Mas tem certeza de que não
tem medo de um Superd? — Falei alto o suficiente para que Ruijerd pudesse ouvir.
Eu ainda não tinha certeza se ele sabia que Ruijerd era um Superd, mas se
participou de suas bebedeiras, podia muito bem ter ouvido sobre isso. Só não queria
que descobrisse mais tarde e reclamasse sobre como era assustador estar com um
Superd.
— É claro. Você achou que eu não teria? Afinal, sou um demônio. Tenho ouvido
sobre como os Superds são assustadores desde quando era criança.
Curioso para saber o que isso significava, virei meu olhar para Ruijerd, mas ele
apenas balançou a cabeça como se não tivesse ideia do que Geese estava falando.
Era, no mínimo, algo que aconteceu bem antes dos últimos três meses.
— Acho que você não se lembra, hein? Bem, claro, foi há uns trinta anos.
Geese então iniciou sua explicação. Foi uma história épica que incluiu um
encontro inicial, uma despedida, um clímax e uma cena de amor. Quando um herói
incrivelmente bonito e durão disse que ia partir em uma jornada, centenas de
mulheres imploraram para que ele não fosse. O sujeito saiu de sua cidade natal,
apesar de seus apegos persistentes a ela e encontrou uma misteriosa beldade
quando chegou ao seu destino.
Para resumir o que de outra forma seria uma longa história, quando Geese
ainda era um aventureiro novato, Ruijerd interveio para salvá-lo quando foi atacado
e quase morto por um monstro.
— Bem, foi há uns trinta anos. Eu particularmente não sinto que exista qualquer
dívida — disse Geese. A tribo Superd era assustadora, mas Ruijerd era diferente,
disse o novato com cara de macaco, rindo.
O Superd relaxou ao ouvir isso. Senti que, logo após ouvir essa história, entendi
o significado da palavra karma. Bom para você, Ruijerd, pensei.
— Bem, espero que me deixe ficar com você por um tempo, Senpai ☆
E foi assim que o Fim da Linha ganhou um novo membro com uma cara de
macaco… Espera aí, ele não era um novo membro. Só ficaria conosco até
chegarmos à próxima cidade, lembrei. Geese alegou que era azarado – sempre que
entrava em um grupo de quatro, algo terrível acontecia. Eu não tinha palavras para
mencionar o azar que ficar na mesma cela que ele foi. Em qualquer caso, estava
tudo bem se não fosse se juntar ao nosso grupo.
Foi assim que partimos em nossa jornada com um viajante extra nos
acompanhando.
Eu estava desconfiado sobre como esse caminho foi feito, mas Geese me
explicou. Esta rodovia foi criada por Santo Millis, o fundador da fé Millis, a maior
denominação religiosa do mundo. Com um único golpe de sua espada, Santo Millis
cortou as montanhas e as florestas ao meio, dividindo até um rei demônio no
Continente Demônio em dois. A estrada foi batizada de Estrada da Espada Sagrada
tendo essa história em mente.
Por mais que eu quisesse descartar a história com ceticismo, a mana de Santo
Millis ainda permanecia. O fato de não termos encontrado nenhum monstro até o
momento era prova disso. A carruagem também não ficou presa na lama.
Estávamos viajando tranquilamente. Isso não era nada menos do que um milagre.
Agora eu podia entender o motivo pelo qual sua religião tinha tanto poder. Ao
mesmo tempo, temia o possível impacto negativo que muita mana poderia causar
ao corpo. Mana era uma coisa útil, mas em abundância poderia ser aterrorizante.
Ela também poderia fazer coisas terríveis, como transformar animais em monstros
e transportar crianças do Continente Central para o Continente Demônio. Embora,
neste caso, não ser atacado por monstros tornava nossa jornada mais fácil.
Havia intervalos fixos ao longo da rodovia onde seria possível acampar. Foram
neles que passamos nossas noites. Ruijerd iria caçar algo na floresta para o jantar,
então não sofríamos com falta de comida. Às vezes, pessoas-fera de algum
assentamento próximo apareciam para vender seus produtos, mas não tínhamos
necessidade de suprimentos adicionais.
Foi aí que Geese entrou. Exatamente como havia declarado, ele era um mestre
em cozinhar ao ar livre. A maneira como pegava as nozes e a grama selvagem que
eu colhia e as transformava em temperos era como feitiçaria, injetando os sabores
mais deliciosos em nossa comida.
Essa também não era uma declaração vazia. A carne estava realmente
deliciosa.
Cozinheiro: Geese
Nossa atribuição de trabalho era tão precisa que não havia nada para Eris fazer,
exceto coletar lenha, mas ela terminava tudo rápido demais. Assim sendo, acabava
entediada.
No início, treinava com sua espada e ficava em silêncio. Depois de ser forçada
por mim e Ghislaine a praticar exercícios repetitivos, poderia continuar brandindo
sua espada por horas. Entretanto, não era como se ela achasse isso divertido.
— Ei, Geese!
— Algo de errado, Senhorita? A comida ainda não está pronta. — Ele provou
um pouco da sopa antes de olhar para ela.
Eris estava em sua pose usual, com os braços cruzados e as pernas abertas.
— Ensine-me a cozinhar!
— Certo, Senhorita. Tudo o que uma espadachim precisa saber fazer é lutar.
Cozinhar é perda de tempo. Tudo o que você precisa fazer é comer.
Este era um homem cujas habilidades culinárias iam além de sua mentalidade
de “apenas comer”. Ele poderia abrir seu próprio restaurante. O sujeito não era tão
bom a ponto de fazer o queixo de um certo rei gourmet cair e ter um feixe de luz
saindo de sua boca, mas era pelo menos bom o suficiente para que seu restaurante
fosse moderadamente popular por toda a vizinhança.
— Mas, se eu pudesse cozinhar… hum… bem, você sabe, certo? — Ela hesitou
em explicar, jogando olhares em minha direção.
O que é isso, Eris? O que você quer dizer? Heh heh, vá em frente e diga, a
incitei comigo mesmo.
— Não, nem imagino. — Geese estava sendo frio com ela. Eu não tinha certeza
do porquê, mas ele estava sendo excepcionalmente inflexível. O cara não era assim
em relação a Ruijerd ou a mim, mas sempre soava distante quando interagia com
Eris. — Você é habilidosa com a espada, não é? Então não precisa aprender a
cozinhar.
— Mas…
— Poder lutar é uma coisa maravilhosa, sabe? Se você quer viver neste mundo,
não há nada mais essencial do que isso. Não desperdice seu talento.
O rosto de Eris ficou sombrio, mas ela não tentou socar Geese. Havia algo
estranhamente persuasivo no que ele disse.
Porém, um dia, uma mulher do grupo se aproximou de Geese e disse que queria
aprender a cozinhar. Ela queria ir atrás de um dos homens do grupo. É claro que o
ditado “O caminho para o coração de um homem é pela boca” também existia neste
mundo. Geese respondeu com “Claro, acho, por que não?” e começou a ensiná-la.
Não ficou claro se a culinária teve alguma coisa a ver com o que aconteceu
depois, mas a mulher ficou com o homem e os dois se casaram algum tempo depois.
Então deixaram o grupo e foram para algum lugar. Tudo bem, disse Geese. Houve
uma briga quando os dois foram embora, mas a partida não foi um problema.
O que aconteceu depois é que foi horrível. Quando as duas pessoas mais
importantes foram embora, o grupo começou a debandar. Tornou-se um turbilhão
de disputas e apatia, tanto que não podiam mais realizar missões e logo se
dispersaram por completo.
Geese, entretanto, era um homem que podia fazer qualquer coisa. Ele não tinha
talento para a espada ou magia, mas podia fazer todas as outras coisas. É por isso
que pensou que logo encontraria um novo grupo. Mas seu esforço acabou
resultando em um fracasso esmagador. Na época, ele era um aventureiro bastante
conhecido, mas nenhum grupo o pegou.
Geese podia fazer qualquer coisa. Qualquer coisa que qualquer outro
aventureiro poderia fazer. Em outras palavras, esse era o problema. Outras pessoas
também podiam fazer aquilo que ele fazia. Se um grupo fosse bem classificado,
dividiriam essas tarefas servis entre seus próprios membros.
Foi então que ele percebeu que o grupo em que estava antes era o único lugar
ao qual pertencia. Percebeu que só era quem era porque todos eram muito
inabilidosos. Depois disso, Geese se aposentou prematuramente de sua carreira de
aventureiro. Agora vivia das apostas.
— Entendo que algo terrível te aconteceu, novato, mas você ajudou aquela
mulher a conquistar a felicidade dela, não foi? — perguntei, com a nuance adicional
de “Então, por que não vai em frente e ensina Eris?”
— Não sei. Nunca mais a vi. — Ele soltou uma risada auto-depreciativa. — Mas
o homem não ficou feliz.
Então talvez fosse essa a razão da má sorte. Não pude dizer nada depois disso,
não depois de ver o olhar deprimido no rosto dele. A sopa, que deveria estar
deliciosa, de repente não estava mais tão gostosa.
— Acredito que Mestre Ruijerd sabe mais sobre isso. Mestre Ruijerd! —Geese
gritou e o Superd, que estava treinando nas proximidades com Eris, se aproximou.
A garota caiu de costas no chão com as pernas e os braços bem abertos, tentando
controlar a respiração.
— “Os Sete Grandes Poderes”, hein? Isso traz várias memórias de volta. —
Seus olhos se estreitaram enquanto examinava o monumento.
— Treinei muito quando era jovem, então um dia um dos “Sete Grandes
Poderes” me quis como estudante. — Ruijerd olhou para longe enquanto falava.
Muito, muito longe… Espere, afinal de contas, para quão longe no passado ele
estava olhando?
— São os padrões de cada um. Eles apontam seus sete nomes. — Ruijerd
apontou para cada um e me disse seus nomes.
— Hmm. Mas eu nunca tinha ouvido falar sobre os Sete Grandes Poderes. —
falei.
Ruijerd explicou:
A propósito, o motivo pelo qual o Deus Demônio não foi removido dessa
classificação foi porque não estava morto; apenas selado.
— Para começo de conversa, por que o deus da Técnica criou essa lista? —
perguntei.
— Difícil de dizer. Foi dito que criou isso para que pudessem encontrar pessoas
capazes de derrotá-los, mas eu não sei.
— Como se eu soubesse.
Deixando isso de lado, os Sete Grandes Poderes, hein? E pensei que o mundo
já tinha suficiente gente ridiculamente forte. Parecia que eu realmente não poderia
chegar aos melhores deles. Mas, claro, não era como se pretendesse ser um dos
mais fortes do mundo. Na verdade, decidi que seria melhor não me preocupar com
isso.
Levamos um mês para sair da Grande Floresta. Mas era aquilo… foi só um mês
e saímos. Era uma estrada completamente reta sem um único monstro. É por isso
que conseguimos dedicar nosso tempo inteiramente à viagem.
Bem, essa era ao menos uma das razões. A outra era porque nossos cavalos
eram extremamente eficientes. Os cavalos deste mundo tinham uma resistência
insana. Eles podiam correr por dez horas diretas, sem qualquer descanso, e então
voltar a fazer isso no dia seguinte. Talvez usassem algum tipo de magia, mas, de
qualquer forma, saímos da floresta sem problemas.
Quanto aos acidentes, o único que tivemos durante a viagem foi com minhas
hemorróidas. É claro que não contei a ninguém e as curei em segredo usando magia
de cura.
Logo após as Montanhas Wyrm Azul, havia uma estação de descanso situada
em uma pequena cidade na entrada de um vale. Era comandada por anões. Não
havia Guilda dos Aventureiros. Era famosa por ser uma cidade de ferreiros, com
armeiros e armadureiros alinhados lado a lado.
Geese me disse que as espadas vendidas no local eram baratas e de boa
qualidade. Eris parecia melancólica, mas não tínhamos dinheiro sobrando para
gastar com nada. Além disso, sem dúvida precisaríamos de um bom dinheiro para
levar um Superd de Millis para o Continente Central. Convenci a garota a não
comprar nada, alegando que não poderíamos pagar por gastos desnecessários.
Bem, de qualquer forma, a espada que ela estava usando não era ruim.
Ainda assim, eu era um homem. Não importava quantos anos eu tivesse por
dentro, ver espadas e armaduras robustas alinhadas assim ainda fazia meu coração
disparar, embora minha idade (e aparência) parecesse importar para um vendedor
que riu de mim, dizendo: “Eu não acho que isso serviria para você, criança.” Ele
ficou surpreso quando, depois, descobriu que na verdade eu era de nível
intermediário no Estilo Deus da Espada. Bem, de qualquer forma, não tínhamos
dinheiro, então eu só estava bisbilhotando.
De acordo com Geese, era neste ponto que a estrada divergia. Se seguisse
pelo caminho da montanha para o leste, encontraria uma grande cidade de anões.
A nordeste estavam os elfos e a noroeste a vasta terra que os hobbits habitavam.
Talvez a falta de uma Guilda dos Aventureiros nesta cidade fosse por uma questão
de localização.
Além disso, pelo visto, se entrasse nas montanhas, haveria uma fonte termal.
Uma fonte termal! Isso sim chamou a minha atenção.
— Ah, é? Isso parece interessante. Mas, Rudeus, essa não é a sua primeira
vez vindo aqui? Como sabe disso?
— E-eu li em um livro.
Isso estava escrito no guia Peregrinando pelo Mundo? De alguma forma, senti
que não. Ainda assim, era uma fonte termal. Isso parecia bom. Mas este mundo
certamente não teria yukatas. Ainda assim, imaginando Eris com seu cabelo
molhado e sua pele cor de pêssego, inconsciente do que estaria acontecendo
enquanto submergia na água quente…
Não, provavelmente não teriam algo como um banho misto. Ou teriam? Mas,
no caso de ter, o quanto isso não seria incrível? Agora realmente queria dar uma
olhada.
Embora dragões azuis fossem raros de se ver pelas montanhas, ainda havia
muitos monstros. Tentar passar por elas representaria um perigo considerável. Em
vez disso, Millis criou um atalho direto por onde os monstros não apareceriam. Eu
podia ver porque esse santo era tão adorado.
— Hein?!
Ele estava bem lá no alto. Podia sentir que estava caindo rapidamente. A força
do vento tornava o ato de respirar mais difícil. Ele estava perfurando as nuvens
enquanto o vento o perfurava.
— Eek!
Mas podia ouvir o grito saindo do fundo de sua garganta. Era o seu grito, mas
parecia tão distante que parecia que era outra pessoa que estava gritando. O grito
o lembrou de que isso era a realidade. Não sabia porque, mas estava no ar e caindo.
— Ah… ah!
Precisava fazer alguma coisa. Tinha que fazer algo ou iria morrer. Sim, morrer.
Não havia dúvida de que morreria. Se alguém caísse de algum lugar tão alto, então
morreria. Ele já sabia disso. Também sabia que estava se aproximando do solo
rapidamente.
— Waaaaaah!
Então sucumbiu ao medo e liberou toda a sua mana. E vento. Ele começou a
liberar vento. Parecia que isso estava atingindo-o por baixo. Quem foi que lhe
ensinou que um pássaro surfa pelo vento para voar no céu? Não conseguia se
lembrar.
Seu professor disse algo sobre… como voar? Isso mesmo, sobre como era
impossível. Não era possível voar – humanos não podem voar. Seria necessário
usar algo para fazer isso. Seu professor já havia tentado voar antes. Tentou, falhou
e colocou algo macio no chão, algo macio onde pudesse cair.
Era isso! Algo para suavizar a queda. Algo macio. Algo macio para o segurar.
Mas quão macio deveria ser? Como deveria fazer isso?
Não sei, não sei, não sei! gritou em sua cabeça. O que eu faço, o que eu faço,
o que eu faço?!
Ele conjurou água e tentou envolvê-la em torno de si. Não funcionou. Ela logo
se espalhou. Conjurou o vento e tentou se fortalecer novamente. Isso falhou. Não
iria funcionar. Conjurou a terra… mas não tinha certeza de como usá-la! Conjurou
fogo e… vento… e água? Terra? Não sabia. Simplesmente não sabia de mais nada!
— Aaah!
Caiu de cabeça.
Ele tinha cerca de dez anos de idade e suas feições juvenis estavam
contorcidas de medo.
— Hah, hah, hah… — Respirou fundo e começou a dar tapinhas em seu corpo.
Suas mãos agarraram punhados de cabelo prateado, com força suficiente para
arrancá-los. Ele estava verificando se seu corpo ainda estava inteiro. — Ah…? Hein?
— Quando olhou em volta, percebeu que não estava mais no céu. Estava em uma
cama macia. — Hah… — O menino cobriu o rosto com as mãos e soltou um suspiro
de alívio.
— Ei, Fitz, tudo bem? — Uma voz o chamou de cima. Outro garoto estava
pendurado de cabeça para baixo, olhando para Fitz da cama acima. Esse outro
jovem estava no auge da idade adulta. Era bonito o suficiente para cativar qualquer
pessoa que olhasse para ele, ou assim afirmava. Seu nome era Luke. — Você
estava fazendo muito barulho enquanto dormia. Teve aquele sonho de novo?
— Ah, sim… — O menino, conhecido como Fitz, balançou a cabeça vagamente
em resposta. De repente, percebeu que a área de sua virilha parecia estranha.
Curioso, olhou para baixo para descobrir que estava molhado.
Quando investigou mais, descobriu que encharcou não apenas a parte inferior
de sua roupa de dormir, mas também seus lençóis. Conseguia ver até o vapor
subindo.
— Você não é o único que teve uma experiência terrível naquele dia. — Luke
encolheu os ombros ao dizer isso, mas tinha uma expressão séria no rosto. Seu tom
era totalmente sincero. — Além disso, há muitos caras aqui que sujam os lençóis à
noite. As empregadas estão acostumadas. Agora se apresse, troque de roupa e
entregue as camisas ao encarregado da lavagem. Lady Ariel está esperando por
nós. — Assim que Luke terminou de falar, saiu do quarto.
Ele foi vítima do incidente que dizimou a Região de Fittoa. Foi transportado para
o ar, cem metros acima do solo. Como qualquer outra pessoa, Fitz não era exceção
à lei da gravidade, então caiu.
A única coisa incomum nele era que era um mago. E não apenas um mago
qualquer. Ele podia ter apenas dez anos, mas teve um professor excepcional e
estava pelo menos no nível intermediário em todas as escolas de magia, avançado
em várias e podia lançar feitiços não verbais.
Ele lutou enquanto estava no ar. Antes de chegar ao solo, conseguiu diminuir a
velocidade de sua queda e milagrosamente só quebrou as duas pernas ao pousar
no chão (colidir, na verdade). Sua mana foi completamente drenada e acabou
inconsciente.
Fitz acordou e descobriu que havia perdido tudo. Sua cidade natal, sua casa,
sua família. Ele ainda era tão jovem e em um instante se tornou um ninguém. Não
tinha para onde ir e ninguém em quem confiar, exceto a mulher cujo olhar ele
capturou, Ariel Anemoi Asura. Ela viu a maneira como Fitz usava magia livremente
sem quaisquer encantamentos, então o empregou. Depois disso, começou sua vida
no palácio real como guardião da segunda princesa.
Acordar mais tarde do que a princesa seria o suficiente para justificar uma
punição severa. Ou pelo menos deveria, mas Fitz tinha acordado depois de Ariel
várias vezes e nunca foi disciplinado.
— É uma bela manhã, não é? Luke, quais são os planos para hoje? — Ariel
esticou o corpo e saiu da cama, sentando-se à sua mesinha de maquiagem. Fitz
ficou atrás dela para lavar seu rosto e pentear seu cabelo.
— Depois do café da manhã, você tem uma reunião com os Lordes Datian e
Klein para conversar sobre… — Enquanto Luke traçava seu itinerário com calma,
Fitz desamarrou o cabelo dela de maneira rápida e cuidadosa. — À tarde, terá uma
reunião com Lorde Pilemon, e então o jantar será…
— “Lorde Pilemon”? Como se você não o conhecesse. Luke, esse é o seu pai,
não é?
Assim que Fitz terminou de arrumar seu cabelo, Ariel se levantou de sua cadeira
e ergueu os braços até a altura dos ombros. Fitz imediatamente começou a despi-
la. Normalmente, trocar as roupas da princesa seria um trabalho para uma de suas
damas de companhia, mas esse era outro costume que ela praticava desde que era
criança.
Fitz ficou confuso ao tirar as belas sedas que envolviam a vibrante pele branca
de Ariel, trocando-as por roupas que uma dama de companhia preparara com
antecedência. A roupa era complexa, com uma estrutura bizarra que ele nem sabia
como vestir. Mesmo assim, conseguiu colocá-la rapidamente em seu corpo.
Ele não sabia nem como vestir alguém e mesmo assim foi designado a esse
trabalho. Mas acabou ficando bastante hábil nisso. Mesmo um caipira como Fitz
poderia aprender isso depois de ser forçado a fazer a mesma coisa várias vezes.
— N-não!
Seu rosto ficou vermelho de pânico quando ele negou essa acusação. Ariel
soltou uma risadinha. Ela gostava de como o garoto era inocente, tanto que
frequentemente o provocava desse jeito.
— Acho que você está linda. — Luke era sempre aquele que pulava ao socorro
durante essas interações. Ele sorriu e apontou para a casa do botão que Fitz estava
procurando
— Ah, Luke, isso significa que está se apaixonando por sua mestra? —
murmurou Ariel. — Nesse caso, isso é equivalente a blasfêmia. Você não será capaz
de escapar da punição por isso.
— Ah cara… Bem, isso é bastante grave. Mas se é isso que minha mestra
deseja, então que seja.
— Sim, senhora!
Luke seguiu Ariel quando ela saiu. Fitz moveu-se para o seguir, mas parou
abruptamente para ver seu reflexo no espelho da mesinha de maquiagem. Ele
mostrava um jovem com uma aparência sombria e óculos escuros sobre os olhos.
O jovem permaneceu lá e torceu uma mecha do cabelo branco cortado curto em
torno de um de seus dedos. Durou apenas um momento. Então se virou e foi atrás
de Ariel.
Os nobres foram bastante críticos sobre o jovem guardião Fitz depois de sua
aparição abrupta no palácio real.
— Mas há tantos entre a Guilda dos Magos que nasceram em famílias mais
nobres…
Ele sempre usava óculos de sol. Na corte imperial, esconder o rosto sem
propósito era considerado falta de educação.
— Sim, ouvi dizer que “ficam tão felizes” só de ver Fitz e Luke caminhando
juntos.
Fitz estava sempre seguindo Ariel, e qualquer um poderia dizer que o menino
era bonito sob aqueles óculos escuros. Portanto, vê-lo com ela e Luke juntos
encorajou muitos a sonharem com fantasias selvagens.
— Sim, mas não há nada de “estranho” nisso. Tenho certeza de que só indica
que Luke finalmente notou a beleza dos homens também, não?
— E quem sabe? Mas o fato de a Princesa Ariel oferecer tanto apoio me faz
pensar. Talvez seja o filho ilegítimo de algum nobre de alto escalão.
— De fato. Vários anos atrás, fui visitar meu primo na Região de Fittoa. Aquele
primo compareceu à cerimônia de aniversário da neta de dez anos de Lorde Sauros.
— Ah, a neta do Lorde Sauros… Quer dizer a princesa macaca ruiva dos
Boreas?
— Sim, aquela com a reputação de que vai à escola só para bater em outras
crianças de sua idade. Aquela que negligenciou tanto os estudos que não conseguia
nem cumprimentar as pessoas direito. Aquela princesa macaca.
— Sim, bem, de acordo com a história do meu primo, aquela princesa macaca
mudou bastante. Ela cumprimentou as pessoas com educação, comportou-se de
uma maneira elegante e dançou magnificamente.
— Não, não é o caso. De acordo com meu primo, quando ele cumprimentou o
lorde suserano, Sauros gabou-se disso.
— Disso o quê?
— Que aquele que ensinou a sua neta era um menino dois anos mais novo que
ela.
— Minha nossa.
— Claro que o lorde não disse muito, mas ouvi que ele também não negou que
fosse verdade.
— Então essa é a história… Será que aquele jovem impressionante poderia ser
o garoto que Ariel reivindicou como seu guardião?
— Talvez.
— Então essa é a razão pela qual o menino tem tanta etiqueta, apesar de ser
um plebeu.
De acordo com Ariel, Fitz era ágil o suficiente para envergonhar os cavaleiros
em treinamento da corte. Ele também era versado em leitura, escrita e aritmética, e
tinha um conhecimento mais íntimo de magia do que até mesmo os professores da
Universidade de Magia. Sem mencionar que podia usar magia de nível avançado
sem quaisquer encantamentos, com apenas dez anos de idade!
— Hmm, por que não conferimos por nós mesmos? Tiremos a máscara daquele
garoto e vejamos quem ele realmente é…
— Eu não aconselharia isso. Se ele realmente for tão poderoso, você só estará
causando problemas para si mesmo.
Era assim que os nobres criticavam Fitz, fofocando maliciosamente sobre ele
enquanto assistiam, sem qualquer intenção de deixar suas hostilidades claras. Por
sorte, era justo isso que Ariel esperava que fizessem.
— Então, devemos fazer o filho de Lorde Tink entrar na Guilda dos Cavaleiros?
— Sim, ele é habilidoso em aritmética. Faça-o entrar na guilda e aprender
pessoalmente com o contador deles.
Era o início da tarde. Ariel estava se encontrando com o pai de Luke, Pilemon
Notos Greyrat. Pilemon liderava a lista de apoiadores dela. Embora não fosse bom
em julgamentos, ele era um jovem agindo como o Lorde Soberano da Região de
Milbotts. Cada vez que algo acontecia, fazia uma visita para discutir o futuro.
Ariel atualmente não tinha muitos apoiadores. Ainda não era adulta e, embora
fosse popular com o público em geral, não gozava do mesmo nível de aclamação
entre os nobres. Era por isso que ainda estavam estabelecendo as bases.
Foi por isso que Pilemon sugeriu capturar aqueles que permaneciam indecisos.
Isso significava conquistar nobres do interior que não se envolviam nas disputas
políticas do continente, bem como nobres de escalão médio e inferior que não
tinham muito poder. Então usaria seu poder para nomeá-los como oficiais do
governo, colocando aqueles que eram excepcionais em posições inferiores (embora
importantes).
A estratégia deles era para o futuro, para algo dentro de dez ou vinte anos.
Dentro de uma década, aqueles que apoiassem Ariel graças ao trabalho de Pilemon
estariam em várias posições-chave (mesmo que não estivessem no topo) e
forneceriam um grande apoio para ela.
Primeiro, trabalharam para suprimir a força dos militares e torná-la sua. Nesta
era de paz, soldados e cavaleiros não eram tão valorizados quanto antes. Seu
trabalho consistia em eliminar monstros e ladrões, no máximo. Pode-se dizer que
não tinham poder político, razão pela qual as outras facções não tentaram obter seu
apoio. Ainda assim, se algo acontecesse, os militares seriam os únicos a agir.
O Reino Asura não via uma guerra civil há muito tempo. Enquanto não houvesse
nenhuma prova sólida deixada para trás, até mesmo assassinato na corte seria
permitido. Consequentemente, os nobres esqueceram o poder dos militares. Ariel e
Pilemon, por outro lado, trabalharam primeiro e principalmente para obter o apoio
militar.
— De fato. — Pilemon era o chefe da família Notos Greyrat, mas era mais jovem
que os outros Greyrat e não tinha muita popularidade ou dinheiro.
Ariel estava na mesma. Fazia parte da família real, então podia usar o dinheiro
livremente, mas ficava claro à primeira vista que havia uma enorme lacuna entre ela
e os outros candidatos. Sua única vantagem era sua popularidade com o povo, e
isso seria fácil de perder. Os outros príncipes não fizeram muito para mudar o
coração das pessoas. A popularidade era muito instável para ser usada como base.
Mas exatamente contra quem ela estava lutando, e com que propósito?
— Sim, mas é claro. Eu sei disso. Para obter a coroa, é necessário seguir por
uma estrada sinuosa.
Foi por isso que Ariel decidiu se tornar a rainha. Ela havia começado a trilhar o
caminho que a levaria ao trono.
Enquanto os que estavam na corte tinham sua atenção voltada para Fitz, Ariel
trabalhava nos bastidores para fortalecer seus laços com os nobres influentes que
a apoiavam, silenciosamente travando uma guerra política própria.
De armas a armaduras, o equipamento era perfeito. Ariel havia obtido tudo logo
após seu incidente anterior. Apenas a varinha que Fitz segurava era diferente. Era
uma pequena, do mesmo tipo que seria dado a um aprendiz que estava começando
a aprender magia. Não era um item mágico nem um instrumento mágico.
— Sim. E Princesa Ariel, esta pode ser a abertura perfeita para alguém
descobrir o que estamos planejando, então não deixe nenhuma lacuna transparecer.
— De fato.
— Ha ha.
Pilemon falou apenas isso ao seu filho antes de partir. Enquanto observava o
pai ir embora, Luke se curvou conforme o costume exigia.
— Existe algum tipo de sistema com esse sino? Tipo, você bate um certo
número de vezes para pedir comida?
Ultimamente, ele fazia perguntas desse tipo a Luke o tempo todo, inclusive
sobre modos na hora das refeições e etiqueta de saudação. O próprio Fitz tinha
pouco mais do que um vago conhecimento dessas coisas, razão pela qual outros
nobres riam de cada um de seus passos. Cada vez, ficava vermelho de vergonha e
então perguntava a Luke a etiqueta apropriada para que pudesse acertar
perfeitamente na próxima vez.
— Hee hee. — Ariel riu diante da conversa. — Fitz, você finalmente começou a
se acostumar com a etiqueta da corte, não é?
— Não tenho certeza disso. Bem, os outros nobres parecem me odiar. — Fitz
apertou os lábios em outro beicinho e se virou para olhar para Luke. O último apenas
desviou o olhar como se o assunto não tivesse nada a ver com ele.
— Não…
— Eu não sei o paradeiro de sua família. Como você sabe, estão espalhados
por todo o mundo.
— Não, eu não seria capaz de fazer nada sozinho, então estou grato pelo que
você fez.
A expressão de Ariel ficou pensativa ao ver como Fitz reagiu com bravura.
Então, de repente, ela bateu palmas.
— Isso mesmo! Fitz, venha ao meu quarto esta noite.
— Ouvi dizer que você tem tido pesadelos ultimamente, fazendo muito barulho
durante o sono. Se dormir ao lado de alguém, isso pode aliviar um pouco o
problema, não?
Quando a conversa mudou de repente para Luke, ele deu um sorriso afetado e
apropriado e disse:
— Por que não aceitar a oferta dela? Pense nisso como uma recompensa.
— Uma recompensa…?
— Bem, tenho certeza de que vai despertar alguns rumores estranhos, mas
você deve ficar bem. Você suportou a fofoca deles até agora, certo?
Fitz não tinha aliados na corte. Assim que percebeu isso, soltou um suspiro.
O outro homem era um sujeito corpulento que parecia ter cinquenta e poucos
anos. Uma garota seminua estava sentada em seu colo, e sua mão estava estendida
em direção ao seu traseiro.
— Um pouco suspeitos, eu diria. — Sua voz estava fria e seus olhos ardiam de
luxúria enquanto observava a garota. Ela corou e olhou para baixo enquanto ele
esfregava sua bunda.
— Recebi relatos de que ela inseriu seus próprios homens na Guilda dos
Cavaleiros e na Guarda Imperial.
— A Guilda dos Cavaleiros e a Guarda Imperial? Droga, aquela Ariel. Ela
pretende dar um golpe de estado?
— Impossível. Ela não é tão impaciente. Tenho certeza de que pretende apenas
aumentar seus aliados.
— Sim, de fato. Mas existem muitas pessoas comuns entre a Guilda dos
Cavaleiros e a Guarda Imperial. São as mais simples com quem ela pode trabalhar.
Tenho certeza que isso é apenas o começo de seus planos.
— Hm…
— Acabei deixando isso passar em branco. Parece que minha irmã mais nova
é muito inteligente. — Havia admiração em sua voz enquanto falava.
O gordo apenas bufou de tanto rir enquanto brincava com o corpo da garota.
O gordo levou o dedo, que a jovem estava lambendo, aos lábios e o envolveu
com a língua.
— Fico feliz que você veio. Já podem sair — disse ela às duas damas de
companhia. Cada uma delas fez uma reverência antes de passar pela porta. Fitz e
Ariel ficaram subitamente sozinhos em seu quarto mal iluminado. — Algo de errado?
Venha aqui e sente-se ao meu lado.
Fitz moveu seu corpo para mais longe. Então, ligeiramente em pânico, ergueu
a mão para detê-la.
Ariel gradualmente se aproximou mais e Fitz logo colocou mais distância entre
eles.
— Não precisa se assustar com isso. É verdade, estou empolgada com o brilho
da sua pele, mas está tudo bem. Eu não vou fazer nada. Agora, deite-se na cama.
— Não, estou dizendo… Eu sou, você sabe. Você sabe disso, né? Que na
verdade eu sou…
Por fim, ela encurralou Fitz na beirada da cama. Ariel colocou a mão em seu
ombro e o forçou contra o colchão.
— É por isso que gostaria que você também soubesse mais sobre mim.
Fitz fechou os olhos com força, como se fosse um virgem. Foi demais para ele,
então cedeu, entregando seu corpo às mãos dela. Afinal, ele não tinha parentes a
quem recorrer, então não podia ir contra a vontade da princesa.
— Brincadeirinha. Vou parar por aqui — disse a Ariel. Ela se afastou dele e se
jogou ao seu lado, deitada de costas.
— Um…
— Eu te disse, não disse? Que só vamos dormir juntos. Você entendeu algo
errado? Pensou que eu iria me forçar sobre você?
Fitz ficou com uma tonalidade vermelho brilhante até as orelhas. Ariel riu
quando viu isso.
— É verdade, ver a cara que você está fazendo agora me dá vontade de fazer
isso, mas hoje eu realmente vou apenas dormir ao seu lado. — Ela olhou para cima
e exalou.
Fitz permaneceu confuso, sem saber o que fazer. Seu corpo ficou rígido.
Por um momento, o silêncio caiu entre os dois. Quem finalmente o quebrou foi
Ariel.
— Sim, sobre aquele dia. Sobre Derek sendo assassinado por aquele monstro,
e aquilo se virando para me devorar em seguida. Aquele pesadelo. — Fitz voltou a
olhar para o rosto de Ariel. Seu sorriso gentil usual se foi, deixando uma expressão
vazia e transparente. — Eu tenho esse sonho o tempo todo. Luto em meu sono e
finalmente acordo quando tudo acaba. Já faz dias.
— Sim. — Ariel assentiu e apertou a mão dele com a sua. Seus dedos eram
delicados e finos, tanto que pareciam poder quebrar a qualquer momento. No
entanto, a força de seu aperto assegurou-lhe que ela estava cheia de vida. — Fitz,
não consigo entender sua dor, mas você não foi o único que sentiu dor naquele dia.
Se está passando por um momento difícil, pode confiar em alguém.
— Obrigado…
Essas palavras soaram estranhamente relaxantes para Fitz. Era como se ela
soubesse que ele não conseguia relaxar desde o Incidente de Deslocamento. A
princesa percebeu como o garoto lutou para ganhar sua aprovação, blefando para
que não pensasse que era inútil, trabalhando duro para que não o dispensasse de
imediato.
— Agora eu entendo…
Nada daquilo foi necessário. Ariel certamente o teria mantido ao seu lado,
mesmo se não pudesse usar magia, porque ele era alguém que podia entender sua
dor.
— Princesa Ariel?
— O que foi?
— É bom que faça. Mas, por enquanto, espero que faça isso em meus sonhos.
— Ela riu.
Como se encorajado por sua risada, Fitz sentiu um sorriso aparecendo também
nos seus lábios. Foi o primeiro desde o incidente, há um ano.
— Hã…?
Havia uma presença no quarto. Apenas alguns momentos atrás, as únicas que
sentiu eram a sua e de Ariel, mas havia alguém de pé ao lado da cama. Uma jovem
garota. Ela estava pairando ao lado da cama deles, usando roupas que mal
escondiam suas regiões inferiores, e em sua mão carregava uma enorme faca.
Fitz percebeu que era uma assassina, mas antes que pudesse gritar qualquer
coisa, seu corpo já estava se movendo. No mesmo instante em que saltou para
proteger o corpo da princesa, estendeu as duas mãos em direção à garota e lançou
sua magia.
— Explosão de Ar!
— Gah! — A magia, que havia sido lançada sem nenhum encantamento, atingiu
a garota em cheio, jogando-a para longe de onde Ariel estava deitada.
— Princesa! É uma assassina! Por favor, fique atrás de mim! Luke, é um ataque
inimigo! — A voz de Fitz ecoou. O quarto dos guardiões ficava bem ao lado do quarto
da princesa, então Luke deveria aparecer logo.
— Uff…
Fitz virou as palmas das mãos para fora e liberou sua magia.
— Hah! — A mana fluindo de suas mãos não tinha nenhuma forma. O som de
uma explosão foi acompanhado pelo da cama dossel sendo destruída, deixando um
buraco na parede.
Este era um feitiço de nível avançado, Estrondo Sônico. Não havia muitos que
poderiam enfrentar uma explosão como aquela e sobreviver. No entanto, a
assassina ainda estava viva. Ela fez parecer que estava correndo em direção a ele
antes de pular para o lado. Uma finta. Intencional ou por coincidência, a assassina
conseguiu escapar do ataque de Fitz. Então chicoteou sua faca no ar. E voou direto
para Ariel.
— Ah…!
Em segundos, ela foi enviada voando pelo ar pela segunda vez graças à magia
de Fitz. O impacto direto cortou todos os quatro membros da assassina, e ela ficou
cambaleando no ar, caindo pelo buraco na parede para a escuridão da noite.
— Hah… hah…
A mudança repentina da defesa para o ataque deixou Fitz sem fôlego enquanto
olhava para fora do buraco. Era uma noite sem lua, então estava excepcionalmente
escuro lá fora. Ele não tinha certeza do que viu abaixo, mas a assassina havia caído
com os membros decepados. Não havia como ainda estar viva.
— Uff…
— Ah… Princesa Ariel, você está bem? — Ele correu de volta para o quarto
para confirmar que ela estava segura. No meio do caminho, suas pernas se ficaram
moles. — H-hein? — As pontas dos dedos de seus pés ficaram dormentes e ele
desabou no local, com seu corpo cedendo ao peso.
Veneno…! Já era tarde demais quando ele percebeu, e todo o seu corpo
começou a tremer enquanto sua consciência ficava nublada. Magia de
Desintoxicação…! Se Fitz fosse um mago comum, ou se não fosse capaz de
executar um feitiço não verbal, provavelmente teria morrido na mesma hora.
Fitz havia sido infectado pelo veneno, mas o corte em seu dedo era tão pequeno
que apenas um pouco dele entrou em seu sistema. Graças à sua resposta rápida
ao usar magia de desintoxicação, escapou com vida por muito pouco e não houve
efeitos prolongados do veneno.
Quando ele voltou ao palácio, as impressões dos nobres sobre Fitz haviam
mudado. Foi por causa da assassina que derrotou naquele dia. Seus restos mortais
haviam caído no pátio, onde os guardas acabaram encontrando. Ela foi identificada
como uma assassina famosa que trabalhou no Reino Asura pelos últimos dez anos,
conhecida como Corvo do Olho Noturno.
Vários nobres já tinham sido vítimas de sua lâmina. O fato de que Fitz a derrotou
demonstrou que sua força era genuína. Como usava magia não verbal e
normalmente não falava muito, foi apelidado de “Fitz Silencioso” e reconhecido por
todos os nobres como digno de sua posição como guardião de Ariel.
Cada um deles foi despachado pelas mãos competentes de Fitz, mas nunca
pararam e nenhum culpado foi identificado. A Guilda dos Cavaleiros conduziu suas
investigações, mas alguém estava pressionando-os, deixando os casos sem
solução.
Ainda resta algum tempo em nossa história até que os destinos desse jovem e
de Rudeus Greyrat se entrelacem.