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Capítulo 01 - Porto Vento

Meu nome é Rudeus Greyrat e sou um menino bonito que acabou de


comemorar o décimo primeiro aniversário há alguns dias. Como um mago
habilidoso, ganhei notoriedade por minha habilidade de usar magia sem entoar
feitiços e minha maneira única de misturar os diferentes elementos.

Um ano atrás, fui pego em um desastre mágico e teletransportado para o


Continente Demônio. Minha cidade natal ficava exatamente no lado oposto do
mapa, na região de Fittoa do Reino Asura, o que significava que tinha que viajar
meio mundo para retornar.

Tornei-me um aventureiro para ganhar dinheiro ao começar a longa viagem de


volta para casa. No ano passado, consegui atravessar com sucesso o meu caminho
através do Continente Demônio.

Porto Vento1, a única cidade portuária do Continente Demônio, tinha uma


paisagem urbana com colinas onduladas. Da entrada, já tinha uma vista panorâmica
de toda a cidade. A maioria das casas era feita de barro e pedra no estilo típico do
continente, mas havia algumas casas de madeira aqui e ali. Nos limites da cidade
ficava o porto. Era ali, em vez da entrada principal, que acontecia a maior parte do
rebuliço, exatamente onde os vendedores ambulantes se estabeleciam.

Era uma cidade com um sabor único, diferente das outras que eu tinha visto
antes. Além do porto, em frente à cidade, o mar se espalhava de forma vasta e larga.
Quando foi a última vez que vi o oceano? Foi provavelmente na época em que
frequentei uma escola secundária no litoral.

Este mundo era diferente do nosso, mas o mar não. Era da mesma cor azul,
tinha o mesmo som de ondas quebrando e pássaros que pareciam gaivotas. Havia
até veleiros. Foi a primeira vez que coloquei meus olhos em um. De vez em quando
os via em filmes, mas ver a coisa real – feita de madeira e com suas velas de pano
desenroladas, deslizando pela água – fez meu coração bater como se eu ainda
fosse um menino.

Devia haver algum mecanismo neste mundo que permitia a um barco navegar
contra o vento. Na verdade, considerando o mundo em que eu estava, talvez os
impulsionassem para frente usando magia de vento.

— Olhe!

No momento em que chegamos na cidade, a garota ruiva cavalgando o lagarto


comigo de repente deu um salto. O nome dela era Eris Boreas Greyrat. Ela era neta
de Sauros, o Lorde Suserano da região de Fittoa do Reino Asura, e também minha
aluna quando trabalhei como tutor para a casa deles. Era feroz e mimada quando
nos conhecemos, mas se tornou mais flexível recentemente – o suficiente para ouvir
o que as pessoas tinham a dizer. A garota foi teletransportada comigo, e eu
precisava levá-la de volta à segurança de sua casa.
— Olha, Rudeus! O oceano! — As palavras que passaram por seus lábios
estavam na fluente língua do Deus Demônio. Eu havia enfatizado a importância de
conseguir fazer isso o tempo todo; Ruijerd e eu também falávamos na língua do
Deus Demônio tanto quanto possível. Como resultado, as habilidades de linguagem
de Eris aumentaram dramaticamente nos últimos tempos. Era como suspeitei: a
maneira mais rápida de melhorar em uma língua estrangeira seria usá-la com a
maior frequência possível. É verdade que a garota não sabia ler nem escrever na
língua em questão. Não era um idioma tão difícil, mas também não era algo que
pudesse ser dominado em um apenas ano.

Por outro lado, eu não tinha a ensinado nenhuma magia desde que fomos parar
no Continente Demônio. Portanto, ela não só não podia lançar feitiços não verbais,
como provavelmente também havia esquecido os próprios cânticos.

— Eris, espere! Aonde você vai? Nós nem descobrimos onde vamos passar a
noite!

Ela parou no meio do caminho quando a chamei. Foi a terceira vez que tivemos
essa discussão desde que fomos parar no Continente Demônio. Na primeira vez, a
garota se perdeu; na segunda, brigou em algum lugar. Eu não queria um terceiro
incidente.

— Ah, sim! Vou me perder de novo se não decidirmos sobre uma pousada logo!
— Ela saltou de volta para nós, constantemente olhando por cima do ombro na
direção do mar.

Pensando bem, esta foi provavelmente a primeira vez que viu algo assim. Havia
alguns rios perto de Fittoa e, aparentemente, Sauros a levava lá em seus dias de
folga e a deixava brincar na água. Infelizmente, nunca fui com eles, então não tinha
ideia do quanto ela sabia sobre corpos d’água.

— Podemos nadar?

Inclinei a cabeça diante de suas palavras.

— Você quer nadar no porto?

— Isso!

Eu podia ter desejado isso por motivos egoístas, mas era um desejo destinado
a ser insatisfeito. Nomeadamente porque faltava um componente importante nesta
equação.

— Você não tem um maiô, tem? — perguntei.

— O que diabos é um maiô? Eu não preciso de um!

Sua resposta foi tão chocante que não consegui esconder minha confusão. O
que diabos é um maiô, eu não preciso de um, ela disse. Então pretendia nadar
totalmente nua…? Não, de jeito nenhum, não poderia ser isso. O mais provável é
que pretendia nadar usando suas roupas de baixo. A imaginei vestida com nada
além de calcinha, com água caindo sobre seu corpo. O tecido úmido grudaria em
seu corpo e, através do tecido transparente, eu seria capaz de ver a cor de sua pele,
bem como as pequenas protuberâncias em seu peito.

Por que nunca me juntei a eles quando ela foi brincar na água em Fittoa? Ah, é
claro, porque estava ocupado. Mesmo nos meus dias de folga, estava preocupado
com alguma coisa. Ainda assim, deveria ter ido junto ao menos uma vez.

Não, agora não era hora de pensar nisso. Eu precisava me concentrar na cidade
bem diante de mim. Viver o agora. Isso mesmo, viver o agora! Woo-hoo, o oceano!

— Não, você não deveria nadar neste oceano. — Uma voz cortou tudo como
se fosse um balde de água fria.

Quando olhei para trás, Ruijerd estava sentado ali com a cabeça raspada e uma
cicatriz cruzando o rosto, como um yakuza. Seu nome completo era Ruijerd
Superdia. Ele era um demônio que amava as crianças e assumiu a responsabilidade
de nos escoltar desde o início, quando estávamos tão perdidos que não sabíamos
nem onde estávamos. Agora que estava careca, era impossível dizer que tinha o
infame cabelo verde-esmeralda da raça Superd. Neste mundo, demônios com
cabelo verde-esmeralda eram considerados um símbolo de medo. O homem cortou
o seu por nossa causa. Restaurar a honra ao nome de seu povo era apenas uma
maneira de pagar minha dívida para com ele.

— Há muitos monstros aí.

Uma joia vermelha incrustada na testa de Ruijerd o fornecia um tipo de sexto


sentido. Ele agia como um radar capaz de detectar a presença de todas as criaturas
vivas a um raio de várias centenas de metros. Com uma habilidade tão conveniente,
era fácil pensar que poderíamos despachar rapidamente todas aquelas criaturas do
oceano, mas talvez aquilo não fosse tão poderoso quanto eu pensava. Talvez essas
profundezas tenebrosas fossem impenetráveis.

Nah. Mesmo assim, ainda devíamos poder nadar um pouco, certo? Nadar no
porto poderia ser bem perigoso, mas eu poderia pelo menos usar magia da terra em
uma praia próxima para fazer nossa própria piscina.

Não… ainda havia uma chance de ser perigoso. Havia bestas lá fora com seus
próprios poderes. Alguns deles poderiam ser capazes de atravessar minha barreira.
Poderia ser um encontro sexy se fosse com um polvo, mas se fosse um tubarão,
estaríamos em um tipo de reconstrução das cenas de Tubarão.

Havia poucas escolhas. Seria, provavelmente, melhor desistir da ideia de nadar


no oceano. Não havia mais nada que se pudesse fazer.

— Nada de banho no mar desta vez. Vamos encontrar nossa pousada e então
visitar a Guilda dos Aventureiros.

— Certo… — Eris parecia abatida.


Hmm. Eu ainda estava muito interessado em ver como seu corpo estava ficando
tonificado. Não tivemos muitas oportunidades de verificar o crescimento um do outro
no último ano. Era difícil avaliar qualquer coisa através de suas roupas, mas se
estivéssemos na praia aberta, eu talvez pudesse ver um pouco mais. Sim, isso
mesmo, devíamos fazer isso.

— Mesmo que não possamos entrar na água, poderíamos pelo menos brincar
na praia, certo?

— Na praia?

— Há algo chamado areia por perto do oceano. Na beira da água, a areia forma
uma margem bem grande — expliquei.

— E que parte disso devia ser divertida? — perguntou Eris.

— Na praia, você pode se molhar e…

— Rudeus, você está com aquela expressão estranha no rosto de novo.

— Ugh. — Pelo visto, minhas expressões mudavam muito facilmente de acordo


com minhas emoções.

Enquanto eu tentava tirar o olhar lascivo do meu rosto, Eris voltou os olhos para
o oceano e sorriu.

— Mas parece interessante! Depois vamos fazer isso! — Ela alegremente deu
um salto e voou pelo ar, retornando ao lagarto. Foi um salto incrível. Apenas o som
de sua decolagem me fez pular – foi como o ruído de uma batida surda. A garota
realmente tonificou suas pernas e parte inferior do corpo. No momento isso
realmente complementava sua constituição, mas eu a imaginava ficando ainda mais
forte e musculosa no futuro, e isso me preocupou um pouco.

Assim que decidimos nossa pousada e embarcamos em nosso lagarto, fomos


direto para a Guilda dos Aventureiros. Uma multidão diversificada de aventureiros
clamava ao redor da Guilda dos Aventureiros de Porto Vento. Não era uma visão
estranha, mas parecia que havia um número considerável de humanos presentes
no local. Depois que cruzasse para o Continente Millis, seus números de certo
aumentariam exponencialmente.

Quando fui verificar o quadro de avisos, como sempre fazia, a expressão no


rosto de Ruijerd era incerta.

— Não íamos atravessar o mar de imediato?

— Só estou olhando. De qualquer forma, ouvi falar que a renda no Continete


Millis é melhor.
Seria possível ter uma renda melhor no Continente Millis já que a moeda era
diferente. A moeda do Continente Milis era dividida em seis tipos: o dólar real, o
dólar geral, moedas de ouro, moedas de prata, moedas de cobre grande e moedas
de cobre. Comparando isso com a moeda do Continente Demônio, mais barata, que
era a moeda de pedra:

1 dólar real = 50.000 moedas de pedra;

1 dólar geral = 10.000 moedas de pedra;

1 moeda de ouro = 5.000 moedas de pedra;

1 moeda de prata = 1.000 moedas de pedra;

1 moeda de cobre grande = 100 moedas de pedra;

1 moeda de cobre pequena = 10 moedas de pedra.

Uma missão de rank B no Continente Demônio rendia cerca de cinco a dez


moedas de sucata. Isso seria convertido em 150 a 200 moedas de pedra. Se as
missões de rank B do Continente Millis valessem – suponhamos – cinco moedas de
cobre grande, isso daria 1.500 moedas de pedra. Isso era dez vezes mais. Seria
mais fácil juntar dinheiro no Continente Millis.

Dito isso, se tivéssemos tempo para matar antes que nosso navio estivesse
pronto, provavelmente aceitaríamos um dos empregos locais. Geralmente, isso
significaria missões de rank B. As missões de rank A e S não eram apenas
perigosas, como a maioria delas levava mais de uma semana para ser concluída.
Se quiséssemos uma renda diária consistente, tarefas de rank B eram nossa melhor
opção. Também era por isso que eu não tinha planos de elevar nosso grupo
ao rank S, porque isso significaria que não poderíamos mais aceitar missões
de rank B.

Na verdade, como um grupo de rank A, já poderia aceitar missões de rank S,


então sempre questionei a necessidade de existir um rank S no sistema de
classificação de grupos. Quando perguntei a um dos membros da guilda sobre isso,
me disseram que havia benefícios especiais para alguém que subisse para o rank S.
Não perguntei mais, mas imaginei que isso significava obter descontos maiores para
hospedagem, receber empregos de melhor qualidade na guilda ou a garantia de que
fariam vista grossa para alguns dos comportamentos ilegais de um grupo. Ou algo
do tipo.

Aqueles que se beneficiavam mais com essas vantagens eram principalmente


os aventureiros que mergulhavam em labirintos. Nosso grupo não tinha planos
assim. Era perigoso e demorava dias para terminar tal empreendimento. Nossas
missões eram principalmente de rank B, e não tínhamos planos de subir para
o rank S nem tão cedo.

Eris, é claro, discordava nesse ponto.


Desacordos à parte, éramos aventureiros interessados principalmente em
ganhar dinheiro, então se ir para o Continente Millis era a maneira mais rápida de
fazer isso, embarcar em um navio o quanto antes era do nosso interesse.

— A propósito, de onde saem os barcos? — perguntei.

— Do porto, é claro.

— Sim, mas de que lugar do porto?

— Pergunte a alguém — disse Ruijerd.

— Sim senhor.

Fui até o balcão. Atrás dele estava uma mulher humana. Na verdade, a maioria
dos funcionários tendia a ser mulheres e, por algum motivo, tendiam a ser
generosamente dotadas, provavelmente para fins estéticos.

— Eu gostaria de ir para o Continente Millis — expliquei. — Você sabe o que


devo fazer para chegar lá?

— Por favor, encaminhe essas perguntas ao posto de controle.

— Posto de controle?

— Depois de subir em um barco, você estará além das fronteiras de nosso país.

Em outras palavras, a guilda não tinha jurisdição sobre viagens internacionais,


portanto, seu pessoal não tinha a responsabilidade de me orientar nesses assuntos.
Hm. Nesse caso, era hora de ir em direção ao posto de controle. Então, quando
estava prestes a pedir uma explicação mais detalhada…

— Ei, você!

Uma voz alta ecoou pelo lugar. Quando olhei para trás, Eris havia socado algum
homem humano. Parecia que nossa ogiva nuclear estava se sentindo
particularmente explosiva.

— Quem e onde você pensa que estava tocando?!

— F-foi um acidente! Afinal, quem iria querer tocar em um traseiro igual ao seu?

— Eu não me importo se foi um acidente ou não! Não aceito suas desculpas!


— Eris tinha se tornado bastante proficiente na língua Demônio. Quanto melhor
ficava, mais frequentemente entrava em brigas. No final das contas, parece que
saber o que os outros falavam não era algo lá muito bom.

— Gahahaha! O que é isso, uma briga?!

— Vá em frente, pegue-o!
— Vamos lá, não deixe uma criança chutar seu traseiro!

Brigas entre os membros da guilda eram uma ocorrência diária tão comum que
a guilda nem se importava em se envolver. Na verdade, parte do pessoal até
participava fazendo apostas.

— Vou esmagar você sob meus pés!

— M-me desculpe, eu admito a derrota. Por favor, deixe-me ir, não agarre minha
perna, paaaare!

Enquanto eu estava distraído, Eris jogou o homem no chão. Ultimamente, ela


se tornou uma especialista em enrascar as pessoas contra a parede. Iria avançar
sem aviso e dizimar seu oponente com uma precisão incrível. No tempo que passei
me perguntando com o que poderia estar chateada, a garota já tinha seu pé
pressionado firmemente no ponto fraco de seu oponente. Aqueles aventureiros
de rank C não eram páreo para ela.

Sempre que suas brigas chegavam a um certo ponto, Ruijerd intervinha.

— Pare — disse.

— Sai dessa, eu não vou parar!

— Você já ganhou — disse Ruijerd. — Já chega.

O mesmo espetáculo de sempre. Eu realmente não poderia impedir.


Principalmente porque minha maneira de impedi-la era jogando meus braços em
volta dela por trás, então minha vida estaria em perigo.

Alguém gritou:

— Um careca e uma ruiva feroz…! Vocês poderiam ser o Fim da Linha?

O silêncio caiu no salão, e então:

— Fim da Linha… Você quer dizer aquele demônio da raça Superd…?

— Idiota! O nome do grupo. Todos os últimos rumores foram sobre esses


falsários!

— Também ouvi rumores sobre a coisa real.

Hein?

— Ouvi dizer que são brutais, mas ele não é um cara de coração ruim.

— Então ele é brutal, mas é legal? Vamos lá, isso é contraditório.


— Não, eu quis dizer que nem todos são brutais. — A guilda mergulhou em
murmúrios abafados.

Foi a primeira vez que passamos por algo do tipo. Pelo visto, nosso grupo havia
se tornado bastante famoso. Acho que, no final das contas, não precisaríamos
divulgar o bom nome de Ruijerd desta vez, hein?

— Bem, eles são um grupo de rank A com apenas três pessoas.

— É, isso é incrível. Sendo verdade ou não, devem ser eles.

— O Cão Louco Eris e o Cão de Guarda Ruijerd, certo?

Os dois tinham apelidos! Cão Louco e Cão de Guarda, hein? Fiquei curioso
sobre o motivo para ambos serem cães. Além disso, que tipo de cão será que eu
era? Tentei imaginar isso por um minuto. Certamente não seria um cão de briga. Eu
não tinha feito nada grande o suficiente para ganhar tal título, e também não parecia
algo galante. No passar do tempo, fui sempre o líder do grupo. Então, talvez um
nome mais intelectual, como Cão Fiel.

— Então aquele anão ali deve ser o Mestre do Canil Ruijerd!

— Ouvi dizer que o Mestre do Canil é o mais desagradável de todos.

— Sim, tudo o que ele fez foram coisas horríveis.

Como assim!!

Não só o apelido era diferente do que eu imaginava, como nem se lembravam


do meu nome! Não, espera, mas era verdade que eu usava o nome de Ruijerd o
tempo todo, certo? Ainda assim, sempre que eu fazia algo bom, sempre proclamava:
“Sou o Ruijerd do Fim da Linha, e não se esqueça disso!” Enquanto isso, toda vez
que fazia algo ruim, gargalhava alto e dizia: “Meu nome é Rudeus, bwahahaha!”
Então, não deveriam ter confundido os dois, certo?

Hmm. Depois de um ano inteiro de trabalho árduo, foi um pouco chocante


descobrir que as pessoas se lembravam do nome de todos, menos do meu. Ah,
bem. Parecia que tinha uma imagem negativa ligada a mim, mas pelo menos as
pessoas não estavam usando meu nome verdadeiro. Além disso, Mestre do Canil
não era um título tão ruim. O que será que Eris pensaria disso?

— Mas ele é muito pequeno.

— Aposto que também é pequeno lá, já que é criança e tudo mais!

— Ei, ei! Dizem que se você o insultar, ele solta os cães em você!

— Gahahaha!
Antes que eu percebesse o que estava acontecendo, estavam todos rindo de
mim por causa de algo completamente sem sentido. Entretanto, isso só era pior para
eles. Eu ainda estava crescendo (e muito bem), então, sim, podia ser só um brotinho
de bambu no momento. Mas o dia em que aquilo cresceria e se tornaria uma árvore
robusta e magnífica não estava longe.

Ah, esqueça isso. Se continuássemos sendo ridicularizados assim, Eris voltaria


ao modo de raiva demoníaca… ou assim pensei. Em vez disso, ela continuou
enviando olhares na minha direção enquanto corava. Aww, que adorável.

— Eris, qual é o problema?

— N-não é nada!

Heh heh heh. Se você está tão interessada, por que não dá uma olhada
enquanto eu tomo banho esta noite? Não se preocupe, explicarei tudo para Ruijerd.
Se quiser, podemos até ficar juntos. Claro, uma mão, perna, corpo ou mesmo uma
língua pode acabar escorregando no processo…

De qualquer forma, chega de brincadeiras. Era hora de seguirmos para o posto


de controle. Eu sairia do lugar com toda a dignidade esperada de um “Mestre do
Canil”.

— Senhorita Eris, Senhor Ruijerdoria! Vamos embora!

— Por que você distorceu meu nome desse jeito…?

— Hmph!

Partimos com a atenção da maioria da guilda direcionada a nós três.

Chegamos ao posto de controle. A cidade estava localizada no Continente


Demônio, mas o barco que queríamos embarcar nos levaria ao País Sagrado de
Millis. Se estivesse carregando alguma bagagem, teria que pagar impostos, e a
entrada no próprio país também custaria dinheiro. Isso era para prevenir o crime ou
simplesmente uma oportunidade para lucrar. Deixando minhas curiosidades de lado,
pagaríamos se dissessem que fosse necessário.

— Quanto isso nos custará? Nosso grupo é composto por dois humanos e um
demônio.

— Dois humanos seriam cinco moedas de prata. Qual tribo de demônios?

— Superd.
O oficial do posto de controle desviou o olhar para Ruijerd com um sobressalto.
Quando percebeu que ele era careca, soltou um suspiro pesado, como se estivesse
incomodado por apenas se dirigir a nós.

— Serão duzentas moedas de minério verde para o Superd.

— D-duzentas?! — Agora foi a minha vez de ficar em choque. — P-por que tão
caro?!

— Tenho certeza que você já sabe a resposta.

Claro que sabia! Eu tinha viajado com Ruijerd por um ano inteiro, como não
saberia? Havia tanto desprezo pela tribo Superd que todos os seus membros foram
perseguidos sem motivos. Mesmo assim, essa taxa era muito alta.

— Mas por que uma quantia tão incrivelmente alta?

— Não me questione. Pergunte à pessoa que decidiu sobre isso.

Eu pressionei.

— Bem, por que você acha que é tão caro?

— Uh, bem, para prevenir o terrorismo, tenho certeza, no caso de alguém trazer
algum como escravo e o soltar no Continente Millis. — Bem, essa era a sua
interpretação. Em outras palavras, eles estavam tratando o Superd como se fosse
uma bomba-relógio. — Vocês são aqueles caras, Fim da Linha, certo? Do falso
Superd. Quando embarcarem, verificarão sua sub-raça. Não seja inflexível e
desperdice duzentas moedas de minério verde aqui, já que de qualquer jeito vão
descobrir tudo.

As palavras de cautela do oficial foram um tipo de bênção disfarçada. Isso


significava que não seríamos capazes de fingir que Ruijerd era da tribo Migurd, já
que seríamos descobertos de qualquer maneira.

— Se você mentir sobre sua tribo, não precisa pagar multa, não é?

— Só vai perder o dinheiro que desperdiçou com a mentira. — Em outras


palavras, desde que pagássemos o valor pedido, estaríamos bem. O poder do
dinheiro era impressionante.

O sol já estava se pondo quando partimos do posto de controle. Decidimos


voltar para a pousada e comer. Nos forneceram a culinária única de uma cidade
portuária. O prato principal era do tamanho de um punho, cozido no vapor de vinho
de arroz com um toque de manteiga de alho. Estava delicioso, era sem dúvida a
melhor coisa que comi desde que chegamos ao Continente Demônio.
— Isso é tão bom! — falou Eris, feliz enquanto mastigava, suas bochechas
estufadas de tanta comida.

No ano passado, ela havia se esquecido completamente dos modos à mesa


costumeiros do Reino Asura. Começou a cortar tudo usando a faca na mão direita,
depois apunhalava os pedaços e os colocava direto na boca. Pelo menos não estava
comendo com as mãos, mas não havia nada de gracioso ou refinado nisso. Edna,
sua tutora de etiqueta, certamente seria reduzida às lágrimas se pudesse ver a atual
Eris. Isso também era minha responsabilidade.

— Eris, suas maneiras à mesa estão horríveis!

Munch, munch.

— Quem diabos se importa com boas maneiras?

Em comparação, as maneiras de Ruijerd eram muito melhores, embora também


não fossem elegantes. Ele não usava a faca, mas sim o garfo tanto para cortar a
comida quanto para comer. Deslizava o talher pelo peixe tão facilmente quanto se
fosse manteiga. As habilidades de um especialista, sem dúvida.

— Bem, eu sei que ainda estamos no meio de nossa refeição, mas vamos
começar nossa reunião de estratégia.

— Rudeus, falar durante uma refeição é falta de educação — disse Eris, de


repente usando a expressão de uma verdadeira lady em seu rosto.

Começamos nossa reunião assim que a refeição terminou, com as barrigas


cheias.

— A travessia do mar vai custar duzentos minérios verdes. O valor é ridículo.

— Sinto muito. É tudo por minha causa. — O rosto de Ruijerd se anuviou.

Mesmo eu nunca imaginei que custaria tanto. Francamente, subestimei o valor


da taxa. Achei que ganhar umas moedinhas ao longo do caminho nos permitiria
cruzar o oceano com facilidade. Na realidade, eram cinco moedas de prata para
humanos. Até mesmo outras tribos de demônios pagariam uma ou duas moedas de
minério verde, no máximo. Apenas as taxas para a tribo Superd eram anormalmente
altas.

— Bem, não vamos dizer coisas assim, Papai.

— Eu não sou seu pai.

— Eu sei — falei. — Foi só uma brincadeira.


Tirando isso, duzentas moedas não eram uma quantia comum de dinheiro.
Mesmo se priorizássemos aceitar empregos de rank S e A, levaríamos anos para
economizar tanto. Parecia que o Continente Millis realmente não queria nenhum
Superd cruzando suas fronteiras.

— Estamos em um beco sem saída. Não podemos simplesmente deixar Ruijerd


para trás.

Deixá-lo para trás seria a maneira mais rápida de fazer a travessia. Nós dois já
éramos aventureiros bastante experientes, então poderíamos continuar nossa
jornada mesmo sem ele. Mas, mesmo assim, eu não tinha a menor intenção de fazer
isso. Ruijerd ficaria conosco até o fim de nossa jornada. Afinal, nossa amizade era
eterna e inquebrável.

— Claro que não vamos deixá-lo para trás.

— O que faremos?

— Nós temos… três opções — falei, levantando o número correspondente de


dedos. Sempre existem três opções para tudo. Uma seria seguir em frente, uma
seria voltar e a outra seria ficar onde estávamos.

— Ah.

— Incrível, temos mesmo três opções? — perguntou Eris.

— Heh heh! — Soltei uma risada.

Espera aí, pensei. Eu ainda não pensei em todas elas. Vejamos…

— A primeira opção é um ataque frontal: ficamos aqui, ganhamos dinheiro e


viajamos para o Continente Millis pagando a taxa.

— Mas se fizermos isso…

— Sim, vai demorar muito — concordei.

Se priorizássemos o ganho de dinheiro, poderíamos economizar a quantia


necessária em menos de um ano. No entanto, não havia garantia de que algo não
aconteceria em algum momento, tipo perdermos nossas economias.

— A segunda opção: entramos em um labirinto e obtemos um cristal ou item


mágico. Seria uma tarefa trabalhosa, mas podemos conseguir o dinheiro necessário
em uma única missão. — Um cristal mágico teria um preço alto. Quanto exatamente,
não sei dizer, mas se entregássemos ao oficial no posto de controle, ele poderia
deixar até um Superd passar.

— Um labirinto! Gostei do som disso! Vamos fazer isso!

— Não. — Ruijerd recusou o plano de imediato.


— Por que não?!

O Superd poderia facilmente detectar criaturas vivas com seu sexto sentido,
mas as armadilhas dentro de um labirinto provavelmente seriam um assunto
diferente.

— Mas eu quero — disse Eris, fazendo beicinho.

— É uma opção, mas eu prefiro evitar.

Podíamos ficar bem se procedessemos com cautela, mas como eu era bastante
descuidado com meus passos, com certeza cometeríamos um erro fatal em algum
ponto. Pareceu prudente ouvir as palavras de Ruijerd sobre a ideia.

— A terceira opção: encontramos um contrabandista nesta cidade que pode


nos levar.

— Um contrabandista? O que diabos é isso?

— Onde há fronteiras de dois ou mais países, você geralmente tem que pagar
impostos para transportar as coisas. É por isso que nos disseram para pagar uma
taxa. Se for um comerciante, provavelmente terá que pagar impostos sobre suas
mercadorias, certo?

— Eu não sei, precisa?

— Sim, precisa — respondi. Caso contrário, não haveria sentido em cobrar uma
taxa maior com base na raça de uma pessoa. — E provavelmente vão cobrar taxas
absurdas para alguns itens. Portanto, deve haver alguém aqui que faça esse
trabalho por um preço mais barato, além de lidar com mercadorias ilegais. — Bem,
talvez não houvesse. Mas, se houvesse, certamente poderíamos fazer com que nos
levassem por um preço muito mais baixo do que duzentas moedas de minério verde.
Era claro que havia algo de errado com a taxa no posto de controle. Aquele oficial
nos disse que não seríamos punidos mesmo se mentíssemos sobre a tribo de
Ruijerd.

De qualquer forma, eu tinha acabado de aprender da maneira mais difícil que o


caminho mais fácil é aquele cheio de armadilhas. Portanto, embora tenha incluído
isso como uma opção potencial, queria evitar fazer qualquer coisa ilegal, se possível.
No momento, as três opções que sugeri eram:

A abordagem direta de ganhar dinheiro e pagar a taxa;

Entrar em um labirinto e matar tudo que aparecesse pela frente;

Fazer um acordo com um contrabandista.

Nenhuma delas era particularmente boa. Ah, claro, tinha mais uma. Eu poderia
vender meu cajado, Aqua Heartia. Ele tinha um enorme cristal mágico e era uma
obra-prima do Reino Asura. Isso renderia pelo menos dinheiro suficiente para um
membro da raça Superd cruzar o oceano.
Prós e contras à parte, eu não queria vendê-lo, se possível. Era um precioso
presente de aniversário que ganhei de Eris, e também estava fazendo bom uso dele.
E os dois provavelmente não aceitariam a ideia com muita facilidade.

Naquela noite, uma mensagem divina veio a mim.

O Deus Homem me disse:

— Compre um pouco de comida em uma barraca de rua e procure sozinho


pelos becos.

Parece um verdadeiro pé no saco. Mas, como não tenho outras opções, tentarei
ser otimista e tentar.

— Então você vai fazer isso só porque não tem outra escolha?

Nah, é só que já sei o que vai acontecer desde que você disse as palavras
“comida” e “beco”.

— Sabe mesmo?

Sim, muito clichê, não acha? Deixe-me adivinhar, vou encontrar uma criança
faminta que se perdeu. E ela vai ter um cara estranho tentando pegá-la. Algo tipo
isso?

— Você está corretíssimo. Incrível!

Então a criança vai acabar sendo neta do líder da Guilda dos Armadores ou
algo parecido, certo?

— Heh heh heh. Vamos deixar a surpresa para amanhã.

Que surpresa? Não houve uma única surpresa agradável durante todo esse
tempo. Além disso, cara! Mas que inferno? Já se passou um ano desde que você
fez isso. Até pensei que nunca mais veria sua cara!

— Ah, veja, da última vez meu conselho não funcionou tão bem para você, não
foi? Então foi um pouco difícil para eu aparecer de novo.

Huh! Então, no final das contas, parece que o Deus Homem tem um pouco de
vergonha na cara. Mas não tenha a ideia errada, entendeu? Da última vez fui eu
quem errou. Dito isso, o que eu devia ter feito?

— Bem, se você quiser usar o termo “correto”, então isso depende de você. A
escolha “normal” teria sido transformar aquele grupo em guardas, assim
solidificando sua amizade com Ruijerd.
O quê? Você está me dizendo que a solução era tão simples?

— Isso mesmo. Nunca imaginei que você os tornaria seus aliados e ganharia a
atenção daqueles malandrinhos coniventes da Guilda dos Aventureiros. Foi bem
divertido de se assistir.

Que seja, eu não me diverti nem um pouco.

— Mas, graças a isso, você conseguiu chegar tão longe em só um ano.

Então está dizendo que os fins justificam os meios?

— A única coisa que importa são os resultados.

Tch, não gosto disso.

— Não gosta, eh? Bem, aí é com você. De qualquer forma, você parece estar
de mau humor, então vou embora.

Espera aí! Há uma coisa que quero confirmar.

— E o que é?

Se eu não preciso pensar muito sobre o conselho que você me deu, isso
significa que as coisas vão correr bem?

— Eu vou achar mais divertido se você pensar bastante nisso.

Aha, então é isso! Esse é o seu jogo. Agora entendi. Valeu pela dica. Da
próxima vez você não vai se divertir tanto.

— Heh heh. Aguardo ansiosamente por isso.

Tá, tá, tá. É claro que aguarda.

Minha consciência se desvaneceu quando essas palavras finais ecoaram em


minha cabeça.
Capítulo 02 - Conexões
Perdidas, a Prequela

No dia seguinte, saí e carreguei meus braços com comida de uma das barracas
antes de vagar um pouco pelos becos. Toda a comida era assada e espetada. Havia
algumas vieiras semelhantes às que tínhamos no Japão, um peixe semelhante à
cavalinha e algumas outras criaturas marinhas que não consegui identificar. O dono
da barraca não esclareceu quais eram seus produtos, e as barracas de rua tinham
uma variedade delas. Então decidi comprar o que fosse mais fácil de carregar.

Pensei demais nas coisas da última vez que o Deus Homem me deu conselhos.
Assim como um cozinheiro amador adiciona ingredientes demais a um prato, pensar
demais me fez cair em uma pilha de merda figurativa. Desta vez, seguiria seu
conselho ao pé da letra. Iria seguir suas instruções sem nem pensar, comprar a
comida que me disse para comprar e, então, da mesma forma, traçar meu rumo
através de qualquer evento que iria acontecer em algum beco. Isso era interpretação
de papéis. O que quer que ocorresse a partir do momento seria completamente não
planejado. Não pensaria muito em nada; agiria da maneira mais simplória possível.
Aquele idiota gostava de se divertir. Estava contando comigo para mais uma vez
pensar demais nas coisas. Se eu não fizesse isso, ele não se divertiria.

Esses pensamentos me preocuparam enquanto vagava sem rumo por vários


minutos antes de repentinamente perceber algo.

— Espera, isso é exatamente o que ele está esperando, não é?

Fui enganado! Ele me conduziu com sua impressionante conversa mole e agora
eu estava prestes a fazer exatamente o que ele queria que eu fizesse. Quando
percebi isso, fiquei irritado. Estava dançando bem na palma da sua mão.

Lembre-se de sua intenção original, disse a mim mesmo. Lembre-se de como


você se sentiu na primeira vez que o encontrou. O Deus Homem não era alguém
em quem poderia confiar.

Tudo bem então, seria a última vez que eu faria o que ele disse. Seguiria seu
conselho e veria como as coisas acabariam desta vez, mas não o obedeceria nunca
mais. De jeito nenhum me tornaria sua marionete e o deixaria me amarrar! Isso!
Marchei pelos becos. Por minha vontade, é claro.

Afinal, por que eu precisava estar sozinho? Esse foi o principal detalhe de seu
conselho. Devia ser algo que Ruijerd e Eris não aprovariam. Não, não pense
demais, disse a mim mesmo. Se você quer pensar em algo, então pense em como
ficará feliz se acabar sendo algo sexy.

Eu tinha dito a Ruijerd e Eris que ficaria sozinho durante o dia. Era perigoso
deixar Eris por conta própria, então confiei sua proteção a Ruijerd. Talvez, no exato
momento, os dois estivessem indo à praia.

— Espera… isso não é um encontro? — Em minha mente, vi os dois juntos na


praia pouco antes de suas silhuetas desaparecerem atrás da sombra de uma grande
rocha.

Não, não, não! Sem chances! S-só fique calmo, certo? É sobre Eris e Ruijerd
que estamos falando, certo? Essa não é nenhuma fantasia sexual. Não é nada mais
do que servir como babá. Babá!

Ah! Mas Ruijerd era muito forte, afinal, e Eris parecia respeitá-lo muito! E
ultimamente, ela vinha me tratando como nada mais do que um Mestre do Canil.

Não, não, por que diabos você está entrando em pânico? Me repreendi. Respira
fundo, está tudo bem. Senhor Ruijerd, você não a roubaria de mim, certo? Não tenho
nada com que me preocupar, certo? Quando eu voltar, vocês dois não terão
misteriosamente se aproximado, certo? C-confio em vocês, entendeu?!

Na minha cabeça, simulei uma luta com Ruijerd. Não havia como vencer em um
combate de curta distância. Se eu quisesse lidar com ele, precisava começar em
algum lugar fora do seu alcance de detecção. Então teria que usar a água para
acabar com o homem. Afinal, foi ele que atrapalhou nossa diversão à beira-mar. Eu
o atacaria com água como uma retribuição por isso. Se produzisse uma grande
quantidade de água, poderia jogá-lo no oceano. Fim! Ele poderia ficar à deriva no
mar até se afogar. Mwahaha!

Espere, não me entenda mal. Eu confiava em Ruijerd. É só que, bem, todo


mundo sabe. O amor é um campo de batalha, certo?

Os becos estavam silenciosos. Até mesmo a palavra “beco” evocava a imagem


negativa de um grupo de personagens inescrupulosos reunidos em um só lugar. Na
realidade, garotos delicados e inocentes como eu podiam ser sequestrados ao
andar por um lugar como este. Neste mundo, o sequestro era uma das formas mais
comuns de crime para se ganhar dinheiro. Claro, se alguém fosse estúpido o
suficiente para me sequestrar, eu esmagaria seus braços e pernas para os torturar,
então pegaria tudo de valor em suas casas antes de finalmente entregá-los às
autoridades.
— Heh heh heh. Garotinha, se você vier comigo, vou te dar comida suficiente
para te encher.

Como se aproveitando a deixa, uma voz flutuou por um dos becos. Eu


rapidamente espiei em sua direção e vi um homem de aparência suspeita puxando
a mão de uma garota que estava caída contra a lateral de uma construção.

Foi fácil deduzir o que estava acontecendo. Aquele que se movesse primeiro
venceria, então preparei meu cajado. Depois criei um Canhão de Pedra modificado
com a velocidade e a força de um jab de um pugilista e mirei nas costas do homem.
No último ano fiquei muito bom em limitar o poder de meus feitiços.

— Owch!!

Quando ele olhou por cima do ombro, fiz outro disparo. Desta vez, foi um
ligeiramente reforçado.

— Gah!

O feitiço atingiu sua cara com um baque violento, onde se quebrou e


desmoronou no chão. O homem cambaleou e tropeçou antes de desmaiar. Eu tinha
certeza de que ele não estava morto. Fiz um bom trabalho restringindo meu poder.

— Mocinha, você está bem? — Tentei parecer o mais legal e controlado


possível enquanto estendia a mão para a garota que quase tinha sido sequestrada.

— S-sim… — Ela era jovem e vestia um traje de couro preto revelador: botas
de cano alto, shorts curtinhos e um top tubinho. A pele pálida de sua clavícula,
cintura fina, umbigo e coxas estava toda exposta. Além de tudo isso, ela tinha chifres
de cabra e um cabelo roxo volumoso e ondulado.

Com apenas um olhar eu soube: era uma súcubo. E uma das jovens. Não havia
dúvida de que ela era mais jovem do que eu. Talvez fosse a maneira de o Deus
Homem me recompensar pelo meu trabalho árduo. Talvez, afinal de contas, o sujeito
tivesse algum bom senso.

Não, espera, não era uma súcubo. Até onde eu sabia, não havia nenhuma delas
entre as raças de demônios. Se bem me lembrava, as súcubos habitavam o
Continente Begaritt. Paul estava com uma expressão estranhamente tensa no rosto
quando me disse: “Nossa raça não tem chance contra elas.” Mesmo eu poderia ficar
impotente diante de uma súcubo se realmente encontrasse alguma. Súcubos eram
o inimigo natural da família Greyrat.

Tirando isso, não havia monstros nos limites da cidade. Em outras palavras, ela
não era uma súcubo. Era apenas uma criança demônio em roupas minúsculas.
— V-você… você aí, o que…? — Ela estava tremendo como uma corça. — E-
este homem é… Ele é…! — Ela tinha uma expressão de total descrença no rosto.
Um olhar de: Ai, minha nossa, senhor, o que você fez?!

— Ah, foi mal. Você o conhecia? — perguntei, inclinando minha cabeça. A


expressão no rosto daquele homem de meia-idade não me deu a impressão de que
conhecia essa criança. Se fosse descrevê-lo, teria algo como a aparência de um
homem que já passou da flor da idade se sentindo excitado por uma garotinha. Olhe
só para ele, o rosto corado estava contorcido em um sorriso, embora estivesse
inconsciente. Eu não tinha dúvidas de que o sujeito a levaria para casa e forneceria
uma refeição generosa e depois a colocaria na cama, mas em troca esperaria uma
noite longa e quente.

— Minha barriga dói de tanta fome… e este homem ia me dar uma refeição. —
Um estrondo ruidoso e gorgolejante pontuou sua frase, alto o suficiente para que
pudesse ser o prenúncio de um terremoto. Quando o barulho parou, os joelhos da
garota cederam e ela desabou.

— V-você está bem? — Ajoelhei-me e a levantei em meus braços. Ela não


estava fugindo. Não me interpretem mal, porém, a única razão pela qual eu estava
lá era para seguir o conselho do Deus Homem e a salvar. Eu não era da mesma
espécie daquele pervertido de um momento atrás.

— Guh… urgh… já se passaram trezentos anos desde que eu revivi. Desmaiar


em um lugar como este é inconcebível. Laplace nunca pode descobrir sobre isso.

Parecia que tinha tropeçado no set de filmagem de algum mini-drama. Este traje
era realmente um cosplay ou algo assim?

— De qualquer forma, coma isso e recupere um pouco da sua força. — Enfiei


três dos espetos que comprei em sua boca.

Munch, munch. No momento em que a comida entrou em sua boca, seus olhos
se abriram e permaneceram assim enquanto ela devorava a carne em segundos.
Então a garota tomou os outros espetos de mim. Eu tinha um total de doze, mas em
um estalar de dedos ela já havia comido dez deles.

— U-uau! Delicioso! É a primeira coisa que como em um ano e é tão saborosa!


— A garota parecia ter se recuperado. Ela saltou de sua posição de bruços, fazendo
uma única rotação antes de cair de pé. Sua forma estava inesperadamente boa.

— Um ano? Não sei quais são as suas circunstâncias, mas isso é um pouco
extremo. — Não era como se ela fosse um isópode gigante que poderia viver anos
sem comer e não morrer de fome.

— Hm? Bem, não é como se eu tivesse contado o nascer e o pôr do sol, mas
com o quão vazio meu estômago estava, deve ser mais ou menos isso.

Aham. Então ela provavelmente não comia há uns dois dias.


— Apesar de tudo, você me salvou! Você! Com certeza agora consigo suportar
mais um ano! — A jovem finalmente encontrou meu olhar. Ela tinha olhos diferentes,
um roxo e outro verde. Esse devia ser outro aspecto de seu cosplay. Não, lentes de
contato coloridas não existiam neste mundo, então talvez essa fosse a cor natural
de seus olhos.

— Ah? — Seu olho direito girou e ficou azul. E-eca!

— Uau! Opa! O que há de errado com você, você é terrivelmente nojento! O


que é isso, o que é?! Ahahaha! Nunca vi algo assim antes! — gritou ela com muito
entusiasmo enquanto olhava para o meu rosto.

Uh, sim, nem preciso dizer que foi um choque. Já fazia muito tempo desde a
última vez que alguém me olhou no rosto e me chamou de nojento. Então, parando
para pensar, achei a mesma coisa quando olhei para ela. Pelo visto, ao menos
estávamos quites.

— Poderia ser isso? Você era um dos gêmeos no ventre, mas o outro morreu
quando você nasceu, é isso?

Hein…? Do que ela estava falando?

— Não, não acho que nada parecido tenha acontecido.

— Você tem certeza?

— Sim.

— Mas sua reserva de mana… É maior que a de Laplace.

A minha o que era maior que a de quem? Eu não tinha ideia do que ela estava
falando. Desde seu jeito estranho de falar até seus olhos esquisitos, essa criança
era uma enorme decepção.

— Fora isso, diga seu nome!

— Rudeus Greyrat.

— Muito bom! Eu sou Kishirika Kishirisu! As pessoas me chamam de Grande


Imperador do Mundo Demônio! — Ela orgulhosamente empurrou seus quadris para
frente com as mãos apoiadas em sua cintura.

Suas coxas apareceram na minha frente tão de repente que passei minha
língua sem nem pensar.

— Aaaaah! O que está fazendo?! Que nojento! — Ela virou os dedos dos pés
para dentro e esfregou vigorosamente as coxas no local onde a lambi, antes de
voltar a olhar para mim.
Ainda assim, agora eu entendi. O Grande Imperador do Mundo Demônio
Kishirika Kishirisu era um nome que eu já tinha ouvido antes: o imortal Imperador
Demônio que liderou os demônios na Grande Guerra Demônio Humano, apenas
para se deparar com uma derrota esmagadora.

Ela era a coisa real? Afinal, fui ao local seguindo um conselho do Deus Homem.
Havia uma possibilidade de que ela realmente fosse quem afirmava. Ainda assim,
como a coisa real poderia estar em um beco de uma cidade nos limites do
Continente Demônio, à beira da morte por inanição? Simplesmente não parecia
provável, não importa quanto pensasse no assunto.

Ah, provavelmente é isso, percebi. As crianças deste continente adoravam fingir


que eram alguns dos grandes heróis do passado. A mais popular dessas figuras era
o Deus Demônio Laplace. Isso era nauseante para mim, já que sabia a verdade
sobre ele, mas o sujeito era popular. Mesmo tendo perdido a guerra, subjugou com
sucesso todas as tribos do continente e deu ao povo um lugar fixo para chamar de
lar, trazendo assim a paz. Ele era considerado um dos maiores demônios da história.
As crianças frequentemente contavam suas histórias, especialmente sobre o
episódio em que lutou com um Rei Demônio imortal. Era o que eu tinha visto
inúmeras vezes no caminho para Porto Vento.

Supus que o Grande Imperador do Mundo Demônio, Kishirika, era outra das
grandes pessoas da história, mas nunca tinha visto nenhuma criança fingindo ser
ela antes. Essa garota devia ser uma fã apaixonada do Grande Imperador. E ela
não tinha amigos com quem brincar, era por isso que estava aqui, sozinha, em um
beco como este. Era a maneira mais lógica de interpretar a situação.

Hm. Ficar sozinho era algo solitário. Então fiquei sem escolhas. Teria que
participar da brincadeira.

— A-ah, sim! Que grosseria da minha parte, Vossa Majestade! — respondi a


sua apresentação com grande exagero e me ajoelhei como se fosse um de seus
criados.

— Oh? Aah, claro! Muito bom, muito bom! Esta é a reação que eu estava
esperando! Os jovens de hoje em dia não têm mais educação, sabe! — Ela balançou
a cabeça satisfeita.

É, eu sabia disso. Ela realmente queria alguém com quem brincar.

— Que tolo fui por não perceber que você tinha revivido. Por favor, perdoe-me
por minhas maneiras precárias!

— Muito bem. Você salvou minha vida. Concederei qualquer um de seus


desejos, mas apenas um.

Sua vida? Tudo o que fiz foi dar um pouco de comida porque ela estava com
fome.

— Hum… que tal riqueza sem fim!


— Tolo! Você pode ver que estou sem um tostão!

Mas ela disse que eu poderia pedir qualquer coisa! Não, espera, talvez isso
fosse parte da encenação. Talvez tenha havido algum episódio em que alguém
pediu dinheiro ao Grande Imperador apenas para ela responder que não tinha nada.

— Tudo bem então, por favor, me dê metade do mundo.

— O quê?! Metade do mundo, você diz?! Isso é demais! E, bem, isso continua
sem graça. Por que só metade?

— Ah, isso é porque não preciso dos homens. — Ah, merda, sem querer deixei
meus verdadeiros sentimentos transparecerem. Isso não era algo que ela deveria
ouvir.

— Entendo, então é isso. Você pode ser jovem, mas é um dos lascivos. Ainda
assim, sinto muito. Não consegui tomar o mundo nem para mim.

É verdade que Kishirika havia perdido todas as batalhas em que liderou os


demônios.

— Tudo bem, então fico satisfeito com o seu corpo. Por favor, pague-me com
seu corpo.

— Ehh? Meu corpo? Por ser tão cheio de luxúria mesmo na sua idade, fico
preocupada com o seu futuro.

— Ha ha, é claro que só estou brincando…

Enquanto tentava dizer que estava brincando, ela pegou em seu short colado.

— Ah, bem, acho que não há como evitar. Esta é a minha primeira vez desde
que revivi, então seja gentil comigo, certo? — As bochechas de Kishirika brilharam
enquanto ela lentamente começava a abaixar os shorts.

Hein? É sério? Eu só estava falando aquilo como uma piada. Não, espere!
Agora era tarde demais para dizer que estava apenas brincando. Teria que apenas
a observar se despindo e, depois de recusar, alegaria que era indigno de Sua
Majestade.

— Ah, não, eu não devo fazer isso. — Antes que eu pudesse fazer qualquer
coisa, Kishirika se conteve. — Já tenho noivo. Sinto muito, mas não posso fazer
isso. — A pele que ela expôs sumiu quando ela puxou a roupa para cima. Parecia
que estava brincando com meu pobre e puro coração.

De qualquer forma, era um não ao dinheiro, ao mundo e ao corpo.

— Tudo bem, então o que você pode fazer? — perguntei.


— Tolo! Eu sou Kishirika, o Grande Imperador do Mundo Demônio! É óbvio o
que posso te dar! Olhos demoníacos!

Então era isso. Bem, eu não era muito versado na mitologia heróica deste
mundo. Pensando bem, Ghislaine também não tinha um olho demoníaco?

— Por “olhos demoníacos”, quer dizer olhos que podem ver a linha vital de
alguém? Uma linha que, se cortada, vai com certeza absoluta matar a pessoa?

— Que horrível! O que no mundo é esse poder?! Não tenho nada tão assustador
assim!

Então não era o caso. O único outro tipo de olho demoníaco que eu conhecia
era o que transformava a pessoa para quem se olhava em pedra. Percebi que olhos
que disparam raios ou lasers não poderiam ser considerados olhos demoníacos.

— Para você cobiçar um poder tão perigoso… Diga-me, guarda tanto rancor
contra alguém? — perguntou ela.

— Não, não exatamente.

— Nada de bom vem com a vingança. Já fui morta duas vezes, mas agora não
invejo aqueles que me mataram. O rancor é uma corrente que o pressiona. Foi isso
que deu início à Grande Guerra Demônio Humano.

Eu estava levando um sermão de uma garotinha! Bem, não era como se eu


tivesse planos de atacar algum vampiro em algum lugar e depois os erradicar.

— Para ser honesto, realmente não sei muito sobre olhos demoníacos — falei.
— Que tipos existem?

— Hm, como só revivi recentemente, não possuo nada lá muito significativo,


mas existem Olhos de Poder Mágico, Olhos de Identificação, Olhos de Visão de
Raio-X, Olhos de Visão à Distância, Olhos de Previsão e Olhos de Absorção… São
coisas assim.

Esses eram apenas os nomes.

— Você pode me explicar o que cada um deles faz?

— Hm? Quer dizer que não sabe? Sinceramente, os jovens de hoje em dia não
dedicam tempo suficiente aos estudos… — Apesar dessas reclamações, ela
começou a explicar: — Primeiro, os Olhos de Poder Mágico. Com eles, poderá ver
a mana. São os mais comuns. Uma em cada dez mil pessoas possui um deles.

— Ah, então é o mais popular, hein.

— Olhos de Identificação. Você pode usá-los para identificar objetos e seus


detalhes. No entanto, só podem fornecer informações que eu conheço. Qualquer
coisa que não conheço será reportada como desconhecida.
— Entendi. Então é igual a um dicionário.

Ela continuou:

— Olhos de Visão de Raio-X. Eles podem ver através de objetos e paredes.


Você não pode ver através de criaturas vivas ou lugares com alta concentração de
mana, mas poderia se fartar vendo todas as garotas que quisesse nuas. Perfeito
para um pervertido como você, não acha?

— Contanto que eu não acabe vendo apenas os ossos — falei mantendo um


humor impassível.

— Olhos da Visão à Distância. Podem ver as coisas a uma grande distância.


Mas acaba sendo difícil manter a concentração. Embora você possa ver as coisas
de longe, na verdade não pode fazer nada para influenciar o que está acontecendo,
então eu não te recomendaria isso.

— Não adianta olhar se não puder tocar — concordei.

— Olhos de Previsão. Podem ver coisas que acontecerão alguns momentos


antes. Também é difícil manter o foco, mas esse eu recomendo.

— As empresas que gostam de estar um passo à frente adorariam algo assim.

— Olhos de Absorção. Esses olhos podem consumir mana. Isso inclui a mana
que você usa, então eu realmente não os recomendo.

— Algo como jogar água e passar o pano, eh?

Kishirika era muito experiente. Devia ter aprendido todas essas coisas em
algum lugar. Talvez seus pais fossem bem instruídos. Ou talvez houvesse um livro
sobre todos os tipos de olhos demoníacos por aí.

— Tudo bem, então vou querer dois, para que meus dois olhos possam ser
olhos demoníacos.

— Você quer dois desde o início? — perguntou ela. — Você é mais ganancioso
do que parece.

— Vamos, vou te dar outro espeto de carne.

Estendi meus dois últimos espetos e ela os pegou com um enorme sorriso.

— Ebaa! Nom, nom… Sabe, eu não me importo em te dar dois olhos


demoníacos, mas não recomendo.

— Por que não? — perguntei.


— Você não vai querer os usar o tempo todo. A maioria das pessoas geralmente
cobre o olho do demônio com um tapa-olho. Se tiver dois deles, não será capaz de
ver nada.

— Ahh, agora que você mencionou, eu conheço alguém que usa um tapa-olho.
— Ghislaine, minha mestra da espada, usava um. Mais tarde descobri que não era
porque havia perdido um olho, mas porque tinha um olho demoníaco.

— Além disso, uma pessoa que vive várias centenas de anos pode ser capaz
de controlar dois olhos demoníacos ao mesmo tempo, mas uma criança como você
ficaria louca tentando.

Ficaria louca? Portanto, usá-los devia ter um impactono cérebro. Assustador.

— Certo, então não vou querer os dois.

— É melhor assim. Bem, qual vai querer? Recomendo o Olho de Previsão.

Olhos demoníacos, hein? Se eu realmente obtivesse um, qual preferiria? Pensei


muito em cada um deles, mas todos tinham sua utilidade. O Olho do Poder Mágico
parecia ser um desperdício. Poderia ser útil, mas, novamente, muita gente parecia
tê-los. Se eu fosse comprar um, iria querer um que parecesse mais único.

Realmente não precisava de um Olho de Identificação. Não saber o que eram


as coisas não parecia um grande inconveniente. Além disso, de qualquer forma,
qualquer coisa que o Grande Imperador Demônio não soubesse seria listado como
desconhecido. Eu poderia imaginar algo assim sendo inútil apenas quando
realmente precisasse.

E também não precisava de um Olho de Visão de Raio-X. Demoraria um pouco


até que pudesse controlá-lo adequadamente, e imaginei que seria obrigado a ver
Ruijerd nu o tempo todo.

O Olho da Visão à Distância podia ser útil, mas no momento não precisava de
algo do tipo. Eu já podia adivinhar o que Ruijerd e Eris estavam fazendo sem um
Olho de Visão à Distância, mas se tivesse um, provavelmente veria ela ameaçando
alguém enquanto ele tentava a impedir.

Quanto ao Olho da Previsão, certamente consegui ver o motivo para ela o


recomendar. Era verdade que eu não poderia atualmente derrotar Eris ou Ruijerd
no combate corpo a corpo. Afinal, as criaturas (e pessoas) deste mundo eram
rápidas. Ser capaz de ver o futuro mesmo com poucos segundos de diferença seria
uma grande vantagem para mim.

O Olho da Absorção estava completamente fora de questão. Isso acabaria com


as vantagens que eu tinha como mago. Ainda assim, era bom saber que esse olho
demoníaco existia. Caso contrário, teria entrado em pânico se encontrasse alguém
que pudesse tornar minha magia completamente ineficaz.

Bem, não importa qual eu escolhesse. De qualquer maneira, estávamos apenas


brincando.
— Tudo bem, dê-me aquele que você recomendou, o Olho da Previsão.

— Tem certeza? A maioria das pessoas ignora minhas recomendações e


escolhe algo diferente para si mesmas, dizendo “o que é tão bom em ser capaz de
ver alguns momentos do futuro?”

— Se você pode ver pelo menos um segundo do futuro, pode controlar o mundo.
— Mesmo assim, os espadachins deste mundo eram rápidos. Eu poderia não ser
capaz de vencê-los, mesmo com o poder da previsão. Afinal, havia a Espada Longa
da Luz.

— Então não vai querer o Olho da Visão de Raio-X, hein? Não quer ver o corpo
nu de todas as garotas que desejar?

Essa garotinha com certeza não entendeu, não é? Claro, eu podia ver o corpo
nu de qualquer garota ou mulher bonita que passasse na rua e isso provavelmente
me excitaria. Mas era só isso. Logo ficaria farto. De qualquer forma, o processo de
imaginá-las se despindo era o que eu mais gostava.

— Entendo, entendo. Tudo bem, traga seu rosto aqui.

— Certo.

— E lá vai! — Squelch. Ela enfiou o dedo no meu olho direito.

Uma forte onda de dor passou por mim.

— Gyaaah!

Instintivamente tentei recuar, mas Kishirika me segurou. Eu não podia me


mover. Ela era mais forte do que eu esperava.

Isso machuca, isso machuca, isso machuca, gritava o meu cérebro.

— Gaaaah! O que diabos você está fazendo, sua pirralha?!

— Ah, cala a boca. Você é um homem, não é? Aguente ao menos um pouco de


dor! — Ela apertou os dedos em volta da órbita do meu olho como se estivesse
mexendo nele, depois os puxou para fora com um pop! Fiquei completamente cego
daquele olho.

— A íris do Olho da Previsão é um pouco diferente da sua cor normal, mas de


longe as pessoas não serão capazes de dizer a diferença.

— Sua idiota! Há uma diferença enorme entre o que é e o que não é bom fazer
quando se está brincando!

— Eu sou o Grande Imperador do Mundo Demônio. Não iria “brincar” sobre lhe
dar um olho demoníaco.
Droga, meu olho… Meu olho está… Aaaaaaah… espera, o quê? Fiz uma pausa
em meio à confusão. Eu conseguia ver. Mas tudo parecia em dobro…? O que diabos
estava acontecendo? Isso era nauseante.
— Dependendo de como você fornecer mana a ele, deve ser capaz de tornar
tudo o mais fino possível. Bem, faça o seu melhor para aprender como usá-lo.

— Hã? O quê? Do que você está falando?

— Estou dizendo que tudo depende de você. — Kishirika parecia satisfeita


consigo mesma, não importa o quão confuso suas palavras me deixassem. Eu vi
uma pós-imagem dela assentindo, e dentro dessa pós-imagem havia uma sombra
espessa. O que era isso?

— Muito bom… então no final das contas você consegue ver isso. Pois bem,
vou embora. Preciso procurar Badigadi. Muito obrigada pela comida.

Assim que ela terminou de falar, saltou no ar e pousou no telhado com


um baque.

— Até mais, Rudeus! Bwahahaha! Bwahahahah… gah!

Houve um efeito doppler quando ela partiu, o som de sua risada alta foi
gradualmente desaparecendo. Ouvi aquilo espantado.

— Espera… Ela era a real?

E foi assim que obtive o Olho da Previsão.

Capítulo 03 - Conexões
Perdidas, a Continuação

De qualquer forma, comecei a voltar para a pousada e amaldiçoei minha própria


ingenuidade. As pessoas que circulavam pela cidade estavam todas duplicadas.
Qual era o futuro e qual era o passado? Mesmo que eu pudesse dizer, os
movimentos das pessoas eram imprevisíveis. Continuei julgando tudo errado com
meus olhos e esbarrando nas pessoas.

— Tsk! Olha por onde anda!


Pela aparência do homem, imaginei que fosse um bandidinho qualquer. Ele
tinha uma barba volumosa no queixo e uma cicatriz no rosto. Não tive a impressão
de que era um aventureiro, mas sim uma das muitas pragas que infestavam a
cidade.

— Sim, desculpa. Meus olhos não estão muito bons.

— Seus olhos não estão bons, eh? Então ande fora do caminho! Sabe, parece
que todo mundo que não vê ou escuta direito gosta de sair pedindo desculpas
enquanto anda por aí!

Ele só estava tentando arranjar confusão. Suas ameaças eram intimidantes,


mas eu poderia dizer que o sujeito não estava com raiva, apenas um pouco irritado.

— De agora em diante vou tomar mais cuidado — falei.

— Isso mesmo, cuidado!

Eu não queria que as coisas piorassem ainda mais, então apenas segurei minha
língua e olhei para o outro lado.

O bandido se precipitou e cuspiu no chão antes de se afastar. Mas ele parou


por um instante.

— Tch… ah, é mesmo — falou. — Só tenho uma pergunta. Viu um bêbado


idiota andando por aqui? Desde ontem que ele não volta.

Eu vi assim que ele olhou para mim: um vaso de flores quebrando bem na sua
cabeça. O que aconteceu a seguir foi instantâneo. Canalizei mana com minha mão
direita e lancei magia do vento para o tirar do caminho.

— Gah! — Ele deu uma cambalhota no chão e, em seguida, pôs-se de pé em


uma postura defensiva. O homem sacou sua espada e a apontou para mim. —
Bastardo, o que diabos acha que…

Foi então que o vaso de flores bateu no chão, se espatifando. Nós dois
seguimos sua trajetória com o olhar. Uma mulher de meia-idade olhou para nós com
uma expressão perplexa no rosto.

— E-eu sinto muito! Vocês estão bem?

— Ah, sim, estamos bem!

Ela voltou para a casa depois que eu respondi. O olhar do bandido voou entre
mim, o local onde o vaso havia caído e sua posição atual. Ele engoliu em seco.

— Umm… sobre aquele cara bêbado, acho que desmaiou em um dos becos.
Provavelmente brigou com alguém. De qualquer forma, vou embora. — Falei o mais
rápido possível antes de virar as costas para a cena. Não queria me envolver ainda
mais com aquele bandido.
O olho parecia ter sua utilidade, embora fosse um incômodo se causasse
problemas como esse o tempo todo. Decidi trabalhar para dominá-lo rapidamente.

Voltei para a pousada. Quando disse a Eris e Ruijerd que tinha encontrado o
Grande Imperador do Mundo Demônio, os dois ficaram pasmos.

— O Grande Imperador do Mundo Demônio? Não pensei que ela iria reviver. —
Ruijerd tinha uma rara expressão de surpresa no rosto.

— E nunca sonhei que receberia algo como um olho demoníaco tão de repente.

— Conceder olhos demoníacos é um poder que apenas o Grande Imperador


possui — explicou.

O Grande Imperador do Mundo Demônio, Kishirika Kishirisu, também era


conhecido como o Imperador Demônio da Ressurreição. E seu outro nome era o
Imperador Demônio dos Olhos Demoníacos. Aparentemente, ela não era tão hábil
em combate, mas com doze olhos demoníacos em sua posse, havia muitas coisas
que podia ver que a maioria não podia. Seu poder mais temível era sua habilidade
de transformar os olhos de outra pessoa em olhos demoníacos. Foi através desse
poder que concedeu olhos demoníacos a todos os seus seguidores, dando-lhe o
poder para governar todas as tribos de demônios. Houve até mesmo aqueles que
se tornaram seus seguidores apenas para obter mais poder.

— O que ela estava fazendo nesta cidade? — perguntei.

— E quem é que sabe? Eu não tenho ideia do que se passava nas mentes dos
Reis Demônios ou Imperadores Demônios — disse Ruijerd encolhendo os ombros.

Verdade, pensei. Afinal, você nem sabia as verdadeiras intenções do Deus


Demônio a quem serviu por tantos anos. Mas não é como se eu fosse dizer algo
assim, sabendo que isso só o deprimiria.

Eris, por outro lado, estava maravilhada com o título de “Grande Imperador do
Mundo Demônio”.

— Isso é incrível. Eu também quero encontrar ela!

— Você quer?

Eris e Kishirika. Que tipo de conversa as duas teriam caso se encontrassem?


Até eu fiquei um pouco curioso. Por mais improvável que parecesse, poderiam até
encontrar algum assunto em comum.

— Me pergunto se ela ainda está na cidade.

— Não tenho certeza — respondi.


Quem sabe? Talvez se eu voltasse pelos becos no dia seguinte, a encontrasse
mais uma vez desmaiada de fome. Parecia uma daquelas piadas ruins, mas
possíveis, levando em conta como ela era. Mas ainda assim, bastante improvável.
Parecia que estava procurando por alguém, então provavelmente já tinha partido.
Era como se fosse uma garota mágica sendo guiada pela Lei dos Ciclos, ou algo
assim.

— Tenho certeza de que ela provavelmente já deixou a cidade.

— Sério? Isso é muito ruim — disse Eris. De qualquer forma, ela provavlemente
verificaria os becos à sua procura, mesmo depois do que eu disse.

— De qualquer forma, dito isso, vou ficar na pousada. Vocês dois estão livres
para sair por conta própria.

Cada um dos dois deu um aceno de cabeça.

Demorou uma semana para aprender como usar o olho demoníaco.


Simplificando, não foi lá tão difícil. Seria possível controlar o olho por meio da mana.
Era muito parecido com o modo como eu usava magia não verbal, o que já havia
feito muitas vezes antes. Por meio da mana, poderia controlar tudo que visse. Fiquei
confuso até que percebi que havia dois tipos de foco. Então as coisas logo
começaram a se encaixar.

Um dos tipos de foco controlava a opacidade, era parecido com o modo como
se muda a opacidade das janelas de um jogo erótico. No início, estava no máximo,
então tudo parecia totalmente duplicado. Coloquei a opacidade no mínimo possível.
Ao canalizar mana para a parte interna do meu olho, poderia enfraquecer minha
capacidade de previsão o suficiente para ver apenas o presente. Vislumbres do
futuro seriam benéficos, então, ajustei a opacidade para o ponto exato em que não
fosse se tonrar uma distração, mas que ainda continuasse visível. Então tentei
manter as coisas assim. Se eu perdesse o foco por um segundo, a opacidade
mudaria. Levei três dias até conseguir manter tudo consistente.

O próximo passo seria a duração – ou melhor, a latência. Poderia mudar o


quanto do futuro poderia ver, canalizando mana para a parte dianteira do meu olho.
Eu só conseguia ver cerca de um segundo do futuro, mas com o uso de mana
conseguia ver até dois ou mais segundos. As possibilidades se desenvolviam em
segundas ou terceiras, igual a um galho e árvore sendo partido e apresentando
diferentes futuros.

Eu podia ver até três ou quatro segundos com mais mana, mas se tentasse ver
cerca de cinco segundos do porvir, a imagem se dividia e embaçava tanto que me
dava dor de cabeça. Isso representava o tanto de formas que o futuro poderia ter.
Além disso, quanto mais tentava ver o futuro, aparentemente mais isso
sobrecarregava o cérebro. Kishirika até disse que ter dois olhos demoníacos poderia
resultar em loucura. Talvez fosse graças à influência de todos seus olhos
demoníacos que ela parecia uma cabeça de vento.
Mas, independentemente disso, eu sabia que poderia ver um segundo do futuro
e continuar em segurança. Levei três dias para dominar isso, depois um dia extra
para aprender como controlar ambos os fatores ao mesmo tempo. No total, levei
sete dias para aprender o básico do uso do meu Olho da Previsão.

Enquanto estava ocupado canalizando mana em meu olho e


comandando: Cumpra minhas ordens, Olho da Previsão! Eris e Ruijerd iam a algum
lugar juntos todos os dias. Quando voltavam, Eris estava sempre banhada de suor
enquanto Ruijerd parecia tão composto quanto sempre, apenas suando um pouco
mais do que o normal. Deviam estar fazendo algo para suar tanto. E, ainda por cima,
todos os dias!

— Só por saber mesmo, mas gostaria de perguntar. O que vocês dois estão
fazendo?

Eris estava torcendo um pano encharcado de suor quando perguntei. Ela


respondeu:

— Heh heh, isso é segredo! — A garota parecia estar realmente se divertindo.

Então estava fazendo algo em segredo que não podia me contar? Ah, entendi.
Algumas tardes de prazer, eh? Acho que a única coisa que eu poderia fazer era me
afogar no cheiro daquele trapo encharcado de suor que ela segurava.

Não tenha a ideia errada – eu não estava particularmente preocupado com isso.
Eles só deviam estar saindo para treinar. Embora sua atitude pudesse sugerir o
contrário, Eris, na verdade, era do tipo que trabalhava duro em segredo. Quando
estávamos na região de Fittoa, fazia a mesma coisa, frequentemente treinando com
Ghislaine nos dias de folga. Naquela época, sempre que eu perguntava o que estava
fazendo, a garota exibia o mesmo sorriso cheio de confiança no rosto e dizia: “É
segredo!” Então, eu tinha certeza que desta vez também devia estar treinando.

Naquela noite, tive um sonho com um recluso de trinta e quatro anos me


cutucando na bochecha enquanto sussurrava em meu ouvido: “De agora em diante
seu apelido será perdedor patético.” Achei que devia ser obra do Deus Homem.
Aquele bastardo era mesmo bom para absolutamente nada.

Uma semana depois, informei Eris e Ruijerd sobre minha capacidade de


controlar o Olho da Previsão. Quando o fiz, Ruijerd sugeriu: “Então por que você e
Eris não lutam?” Era para testar o quão útil essa coisa seria em batalha? Ou para
me mostrar os resultados de seu treinamento especial? Fazer as duas coisas ao
mesmo tempo seria um ótimo negócio, então topei.
Nós fomos para a praia. Ruijerd ficou à margem para observar enquanto
tomávamos posições opostas um ao outro, empunhando as espadas.

— Você realmente acha que pode me vencer agora só porque tem esse olho
demoníaco?! — Eris estava se sentindo particularmente confiante. Devia ter
aprendido alguma técnica nova ou algo do tipo na semana que passou.

Eu queria manter aquele sorriso atrevido em seu rosto.

— Não, tudo bem se eu perder. Só quero saber o quanto posso ver com este
olho durante uma batalha, só isso. — Era por esse motivo que não usaria magia. Eu
também queria ver os frutos do meu próprio trabalho. Ajustei meu olho para poder
ver um segundo do futuro e a luta começou.

— Hmph, isso soa como algo que você diria, mas…

Eu podia ver o que ela faria mesmo enquanto a garota ainda estava
falando. Eris vai de repente balançar o punho esquerdo na minha direção. Se eu
não tivesse esse olho, não teria sido capaz de reagir a tempo. Seus ataques
preventivos eram algo quase que natural.

— Hah!

— Oho! — Consegui me esquivar de seu ataque. Rebati batendo palmas do


lado do seu rosto.

Então surgiu a próxima visão. Eris não vai sequer recuar – na verdade vai dar
início a um ataque violento, usando a espada empunhada em sua mão direita. Esse
era o seu ponto forte. Ela poderia ignorar qualquer número de ataques e lançar-se
direto à ofensiva. A parte inferior de seu corpo era tão forte que a maioria dos
ataques não a faria cambalear. Na verdade, quanto mais dano a garota tomasse,
mais aumentava sua raiva e mais agressivos seus ataques se tornavam.

— Tah!

— Certo! — Golpeei seu antebraço com força. Eris largou a espada.


Anteriormente, eu teria considerado um momento desses como o fim da batalha.
Deixar sua espada cair indicava a derrota, ou pelo menos era o que acontecia
quando eu estava treinando com Ghislaine. No entanto, pude ver com meus olhos
que isso ainda não havia acabado.

Eris já está retornando com seus ataques sucessivos.

Em outras palavras, foi apenas uma de suas fintas. Ela largou a espada para
me fazer baixar a guarda.

Vai me dar um soco bem no queixo com o punho esquerdo.

Em outras palavras, soltou a espada de propósito para me atrair a uma falsa


sensação de segurança, para que pudesse se lançar em seu estilo usual de combate
corpo a corpo: o Soco Boreas especial de Eris.
— O qu…!

— Suas pernas estão abertas. — Enganchei meu pé ao dela, atrapalhando o


seu equilíbrio. Seu punho golpeou o ar vazio e ela caiu no chão.

Ainda assim, parecia que a batalha não havia acabado.

Eris vai se segurar com as mãos, usar o rebote e o torque para dar um giro e
se agarrar à minha perna direita.

— Uhum. — Recuei e ao mesmo tempo abaixei meus joelhos, prendendo-a


para que não pudesse se mover.

Graças à maneira como ela contorceu seu corpo em uma tentativa desesperada
de me morder, o corpo de Eris ficou todo torcido. Um braço estava esmagado
embaixo dela, enquanto uma de suas pernas estava dobrada em direção ao seu
traseiro. Me perguntei o que ela faria a seguir, mas tudo que podia prever era mais
luta.

— Basta — gritou nosso juíz.

Eris caiu como se sua energia tivesse sido drenada.

Eu ganhei? Eu realmente ganhei? Foi a primeira vez que derrotei Eris em


combate corpo a corpo e sem magia.

— Perdi, hein… — Ela tinha um olhar surpreendentemente tranquilo em seu


rosto quando olhou para mim.

Saí de cima dela. A garota se levantou devagar e limpou a sujeira de sua roupa.

Ela vai me dar um soco.

A expressão de Eris azedou quando parei seu punho com minha mão.

— Estou indo para casa! — declarou em voz alta. Seus ombros tremeram
quando ela se retirou em direção à pousada.

Realmente a irritei? Não, não era isso. Provavelmente só a fiz perder um pouco
de confiança. Até então ela sempre me derrotou com bastante facilidade. Agora eu
tinha ficado repentinamente mais forte. Se estivesse no lugar dela, provavelmente
também ficaria com inveja.

— Eris ainda é uma criança — disse Ruijerd enquanto a observava partir.

— Isso é normal para a idade dela — respondi antes de olhar para ele.

O homem me olhou nos olhos e acenou com a cabeça.

— Bom trabalho.
— Qualquer um que tivesse um olho demoníaco poderia fazer isso.

Eu tinha melhorado um pouco a minha forma, mas havia dezenas de outras


pessoas neste mundo com habilidades físicas semelhantes. Qualquer um que
tivesse um olho demoníaco deveria ser capaz de fazer o mesmo.

— Um olho demoníaco não é algo que uma pessoa pode dominar logo após
conseguir.

— Ah, sério?

— Havia um Superd no meu bando de batalha que tinha um olho demoníaco.


Ele usava um tapa-olho o tempo todo e nunca conseguiu controlá-lo, nem mesmo
no dia em que morreu. Você que é estranho por ser capaz de controlar isso depois
de apenas uma semana.

Ah, certo. Tá, certo. Sim, entendi o que ele quis dizer.

Bem, trabalhei muito para controlar meu fluxo de mana e dominei o uso dele em
apenas uma semana. Então eu era o único capaz de controlar isso tão rapidamente,
hein? Entendo, entendo. Mwahaha!

— Talvez eu já consiga te derrotar, Senhor Ruijerd.

— Se usar magia — concordou.

— E em combate próximo?

— Quer tentar?

Decidi aceitar essa oferta. Para ser franco, eu estava me precipitando.

— Sim, por favor.

Ruijerd colocou sua lança de lado e assumiu uma postura de mãos vazias. Em
outras palavras, não precisava de sua arma característica para lutar contra um
nanico como eu.

— Você pode usar magia se quiser —falou.

— Não, se vamos fazer isso, faremos com nossas próprias mãos.

Antes mesmo de terminar, uma visão apareceu diante de mim. A palma de


Ruijerd virá direto na minha direção.

Eu conseguia ver. Podia ver o que ele iria fazer e reagir a isso.

— Oho! — Estendi minha mão para detê-lo.

Ele vai agarrar minha mão.


No momento em que tive a visão, instintivamente puxei minha mão de volta. No
momento seguinte, a visão ficou turva.

Ele vai acertar meu rosto com seu punho.

Apareceram duas visões; em outras palavras, existiam dois futuros em


potencial. Um em que ele agarrava meu braço e outro em que batia com o punho
na minha cara. O que estava acontecendo? A dúvida se agitou dentro de mim. Minha
visão não deveria ficar embaçada no intervalo de um segundo.

— Ow! — Inclinei meu corpo para trás, evitando seu ataque por pouco.

O punho de Ruijerd vai acertar a minha cara.

Eu conseguia ver. E podia ver tudo nos mínimos detalhes. Mas meu corpo já
estava contorcido após evitar seu último ataque. Mesmo se pudesse ver o que ele
faria a seguir, não seria capaz de me mover a tempo de desviar.

— Bwah!

Seu punho acertou o meu rosto em cheio. Minha cabeça bateu na areia da praia
enquanto eu caia no chão. Fiquei ali deitado de bruços.

Levantei a mão para verificar se havia algum ferimento. Eu estava bem, certo?
Esperava que ele não destruísse todo o meu lindo rosto. Agora não estava com o
rosto todo distorcido igual ao de um pug, certo?

— Se rende?

No momento em que ele perguntou, senti que estava acabado.

— Sim, admito a derrota. — Achei que poderia vencer quando tive a primeira
visão, mas parecia que as coisas não eram tão simples.

— Mas agora você entende, certo?

Peguei a mão que ele estendeu para mim e me levantei.

— Não, eu não entendo. O futuro que eu vi ficou borrado. Como é que você fez
aquilo?

— Não tenho ideia do que você viu, mas decidi que se tentasse se defender
com a mão eu a agarraria, e se não o fizesse, daria um soco. Isso foi tudo que
passou pela minha cabeça.

Em outras palavras, enquanto ele pudesse adivinhar o que eu faria a seguir,


poderia reagir a isso. Havia uma brecha tão grande entre nossos níveis de
habilidade que minha capacidade de ver um segundo no futuro, parando para
pensar, não significava nada. Pode-se dizer que era algo parecido com shogi.
Mesmo que um novato pudesse ver um movimento à frente, ainda não havia como
vencer um mestre.

Os habitantes deste mundo eram, em um grau incomum, altamente habilidosos.


Provavelmente havia muitos outros por aí que poderiam lutar como Ruijerd.

— Mais importante, eu lutei com alguém com o mesmo olho demoníaco antes.
Desde então, tenho lutado seguindo a suposição de que todos têm a mesma
habilidade. Você e eu temos diferentes níveis de experiência.

— Isso é verdade.

Então ele usou sua experiência para combater o Olho da Previsão. Talvez os
estilos de espada deste mundo também tivessem maneiras de se opor ao poder de
um olho demoníaco – por exemplo, a Espada Longa da Luz, do Estilo Deus da
Espada. Tive a sensação de que, mesmo se pudesse ver, não seria capaz de me
esquivar.

— Parece que me precipitei um pouco.

Parecia que as fraquezas do olho demoníaco já estavam estabelecidas há muito


tempo, sendo algo como encontrar uma maneira de bloquear a visão do portador,
usar um escudo, atacar por trás ou mesmo lutar no escuro.

Deixando tudo isso de lado, esse olho ainda tinha seu encanto. Afinal, venci
Eris. Só de pensar em como poderia usá-lo no futuro, meu coração disparava. Eu
tinha previsto tudo o que Eris faria. Foi totalmente diferente de como as coisas
costumavam ser. Em outras palavras, com prática, poderia até ser capaz de prever
os movimentos de Ruijerd.

Foi então que o eremita apareceu com um puf dentro da minha cabeça, com
sua careca brilhante e óculos escuros. Agora você não precisa ser espancado o
tempo todo para ver o quão longe chegou! disse ele.

Então tudo certo. Obrigado, eremita amante de seios. Hmm. Pensar em todas
as maneiras como eu poderia usar esse olho realmente fez meu coração disparar!

Quando voltei para a pousada, com um olhar sonhador no rosto, encontrei Eris
empoleirada na cama abraçando os joelhos. Ah, claro, eu tinha esquecido dela. Ela
estava deprimida. Enquanto isso, meu eremita interior pulou em seu casco de
tartaruga e desapareceu indo para outro lugar.

— Um, Eris?

— O que você quer?


Depois de nossa batalha, Ruijerd me contou o que os dois fizeram na última
semana. Pelo visto, no final das contas, foi um treinamento especial. Claro, não era
nada pervertido. Para se fortalecer, Eris se dedicou diariamente à prática da espada.
Como resultado, conseguiu vencê-lo uma vez.

Ela venceu Ruijerd uma vez. Isso era extraordinário. Eu provavelmente nunca
faria isso em toda a minha vida. Pelo visto, Eris ficou muito arrogante por causa
disso. É por isso que o Superd me usou para esvaziar seu ego.

Sério, mas que diabos? Foi seu próprio erro e ainda assim aquele aspirante a
guerreiro amante de crianças me fez limpar sua bagunça. Ainda assim, foi efetivo.
Seu ego tinha inchado muito depois de reivindicar vitória contra um oponente que
nunca havia vencido antes (Ruijerd), apenas para ser perfurado ao perder para um
oponente que nunca a havia derrotado antes (eu).

Dito isso, não acho que essa fosse a maneira certa de lidar com isso. Eu sabia
como era finalmente começar a pensar: Ei, será que peguei o jeito disso? apenas
para provar o contrário. Isso deixaria qualquer um se sentindo completamente
miserável, como se tudo o que tivesse feito até o momento fosse inútil.

Claro, talvez tenha ajudado a esfriar sua cabeça. Talvez assim ela evitasse
cometer grandes erros. Mas Eris provavelmente estava em um período de
crescimento acelerado. Não achei que ferir o ego dela seria a resposta certa. Em
vez disso, era melhor deixá-la ir mais além para que pudesse se desenvolver ainda
mais rápido. Então, poderia apontar suas deficiências e corrigi-las depois.

— Você realmente ficou muito forte, Eris.

— Está tudo bem, não precisa me confortar. De qualquer forma, eu sabia que
não iria conseguir te derrotar. — Ainda irritada, ela esticou o lábio e fez beicinho.

Hmm, o que eu poderia dizer? Eu não tinha boas frases para momentos como
este.

Ruijerd não tinha voltado para o quarto comigo. Para começo de conversa, foi
por culpa dele que o ego dela ficou fora de controle, então desejei que ele fizesse
algo sobre isso, embora fosse verdade que eu era o único que realmente tinha
estourado sua bolha.

Então, mais uma vez, se pudesse confortá-la adequadamente, seu medidor de


afeição sem dúvida aumentaria. Eris se apaixonaria por mim, e nós dois nos
abraçaríamos e esfregaríamos as bochechas enquanto dançávamos apaixonados.
Ruijerd devia ter pensado que era isso que aconteceria, e é por isso que nos deixou
em paz.

— Não perca toda a sua confiança com isso. Ouvi dizer que você conseguiu
derrotar Ruijerd uma vez. Isso é incrível, certo? — Sentei-me ao lado dela enquanto
falava. Quando fiz isso, Eris encostou seu corpo contra o meu. O doce aroma de
suor encheu minhas narinas. Era um cheiro bom, mas eu precisava me controlar.
Em situações assim precisava ser um cavalheiro.
— Isso é trapaça, Rudeus. Você ganhou um olho demoníaco enquanto eu tive
que trabalhar duro…

Congelei. Minha cabeça ficou dormente. Meu lobo interior recuou com a cauda
enfiada firmemente entre as pernas. Não havia nada que eu pudesse dizer em
resposta.

Ela estava certa. Por que eu estava ficando tão feliz? Era trapaça. O que eu fiz
foi desonesto. O poder do olho demoníaco não era algo que trabalhei duro para
conquistar. Simplesmente caiu no meu colo. Tudo o que fiz foi comprar comida em
alguma barraca e vagar pelos becos. Verdade, levei uma semana para dominar seus
poderes. Mas era só isso. Não precisei me esforçar. O que diabos estava fazendo
ao usar esse poder e agir feliz por ter vencido Eris quando ela passou uma semana
inteira trabalhando duro, ficando encharcada de suor?

— Sinto muito.

— Não se desculpe.

Depois disso Eris ficou em completo silêncio. Entretanto, não se afastou de mim.
Meu coração normalmente estaria batendo forte com o cheiro dela ou o calor de seu
corpo, mas desta vez não o fez. Em vez disso, apenas me senti envergonhado,
como se seu calor e o cheiro de seu suor estivessem me criticando. O ar estava
pesado.

Talvez fosse melhor para mim não usar o olho demoníaco, a menos que fosse
absolutamente necessário. Sua conveniência podia atrapalhar meu crescimento. Eu
entendi isso depois de lutar com Ruijerd.

No momento, a coisa mais importante não era pensar em como usar esse olho
demoníaco. Em vez disso, precisava aprimorar minha habilidade de combate. É
verdade, eu me tornava um lutador melhor quando usava o olho. Mas minhas
habilidades acabariam estagnando se dependesse disso. Depender de alguma
coisa só serviria como algo para me assombrar mais tarde. Isso era perigoso. Quase
me permiti pular direto nos esquemas daquele diabo traiçoeiro, o Deus Homem.

Decidi que só usaria meu olho demoníaco como um recurso final.

Naquela noite, passei um tempo pensando comigo mesmo.

No final das contas, ainda não havíamos encontrado uma maneira de cruzar o
oceano. Eu fiz alguma confusão? Segui o conselho do Deus Homem ao pé da letra,
mas tudo que ganhei foi o olho demoníaco.

Isso deveria ajudar em algo? Tipo em apostas? Mas prazeres como apostas
não existiam no Continente Demônio. Se o fizessem, provavelmente estavam na
forma de apostas em brigas entre duas pessoas. Isso não me renderia muito
dinheiro. Poderíamos usar Ruijerd como um gladiador e cobrar uma taxa de
participação de um ferro bruto com um prêmio de cinco moedas de minério verde,
mas ele eventualmente ficaria sem oponentes.

Hmm. Não importa o quanto eu pensasse nisso, não conseguia encontrar


nenhuma solução. Ainda estávamos na mesma situação de antes de receber o
conselho do Deus Homem. De certa forma, perdemos uma semana. Desperdiçamos
uma semana inteira .

— Certo… acho que devo vender isso. — Dizer as palavras em voz alta ajudou
a fortalecer minha determinação.

Felizmente Ruijerd não estava por perto nesta noite, e Eris já estava debruçada
em sua cama e com a barriga para fora. Seria problemático se ela pegasse um
resfriado, então puxei um cobertor sobre seu corpo.

Não havia ninguém para me impedir. A casa de penhores que ficava em um


daqueles becos ainda estaria aberta, certo? Afinal, as lojas que trabalhavam com
coisas suspeitas sempre ficavam abertas à noite. Com meu cajado em uma das
mãos, saí da pousada.

Só dei três passos para fora.

— Onde você está indo tão tarde da noite?

Ruijerd apareceu no meu caminho. Ele não estava no quarto, então pensei que
estivesse em outro lugar. Mas claramente estive errado. Droga, o que ele estava
tentando fazer, espiar as pessoas? Tinha que, de alguma forma, o enganar.

— Um, estava indo atrás de um pouco de diversão sexy e perigosa passeando


pelos bordéis.

— E você precisa de seu cajado para fazer sexo com uma mulher?

— Uh… é um acessório para brincadeiras sexuais.

Silêncio. Eu sabia que isso não ia funcionar.

— Você pretende vendê-lo?

— Sim… — Seu palpite foi tão preciso que tive que confessar.

— Vou perguntar de novo. Você vai vender esse cajado?

— Sim. Este cajado é feito de materiais de qualidade realmente boa, então deve
custar uma boa quantia.

— Eu não estou falando sobre isso. Ele não é importante para você? Assim
como este pingente. — Ele ergueu o pingente de Roxy, pendurado em seu pescoço.
— Sim, é igualmente importante.

— Se problemas semelhantes acontecerem no futuro, também venderá este


pingente?

Parei.

— Se for necessário.

Ele respirou fundo. Achei que fosse gritar, embora não fosse do tipo que
levantava a voz, a menos que tivesse algo a ver com crianças. Ele não gritou. Em
vez disso, soltou um suspiro enquanto falava.

— Eu nunca desistiria da minha lança, nem mesmo se estivesse encurralado.

— Isso é porque é uma lembrança do seu filho, certo?

— Não, porque é a personificação do espírito de um guerreiro.

O espírito de um guerreiro, hein? Essas eram palavras elegantes, mas não nos
ajudariam a atravessar o oceano.

Havia tristeza nos olhos de Ruijerd.

— Antes você mencionou que tínhamos três opções.

— Mencionei — concordei.

— Não me lembro de nenhuma que mencionasse vender o seu cajado.

— Não mencionavam.

Parecia que ele iria me repreender por mentir. Não, nunca tive a intenção de
mentir. Vender meu cajado fazia parte da opção de ataque frontal.

— Ainda não ganhei sua confiança?

— Confiança? Eu confio em você — falei.

— Então por que não discutiu isso comigo?

Desviei meus olhos com a pergunta. Eu sabia que ele não aprovaria meu plano.
É por isso que não falei com ninguém sobre isso. Talvez pudessem dizer que isso
era a prova de que eu realmente não confiava nele.

— Acredito que, no ano passado, consegui compreender o estado atual do


mundo. Mesmo se completássemos as missões da guilda ou mergulhássemos em
labirintos, nunca seríamos capazes de economizar duzentas moedas de minério de
ferro. É muito dinheiro. —Nesta noite Ruijerd estava sendo extraordinariamente
direto em seu discurso. Ele comeu algo estragado? — Você já sabia. É por isso que
pensou em usar um contrabandista. Eu não teria pensado nisso. Mas essa é a única
maneira de eu chegar ao Continente Millis. Nisso você está certo. Então, por que
está tentando vender seu cajado?

A única coisa que descobri foi uma opção melhor, não a melhor das opções. A
melhor opção, aquela em que tudo funcionaria perfeitamente, era muito difícil e
provavelmente terminaria em fracasso. Então, eu não sabia a solução correta, assim
como não sabia antes. Por isso também não estava convencido de que usar um
contrabandista fosse realmente a opção certa.

— Mesmo se for a opção certa, não adianta criar um desacordo dentro do nosso
grupo — falei.

— Então, acha que se confiarmos em um contrabandista, isso criará um


desacordo?

— Sim. Porque de acordo com seus valores, um contrabandista nada mais é do


que um criminoso.

Contrabandistas… Escravos estavam incluídos na lista de mercadorias com as


quais trabalhavam. Além disso, um dos crimes mais populares neste mundo era o
sequestro. Crianças eram fáceis de sequestrar. Simplificando, os contrabandistas
eram cúmplices no sequestro e venda de crianças.

— Rudeus.

— Sim?

— É minha culpa que as coisas tenham chegado a esse ponto. Se fossem


apenas vocês dois, você não teria que se preocupar em ganhar duzentas moedas
de minério verde.

Por outro lado, se ele não estivesse conosco, poderíamos ter nos deparado com
um desastre no meio do caminho. Ruijerd nos ajudou inúmeras vezes.

— Mesmo se você resolver o problema vendendo seu cajado, meu orgulho não
pode aceitar isso.

Seu orgulho não mudava o que precisava ser feito.

— Se eu vender o cajado, vou conseguir o dinheiro. Então podemos seguir


todas as regras, pagar e cruzar o mar. Ninguém precisa se arrepender. Ninguém
precisa comprometer nada. Essa é a maneira mais inteligente de fazer isso, certo?

— Mas a vergonha que vou sentir porque você vendeu isso ainda vai
permanecer. Eris também ficará incomodada. Não é esse o desacordo que você
estava falando querer evitar?

Fiquei em silêncio enquanto Ruijerd olhava diretamente para mim.


— Procure um contrabandista. Vou fechar os olhos aos crimes deles. — Ele
tinha uma expressão séria no rosto. Provavelmente decidiu não interferir, mesmo se
encontrasse uma criança sequestrada, apenas para que eu não tivesse que vender
meu cajado. Isso era tudo por minha causa. Ele estava sufocando seus próprios
princípios e crenças por minha causa. Se sua determinação fosse tão forte, eu não
poderia discutir.

— Se, durante a viagem, você vir algo desprezível de verdade e não conseguir
se conter, por favor, me diga. Devemos ao menos ser capazes de ajudar alguma
criança.

Se Ruijerd estivesse tão sério sobre isso, então desistiria do plano, por mais
inteligente que achasse que fosse. Contaríamos com um contrabandista para cruzar
o mar. Mas desta vez eu não iria dar atenção ao desnecessário. Se o Superd não
pudesse se conter, nós os trairíamos sem hesitação e ajudaríamos quem
precisasse. Usaríamos os criminosos conforme necessário e depois os jogaríamos
de lado.

— Tudo bem, então vamos começar a procurar um contrabandista — falei.

— Sim. Vamos fazer isso.

— Receio que você verá muitas coisas desagradáveis ao longo do caminho,


mas vamos superar isso juntos.

— Digo o mesmo.

Nós dois trocamos um aperto de mão firme.

Soltamos nossas mãos e estávamos prestes a voltar a dormir quando o rosto


de Ruijerd ficou rígido. De repente, ele preparou a lança em suas mãos.

— Quem é? Que negócios tem aqui!

Tremi de surpresa com o quão repentinas e intimidantes suas ações foram,


então segui seu olhar. Lá, na escuridão de um beco, estava a figura de um homem
solitário com um sorriso amarelo no rosto barbudo. Ele estava com os braços
levantados para demonstrar que não tinha más intenções. Havia uma espada
pendurada em sua cintura. Parecia até ter saído direto de uma cena de combate de
algum filme.

— Ooh, que assustador. E eu aqui pensei que tudo o que tinha ouvido sobre a
raça Superd era um monte de merda, mas aqui está você, a coisa real. — Ele exibia
um sorrisinho ao se aproximar. Eu já tinha visto esse cara em algum lugar antes. —
Em primeiro lugar, poderia guardar essa arma de aparência perigosa? Não vim
procurando por briga. Estava te procurando para agradecer.

— Tão tarde da noite?

— Ainda é um pouco cedo para ir para a terra dos sonhos, não acha?
Ah, agora lembrei. Era o homem com o qual me encontrei antes, o cara com
quem esbarrei logo depois de ganhar meu Olho da Previsão. Nunca sonhei que ele
apareceria para me agradecer no meio da noite. Com certeza era um bandido.

— Demorei um pouco para te encontrar. Ninguém sabia nada sobre um mago


com a vista ruim. Mas quando ouvi os rumores sobre o Fim da Linha, soube que era
você. Seu robe cinza e capacidade de lançar feitiços não verbais, bem como sua
altura – baixo como um hobbit – e aquela maneira condescendente e educada de
falar.

Mas eu não era um hobbit.

— Mestre do Canil Ruijerd. Você me ajudou há sete dias. E graças a você


também encontrei aquele idiota. Quando o encontrei, ele estava com o queixo
esmagado e desmaiado em um beco. Pobre tolo. No estado em que está, não
conseguirá beber nada além de álcool por um tempo. Mas não é como se o sujeito
bebesse alguma outra coisa.

Sério?

— Nah, é brincadeira. Há ao menos um curandeiro dentre meus amigos.

Bom. O homem com quem topei podia até ser um lolicon pervertido, mas pelo
menos não estava com a boca aberta.

— Então é por isso que você veio me agradecer?

— Isso, e por usar sua magia para me empurrar para fora do caminho. Você me
ajudou a não ter a cuca esmagada.

— Então isso é tudo. Bem, fico feliz por ouvir isso.

O homem falou com extrema gravidade:

— No meu ramo de trabalho, não há nada pior do que uma dívida de gratidão.
Não importa o quão pequena seja, se você não pagar de volta, ela acabará por
alcançá-lo e você pode ficar preso em uma situação em que terá de trair seus
camaradas. É por isso que é melhor pagar de volta, e pagar logo. — Ele balançou a
cabeça dramaticamente e apontou para mim. — Eu estava ouvindo, Mestre do Canil,
e você está com sorte. Acontece que você topou com alguém que é membro de uma
organização de contrabando.

Ruijerd e eu nos viramos para olhar um para o outro. Esse cara era membro de
uma organização de contrabando? Mas que desenvolvimento conveniente. Eu teria
suspeitado que ele estava mentindo, mas havia também o conselho do Deus
Homem. Talvez o objetivo principal fosse que eu encontrasse esse homem.

Enquanto eu lutava para tomar uma decisão, o homem pareceu interpretar mal
o nosso silêncio e estendeu a palma da mão em nossa direção.
— Dito isso, não tenha a ideia errada. Estou retribuindo um favor, mas
contrabandear um Superd está em um nível completamente diferente. Não acho que
minha vida valha apenas duzentos minérios verdes.

Sem saber o que ele quis dizer, virei meus olhos para o homem e o encorajei a
continuar.

O sujeito sorriu.

— Imagino que o Fim da Linha seja muito forte, então quero um favor. Quer
ouvir?

Ele iria retribuir um favor, mas também queria outro? Isso parecia um pouco
estranho. Então, novamente, o homem me viu usando magia não verbal. Sua
conversa sobre pagar uma dívida provavelmente era apenas uma distração; ele
estava na verdade procurando alguém competente para fazer algum trabalho. Foi
por isso que apareceu após ouvir nossa conversa.

Ruijerd lançou um olhar na minha direção. Afinal, negociar era meu trabalho.

— Depende dos detalhes do seu pedido.

— Nada muito difícil. — No entanto, as condições que ele listou foram um pouco
inesperadas. — Veja, temos que armazenar os produtos contrabandeados antes de
entregá-los e depois mantê-los seguros até que o contratante apareça para os
buscar. Em um mês a partir de agora, vamos armazenar alguns bens antes de
despachá-los. Quero que você liberte algumas pessoas. Se possível, gostaria que
tomasse providências para que voltem para suas casas.

— Não é essa a definição exata de trair seus amigos?

— Nah, é para o bem deles. Há um misturado entre essas mercadorias… bem,


escravos, como você os chama… que nos causará problemas no futuro. Vendê-los
nos renderia uma enorme fortuna, mas isso também voltaria para nos assombrar
daqui a um ano. — Ele encolheu os ombros e continuou: — Tentei dizer não, mas
não é como se fossemos um grupo único e organizado. Eu estava procurando
alguém capaz e calado que pudesse destruir seus planos. O que acha?

Mais uma vez, Ruijerd e eu trocamos olhares. Não estaríamos sequestrando,


mas sim salvando pessoas. Se fosse esse o caso, eu não via problema nisso, mas…

— Por que você não pode fazer isso? Com sua espada e suas habilidades,
deveria ser capaz, certo?

— Isso mesmo. Posso não parecer, mas sou o mais forte entre meus amigos.
Ainda assim, Senhor Superd, não é como se eu quisesse trair meus camaradas.
Tenho que considerar o que aconteceria depois, sabe. Mesmo se eu os salvasse,
não teria mais para onde ir, então não faria sentido. Só porque você é o mais forte,
não significa que está no topo da hierarquia.
Pela expressão no rosto de Ruijerd, era difícil dizer se entendia ou não o que o
homem queria dizer. Ele parecia entender de forma lógica, mas não emocional.

— Rudeus, eu não me importo. Você decide.

Ruijerd acabara de dizer que fecharia os olhos a qualquer transgressão. Não


importa o quão decadente o homem à nossa frente fosse, ele obedeceria se eu
decidisse aceitar.

Considerei isso. Era tudo muito suspeito. Ainda assim, era um dos resultados
do conselho do Deus Homem. Embora fosse verdade que eu não podia confiar no
próprio deus, provavelmente era melhor não pensar demais nas coisas e seguir o
fluxo, assim como fiz da última vez.

Com base no que ouvimos, não estaríamos cometendo nenhum crime. Havia
uma boa chance de a pessoa que estávamos ajudando ser um monstro horrível,
mas salvar alguém ainda era salvar alguém, independentemente de seu caráter.

Além disso, poderíamos até usar um contrabandista para nos conduzir através
do oceano. Este não seria um mau negócio se pudéssemos cruzar sem quaisquer
encargos ou taxas. Com tudo isso, foi fácil tomar uma decisão.

— Tudo bem, vamos fazer isso.

Ruijerd assentiu e o homem riu.

— Tudo bem então, vou confiar em você para fazer um bom trabalho. Meu nome
é Gallus Cleaner.

— Rudeus Greyrat.

E foi então que trocamos nossos nomes e decidimos assumir a missão de uma
organização de contrabando.

História Paralela -
Conexões Perdidas,
História Extra
Roxy Migurdia , a mulher que era mestra de Rudeus, desembarcou de sua
viagem marítima na cidade de Porto Vento no Continente Demônio.

Ela parou assim que desembarcou. A paisagem urbana de Porto Vento era
muito parecida com a da cidade ao norte de Millis, Porto Zant. Mesmo aqueles que
colocavam seus olhos nela pela primeira vez seriam acertados por uma sensação
de déjà vu.

No entanto, o déjà vu não era a razão pela qual Roxy fez uma pausa. Era por
haver uma clara diferença entre o ar do local e aquele do Continente Millis.

Já faz tanto tempo, pensou. A nostalgia surgiu lá do fundo de seu peito. Quando
foi a última vez que ela esteve no lugar? Já deviam fazer cerca de quinze anos.
Quando pensou nisso, percebeu quanto tempo havia passado desde que começou
a invejar os humanos e fugiu de seu vilarejo.
Naquela época, quando foi parar no Continente Millis e comeu os doces feitos
por humanos, ficou chocada em como aquela comida deliciosa poderia existir no
mundo. Decidiu então que nunca iria comer comida do Continente Demônio
novamente, e que também nunca iria voltar.

Parando para pensar, foi algo meio simplório, pensou.

Na verdade, ela não tinha retornado desde que trocou o Continente Millis pelo
Continente Central, e nunca sequer considerou retornar. Havia muita coisa no
Continente Central. Tudo o que viu lá era refrescante e excitante, e, antes que
percebesse, já havia vivido no Continente Central por tanto tempo quanto viveu no
Continente Demônio.

Em todo esse tempo, o Continente Demônio nunca apareceu em sua mente. E,


mesmo quando estava desbravando labirintos e enfrentando a morte, não parou
para pensar nos pais que havia deixado para trás, no Continente Demônio.

Apesar disso, agora ela havia retornado.

Nunca se sabe aonde a vida vai te levar, pensou.

— Roxy! Estamos indo!

Enquanto ela estava parada, uma mulher a chamou. As orelhas dela


espreitavam de uma juba luxuriante de cabelo dourado, da mesma cor de pão recém
assado. Era uma elfa, alta e esguia, com uma cintura fina e um traseiro redondo e
bonito. O coração de Roxy se enchia de inveja cada vez que via a mulher à distância.
Não havia nada que pudesse ser feito; era como os elfos eram, mas ela ainda
desejava poder ter um corpo assim. E embora seus bustos fossem semelhantes, a
elfa era bem equilibrada e bonita, enquanto Roxy parecia simples e infantil.

— Sim, já vou. — Um suspiro escapou de seus lábios.

O nome daquela mulher magnífica era Elinalise Dragonroad. Ela era uma
guerreira elfa, perfeita para a vanguarda na linha de frente. Estava equipada com
um escudo e uma estoque, que usava principalmente para atacar com estocadas.
Suas habilidades eram tão magníficas quanto sua aparência.

Uma estoque não era uma arma comum entre os aventureiros. No Reino Asura,
era usada pelos nobres durante os duelos, e na região norte era usada por
guerreiros quando estavam totalmente equipados com armaduras. A que estava na
posse de Elinalise era um item mágico encontrado nas profundezas de um labirinto.
Era mais resistente do que a maioria das espadas e um único movimento poderia
criar um vácuo de vento capaz de derrubar árvores a metros de distância. Seu
broquel também era um item mágico com a habilidade de mitigar qualquer ataque
que recebesse.

— A-aah… terra firme, é terra firme… — Um anão idoso saiu cambaleando do


navio por trás de Roxy. Sua armadura pesada retinia e sua barba enorme balançava
enquanto ele se agarrava a uma vara, com o rosto pálido feito um fantasma.

Seu nome era Talhand. Formalmente, era conhecido como Talhand do Arrojado
Grande Pico da Montanha. Ele tinha quase a altura de Roxy, com mais de duas
vezes sua circunferência. Este homem, com sua barba volumosa e armadura
pesada por todo o corpo, era um mago.

Por que um mago estava usando tanta armadura? No começo até Roxy
questionou. Mas os pés de Talhand eram lentos e sua agilidade inexistente. Se uma
besta o atacasse, ele não teria como escapar. No entanto, com essa armadura
volumosa o protegendo, poderia usar magia mesmo na linha de frente.

— Você está bem, Senhor Talhand? Devo lançar alguma cura em você?

— Não, não precisa. — Ele balançou a cabeça para frente e para trás e deslizou
seu corpo lento para frente. O anão era normalmente um pouco mais ágil do que
isso, mas ficou enjoado e isso o enfraqueceu.

Elinalise colocou a mão no quadril e pigarreou.

— Isso é sério? Que patético. Isso é só um barco.

O rosto de Talhand ficou vermelho de raiva. —

— Você… o que acabou de dizer…?!

Os dois eram rápidos em começar a brigar um com o outro, então cabia a Roxy
intervir.

— Vamos brigar sobre isso mais tarde, por favor. Senhorita Elinalise, você não
tem que comentar a respeito de tudo. Algumas pessoas são predispostas a enjoar.

Roxy os conheceu na cidade de Porto Leste, no Reino do Rei Dragão. Os dois


estavam brigando na Guilda dos Aventureiros e, a princípio, ela os ignorou. No
entanto, interveio quando ouviu em meio às brigas que estavam procurando por
pessoas desaparecidas da Região de Fittoa e planejavam viajar para o Continente
Demônio. Nenhum deles era bom com a geografia do Continente Demônio e, como
resultado, tinha opiniões conflitantes. Talhand argumentou que deveriam ir para o
Continente Begaritt, uma vez que conheciam a geografia do terreno, ou a parte norte
do Continente Central. Elinalise, por outro lado, disse que ainda podiam procurar
pessoas, mesmo se não soubessem o caminho, e que sempre podiam contratar
alguém assim que chegassem. E havia Roxy, lidando sozinha com sua ansiedade,
uma nativa do Continente Demônio. Era quase como se estivesse destinada a
encontrá-los.

Enquanto a conversa continuava, descobriu que eram ex-membros do grupo de


Paul e Zenith. Eram chamados de Presas do Lobo Negro. Roxy tinha ouvido falar
deles. Foi um dos grupos mais famosos de todo o Continente Central: um grupo
misto, cheio de membros com uma ou duas peculiaridades e que já foi assunto da
cidade. Subiram para o rank S em poucos anos e se separaram logo depois, mas
ela se lembrava bem deles.

Ainda assim, nunca percebeu que Paul e Zenith eram membros dos Presas do
Lobo Negro. Foi impossível esconder sua surpresa. E os dois ficaram igualmente
surpresos com ela. Afinal, era Roxy Migurdia, bem conhecida pelo povo como uma
maga da Água do nível Rei, uma jovem garota de cabelo azul, nativa do Continente
Demônio. Alguém que entrou na Universidade de Magia e dentro de alguns anos
obteve o título de maga de Água de nível Santo, e então atravessou um labirinto nos
arredores do Reino Shirone, um que tinha 25 níveis de profundidade. Depois disso,
se tornou uma das magas da corte do Reino Shirone.

Um trovador cantou histórias de suas primeiras aventuras, transformando-as


em versos que divulgaram ainda mais o seu nome. Era uma história sobre como
uma jovem maga deixou sua cidade natal, encontrou três aventureiros novatos e
viajou ao redor do Continente Demônio antes de partir para o Continente Millis. Seu
nome não aparecia na rima. No entanto, os aventureiros que conheciam a música
reconheciam Roxy graças à sua descrição.

Chamar os três (Roxy, Elinalise e Talhand) de um grupo de espíritos


semelhantes seria um exagero, mas era verdade que seus objetivos coincidiam.
Roxy estava indo para o Continente Demônio para procurar Rudeus, enquanto os
outros dois estavam honrando o pedido de Paul para procurar seus familiares. E
então formaram um grupo e seguiram para o seu destino.

Embarcaram em um navio tendo o Continente Millis como primeiro destino. Lá,


na cidade de Porto Oeste, usaram uma enorme quantidade de dinheiro para comprar
cavalos Sleipnir e uma carruagem. A despesa foi grande, mas era o de menos diante
do tamanho de suas bolsas.

Evitaram a capital sagrada de Millishion, já que os outros dois não se davam


muito bem com Paul. Ambos também tinham má reputação entre seus respectivos
parentes, então se mantiveram longe do assentamento da Montanha Wyrm Azul,
onde os anões residiam, assim como do assentamento dos elfos na Grande
Floresta. Em vez disso, foram direto para Porto Zant.

De acordo com a dupla, a estação das chuvas logo chegaria à Grande Floresta,
então deveriam se mover rápido enquanto podiam. Mas com a maneira como
forçavam os cavalos a se moverem constantemente, mesmo à noite, parecia que
apenas não queriam estar no Continente Millis por um segundo a mais do que o
necessário. Roxy presumiu que o verdadeiro motivo era que simplesmente não
queriam voltar para casa.

Quaisquer que fossem suas razões, chegaram ao Continente Demônio em


tempo recorde, então ela não tinha queixas.

— Primeiro vamos passar na Guilda dos Aventureiros — propôs Roxy, e os três


foram nessa direção. A guilda sempre era a primeira parada para os aventureiros.

— Espero que seja um lugar legal!

Roxy fez uma careta diante das palavras de Elinalise. A elfa podia até parecer
casta, mas amava os homens. Com aquela silhueta era difícil imaginar, mas
provavelmente tinha vários filhos. De acordo com a elfa, tudo isso era parte da
maldição que foi lançada sobre ela, mas a mulher não parecia nada ofendida com
isso. Na verdade, parecia até gostar. Roxy não conseguia acreditar.
— Senhorita Elinalise, não estamos procurando por homens.

— Eu sei disso.

Não, você não sabe, Roxy fez uma careta. Elinalise podia não ter nenhum
problema com sua assim chamada maldição, mas Roxy desejou que ela pensasse
no grupo com a qual estava viajando. Estava tudo bem para a elfa fazer o que
quisesse em seu próprio tempo, mas esta era uma emergência. Além disso, se
engravidasse, isso só atrasaria ainda mais a viagem.

Gostaria que você fosse com um pouco mais de calma, pensou Roxy.

— Talvez você devesse arranjar um ou dois homens e…

— Não posso fazer isso.

Mas se eu fosse tão linda quanto você, quem sabe, pensou


amargamente. Infelizmente, nenhum dos homens por quem Roxy havia se
interessado a via como mulher. Ela era popular entre as crianças, mas não tinha
sorte quando se tratava de homens.

A Guilda dos Aventureiros do Continente Demônio tinha uma atmosfera única


em comparação com sua contraparte no Continente Central. Muitas raças diferentes
eram emparelhadas no mesmo grupo.

Quando Roxy entrou, encontrou um grupo que obviamente era de novatos. Três
meninos, todos vestidos com roupas de guerreiro. Eles se aproximaram dela
timidamente.

— U-um, você… entraria em um grupo com a gente?!

Roxy sorriu ironicamente diante de seu pedido.

— Não, como você pode ver, já estou em um grupo.

Antes de se retirarem, os três sorriram amargamente diante de sua recusa. Não


foi a primeira vez que ela foi convidada para um grupo parecido; foi convidada por
diversos grupos de três garotos.

O trovador havia dito que escreveria canções sobre ela, mas Roxy nunca
esperou se tornar tão famosa.

— Roxy, que tal pensar um pouco? Afinal, você está sendo convidado por
ótimos garotos! — Elinalise deu um tapinha na cabeça dela.

Isso acontecia com frequência. Roxy não ia se incomodar em responder a isso.


Ela não era uma criança.
— Nossos ranks são bem diferentes. Não há maneira pela qual poderíamos
formar um grupo. — Ela estava atualmente no rank A. Os meninos seduzidos pela
canção do trovador eram, em média, apenas de rank D. Nunca aconteceu de ser
abordada por ninguém que estivesse acima do rank B.

Na primeira vez que recebeu um daqueles convites para um grupo, se gabou


de como era a personagem principal daquelas canções, apenas para descobrir que
não era nem nomeada nelas, e então ficou envergonhada. Era uma memória que
preferia esquecer.

Ela nunca imaginou que o trovador deixaria de reconhecer sua raça. Em vez
disso, ele presumiu erroneamente que ela tinha apenas doze anos e havia chegado
ao rank A em apenas dois anos. Não apenas isso, mas a versão atual da música
era tão dramatizada que dizia que ela viajou pelo Continente Demônio e chegou
ao rank A em apenas um ano.

Não se iluda, pensou Roxy. Na realidade, ela levou cerca de cinco anos para
chegar ao rank A. Com o Continente Demônio como sua base de operações, subiu
ao rank B em três anos. A partir de então, passou dois anos pulando de grupo em
grupo. Entretanto, essa ainda foi uma ascenção rápida. Se ela recomeçasse
do rank F, poderia conseguir chegar ao rank A em apenas um ano, mas um grupo
de crianças sem experiência nunca conseguiria fazer isso.

— Você poderia os moldar em homens que se ajustariam aos meus gostos.


Que pena.

As palavras de Elinalise desencadearam um flashback para os três


aventureiros novatos que a abordaram naquela primeira vez. Eles se chamavam de
Gangue Rikarisu, eram três garotos que a ajudaram depois que ela deixou a aldeia
Migurd, quando era nada mais do que uma caipira que não conseguia distinguir a
esquerda da direita.

Um deles era muito sarcástico, sempre inventava mentiras para tudo, mas era
muito bom em cuidar das pessoas. Outro adorava xingar as pessoas e tinha uma
boca suja, mas também era muito determinado. O terceiro era incrivelmente
inteligente e mantinha o grupo unido. Ele morreu durante a jornada.

Seu grupo se dissolveu quando chegaram a Porto Vento, mas ela se perguntou:
Os outros dois ainda estavam vivos e bem? Depois de se aventurar pelo Continente
Central, entendeu o quão severas eram as condições do Continente Demônio. Havia
uma grande chance de que já estivessem mortos.

Nokopara e Blaze… Espero que ainda estejam bem. Ela se pegou rindo quando
pensou nisso. Já fazia vinte anos. Os dois não tinham expectativa de vida
particularmente longa, então talvez já tivessem se aposentado das aventuras há
muito tempo. A única que permaneceu igual foi Roxy.

Vamos deixar a saudade para outro momento, decidiu, interrompendo as


reminiscências. Ela estava em busca de Rudeus ou sua família.
— Tudo bem, vamos começar a coletar informações — propôs aos outros dois,
e começou a verificar o interior da guilda.

A partir das informações que coletaram, descobriram que o Fim da Linha estava
na cidade — um novo e promissor grupo de aventureiros que rapidamente fez seu
nome.

Fim da Linha. Não havia nenhuma pessoa no Continente Demônio que não
conhecesse esse nome. Mesmo entre os Superds, eram considerados
especialmente perigosos, bestas que visavam principalmente as crianças. Quando
Roxy era apenas uma criança, sua mãe sempre a ameaçava com esse nome. “Se
você não se comportar, o Fim da Linha virá para te levar embora”, ela sempre dizia.

Eles voltaram para a pousada. O rosto de Roxy azedou quando juntaram todas
as informações que tinham sobre este “Fim da Linha”.

— É um pouco difícil de acreditar.

— Em qual parte?

— É difícil acreditar que alguém em sã consciência fingiria ser o Fim da Linha.

O que havia de tão assustador nisso? O fato de que o grupo real existia. Aqueles
no Continente Central não sabiam disso, mas o nome definitivamente se referia
a alguém lá fora. Claro, Roxy nunca os tinha visto, mas todos os rumores que ouviu
eram aterrorizantes. Eram as criaturas mais terríveis do Continente Demônio.

A Guilda dos Aventureiros nunca listou seus nomes exatos, por medo de
retaliação, mas se houvesse um pedido de extermínio para aqueles demônios, seria
definitivamente classificado como rank S. Era o tipo de trabalho que daria o rank S
instantaneamente aos aventureiros que o realizasse.

— Eu também não faço ideia — disse Elinalise.

De acordo com as informações que ela reuniu, o homem que afirmava ser o Fim
da Linha tinha pele clara, era careca e carregava uma lança consigo. E também era
muito bonito.

— Já que disseram que ele é um cara bonito, por que não o convido para minha
cama para conseguir mais respostas?

Talhand se curvou e cuspiu com desdém.

— Essa informação é inútil.

De acordo com o que Talhand havia descoberto, o Fim da Linha era um grupo
de três pessoas. Eles se referiam a si próprios, respectivamente, como Cão Louco
Eris, Cão de Guarda Ruijerd e Mestre do Canil Ruijerd. Os dois últimos eram irmãos.
O Cão Louco tinha cabelo ruivo, o Cão de Guarda era um varapau e o Mestre do
Canil era um baixinho. O Cão Louco usava uma espada, o Cão de Guarda uma
lança, e o Mestre do Canil um cajado que aparentemente era um item mágico. A
reputação deles não era lá muito boa.

— O Cão Louco perde a paciência bem rápido, e o Mestre do Canil só faz coisas
horríveis. Mas, pelo visto, o Cão de Guarda não é um cara mau. Ama crianças, tem
um forte senso de justiça e se recusa a fechar os olhos ao mal.

Essa é uma avaliação muito estranha para as pessoas fazerem, pensou Roxy.
Talvez o próprio grupo tenha criado os rumores. Se um grupo de malfeitores fizesse
algo de bom, isso se espalharia como um incêndio. Mas, pelo visto, não eram
apenas violentos, mas também astutos e espertos.

— Um bando perigoso. Vamos nos certificar de evitá-los.

— Aye — concordou o anão. — Não precisamos chamar a atenção do tipo de


gente errado quando deveríamos estar procurando por pessoas.

— Tudo bem, então vamos passar para a agenda principal — disse Roxy,
redirecionando a conversa. O propósito de irem para a Guilda dos Aventureiros não
tinha sido reunir informações sobre o Fim da Linha. — Houve algum boato sobre
pessoas da Região de Fittoa?

— Nenhum — disse Talhand.

— Não, não ouvi nada — falou Elinalise.

Devemos estar atrasados demais, pensou Roxy.

O Continente Demônio não era o tipo de lugar tranquilo no qual alguém poderia
sobreviver ao ser teletransportado sem o equipamento adequado. Era uma terra
onde simplesmente sobreviver durante um ano poderia ser difícil, mesmo para os
habitantes locais. Além disso, já havia se passado um ano desde o deslocamento
da Região de Fittoa.

Aqueles que foram teletransportados podiam já ter morrido.

— As pessoas que estamos realmente procurando são a família de Paul.

— Então são Zenith, Lilia, Aisha e Rudeus.

Roxy ensinou Talhand e Elinalise como eles poderiam identificar cada um deles.
Aisha era a única sobre a qual não sabia nada, porque só soube sobre ela através
das cartas de Rudeus.

— Bem, Zenith deve estar bem — disse Elinalise.

— Sem dúvida.
Os dois conheciam Zenith, então não expressaram nenhuma preocupação.
Roxy, por outro lado, não sabia o quão capaz a mulher era, mas confiava nesses
ex-membros do Presas do Lobo Negro que a apoiaram. Se Elinalise e Talhand
achavam que Zenith ficaria bem, então ela ficaria bem.

— Rudeus também se destaca muito, então devemos ser capazes de encontrá-


lo facilmente. — Roxy se lembrou do talento avassalador que seu pupilo de cinco
anos demonstrara. Ele certamente seria o assunto da cidade, não importa aonde
fosse.

Zenith e Rudeus seriam os mais fáceis de encontrar se saíssem em busca de


informações. Eles também tinham a força para sobreviver no Continente Demônio,
desde que pousassem em algum lugar perto da civilização. Por isso, desde o
começo, priorizaram encontrar informações sobre Lilia e Aisha.

— Vamos definir um prazo. Dois dias para reunir o máximo de informações


possível sobre Lilia e Aisha, depois, no terceiro dia, faremos os preparativos para ir
aos outros assentamentos na área. Isso soa como um bom plano?

— Não será meio cedo?

Roxy balançou a cabeça diante das palavras de Elinalise.

— Há uma grande probabilidade de que já estejam mortos, e o Continente


Demônio é grande. Faremos uma única passagem pelas principais cidades e
colocaremos solicitações de busca por pessoas desaparecidas em cada guilda que
encontrarmos ao longo do caminho.

O Reino Asura cobriria os custos incorridos durante a busca por residentes da


Região de Fittoa. Contanto que seu grupo submetesse solicitações em cada guilda,
a recompensa pela conclusão bem-sucedida seria fornecida pelo Reino Asura,
então poderiam ficar tranquilos quanto a isso. Não era um processo automatizado,
já que a guilda exigia que alguém assinasse um formulário de solicitação antes de
poder publicá-lo. Por outro lado, se a guilda não postasse os pedidos, então o Reino
Asura não teria razão para pagar qualquer coisa.

Roxy se sentiu genuinamente irritada com a forma atroz como o Reino Asura
estava lidando com um desastre tão grande. Possuíam um enorme poder, então ela
achou que deveriam tomar ações mais proativas. Na verdade, as únicas pessoas
que realmente participaram dos esforços de busca foram Paul e as pessoas ligadas
a ele. Em outras palavras, apenas aqueles afetados pelo desastre.

Parece que toda aquela conversa sobre o círculo interno do Reino Asura ser
corrupto era mais do que um boato, pensou. Era o país com a história mais longa
do mundo, então ainda estava se mantendo, mesmo com a deterioração de seu
poder e tradições.

— Tudo bem, amanhã vamos nos ocupar com a coleta de informações.

— Certo, faremos isso!


— Entendido.

Roxy não era do tipo que enrolava com as coisas. Não importa onde estivesse,
nunca perdia tempo. Ela sempre terminava as coisas rapidamente e então partia.
Essa parte de sua personalidade transpareceu quando inicializou Rudeus,
ensinando-lhe sua técnica especial e imediatamente partindo para outro lugar.
Tomar decisões rápidas era seu forte, mas também parte do motivo pelo qual
Rudeus a via como uma cabeça de vento. Outros haviam apontado para essa sua
característica, mas Roxy ainda considerava isso um ponto forte.

Foi por isso que definiu um cronograma para enviar um pedido à guilda no
primeiro dia, pesquisar no segundo e partir no terceiro. Uma programação rápida e
concisa, sem furos. Se ficassem por uma semana, os resultados poderiam ser um
pouco diferentes.

No segundo dia, a curiosidade de Roxy tomou conta dela e ela foi ver o que o
Fim da Linha estava fazendo. O grupo deles se destacava, então foi fácil encontrá-
los.

Dois deles estavam diligentemente treinando na praia. Como dizia sua


informação, um era um varapau careca, enquanto o outro era uma jovem ruiva. Ela
empunhava a espada com as duas mãos o tempo todo, balançando-a em uma
velocidade assustadora enquanto o careca aparava os ataques sem qualquer
dificuldade.

Sua informação dizia que o Fim da Linha era um grupo de três pessoas, com
uma pessoa alta e duas baixas. Parece que o pequeno Mestre do Canil não está
com eles, pensou.

O Cão de Guarda e o Cão Louco continuaram seu confronto testando ataque


contra defesa em alta velocidade. Talvez confronto não fosse a palavra certa, visto
que o Cão de Guarda simplesmente desviava os ataques do Cão Louco, mas as
técnicas que ele usava estavam além do nível de Roxy.

Ela os observou de longe, espiando por trás da sombra de uma rocha. Era
quase como se isso fosse um jogo de beisebol profissional e ela fosse a irmã mais
velha de um arremessador que usava bolas de magia como sua arma na batalha.

Os dois eram fortes, até mesmo para Roxy, que havia viajado pelo mundo como
uma aventureira. Essa não era uma força que poderia ser alcançada apenas pela
técnica.

No final das contas, poderia acabar sendo bom entrar em contato com eles.

Assim que ela pensou isso, o Cão de Guarda olhou por cima do ombro.

Ah…!

Parecia que seus olhos se encontraram. Seu olhar era tão intenso que deu a
Roxy um indescritível sentimento de terror. O suficiente para lhe dar a ilusão de que
era uma presa sendo caçada.
Ela fugiu na mesma hora.

Ruijerd a sentiu desde o início. Ele não tinha certeza do que ela queria, ou se
estava apenas assistindo. Quando casualmente olhou em sua direção, viu o rosto
de uma garota espreitando por trás de uma pedra.

Não, não uma garota, percebeu. Uma mulher Migurd adulta. Ele não poderia
dizer só de relance, mas não havia como enganar o terceiro olho de Ruijerd. O
homem não reconheceu a presença dela, mas também existia mais de um
assentamento Migurd.

Ele percebeu que ela provavelmente estava apenas olhando por curiosidade,
mas quando olhou para trás, a mulher se virou e saiu correndo para algum
lugar. Hm. Eu a assustei? se perguntou.

Ruijerd baixou a guarda por um momento, e Eris atacou. Foi um ataque


contendo todo o seu poder.

— Guh!

Depois de trocar três golpes, Eris atingiu as costas da mão de Ruijerd e o fez
largar a espada.

— Yay! Eu fiz isso?! Eu fiz isso, certo?! Siiiim! — Eris pulou e balançou as duas
mãos esbanjando alegria.

Ultimamente, suas habilidades estavam começando a tomar forma. No futuro,


certamente seria uma boa espadachim, mas agora ainda era jovem. Se pensasse
muito de si mesma nesse momento, no futuro isso poderia acabar resultando em
um desastre. O homem não planejava deixá-la vencer uma luta por um bom tempo,
mas aquela garota Migurd chamou sua atenção e ele baixou a guarda por um
momento.

Ruijerd soltou um suspiro, baixo o suficiente para que Eris não ouvisse.

Roxy olhou por cima do ombro inúmeras vezes enquanto corria de volta para a
pousada. O tempo todo, temia estar sendo seguida e que um ataque pudesse estar
chegando. Se fosse lutar contra alguém daquele calibre, precisava preparar um
cristal mágico. Ela podia precisar até mesmo de um círculo mágico desenhado em
um pergaminho.
Não parecia que iriam atacar só porque ela estava os observando, mas se eram
loucos o suficiente para se chamarem de Fim da Linha, Roxy queria estar preparada.

— Aah! Sim! Bem aí! Mais forte, mais forte!

Ela ficou exasperada ao ouvir os gemidos de Elinalise por trás da porta. A elfa
nem se preocupou em reunir informações; simplesmente encontrou um homem para
trazer para a pousada com o qual pudesse se divertir.

— Sério…?

Talhand já havia mencionado o hábito de Elinalise, o de levar homens para o


quarto. Independentemente das circunstâncias, a elfa sempre se apaixonaria por
algum homem que conhecesse e passaria a noite com ele. Isso incluía seu tempo
em Porto Zant. De acordo com Talhand, ela fez isso até quando estavam nas
profundezas de um labirinto. A mulher não tinha princípios.

Ao mesmo tempo, Roxy se sentiu um tanto aliviada. Ela teria se sentido


desamparada se tivesse sido deixada sozinha. Enquanto Elinalise estivesse no
quarto vizinho, poderia se preparar para a batalha e esperar. Assim que a elfa
terminasse, Roxy a agarraria pela orelha e sairia para retomar a coleta de
informações. Dessa forma, também poderia ficar de olho na mulher, efetivamente
matando dois coelhos com uma cajadada.

Mas duvido que viriam até a pousada, pensou, ao entrar em seu quarto para
conduzir os preparativos para a batalha.

As paredes não eram particularmente finas, mas ainda podia ouvir os gemidos
de Elinalise ressoando. Ouvi-los a deixou com um humor estranho.

Não, pare aí, pensou, e agarrou a mão direita com a esquerda bem no momento
em que estava pensando em fazer alguma coisa. Ela não tinha tempo para isso
agora.

Eles já estão fazendo isso há bastante tempo, pensou quando três horas se
passaram. Roxy continuou esperando em silêncio. Parecia que o encontro de
Elinalise jamais acabaria. Certo, também não havia indicação de que o Fim da Linha
iria lançar qualquer ataque contra eles.

Roxy se sentiu uma idiota. Ela não só não conseguia fazer o que precisava,
como também não conseguia expressar sua frustração por Elinalise ser tão egoísta.
Foi especialmente enfurecedor, pois, ao contrário da elfa, Roxy estava
demonstrando autocontrole e dizendo a si mesma que agora não era hora de se
ocupar.

Quando sua raiva atingiu o auge, ela finalmente arrombou a porta de Elinalise.

— Por quanto tempo você vai continuar fazendo isso! Deveríamos estar
reunindo…

— Ah, nossa! Roxy? Quando você voltou?


— Ah… eh?

Havia cinco homens dentro do quarto.

— Quer participar?

O cheiro de homem estava forte. Todos tinham sorrisos vulgares e Elinalise


estava montada em cima de um deles, parecendo estar no auge do êxtase. O fato
de haver várias pessoas, e de todas estarem de acordo com isso, estava além da
compreensão de Roxy.

— Uh, o qu…

A cena diante dela era tão repreensível que a maga não conseguiu nem
processar.

— Aaaaaaaaaaaaah!

Roxy soltou um grito inútil ao sair correndo do quarto. Ela voou para o primeiro
caminho que encontrou, completamente sem fôlego e segurando seu cajado.

— Ó, espíritos das magníficas águas, suplico ao Príncipe do Trovão! Com sua


majestosa lâmina de gelo, mate meu inimigo! Explosão de Sincelo!

A pousada ficou parcialmente destruída.

No outro dia, partiram da cidade. Mal conseguiram reunir informações depois


de tudo o que aconteceu e se esqueceram de enviar um pedido à guilda. Também
destruíram uma pousada, o que lhes custou uma quantia considerável.

— Isso é tudo culpa da Senhorita Elinalise.

— Você não pode me culpar. Eu estava em um beco coletando informações


quando me procuraram com seu apelo apaixonado.

— Mesmo assim, eram cinco… cinco pessoas, sabe?! — Roxy lembrou.

— Algum dia você vai entender. Uma aventureira forte e bonita como eu sendo
subjugada e tratada como um brinquedo sexual por cinco daqueles bandidos? Ah,
só pensar nisso já é o suficiente para me deixar grávida.

— Eu não quero entender.

Quando Roxy estava na Universidade de Magia, ainda era uma criança e não
entendia o apelo de ter um amante ou ser casada. A primeira vez que pensou em
querer algo assim foi quando viu como Paul e Zenith eram íntimos um com o outro.
Foi quando finalmente decidiu que queria o mesmo para si mesma.
Ainda assim, como? Ela se perguntou na época. Então se lembrou do que uma
conhecida da universidade lhe disse. Essa conhecida conheceu seu marido nas
profundezas de um labirinto. A luta compartilhada e a maneira como a superaram
levou ao casamento.

É isso, pensou Roxy. Se eu mergulhar em um labirinto, também devo ser capaz


de encontrar um parceiro.

Essa fantasia tomou proporções cada vez maiores em sua cabeça. Ela iria de
alguma forma esbarrar em alguém que era alto, viril e elegantemente vestido – um
jovem homem com um apelo juvenil – nas profundezas de um labirinto, e ele a
salvaria. Então os dois combinariam suas forças para escapar e, ao fazê-lo, seu
amor germinaria e floresceria. O jovem descobriria que um de seus amigos havia
morrido e Roxy o confortaria. Essa seria sua primeira noite juntos.

Mas quando realmente foi para um labirinto, essas fantasias foram rapidamente
destruídas. Um labirinto era um lugar hostil, e os aventureiros que entravam nele
eram muito brutos. A única pessoa de aparência jovem entre eles era a própria Roxy.

No quinto andar, não havia mais nenhum aventureiro solitário. No décimo, ela
decidiu que as coisas estavam difíceis o suficiente para que precisasse de um grupo,
mas as pessoas zombavam dela por sua aparência infantil e riram dela inúmeras
vezes. Depois disso sua teimosia aumentou e ela continuou fazendo tudo sozinha.
Ah, a estupidez da juventude. Roxy chegou perto da morte várias vezes, mas teve
a sorte de escapar de suas garras. Ela nunca mais queria passar por aquilo.

— Bem, de qualquer forma, você devia encontrar seu primeiro homem logo.
Que tal isso? Da próxima vez, nós duas podemos…

— Definitivamente não.

O sonho foi destruído. Ainda assim, ela mantinha alguma esperança. Talvez
fosse impossível encontrar algo bom dentro de algum labirinto, mas ela ainda
poderia acabar se apaixonando do método normal e tendo um casamento normal.
Nesse meio tempo, não tinha absolutamente nenhuma intenção de entregar seu
corpo a um homem cujo nome não sabia só porque Elinalise conseguiu atraí-lo.

— Além disso, não tenho tempo para tudo isso. — Bem, Roxy decidiu que era
melhor ficar sozinha enquanto vagava pelo Continente Demônio.

Foi assim que deu o primeiro passo errado e começou sua aventura pelo
Continente Demônio.

Capítulo 04 - O Sábio a Bordo


Naquela noite, o sujeito associado à organização de contrabando, Gallus, saiu
depois de nos dizer que entraria em contato. Fomos obrigados a esperar quinze dias
até que ele mandasse um homem para dar mais detalhes sobre o trabalho.

Os bens contrabandeados seriam temporariamente alojados em um prédio no


qual nos infiltraríamos. Iríamos libertar aqueles que haviam sido levados e escoltá-
los de volta para suas casas. Quanto a como faríamos isso, Gallus deixaria tudo
conosco.

A informação era vaga e o plano parecia desleixado. Ainda assim, éramos


apenas espadas contratadas. Tudo o que precisávamos fazer era cumprir nossa
missão. Havia algum perigo envolvido, então decidimos que apenas Ruijerd e eu
cumpriríamos a missão. Eris ficaria para trás, na pousada.

Já era a meia-noite do dia da operação. A lua sequer era vista. O lugar em


questão era um píer localizado na orla do porto. Estava assustadoramente quieto, o
único som era o eco das ondas do oceano. Uma figura suspeita estava perto de um
barco pequeno, com um capuz abaixado sobre sua cabeça para esconder seus
olhos.

Se estivesse procurando alguém para fazer um contrabando através da


fronteira, seria o cara ideal. Assim como tínhamos combinado em nossa reunião
anterior, entreguei Ruijerd para ele. De acordo com as instruções, as mãos do
Superd estavam algemadas atrás dele.

Um contrabandista tratava qualquer um com quem lidava como um escravo. O


transporte de escravos custava cinco moedas de minério verde, mas estaríamos
isentos. O fato de Gallus ter nos pago adiantado não mudou a maneira como
estávamos sendo tratados. Não estávamos sendo tratados como mercenários
contratados por ele, mas sim como criminosos que traficavam escravos.

— Certo, vou deixar tudo em suas mãos.

O contrabandista não disse uma palavra. Ele apenas acenou com a cabeça,
guiou Ruijerd para o barco e colocou um saco na cabeça do Superd. O barco tinha
um único barqueiro, mas havia muitos outros a bordo com sacos na cabeça. A julgar
por suas alturas, não havia nenhuma criança.

Assim que Ruijerd estava seguramente a bordo, o contrabandista deu um sinal


ao barqueiro. Este último, que estava sentado à frente de seu pequeno veleiro,
entoou um feitiço. O barco começou a navegar sem fazer barulho, deslizando pela
água na escuridão da noite. Eu não consegui ouvir as palavras claramente, mas
parecia ser um feitiço da água que criou uma corrente para os impelir adiante. Era
algo que eu também poderia fazer.

O barco moveu-se em direção a um navio mercante ancorado em mar aberto,


para onde os escravos foram transferidos para serem despachados no início da
manhã. Mesmo de seu lugar no barco menor, Ruijerd continuou olhando para a
minha direção o tempo todo. Ele sabia exatamente onde eu estava, apesar do saco
em sua cabeça.

Enquanto via isso, escutei “Goodbye My Lover1” tocando ao fundo de minha


mente. Não, espera, não! Ele não era meu amante! E, de qualquer maneira, não era
um adeus, isso seria apenas temporário.

No dia seguinte, vendi o lagarto no qual cavalgamos no ano anterior. Ele havia
nos carregado desde a cidade de Rikarisu até onde estávamos, e era confiável o
suficiente para que eu desejasse levá-lo para a Região de Fittoa conosco, mas
custaria muito caro para o levar junto. Além disso, no Continente Millis, poderíamos
usar cavalos. Os cavalos deste mundo eram rápidos e sua resistência estava em
um nível totalmente diferente. Não precisávamos mais montar o lagarto.

Eris colocou os braços em volta do pescoço do animal e deu alguns tapinhas.


Não trocaram palavras, mas foi uma despedida triste. A montaria cresceu apegada
a ela. Durante nossas viagens, frequentemente lambia a cabeça dela e deixava seu
cabelo encharcado de baba.

Não poderíamos continuar chamando-o de “lagarto” para sempre. Devíamos,


no mínimo, nomeá-lo. Certo, de agora em diante seu nome será Guella Ha, decidi.
Guella Ha, um homem do mar que ansiava por mais companheiros humanos.

— Este é realmente obediente. Você deve ter o treinado muito bem durante
suas viagens, hein? — O comerciante que lidava com lagartos ficou impressionado.

— Suponho que sim.

Foi Ruijerd quem o treinou. Não que ele fizesse algo especial, mas certamente
havia uma dinâmica de mestre e servo entre o homem e Guella Ha. O lagarto devia
ter percebido quem era a pessoa mais poderosa do nosso grupo. Por outro lado, o
animal não gostava nem um pouco de mim e me mordeu várias vezes.

Hm… sim, pensar nisso só me irritou.

— Ha ha, exatamente o que eu esperaria do Mestre do Canil do Fim da Linha.


Isso fará ele valer um pouco mais. A maioria das pessoas trata esses caras muito
mal, e isso torna meu trabalho de retreiná-los muito mais difícil. — O comerciante
era da tribo Rugonia, uma raça de homens com cabeças de lagarto. No Continente
Demônio, os homens-lagarto treinavam os lagartos.

— É natural que se trate os companheiros gentilmente enquanto viajam juntos.

De novo, a música “Goodbye My Lover” tocou na minha cabeça. Em minha mão,


eu segurava o dinheiro que recebemos pela venda de nosso companheiro. Quando
pensava dessa forma, parecia até ser dinheiro sujo. Que estranho.

Bem, é melhor deixar essa coisa de nome para lá. Isso só está me fazendo
sentir apego, decidi. Então adeus, lagarto sem nome. Nunca vou esquecer como foi
cavalgar em você.
— Wah… — Ouvi Eris fungando.

Depois de vender nossa montaria, viajamos a pé para embarcar em nosso


navio.

— Rudeus! É um navio! É tãããão grande! Opa! Tá balançando! O que é isso?!


— A partir do momento em que subiu a bordo, Eris começou a gritar de empolgação.
Talvez já tivesse até se esquecido do lagarto. Sua capacidade de se recuperar
rapidamente era um de seus pontos fortes.

O navio tinha velas e era feito de madeira. Era um modelo totalmente novo,
concluído há apenas um ano. Essa não era apenas sua primeira viagem, mas
também um desafio aos limites impostos ao viajar até Porto Zant.

— Mas este é um pouco diferente do que vimos antes, não é?

— Você já viu um navio antes, Eris? — Ela não disse que esta era a primeira
vez que via o oceano?

— Do que está falando? Você tinha um desses no seu quarto, lembra?

Ah, claro, lembro de ter feito alguns desses. Era uma boa memória. Naquela
época, eu queria trabalhar na minha magia da terra, então comecei a criar coisas.
Assim que percebi que poderia vendê-los, comecei a fazer figures da Roxy em
escala 1:10. Entretanto, há algum tempo não fiz nenhuma outra. No momento, não
sabíamos quando precisaria usar minha mana, então não tinha feito nenhum
treinamento que consumisse tal precioso recurso. O único treinamento que fiz foi o
físico, ao lado de Ruijerd e Eris. Nos últimos tempos realmente comecei a relaxar.
Depois que as coisas se acalmassem, provavelmente precisaria voltar a aprimorar
minhas habilidades.

— Eu os fiz usando minha imaginação, então não é surpresa que não sejam
uma réplica perfeita — disse. Sem mencionar que este era para ser um novo tipo de
navio. Quanto a que parte era nova, eu não tinha ideia.

— É incrível, não é? Que algo tão grande possa cruzar o oceano. — Eris ficou
incrivelmente impressionada.

Três dias após deixarmos o porto.

Enquanto estávamos a bordo, comecei a pensar. Um navio… um navio era um


tesouro. Agora que estávamos a bordo, deveria haver algum tipo de evento. Eu já
tinha jogado muitos simuladores de namoro e poderia dizer isso sem sombra de
dúvida.

Os golfinhos, por exemplo, poderiam começar a nadar ao lado do navio. A


heroína veria isso e diria: “Olha! Incrível!” E em resposta eu diria: “Minhas técnicas
na cama são ainda mais incríveis.” Então ela falaria: “Que maravilha! Faça-me sua!”
E eu responderia: “Vamos, meu bem, não podemos fazer algo assim aqui.”

Sim, não, não era bem isso… Ah! Sim! Quando se pensa em um navio, se pensa
em ser atacado no mar! Um polvo, uma lula, uma serpente, piratas ou um navio
fantasma, algo assim. Um desses nos atacaria e nos afundaria. Seríamos deixados
à deriva e depois acabaríamos encalhados. Chegaríamos a uma ilha deserta, onde
a heroína e eu, apenas nós dois, começaríamos nossas vidas juntos. No início, ela
me odiaria, mas depois de superar vários obstáculos, gradualmente se tornaria
menos tsun e mais dere.

Além disso, havia apenas uma coisa para um homem e uma mulher presos em
uma ilha deserta fazerem juntos. A troca de olhares, o calor febril… Dois jovens de
sangue quente, começando a suar em meio ao eco das ondas do mar. Depois,
desfrutaríamos do nascer do sol juntos. Um paraíso só para nós dois.

Sobre a questão de um ataque de polvo, o destino da heroína já estava selado.


Ela seria atacada por vários tentáculos, mais do que se pensaria que um polvo de
oito tentáculos poderia possuir, e depois a suspenderia no ar. Seu corpo se
contorceria como se estivesse em agonia. A criatura a envolveria com seus
tentáculos e mergulharia sob suas roupas. Seria o maior espetáculo de todos, que
faria uma poça de suor nas palmas de suas mãos. Uma visão da qual não se
conseguiria desviar os olhos, nem mesmo por um segundo.

A realidade, entretanto, era cruel.

Eris estava sentada na cabine com o rosto pálido e um balde na sua frente. Sua
empolgação com a primeira viagem de barco rapidamente se transformou, no meio
do caminho, em náusea. Eu me perguntei por que ela ficava bem cavalgando em
cima de um lagarto, mas de alguma forma não tinha estômago para um navio.

Como alguém que nunca sentiu enjôo, eu não conseguia compreender. Embora
houvesse uma coisa que pudesse dizer: Por mais brando que fosse o balanço do
navio, não parecia aliviar o sofrimento de quem ficava enjoado.

No quarto dia, um polvo apareceu. Pelo menos, foi isso que eu presumi que
fosse. Era de uma cor azul marinho, surpreendente e extremamente grande. Por
azar, não conseguiu capturar nenhuma garota. Em vez disso, foi abruptamente
despachado por um grupo de guarda-costas de rank S.

Não deveria haver nenhuma missão de escolta disponível. Se houvesse, eu a


teria pego na mesma hora. Perguntei a um comerciante próximo, que me informou
que esse pessoal era especializado em escolta de navios. O nome do grupo era
Aqua Road. Aparentemente tinham um contrato exclusivo com a Guilda dos
Armadores, e seu trabalho principal era atuar como escoltas marítimas. Como
resultado, se especializaram em despachar qualquer uma das criaturas que
pudessem aparecer em nossa rota.

No final das contas, não haveria nenhuma cena emocionante de tentáculos.


Que pena.
Dito isso, havia algo a extrair disso. Eu me afastei e os observei lutar, apenas
para o caso de algo acontecer, então vi a maneira como lutavam em grupo.

Para ser honesto, chorei de tanto rir quando vi seus pontos fortes individuais
pela primeira vez. O espadachim lutando em sua vanguarda era forte, mas não tão
forte quanto Ghislaine2. Aquele que atuava principalmente em desviar os ataques do
inimigo e chamava a atenção também era um guerreiro forte, mas nada parecido
com Ruijerd. Na retaguarda estava quem parava o polvo, um mago que certamente
era mais fraco do que eu.

Fiquei desapontado. Era realmente assim que um grupo de rank S deveria ser?
Achei que a maioria das pessoas neste mundo era muito forte, mas essas não eram
tão impressionantes quanto imaginei.

No entanto, rapidamente cheguei a uma conclusão diferente. Eles eram


um grupo de rank S. Eu não deveria ter olhado para seus pontos fortes
individualmente, mas sim como trabalhavam como uma equipe. Mesmo não sendo
tão fortes, ainda conseguiram derrotar aquele polvo enorme. Mesmo não sendo tão
fortes, ainda assim chegaram ao rank S. Era isso que importava. Cada pessoa
cumpria seu papel dentro do grupo e era assim que demonstravam tal poder como
equipe. Trabalho em grupo era isso. Era o que faltava ao Fim da Linha.

Cada membro do Fim da Linha era poderoso. Mas e o nosso trabalho em


equipe? O trabalho em equipe de Ruijerd era excelente, possivelmente porque ele
próprio havia feito parte de um esquadrão. Ele era hábil em batalhas em grupo.
Mesmo se Eris ou eu cometêssemos um erro, o homem poderia nos cobrir. E
também era ótimo em agir como um aggro, mantendo os olhos da besta colados
nele o tempo todo.

Ruijerd também era forte demais. Na verdade, poderia matar nossos oponentes
sozinho, mas estávamos forçando-o a trabalhar com uma equipe durante as
batalhas. Eu não chamaria isso exatamente de ruim, mas não havia dúvida de que
as coisas acabavam distorcidas. Achei que sabia o que significava lutar em equipe,
mas isso era apenas na teoria. Saber a teoria não significava que seria capaz de
colocá-la em prática. Eu tinha o hábito de me concentrar nos inimigos que vinham
em minha direção e, quando estavam em maior número que nós, confiava muito no
Superd.

Eris era horrível. Ela ouvia as instruções muito bem, mas quando se tratava de
uma batalha real, não conseguia combinar seu ritmo com o nosso. Ficava muito
fixada no inimigo à frente e se jogava em batalhas intensas. Quanto mais a luta
durava, menos ela escutava. Mesmo se a chamássemos, nunca cobriria nenhum de
nós, nem mesmo uma vez.

Mas, bem, para começo de conversa, nem Ruijerd nem eu realmente


precisávamos disso. Ainda assim, se isso continuasse e Ruijerd nos deixasse por
qualquer motivo, eu não estava confiante de que poderia a cobrir sempre. Mesmo
tendo um olho demoníaco, ainda tinha apenas duas mãos. Apenas uma mão para
me proteger e outra para proteger Eris. O alcance de uma mão era realmente
limitado.
— Rudeuuus…

Enquanto eu estava ocupado com meus pensamentos, o rosto pálido e doente


de Eris apareceu no convés. Ela deslizou, cambaleando até a borda do navio e
vomitou pela amurada. Nesse ponto, parecia que não havia mais nada em seu
estômago, exceto bile.

— O que você está fazendo aqui… quando estou sofrendo assim…

— Desculpa. É só que o mar é tão lindo.

— Você é muito malvado… Waah… — Lágrimas encheram seus olhos quando


ela jogou os braços em volta de mim.

Seu enjôo era severo.

Dia cinco. Eris estava na cabine e, como sempre, passando mal, e eu estava
constantemente cuidando dela.

— U-urgh… minha cabeça dói… Me cura…

— Tá bom, tá bom.

Eu descobri por um dos marinheiros que um pouco de magia de cura poderia


aliviar seu sofrimento. O enjôo era causado por um desequilíbrio no sistema nervoso
autônomo. Lançar um feitiço de cura em sua cabeça resultaria em algum alívio
temporário.

Pelo menos, é assim que deveria ter funcionado. Eu não conseguia lançá-lo
continuamente, e a magia de cura não eliminava toda a náusea.

— Ei… eu vou… morrer?

— Vou rir de você se você morrer de enjôo.

— Não…

Não havia mais ninguém na cabine. O navio em si era gigantesco, mas não
havia muitas pessoas viajando do Continente Demônio para o Continente Millis. Eu
não tinha certeza se isso era porque as taxas de passagem eram muito mais caras
para os demônios do que para os humanos, ou porque os demônios simplesmente
achavam mais fácil viver no Continente Demônio.

Eris e eu estávamos sozinhos.

No lugar silencioso e mal iluminado, lá estava ela, sem poder para lutar. E lá
estava eu ao seu lado, tendo passado os últimos cinco dias observando-a
enfraquecer.
No começo não houve problema com isso. Exceto a cura. Isso era um problema.
Para curá-la, eu precisava tocar sua cabeça. Como precisava lançar meu feitiço
regularmente, ela estava usando meu colo como travesseiro enquanto eu mantinha
minhas mãos em volta de sua cabeça, curando-a repetidamente.

Foi quando comecei a me sentir estranho. Não, estranho era uma palavra
enganosa para se usar. Para ser franco, eu estava começando a ficar com tesão.

Certo, preste atenção. Lá estávamos nós em uma cabine, e Eris, que


normalmente era tão obstinada, de repente ficou com os olhos turvos, me chamando
com uma voz fraca e respirando irregularmente, me implorando:

— Por favor, estou implorando, por favor, apenas faça isso (me cure).

Meus controles de volume interno abafaram a parte sobre a cura. Simplemsente


parecia que ela estava implorando por aquilo. Claro, isso não era verdade. Eris
estava apenas fraca. Eu nunca tinha sentido enjôo, mas sabia que devia ser terrível.

Não havia nada inerentemente sexual em tocar outra pessoa. Ainda assim, ela
era maior de idade e eu podia sentir o calor de seu corpo. Só isso era estimulante,
mesmo que o toque não fosse de natureza sexual. A excitação que isso produziu foi
pouca, mas fazer isso continuamente por um tempo resultaria em problemas para
mim.

Tocar seu corpo, não importa onde, ainda era tocar. Tocar indicava que
estávamos próximos. Estar próximos significava que seu corpo estava totalmente à
vista. A testa, banhada pelo suor frio, a nuca, o peito, tudo.

Eris estava tão fraca e apática. Normalmente, ela me socaria se eu a tocasse


sem motivo. Mas agora, era como um peixe na tábua de cortar. Isso significava que
era basicamente minha, certo?

Esses sentimentos horríveis começaram a se enraizar em mim. Eu tinha certeza


de que a garota não iria resistir, mesmo se eu arrancasse minhas roupas e me
lançasse sobre ela. Não, ela não poderia resisitir. O simples pensamento fez minha
virilha se sentir como Excalibur antes de Arthur segurá-la. E na minha cabeça Arthur
gritou. Ele estava gritando comigo, me dizendo que Eris não seria capaz de resistir.
Ele me disse que eu nunca teria outra chance dessas. Era minha chance de perder
a virgindade que tinha mantido por tanto tempo.

Meu Merlin interior, entretanto, me incentivou a resistir. Já tinha tomado uma


decisão quando prometi esperar até os quinze anos. Disse que esperaria até que
esta viagem terminasse. Apoiei o que Merlin estava dizendo, mas minha capacidade
de resistir estava chegando ao limite.
E se eu testasse as coisas tocando apenas seus seios? Eu tinha certeza de que
seriam macios. E macios não era a única coisa que seriam. Isso mesmo – os seios
seriam mais do que macios. Havia uma firmeza no meio de toda aquela maciez. Um
Graal. O Santo Graal que meu Arthur interior buscava. O que aconteceria se minha
mão, meu Dom Galvão, encontrasse aquele Graal? A Batalha de Camlann.

Ahh, claro, não era apenas o Santo Graal. O corpo de Eris estava mudando dia
a dia, especialmente seu seio. Ela estava no meio da puberdade. Eu não tinha
certeza se era genético, mas estava se desenvolvendo rapidamente de uma forma
que lembrava sua mãe. Se continuasse nesse ritmo, se tornaria uma beleza
voluptuosa.

Alguns homens poderiam dizer: “Eh, acho que os menores são perfeitos.” Todos
tinham suas preferências, mas eu poderia dizer que estaria junto no momento de
descrever os seios de uma mulher como “perfeitos”. Eu poderia pegar seus seios
em minhas mãos neste exato momento, enquanto ainda eram pequenos.

Sua respiração estava irregular.

— R-Rudeus…? — Ela olhou para mim ansiosamente. — Você está bem?

Sua voz me acertou em cheio. Uma voz que normalmente era tão alta e forte.

Desta vez foi na altura perfeita, o suficiente para fazer meu peito formigar.

— Uh… sim, estou bem, eu juro. Não se preocupe.

— Se você está sofrendo, não precisa se forçar, sabe?

Eu não teria que me forçar? Então, em outras palavras, não teria que negar isso
a mim mesmo? Isso significava que poderia fazer o que quisesse?

Brincadeira… Eu entendi o que ela quis dizer. Estava preocupada se minha


mana aguentaria, já que estava a curando continuamente. Eu já sabia disso; sabia
que Eris confiava em mim. Confiou que eu nunca usaria esta oportunidade para
colocar a mão nela. Eu não trairia essa confiança. Rudeus Greyrat não trairia essa
confiança. Essa era a maneira adequada de responder à confiança de uma pessoa.

Certo, disse a mim mesmo, vamos agir como uma máquina. Uma máquina. Eu
era uma máquina de cura. Me tornaria um robô sem sangue ou lágrimas. Não veria
nada, porque se visse o rosto dela, faria algo impulsivo. Com esse pensamento em
mente, decidi fechar meus olhos. Também não ouviria nada. Se ouvisse sua voz,
faria algo imprudente. Então, bloqueei minha audição também.

Eu era um pária silencioso e anti-social. E como não tinha desejos terrenos, não
podia fazer nada impulsivo. Com isso em mente, fechei meu coração. No entanto,
ainda podia sentir o calor de sua cabeça e o cheiro de seu corpo. Diante dessas
duas coisas, minha vontade foi instantaneamente destruída. Parecia que minha
cabeça ia ferver.

Ah, não posso fazer isso. Estou perdendo o juízo, pensei.


— Eris, preciso ir ao banheiro.

— Ah, então é isso que você estava segurando. Certo… Te vejo daqui a pouco.

A garota aceitou isso facilmente. Dei a ela um olhar de soslaio antes de sair da
cabine. Me movi rapidamente. Eu precisava de um lugar deserto, e logo o encontrei.
Lá, tive um momento de felicidade suprema.

— Uff…

Só assim, me senti como um menino que havia se transformado em um sábio.


Quando fechei os olhos a sensação ficou mais forte, como se tivesse atingido a
santidade, como uma garota mágica se transformando e obtendo poderes ainda
maiores.

— Certo, voltei.

— Sim, bem-vindo de volta…

Voltei para a cabine com uma expressão iluminada no rosto, como um


Bodisatva, e finalmente me tornei uma máquina de cura.

Eris voltou ao seu estado normal e animado no momento em que descemos do


barco.

— Nunca mais quero embarcar em outro navio!

— Sim, mas teremos que fazer isso uma última vez para ir do Continente Millis
ao Continente Central.

Ela pareceu desanimada com isso, então ficou ansiosa ao se lembrar do que
havia acontecido no navio.

— E-ei. Quando essas coisas acontecerem, você vai me curar o tempo todo de
novo?

— Claro, mas da próxima vez posso fazer algo pervertido com você — falei com
naturalidade.

— Ugh… por que diz algo tão cruel?!

Não foi crueldade. Eu era o único sofrendo. Agora entendia como um cachorro
se sentia, tendo uma refeição deliciosa à sua frente, apenas para ser impedido de
dar uma mordida. Ali estava, com o estômago completamente vazio e com a comida
o chamando, implorando para que a devorasse, e não conseguia. Poderia engolir a
quantidade de água que quisesse para tentar temporariamente satisfazer a dor na
barriga, mas seria um esforço inútil. A refeição não iria desaparecer e seu estômago
voltaria a ficar vazio.

— Eris, você é realmente fofa. Estou desesperadamente tentando resistir à


tentação de fazer qualquer coisa com você.

— B-bem, acho que é assim que tem que ser. Da próxima vez pode me tocar,
mas só um pouco, tá? — Seu rosto estava vermelho e brilhante como um tomate.
Era realmente adorável. No entanto, havia uma lacuna muito grande entre a
enormidade do meu desejo e o “pouco” que ela oferecia.

— Infelizmente, “só um pouco” não vai resolver. Por favor, vamos esperar até
que você esteja pronta para eu mergulhar e fazer o que quiser com você.

Eris ficou sem palavras. Eu não queria que ela alimentasse minhas
expectativas. Queria que me deixasse manter a promessa que fiz. Se eu a
quebrasse e colocasse minhas mãos na garota, nós dois ficaríamos chateados com
isso.

— De qualquer forma, vamos indo.

— C-certo. Claro. — Eris se recuperou rapidamente e logo ficou de bom humor


quando começamos a caminhar em direção à cidade.

A paisagem urbana diante de nós não era muito diferente daquela de Porto
Vento. Mas isso era Porto Zant, uma cidade no extremo norte do Continente Millis.
Continente Millis. Finalmente estávamos em tal lugar, mas ainda tínhamos um longo
caminho a percorrer.

— Rudeus, o que há de errado?

— Nada, não é nada.

Seria melhor esquecer quanto tempo nossa jornada ainda duraria. O importante
agora era partir para a próxima cidade.

Antes de fazermos isso, no entanto, precisávamos conseguir algum dinheiro e


comprar um cavalo. E, antes de qualquer coisa, tínhamos que terminar nosso
trabalho atual. Agora que havíamos chegado até esse ponto, era hora de ver essa
missão ser concluída. Dito isso, nosso trabalho só começava ao anoitecer. Ainda
tínhamos algum tempo sobrando. Então, o que fazer?

Já havíamos trocado nosso dinheiro no Continente Demônio, então não havia


necessidade de visitar a Guilda dos Aventureiros. Decidi que iríamos para uma
pousada. Assim poderíamos nos recuperar de nossa cansativa jornada no navio.
Nosso trabalho viria depois. Ruijerd teria que sofrer com suas condições de vida
desconfortáveis um pouco mais, mas… bem, ele só teria que suportar.

E foi assim que chegamos ao Continente Millis.


Capítulo 05 - O Demônio no
Armazém

O layout da cidade de Porto Zant era semelhante ao de Porto Vento.

Havia várias colinas onduladas ao seu redor e um porto que era mais animado
do que a própria cidade. A Guilda dos Aventureiros ficava, da mesma forma, mais
perto do porto do que do centro da cidade.

Dito isso, existiam alguns contrastes. Evidentemente, havia muito mais prédios
de madeira neste lugar do que em Porto Vento. Eles também eram pintados com
cores fortes, talvez para proteger o material da maresia. Árvores ladeavam a estrada
e era possível ver uma floresta além da orla da cidade.

Havia verde por toda parte. Era um contraste enorme com o Continente
Demônio, que era todo branco, cinza e marrom. Um oceano era tudo o que separava
os dois continentes e, no entanto, eram como mundos diferentes.

Eu já deveria esperar por isso, afinal, este era o Continente Millis, mas as
pessoas que vagavam pelas ruas não eram a mesma mistura estranha de diferentes
tribos de demônios que eu tinha visto antes. Em vez disso, havia gente-fera, elfos,
anões e hobbits – raças de pessoas que se assemelhavam muito aos humanos.

Antes de irmos encontrar uma pousada, tive que verificar o estado de nossas
finanças. Na moeda do Continente Demônio, tínhamos duas moedas de minério
verde, dezoito moedas de ferro, cinco moedas de sucata e três moedas de pedra.
Era isso. Quando as trocamos, recebemos três moedas de ouro Millis, sete moedas
de cobre grande Millis e duas moedas de cobre Millis. Menos do que presumi que
conseguiríamos, mas suspeitei que fosse por causa das taxas de transação. Se
tivéssemos usado uma casa de câmbio que não tivesse sido licenciada pela guilda,
certamente teriam cobrado mais. Isso ainda estava dentro de uma faixa aceitável.

— Devíamos ficar em uma pousada perto da guilda, não?

— Sim, precisamos pegar algumas missões — concordou Eris.

Isso dependia de como as coisas aconteceriam durante a noite. Supondo que


tudo corresse bem, estaríamos trabalhando em serviços para a guilda e, ao mesmo
tempo, espalhando o bom nome do Fim da Linha. Até o momento, parecia que o
nome não era amplamente conhecido pelo Continente Millis. O dia em que esse
nome perderia todas as suas terríveis associações poderia em breve estar sobre
nós.

Com isso em mente, começamos a procurar uma pousada perto da guilda.


Misteriosamente, todas as com preços decentes estavam lotadas. Foi a primeira vez
que passei por isso. Claro, em outras ocasiões já tínhamos sido recusados por as
pousadas estarem cheias, mas nunca imaginei que quase todos estariam assim.

Havia algum tipo de festival ou coisa semelhante acontecendo? Quando


perguntei, um dos proprietários da pousada respondeu: “A estação das chuvas está
quase chegando. Quase todas as boas pousadas vão estar lotadas.”

A estação das chuvas era um fenômeno climático peculiar da Grande Floresta,


uma chuva contínua que durava três meses inteiros. O dilúvio tornava a Grande
Floresta, assim como a rodovia, intransitáveis. Como resultado, muitos hóspedes
fizeram reservas para longas estadias nas pousadas.

A maioria das pessoas normalmente evitaria ficar presa em um lugar como este
durante a estação das chuvas, mas pelo visto certos monstros só apareceriam
durante essa época, graças às chuvas que os levaram em direção à cidade. Os
materiais pegos desses monstros eram vendidos por muitas moedas, então muitos
aventureiros iriam para a cidade e permaneceriam durante esta temporada.

Quando ouvi isso, decidi mudar meus planos. Se passássemos os próximos


três meses arrecadando dinheiro diligentemente, poderíamos arcar com todas as
nossas despesas pelo resto da viagem. E ao mesmo tempo também poderíamos
divulgar o nome de Ruijerd. Decidir um plano de ação tornaria o resto de nossa
viagem no Continente Millis suave e relaxante.

Ainda assim, seria melhor não contar com os ovos dentro das galinhas, certo?
Não tínhamos muito dinheiro e também não conseguimos encontrar uma pousada
para nos hospedar. Os únicos lugares com quartos disponíveis estavam fora do
nosso orçamento ou eram extremamente ruins.

Seria impossível pagar com o dinheiro que não tínhamos, então só nos restava
uma opção: ficar em um lugar desagradável e permanecer no que era, francamente,
uma favela. Uma noite custava três moedas de cobre grande e não havia outros
serviços inclusos, incluindo refeições. Mas, apenas para dormir, parecia barato e
decente. De volta ao Continente Demônio, tínhamos ficado em lugares muito piores.
Mas valeria à pena ir para outro lugar assim que conseguíssemos economizar
algumas moedas.

— Hmm, acho que não é tão ruim! — Eris era filha de uma família nobre, mas
não tinha escrúpulos quanto ao estado dilapidado do edifício ou sua falta de
serviços.

Na verdade, eu era o único reclamando.

— Pessoalmente, gostaria de acomodações mais agradáveis.

— Você está agindo como um bebezão.


Por mais que eu quisesse responder: “Ah, é? Olha só quem fala”, não consegui.
Tomando cuidado e relembrando, percebi que essa jovem “nobre” garota costumava
dormir profundamente sobre um fardo de feno em um estábulo infestado de baratas
que cheirava a esterco de cavalo. Nós não éramos iguais. Eu ainda ansiava pelo
calor de uma boa cama, mesmo depois de ter reencarnado.

Decidi não “agir como um bebezão”. Tudo o que pude fazer foi usar magia para
criar um vento quente que aniquilaria todos os ácaros da poeira e, em seguida, daria
uma limpada rápida no quarto. Eu não tinha mania de limpeza. Honestamente, até
gostava que as coisas ficassem um pouco bagunçadas, mas, às vezes, em
pousadas como essa, as pessoas que pernoitavam esqueciam algumas de suas
coisas. Poderia haver alguma moeda deixada debaixo da cama ou um pequeno
anel que caiu de uma bolsa. Podíamos embolsar qualquer dinheiro que
encontrássemos, mas, às vezes, se houvesse um anel ou algo semelhante deixado
para trás, poderia haver um pedido de busca na guilda. Isso poderia nos render uma
recompensa em dinheiro, independentemente do rank do pedido. Normalmente,
seria algo pequeno, mas poderia acontecer de render uma grande quantia. Foi por
isso que cuidadosamente limpei o quarto.

Nesse meio tempo, Eris pegou alguns trocados emprestados para cuidar da
limpeza das roupas. Em seguida, rapidamente realizou os cuidados de rotina do seu
equipamento. Quando terminamos, o sol estava começando a se pôr.

— Eris, está na hora de pegarmos Ruijerd. — Imediatamente decorei onde


nossa pousada estava localizada. As favelas eram próximas umas das outras, então
a segurança pública não seria garantida.

Uma vez, ficamos em uma pousada perto das favelas. Um ladrão entrou em
nosso quarto enquanto estávamos trabalhando. Ruijerd havia seguido os rastros do
bandido e os puniu severamente, mas as mercadorias que roubaram de nós já
haviam sido repassadas para outra pessoa e nunca as recuperamos. Na época,
aquelas coisas não eram lá muito importantes.

Entretanto, eu não tinha planos de deixar nada precioso no quarto de hotel


enquanto estivéssemos fora. Mesmo assim, parecia prudente implementar algumas
medidas de prevenção ao crime. Também me deu um bom pretexto para não levar
Eris comigo.

— Eris, você fica aqui e cuida da nossa bagagem.

— Você vai me deixar aqui? Não posso ir junto?

— Não é assim, é só que esta não é uma área realmente segura.

— Ótimo; não é como se alguma dessas coisas fosse particularmente


importante.

Fiquei chocado. Eris não percebeu a importância da prevenção ao crime.


Estaríamos em apuros se nossas coisas diariamente usadas fossem roubadas, pois
não tínhamos dinheiro para substituí-las. Eu precisava usar essa oportunidade para
ensiná-la a importância de se proteger contra possíveis ladrões.
— Você não entende? Alguém pode roubar a roupa de baixo que você acabou
de lavar.

— A única pessoa que roubaria algo assim é você! — Após esse corte eu gemi
por dentro.

Mas, sabe, Eris, eu nunca tentei roubar sua calcinha depois que você a lavou…
Nem uma vez.

Durante a noite, andei sozinho pela cidade. Levou algum tempo para persuadir
Eris. Entretanto, a prevenção ao crime era realmente importante.

Fomos instruídos a realizar nosso trabalho à noite, mas nosso empregador


nunca especificou a hora. Qualquer hora depois do pôr do sol serviria, contanto que
resgatássemos os cativos. Éramos livres para operar em nosso próprio tempo. No
entanto, com a estação das chuvas quase chegando, os contrabandistas estariam
ansiosos para mover seu navio o mais rápido possível, então não podíamos perder
tempo.

No momento, Ruijerd estava sendo tratado como escravo. Fariam o esforço


mínimo para mantê-lo vivo, mas ele poderia ter recebido um tratamento ruim na
última semana. Certamente não o alimentaram com nada decente. O homem
provavelmente estava com fome. E quando as pessoas ficavam com fome, ficavam
com raiva. Foi por isso que tive que me apressar.

Com a lança de Ruijerd em uma das mãos, fiz meu caminho até o cais e, em
seguida, até a orla. Lá estavam quatro grandes armazéns de madeira. Deslizei para
dentro daquele rotulado como “Armazém Três”.

Dentro havia um único homem, limpando tudo em silêncio. Ele tinha um dos
penteados mais comuns da virada do século: um moicano. Fui até ele e perguntei:

— Yo, Steve. Como está Jane, sabe, aquela que mora perto da praia? — Essa
era a nossa senha.

O Moicano me lançou um olhar interrogativo.

— Ei garoto, o que você está fazendo aqui?

Ah, merda, fiz errado? Não, não era isso – talvez ele simplesmente não
acreditasse em mim, já que eu era criança.

— Eu estou em uma missão para meu mestre. Estou aqui para pegar uma
carga.

O homem pareceu entender quando eu disse isso. Ele acenou com a cabeça
calmamente e disse:
— Siga-me. — Então se dirigiu mais para dentro no armazém.

Eu o segui em silêncio. No fundo do armazém havia uma caixa de madeira


grande o suficiente para caber talvez cinco pessoas dentro. O Moicano pegou uma
tocha e moveu a caixa. Um conjunto de escadas apareceu abaixo dele, e o homem
apontou com o queixo em direção a elas, como se me dizendo para descer.

Quando fiz isso, percebi que estávamos em uma caverna úmida. O Moicano
apareceu atrás de mim com sua tocha acesa e continuou em frente. Eu o segui,
tomando cuidado onde pisava para não escorregar.

Continuamos caminhando por quase uma hora. Finalmente, saímos da caverna


e nos encontramos no meio da floresta. Pelo visto, agora estávamos fora da cidade.
Continuamos a andar até encontrar um grande edifício escondido entre fileiras de
árvores. Não parecia nada com um armazém, mas sim com a villa de um homem
rico.

Então essa era a área de espera deles.

— Tenho certeza de que você já sabe disso, mas é melhor manter este lugar
em segredo. Se não…

— Sim, eu sei. — Acenei com força. Se eu contasse a alguém, iriam me caçar


e me matar, certo? Gallus já havia me dito isso lá em Porto Vento. Seria melhor se
tivessem me forçado a assinar algo com sangue do que a fazer promessas com
palavras vazias. Então, por que não? Porque havia raças que não tinham pontas de
dedos. Além disso, era provável que ninguém quisesse assinar algo assim. Isso
deixaria apenas evidências de seus erros.

O Moicano bateu na porta da frente. Bang, bang. Bang, bang. Devia haver
algum ritmo combinado para abrirem a porta.

Depois de um tempo, um homem de cabelos brancos e uniforme de mordomo


apareceu lá de dentro. Ele verificou nossos rostos antes de dizer secamente:

— Entrem.

Então entramos. À nossa frente, um lance de escadas conduzia ao segundo


andar. Em cada lado havia outro conjunto de escadas que levava ao porão. Havia
portas à nossa direita e à esquerda. Falando francamente, parecia o saguão de uma
mansão. Em um canto, alguns homens de aparência sombria estavam com os
cotovelos dobrados sobre uma mesa redonda.

Comecei a ficar nervoso.

Foi então que o mordomo de cabelos brancos olhou para mim, com suspeita
em seus olhos e perguntou:

— E quem o indicou?

— Ditz. — Esse era o nome que Gallus nos disse para usar.
— Ele, hein? Ainda assim, eu não esperava que ele usasse uma criança para
isso. Com certeza é um homem cauteloso.

— Isso é graças à natureza das mercadorias que manuseamos.

— Hm, de fato. Então faça isso logo. É assustador e está além do nosso poder.
— O mordomo tirou um molho de chaves do bolso da camisa e passou uma para o
Moicano. — Quarto 202.

O Moicano assentiu em silêncio e começamos a andar.

Eu podia ouvir o barulho do chão sob seus pés, bem como o som de alguém
gemendo em algum lugar do prédio. O cheiro de algum animal também
ocasionalmente surgia. Foi quando percebi que havia uma sala adjacente à área
principal, cercada por barras de ferro. Espiei lá para dentro. Mesmo sob a luz fraca,
pude ver um círculo mágico no chão. Contida dentro de seus limites estava uma
grande besta que estava acorrentada e estatelada. Estava muito escuro para ter
certeza, mas eu nunca tinha visto aquele tipo de criatura no Continente Demônio.
Devia ser algo nativo do Continente Millis.

Onde estavam os escravos que foram levados cativos? Disseram-nos para


libertá-los, mas não nos contaram onde estavam localizados. Talvez Ruijerd
soubesse.

O Moicano desceu as escadas localizadas nas profundezas da mansão. O


mordomo mencionara o quarto 202, então presumi que fosse no andar de cima, mas
parecia que ficava no porão.

— Então fica no subsolo, hein?

— O segundo andar é só para enganar as pessoas.

Isso significava que os itens do segundo andar não eram motivo para
preocupação, caso alguém os encontrasse. Bens que eram altamente tributados ou
que, de outra forma, seriam condenados a duras penas se contrabandeados, seriam
mantidos no andar de baixo.

— Isso aí. — O Moicano parou em frente a uma porta com uma placa que dizia
“202”. Quando olhei para dentro, vi Ruijerd com as mãos algemadas atrás das
costas, cheio de ramos de cabelo esmeralda começando a brotar em sua cabeça.
Não foi nenhuma surpresa que agora tivesse algum cabelo nascendo em sua
cabeça, já que foi deixado assim por uma semana.

— Agradeço a sua ajuda.

O Moicano acenou com a cabeça e assumiu seu posto do lado de fora da porta
da frente. Um vigia, presumi.

— Não tire suas algemas aqui. Não há nada que possamos fazer para impedir
um Superd se ele ficar fora de controle. — O homem parecia um pouco pálido ao
dizer isso.
Pelo visto, mesmo o pouco cabelo de cor esmeralda na cabeça de Ruijerd já
era eficaz. O Moicano ficaria ainda mais apavorado se eu removesse as amarras do
Superd e começasse a comandá-lo. Nah, não havia necessidade de fazer alguma
coisa do tipo – pretendendo ser um gênio do mal fracote capaz de controlar um
monstro.

Agora, onde coloquei a chave para suas algemas? Procurei no bolso da camisa,
mas não estava em lugar nenhum. Talvez tivesse deixado na estalagem. Me
preocupar seria muito incômodo, então decidi apenas usar minha magia. Quando
me aproximei de Ruijerd, percebi uma expressão sombria em seu rosto.

Sim, eu sabia disso. As pessoas ficam irritadas quando estão com fome,
pensei. Espere um pouco mais e vamos pegar um pouco de comida para…

— Rudeus, traga seu ouvido aqui perto — sussurrou Ruijerd.

— O que foi?

Quando coloquei meu rosto mais perto, o Moicano pareceu entrar em pânico e
disse:

— E-ei! Pare com isso! Ele vai morder!

Nah, não esquenta. É de Ruijerd que estamos falando, ele vai no máximo fingir
que me mordeu, pensei enquanto me inclinava para mais perto.

— Eles sequestraram crianças. Sete delas.

Hein? Mais do que eu esperava.

— Crianças do povo-fera. Tomadas contra a sua vontade. Mesmo daqui


consegui escutar elas chorando.

— Hm, talvez sejam elas que devemos resgatar?

— Não sei. Mas parece que não há mais ninguém por aqui.

Crianças. Escravas, presumi. Entre elas estava a pessoa que Gallus disse que
causaria problemas no futuro. Ou talvez fosse outra pessoa, alguém importante.

— Nós vamos salvá-las, é claro. Certo?

— Bem, esse é o trabalho que aceitamos — respondi.

De qualquer forma, poderíamos verificar cada quarto para ter certeza. Restava
apenas um problema.

— Há guarda-costas por todo este prédio.

— Eu sei — respondeu o homem.


— Então, o que vamos fazer quanto a eles?

Mesmo que fosse de Ruijerd que estávamos falando, ainda seria difícil passar
despercebido e libertar todos aqueles escravos.

— Matar todos.

Assustador!

— Matar todos eles, hein…?

— Eles sequestraram crianças. — O Superd tinha uma expressão de descrença


no rosto. Como se tivesse sido traído.

Mas não era como se eu tivesse me oposto. Gallus nunca especificou quais
métodos poderíamos ou não usar. A julgar pela maneira como ele falava,
provavelmente presumiu que eu deixaria Ruijerd massacrar todos. Mas
originalmente planejei libertá-lo e partir, para depois me infiltrar furtivamente e
libertar os cativos. Parecia que meus planos foram muito ingênuos. Matar todos
poderia não refletir de maneira honrosa o nome da tribo de Ruijerd, pelo menos na
minha opinião, mas dessa vez não tínhamos escolha.

— Cuide para não deixar nenhum vivo.

Não disse isso para parecer cruel ou implacável. Uma organização de


contrabando pagaria a um cliente que os traíra enviando assassinos que criaram
desde o nascimento. A única coisa que esperava os traidores seria uma morte
impiedosa.

Eu não tinha certeza do que Gallus faria depois disso. Ele poderia enviar
assassinos atrás de nós para manter nossas bocas fechadas. Enquanto Ruijerd
estivesse conosco, não precisávamos ter medo de assassinos, mas não
conseguiríamos dormir em paz. Também não havia garantia de que o Superd ficaria
conosco o tempo todo.

— Sim, deixe isso comigo.

Eita, eita, é a resposta que eu esperava, Ruijerd! Foram palavras


reconfortantes.

— Não vou deixar ninguém vivo. Nem uma única pessoa.

Assustador. Uma veia azulada apareceu em sua testa. Ultimamente, achei que
ele tinha amolecido um pouco, mas o homem acabou revelando sua sede de
sangue. O que esses contrabandistas fizeram para irritá-lo tanto?

— Posso perguntar o que fizeram com aquelas crianças?


— Você saberá quando as vir. — Isso realmente não esclarecia nada. — Não
se preocupe. Você não tem que sujar as mãos — disse Ruijerd, entendendo mal o
meu comportamento.

Meu corpo congelou e eu disse:

— Não. — Suas palavras foram como um espinho que acertou meu coração. —
Eu… também vou.

É verdade que, no último ano, evitei tirar a vida de alguém. Matei bestas sem
questionar, mesmo aquelas que eram humanóides. Eu, entretanto, não cometi
assassinato. Em parte, porque não precisava, mas também havia muitos motivos
para não o fazer. Também nunca havia sentido o impulso de matar alguém antes.

Este mundo era implacável. Era um mundo onde as pessoas travavam batalhas
de vida ou morte todos os dias. Eu, eventualmente, teria que matar alguém. Essa
era uma situação que algum dia teria de enfrentar. Achei que tinha me preparado
mentalmente para isso, mas o que fiz não foi uma preparação mental. Tudo o que
fiz foi reduzir a força do meu Canhão de Pedra a um nível em que não seria capaz
de matar ninguém.

No final, hesitei em tirar a vida de alguém. Eu poderia alegar o contrário, se


quisesse, mas a verdade é que não queria quebrar o tabu do assassinato. Não tinha
me preparado, não conseguia me preparar. Ruijerd percebeu isso. É
especificamente por isso que disse o que disse. Ele estava tomando conta de mim.

— Não faça essa cara. Suas mãos são para proteger Eris.

Ah, bem. Eu acho que ele estava certo. Não havia sentido em me forçar a matar.
Decidi deixar todo o trabalho para Ruijerd. Se ele podia fazer isso sozinho, então
seria melhor confiar nele. Se isso me tornava um covarde, tudo bem. Era melhor me
concentrar no que era capaz de fazer do que no que não era.

— Então vamos lá. Vou libertar as crianças. Você sabe onde elas estão?

— Na porta ao lado.

— Então vamos lá. Tente reunir os cadáveres. Depois vamos queimar todos
eles.

— Entendido.

Sem falar mais nada, tirei suas algemas. A porta rangeu quando Ruijerd se
levantou lentamente.

— Ei, você! Como diabos conseguiu se livrar das algemas?! — O Moicano


entrou em pânico.

— Não se preocupe. Ele vai ouvir o que eu digo.


— S-sério? — O homem pareceu um pouco aliviado ao me ouvir dizer isso.

Passei a lança de Ruijerd para ele.

— Mas, de qualquer forma, vai ficar furioso.

— Hã…?

O Moicano foi a primeira vítima. Ruijerd o matou sem fazer qualquer barulho.
Então ele silenciossamente correu em direção às escadas. Fui na direção oposta à
sala onde as crianças estavam presas.

— Gaaaaah!

— Um S-Superd! Ele está sem algemas!

— Merda! Ele está segurando uma lança!

— É um demônio! Aaaah, é um demônio, aaah!

Os gritos do andar de baixo começaram assim que cheguei à porta.


Capítulo 06 - As Crianças do
Povo-Fera

O quarto estava escuro. Dentro das sombras estavam meninos e meninas com
olhares nervosos em seus rostos, seus corpos se contorciam. Havia quatro garotas
e três garotos, um total de sete crianças. Todos tinham mais ou menos a minha
idade. Estavam nus, e tinham orelhas de feras ou de elfos. Suas mãos foram
amarradas atrás deles, e todos se encolheram quando eu apareci.

Mas que visão – foi como uma versão jovem de Kannon, a Deusa da
Misericórdia, uma Bodisatva budista. Este era o Éden. Não, talvez fosse o paraíso.
Finalmente cheguei ao céu? Não, eu ainda nem tinha encontrado o bebê verde!

Não era hora para ficar excitado. Com apenas uma exceção, seus olhos
estavam todos inchados de tanto chorar, e vários tinham hematomas preto-azulados
em seus rostos. Minha cabeça esfriou na mesma hora. Estavam chorando e
gritando, então provavelmente apanharam por fazerem barulho.

A mesma coisa aconteceu quando Eris e eu fomos sequestrados. Neste mundo,


os sequestradores não demonstravam nenhuma preocupação com as crianças que
tomavam como cativas. Ruijerd deve ter as ouvido sendo impiedosamente
torturadas, já que estava no quarto vizinho. Foi por isso que não conseguiu se
conter.

Olhando de relance, não pareciam ter sido sexualmente abusadas. Talvez


porque ainda eram jovens, ou talvez porque isso diminuiria seu valor de venda. Seja
qual fosse o motivo, era a única misericórdia em meio a tanta desgraça.

Normalmente, eu olhava para garotas nuas e meus olhos logo eram atraídos
para seus seios, mas agora, meu pervertido interior estava enfraquecido. Afinal,
antes de desembarcar do navio eu tinha recém decidido virar um eremita.
Infelizmente, minha nova profissão não havia aumentado minha inteligência em
nada.

Três das meninas ainda choravam, as lágrimas escorriam pelos seus rostos.
Dois dos meninos me olharam com olhares aterrorizados em seus rostos.

O terceiro estava debruçado no chão, mal respirando. Eu o curei antes de


remover as algemas de seus pulsos. Sua boca estava amordaçada com tanta força
que não consegui soltar. Sem outra escolha, tive que queimá-la. Pode ter o
queimado um pouco, mas achei que ele poderia lidar com isso. Fiz o mesmo com
os outros dois meninos, curando-os e tirando suas amarras.

— U-um… quem é…?

As palavras foram ditas na língua do Deus Fera, então fiquei um pouco


surpreso, mas pelo menos conseguiria manter uma conversa.

— Eu vim para te salvar. Vocês três, vigiem a porta. Se virem alguém chegando
me avisem na mesma hora.

Os três trocaram olhares nervosos.

— Vocês são homens, certo? Podem fazer ao menos isso, não podem?

Suas expressões endureceram e assentiram, correndo em direção à porta. Não


havia outro significado para minhas instruções. Não era como se eu apenas
quisesse tirá-los do caminho para que pudesse cobiçar as meninas sem ninguém
para atrapalhar.

Ruijerd estava causando uma confusão no andar de cima, então provavelmente


ninguém apareceria. Ainda assim, não podíamos correr nenhum risco. Antes de
entrar no quarto, ajustei meu olho de demônio para me mostrar um segundo no
futuro, mas não seria capaz de ver nada se não prestasse atenção.

Comecei a remover as amarras das garotas. Algumas eram mais fartas do que
as outras, mas não as classifiquei. Admirei todas da mesma forma e tirei tudo que
as prendia. Também não toquei em nada além do necessário. Queria que
pensassem no Rudeus diante delas como nada menos que um cavalheiro.

Também curei seus hematomas. Era a minha hora de desfrutar – err,


digo, tratar suas feridas. Afinal, seria necessário tocar nas pessoas para curá-las.
Portanto, não havia outro significado por trás disso. Sim, uma das meninas tinha
hematomas no peito, mas juro que não tive segundas intenções.

Outra tinha uma costela quebrada. Isso não podia ser algo bom… E uma delas
teve o fêmur quebrado. Aqueles homens foram realmente cruéis.

As meninas se esconderam com as mãos ao se levantar. Elas mesmas


removeram suas mordaças. Era minha imaginação ou a garota de temperamento
forte e com orelhas de gato estava olhando para mim?

— Obrigada por… hic… nos salvar. — A garota com orelhas de cachorro me


agradeceu enquanto timidamente escondia o corpo. Ela falou na língua do Deus
Fera, é claro.

— Só para ter certeza, todas vocês conseguem me entender, certo?

Quando todas concordaram, soltei um suspiro de alívio. Pelo visto, dava para
entender tudo o que eu falava na língua do Deus Fera.
Parecia que Ruijerd ainda não havia terminado, e eu não poderia levar essas
crianças a um matadouro. Isso poderia causar ainda mais traumas, então talvez
devesse apenas admirar o cenário um pouco mais… ou não. Provavelmente deveria
perguntar o que aconteceu.

— Se não se importar com a pergunta, por que foram trazidas aqui?

— Mew?

Dirigi minha pergunta para a menina com orelhas de gato, aquela que parecia
a mais teimosa. Ela era a única entre os sete que não tinha um rastro de lágrimas
escorrendo pelo rosto. Em vez disso, seu corpo parecia o mais surrado, quebrado e
machucado. Não sofreu tanto quanto Eris naquela ocasião, mas seus ferimentos
ainda eram os piores. O segundo pior era o primeiro menino que ajudei, mas, ao
contrário dele, ela ainda tinha um brilho vivo nos olhos.

Essa garota poderia ser ainda mais obstinada do que Eris. Não, ela
provavelmente era mais velha do que Eris era naquela época. Se tivessem a mesma
ideia, sem chances de que Eris perderia.

Certo, por que diabos eu estava ficando tão competitivo?

— Estávamos brincando na floresta quando um homem estranho de repente


nos agarrou, mew!

Foi um choque para o meu sistema. Mew! A frase dela terminou em “mew”! Um
verdadeiro mew! Completamente diferente da imitação de Eris. Essa garota era uma
verdadeira e genuína gata. Não era apenas porque estava falando na língua do
Deus Fera. Definitivamente disse “mew” no final da frase. Sensacional.

Não. Eu não podia me distrair.

— Então isso significa que todos vocês foram levados contra sua vontade? —
Tentei conter minhas emoções e permanecer calmo enquanto perguntava.

As meninas fizeram que sim com a cabeça. Bom. Se tivessem sido vendidas
por pais passando por necessidades, ou se tivessem sido vendidas porque não
tinham mais meios de viver, nossos esforços para libertá-las teriam sido em vão.
Bom. Estávamos salvando pessoas. Fiquei muito feliz com isso.

— Acabou. — Ruijerd retornou. A cor verde musgosa tinha sumido de seu couro
cabeludo e um protetor de testa foi colocado em volta de sua cabeça. Suas roupas
estavam imaculadas. Não havia uma única gota de sangue nelas. Eu não esperava
nada menos.

— Bom trabalho. Havia mais alguém sendo mantido em cativeiro? — perguntei.

— Ninguém.

— Então vamos encontrar algumas roupas para eles. Vão pegar um resfriado
se os deixarmos assim.
— Entendido — respondeu Ruijerd.

— Certo, gente — falei. — Por favor, esperem mais um pouco.

Nós nos separamos e começamos a procurar roupas adequadas. Não


encontramos nada para crianças. Suas roupas deviam ter sido tiradas e descartadas
quando seus captores as sequestraram. Mas para quê? Eu não entendi. O motivo
para terem deixado as crianças nuas era um mistério para mim. Não ter roupas era
um problema sério. Não poderíamos nem levá-las a uma loja de roupas se
estivessem nuas.

— Hm? — Por acaso, olhei pela janela, apenas para ver uma montanha de
cadáveres. Cada um deles tinha um único ferimento de faca, no coração ou na
garganta. Há algum tempo, uma cena dessas me deixaria apavorado, mas desta
vez foi até reconfortante. Ainda assim, não esperava que houvesse tantos deles. O
forte cheiro de sangue pairava no ar. Isso atrairia monstros.

Vamos queimá-los logo, pensei, e saí do prédio.

Fiquei diante da montanha fedorenta de cadáveres e criei uma bola de fogo.


Uma com um raio de cinco metros parecia ser boa o bastante para a finalidade. Na
magia de fogo, aumentar o poder de um feitiço também serviria, por algum motivo,
para aumentar seu tamanho. Eu não queria sentir o fedor de carne queimada, então
decidi incinerá-los com uma única explosão.

— Opa!

O fogo resultante foi claramente muito poderoso, já que se espalhou por todo o
prédio na mesma hora. Rapidamente lancei uma magia de água para extinguir as
chamas.

Essa foi por pouco. Quase me transformei em um piromaníaco.

Que merda, talvez devesse ter tirado suas roupas primeiro, pensei. Elas
provavelmente cheirariam a sangue e fariam meu estômago revirar, mas ainda
poderiam ser usados depois que eu as lavasse.

— Rudeus. Terminei.

Enquanto eu estava preocupado com esses pensamentos, Ruijerd saiu do


prédio. As crianças estavam todas com ele, todas vestidas. Por vestidas, quis dizer
que estavam todas usando robes.

— Onde você encontrou essas roupas?

— Arranquei as cortinas.

Oho. Você é inteligente, pensei. Uma verdadeira fonte de sabedoria.


O próximo objetivo de nossa missão era levar as crianças de volta às suas
casas. Isso significava levá-las para a cidade e guiá-las até seus pais.

Acendi as tochas na entrada da frente do prédio e fiz cada uma das crianças
pegar uma. Decidi seguir um caminho diferente no retorno. Seria problemático se
outro contrabandista nos encontrasse, e aquela rota subterrânea provavelmente foi
criada para proteger as pessoas das feras da floresta. Nós não precisávamos disso.

— Mew! — De repente a garota com orelhas de gato gritou. O barulho ecoou


pela escuridão ao nosso redor.

— Qual é o problema? — perguntei, desejando que ela não fizesse tanto


barulho.

— Mew! Havia um cachorro naquele prédio de onde acabamos de sair?! — Ela


se agarrou à perna de Ruijerd. Havia uma clara expressão de desespero em seu
rosto.

— Havia um.

— Por que não o resgatou?!

Isso mesmo, havia um cachorro. Espera, era um cachorro? Era


assustadoramente enorme.

— Vocês ficaram em primeiro lugar.

Seus olhos reprovadores se fixaram em Ruijerd.

Ah, vamos, pensei. Nós salvamos vocês. Não há razão para nos olhar assim.

— Só para você saber, foi ele quem te salvou.

— B-bem, eu sou grata por isso, mew. Mas…

— Se você está grata, então deveria dizer “obrigada”.

Quando eu disse isso, todos curvaram suas cabeças para o Superd. Bom,
pensei. Todos deviam ficar ainda mais gratos.

Essa podia ter sido uma missão que recebemos de um contrabandista da


organização que os sequestrou, mas também era verdade que Ruijerd estava
genuinamente preocupado com as crianças. Embora isso também fosse verdade,
exigimos sua gratidão mesmo sem nunca terem pedido para serem salvas.

— Eu vou voltar e soltar o cachorro. Ruijerd, você leva as crianças para a


cidade.
— Entendido. Para onde devemos ir quando chegarmos lá?

— Espere do lado de fora da cidade. — Dei algumas instruções. E então refiz


meus passos.

Para onde deveríamos levá-las depois disso? Era uma pergunta difícil. No
início, pensei em levá-las para a Guilda dos Aventureiros. Então, poderíamos fazer
um pedido dizendo: “Temos crianças sob nossa custódia; por favor, procurem por
seus pais” e confiar as crianças à guilda. Isso poderia representar o fim de tudo.

No entanto, Gallus disse que a organização de contrabando não era um grupo


único. Se nos movêssemos muito abertamente, seríamos descobertos.
Considerando nossas conversas, o contrabandista não seria capaz de nos ajudar
se isso acontecesse. Seria melhor terminarmos tudo sem deixar qualquer rastro de
nosso envolvimento. Isso seria tanto para o nosso bem quanto para o dele.

Nesse caso… e se deixássemos as crianças com a guarnição da cidade e


fugíssemos do lugar o mais rápido possível? Não, se elas falassem, nossas
identidades seriam descobertas. Então a organização de contrabando descobriria
tudo. Além disso, a estação das chuvas estava quase chegando. Se saíssemos da
cidade, não teríamos mais para onde ir. Podíamos até mesmo ser confundidos com
sequestradores.

Hmm. Isso era preocupante. Talvez eu não tivesse pensado o bastante nas
coisas. Eu tinha certeza de que poderíamos libertá-los, mas pensei muito pouco no
que viria depois disso. Será que devíamos culpar outra pessoa pelo ataque? Sim,
talvez fosse uma boa ideia. Se escrevesse que “O Grande Imperador do Mundo
Demônio Kishirika esteva aqui” na parede, poderiam realmente acreditar. Afinal,
Kishirika disse para contar com ela se acabasse precisando de alguma coisa.

— Que seja. — Retornei ao prédio, ainda indeciso sobre o que fazer a seguir.

Encontrei o lugar onde tinha visto aquele círculo mágico. Quando entrei, a besta
me cumprimentou com um olhar suspeito. Ela não abanou o rabo nem latiu. Estava
letárgica.

— Definitivamente é um cachorro.

Havia um cachorrinho acorrentado dentro daquele círculo mágico. À primeira


vista qualquer um poderia dizer que era um cachorrinho, mas era enorme. Tinha
cerca de dois metros de altura. Por que todos os cães e gatos deste mundo eram
tão grandes?

Quando o vi pela primeira vez pensei que seu pelo era branco, mas ao ver mais
de perto, percebi que na verdade era prateado. Parecia brilhar, mas provavelmente
era só por causa da iluminação. Um grande Shiba Inu bebê prateado, com um olhar
refinado e inteligente em seu rosto.
— Eu vou te ajudar – aaaaai!

No momento em que tentei entrar no círculo mágico, ele me repeliu. Não foi
algo como um choque. A sensação seria difícil de explicar, mas era como se os
receptores de dor em meu cérebro estivessem sendo ativados. Parecia que o círculo
mágico era na verdade uma barreira. Uma barreira do tipo de cura mágica – um tipo
de construção desconhecido para mim.

— Hmm. — Estudei as bordas do círculo mágico. Ele emitia uma luz branco-
azulada, iluminando um pouco do lugar. A luz proveniente dele indicava que havia
circulação de mana. Se eu pudesse cortar a fonte de seu combustível, o círculo
desapareceria. Roxy me ensinou isso. Era o método quintessencial de remoção de
armadilhas mágicas.

A fonte de combustível… Em outras palavras, um cristal mágico.

No entanto, pelo que pude ver, não havia tal cristal para ser encontrado. Não…
isso só indicava que eu ainda não tinha o encontrado. Onde o esconderam?
Provavelmente no subsolo. Será que devia usar magia de terra para remover o
círculo? O que aconteceria no caso de tentar forçar a dissipação de um círculo
mágico como este?

Hm, espere, pensei. Espera, espera, espera. Vamos pensar nisso de forma
mais simples.

Em primeiro lugar, como planejavam tirar esse cachorro do círculo mágico? Não
havia nenhum mago no meio dos cadáveres que eu tinha visto. Então devia haver
alguma maneira para um iniciante poder remover essa armadilha.

Primeiro, considerei onde poderia estar o cristal mágico. Pensei que só poderia
estar no subterrâneo. No entanto, se estivesse lá, aqueles caras não seriam capazes
de retirá-lo. Tinha que estar em algum lugar do qual pudessem extraí-lo. Mas
também tinha que estar em algum lugar onde ainda pudesse aplicar mana na
armadilha.

— Hm, então está acima?

Decidi verificar no andar de cima. Fui para o cômodo logo acima, onde encontrei
um círculo mágico menor e o que parecia ser uma lanterna de madeira. Nela estava
o que eu presumi ser um cristal mágico.

Muito bom. Tive a sorte de encontrá-lo ao seguir meu primeiro palpite.

Levantei a lanterna com muito cuidado e o círculo mágico abaixo dela se


dissipou suavemente. Quando voltei ao andar inferior, vi que aquele que estava ao
redor do cachorro havia sumido por completo. No final das contas, parecia que os
círculos superior e inferior estavam ligados. Ótimo, ótimo.

— Grrr…!
O cachorro me olhou de um jeito ameaçador e começou a rosnar quando me
aproximei. Bem, os animais nunca gostaram de mim, pelo menos desde que eu
lembrava. Isso não mudou.

Estudei a condição física do cachorro. Seu rosnado ainda era poderoso, mas
seu corpo já não estava forte como costumava. Parecia exausto. O animal sem
dúvidas estava com fome.

Ainda assim, as correntes eram suspeitas. Provavelmente havia algum


significado no padrão gravado nelas. Talvez eu devesse as remover. Não, isso
poderia ser perigoso. Se aquelas correntes estivessem restringindo seu poder,
então no momento em que eu as soltasse, ele poderia me atacar. Uma mordidinha
poderia ser curada, mas…

— O que devo fazer para que você não me morda?

Quando perguntei isso, o cachorro respondeu:

— Woof? — Ele apontou a cabeça para mim como se entendesse as palavras.

Hm.

— Se não me morder, vou tirar essa coleira de você e devolvê-lo ao seu mestre.
O que acha disso? — Falei com ele na língua do Deus Fera e, quando o fiz, o
cachorro parou de rosnar e se deitou silenciosamente no chão. Parecia estar
entendendo. Bem, estar em um mundo diferente era algo conveniente. Era possível
falar até com cães.

Tentei usar magia para cortar a corrente. Quebrou facilmente. Assim que isso
foi feito, o poder instantaneamente retornou ao corpo do cão. Ele se levantou na
mesma hora e tentou sair correndo, mas eu o parei.

— Espere, espere, você ainda está com uma coleira.

Ele olhou para mim e obedientemente voltou a se deitar.

Tentei o meu melhor para remover a coleira, mas não tinha nenhuma fechadura
nela. Se não houvesse fechadura, não havia como destrancar. Que coisa estranha.
Como pretendiam removê-la? Ou nunca tiveram a intenção de fazer isso? Foi bem
difícil, mas consegui encontrar uma junta na coleira. Pelo visto, era uma daquelas
que só seria possível remover se conhecesse o truque.

— Vou tirar ela, então não se mova. — Conjurei magia da terra com todo o
cuidado e apontei para a pequena junta da coleira, usando a magia para forçar uma
abertura. Houve um tinido e, finalmente, saiu.

— Isso aí.

O cachorro balançou o pescoço.


— Woof!

— Ei!

Ele colocou uma de suas patas dianteiras em um dos meus ombros e seu peso
acabou me derrubando. Eu caí no chão, todo mole, e o cachorro começou a babar
sobre o meu rosto.

— Woof!

Aah! Você não pode, cachorrinho! Eu tenho mulher e marido…!

Tentei empurrar a grande bola de pelo prateado de cima de mim, mas ela era
muito pesada e, além disso, macia e fofa. Sedosa e macia. Isso parecia tudo muito
bom e gostoso, mas era pesado. Seu peso sobre o meu peito foi o suficiente para
fazer meus ossos rangerem. Movê-lo parecia ser algo difícil. Desisti de não ser
lambido, pois não havia nada que eu pudesse fazer. Em vez disso, concentrei-me
em apreciar a sensação de seu pelo até que o animal cansasse de lamber meu
rosto.

E cara, como era fofo. Ou, como dizem as crianças, “fofinho”.

Para ser tão macio assim… Ei, espera… Você usa algum tipo de amaciante,
não usa? pensei, apenas para outra voz na minha cabeça responder na mesma
moeda. Aww, mas eu não estou usando nada…

— Bastardo! O que você fez com a Fera Sagrada?!

— Hein?

Assim que a bola de pelo finalmente pareceu satisfeita, uma voz ressoou. Ainda
jogado no chão, olhei para cima, me perguntando se um daqueles contrabandistas
havia conseguido sobreviver.

Fui saudado por uma pele cor de chocolate, orelhas de animal e cauda de tigre.
Ghislaine…? Não, não era. Eram parecidos, mas não era ela. A parte peluda e a
musculosa eram as mesmas, mas havia algo um pouco diferente. A maior
característica de Ghislaine estava ausente. O peito – o desta pessoa era plano. Esta
pessoa tinha peitorais enquanto Ghislaine tinha seios fartos. Um homem.

O homem levou a mão à boca, como se fosse gritar.

Ah, merda! Ele está prestes a fazer algo. Eu preciso fugir. Mas não posso me
mover!
— Cachorrinho, sai. Preciso fugir desse cara! — O cachorro se mexeu.

Eu me levantei e ativei meu olho demoníaco. Pude ver o que estava prestes a
acontecer.

O homem ainda está com a mão pressionada contra a boca.

Achei que não fosse fazer nada, mas de repente ele rugiu.

— Graaaaah! — O grito tinha um volume insuportável. Foi um grito muito mais


estridente do que qualquer um que já ouvi Eris soltando. O som parecia ter até
massa. Meus tímpanos rangeram e meu cérebro tremeu.

Quando percebi o que estava acontecendo, desmaiei. Não aguentei. Isso era
ruim. Eu tinha que me curar, mas não conseguia mover minhas mãos. O que diabos
foi aquilo, algum tipo de mágica?

Merda. Merda, merda, merda. Eu não poderia usar magia? Tentei canalizar
minha mana, mas… não adiantou.

O homem me agarrou pelo colarinho e me ergueu no ar. Ele estava franzindo


as sobrancelhas e me elevou ao nível de seu rosto.

— Hm. Ainda é só uma criança. Não consigo te matar.

Ah, eu parecia estar seguro. Graças à deusa. Fiquei feliz por parecer uma
criança.

— Gyes, o que foi?

Outro homem apareceu. Ele também parecia com Ghislaine, mas tinha os
cabelos brancos. Um homem mais velho.

— Pai. Subjuguei um dos contrabandistas.

— Um contrabandista? Não é uma criança?

— Mas ele estava tentando atacar a Fera Sagrada.

— Hm.

— Ele estava com uma expressão obscena no rosto enquanto a acariciava.


Talvez não tenha a idade que parece.

N-não, você está errado. Tenho doze anos. Não sou um homem de quarenta e
cinco anos por dentro, pode confiar, protestei balançando a cabeça.

— Woof! — Quando a fera latiu, Gyes e o outro homem se ajoelharam diante


dela.
— Peço desculpas. Devíamos ter nos movido antes, mas, em vez disso, nos
atrasamos para vir ao resgate.

— Woof!

— E pensar que esse garoto colocaria as mãos sobre vossa santidade… Gah…!

— Woof!

— O quê? Ele não te incomodou? Que benevolente…!

Eles pareciam estar conversando, embora o cachorro só estivesse dizendo


“woof woof” o tempo todo.

— Gyes, eu encontrei o cheiro de Tona em um quarto do porão. Ela esteve aqui.


Isso é certo — disse o velho.

Quem era Tona? Pelo contexto da conversa, imaginei que fosse uma das
crianças do povo-fera.

— Vamos levar esse menino de volta para a aldeia e interrogá-lo. Ele pode tê-
los levado para algum lugar. E assim que o fizermos abrir a boca, partiremos
novamente e voltaremos a procurar…

— Não temos tempo. O último navio parte amanhã. — Gyes cerrou os dentes.

— Não temos escolha a não ser desistir. Considere que tivemos sorte, já que
conseguimos resgatar a Fera Sagrada.

— E o que vamos fazer com isso?

— Leve-o para casa conosco. Ele pode ser uma criança, mas se estava
trabalhando com aqueles contrabandistas, então será punida.

Gyes assentiu e amarrou minhas mãos atrás de mim usando uma corda. Então
me colocou em seu ombro. O cachorro cambaleou por trás do homem, olhando para
mim com preocupação.

Tudo bem. Não se preocupe. Esses caras não parecem ser contrabandistas,
disse a mim mesmo. Só vieram até aqui para resgatar aquelas crianças. Então, se
eu falar com eles, vão entender. Só tenho que esperar até que me libertem.

— Hm… — Quando saímos, o velho torceu o nariz. — Ainda há cheiro.

— Cheiro? O fedor de sangue é tão forte que não sei dizer.

— Está fraco, mas é o cheiro de Tona e dos outros. E há mais um. O cheiro
daquele demônio.
No momento em que mencionou “aquele demônio”, a expressão de Gyes
endureceu.

— Você está dizendo que aquele demônio levou Tona e os outros?

— Difícil dizer. Talvez ele tenha os salvado — sugeriu o velho.

— Sem chances. Não pode ser isso.

Parecia que tinham sentido o cheiro de Ruijerd.

— Gyes. Eu vou seguir o rastro. Você pega o menino e a Fera Sagrada e volta
para a aldeia.

— Não, eu vou com você — protestou Gyes.

— Você é muito temperamental. E no final das contas o garoto pode não ser
um daqueles contrabandistas, sabe? — Como esperado, as palavras do velho
transbordavam sabedoria.

Isso aí, pensei. Eu não sou um contrabandista, por favor, deixe-me explicar.

— Mesmo assim, não há dúvidas de que ele tocou a Fera Sagrada com suas
mãos imundas. O garoto cheira como um humano excitado. Por mais inacreditável
que pareça, ele mostrou sinais de excitação sexual em relação à Fera Sagrada.

O quê?!

Mas que completa mentira! pensei. Não tenho nenhum interesse sexual por
cães! Mas por jovenzinhas… Não! Essa também não é uma boa defesa!

— Nesse caso, jogue-o em uma cela. Mas não coloque suas mãos nele até eu
voltar para casa.

— Sim senhor!

O homem mais velho acenou com a cabeça antes de correr em direção da


floresta.

Enquanto Gyes o observava partir, me disse:

— Hmph, ele acabou de salvar a sua pele.

Sim, ele realmente o fez.

— Então, Fera Sagrada, vamos correr um pouco. Tenho certeza de que você
deve estar exausta, mas…

— Woof!
— Foi o que pensei!

E assim, deitado sobre o ombro de Gyes, fui carregado para o fundo da floresta.

Ponto de vista de Ruijerd

Ruijerd estava perto da cidade, mas Rudeus ainda não tinha voltado. Será que
se perdeu? Não, ele teria usado magia para enviar um sinal para o céu. Então isso
significava que se deparou com problemas? O Superd havia se livrado de todos os
humanos naquele prédio, mas talvez o garoto tivesse encontrado algum
remanescente que surgiu de um local diferente. Ele provavelmente deveria voltar e
verificar, só para ter certeza.

Não. Rudeus não era uma criança. Mesmo se um inimigo aparecesse, ele seria
capaz de lidar com os problemas. As defesas do menino podiam ser fracas, talvez
porque era jovem, mas não era tão ingênuo a ponto de baixar a guarda em território
inimigo.

Além disso, Eris não estava lá, então ele não teria motivos para se preocupar.
Se Rudeus usasse toda a extensão de seus poderes, não poderia ser derrotado. O
único problema era que estava em conflito sobre tirar a vida de uma pessoa. Se
limitasse muito os seus poderes, poderia acabar levando a pior. Não… ele com
certeza não era tolo.

Rudeus não precisava de sua preocupação. Ainda assim, Ruijerd ficou


preocupado. Se continuasse no mesmo lugar com as crianças, tinha um mau
pressentimento sobre o que poderia acabar acontecendo.

Ele havia enfrentado circunstâncias semelhantes em muitas outras ocasiões.


Resgatava crianças de mercadores de escravos e tentava devolvê-las à cidade,
apenas para ser confundido com um sequestrador. Sua cabeça estava raspada e a
joia em sua testa escondida, mas ele ainda tinha dificuldades para escolher as
palavras certas. Se a guarnição o detivesse para interrogatório, não tinha confiança
em sua capacidade de explicar o que havia acontecido.

Os humanos da cidade certamente cuidariam das coisas se o homem deixasse


as crianças ali, certo? Não, Rudeus definitivamente apresentaria algumas objeções
se ele fizesse isso.

— Mew, Senhor, sinto muito por antes, mew.

Enquanto ele se preocupava, uma das garotas se aproximou e deu um tapinha


em sua perna. As outras crianças pareciam igualmente apologéticas. Nesse
momento parecia até que eram elas quem o resgataram.
— Está tudo bem.

Mas já fazia muito tempo desde que ele usara a língua do Deus Fera. A última
vez em que a usou… Hmm, quando foi mesmo? Desde a Guerra de Laplace ele não
lembrava de ter a usado muito.

— A Fera Sagrada é um símbolo de nossa tribo, mew, então não podíamos


simplesmente deixá-la para trás, mew.

— Então é isso. Eu não sabia disso, mas ainda assim, peço desculpas. — Ela
sorriu para Ruijerd quando ele disse isso. O homem realmente gostou do modo
como as crianças não demonstraram medo diante dele. — Hmm…

De repente, seu terceiro olho sentiu alguém se aproximando em alta velocidade.


Sua velocidade era incrível e sua aura era forte. Estava vindo da mesma direção do
prédio onde estiveram. Era um aliado dos contrabandistas? Mas parecia ser muito
competente para isso. Não pode ser, pensou. Realmente derrotaram Rudeus…?

— Afastem-se. — Ele colocou as crianças em proteção atrás de suas costas


enquanto preparava a lança.

O vencedor seria aquele que atacasse primeiro. Ele cuidaria de tudo com um
único golpe.

Ou assim pensou, mas o oponente de Ruijerd parou bem perto de seu alcance.
Era um homem-fera, segurando uma machadinha grossa na mão. O homem estava
claramente cauteloso ao assumir sua postura. Ele era velho, mas tinha um ar calmo,
sereno e digno. O ar de um guerreiro. Ainda assim, Ruijerd o mataria se o sujeito
estivesse em alguma aliança com aqueles bastardos de antes. Alguém que deixasse
algo assim acontecer com crianças de sua própria raça não era um verdadeiro
guerreiro.

— Ah, Vovô, mew! — A garota gata falou com o guerreiro velho e correu para
ele.

— Tona! Você está bem!

O guerreiro recebeu a garota em seus braços, com uma expressão de alívio


cruzando seu rosto. Ruijerd abaixou sua lança. O homem, aparentemente, estava
buscando salvar as crianças. O Superd errou ao duvidar dele como guerreiro; era
claramente um homem honrado.

A garota com orelhas de cachorro também parecia conhecê-lo e correu até ele.

— Tersena, você também está segura. Fico feliz.

— Aquele homem ali nos salvou.

O velho guardou sua espada. Então se aproximou de Ruijerd e fez uma


reverência. Parecia que ainda estava desconfiado do homem, mas isso era de se
esperar.
— Obrigado por salvar minha neta.

— De nada.

— Qual é o seu nome?

— Ruijerd. — Superdia, pensou em acrescentar, mas hesitou. Se o homem


soubesse que era um Superd, isso o deixaria em guarda.

— Ruijerd, não é? Sou Gustav Dedoldia. Sem dúvidas pagarei por essa dívida.
Mas, primeiro, preciso devolver essas crianças aos seus pais.

— Sim, você deve.

— Mas é perigoso andar com crianças por aí à noite. Primeiro gostaria que você
explicasse exatamente o que aconteceu. — Ao dizer isso, o homem começou a
caminhar em direção à cidade.

— Espere — gritou Ruijerd atrás dele.

— O que foi?

— Você visitou aquele prédio?

— Sim. Um lugar depressivo e fedendo a sangue.

Ruijerd continuou com suas perguntas:

— Não tinha ninguém lá?

— Havia uma pessoa. Um homem com forma de criança. Ele parecia manter
um sorriso depravado enquanto acariciava a Fera Sagrada.

Na mesma hora ele notou quem era. Rudeus. Então o garoto ainda mostra
aquele tipo de sorriso, pensou.

— É meu companheiro — disse Ruijerd.

— Ah não!

“Você o matou?”

Não importava se isso tivesse sido causado por algum mal-entendido. Se


Rudeus estivesse morto, Ruijerd buscaria vingança. Mas primeiro entregaria as
crianças aos seus pais. Eris também. Isso mesmo… Eris estava sozinha no
momento. Isso o preocupou.

— Nós o levamos para nosso vilarejo para interrogá-lo sobre a localização de


seus co-conspiradores. Mas vou libertá-lo o quanto antes.
Rudeus, o idiota, baixou a guarda. Aquele garoto… Suas defesas sempre foram
fracas, mesmo com sua resiliência mental sendo alta. Então, novamente, Ruijerd
não podia falar nada, visto que sua resiliência mental era de terceira classe se
fossem comparar.

— Rudeus é um guerreiro. Se você não planeja o matar, então não há razão


para se apressar. Primeiro vamos cuidar das crianças.

O povo-fera não costumava fazer o mesmo que os humanos, coisas como


tortura não eram opções. Iriam, no máximo, tirar suas roupas e jogá-lo em uma cela.
E, bem, Rudeus não se importava em ser visto nu pelos outros. Outro dia, até disse
algo estranho para Ruijerd: “Se Eris tentar me espiar enquanto estou tomando
banho, não precisa impedir.”

Além disso, Eris era um motivo para preocupação. Rudeus sempre confiou a
proteção dela ao Superd. Ele sempre se preocupou mais com a garota do que
consigo mesmo. O Superd faria melhor protegendo-a do que perseguindo Rudeus.

— Tenho minhas razões para não expor minha verdadeira identidade — disse
Ruijerd. — Mas gostaria que você levasse as crianças ao encontro de seus pais.

— Hm… tudo bem. — Gustav acenou com a cabeça e Ruijerd partiu para a
cidade.

Capítulo 07 - Apartamento
Grátis

Olá. Meu nome é Rudeus e eu costumava ser um recluso.

Atualmente, estou verificando um apartamento novo e gratuito que é o principal


papo da cidade. Sem depósito de segurança, sem pagamento pela chave, sem
aluguel. Um monoambiente com direito a duas refeições e tempo livre para um
cochilo. A cama é feita de palha infestada de insetos, o que é uma desvantagem,
mas o preço é excelente. Afinal, o aluguel é grátis!
O banheiro é um grande jarro que fica no canto do quarto. Depois de fazer os
seus negócios e o jarro ficar cheio de excrementos, é só jogar tudo em um buraco
no lado oposto do cômodo. Não há água corrente, por isso é um pouco anti-
higiênico, mas dá para se virar usando magia. Se for um mago como eu, que sabe
fazer água quente, seus problemas serão completamente resolvidos!

Servem apenas duas refeições. Para o povo moderno, isso pode ser muito
pouco. Ainda assim, a comida é incrível, uma exuberante especialidade regional
com frutas e legumes. E carne. O tempero é leve, ressaltando o sabor natural dos
ingredientes, o suficiente para fazer qualquer pessoa acostumada com a vida no
Continente Demônio estalar a língua com o sabor maravilhoso.

Agora, a principal característica do apartamento: sua segurança. Por favor, dá


uma olhadinha nessas barras de ferro resistentes. Pode bater nelas o quanto quiser,
puxá-las o quanto quiser, mas não cederão em um centímetro. Sua única fraqueza
é que podem ser abertas com magia.

Mas de certo não existe nenhum ladrão que olharia para elas e pensaria: Ei!
Acho que dá para passar! Entretanto, irão sempre dar uma olhadinha, já que este
apartamento gratuito é uma cela de prisão.

Com a cabeça pendurada nas costas de Gyes, continuei minha cavalgada pela
floresta. Incapaz de me mover, não tive escolha a não ser me permitir ser carregado.
Enquanto viajávamos pelas sombras da floresta em uma velocidade vertiginosa, vi
algo pelo canto do meu olho. Lá, entre o borrão de árvores que passavam voando,
havia um monte de cabelo prateado nos seguindo.

Ainda era um filhote, mas o cão tinha bastante resistência. Já estávamos em


movimento há provavelmente duas ou três horas. O guerreiro fera conhecido como
Gyes já estava correndo há muito tempo. Ele só parou quando finalmente chegamos
onde quer que fosse.

— Fera Sagrada, por favor, volte para a casa.

— Woof! — A bola de pelo prateado latiu uma vez antes de cambalear em


direção à escuridão.

Examinei os arredores usando apenas meus olhos. As árvores estavam


agrupadas e não senti nenhuma outra pessoa nas proximidades. No entanto, vi
luzes aqui e ali acima de nós no meio das árvores. Gyes continuou caminhando um
pouco, aproximando-se de uma das árvores.

Comigo ainda pendurado em seu ombro, ele enganchou as mãos em uma


escada que eu não podia ver e subiu rapidamente. Parecia que estava me levando
para as copas das árvores.
De lá, entramos em um prédio. Não havia ninguém presente. Era uma cabana
deserta e feita de madeira. Foi aí que Gyes tirou todas as minhas roupas.

O que diabos estava fazendo comigo? Eu não conseguia nem mover meu
corpo!

Ele me suspendeu pela nuca e me jogou dentro de… alguma coisa. Um


momento depois, ouvi o rangido de ferro e um tinido quando algo caiu. Então Gyes
se foi, sem qualquer explicação. Ele nem mesmo me interrogou.

Depois de um tempo, consegui voltar a mover meu corpo. Produzi uma pequena
chama na ponta do meu dedo e a usei para verificar o que estava ao meu redor. Vi
aquelas barras firmes e percebi que se tratava de uma cela. Fui jogado em uma
cela.

Tudo bem. A julgar pela conversa que tiveram, eu sabia que isso iria acontecer.
Me confundiram com um contrabandista. É por isso que não entrei em pânico. Esse
mal-entendido logo seria resolvido. Ainda assim, qual era a necessidade de me
despir? Pensando bem, aquelas crianças também tinham sido despojadas de todas
as suas roupas.

Talvez isso fosse algum costume local. Talvez o povo-fera se sentisse


humilhado ao ficar totalmente exposto. Embora sentir vergonha ao ser exposto não
fosse uma qualidade exclusiva de sua raça. Despir um prisioneiro para destruí-lo
mentalmente era uma prática usada desde tempos imemoriais. Podia até ser um
mundo de fantasia, mas mesmo em meu novo livro favorito, uma cavaleira era
privada de suas roupas quando feita prisioneira. Parecia que todos os mundos
tinham isso em comum.

— Então… — Envolto pela escuridão, comecei a pensar.

Por enquanto, guardaria minhas palavras para o dia seguinte. Mesmo se não
acreditassem em mim, eu ainda ficaria bem. O homem mais velho aparentemente
saiu atrás de Ruijerd, então já devia ter encontrado as crianças. O Superd era uma
pessoa fácil de interpretar mal, mas as crianças certamente não abandonariam o
guerreiro que surgira em seu auxílio. Elas voltariam em segurança e eu não seria
mais confundido com um contrabandista.

Mas seria melhor não citar que, apesar de não ser um contrabandista, tinha uma
relação de negócios com eles. Ruijerd também nunca quis trabalhar com os
bandidos, então não diria nada que nos colocaria em apuros. Por enquanto, a
principal preocupação era a minha própria segurança. O guerreiro mais velho disse
para não colocar a mão em mim até o seu retorno. Isso significava que eu estava
seguro. Provavelmente não jogariam nenhum monstro cheio de tentáculos em
mim… certo?

De qualquer forma, senti que finalmente entendi o significado por trás das
palavras de Gallus. Se isso fosse o que iria acontecer com eles, certamente estariam
em grandes problemas.
Enquanto eu pensava nessas coisas, um dia inteiro se passou. O tempo estava
voando. Na manhã do dia seguinte ao que fui jogado na cela, uma guarda apareceu.
Era uma mulher. Ela tinha a constituição de uma guerreira, mas era mais magra do
que Ghislaine. Porém seu peito também era enorme.

Eu disse:

— Fui falsamente acusado, não fiz nada. — Prossegui explicando que não
estava associado à organização de contrabando, que apenas descobri que aquelas
crianças estavam detidas naquele prédio e que, movido por uma justa indignação,
comecei a libertá-las.

A mulher não ouviu sequer uma palavra do que eu disse. Em vez disso, levou
um balde de água para minha cela e jogou-o sobre minha cabeça enquanto eu
protestava. Aquilo estava congelante, então fiquei parecendo um ratinho assustado.
Ela então olhou para mim como se eu fosse nada mais do que lixo.

— Pervertido…!

Senti um tremor me atravessando. Lá estava eu, nu, com esta bela mulher mais
velha com orelhas de animal me devastando com os olhos. Ela não apenas me
molhou, como também abusou verbalmente de mim. Era assim que se fazia para
destruir o psicológico de alguém.

Parecia que não tinham intenção de seguir o comando do guerreiro mais velho.
Então o que aconteceria comigo…? Ahh, Deusa (Roxy), dê-me sua proteção! E não,
Deus Homem, não me refiro a você!

— Achoo!

Brincadeiras à parte, eu realmente queria algumas roupas. Por enquanto, usaria


o feitiço de fogo, Queima Local, para me manter aquecido e não pegar um resfriado.

Dia dois.

Ruijerd ainda não tinha aparecido para me resgatar. Depois de ficar nu por dois
dias inteiros, minha ansiedade estava começando a transparecer. Me perguntei se
havia acontecido algo de ruim com o Superd. Ele acabou lutando contra aquele
guerreiro mais velho? Ou as coisas com Gallus azedaram? Ou talvez algo tivesse
acontecido com Eris e ele estava cuidando disso?

Fiquei ansioso. Incrivelmente ansioso. Era por isso que estava bolando um
plano de fuga. No início da tarde, quando terminei de comer, comecei a usar minha
magia não verbal. Misturei fogo e vento, criando uma corrente de ar quente que
fustigou o cômodo e tornou toda a área agradável e quentinha. A guarda bem dotada
ficou sonolenta e começou a adormecer. Que fácil.
Destranquei a porta da cela e verifiquei se não havia ninguém por perto
enquanto saía do prédio.

— Ooh…

A visão que se espalhou diante de mim foi como algo saído de um sonho. Era
um assentamento construído acima das árvores. Os edifícios foram colocados entre
as copas das árvores, tendo tablados em torno de cada árvore para dar espaço para
caminhar. Também havia pontes que conectavam as árvores para que se pudesse
entrar e sair sem ter que subir e descer as escadas.

Não havia realmente nada no solo abaixo. Eu podia ver o que parecia ser um
simples barraco e os vestígios de um campo, mas não pareciam estar em uso. Pelo
visto, não havia ninguém morando lá.

Não havia tantas pessoas assim. Eu podia ver alguns homens-fera aqui e ali,
movimentando-se nos tablados. Se uma pessoa atravessasse uma ponte, ficaria
totalmente exposta a qualquer um que estivesse abaixo, e qualquer um que se
movesse abaixo estaria totalmente exposto àqueles de cima.

Agora eu estava, em todos os sentidos da palavra, totalmente exposto. Seria


difícil escapar sem ser visto. Mas se fosse pego, ainda poderia fugir. Se não
pensasse nas consequências, poderia simplesmente colocar fogo em uma árvore
próxima e escapar para a floresta no meio do caos que se seguiria.

Ah, a floresta. Eu não sabia como sair dela. Gyes havia corrido em alta
velocidade por muito tempo, então devíamos estar bem longe da cidade. Mesmo se
eu corresse com todas as minhas forças, indo sempre para frente, provavelmente
precisaria de cerca de seis horas. E eu tinha certeza de que me perderia no meio
do caminho.

Poderia usar magia da terra para construir uma torre, dando-me um ponto de
vista elevado para olhar para o horizonte. Essa era uma opção. Claro, se fizesse
algo que chamasse a atenção, Gyes ficaria na minha cola de imediato.

Ainda não sabia o que estava por trás da magia que ele usou. Se não
conseguisse encontrar uma maneira de contra-atacar em uma luta, poderia perder.
Além disso, da próxima vez o homem poderia cortar minhas pernas para que eu não
pudesse correr. Talvez fosse melhor esperar um pouco mais para que minhas
circunstâncias mudassem.

Só tinham passado alguns dias. Aquele guerreiro mais velho ainda não havia
retornado. Ruijerd poderia ainda estar procurando pelos pais das crianças. Não
havia necessidade de ficar impaciente, decidi, e voltei para minha cela.

Dia três.

A comida que a guarda me levou estava deliciosa. Foi como esperado – a terra
do local era tão rica e natural. Havia uma diferença notável se comparado ao
Continente Demônio. As refeições consistiam em uma sopa de grama selvagem ou
pedaços de carne grelhada que eram difíceis de rasgar, mas era tudo delicioso.
Talvez fosse assim por eu ter me acostumado com a comida do Continente
Demônio. Se esta era a comida que ofereciam a alguém em uma cela, então o resto
do assentamento deveria desfrutar, sem dúvidas, de um banquete.

Quando elogiei a comida, a guarda balançou a cauda e me deu algo para


repetir. Com base em sua reação, provavelmente era ela quem preparava tudo. Mas
continuava sem falar nada para mim, assim como de costume.

Dia quatro.

Fiquei entediado. Não havia mais nada para fazer. Talvez pudesse criar algo
com minha magia, mas se o fizesse, poderiam me amordaçar ou amarrar meus
pulsos. Então realmente não haveria nada que eu pudesse fazer. Não havia razão
para correr o risco de perder a pouca liberdade que possuía.

Dia cinco.

Recebi um colega de cela. Ele foi carregado por dois homens do povo-fera de
cada lado. O jogaram para o lugar sem rodeios, isso fez com que o homem caísse
dando uma cambalhota para trás.

— Porra! Vocês deviam me tratar melhor do que isso! — O povo-fera ignorou


seus gritos e saiu.

O homem esfregou seu traseiro cuidadosamente, sibilando de dor enquanto


virava o corpo sem pressa. Eu o cumprimentei em uma pose de Buda reclinado,
deitado de lado com a cabeça apoiada na mão.

— Bem-vindo ao destino final da vida. — Claro, eu estava completamente nu.

O homem ficou me olhando, boquiaberto. Ele parecia um aventureiro. Suas


roupas eram todas pretas, com protetores de couro presos nas juntas. Também
estava desarmado, é claro. Ele tinha costeletas compridas e uma cara de macaco
como a do Lupin Terceiro. Mas chamar a cara dele de cara de macaco não era uma
metáfora. Ele era um demônio.

— Qual é o problema, novato? Viu algo inesperado? — perguntei.

— N-não, não é exatamente assim que eu descreveria. — Ele olhou para mim
confuso.

Vamos, vou ficar com vergonha se você ficar olhando assim, pensei.
— Você está nu, mas age terrivelmente cheio de si.
— Ei, novato, é melhor tomar cuidado com o que fala. Estou aqui há mais tempo
do que você. Isso significa que sou o mestre desta cela, seu ancião. Mostre algum
respeito — ordenei.

— S-sim.

— Você devia responder: “Sim senhor”!

— Sim senhor.

Por que, pergunta, eu estava agindo tão cheio de mim mesmo na frente de
alguém que acabei de ver pela primeira vez? Porque estava entediado, é claro.

— Infelizmente não há nenhum tapete para você se sentar, então sente-se aqui
em algum lugar.

— S-sim senhor.

— Então, novato. Por que você foi jogado aqui? — Tentei soar o mais hostil
possível quando perguntei.

Esperava que minha impertinência, apesar de ser mais jovem, pudesse


enfurecê-lo, mas ele apenas respondeu com um olhar estupefato:

— Me pegaram tentando enganá-los.

— Oho, andou trapaceando, foi? Pedra, Papel ou Tesoura com restrições?


Atravessando a Corda Bamba?

— Que diabos é isso? Não, dados.

— Dados, hein? — Ele provavelmente usou dados viciados que só cairiam no


número quatro, cinco ou seis. — É bem chato ser pego em algo assim.

— E quanto a você? — perguntou.

— Dá para falar só por olhar, não dá? Atentado ao pudor.

— Que diabos é isso?

— Enquanto estava nu, coloquei meus braços em volta de um cachorrinho


prateado e me jogaram aqui — expliquei.

— Ah! Eu ouvi os rumores. Algum demônio tarado atacou a Fera Sagrada de


Doldia!

Alguém do lado de fora com certeza estava usando palavras bem atrevidas.
Mas, para começo de conversa, era uma falsa acusação. Porém eu não iria ganhar
nada falando sobre isso.
— Novato, se você é um homem, então entende, certo? A luxúria que se sente
por uma criatura adorável.

— Não mesmo. — Seus olhos mudaram e ele começou a olhar para mim com
certa suspeita. Bem, seu olhar na verdade não mudou. Seus olhos eram os mesmos
desde o começo.

— Então, novato, qual é o seu nome?

— Geese — respondeu.

— Você é um militar? Comeu mais refeições enquanto soldado do que existem


estrelas no céu?

— Militar? Não, sou só um aventureiro, acho. Já faz um tempo.

Geese. Vejamos, eu pensei já ter ouvido esse nome antes. Mas onde? Não
conseguia lembrar. Parecia que havia muitas pessoas com esse nome, então ele
provavelmente não era o Geese que eu conhecia.

— Eu sou Rudeus. Sou mais jovem que você, mas aqui sou seu chefe.

— Tá, tá. — Geese encolheu os ombros, caiu sobre onde estava e apoiou a
cabeça. — Hm? Rudeus… Já ouvi esse nome antes.

— Tenho certeza de que muitas pessoas têm esse nome.

— Eh, provavelmente, verdade.

Agora estávamos ambos fazendo a pose de Buda deitado enquanto nos


encarávamos, embora um de nós estivesse nu. Isso não era meio estranho? Por
que eu, a grande pessoa ocupando esta cela, era o único nu enquanto o novato
estava vestido? Estranho. Muito estranho mesmo.

— Ei, novato.

— O que foi, chefe? — perguntou.

— Esse seu colete parece quente. Entregue.

— O qu…? — Geese parecia aborrecido quando disse: — Tudo bem, tome —


e então tirou o colete antes de jogá-lo para mim. Talvez gostasse de cuidar das
pessoas, indo contra a minha primeira impressão.

— Ah, muito obrigado — falei, parecendo muito educado.

— Então você pode mostrar gratidão. — Observou ele.

— É claro. Agora já faz dias que eu estou meio largadão. Pela primeira vez em
muito tempo sinto como se tivesse voltado a ser alguém.
— Chefe, você não precisa falar de um jeito tão polido.

Assim, conquistei a imagem de um pirralho melequento direto do período Edo.

Nossa guarda nos observou com uma expressão sombria no rosto, mas não
disse nada.

— Agora posso sentir seu calor irradiando deste colete.

— Ei, você também gosta de homens, sério? — perguntou Geese.

— Claro que não — respondi. — Gosto das mulheres de até quarenta anos e,
a menos que pareça com uma mulher, não tenho interesse em homens.

— Então você não vê problema se parecerem com mulheres… — Geese olhou


para mim sem acreditar. Mas se ele conhecesse uma mulher que fosse do seu tipo,
uma que tivesse uma Excalibur de Arthur, então também se tornaria um Merlin. No
sentido sexual, é claro.

— A propósito, novato, há uma coisa que eu quero te perguntar.

— O que foi?

— Que lugar é esse? — perguntei.

— Uma cela na aldeia de Doldia na Grande Floresta.

— E quem sou eu?

— Rudeus. O pervertido que colocou as mãos em um filhote — respondeu ele.

Aha! Mas eu não estava mais nu! Além disso, era uma acusação falsa. Eu não
era um pervertido.

— E o que um demônio como você está fazendo na aldeia de Doldia, gastando


a vida à toa enquanto aposta?

Geese explicou:

— Ahh, bem, uma das minhas conhecidas de muito tempo atrás era uma Doldia,
então eu vim pensando em encontrá-la.

— E encontrou?

— Não — disse ele.

— Então, mesmo ela não estando aqui, você resolveu fazer algumas apostas?
E ainda por cima trapacear? — Eu pressionei.

— Não achei que seria pego.


Esse cara não tinha esperanças. Mas talvez ele não fosse inútil.

— Novato. O que você consegue fazer além de trapacear?

— Eu posso fazer qualquer coisa — disse ele.

— Oho, então pode segurar um dragão com uma mão e derrubar outra pessoa
usando ele?

— Não, isso é impossível — respondeu. — Sou péssimo lutando.

— Então aguenta cem mulheres de uma só vez? — perguntei.

— Uma já é suficiente, duas, no máximo.

Para minha última pergunta, abaixei minha voz o suficiente para que a guarda
não pudesse nos ouvir e disse:

— Você poderia ir para a cidade se saísse daqui?

Ele se ergueu, olhou rapidamente para a guarda e coçou a cabeça. Colocou o


seu rosto bem perto do meu e falou com um sussurro abafado:

— Você está tentando fugir?

— Meu companheiro não está vindo, então sim.

— Ahh, sim, é isso… Bem, isso é uma merda.

Ei, você, pare com isso, pensei. Se colocar dessa forma, faz parecer que meus
amigos me abandonaram.

Ruijerd nunca me abandonaria assim. Eu tinha certeza de que ele estava


procurando pelos pais daquelas crianças por todos os lugares. Era isso ou algo tinha
acontecido e o homem estava em apuros. Talvez estivesse esperando minha ajuda.

— Então se vire por conta própria. Não tem nada a ver comigo — disse Geese.

Expliquei:

— Não sei o caminho para a cidade mais próxima daqui.

— E como é que chegou aqui?

— Salvei algumas crianças que foram sequestradas por contrabandistas —


respondi.

— Salvou?
— E enquanto estávamos lá, tirei a coleira que tinha sido colocada naquele
filhote, e quando a tirei aquele cara apareceu de repente e gritou comigo. Então não
consegui mais me mover e me trouxeram aqui.

Perplexo, Geese voltou a coçar a cabeça. Talvez eu não tivesse explicado bem
o suficiente.

— Ahh, então foi isso que aconteceu. Você sofreu uma acusação falsa?

— Exatamente.

— Entendi. Sim, então é claro que você gostaria de fugir.

— É por isso que gostaria que você me ajudasse — falei.

— Não quero — respondeu. — Se quer tanto, então fuja sozinho.

Ele pôde dizer tudo o que quisesse, mas ainda assim não quis me ajudar a
encontrar um caminho. Se eu me perdesse na floresta enquanto tentava ir ajudar
Ruijerd, isso não seria motivo para rir.

— Mas se for realmente uma acusação falsa, você deve ficar bem. Vão
entender.

— Espero que você esteja certo — falei.

Do meu ponto de vista, Gyes não era do tipo que dava ouvidos às pessoas. Mas
ainda assim era verdade que ajudei aquelas crianças a escaparem. Se voltassem,
a acusação contra mim seria retirada.

— Então, acho melhor esperar um pouco mais.

— Sim, você deveria — ele concordou. — Fugir não vai resolver nada. — Geese
virou para o outro lado.

Decidi esperar, assim como sugerido. Eu, felizmente, ainda tinha algumas
opções restando. Se fosse necessário, poderia envolver toda essa área em um mar
de chamas e escapar. Me senti mal pela tribo Doldia, mas foram eles que me
prenderam sob falsas acusações, então estávamos quites.

Mesmo assim, Ruijerd com certeza estava demorando muito. Presumi que
estava demorando muito para encontrar os pais das crianças, mas ainda assim, isso
era demais.

Dia seis.

O apartamento era realmente bom para se morar. Nos forneciam comida.


Estava equipado com um bom ar condicionado (embora fosse uma gambiarra), e
apesar de que no início eu achasse chato porque não havia nada para fazer, agora
tinha um parceiro de conversa.
A cama estava infestada de insetos, mas graças ao ar quente que criei com
minha magia, todos foram erradicados. O banheiro estava em seu estado normal e
lamentável, mas era meio excitante pensar naquela mulher bonita e mais velha com
orelhas de animal limpando tudo depois.

Mesmo assim, fiquei ansioso com o fato de não estar recebendo notícias. Já
fazia quase uma semana desde que fui capturado. Ruijerd não estava atrasado
demais? Não era normal presumir que algo devia ter acontecido? Será que apareceu
algum tipo de problema com o qual o Superd não poderia lidar sozinho?

Eu não fazia ideia de que tipo de coisa seria. Talvez já fosse tarde demais.
Mesmo assim, precisava partir. No dia seguinte. Não, em dois dias. Esperaria por
dois dias.

Uma vez que esse tempo passasse, iria reduzir o vilarejo a um campo em
chamas. Ou não, porque me sentiria mal ao fazer isso. Em vez disso, tomaria a
guarda como minha prisioneira e fugiria.

Dia sete.

Seria meu último dia na cela. No fundo da minha mente, estava cuidadosamente
elaborando um plano, enquanto, externamente, apenas comia e dormia
despreocupado. Eu não conseguia continuar com isso – a mentalidade de recluso
da minha vida anterior retornaria. No dia seguinte, precisaria me animar.

— Yo, novato… — Chamei Geese usando meu estilo usual de bandido


enquanto me acomodava no chão.

— O quê?

— Esta é a única cela do vilarejo?

— Por que quer saber? — respondeu

— Bem, é que normalmente não colocam duas pessoas na mesma cela sem
motivo, certo? — Apresentei meu pensamento.

— Normalmente não usam esta cela. Os criminosos quase sempre são


despachados para Porto Zant.

Então eram enviados para Porto Zant, hein? Então a Tribo Doldia só jogava
criminosos especiais nesta cela? Fui confundido com um contrabandista e também
falsamente acusado de tentativa de bestialidade à sua Fera Sagrada. Isso devia ser
muito impactante, o suficiente para me dar algum tipo de título especial. Isso me
tornava um criminoso ainda mais extraordinário.

Mas espere.

— Então por que você foi colocado aqui? Foi preso por trapaça, certo?
— Não me questione. Provavelmente porque aconteceu na aldeia e não foi
grande coisa, certo?

— Então é essa a razão?

— Essa é a razão — respondeu.

Algo me parecia meio estranho. Cocei minhas costelas e depois a barriga.


Enquanto fazia isso, cocei as costas. Por algum motivo, estava com coceira. Assim
que percebi isso, olhei para baixo e vi algo saltitando. Era uma única pulga.

— Gaaah! Tem insetos neste colete!

— Hm? Ah, sim, faz um tempo que não lavo — disse Geese.

— Então lave! — Eu o arranquei e joguei longe. Aquilo girou enquanto voava,


soltando um monte de insetos no chão. Imediatamente exterminei todos eles com o
calor da minha magia. Pestes malditas…!

— Ei, eu tenho observado você fazer isso há um tempo. Claro, é incrível. Mas
como faz isso?

— São feitiços não verbais, uso magias sem encantamento — respondi.

— Huh… Sem encantamentos. Isso é realmente incrível.

Sim, e agora que estava pensando em como aqueles insetos estavam


fervilhando dentro daquele colete, meu corpo inteiro de repente começou a coçar
muito mais. Teria que curar todas as mordidas, uma por uma. Talvez fosse porque
eu não usava nada sob o colete, mas minhas costas pareciam ter uma quantidade
absurda de mordidas. Isso mesmo, minhas costas. Bem onde a mão não conseguia
alcançar. Gaah!

— Yo, novato.

— O quê?

— Venha aqui e coçe minhas costas — ordenei —, está coçando virado no


diabo.

— Tá, tá.

Sentei-me com as pernas cruzadas e Geese ficou atrás de mim. Ele começou
a coçar.

— Sim, aí, bem aí. Ah, sim, você é muito bom nisso.

— Eu falei, não falei? — disse. — Não posso fazer nada. Se quiser, depois
também posso massagear seus ombros. — Quando Geese disse isso, moveu suas
mãos para meus ombros. Droga. Ele realmente era bom nisso.
Instintivamente endireitei minhas costas.

— Ooh, você é realmente bom. Isso é tão bom. Ahh, um pouco mais pra baixo.
Mm, sim, bem aí… hm?

Só então percebi que algo estava muito errado. Mas, o quê? Algo estava
diferente do normal.

— Ei, novato…

— O que foi agora? Quer que eu vá mais para baixo? Quer que eu coce a sua
bunda também?

— Não, você não sente que algo está estranho?

— Sim, chefe, você é ruim da cabeça — respondeu ele.

— Algo além disso! — Falei. Que falta de educação.

— Bem, sim… aquela guarda ainda não apareceu.

Sim, isso mesmo. Normalmente seria hora da nossa refeição do meio-dia. Um


momento em que comeríamos nossa comida deliciosa e saborosa antes de colocar
as mãos juntas em agradecimento. Mas não tínhamos relógio, então era possível
que eu estivesse apenas errando a hora. Mas minha barriga vazia parecia pensar
que era hora do almoço.

— Além disso, parece que está muito barulhento lá do lado de fora.

— Sério? — Escutei com atenção e, com certeza, ouvi os sons de alguma briga.
Mas também parecia que podia ser apenas minha imaginação.

— E também está esquentando.

— Agora que você mencionou, é verdade, hoje está muito quente. — Percebi.

— Além disso, não está meio enfumaçado por aqui?

— Agora que você mencionou isso…

Ele tinha razão. Havia um fino véu de fumaça infiltrado no local. A fumaça estava
saindo da claraboia e da entrada da frente.

— Novato, empreste-me seu ombro.

— Acho que não tenho escolha. Aí vai.

Geese me colocou em seus ombros e, da vista ligeiramente mais elevada da


clarabóia, olhei para fora.
A floresta estava queimando.

Capítulo 08 - Emergência
Incendiária

— É um incêndio! — gritei e pulei dos ombros de Geese.

— Mmm? Espere só um… Ei! — Geese saltou para a claraboia e deu uma
espiada. — Você não estava brincando! O-o que devemos fazer, chefe?!

O que estava acontecendo? Ali estava eu planejando fugir no dia seguinte, e


agora, se não agisse, acabaríamos assados feito dois bolos.

— Vamos dar o fora daqui, é claro! E usaremos o caos para fugir! — declarei.

— Mas como vamos sair?! Sabe, a porta está trancada!

— Não se preocupe — falei. — Isso não é um problema! — Deslizei na direção


da porta e peguei a chave que escondi para destrancá-la.

— Uau! Quando você conseguiu roubar uma chave?

— Só é algo que preparei para o caso de uma coisa assim acontecer, arrumei
isso quando comecei a planejar minha fuga!

Geese disse:

— Entendo, então você é o tipo de criminoso que espera até que todos fiquem
distraídos por uma crise antes de atacar.

Que falta de educação. Não era como se eu tivesse roubado nada.


Simplesmente fiz uma cópia da original, foi só isso. De qualquer forma, enfiei a
chave na fechadura e a girei até ouvir um clique quando a porta se abriu. Era a hora
do desafio de fuga da prisão!

— Certo, vamos lá!


— Isso aí! — Geese concordou.

A porta foi aberta e uma onda de ar quente nos deu um tapa na cara. As chamas
dançaram violentamente enquanto as labaredas, brilhantes e ferozes, devoravam a
floresta com uma fome voraz. As casas nas copas das árvores foram engolidas,
ameaçando até desmoronar.

— Isso é muito ruim — murmurou Geese.

Bem ruim mesmo. Balancei a cabeça concordando.

As pessoas provavelmente eram proibidas de acender fogueiras nesta floresta,


mas sem dúvida algum espertinho decidiu sentar na cama e fumar, assim causando
tudo isso. Eu não sabia quem era que fez algo assim, mas graças a isso poderíamos
escapar, então não iria reclamar.

— Certo, novato, para que lado fica Porto Zant?

— O quê? E como diabos eu saberia? — gritou para mim enquanto olhava ao


redor.

— Então quer dizer que você não sabe? — gritei de volta. — Você disse que
sabia o caminho, não disse?

— Não quando estamos totalmente cercados por fogo!

Hmm… bem, agora que ele mencionou, até que fazia sentido. Afinal, a frase
“cortina de fumaça” não teria significado se alguém pudesse apenas ver através da
fumaça preta e das chamas vermelhas.

Então, o que fazer? Apagar as chamas? Não, precisávamos da confusão


causada por elas para escapar. Se as apagássemos, seríamos imediatamente
encontrados. Além disso, podíamos ser confundidos com incendiários. E se
simplesmente fugíssemos do alcance do fogo para que pudéssemos procurar um
caminho de volta para a cidade? Espera… poderíamos ao menos escapar sem
apagar o fogo?

— O que faremos?! Estamos ficando sem rotas de fuga!

Para começo de conversa, qual era o tamanho do incêndio? Mesmo se


corrêssemos e corrêssemos, havia a possibilidade de não conseguirmos escapar da
área incendiada.

— Ei, chefe! Olha! — Geese estava apontando para algo.

Estava apontando para uma criança. Uma criancinha com orelhas de gato. Ela
estava esfregando os olhos e tossindo enquanto cambaleava em nossa direção,
tinha inalado um pouco da fumaça. Perto dali, a folhagem de uma árvore explodiu
em chamas que estalaram enquanto a coisa toda ameaçava desabar. A criança
olhou para a árvore, mas tudo estava acontecendo tão de repente que ela só
conseguiu olhar, estupefata.
— Cuidado! — gritei, instantaneamente liberando magia do vento para tirar a
árvore fora do caminho.

A fumaça havia turvado sua visão, mas a criança nos viu e se aproximou.

— S-socorro…

A peguei em meus braços e usei magia de água para limpar seus olhos. Ela
também tinha algumas queimaduras leves em seu corpo, então resolvi usar alguma
magia de cura. Eu não tinha certeza do que deveria estar fazendo, mas imaginei
que seria bom ajudar ao menos um pouco. O que estavam fazendo? Não
conseguiam dar um jeito de fugir?

— Não me diga… os moradores ainda não foram todos evacuados?

— Isso é bem possível — disse Geese. — Os incêndios são muito raros quando
a estação das chuvas se aproxima… uau!

Outra árvore desabou. Uma pequena casa que estava acima de nós também
estava colapsando, espalhando pedaços de chamas que serviam como pólvora.
Parecia que nenhum esforço estava sendo feito para apagar o fogo. Se eu
continuasse perdendo tempo, também acabaria em perigo. Ainda assim, não
poderia simplesmente deixar essa criança para trás e fugir.

— Certo… — Tomei minha decisão. — Novato, você sabe onde fica o centro do
vilarejo?

— Sim, sei onde fica… mas o que você vai fazer?

— Vou fazer um favor a eles para que se sintam em dívida comigo!

Depois que falei isso, Geese sorriu, pegou a criança nos braços e começou a
correr.

— Então tá, por aqui. Siga-me!

Me movi para o seguir… mas depois lembrei das minhas roupas. Ainda deviam
estar trancadas naquela prisão. Logo usei minha magia da água para envolver o
prédio em gelo antes de começar a seguir Geese.

As chamas ainda não tinham alcançado o coração do vilarejo. Ainda assim, eu


não esperava ver o que vi. O povo-fera estava tentando fugir. Estavam em pânico,
gritando e uivando enquanto corriam de um lado para outro. Essa parte já esperava,
mas por alguma razão também havia humanos usando equipamento de batalha
perseguindo o povo-fera. Mais longe, conseguia ver o que parecia serem guerreiros
lutando contra humanos. Ainda mais longe, vi homens de aparência robusta
carregando uma crianças debaixo dos braços, provavelmente tentando carregá-las
para algum lugar.

O que era isso? O que diabos estava acontecendo?


Geese falou:

— Hmm, pensei que algo estranho estava acontecendo…

— Novato, sabe o que está havendo? — perguntei.

— Só o que parece. Esses caras estão atacando o povo-fera.

Verdade. Isso era exatamente o que parecia.

— Acho que também são os responsáveis pelos incêndios — falou Geese.

Então, atacaram provocando incêndios. Igual bandidos. Realmente havia


algumas pessoas cruéis por aí. Por outro lado, o povo-fera me aprisionou por uma
semana enquanto eu era inocente de qualquer crime. As pessoas diziam que as
maldições eram como galinhas: Sempre voltavam para o poleiro.

— Ainda assim, isso é… um pouco demais.

Meninas estavam sendo arrastadas por homens. Uma criança gritava,


chamando pela mãe, que tentou persegui-la apenas para ser fatiada. Os guerreiros
do povo-fera tentaram evitar os sequestros, mas seus movimentos eram inúteis. A
fumaça havia prejudicado sua visão e olfato. Os humanos os oprimiram com seu
grande número e os homens-fera se viram cercados, forçados a uma luta amarga.

Terrível, verdadeiramente terrível.

— Então… chefe.

— O que foi?

— Qual lado você vai ajudar?

Voltei a encarar a cena. Outro guerreiro do povo-fera caiu. Homens humanos


forçaram a entrada no prédio que o guerreiro estava protegendo e emergiram
arrastando uma criança pelos cabelos.

Estava óbvio qual era o lado da justiça. Mas qual seria o pior para mim?

Eu não tinha ideia de quem eram esses humanos. Visto que estavam
sequestrando crianças, provavelmente estavam trabalhando com traficantes de
escravos ou contrabandistas, com os quais eu tinha uma dívida. Os sujeitos
atravessaram Ruijerd pelo mar para mim. Entretanto, compensamos as coisas
aniquilando todos daquela base, então estávamos quites.

Em comparação, o povo-fera me aprisionou sob uma acusação falsa. Não


quiseram nem ouvir o que eu tinha a dizer. Tiraram minha roupa e depois me
molharam com água fria, e após tudo isso me jogaram em uma cela. Considerando
o nível emocional, minha impressão sobre eles era ruim.
Mesmo assim. Mesmo assim, a cena diante de mim… era nauseante.

— O povo-fera, é claro — falei, finalmente.

— Haha! Falou e disse! — gritou Geese antes de pegar uma espada do cadáver
mais próximo e tomar uma posição. — Tudo bem, deixe a linha de frente comigo!
Posso não ser muito bom com uma espada, mas posso ao menos servir como uma
parede para você!

— Sim, estou contando com você para me proteger — falei e levantei as duas
mãos para o céu.

Primeiro, teria que apagar as chamas. Usei Rajada, uma magia de água de nível
avançado. Canalizei mana em minha mão direita, conjurando nuvens cinzentas no
céu. Me certifiquei de que o alcance e o poder do feitiço seriam grandes. Eu não
tinha ideia de quão longe o fogo havia se espalhado, mas provavelmente poderia
apagar a maior parte dele se expandisse meu feitiço tanto quanto possível. Também
aumentei a taxa de precipitação para que caísse como uma grande chuva torrencial.

Manipulei as nuvens da mesma forma que aprendi a fazer ao lançar


Cumulonimbus. Comprimi minha mana até que formasse uma nuvem, então a inchei
mais e mais, sem deixar uma única gota de chuva cair. Ninguém percebeu que eu
estava ali, mesmo com meus braços erguidos em direção ao céu. E graças à fumaça
preta, também não perceberam as nuvens surgindo acima.

— Certo! — Uma vez que as nuvens estavam grandes o suficiente, liberei o


controle que exercia sobre elas com minha mana.

— Uau… — Geese olhou para cima por reflexo, bem quando a chuva começou
a cair sobre nós como se fosse a água de uma cachoeira.

Foi um dilúvio que chegou até todos. A área ficou inundada em segundos. As
chamas soltaram alguns assobios enquanto se dissipavam. As pessoas olharam
para o céu, algumas até mesmo desconfiadas da chuva repentina. Logo me notaram
de pé com as duas mãos levantadas. O humano mais próximo sacou sua espada e
começou a correr em minha direção.

— E-ei, o que você vai fazer, chefe, eles estão vindo!

— Lamaçal! — Enquanto eu pronunciava o nome do feitiço, um poço lamacento


se abriu abaixo deles. Incapazes de passar por aquilo, os homens perderam o
equilíbrio e caíram. — Canhão de Pedra! — Lancei o próximo feitiço sem me
demorar, martelando-os com minha magia de terra e nocauteando-os. Moleza.
Aqueles caras não eram nada de especial.

— Ooh… isso foi incrível, chefe!

Ignorei o elogio de Geese e segui em frente. Os humanos estavam aqui e ali,


por toda parte. Comecei a golpeá-los com meu Canhão de Pedra ali de onde estava
mesmo. Eu continuaria esse ataque gradual e, em seguida, pegaria de volta as
crianças que foram sequestradas. Se Ruijerd e Eris estivessem presentes para
perseguir os bandidos, o trabalho teria sido muito mais simples, mas teria que ser
cauteloso, já que estava sozinho.

Bem, não exatamente. Geese estava comigo. Mas suas habilidades pareciam
meio inúteis, então não esperava que ele fosse de muita ajuda.

— Ei, tem um mago aqui! Ele apagou o fogo!

— Porra! Mas que inferno?!

— Matem ele! Usem os números e não deixem ele lançar nada!

Enquanto eu me distraia, guerreiros humanos avançaram contra mim, um após


o outro.

— Canhão de Pedra! — Virei minha mão na direção deles e os golpeei com


meu feitiço. Um, dois, três… Ah, merda, agora não estavam apenas seguindo
ordens, como também demonstrando seus números esmagadores.

— D-droga! Então cai pro pau! Não vou deixar vocês colocarem a mão no meu
chefe! — gritou Geese bravamente, embora estivesse recuando um passo de cada
vez. Inútil.

E quanto a mim? Também devo recuar? pensei.

Naquele exato momento, uma sombra marrom voou na minha frente.

— Não sei quem você é, mas obrigado pela ajuda!

Ele falou na língua do Deus Fera. Era um homem-fera com uma cauda de
cachorro espessa que já estava com a espada desembainhada e cortou um dos
homens que corria em nossa direção. Seu único golpe o decepou e enviou sua
cabeça voando.

— Não seremos derrotados por sua laia, ainda mais agora que a chuva limpou
meu rosto e meu nariz está funcionando direito!

Ooh, que fala mais heróica! Mas foi exatamente como ele disse: Todos os
homens-fera da área estavam retornando.

— Pequeno mago! Por favor, ajude-nos a reunir nossos guerreiros e recuperar


nossas crianças!

— Certo!

O homem-fera na minha frente parecia um pouco surpreso por eu ter


respondido na língua do Deus Fera, mas ele balançou a cabeça vigorosamente e
uivou já longe. Vários outros do povo-fera pularam das árvores ou do matagal para
se juntar a nós. Outros que haviam derrotado seus inimigos correram até nós, de
quatro.
— Gunther, Gilbad, venham comigo. Vamos trabalhar com esse mago para
resgatar as crianças. O resto de vocês, proteja esta área.

— Woo! — Todos assentiram e se dispersaram. Eu também me movi, perdendo


de vista aquele primeiro guerreiro que apareceu na minha frente. Geese estava logo
atrás de mim.

Os guerreiros, em grande parte, correram em frente sem parar, ocasionalmente


levantando o nariz para farejar o ar. Se encontrássemos um humano ao longo do
caminho, rapidamente o eliminariam.

Foi quando ouvimos um grito estridente que parecia o de um cachorro.

Ao fazer uma inspeção, encontramos uma pessoa-fera sendo acuada por três
humanos. Eles pareciam desfrutar de sua vantagem numérica injusta, assim como
gatos atormentando um rato. Isso também significava que sua guarda estava baixa.

Na mesma hora deixei um inconsciente ao usar o Canhão de Pedra. O guerreiro


que corria ao meu lado saltou para frente e atacou um dos outros. O último humano,
em pânico pelo fato de seus companheiros terem morrido tão repentinamente,
morreu pelas próprias mãos da criatura que estiveram torturando.

— Laklana! Você está bem?!

— S-sim, Guerreiro Gimbal! Você me salvou! — A pessoa-fera que foi


encurralada era uma mulher. Uma guerreira. Ela estava coberta de feridas graças à
sua batalha.

Eu estava prestes a lançar um feitiço de cura sobre seu corpo quando de


repente percebi que a reconheci.

Ela ficou igualmente assustada quando olhou para mim.

— Gimbal! Este garoto é…

— Não é nosso inimigo. Foi ele quem conjurou a chuva. Sua roupa é meio
estranha, mas está nos ajudando.

— O quê? — Ela arfou.

Sua confusão não era só porque apenas um colete de pele cobria meu corpo
nu (ou melhor, seminu). Eu a conhecia. Acabei de descobrir seu nome, mas
conhecia aqueles seios fartos e mãos habilidosas para cozinhar. Era ela quem
guardava nossa cela.

Ela alternou seu olhar entre mim e Gimbal, seu rosto ficando pálido.
Provavelmente se lembrou de como me tratou mal e percebeu o erro que cometeu.
Não se preocupe. Na verdade não tenho nada contra você, pensei. As pessoas
às vezes entendiam as coisas errado e cometem erros. Eu sou Rudeus, o iluminado
e compassivo!

Tirando isso, a mulher precisava me deixar lançar um pouco de cura nela.

Parecia em conflito enquanto eu a curava, imaginando o que deveria fazer, se


deveria ou não pedir desculpas.

Antes que eu pudesse terminar de curá-la, Gimbal gritou:

— Laklana, você deve retornar e proteger a Fera Sagrada!

— T-tudo bem…! — Ela não agradeceu. Mas parecia que queria dizer algo,
mesmo enquanto seguia as ordens de Gimbal e saia correndo.

Nossa perseguição continuou. Saímos do vilarejo e entramos na floresta. Nesse


ponto, um dos guerreiros me deixou montar em suas costas, já que eu era muito
lento. A partir dessa posição, me tornei uma máquina de lançamento de Canhão de
Pedra.

Equipamento de Ombro: Rudeus.

Um equipamento que, ao encontrar um inimigo, desviará qualquer ataque


através do uso do Olho da Previsão e também derrubará inimigos automaticamente.

Certo, eu só usei força suficiente para deixar aqueles homens inconscientes,


mas o povo-fera poderia desferir o golpe final no meu lugar.

— Aquele é o último!

O último humano parou no momento em que o alcançamos, largando sua carga


para que pudesse desembainhar sua espada. A carga era um garoto com uma bolsa
na cabeça e as mãos amarradas atrás das costas. A julgar pela forma como ele caiu
no chão, provavelmente já estava inconsciente. O homem se ajoelhou ao seu lado
e colocou uma espada no pescoço da criança. Um refém, hein?

— Grrrr…! — Gimbal e os outros rosnaram e cercaram o guerreiro, mantendo


distância.

O homem parecia imperturbável enquanto examinava a cena, até que seus


olhos finalmente pousaram em mim.

— Mestre do Canil, o que diabos está fazendo aqui?

Reconheci seu rosto barbudo. Gallus. O homem que contrabandeou Ruijerd


através do mar para mim, aquele que nos confiou um trabalho. Aquele que
trabalhava para aquela organização de contrabando.

— Bem, muita coisa aconteceu… e você, Senhor Gallus, por que está aqui?
— Por quê? Hmph, esse foi o meu plano desde o começo.

Gimbal e os outros olharam para nós, perguntando-se se éramos conhecidos


ou camaradas.

Ugh… eu realmente não queria falar sobre isso, mas também não poderia ficar
em silêncio.

— O que quer dizer com isso?

Gallus se curvou e cuspiu.

— Não há necessidade de te dizer.

Bem, isso era verdade. Mas era um pouco estranho.

— Foi você quem nos pediu para salvar as crianças do povo-fera. Você disse
que, de outra forma, isso te causaria problemas. Mas está aqui as sequestrando…
então quais são as suas verdadeiras intenções?

Gallus sorriu e olhou para os lados. Mesmo cercado por mim, três guerreiros do
povo-fera e Geese, ainda parecia relaxado.

— Sim, os pirralhos eram algo, mas se sequestrassem a Fera Sagrada de


Doldia também, isso realmente nos colocaria em apuros.

Pelo visto, o problema era aquele filhote. Eu gostaria que ele tivesse dito isso
desde o começo. Poderia pelo menos ter me dito para soltar o cachorro.

— Achei que tínhamos um bom plano. Nós cronometramos a hora certa e


vazamos informações para o bando de guerreiros Doldia para que vocês se
encontrassem. Então, enquanto o Superd massacrava todos eles, íamos vir
furtivamente, atacar seu assentamento e roubar o resto de suas crianças.

Fiquei sem palavras.

— Quando percebessem o ataque ao vilarejo já seria tarde demais. Quando a


estação das chuvas chegasse, não conseguiriam fazer nada e só poderiam chorar
até dormir à noite, visto que não poderiam vir atrás de nós.

Durante a estação das chuvas, a maioria das pessoas não conseguia sair de
onde estava. Os contrabandistas deviam ter pensado que poderiam isolar seus
perseguidores no momento certo.

— Você com certeza faz as coisas de uma maneira muito indireta — falei.

— Já te falei, não somos uma organização muito unida. Não posso deixar meus
camaradas chegarem na minha frente.
Que vulgar. Ele libertaria os escravos de seus camaradas e depois venderia os
seus próprios. Conseguiria um lucro enorme, enquanto os outros não receberiam
nem um centavo. Sua posição subiria enquanto a de seus camaradas fracassados
cairia. Depois de semear suas sementes com bastante cuidado, Gallus colheria as
recompensas.

— Sabe, Mestre do Canil? Esses pirralhos Doldia são vendidos a um preço


excepcionalmente alto. Alguma família nobre pervertida no Reino Asura os adora, e
aqueles caras vão pagar muito dinheiro por eles.

Ah, sim. Acho que sei de qual família ele estava falando.

— Não saiu exatamente como planejado, mas seu Superd manteve o bando de
guerreiros Doldia preso em Porto Zant. Então por que você está aqui?

— Estraguei tudo e fui capturado.

— Ah sim, então por que não se junta a mim?

Com essas palavras, Gimbal voltou seu olhar para mim. Parecia entender um
pouco da língua humana, e me observava com cautela. Eu realmente não queria
que ele fizesse isso.

— Senhor Gallus … Desculpe, mas quando resgato crianças, não sou o Mestre
do Canil Ruijerd. Sou Ruijerd, da tribo Superd. E Ruijerd nunca perdoa aqueles que
querem vender crianças como escravas.

— Hah, então o Fim da Linha gosta de fingir que está do lado da justiça, hein?

— Isso é o que eu gostaria que as pessoas acreditassem.

As negociações falharam.

Gallus manteve sua espada apontada para o pescoço da criança enquanto se


levantava. Ele lançou um olhar para Gimbal e seus homens, que estavam tentando
cercá-lo, e riu.

— Entendo… Bem, Mestre do Canil, você cometeu um erro.

Eu literalmente acabei de dizer que não sou o Mestre do Canil, sou Ruijerd,
gracejei comigo mesmo.

Dois dos homens de Gimbal se esgueiraram atrás de Gallus, furtivos como


gatos, aproximando-se dele.

— Cinco de vocês não são suficientes para me derrotar.

Os três pularam sobre ele quase instantaneamente. Atrás e à direita apareceu


o Guerreiro A, cortando; e à esquerda, o guerreiro B surgiu, tentando resgatar a
criança. Gimbal usou o momento para atacar Gallus pela frente.
Comparado com as feras ágeis, o contrabandistas se moveu quase
vagarosamente. Primeiro ele lançou a criança contra Gimbal. O homem-fera pegou
o garoto nos braços enquanto o Guerreiro B, que agora havia perdido seu alvo, se
atrapalhou por uma fração de segundo. Foi naquele momento, usando o impulso
que ganhou ao descartar a criança, que Gallus girou e picou o Guerreiro A. Sua
lâmina era uma espada longa comum, que usou para desviar o ataque que se
aproximava antes de enterrá-la no peito do Guerreiro A.

Ele puxou sua espada enquanto recuava para o Guerreiro B no momento em


que este último se atrapalhou em seu ataque. Nesse ponto, Guerreiro B e Gimbal
estavam em linha logo na frente de Gallus, e os braços de Gimbal estavam
ocupados com a criança que havia recuperado, então não conseguia se mover.
Vindo do nada, o bandido sacou uma espada curta com a mão esquerda e a enfiou
fundo no peito do Guerreiro B. Então usou o corpo do guerreiro como escudo e
avançou direto para Gimbal.

Gimbal colocou a criança sob a dobra do braço e tentou interceptar o bandido,


mas já era tarde demais. Gallus lançou seu ataque entre a abertura das pernas de
seu escudo vivo, perfurando o homem do povo-fera. Quando Gimbal largou a
criança e começou a cair, Gallus logo passou sua lâmina pelo pescoço de seu
oponente.

Rápido, preciso e terminado em segundos. Sequer tive a chance de ajudar.


Enquanto eu olhava estupefato, os guerreiros do povo-fera derramaram sangue de
suas bocas antes de desabar onde estavam.

Sério mesmo? pensei em descrença.

— E-ei, chefe, isso é ruim. Esse aí é o Estilo Deus do Norte. E também ao estilo
Atofe. Não usa truques inteligentes, é só um estilo de luta bruto que é moldado pela
experiência de enfrentar vários oponentes em batalha.

Gallus reagiu ao pânico presente na voz de Geese com uma risada.

— Você sabe das coisas, homem macaco. Isso mesmo, eu sou o Cleaner, o
Santo do Norte Gallus. — Quando Gallus disse isso, já tinha o refém de volta em
suas mãos.

Isso era ruim. Eu não achava que ele era tão forte quanto Ruijerd, mas,
naquele rank, provavelmente seria mais do que eu poderia lidar. O que poderia fazer
ao lutar usando o Olho da Previsão?

— Muito interessante, não é? O estilo Deus do Norte ainda tem uma tática para
lutar usando um refém.

Lembrei-me de como meu pai deste mundo, Paul, costumava desgostar do


Estilo Deus do Norte. Agora isso fazia sentido. Eu podia entender por que alguém
odiaria um estilo que possuía táticas de batalha como essa. Era uma desgraça.
Completamente dissimulada. Eu queria que ele lutasse de forma justa.
— Bem, venha, Mestre do Canil. Ou você é um covarde que perdeu a coragem
só com isso, então agora vai me deixar ir?

Nenhuma quantidade de críticas mentais mudaria nossas circunstâncias. Será


que deveria deixá-lo partir? Eu não era como Ruijerd. Eu não tinha um senso de
justiça tão forte para colocar minha vida em risco só para salvar crianças que nem
conhecia. A única coisa pela qual valeria a pena arriscar minha vida seria Eris.

— O quê, então realmente não vai me encarar? Então tá bom. É um favor para
nós dois.

Em contraste, Gallus parecia desconfiado de mim. Talvez tivesse testemunhado


meu uso de magia para apagar os incêndios florestais. Eu também tinha mostrado
a ele que podia usar magia não verbal. O homem poderia me atacar assim que visse
qualquer indicação de que eu tentaria algo.

Não importava o quão alta fosse a estimativa de Gallus sobre minhas


habilidades, não havia nada que eu pudesse fazer no momento. Mesmo se usasse
meu Olho da Previsão, derrotar um mestre espadachim como ele sem ferir o refém
seria provavelmente impossível. Se atacá-lo resultasse na perda de minha própria
e preciosa vida, então eu não tinha escolha a não ser deixar que fosse embora.

— Tudo bem — Gallus começou a falar. — Nos vemos por aí, Mestre do Canil.
Se voltarmos a nos encontrar em algum lugar…

— RAAAAH!

Naquele momento, assim que ele baixou a guarda e puxou o refém para os
braços, um borrão branco o atacou pelo lado. Mordeu sua mão que empunhava a
espada.

— Gaaaah! O que é isso?!

Um cão. Aquele enorme Shiba Inu branco saltou de repente do meio dos
arbustos e cravou suas presas no bandido.

Me movi por reflexo, usando magia para criar uma onda de choque entre Gallus
e o refém.

— Guh?!

Isso resultou em um recuo que separou os dois. A Fera Sagrada também se


distanciou no momento do impacto.

Gallus recuperou sua espada e se virou para mim.

— Droga, Mestre do Canil! Eu sabia que você não me deixaria em paz! — Seus
olhos ardiam de ódio, como se fosse eu quem tivesse lançado o primeiro
ataque. — É como os rumores diziam! Você realmente joga seus cães sobre as
pessoas. Que truque mais baixo!
Que tipo de boato era esse?! Não, deixando isso de lado, o mais importante era
que eu acabei recebendo alguma ajuda para lidar com o contrabandista.

— Grrrr…! — A Fera Sagrada estava pronta para a batalha. Antes mesmo de


eu notar, aquilo ficou ao meu lado, assumindo uma postura de apoio com o corpo
agachado.

— Heh heh, exatamente o que eu esperaria de você, chefe. Depois que eu


morrer, cuide de minhas cinzas. — O novato, Geese, posicionou-se um pouco à
minha frente, timidamente empunhando sua espada.

Gallus não baixou a guarda por um instante ao se posicionar de frente para


mim. Parecia que eu não poderia mais recuar, mesmo se quisesse. Ah, bem. Decidi
que faria o povo-fera se sentir em dívida comigo, então por que não encarar isso até
o amargo fim?

— Foi mal, Gallus. Mas Ruijerd do Fim da Linha não pode ser um cara mau.

As palavras soaram heróicas o suficiente, mas minha situação não era ideal.
Estávamos atualmente em três contra um, mas no chão também estavam os
guerreiros do povo-fera, que certamente pareciam mais fortes do que nosso grupo
atual, e todos foram massacrados em um instante. No momento o bandido não tinha
seu refém, mas tudo o que tínhamos era um grupo não confiável de três: o novato,
o filhote e eu. Queria muito que Ruijerd estivesse entre nós, mas… Não, esta seria
uma boa oportunidade para praticar.

— Chefe… me consiga um pouco de tempo.

Enquanto eu tentava preparar minha mente, o novato sussurrou para mim. Ele
tinha algum tipo de plano?

— Como ele é um espadachim do Estilo Deus do Norte, acho que tenho algo
que o pegará.

— Certo… — Pisei bem diante do homem. Então isso indicava que eu teria que
enfrentar um espadachim de nível Santo de frente? Merda, meu coração estava
batendo furiosamente. Acalme-se, apenas acalme-se, disse a mim mesmo.

— Woof! — Como se para injetar coragem em mim, a bola de pêlo ao meu lado
latiu.

— Graaah! — E como se em resposta, Gallus deu o pontapé inicial do chão.

Ele correu em nossa direção, e a Fera Sagrada disparou ao seu encontro.

O cara vai dar a volta e lançar um ataque cortante por baixo da Fera
Sagrada. Eu conseguia ver. Se usasse meu Canhão de Pedra… Não, a Fera
Sagrada ficaria no meio da trajetória do meu disparo. Eu precisava usar um feitiço
diferente. Qual? O novato me disse para chamar sua atenção, então…

— Explosão!
— Gaaah!

Assim que a Fera Sagrada saltou sobre Gallus, conjurei uma pequena explosão
bem na frente de seus olhos.

— Não foi o suficiente! — O contrabandista jogou todo o peso de seu corpo no


chão e rolou. Ele conseguiu escapar por baixo da Fera Sagrada e, depois de um
giro, começou a se levantar…

Assim que começar a se levantar, vai me cortar de baixo para cima.

— Ha!

Recuei para evitar o ataque. Foi por pouco. Se eu não tivesse o Olho da
Previsão, teria morrido no mesmo instante..

— Tsk, então você conseguiu evitar isso! — gritou enquanto avançava


novamente, chicoteando sua lâmina pelo ar.

Ele vai cortar a lateral do meu abdômen, então irá usar o impulso para dar um
golpe de retorno.

Se eu pudesse ver, poderia me esquivar. Ele era mais rápido do que Eris, mas
não tinha aquele seu ritmo único que era tão difícil de ler. Não havia aberturas para
lançar um contra-ataque, mas vi a Fera Sagrada voltando para a periferia da minha
visão, para que pudesse aparecer e morder o bandido por trás.

Ele vai trocar a mão que empunha a espada repentinamente, depois torcer o
corpo e dar um salto.

Por um momento não consegui entender. Não entendi a motivação por trás de
seus movimentos.

— Gah…!

Por reflexo, dei um passo para o lado em vez de recuar. No momento em que
percebi o que estava acontecendo, sua espada curta foi direto para cima para mim
e atingiu o meu pé. Mesmo com a dor intensa que percorreu meu corpo, pude ver o
que aconteceria a seguir.

Ele vai brandir sua espada, pronto para um balanço.

Meu cérebro lentamente descobriu o que tinha acontecido. Foi o pé dele – o


sujeito atirou aquela espada curta em mim com o pé. Provavelmente havia algo
embutido em sua bota! Ser capaz de ver o futuro não me ajudaria em nada com um
oponente como esse. Eu devia ter sido mais esperto!

— Acabou, Mestre do Canil!

— Graaah! — A Fera Sagrada saltou e cravou os dentes no ombro de Gallus.


— Gwah! Seu…!

— Cain! — O filhote guinchou ao ser jogado para longe, batendo com força em
uma árvore.

No intervalo daquele momento, canalizei mana em minha mão e lancei um


Canhão de Pedra.

— Tsk!

Meu feitiço voou em direção a ele em alta velocidade, mas Gallus apenas o
partiu em dois no meio do ar. Faíscas saíram da lâmina quando ela quebrou mesmo
na mão dele. Bom, agora poderia usar a oportunidade para arrancar a espada curta
do meu…

Ele vai pegar a espada nos seus pés e vai acabar com isso.

Ah, não. Foi então que percebi que em algum momento o sujeito conseguiu me
colocar de volta no lugar onde os corpos daqueles homens-fera estavam. A lâmina
aos seus pés pertencia a eles. O cara me guiou ao local.

— Eu disse que seria o fim. Desista de lutar, Mestre do Canil!

Canalizei mana entre minhas mãos, apostando minhas últimas esperanças


nisso. O tempo pareceu desacelerar. Gallus assumiu uma postura com a espada
abaixada em direção aos quadris, prestes a desencadear seu ataque. Mesmo se eu
usasse uma onda de choque para colocar distância entre nós, já era tarde demais.
Em vez de usar aqueles Canhões de Pedra, teria sido melhor arrancar a faca do pé
ou usar uma onda de choque. Recorri ao movimento errado.

— Ao Estilo original Deus do Norte, Bomba Lamuriante! — Só então, ouvi a voz


do novato soando atrás de mim. Algo de repente voou sobre minha cabeça… uma
bolsa preta? E quando isso aconteceu, minha visão, focada em Gallus, ficou turva.

Ele se moverá para cortar a bolsa cheia de pó pela metade, mas depois hesitará
e cobrirá o rosto com os dois braços.

A bolsa bateu no rosto de Gallus. Uma substância semelhante a cinzas explodiu


a partir daquilo. Algo para cegá-lo, imaginei. Mas, infelizmente, falhou… Espera,
não, apareceu uma abertura!

Naquele momento, terminei meu feitiço e desencadeei uma explosão de fogos


no espaço entre nós. Meu corpo foi jogado para trás a uma velocidade ridícula. Por
apenas uma fração de segundo, perdi a consciência.

Suportei a dor que devastou meu corpo e meus pés e me forcei a retornar. O
ferimento no meu pé estava… bem. O impacto, pelo visto, fez a faca ser solta. Todos
os meus dedos continuaram intactos. Eu poderia usar magia de cura para me
recuperar disso. Para ser honesto, doeu o bastante para que não pudesse andar,
mas não era hora para reclamar. No momento precisava ficar de pé e lutar. A batalha
ainda não havia acabado.
— Hã…?

Gallus já estava no chão, de barriga para cima. Seu corpo nem mesmo
estremecia.

— Uhuuul…! Conseguimos! — Quando olhei para o lado, vi Geese com o punho


no ar. — No momento em que esses caras do Estilo Deus do Norte ouvem o nome
“Bomba Lamuriante”, sempre usam as duas mãos para cobrir o rosto!

Eu não tinha ideia do que isso significava, mas pelo visto aqueles treinados
neste estilo em específico tinham algum hábito estranho. Apesar de tudo, abordei
Gallus com enorme cautela.

— Ei, chefe, tome cuidado!

Conforme aconselhado pelo novato, mantive minha guarda alta enquanto


inspecionava nosso oponente inconsciente. Peguei sua espada, que estava caída
por perto, e a joguei fora. Quando fiz isso, a Fera Sagrada saltou no ar e a pegou
em sua boca antes de retornar para mim, balançando o rabo vigorosamente.

Sim, sim, você é um bom garoto, pensei. Mas vamos jogar frisbee outra hora,
tá bom?

— Novato, pegue isso. — Dei alguns tapinhas na cabeça do filhote antes de


jogar a espada para Geese. Então peguei um pedaço de pau e comecei a cutucar
Gallus com ele.

O homem não se moveu. Mesmo ao cutucar seus olhos, sequer resmungou.


Amarrei suas mãos e pernas e coloquei uma mordaça em sua boca, mas seus olhos
permaneceram fechados. Parecia que estava completamente inconsciente.

— Nós ganhamos. — Quando as palavras saíram da minha boca, a Fera


Sagrada gemeu e Geese, que havia retirado a bolsa da cabeça do refém, riu.
Realmente vencemos? Eu ainda estava me deleitando com o brilho da vitória
quando a criança refém acordou e começou a soluçar. Pouco depois disso, os
guerreiros do povo-fera finalmente chegaram.

Esse era um caso de sequestro. Foi uma operação em grande escala planejada
pela organização de contrabando. Planejavam roubar a Fera Sagrada, a divindade
guardiã dos Doldia. Suas motivações exatas não eram claras, mas pelo visto muitas
pessoas desejavam a Fera Sagrada por causa de quão especial ela era.

Dito isso, mesmo o simples ato de sequestrar a Fera seria um desafio. Supondo
que conseguissem, o povo-fera, com seu olfato apurado, ficaria no encalço dos
contrabandistas e imediatamente recapturaria a Fera. É por isso que a organização
executou seu plano perto da estação das chuvas.
A estação das chuvas duraria três meses. Cada povoado se ocupava com os
preparativos e os guerreiros de cada vilarejo ficavam de mãos amarradas. Dito isso,
seria impossível conseguir um navio bem no meio da estação das chuvas. Então,
um pouco antes das chuvas começarem, roubariam a Fera e a carregariam para o
Continente Demônio. Dessa forma, poderiam escapar facilmente e os guerreiros não
conseguiriam os perseguir.

O povo-fera estava, é claro, vigilante. Durante os preparativos para a estação


das chuvas, as crianças ficavam proibidas de sair de casa e até os adultos
passavam a ser mais cautelosos. Não seria necessário mencionar que a Fera
Sagrada também era mais vigiada nesta época. A organização também levou isso
em consideração.

Primeiro, empregaram todos os sequestradores da área e, então, esperaram


pacientemente. Quando chegou a hora certa, invadiram cada aldeia e sequestraram
mulheres e crianças. Foi então que os guerreiros entraram em pânico. A
organização havia intencionalmente contratado várias pessoas para diminuir os
sequestros durante o ano, para que as tribos do povo-fera baixassem a guarda.
Então, de uma só vez, os contrabandistas sequestraram mulheres e crianças de
vários assentamentos.

Também enviaram grupos de forças armadas que haviam preparado para


atacar os vilarejos, mas deixaram a aldeia da tribo Doldia intacta. Como isso
indicaria que os guerreiros de Doldia estavam desocupados, todos os outros
exigiram ajuda. Os Doldia teriam que dividir suas forças para enviar ajuda aos vários
assentamentos.

Como resultado, os defensores da aldeia Doldia ficaram com uma equipe


escassa. Foi então que a organização de contrabando usou suas forças de elite para
atacar. Conseguiram sequestrar não apenas a neta do chefe tribal, como também a
Fera Sagrada. Foi uma tática de blitzkrieg em que forças menores distraíram os
outros assentamentos enquanto a principal corria em direção ao seu verdadeiro
objetivo.

O ataque das forças armadas, o sequestro de crianças e o rapto da Fera


Sagrada… Com tudo isso, não importaria o quão excepcionais os guerreiros do
povo-fera seriam, já que não haveria o suficiente deles. O chefe tribal, Gustav,
decidiu abandonar as crianças. Reuniu seus guerreiros e reforçou as defesas locais,
então começou a busca pela Fera Sagrada. Ela era um símbolo importante para seu
vilarejo.

Pareceu-lhes pura sorte terem descoberto a área de espera dos


contrabandistas. Receberam uma pista sólida e marcharam para o prédio em
questão. Por enquanto, vamos apenas ignorar que a fonte da informação foi uma
força isolada liderada por Gallus.

Foi aí que começou a história que eu não conhecia: uma sobre o que Ruijerd
fez na semana seguinte, quando me deixou naquela cela.

Pelo visto, o Superd ficou abertamente zangado com os contrabandistas


quando ouviu sobre o que levou a tudo isso. Ele propôs atacar o navio antes que
partisse do porto. Gustav, porém, desaprovou. “Não sabemos em que navio estão
as crianças, e sabem como suprimir nosso olfato.”

Foi exatamente aí que Ruijerd entrou. Ele disse com orgulho que poderia usar
o cristal em sua testa para procurá-los. Quanto a Eris, ela não participou, pois havia
assumido a responsabilidade de cuidar das crianças.

Com um grande sorriso no rosto, devo acrescentar. Com certeza era influência
de seu sangue Greyrat.

De qualquer forma, o ataque de Ruijerd foi bem sucedido. Tragicamente para


os contrabandistas, ele descobriu seu navio e os capturou apenas após espancá-
los até ficarem meio mortos. As crianças saíram arrastando-se das profundezas do
navio. Eram ao menos cinquenta delas. Todos foram salvos e foi um belo final feliz,
yay! Só que não…

Os funcionários do Porto Zant afirmaram que foi um ataque à última viagem


deles antes do início da estação chuvosa. Havia mercadorias importantes
armazenadas naquele navio, e atacá-lo era um crime grave.

Gustav, é claro, protestou contra isso. O sequestro e escravidão de pessoas-


fera era um crime no que diz respeito ao País Sagrado de Millis e aos líderes tribais
da Grande Floresta. Ser punido por impedir isso em suas próprias costas parecia
bizarro, disse. Isso só enfureceu ainda mais os funcionários do Porto Zant. Insistiram
que deveriam ter sido informados com antecedência. Mas os contrabandistas
acabaram sendo dominados no devido tempo. Eles não tiveram tempo para explicar
nada. Além disso, existiam cinquenta vítimas. Não cinco, nem dez,
mas cinquenta crianças! Sequestraram uma ou duas de cada assentamento. Os
funcionários do Porto Zant não sabiam nada disso. Na verdade, alguns deles
aceitaram subornos para fingir que não sabiam de nada.

Isso era uma violação do tratado. Se deixado como estava, criaria uma grande
fissura no relacionamento entre o povo-fera e o País Sagrado de Millis. Na pior das
hipóteses, acabaria resultando em uma guerra. Foi então que toda a conversa ficou
complicada. Por ordem de Gustav, os guerreiros foram chamados ao Porto Zant e
ficaram na entrada da cidade em um impasse com sua guarnição.

No final, Porto Zant recuou. Pagaram uma enorme soma ao povo-fera,


buscando entregar alguma compensação. Demorou cerca de uma semana para que
as negociações fossem concluídas e as crianças fossem devolvidas aos pais. Foi
por isso que fiquei uma semana naquela cela, eu seria a última coisa para se cuidar.

Bem, não era como se houvesse outra escolha. Na verdade, achei incrível que
conseguiram fazer tanto em apenas uma semana.

Foi aí que Gallus tirou vantagem da situação. As defesas da aldeia dos Doldia
foram enfraquecidas quando Gyes chamou seu bando de guerreiros para o Porto
Zant. Acompanhado por suas tropas, o bandido invadiu o assentamento. O sujeito
fez tudo exatamente pelo motivo que mencionou antes. Ele e os camaradas em
quem confiava sequestrariam as crianças e, então, conseguiriam um enorme lucro.
O bandido mirou o período logo antes do início da estação das chuvas. Ele se
preparou para isso, tendo até mesmo ameaçado o líder dos armadores para que
construísse um navio em segredo. O homem devia ter passado muito tempo
planejando tudo. As coisas não aconteceram exatamente como esperava, mas
foram o suficiente para que agisse. Mas, para seu azar, suas ambições foram pelo
ralo. No final, seu plano falhou e acabou sendo entregue aos funcionários do Porto
Zant. Assim o assunto foi resolvido e tivemos nosso final feliz.

Capítulo 09 - Vida Tranquila


no Vilarejo Doldia

Fomos recebidos no vilarejo Doldia como heróis por salvar as crianças e


proteger a vila contra o ataque de Gallus. Queriam que passássemos a estação das
chuvas residindo com eles.

Gyes também se desculpou oficialmente comigo por ignorar ordens, me despir


e me jogar em uma cela. E também pela água gelada que foi jogada em mim.
Descobriu-se que a maneira diferenciada do povo-fera se ajoelhar era deitando com
o rosto para cima e deixando a barriga exposta. No começo pensei que ele estava
zombando de mim, mas todos os presentes estavam falando sério sobre isso. A
única coisa em minha mente era a inveja que senti enquanto olhava para seu
tanquinho peludo e musculoso, então não me demorei a aceitar o pedido de
desculpas.

Eris, no entanto, não o fez. Ela ficou chateada quando soube pelo que eu tinha
passado, e deu um Soco Boreas na barriga exposta de Gyes, antes de jogar água
em sua cabeça. Uma vez que o homem ficou parecendo um rato afogado, ela olhou
para ele e disse:

— Agora estamos quites.

Ela nunca falhava em me impressionar.


No momento, estávamos na casa de Gustav. Era a maior do vilarejo, situada
bem acima do solo entre as árvores. Com três andares de altura e construída com
madeira, parecia que poderia desabar instantaneamente diante de um terremoto,
mas era forte o suficiente para que um adulto correndo ali dentro não causasse um
único tremor.

Éramos oito: Eris, Ruijerd e eu, além do líder tribal Doldia, Gustav, e seu filho
Gyes, o líder dos guerreiros. Uma das garotas que resgatei dos contrabandistas, a
filha do meio de Gyes, Minitona, também estava presente. Sua filha mais velha,
Linianna, aparentemente estava estudando em um país diferente. E havia outra
garota que tínhamos resgatado que era da tribo Adoldia: a filha do meio do líder
tribal Adoldia, Tersena. Ela era uma menina com orelhas de abano e bastante
desenvolvida para sua idade. Estava planejando voltar para casa, mas isso se
tornou impossível quando a estação das chuvas começou, e passaria os próximos
três meses no lugar.

As meninas conversavam animadas, com latidos e miados, sobre como quase


foram sequestradas.

— Estou tão feliz por não ter sido levada. Ouvi dizer que há uma família nobre
louca e doente em Asura que só tem interesse sexual pelo povo-fera. Vai saber o
que aconteceria comigo.

Gallus também falou sobre como uma certa família nobre paga especialmente
bem por gente-fera com sangue Doldia. Parecia que aqueles que eram fáceis de
treinar eram vendidos pelos preços mais altos.

— Não há lugar para esse tipo de escória entre os nobres Asuranos! — E lá


estava Eris, falando como se essa conversa não tivesse nada a ver com ela ou sua
família, mesmo sendo muito provável que a tal família nobre tivesse algo como “rat”
no nome. E também começava com a letra G.

Nunca perguntei de onde vinham as empregadas da casa de Eris, mas talvez


algumas delas tivessem sido sequestradas. O avô de Eris, Sauros, era um bom
homem, mas sua visão de mundo tinha alguns aspectos estranhos. Bem, eu
manteria minha boca fechada. Algumas coisas seriam melhores se não fossem
ditas.

Eris pareceu lembrar de algo, já que de repente mostrou a todo o anel que
estava em seu dedo.

— A propósito, conhecem Ghislaine? Ganhei este anel aqui dela. — Eris não
conhecia a língua do Deus Fera, então falou na língua humana. Dos presentes, os
únicos que podiam entender a língua, além de Ruijerd e eu, eram Gustav e Gyes.

— Ghislaine…? — Gyes fechou a cara. — Ela… ainda está viva?

— Hein?

Sua voz estava cheia de desgosto. Ele cuspiu as palavras como se deixassem
um gosto amargo em sua língua.
— Ela é uma mancha no nome da nossa tribo.

E isso foi apenas o começo do ataque de Gyes a Ghislaine. Ele falou na língua
humana, para que Eris pudesse entender. Sua voz estava cheia de uma emoção
imprópria para um irmão mais velho falando de sua irmã mais nova, enquanto falava
sem parar sobre a falha que a mulher era como pessoa.

Foi difícil para mim ouvir tudo, visto que ela já até salvou minha vida. Parecia
que a mulher tinha feito algumas coisas realmente desprezíveis no vilarejo, mas
ainda assim, tudo isso aconteceu quando era uma criança. A Ghislaine que eu
conhecia era desajeitada, mas esforçada. Ela mudou, se reajustou como pessoa.
Não merecia que falassem assim dela. Era uma instrutora de espada altamente
respeitável, bem como uma excelente aprendiz de magia.

Então, pensei, como devo esclarecer isso…? Esquece isso.

— Esse anel também, isso foi algo que nossa mãe deu a ela para que parasse
de ficar furiosa sem motivos. Mas não é como se tivesse funcionado. Não passava
de uma garota surtada e inútil.

— Você… — comecei a dizer.

— Ah, cala a boca! O que você sabe sobre Ghislaine?! — Eris me cortou,
berrando em voz alta o suficiente para dividir a casa em duas. Os outros ficaram
pasmos com sua explosão. Afinal, apenas Gyes e Gustav podiam entender a língua.

Senti medo de que ela pudesse acabar ficando violenta. Mas, em vez disso, a
garota parecia frustrada, com lágrimas nos olhos. Ela cerrou os punhos trêmulos,
mas não os balançou.

— Ghislaine é incrível! Incrivelmente incrível! Quando você pede ajuda, ela


aparece na mesma hora! Ela é super rápida! E super forte! — As palavras de Eris
provavelmente não estavam saindo só de sua boca. Mesmo se os outros não
entendessem o que estava dizendo, a tristeza em sua voz transmitia muito bem todo
o significado. E também estava expressando minhas emoções. —Ghislaine é…
hic… guh… não é alguém que você pode simplesmente… hic… — Eris tentou o seu
melhor para não socar ninguém, mesmo em meio às lágrimas.
Isso mesmo, ela não poderia socar Gyes. Durante seu tempo neste vilarejo,
Ghislaine sempre foi violenta. Se Eris fechasse o punho, o homem poderia
simplesmente dizer: “Viu? As duas são farinha do mesmo saco.”

Quando olhei para ele, Gyes parecia confuso.

— Não, não posso… Isso é inacreditável. Ghislaine… é respeitada? Isso não


pode…

Vendo isso, contive minha raiva.

— Vamos parar essa conversa aqui — sugeri, colocando meus braços ao redor
dos ombros de Eris.

Ela olhou para mim sem acreditar.

— Por quê… Rudeus, você… odeia Ghislaine?

— Não, eu também gosto dela. A pessoa que conhecemos e a que eles


conhecem podem ter o mesmo nome, mas não são a mesma. — Olhei para Gyes.
Até ele reconsideraria sua postura se conhecesse a Ghislaine atual. O tempo muda
as pessoas. Eu sabia muito bem disso.

— Certo… — Eris não parecia satisfeita, mas pelo menos parecia aliviada com
o que eu disse.

— Espere, ela é… agora Ghislaine realmente é uma pessoa incrível?

— Para não dizer muito, eu a respeito.

Minhas palavras levaram Gyes a uma profunda contemplação. Considerando o


que o ouvimos dizer, devia ter acontecido muita coisa entre ele e ela. Com a simples
menção ao nome de Ghislaine, o homem começava a ferver de raiva. Ser parente
de sangue tornava tudo pior.

— Então que tal pedir desculpas?

— Sinto muito…

Depois disso a atmosfera ficou meio desconfortável. Talvez porque fosse a


segunda vez que forçamos Gyes a se desculpar conosco no mesmo dia.

Quanto a Ghislaine, eu tinha me esquecido completamente dela durante o


último ano, mas a mulher provavelmente também tinha sido deslocada durante o
incidente. Fiquei curioso sobre onde e o que ela estaria fazendo. Conhecendo-a,
imaginei que provavelmente estava procurando por mim e por Eris. Foi frustrante
não termos conseguido obter nenhuma informação durante nossa estadia em Porto
Zant.
Uma semana se passou. A chuva continuou caindo o tempo todo. Ficamos com
uma casa vazia do vilarejo e passamos nosso tempo lá. Recebíamos comida,
independentemente de termos contribuído ou não com alguma coisa, já que éramos
considerados heróis da Grande Floresta, mesmo com o vilarejo na pior graças ao
dano daquele incêndio.

A terra ficou inundada e o caos chegou ao máximo quando uma criança caiu na
água. As pessoas ficaram bastante chocadas, mas gratas quando usei minha magia
para salvá-la. Achei que talvez devesse usar minha magia para afastar as nuvens
de chuva, mas logo desisti. A própria Roxy disse: manipular o tempo não seria uma
boa ideia. Se eu forçasse a chuva a parar, algo terrível poderia acontecer com a
floresta.

Para ser honesto, só queria que isso andasse logo e parasse para que
pudéssemos seguir em frente. Mas, novamente, só iria parar depois de três meses.
Eu teria que suportar.

Estava chovendo quando decidi dar um passeio pela aldeia. Como se tratava
apenas de um vilarejo, não havia nenhum armeiro, armadureiro ou estalagem de
qualquer tipo. Na maior parte, eram moradias particulares e depósitos, ou guaritas
para seus guerreiros. E estava tudo sobre as árvores.

Parecia até uma maquete, só que em 3D! Verdadeiramente fascinante. Apenas


andar era o bastante para que meu coração disparasse de tanta excitação. Mas
havia um lugar onde era proibido ir. Pelo visto, logo adiante havia um lugar especial.
Eu não tinha intenções de me intrometer.

Durante minha caminhada, encontrei um caminho que se cruzava em dois


níveis. Fiquei no de baixo esperando que alguma garota pudesse passar por cima
de mim, mas foi Geese quem apareceu.

— Yo, novato! Então você também ficou livre, eh?

Ele parecia feliz e acenou para mim. O homem também recebeu anistia por
suas contribuições quando a aldeia estava em apuros.

— Aham. “Nunca mais faça isso”, disseram eles. Idiotas, todos. Claro que vou
fazer de novo.

— Ei, gente! Vocês ouviram? Esse cara não aprendeu a lição!

— Ei! Vamos lá, pare com isso. Não posso fugir agora, não antes que a estação
das chuvas termine.

Em outras palavras, ele estava planejando repetir seu erro. Sério, que caso
perdido.
— Além disso, permita-me devolver o seu colete.

— Eu disse para você parar com essas merdas polidas. Só fique com ele —
disse.

— Tem certeza?

— Esta estação ainda está fria.

Bem, Geese ao menos não parecia ser um cara totalmente mau. O jeito como
era gentil, mas evasivo, me lembrava Paul. Paul… Gostaria de saber se ele estava
bem.

Duas semanas se passaram e a chuva não parava.

Eu aprendi que os Doldia tinham sua própria magia secreta. Permitia que
encontrassem inimigos usando um uivo de longo alcance e, com suas vozes
especiais, podiam fazer os oponentes perderem o senso de equilíbrio. A maneira
como Gyes me paralisou com sua voz era um desses tipos de magias. Pelo que
ouvi, parecia ser uma do tipo que manipulava o som.

Quando disse a Gustav que “Adoraria que me ensinasse”, ele concordou do


fundo do coração. Infelizmente, não importa quantas vezes demonstrasse aquilo
para mim, eu não conseguia imitá-lo direito. Parecia que isso dependia das cordas
vocais únicas dos Doldia.

Claro que depende, pensei amargamente comigo mesmo. De acordo com as


probabilidades, eu não poderia usar a maior parte da magia única que as tribos
individuais possuíam. Parecia injusto que o povo-fera e outras raças pudessem usar
magia humana tão facilmente. Eu sabia que o elemento-chave era canalizar mana
para minha voz, mas não importa como fizesse isso, o resultado era sempre
decepcionante. O melhor que pude fazer foi obrigar meu oponente a recuar por um
momento. Parecia que, no final das contas, eu não era nenhum Wagan.

Nesse ponto, Gustav ficou bastante chocado com a forma como eu usava magia
não verbal.

— Hoje em dia as escolas de magia ensinam até isso?

— É porque minha mestra me ensinou muito bem — expliquei, elogiando Roxy


sem nenhum motivo aparente.

— Eh? E de onde é a sua mestra?

— Da tribo Migurd, da Região Biegoya do Continente Demônio. Sua magia…


Acho que aprendeu na Academia de Magia, não foi?
Quando eu disse a Gustav que também planejava ir para a Academia de Magia,
ele pareceu impressionado e disse:

— Uau, você já está nesse nível e ainda está motivado a melhorar? — Aquilo
fez eu me sentir bem.

Três semanas se passaram.

Monstros também apareceram pelo vilarejo. Um deles era um gerridae, que


apareceu surfando rapidamente pela água abaixo apenas para saltar de repente e
atacar. Outro era como uma cobra d’água que subia pelas árvores. A vila era
guardada por seu bando de guerreiros feras, mas seus narizes impressionantes e
vozes semelhantes a sonares eram inúteis na chuva, mas muitas vezes os monstros
escapavam de seu olhar vigilante e infestavam a vila.

Enquanto Eris e eu caminhávamos, uma das crianças do povo-fera quase foi


agarrada por um réptil do tipo camaleão bem diante de nós. Eu prontamente o
derrubei com meu Canhão de Pedra, e a criança abanou o rabo adoravelmente e
me agradeceu.

Eu era estranhamente popular entre as crianças da aldeia, sem dúvida porque


fui o herói que as salvou em seus momentos de necessidade. De vez em quando,
vinham até mim e me lambiam na bochecha ou me mostravam a coleção de bolotas
que tinham colhido antes da chegada da estação das chuvas. Eu era tipo uma
celebridade.

Eris, em uma verdadeira demonstração da infâmia de sua família, não pôde


conter sua empolgação ao ver uma aglomeração tão grande de tantas crianças
adoráveis com orelhas e caudas. Ela irritava as crianças respirando de forma
irregular enquanto acariciava suas cabeças e tocava suas caudas.

Não podíamos ficar parados enquanto essas criaturas adoráveis eram atacadas
por monstros. Foi por isso que propus que Ruijerd ajudasse nas defesas da aldeia,
mas ele se opôs à ideia.

— Os guerreiros daqui se orgulham de seu papel na aldeia — disse ele.


Proteger esta aldeia era seu dever. Contanto que não pedissem a ajuda de um
estranho, interferências não eram da nossa conta. De qualquer forma, essa era a
crença do Superd. Eu não entendia direito.

— Mas a segurança das crianças não é mais importante do que isso?

Ruijerd fez uma pausa e pensou por alguns segundos antes de se voltar para
Gyes para dar sua opinião.

O homem acolheu bem a ideia.


— Ah, Mestre Ruijerd, você vai nos emprestar sua assistência? Isso seria de
grande ajuda! — O incidente de sequestro diminuiu drasticamente o número de seus
guerreiros. Então Gyes se ofereceu para compensar Ruijerd por sua ajuda em nome
do bando guerreiro.

Foi assim que todos os monstros da aldeia foram exterminados. Ruijerd os


encontrava e eu usava minha magia para derrotá-los. Iríamos recuperar seus
corpos, despojá-los de qualquer coisa útil e vendê-los para Gyes. Era um ciclo
proveitoso.

Ruijerd estava certo sobre uma coisa: No começo os guerreiros do vilarejo nos
desaprovaram. Mas assim que aniquilamos impiedosamente qualquer monstro que
entrasse na vila e perceberam que a estação das chuvas iria passar sem nenhuma
vítima, finalmente começaram a sorrir.

— Achei que a tribo deles tivesse mais orgulho do que isso. É uma vergonha
confiar a proteção de sua aldeia a outra raça. — O Superd era o único incomodado.
Parecia que o povo-fera de várias centenas de anos atrás era bem diferente de suas
contrapartes modernas.

Um mês se passou.

A força da chuva parecia estar diminuindo, mas provavelmente era apenas


minha imaginação. Eris, Minitona e Tersena estavam se tornando grandes amigas.
Elas pareciam gostar de passear juntas, mesmo com a chuva. Fiquei curioso sobre
o que estavam fazendo.

Eris estava ensinando a língua humana a elas. Sim, isso mesmo. Estava
ensinando uma língua para outras pessoas! Não era a hora nem lugar para eu
invadir e tentar ajudá-la; se fizesse isso iria apenas destruir sua imagem. Bem, no
final das contas, eu era um homem que sabia ler o clima.

Foi a primeira vez que Eris conseguiu fazer amigas de sua idade. Fiquei
orgulhoso ao vê-la se dando tão bem com as meninas. O cabelo ruivo, as orelhas
de gato e as orelhas de cachorro… Ver todas brincando felizes era mais do que
suficiente para mim.

Embora Eris devesse ter cuidado ao envolver os braços em volta delas sem
pensar. Poderiam interpretar mal as suas intenções, assim como fizeram comigo.
Na verdade, o Senhor Gyes ficava sempre observando. Como ele se sentiria como
pai, vendo Eris com as narinas dilatadas, jogando os braços ao redor de sua filha?

— Ah, Lady Eris, aprecio você se dar tão bem com minha filha.

Mas o quê…? Esta foi uma reação totalmente diferente da que ele me deu! O
homem deveria ter sido capaz de cheirar a emoção que irradiava de Eris agora,
então por que não o fez? Essa era apenas a diferença entre homens e mulheres,
imaginei. Sim, tinha que ser isso. Claro que seria.

— A propósito, sinto muito pelo assunto envolvendo Ghislaine. Não nos vemos
há muito tempo, então talvez eu tenha entendido mal. Parece que minha irmã mais
nova cresceu um pouco durante seu tempo mundo afora. — Ele abaixou a cabeça.
Parecia que havia aceitado isso no último mês. Que bom.

— Claro que sim. Ela é o Rei da Espada Ghislaine! E sabe o que mais? Agora
Ghislaine consegue usar até magia — disse Eris se gabando.

— Hahaha, Ghislaine usando magia? Lady Eris, suas piadas são muito
inteligentes.

— Sério! — Ela insistiu. — Rudeus ensinou ela a ler, fazer cálculos e usar
magia.

— Lorde Rudeus…?

Depois disso, Eris começou a se gabar de Ghislaine e de mim incessantemente.


Ela falou sobre minhas aulas na Região de Fittoa. Começou falando sobre como ela
e Ghislaine haviam aprendido mal e como ela me respeitava por ficar com as duas
e ensiná-las tudo. Eu me senti envergonhado ao ouvir tudo.

Gyes disse como ficou impressionado repetidas vezes e, quando finalmente se


separaram, ele se aproximou da caixa de madeira em que eu havia me escondido
para espiar.

— Então me diga, o que um professor respeitável está fazendo em um lugar


como este?

— Observar as pessoas é um hobby meu — gaguejei.

— Ah, sim, parece um hobby muito nobre para se ter. A propósito, como você
ensinou Ghislaine a ler?

— Sério, não foi nada de demais. Eu só fiz tudo do jeito normal.

— Do jeito normal…? Não consigo imaginar — disse Gyes.

— Quando ela era aventureira, passou por muitas dificuldades porque não sabia
das coisas. Faz sentido que você não seja capaz de imaginar.

— Então essa é a história… Quando ela era pequena, minha irmã nunca ficava
feliz, a menos que pudesse bater em alguém quando acontecesse algo que não
gostasse.

A julgar pelo que ele estava dizendo, Ghislaine parecia ter sido exatamente
como Eris quando era mais nova. Especialmente nas partes em que arrumava briga
com as pessoas e que, por ser forte, poucos podiam impedi-la. Gyes deve ter se
queimado várias vezes com seu fogo. Ele não seria um irmão mais velho muito bom
se fosse muito mais fraco do que sua irmã mais nova.

Falando em irmãos mais velhos, eu também era um. Gostaria de saber como
Norn e Aisha estavam. Sempre quis escrever uma carta para elas, mas acabava
esquecendo. Assim que a chuva parasse, seguiríamos para a capital do País
Sagrado de Millis, onde enviaria uma carta para Buena Village. Se eu tivesse
enviado uma lá do Continente Demônio, provavelmente não teria chegado, mas com
certeza não teria problemas se enviasse de Millis.

— A propósito, Mestre Rudeus.

— Sim?

— Quanto tempo você pretende ficar dentro dessa caixa de madeira?

Até que elas fossem se trocar bem na minha frente, é claro. Afinal, estava quase
de noite. No momento iriam brincar na água, mas teriam que colocar suas roupas
de dormir depois.

— Sniff, sniff… Posso sentir o cheiro da sua excitação sexual.

— O quêê?! Sem chances; mas que absurdo. Será que não tem nenhuma
garota do povo-fera se dando prazer e chegando ao êxtase justo agora?

Enquanto eu tentava bancar o idiota, Gyes levantou uma sobrancelha.

— Mestre Rudeus. Estou grato pelo que você fez antes. E também me desculpo,
mesmo agora, por ter te entendido mal. — Do nada seu tom mudou. — Mas se
colocar a mão na minha filha, será uma história completamente diferente. Se não
sair dessa caixa agora, vou jogá-la na água da enchente.

Ele estava sério. Eu não hesitei. Saltei daquela caixa em um instante, na mesma
velocidade de um daqueles Pula Pirata.

— Eu sou um protetor deste vilarejo. Não queria ter que te dizer isso, mas…
controle-se um pouco.

— Sim senhor.

Sim, bem, me empolguei um pouco demais. Isso eu admitiria.

Um mês e meio se passou.

Ruijerd e Gustav se davam tão bem quanto irmãos. O Superd fazia visitas
frequentes à casa dos Dedoldia, e os dois bebiam juntos e trocavam histórias de
seus passados. As histórias eram banhadas a sangue, mas na verdade eram bem
interessantes de se ouvir. Era quase como ouvir um ex-membro de uma gangue de
motoqueiros exagerando sobre o quão fodão foi em sua juventude. Mas as coisas
que Ruijerd e Gustav falavam pareciam ter realmente acontecido.

Graças a essas conversas, aprendi um pouco mais sobre o povo-fera. “Povo-


fera” era um termo genérico para as tribos que viviam na Grande Floresta. Muitas
se originaram aqui, mas cruzaram para o Continente Demônio e passaram a ser
chamados de demônios. Uma característica externa dessas tribos era que uma
parte de seu corpo mantinha uma aparência animalesca. Cada tribo também tinha
um dos cinco sentidos aprimorados. Para ficar mais claro, Nokopara e Blaze também
eram parte do povo-fera.

Os Doldia eram particularmente especiais entre as tribos. Apenas uma delas


mantinha a paz da floresta ao mesmo tempo que protegia a Fera Sagrada. Eram os
Doldia.

Então havia os Dedoldia, parecidos com gatos, e os Adoldia com uma aparência
de cachorro. Essas eram as duas famílias principais que foram divididas em uma
dúzia de ramos familiares. Em outras palavras, a realeza da Grande Floresta.
Embora não estivessem fazendo muito para merecer o título, eram eles que
liderariam todos quando surgisse a necessidade.

Também havia elfos e hobbits vivendo na Grande Floresta. Eles estavam


concentrados na parte norte da floresta, então não tinham muito contato com o povo-
fera. Porém, todas as tribos se reuniam uma vez ao ano e participavam de um
festival perto da Grande Árvore Sagrada. De acordo com Gustav, embora suas tribos
tivessem diferenças, todas viviam como amigas na Grande Floresta.

Quanto aos anões, eles viviam não na Grande Floresta, mas mais ao sul, no
sopé das Montanhas Wyrm Azul. Os dragões azuis voavam pelo mundo e só
retornavam à cordilheira para fazer seus ninhos quando colocavam ovos ou criavam
seus filhotes, como aves migratórias. Ao contrário das aves migratórias, no entanto,
retornavam apenas uma vez a cada dez anos.

Desde tempos imemoriais, homens e pessoas-fera passaram pela guerra e pela


amizade uns com os outros. Uma guerra, que na verdade estava mais para uma
pequena competição, ocorreu há apenas cinquenta anos. Gustav nos regalou as
histórias de seu envolvimento e como o bando de guerreiros mais fortes do povo-
fera destruiu um grupo de soldados humanos que vagava pela floresta. Foi muito
dramatizado, mas ouvir a maneira como as coisas aconteciam do ponto de vista do
povo-fera era muito novo e divertido.

Para se opor a isso, Ruijerd sacou seu trunfo, a história sobre o Clã Superd
durante a Guerra de Laplace. Os dois trocaram gracejos como se estivessem
competindo, mas como ambos eram velhos, isso meio que se transformou em um
sermão sobre os bons e velhos tempos.

— Os guerreiros de hoje em dia são uma verdadeira desgraça.

— Eu entendo muito bem o que você quer dizer, Mestre Ruijerd. Muitos deles
são fracos e decepcionantes.
— Exatamente — disse Ruijerd. — Quando eu era jovem, os homens eram
fortes e durões.

Eram literalmente espíritos gêmeos. Este podia até ser um mundo diferente do
meu primeiro, mas a camaradagem dos velhos era a mesma.

— Você está extremamente correto. Gyes pode até liderar os guerreiros, mas
seu julgamento é pobre. Ele é bom em liderar as pessoas, mas se pudesse avaliar
melhor as situações, então Mestre Rudeus não teria passado por tudo aquilo —
disse Gustav.

Ruijerd discordou.

— Não, Rudeus é um guerreiro. Ele deveria ter entendido que, se baixasse a


guarda em território inimigo, corria o risco de ser capturado e mantido em cativeiro.
Mesmo assim, ele baixou a guarda. Se tivesse levado as coisas a sério, teria sido
capaz de derrotar alguém como Gyes. Foi tudo fruto de seu fracasso.

Ai. Por mais verdade que isso fosse, doeu. Ruijerd tinha fé em mim, e foi por
isso que me permitiu voltar sozinho. No entanto, fui pego bem facilmente. De certa
forma, traí sua confiança.

— Mas Mestre Ruijerd, isso não é um pouco cruel? Aconteceu algo horrível com
seu camarada.

— Como um guerreiro, você deve assumir a responsabilidade por suas próprias


batalhas. Além disso, Rudeus poderia ter escapado sozinho a qualquer momento.
Aprecio que ele confie em mim como seu companheiro, mas não se trata de uma
criança. Um guerreiro não força seus camaradas a uma posição difícil se permitindo
ser pego!

Cara, Ruijerd, você com certeza está exagerando, pensei. Talvez você possa
escapar por conta própria se for pego, mas tente não esperar muito de mim. Meus
poderes não são ilimitados, sabe?

Dois meses se passaram.

Sempre que eu estava em meu quarto, a Fera Sagrada entrava lentamente. Ela
vivia nas profundezas da aldeia ao lado das flores e das borboletas, mas uma vez
por dia durante o tempo de caminhada vagava livremente por onde quisesse. Sua
rota favorita (e atual) era onde quer que eu estivesse.

— Olhe só, se não é a Fera Sagrada. Que negócio você tem aqui com um
viciado em sexo como eu?

— Ruff!
— Ruff para a vida, hein?

— Ruff!

Não foi uma boa resposta.

Não tinha certeza sobre a Fera Sagrada ser macho ou fêmea, mas, de qualquer
forma, ela se acomodou ao meu lado. No momento, eu estava segurando o molde
de uma estatueta em minhas mãos. Parecia que demoraria algum tempo até a chuva
parar, então decidi tentar fazer uma.

O modelo era Ruijerd. Talvez esteja se perguntando por que eu o escolhi, mas
pense bem: Os Superd eram como bichos papões sem rosto.

As pessoas tremiam de medo ao ver um cabelo verde, mas não havia cor na
figura que fiz. Era apenas algo feito de pedra Quem sabe, se deixasse uma
impressão forte o suficiente, as pessoas o aceitariam melhor.

Primeiro a sua silhueta. O cabelo sera o último detalhe.

— Woof. — A Fera Sagrada pressionou seu corpo contra minha coxa e


descansou sua cabeça em meu joelho. Fiquei intrigado, já que nunca fui tratado
assim por nenhum animal. — Arf? — O animal olhou para minhas mãos como se
perguntasse o que eu estava fazendo. Apesar de sua juventude, o filhote parecia
bastante calmo.

Finalmente decidi acariciar seu pescoço.

— Não tenho mais nada para fazer, então estou criando algo.

— Woof. — A fera lambeu minha mão e abanou o rabo. Claramente não me


odiava. Ainda estava chovendo lá fora, então provavelmente também não tinha mais
nada para fazer. Provavelmente ansiava por alguma emoção.

— Quer brincar?

— Woof!

Então, nós dois nos agarramos e rolamos. Comecei a desfrutar de seu pêlo
macio e fofo, e a Fera Sagrada fez uma quantidade moderada de exercícios. Foi
uma verdadeira situação de ganho mútuo.

Toc, toc. Alguém estava batendo na porta enquanto estávamos brincando.

— Hm? Entre.

— Perdão. — Uma mulher com roupa de guerreira entrou. Era Laklana. Ela era
uma das responsáveis pela Fera Sagrada e viria buscá-la quando seu tempo de
caminhada estivesse perto do fim.
— É um prazer te rever.

— Digo o mesmo, Mestre Rudeus. Além disso, daquela vez… — Cada vez que
ela me via, Laklana se desculpava pela vez em que jogou água fria em mim. O
primeiro pedido de desculpas foi mais do que suficiente. — Deixando aquilo de lado,
você poderia, por favor, parar de ser tão apegado à Fera Sagrada?

— Do que está falando? Estou apenas me divertindo enquanto brinco com ela.

O quê, mais uma acusação falsa? Ela realmente não sentia muito por nada, não
é? Se não tomasse cuidado com suas palavras, da próxima vez ficaria nua em uma
cela e eu seria o único jogando algum líquido.

— Mas eu posso sentir o cheiro de sua excitação.

— Não é pela razão que você está pensando…

A verdadeira razão era porque toda vez que ela vinha e abaixava a cabeça,
meu pervertido interior começava a sussurrar: “Ei, moça, se você pudesse resolver
isso com um simples pedido de desculpas, não precisaríamos chamar a polícia,
certo? Se realmente quer resolver isso, sabe o que precisa fazer, certo? Vamos dar
umazinha.”

— A Fera Sagrada é extremamente preciosa para os Doldia. Estou ciente de


que você a salvou de danos maiores, mas desenvolver sentimentos por ela é…

— O ponto é que não estou desenvolvendo nenhum sentimento.

A Fera Sagrada era um tipo de fera mágica que nascia uma vez a cada poucas
centenas de anos. Não tinha nome próprio. Desde eras longínquas, só aparecia
quando o mundo enfrentava uma crise, e quando se tornava adulta partia ao lado
de um herói, usando seu grande poder para salvar o mundo.

Bem, ao menos era essa a lenda. Era por isso que a Fera Sagrada recebia uma
criação tão cuidadosa, bem no fundo do Vilarejo Doldia, em uma área restrita onde
havia uma grande árvore que chamavam de Árvore Sagrada. Então é claro que vivia
sendo protegida. Eles tomavam o cuidado de não expor o filhote ao mundo exterior,
do qual o animal pouco sabia. Ainda era um cão, então liberavam um tempo para
caminhar todos os dias.

Pelo visto, levaria mais cem anos até que a Fera Sagrada atingisse a idade
adulta. Se as histórias fossem verdadeiras, o mundo enfrentaria uma calamidade.
Nesse meio tempo, Laklana supervisionaria a proteção da Fera Sagrada. Quanto à
Árvore Sagrada, estava localizada além do caminho bloqueado que eu havia
visitado antes.

— Será que… Lorde Rudeus é o herói?

— Woof! — O filhote latiu.

A expressão de Laklana se transformou em choque.


— O quê?! O que você está dizendo?

Hm? Do que ela estava falando?

— Arf!

— Eu entendo, mas…

— Woof!

— Entendo…

Por que diabos você está falando com este cão como se estivesse tendo uma
conversa normal? pensei. Eu podia ouvi-lo latindo. Essa com certeza não era a
língua do Deus Fera. Como ela estava entendendo isso? Estava usando algum tipo
de tradução bilingual?

— A Fera Sagrada disse que você não é o único.

— Imaginei isso. — Embora eu desejasse que ela elaborasse melhor o que


falava.

— Mas pelo visto a Fera Sagrada é muito grata a você.

— Eh? Fiquei naquela cela o tempo todo, então imaginei que tinha se esquecido
de mim.

— Woof!

— Lamentável, ela disse, mas ela nos pediu para alimentá-lo com alguma
comida deliciosa. Mestre Rudeus, você gostou das refeições que fornecemos, sim?

De fato. A comida era no mínimo muito boa. E também pude repetir sempre que
quis. Realmente achei aquilo estranho, já que se tratava de uma prisão. Então foi a
Fera Sagrada que pediu aquele tratamento para mim? Usar a comida como forma
de gratidão soava exatamente como algo que um cão faria.

— Mas já que fizeram aquilo, eu teria gostado que tivesse me soltado de minha
cela.

— Woof! — (Ou, aparentemente, “O que é uma cela?”)

— Um lugar onde você prende pessoas más — expliquei.

— Arf! — (“Mas também estou preso.”)

Continuamos um pouco após isso, tendo uma conversa com Laklana como
nossa intérprete. Parecia que a Fera Sagrada não sabia todos os detalhes sobre o
que aconteceu. Isso incluía não ter consciência do cheiro de excitação que Gyes
alegava estar saindo de mim, ou por que o homem resolveu me levar sob custódia.
Também não parecia saber muito sobre que seu sequestro implicava, além de que
aquilo foi uma experiência aterrorizante. Em outras palavras, ainda era apenas uma
criança. Não era certo exigir reparações de uma criança, então desisti.

— Consegui passar o tempo de um jeito meio confortável, então estou grato. —


Diante de minha gratidão, abanou o rabo e lambeu meu rosto.

Heh heh, você com certeza é fofo, pensei enquanto acariciava seu pescoço,
apenas para ser empurrado para o chão. Aah, você não pode! Não onde as
pessoas possam nos ver…!

— Mestre Rudeus, esta é a maneira da Fera Sagrada mostrar respeito. Você


poderia, por favor, tentar conter seu afeto?

— Você está entendendo mal, o cheiro que está sentindo é minha excitação
por sua causa.

— Hã?!

— Foi rude da minha parte; desconsidere isso. — Merda, merda. Deixei meus
verdadeiros sentimentos escaparem.

— Ahem… Fera Sagrada, é hora de voltarmos para a Árvore Sagrada.

— Woof!

A fera obedientemente se virou para sair, como foi dito, e partiu sem uma única
reclamação.

Isso se tornou algo diário. Mas vamos manter em segredo entre nós que, alguns
dias depois, Laklana ficou incrivelmente chateada comigo quando tentei ensinar a
Fera Sagrada a se sacudir.

Só assim, sem nada terrivelmente agitado acontecendo, três meses se


passaram e a chuva parou.

Capítulo 10 - A Estrada da
Espada Sagrada
Um dia antes de deixarmos o Vilarejo Doldia, Eris e Minitona brigaram. Nem
seria necessário mencionar, tenho certeza, mas Eris ganhou facilmente. Claro que
sim. Afinal, conseguiu suportar até mesmo o treinamento de Ruijerd. Com a outra
pessoa sendo mais jovem e destreinada, dificilmente ofereceria algum desafio. Isso
estava mais para algo como o forte intimidando o fraco.

Achei que deveria ao menos alertá-la sobre isso. Eu sabia que Eris era esse
tipo de pessoa, mas ela logo faria quatorze anos. Embora tecnicamente ainda fosse
uma criança, quatorze anos era idade suficiente para não poder simplesmente sair
socando os outros sem motivos. Mas como eu iria fazer isso?

Nunca tinha interferido em nenhuma de suas lutas. Normalmente, deixava


Ruijerd lidar com ela e suas brigas na Guilda dos Aventureiros. Então, o que eu
poderia dizer neste momento? Deveria dizer que aventureiros e garotas dos vilarejos
eram coisas diferentes?

— N-não, a culpa é de Tona — disse Tersena em protesto.

Segundo ela, como a estação das chuvas havia acabado, Eris disse que ia
deixar a aldeia e Minitona tentou impedi-la. Eris ficou feliz com Minitona querendo
que ela ficasse, mas explicou que teria que continuar sua jornada, apontando para
o tanto que o pedido da garota era egoísta. Normalmente isso aconteceria ao
contrário.

Mas, após isso, continuaram conversando por algum tempo. No início, as duas
estavam calmas, mas a discussão logo azedou. Minitona começou a lançar insultos.
Inclusive direcionados a Ghislaine e eu. Eris parecia irritada, mas suportou tudo e
respondeu com calma.

No final, Minitona deu o primeiro soco. Foi ela quem tentou arranjar uma briga
com Eris. Isso exigia bastante coragem. Dei até alguns créditos a isso.
Definitivamente era algo que nem eu poderia fazer. Eris não recuou. Como
esperado, bateu em Minitona sem qualquer piedade, até ela virar polpa.

— Eris.

— O quê?!

Parei para reconsiderar a situação. Em primeiro lugar, Minitona deveria saber


que perderia a luta, mas ainda assim se irritou e começou a lançar insultos. Mesmo
depois de ser pulverizada, ainda não recuou. O melhor dos adultos era facilmente
destruído ao enfrentar Eris. Minitona devia ser muito obstinada.

— Você se conteve, não foi? — perguntei.

— Claro que sim — disse ela, virando-se. No passado, a garota nunca teria
mostrado misericórdia a alguém que a mostrasse os dentes, nem mesmo se fosse
uma criança. Eu sabia muito bem disso.

— Normalmente você seria mais cruel com essas coisas, não é?

— Sim, bem, ela é minha amiga.


Quando olhei para Eris, a garota parecia envergonhada, seus lábios até mesmo
formaram um beicinho.

Hm. Parecia que estava ao menos um pouco arrependida por ter socado
Minitona. Isso era algo que eu nunca tinha visto antes. Em três meses, talvez tivesse
ficado um pouco mais adulta. Ela estava amadurecendo sem que eu percebesse.
Nesse caso, havia apenas uma coisa a dizer.

— É melhor vocês se reconciliarem antes de partirmos amanhã.

— Não quero…

Continua uma criança, hein?

Estávamos ocupados nos preparando para nossa partida no próximo dia, então
não me encontrei com a Fera Sagrada. Em vez disso, recebi duas visitantes no meio
da noite.

— Ah! — Um gritinho acompanhou um estrondo alto.

Os dois sons foram suficientes para me acordar. Eu me levantei, ciente do


quanto havia baixado minha guarda ultimamente, e alcancei o cajado ao meu lado.
A aura do intruso era patética demais para ser um assaltante. E, de qualquer forma,
se fosse um, Ruijerd teria o notado muito antes. Isso tornou o silêncio do intruso
ainda mais bizarro.

— Tersena, tente ficar um pouco mais quieta, mew!

Abaixei meu cajado. Então foi por isso que Ruijerd não disse nada.

— Desculpe, Tona, mas está escuro.

— Se você apertar os olhos direito, pode conseguir ver, mew… Ah!

E outro som agudo de algo batendo soou.

— Tona, você está bem?

— Owie, mew…

As duas talvez estivessem tentando sussurrar, mas suas vozes eram altas o
suficiente para que eu pudesse as ouvir claramente. Qual era o objetivo delas?
Dinheiro? Fama? Ou estavam mirando o meu corpo?

Brincadeirinha. Eu sabia que queriam Eris.


— Ah, aqui, mew?

— Sniff, sniff… Não, isso não parece ser ela.

— Não precisa se preocupar, mew. Provavelmente estão dormindo, mew.

As meninas pararam na frente da minha porta e ouvi um clique quando


entraram. Cautelosamente, espiaram e olharam ao redor, apenas para travar os
olhos em mim quando me sentei na cama.

— Mew…!

— Algo errado, Tona? Ah…!

Eram Minitona e Tersena. Cada uma delas usava um vestido de couro liso com
uma abertura na parte traseira, onde suas caudas balançavam para fora. Essas
roupas de dormir peculiares do povo-fera eram realmente adoráveis.

Falei o mais baixo que pude:

— O que vocês estão fazendo aqui tão tarde da noite? O quarto de Eris fica ao
lado.

— D-desculpe, mew… — Tona se desculpou e começou a fechar a porta antes


de parar de repente. — Ah é, eu ainda não te agradeci, mew.

Hã, T-Tona?

Minitona falou como se tivesse acabado de lembrar de algo e deslizou para


dentro do quarto. Tersena a seguiu timidamente.

— Obrigada por nos salvar, mew. Disseram que eu poderia ter morrido se você
não tivesse lançado sua cura em mim, mew.

Provavelmente era verdade. Suas feridas eram muito graves. Pelo menos
graves o suficiente para que eu ficasse muito traumatizado se estivesse no lugar
dela. Achei sua atitude destemida impressionante.

— Sem problemas — falei.

— Graças a você, também não tenho nenhuma cicatriz, mew. — Ela enrolou a
bainha do vestido, revelando as pernas nuas. Estava escuro o suficiente para que
eu não pudesse ver o que havia entre elas. Lady Kishirika, por que você não tinha
olhos de demônio que pudessem ver no escuro?

— Tona, isso é impróprio…!

— Não é como se ele não tivesse visto antes, então está tudo bem, mew.
— Mas o Tio Gyes disse que os homens humanos têm uma longa temporada
de acasalamento, então, se não os abordar com cautela, pode ser atacada.

Uma longa temporada de acasalamento? Isso era algo rude a se dizer. Mas não
é como se fosse mentira.

— Além disso, se ele ficar excitado olhando para o meu corpo, então é uma boa
maneira de eu agradecer… mew?! Que frio!

— Isso é porque você continua erguendo sua roupa!

Naquele ponto, eu nem estava focando nas pernas de Minitona. Um suor frio
desceu pelas minhas costas enquanto eu enrolava meus dedos em torno do cajado
que deveria estar deitado ao meu lado. Uma intenção cruel e assassina exalava do
quarto vizinho.

— A-ahem. Vou aceitar sua gratidão. Eris está no quarto ao lado do meu, então
sigam em frente.

Isso mesmo, não importava se ela era uma criança. Não deveria ter mostrado
seu corpo com tanta falta de cuidado assim. Afinal, causaria sérios problemas se
fosse agredida por algum velho doente tentando brincar de médico.

— Certo. Mas, sério, obrigada, mew.

— Obrigada — disse Tersena. As duas se curvaram e saíram do quarto.

Depois de alguns momentos, atravessei o cômodo na ponta dos pés e encostei


o ouvido na parede. Eu podia ouvir a voz mal-humorada de Eris no quarto vizinho
quando ela disse:

— O que vocês querem?

A imaginei em sua pose usual, com os braços cruzados sobre o peito. As vozes
de Minitona e Tersena estavam um pouco difíceis de ouvir. Ou talvez a voz de Eris
é que fosse muito alta. Escutei ansiosamente, mas sua voz foi ficando mais calma.
Parecia que as coisas ficariam bem. Aliviado, voltei para a minha cama.

As três meninas passaram a noite inteira conversando. Quanto ao que


conversaram, eu não fazia ideia. Minitona e Tersena estavam longe de ser mestras
na língua humana. Eris tinha aprendido um pouco da língua do Deus Fera, mas não
o suficiente para manter uma conversa. Me preocupei sobre realmente terem
resolvido as coisas ou não, mas quando chegou a hora de se separar no dia
seguinte, Eris segurou a mão de Minitona e tinha lágrimas nos olhos quando se
abraçaram. Parecia que, no final, foram capazes de se reconciliar. Fiquei contente.
A Estrada da Espada Sagrada era uma estrada que passava direto pela Grande
Floresta. Feita há muito tempo pelo País Sagrado de Millis, estava repleta de mana.
Mesmo com a área ao redor inundada, a estrada permanecia seca e intocada. Pelo
visto, nenhum monstro seria capaz de colocar os pés nela. Nós três estaríamos
usando a carruagem puxada por cavalos que recebemos da tribo Doldia para viajar
por aquela estrada, rumo ao sul.

O povo-fera preparou tudo o que poderíamos precisar em nossa viagem. A


carruagem, o cavalo, o dinheiro para viagens e suprimentos. Poderíamos ir direto
para a capital de Millis sem nem retornar a Porto Zant.

Era hora de partir! Ou pelo menos deveria ser, quando por algum motivo um
homem com cara de macaco se aproximou de nós.

— Ah, cara, este é o momento perfeito. Estava pensando em voltar para Millis.
Deixa eu ir com vocês — disse Geese, puxando-se descaradamente para dentro.

— Ah, é você, Geese.

— Você também vai?

Os outros dois não pareciam tão irritados com sua presença quanto eu. Quando
perguntei se o conheciam, a resposta deles mostrou que estavam gradualmente
começando a gostar do sujeito sem que eu percebesse. Isso incluía se aproximar
de Eris, Minitona e Tersena e contar piadinhas engraçadas. Ele também se juntou a
Gustav e Ruijerd durante suas conversas, onde ajustou sua maneira para se
adequar ao tom da conversa. O homem realmente tinha uma fala mole e era hábil
na manipulação. Conseguiu se enturmar com os dois facilmente, sem que eu
percebesse nada. E ambos o receberam de braços abertos. O quê, estavam me
traindo com Geese?!

— Então tá bom, vamos indo! — declarou Ruijerd quando a carruagem


começou a andar.

Acenamos um adeus ao povo-fera que se reuniu para ver nossa partida. Foi um
pouco comovente ver Eris com lágrimas nos olhos enquanto observava Minitona e
os outros.

Ainda assim, algo pesava em meu coração e era tudo culpa de Geese. Se ele
queria ir junto, deveria ter me contado desde o começo. Não havia necessidade para
agir de forma suspeita e se esgueirar pelas minhas costas. Eu não teria o recusado
se me pedisse categoricamente. Depois que comemos a mesma comida e pegamos
as pulgas um do outro, parecia que estávamos nos distanciando.

— Ei, ei, chefe. Não me olhe assim. Somos amigos, certo?

Geese devia ter notado a expressão de descontentamento que eu sem dúvidas


mostrava quando estávamos sentados na carruagem, descendo a estrada a uma
velocidade impressionante. Ele sorriu para mim e se inclinou perto do meu ouvido.
— Pode não parecer, mas tenho confiança em minhas habilidades como
cozinheiro, basta você observar!

Ele tinha um rosto encantador e também não era um cara mau. Mesmo assim,
desde o incidente com Gallus, tive a sensação de que havia algo mais sombrio por
trás de tudo isso.

— Rudeus.

— Sim, Senhor Ruijerd?

— Quem se importa se ele vier junto? — disse.

— Mestre Ruijerd! — exclamou Geese. — Eu sabia que você entenderia! Ahh,


isso só confirma o que eu pensava sobre você. Você realmente é um homem entre
os homens!

— Tem certeza disso, Senhor Ruijerd? — perguntei. — Este homem é um


daqueles criminosos que você tanto odeia.

— Ele não me parece tão ruim.

Eu não tinha ideia de qual era o método que Ruijerd adotava para medir esses
casos. A companhia de Geese era até boa, mas os padrões indefinidos de Ruijerd
eram um problema. Não, talvez tudo isso fosse resultado da conversa mole do
sujeito. O macaco bastardo com certeza tinha feito um bom trabalho.

— Heh heh. Eu gosto de apostar, mas acho que nunca fiz nada
verdadeiramente desprezível para os outros. Mestre Ruijerd, você tem um bom olho
para as pessoas.

Francamente, eu tinha uma dívida com esse homem. Ele me deu seu colete
quando eu estava com frio e também me ajudou durante a luta com Gallus. Eu não
tinha certeza do que ele estava planejando, mas não tinha motivo para o afastar.
Estava um pouco irritado com seus métodos indiretos, isso é tudo.

— Não me importo se você vier conosco, novato. Mas tem certeza de que não
tem medo de um Superd? — Falei alto o suficiente para que Ruijerd pudesse ouvir.
Eu ainda não tinha certeza se ele sabia que Ruijerd era um Superd, mas se
participou de suas bebedeiras, podia muito bem ter ouvido sobre isso. Só não queria
que descobrisse mais tarde e reclamasse sobre como era assustador estar com um
Superd.

— É claro. Você achou que eu não teria? Afinal, sou um demônio. Tenho ouvido
sobre como os Superds são assustadores desde quando era criança.

— Ah, sério? Sabe, Ruijerd pode não parecer, mas é um Superd.

Quando Geese ouviu isso, ele apertou os olhos.


— Isso é diferente. Ele salvou minha vida.

Curioso para saber o que isso significava, virei meu olhar para Ruijerd, mas ele
apenas balançou a cabeça como se não tivesse ideia do que Geese estava falando.
Era, no mínimo, algo que aconteceu bem antes dos últimos três meses.

— Acho que você não se lembra, hein? Bem, claro, foi há uns trinta anos.

Geese então iniciou sua explicação. Foi uma história épica que incluiu um
encontro inicial, uma despedida, um clímax e uma cena de amor. Quando um herói
incrivelmente bonito e durão disse que ia partir em uma jornada, centenas de
mulheres imploraram para que ele não fosse. O sujeito saiu de sua cidade natal,
apesar de seus apegos persistentes a ela e encontrou uma misteriosa beldade
quando chegou ao seu destino.

Para resumir o que de outra forma seria uma longa história, quando Geese
ainda era um aventureiro novato, Ruijerd interveio para salvá-lo quando foi atacado
e quase morto por um monstro.

— Bem, foi há uns trinta anos. Eu particularmente não sinto que exista qualquer
dívida — disse Geese. A tribo Superd era assustadora, mas Ruijerd era diferente,
disse o novato com cara de macaco, rindo.

O Superd relaxou ao ouvir isso. Senti que, logo após ouvir essa história, entendi
o significado da palavra karma. Bom para você, Ruijerd, pensei.

— Bem, espero que me deixe ficar com você por um tempo, Senpai ☆

E foi assim que o Fim da Linha ganhou um novo membro com uma cara de
macaco… Espera aí, ele não era um novo membro. Só ficaria conosco até
chegarmos à próxima cidade, lembrei. Geese alegou que era azarado – sempre que
entrava em um grupo de quatro, algo terrível acontecia. Eu não tinha palavras para
mencionar o azar que ficar na mesma cela que ele foi. Em qualquer caso, estava
tudo bem se não fosse se juntar ao nosso grupo.

Foi assim que partimos em nossa jornada com um viajante extra nos
acompanhando.

A carruagem nos carregou por um caminho contínuo que cortava a Grande


Floresta. Era realmente uma estrada reta, que se estendia sem parar pelo horizonte,
continuando até a capital do País Sagrado. Não havia um único monstro, e a água
foi drenada para fora do caminho.

Eu estava desconfiado sobre como esse caminho foi feito, mas Geese me
explicou. Esta rodovia foi criada por Santo Millis, o fundador da fé Millis, a maior
denominação religiosa do mundo. Com um único golpe de sua espada, Santo Millis
cortou as montanhas e as florestas ao meio, dividindo até um rei demônio no
Continente Demônio em dois. A estrada foi batizada de Estrada da Espada Sagrada
tendo essa história em mente.

Por mais que eu quisesse descartar a história com ceticismo, a mana de Santo
Millis ainda permanecia. O fato de não termos encontrado nenhum monstro até o
momento era prova disso. A carruagem também não ficou presa na lama.
Estávamos viajando tranquilamente. Isso não era nada menos do que um milagre.

Agora eu podia entender o motivo pelo qual sua religião tinha tanto poder. Ao
mesmo tempo, temia o possível impacto negativo que muita mana poderia causar
ao corpo. Mana era uma coisa útil, mas em abundância poderia ser aterrorizante.
Ela também poderia fazer coisas terríveis, como transformar animais em monstros
e transportar crianças do Continente Central para o Continente Demônio. Embora,
neste caso, não ser atacado por monstros tornava nossa jornada mais fácil.

Havia intervalos fixos ao longo da rodovia onde seria possível acampar. Foram
neles que passamos nossas noites. Ruijerd iria caçar algo na floresta para o jantar,
então não sofríamos com falta de comida. Às vezes, pessoas-fera de algum
assentamento próximo apareciam para vender seus produtos, mas não tínhamos
necessidade de suprimentos adicionais.

Havia também uma grande abundância de plantas, como era de se esperar de


uma floresta. As flores que poderiam ser usadas como especiarias cresciam em
grande quantidade à beira da estrada. Usei o que aprendi na Enciclopédia de
Plantas que li quando era criança e juntei alguns ingredientes para temperar nossa
comida. Eu não era um cozinheiro muito habilidoso, mas havia melhorado um pouco
no ano passado, embora só tivesse ido de terrível para menos terrível.

A Grande Floresta fornecia ingredientes de qualidade muito mais alta do que o


Continente Demônio. Não apenas em termos de feras, mas também de animais
normais. Os coelhos e javalis tinham um sabor delicioso quando assados, mesmo
sem temperos, mas não era o suficiente para mim. Já que tínhamos os ingredientes
disponíveis, queria comer pratos mais saborosos. Fiquei ganancioso como sempre
em minha busca por boa comida.

Foi aí que Geese entrou. Exatamente como havia declarado, ele era um mestre
em cozinhar ao ar livre. A maneira como pegava as nozes e a grama selvagem que
eu colhia e as transformava em temperos era como feitiçaria, injetando os sabores
mais deliciosos em nossa comida.

— Eu te falei. Posso fazer qualquer coisa!

Essa também não era uma declaração vazia. A carne estava realmente
deliciosa.

— Surpreendente; me segure! — Joguei meus braços em volta dele sem nem


pensar muito. Geese ficou enojado com isso. Até eu fiquei enojado com isso. Nossos
sentimentos eram mútuos.
— Estou entediada — murmurou Eris enquanto preparávamos nossa refeição
diária, como de costume.

Coletor de Ingredientes: Ruijerd

Produtor de Fogo e Água: Eu

Cozinheiro: Geese

Nossa atribuição de trabalho era tão precisa que não havia nada para Eris fazer,
exceto coletar lenha, mas ela terminava tudo rápido demais. Assim sendo, acabava
entediada.

No início, treinava com sua espada e ficava em silêncio. Depois de ser forçada
por mim e Ghislaine a praticar exercícios repetitivos, poderia continuar brandindo
sua espada por horas. Entretanto, não era como se ela achasse isso divertido.

No momento, Ruijerd estava caçando, Geese estava preparando sopa e eu me


acomodei para continuar trabalhando em minha estatueta. A figure de Ruijerd em
escala 1:10 estava demorando um pouco para ser concluída, mas eu tinha certeza
de que poderia vendê-la. Adicionaria opções a ela para inclusive aumentar seu valor.
Usando isso, mostraria às pessoas que os Superds não deveriam ser atacados e,
em vez disso, poderiam se tornar amigos.

Deixando isso de lado, Eris estava achando seu tédio incontrolável.

— Ei, Geese!

— Algo de errado, Senhorita? A comida ainda não está pronta. — Ele provou
um pouco da sopa antes de olhar para ela.

Eris estava em sua pose usual, com os braços cruzados e as pernas abertas.

— Ensine-me a cozinhar!

— Passo. — Sua resposta foi instantânea. Geese voltou a cozinhar como se a


conversa nunca tivesse acontecido.

Eris ficou pasma por um momento, mas se recuperou rapidamente e gritou:

— Por que não?!


— Porque eu não quero.
— Então por que não?!

Geese soltou um enorme suspiro.

— Certo, Senhorita. Tudo o que uma espadachim precisa saber fazer é lutar.
Cozinhar é perda de tempo. Tudo o que você precisa fazer é comer.

Este era um homem cujas habilidades culinárias iam além de sua mentalidade
de “apenas comer”. Ele poderia abrir seu próprio restaurante. O sujeito não era tão
bom a ponto de fazer o queixo de um certo rei gourmet cair e ter um feixe de luz
saindo de sua boca, mas era pelo menos bom o suficiente para que seu restaurante
fosse moderadamente popular por toda a vizinhança.

— Mas, se eu pudesse cozinhar… hum… bem, você sabe, certo? — Ela hesitou
em explicar, jogando olhares em minha direção.

O que é isso, Eris? O que você quer dizer? Heh heh, vá em frente e diga, a
incitei comigo mesmo.

— Não, nem imagino. — Geese estava sendo frio com ela. Eu não tinha certeza
do porquê, mas ele estava sendo excepcionalmente inflexível. O cara não era assim
em relação a Ruijerd ou a mim, mas sempre soava distante quando interagia com
Eris. — Você é habilidosa com a espada, não é? Então não precisa aprender a
cozinhar.

— Mas…

— Poder lutar é uma coisa maravilhosa, sabe? Se você quer viver neste mundo,
não há nada mais essencial do que isso. Não desperdice seu talento.

O rosto de Eris ficou sombrio, mas ela não tentou socar Geese. Havia algo
estranhamente persuasivo no que ele disse.

— Esse é o meu motivo oficial. — O homem-macaco assentiu consigo mesmo


e parou de mexer na panela. Ele então começou a encher as tigelas de pedra que
eu fiz. — Veja, decidi que nunca mais ensinaria alguém a cozinhar.

Geese já havia participado de um grupo de ataque a masmorras. Era um grupo


de seis, um bando não qualificado que, ao contrário dele, tinha apenas um papel a
cumprir. Na época, Geese tinha o hábito de reclamar: “Ei, sério, vocês não sabem
fazer mais nada?” O grupo deles não era convencional, mas era eficaz ao fazer as
coisas.

Porém, um dia, uma mulher do grupo se aproximou de Geese e disse que queria
aprender a cozinhar. Ela queria ir atrás de um dos homens do grupo. É claro que o
ditado “O caminho para o coração de um homem é pela boca” também existia neste
mundo. Geese respondeu com “Claro, acho, por que não?” e começou a ensiná-la.

Não ficou claro se a culinária teve alguma coisa a ver com o que aconteceu
depois, mas a mulher ficou com o homem e os dois se casaram algum tempo depois.
Então deixaram o grupo e foram para algum lugar. Tudo bem, disse Geese. Houve
uma briga quando os dois foram embora, mas a partida não foi um problema.

O que aconteceu depois é que foi horrível. Quando as duas pessoas mais
importantes foram embora, o grupo começou a debandar. Tornou-se um turbilhão
de disputas e apatia, tanto que não podiam mais realizar missões e logo se
dispersaram por completo.

Geese, entretanto, era um homem que podia fazer qualquer coisa. Ele não tinha
talento para a espada ou magia, mas podia fazer todas as outras coisas. É por isso
que pensou que logo encontraria um novo grupo. Mas seu esforço acabou
resultando em um fracasso esmagador. Na época, ele era um aventureiro bastante
conhecido, mas nenhum grupo o pegou.

Geese podia fazer qualquer coisa. Qualquer coisa que qualquer outro
aventureiro poderia fazer. Em outras palavras, esse era o problema. Outras pessoas
também podiam fazer aquilo que ele fazia. Se um grupo fosse bem classificado,
dividiriam essas tarefas servis entre seus próprios membros.

Foi então que ele percebeu que o grupo em que estava antes era o único lugar
ao qual pertencia. Percebeu que só era quem era porque todos eram muito
inabilidosos. Depois disso, Geese se aposentou prematuramente de sua carreira de
aventureiro. Agora vivia das apostas.

— E é por isso que me recuso a ensinar as mulheres a cozinhar.

Mais uma má sorte para adicionar ao seu nome. Embora, se me perguntassem,


as “más sortes” de Geese não passavam de um monte de lixo. Eu não via qualquer
problema em ensiná-la a cozinhar. A sopa estava deliciosa. Era só provar e parecia
que um jazz começava a tocar em sua boca. Ficou tão boa que eu quis que ele
também me ensinasse a fazer, então corri para ajudar.

— Entendo que algo terrível te aconteceu, novato, mas você ajudou aquela
mulher a conquistar a felicidade dela, não foi? — perguntei, com a nuance adicional
de “Então, por que não vai em frente e ensina Eris?”

Geese balançou a cabeça.

— Não sei. Nunca mais a vi. — Ele soltou uma risada auto-depreciativa. — Mas
o homem não ficou feliz.

Então talvez fosse essa a razão da má sorte. Não pude dizer nada depois disso,
não depois de ver o olhar deprimido no rosto dele. A sopa, que deveria estar
deliciosa, de repente não estava mais tão gostosa.

Me perguntei quanto tempo demoraria até que Ruijerd voltasse.


Um dia encontrei um curioso monumento de pedra na beira da estrada, justo
onde paramos para descansar. Ele chegava aos meus joelhos e tinha um desenho
estranho em uma parte. Um único caractere estava inscrito ali, com sete padrões ao
seu redor. Eu tinha certeza de que o caractere era a palavra “sete” na língua do
Deus Lutador. Quanto aos outros padrões, parecia que já os tinha visto antes.

Decidi perguntar a Geese.

— Ei, novato, o que é este monumento aqui?

Ele analisou e balançou a cabeça assim que reconheceu.

— Esses são os Sete Grandes Poderes.

— Os Sete Grandes Poderes? — repeti.

— Refere-se às pessoas mais fortes deste mundo… sete guerreiros.

A história conta que, quando a segunda Grande Guerra Demônio-Humano


terminou, uma pessoa conhecida como o Deus da Técnica surgiu com esse nome.
Na época, o Deus da Técnica era considerado uma das pessoas mais fortes do
mundo. Selecionaram sete pessoas (incluindo eles mesmos) e as declararam as
mais fortes do mundo. Este monumento era uma forma de imortalizar quem eram
essas pessoas.

— Acredito que Mestre Ruijerd sabe mais sobre isso. Mestre Ruijerd! —Geese
gritou e o Superd, que estava treinando nas proximidades com Eris, se aproximou.
A garota caiu de costas no chão com as pernas e os braços bem abertos, tentando
controlar a respiração.

— “Os Sete Grandes Poderes”, hein? Isso traz várias memórias de volta. —
Seus olhos se estreitaram enquanto examinava o monumento.

— Então você sabe sobre isso? — perguntei.

— Treinei muito quando era jovem, então um dia um dos “Sete Grandes
Poderes” me quis como estudante. — Ruijerd olhou para longe enquanto falava.
Muito, muito longe… Espere, afinal de contas, para quão longe no passado ele
estava olhando?

— O que é esse padrão?

— São os padrões de cada um. Eles apontam seus sete nomes. — Ruijerd
apontou para cada um e me disse seus nomes.

Os sete eram (em ordem de hierarquia):

Número Um – Deus da Técnica;

Número Dois – Deus Dragão;


Número Três – Deus Lutador;

Número Quatro – Deus Demônio;

Número Cinco – Deus da Morte;

Número Seis – Deus da Espada;

Número Sete – Deus do Norte.

— Hmm. Mas eu nunca tinha ouvido falar sobre os Sete Grandes Poderes. —
falei.

— O título era bem conhecido até a Guerra de Laplace.

— Por que caiu em desuso?

Ruijerd explicou:

— A Guerra de Laplace trouxe grandes mudanças. Metade dos listados sumiu.

Aparentemente, com exceção do Deus da Técnica, os Sete Grandes Poderes


haviam todos participado da Guerra de Laplace. Entre eles, três morreram, um
desapareceu e outro foi selado. O único que conseguiu sair ileso foi o Deus Dragão.
Depois de várias centenas de anos, com a troca da base dos mais fortes, isso
acabou caindo em desuso. Atualmente, o paradeiro dos quatro primeiros era
desconhecido.

DEUS DA TÉCNICA: Desaparecido

DEUS DRAGÃO: Desaparecido

DEUS LUTADOR: Desaparecido

DEUS DEMÔNIO: Selado

Não era um bom sistema de classificação, já que os mais fortes estavam


ausentes. Foi por isso que o título “Sete Grandes Poderes” caiu em desuso e sumiu
da memória das pessoas… ou ao menos era o que parecia.

A propósito, o motivo pelo qual o Deus Demônio não foi removido dessa
classificação foi porque não estava morto; apenas selado.

— Será que quantas pessoas daquele tempo continuam vivas?

— Quem sabe — disse Ruijerd. — Mesmo quatrocentos anos atrás, as pessoas


duvidavam que o Deus da Técnica realmente existisse.

— Para começo de conversa, por que o deus da Técnica criou essa lista? —
perguntei.
— Difícil de dizer. Foi dito que criou isso para que pudessem encontrar pessoas
capazes de derrotá-los, mas eu não sei.

Era quase como o Ranking Fukamichi.

— Bem, é um monumento bem antigo, então talvez as classificações tenham


mudado — murmurei.

Geese balançou a cabeça.

— Ouvi dizer que o monumento muda por si mesmo usando magia.

— Hã? Isso é sério? Que tipo de magia?

— Como se eu soubesse.

Então, aparentemente, o monumento atualizava a exibição de classificação por


conta própria. Gostaria de saber como isso acontecia. Ainda havia tantos tipos de
magia neste mundo com os quais eu não estava familiarizado. Eu me perguntei se
aprenderia mais sobre esses tipos de magia quando fosse para a universidade.

Deixando isso de lado, os Sete Grandes Poderes, hein? E pensei que o mundo
já tinha suficiente gente ridiculamente forte. Parecia que eu realmente não poderia
chegar aos melhores deles. Mas, claro, não era como se pretendesse ser um dos
mais fortes do mundo. Na verdade, decidi que seria melhor não me preocupar com
isso.

Levamos um mês para sair da Grande Floresta. Mas era aquilo… foi só um mês
e saímos. Era uma estrada completamente reta sem um único monstro. É por isso
que conseguimos dedicar nosso tempo inteiramente à viagem.

Bem, essa era ao menos uma das razões. A outra era porque nossos cavalos
eram extremamente eficientes. Os cavalos deste mundo tinham uma resistência
insana. Eles podiam correr por dez horas diretas, sem qualquer descanso, e então
voltar a fazer isso no dia seguinte. Talvez usassem algum tipo de magia, mas, de
qualquer forma, saímos da floresta sem problemas.

Quanto aos acidentes, o único que tivemos durante a viagem foi com minhas
hemorróidas. É claro que não contei a ninguém e as curei em segredo usando magia
de cura.

Eris passou o tempo todo em pé no topo da carruagem, alegando que fazia


parte de seu treinamento. Eu disse para parar porque era perigoso, mas ela apenas
bufou e resmungou que não era, que era para treino de equilíbrio. Tentei fazer o
mesmo, mas no dia seguinte minhas pernas e quadris tremeram de tanta agonia.
Isso fez um novo respeito pela garota surgir.

Logo após as Montanhas Wyrm Azul, havia uma estação de descanso situada
em uma pequena cidade na entrada de um vale. Era comandada por anões. Não
havia Guilda dos Aventureiros. Era famosa por ser uma cidade de ferreiros, com
armeiros e armadureiros alinhados lado a lado.
Geese me disse que as espadas vendidas no local eram baratas e de boa
qualidade. Eris parecia melancólica, mas não tínhamos dinheiro sobrando para
gastar com nada. Além disso, sem dúvida precisaríamos de um bom dinheiro para
levar um Superd de Millis para o Continente Central. Convenci a garota a não
comprar nada, alegando que não poderíamos pagar por gastos desnecessários.
Bem, de qualquer forma, a espada que ela estava usando não era ruim.

Ainda assim, eu era um homem. Não importava quantos anos eu tivesse por
dentro, ver espadas e armaduras robustas alinhadas assim ainda fazia meu coração
disparar, embora minha idade (e aparência) parecesse importar para um vendedor
que riu de mim, dizendo: “Eu não acho que isso serviria para você, criança.” Ele
ficou surpreso quando, depois, descobriu que na verdade eu era de nível
intermediário no Estilo Deus da Espada. Bem, de qualquer forma, não tínhamos
dinheiro, então eu só estava bisbilhotando.

De acordo com Geese, era neste ponto que a estrada divergia. Se seguisse
pelo caminho da montanha para o leste, encontraria uma grande cidade de anões.
A nordeste estavam os elfos e a noroeste a vasta terra que os hobbits habitavam.
Talvez a falta de uma Guilda dos Aventureiros nesta cidade fosse por uma questão
de localização.

Além disso, pelo visto, se entrasse nas montanhas, haveria uma fonte termal.
Uma fonte termal! Isso sim chamou a minha atenção.

— O que diabos é uma “fonte termal”? — Eris exigiu saber.

— É quando tem água quente brotando da montanha — expliquei. — É muito


bom para tomar um banho.

— Ah, é? Isso parece interessante. Mas, Rudeus, essa não é a sua primeira
vez vindo aqui? Como sabe disso?

— E-eu li em um livro.

Isso estava escrito no guia Peregrinando pelo Mundo? De alguma forma, senti
que não. Ainda assim, era uma fonte termal. Isso parecia bom. Mas este mundo
certamente não teria yukatas. Ainda assim, imaginando Eris com seu cabelo
molhado e sua pele cor de pêssego, inconsciente do que estaria acontecendo
enquanto submergia na água quente…

Não, provavelmente não teriam algo como um banho misto. Ou teriam? Mas,
no caso de ter, o quanto isso não seria incrível? Agora realmente queria dar uma
olhada.

Enquanto estava ocupado debatendo o assunto em minha cabeça, Geese fez


sua já esperada oposição.

— A estação das chuvas acabou de terminar, então as montanhas estarão uma


bagunça. — Levaríamos muito tempo para chegar lá, já que não estávamos
acostumados a atravessar as montanhas.
E então, desisti de ir para a fonte termal. Que chatice.

A Estrada da Espada Sagrada se estendia pelas Montanhas Wyrm Azul. Seu


caminho dividia a cordilheira em duas, criando um espaço largo o suficiente para
duas carruagens puxadas por cavalos passarem uma ao lado da outra. Era uma
ravina, mas graças à proteção divina de Santo Millis, raramente acontecia algum
deslizamento de pedras. Se esse caminho não existisse, teríamos que seguir um
mais tortuoso, viajando para o norte.

Embora dragões azuis fossem raros de se ver pelas montanhas, ainda havia
muitos monstros. Tentar passar por elas representaria um perigo considerável. Em
vez disso, Millis criou um atalho direto por onde os monstros não apareceriam. Eu
podia ver porque esse santo era tão adorado.

Atravessamos o vale em três dias, completando nossa longa e árdua jornada


para fora da Grande Floresta. Saímos de lá direto para o País Sagrado de Millis.
Finalmente havíamos retornado ao domínio dos homens, fato que fez meu coração
pular enquanto continuava minha jornada.
Capítulo Extra -
Guardião Fitz

Quando percebeu o que estava acontecendo, ele estava no meio do ar.

— Hein?!

O vento imediatamente engoliu seu grito de descrença.

Ele estava bem lá no alto. Podia sentir que estava caindo rapidamente. A força
do vento tornava o ato de respirar mais difícil. Ele estava perfurando as nuvens
enquanto o vento o perfurava.

— Eek!

Mas podia ouvir o grito saindo do fundo de sua garganta. Era o seu grito, mas
parecia tão distante que parecia que era outra pessoa que estava gritando. O grito
o lembrou de que isso era a realidade. Não sabia porque, mas estava no ar e caindo.

— Ah… ah!

Precisava fazer alguma coisa. Tinha que fazer algo ou iria morrer. Sim, morrer.
Não havia dúvida de que morreria. Se alguém caísse de algum lugar tão alto, então
morreria. Ele já sabia disso. Também sabia que estava se aproximando do solo
rapidamente.

— Waaaaaah!

Então sucumbiu ao medo e liberou toda a sua mana. E vento. Ele começou a
liberar vento. Parecia que isso estava atingindo-o por baixo. Quem foi que lhe
ensinou que um pássaro surfa pelo vento para voar no céu? Não conseguia se
lembrar.

A velocidade de sua queda diminuiu por um momento, depois voltou


rapidamente ao ritmo anterior. A magia do vento não iria cortá-lo. Pássaros podem
até usar o vento para voar no céu, mas não importa quanto vento se coloque sob os
humanos, eles não poderiam voar. Alguém o ensinou isso. Quem? Também não
conseguia se lembrar disso.
O que deveria fazer em uma situação como essa? Seu professor havia lhe
contado algo. Seu professor lhe ensinou muitas coisas. O que foi que ele disse
mesmo?

Pense, pense, murmurou para si mesmo.

Seu professor disse algo sobre… como voar? Isso mesmo, sobre como era
impossível. Não era possível voar – humanos não podem voar. Seria necessário
usar algo para fazer isso. Seu professor já havia tentado voar antes. Tentou, falhou
e colocou algo macio no chão, algo macio onde pudesse cair.

Era isso! Algo para suavizar a queda. Algo macio. Algo macio para o segurar.
Mas quão macio deveria ser? Como deveria fazer isso?

Não sei, não sei, não sei! gritou em sua cabeça. O que eu faço, o que eu faço,
o que eu faço?!

Ele conjurou água e tentou envolvê-la em torno de si. Não funcionou. Ela logo
se espalhou. Conjurou o vento e tentou se fortalecer novamente. Isso falhou. Não
iria funcionar. Conjurou a terra… mas não tinha certeza de como usá-la! Conjurou
fogo e… vento… e água? Terra? Não sabia. Simplesmente não sabia de mais nada!

— Aaah!

Caiu de cabeça.

— Waaaah! — Um menino de cabelo prateado gritou enquanto puxava seu


corpo para cima e para fora da cama.

Ele tinha cerca de dez anos de idade e suas feições juvenis estavam
contorcidas de medo.

— Hah, hah, hah… — Respirou fundo e começou a dar tapinhas em seu corpo.
Suas mãos agarraram punhados de cabelo prateado, com força suficiente para
arrancá-los. Ele estava verificando se seu corpo ainda estava inteiro. — Ah…? Hein?
— Quando olhou em volta, percebeu que não estava mais no céu. Estava em uma
cama macia. — Hah… — O menino cobriu o rosto com as mãos e soltou um suspiro
de alívio.

— Ei, Fitz, tudo bem? — Uma voz o chamou de cima. Outro garoto estava
pendurado de cabeça para baixo, olhando para Fitz da cama acima. Esse outro
jovem estava no auge da idade adulta. Era bonito o suficiente para cativar qualquer
pessoa que olhasse para ele, ou assim afirmava. Seu nome era Luke. — Você
estava fazendo muito barulho enquanto dormia. Teve aquele sonho de novo?
— Ah, sim… — O menino, conhecido como Fitz, balançou a cabeça vagamente
em resposta. De repente, percebeu que a área de sua virilha parecia estranha.
Curioso, olhou para baixo para descobrir que estava molhado.

Quando investigou mais, descobriu que encharcou não apenas a parte inferior
de sua roupa de dormir, mas também seus lençóis. Conseguia ver até o vapor
subindo.

— Ah…! — Aturdido, Fitz tentou puxar as cobertas para esconder a bagunça


de Luke, mas já era tarde demais. Com o cenho franzido, o jovem viu o que ele fez.
— Wah… waah… —Seu estado estava lamentável, com lágrimas nos olhos,
enquanto olhava para Luke. — E-eu sinto… muito…

— Não me peça desculpas. — Luke desceu da cama e soltou um suspiro


enquanto coçava a cabeça. — Ninguém vai te culpar.

— M-mas, eu já sou velho o suficiente… e ainda estou… ainda, bem, me


molhando assim…

— Você não é o único que teve uma experiência terrível naquele dia. — Luke
encolheu os ombros ao dizer isso, mas tinha uma expressão séria no rosto. Seu tom
era totalmente sincero. — Além disso, há muitos caras aqui que sujam os lençóis à
noite. As empregadas estão acostumadas. Agora se apresse, troque de roupa e
entregue as camisas ao encarregado da lavagem. Lady Ariel está esperando por
nós. — Assim que Luke terminou de falar, saiu do quarto.

Fitz enxugou as lágrimas e rastejou para fora da cama, pegando os óculos


escuros da mesa próxima e os colocando no rosto.

Ele foi vítima do incidente que dizimou a Região de Fittoa. Foi transportado para
o ar, cem metros acima do solo. Como qualquer outra pessoa, Fitz não era exceção
à lei da gravidade, então caiu.

A única coisa incomum nele era que era um mago. E não apenas um mago
qualquer. Ele podia ter apenas dez anos, mas teve um professor excepcional e
estava pelo menos no nível intermediário em todas as escolas de magia, avançado
em várias e podia lançar feitiços não verbais.

Ele lutou enquanto estava no ar. Antes de chegar ao solo, conseguiu diminuir a
velocidade de sua queda e milagrosamente só quebrou as duas pernas ao pousar
no chão (colidir, na verdade). Sua mana foi completamente drenada e acabou
inconsciente.

Fitz acordou e descobriu que havia perdido tudo. Sua cidade natal, sua casa,
sua família. Ele ainda era tão jovem e em um instante se tornou um ninguém. Não
tinha para onde ir e ninguém em quem confiar, exceto a mulher cujo olhar ele
capturou, Ariel Anemoi Asura. Ela viu a maneira como Fitz usava magia livremente
sem quaisquer encantamentos, então o empregou. Depois disso, começou sua vida
no palácio real como guardião da segunda princesa.

— Mmmmhh… Ah, Luke e Fitz, bom dia.

Seu trabalho como guardião começava despertando Ariel. Ele a acordava em


um horário específico todas as manhãs. Normalmente, esse seria o trabalho de uma
dama de companhia, mas a princesa havia enfrentado tantas tentativas de
assassinato desde que era criança que a responsabilidade agora cabia a um de
seus guardiões, Luke ou Fitz. Ele só foi incumbido do dever quando ela soube que
se tratava de um residente de fora do palácio e não estava envolvido com nenhum
dos nobres que considerava inimigos.

— Bom dia, Lady Ariel.

Acordar mais tarde do que a princesa seria o suficiente para justificar uma
punição severa. Ou pelo menos deveria, mas Fitz tinha acordado depois de Ariel
várias vezes e nunca foi disciplinado.

— É uma bela manhã, não é? Luke, quais são os planos para hoje? — Ariel
esticou o corpo e saiu da cama, sentando-se à sua mesinha de maquiagem. Fitz
ficou atrás dela para lavar seu rosto e pentear seu cabelo.

— Depois do café da manhã, você tem uma reunião com os Lordes Datian e
Klein para conversar sobre… — Enquanto Luke traçava seu itinerário com calma,
Fitz desamarrou o cabelo dela de maneira rápida e cuidadosa. — À tarde, terá uma
reunião com Lorde Pilemon, e então o jantar será…

— “Lorde Pilemon”? Como se você não o conhecesse. Luke, esse é o seu pai,
não é?

— Disseram-me para manter os negócios e os assuntos privados separados.

Assim que Fitz terminou de arrumar seu cabelo, Ariel se levantou de sua cadeira
e ergueu os braços até a altura dos ombros. Fitz imediatamente começou a despi-
la. Normalmente, trocar as roupas da princesa seria um trabalho para uma de suas
damas de companhia, mas esse era outro costume que ela praticava desde que era
criança.

Fitz ficou confuso ao tirar as belas sedas que envolviam a vibrante pele branca
de Ariel, trocando-as por roupas que uma dama de companhia preparara com
antecedência. A roupa era complexa, com uma estrutura bizarra que ele nem sabia
como vestir. Mesmo assim, conseguiu colocá-la rapidamente em seu corpo.

Ele não sabia nem como vestir alguém e mesmo assim foi designado a esse
trabalho. Mas acabou ficando bastante hábil nisso. Mesmo um caipira como Fitz
poderia aprender isso depois de ser forçado a fazer a mesma coisa várias vezes.

— Fitz… você esqueceu um dos botões.


— Hã? Ah, sim, sinto muito. — Mas às vezes ele se distraía, e a princesa
apontava seu erro. Fitz correu para tentar ajustar tudo, mas não sabia ao certo qual
botão havia esquecido. Com roupas como essa, se confundisse uma única etapa do
processo, seria impossível descobrir por onde começar a arrumar.

— Qual é o problema? — perguntou a princesa. — Se você não se apressar e


me vestir, posso pegar um resfriado.

— S-sim, você está certa, por favor, espere um momento!

— Ou você quer ver meu corpo? — Ariel brincou.

— N-não!

Seu rosto ficou vermelho de pânico quando ele negou essa acusação. Ariel
soltou uma risadinha. Ela gostava de como o garoto era inocente, tanto que
frequentemente o provocava desse jeito.

— Acho que você está linda. — Luke era sempre aquele que pulava ao socorro
durante essas interações. Ele sorriu e apontou para a casa do botão que Fitz estava
procurando

— Ah, Luke, isso significa que está se apaixonando por sua mestra? —
murmurou Ariel. — Nesse caso, isso é equivalente a blasfêmia. Você não será capaz
de escapar da punição por isso.

— Que aterrorizante. De que tipo de punição estamos falando?

— O tipo em que confisco todos os seus lanches de hoje — disse ela.

— Ah cara… Bem, isso é bastante grave. Mas se é isso que minha mestra
deseja, então que seja.

Enquanto os dois continuavam sua interação, Fitz finalmente terminou de


arrumar as roupas. Ariel deu uma volta para confirmar que não havia imperfeições
em sua vestimenta, então balançou a cabeça com satisfação.

— Bom trabalho. Agora então, vamos comer nossa refeição.

— Sim, senhora!

Luke seguiu Ariel quando ela saiu. Fitz moveu-se para o seguir, mas parou
abruptamente para ver seu reflexo no espelho da mesinha de maquiagem. Ele
mostrava um jovem com uma aparência sombria e óculos escuros sobre os olhos.
O jovem permaneceu lá e torceu uma mecha do cabelo branco cortado curto em
torno de um de seus dedos. Durou apenas um momento. Então se virou e foi atrás
de Ariel.
Os nobres foram bastante críticos sobre o jovem guardião Fitz depois de sua
aparição abrupta no palácio real.

— Mas há tantos entre a Guilda dos Magos que nasceram em famílias mais
nobres…

Sua família e origem eram completos mistérios. As únicas coisas que as


pessoas sabiam eram sua raça e a cor de seu cabelo. Por suas maneiras e modo
de falar, estava claro que não era nobre. Apesar disso, Ariel o havia nomeado como
seu novo guardião. Ela deu a ele equipamento de guardião de qualidade e o
manteve ao seu lado o tempo todo. Esse tratamento especial só inflamou a
desaprovação dos nobres.

— Não dá para fazer nada ao menos com esses óculos de sol?

— Concordo. É quase como se o menino nem mesmo entendesse o conceito


de respeito.

Ele sempre usava óculos de sol. Na corte imperial, esconder o rosto sem
propósito era considerado falta de educação.

Entretanto, as palavras dos nobres transpareciam desconhecimento. Ariel havia


recebido permissão do próprio rei para o uso dos óculos de sol. Na verdade, eram
um item mágico que poderia indicar quando a princesa estava em apuros, não
importando onde o usuário estivesse. O item foi considerado necessário após seu
“incidente” anterior, então o rei o permitiu.

— Graças a esses óculos de sol, as empregadas do palácio imperial continuam


gritando com suas vozes estridentes.

— Sim, ouvi dizer que “ficam tão felizes” só de ver Fitz e Luke caminhando
juntos.

— Na verdade, nada parece deixá-las mais felizes do que ver um mulherengo


como Luke intervindo com tanta coragem para cuidar do menino.

— Estão corrompendo a moral da corte imperial.

— Não é como se a corte tivesse alguma.

Hahaha, os nobres riram.

Fitz estava sempre seguindo Ariel, e qualquer um poderia dizer que o menino
era bonito sob aqueles óculos escuros. Portanto, vê-lo com ela e Luke juntos
encorajou muitos a sonharem com fantasias selvagens.

— Sei que são meninos, mas há algo estranho.

— Eh? O que é estranho?


— Luke professa, sem hesitar, que ama as mulheres e odeia os homens, mas
está sendo excepcionalmente gentil com aquele menino.

— Ahh, entendo o que diz. É verdade.

— Sim, mas não há nada de “estranho” nisso. Tenho certeza de que só indica
que Luke finalmente notou a beleza dos homens também, não?

— Sem dúvida, ha ha!

A homossexualidade não era considerada algo incomum para os nobres


Asuranos. Havia pessoas com preferências sexuais muito mais estranhas, então
garotos que se apaixonavam por outros garotos bonitos não representavam
nenhuma surpresa.

— Mas onde no mundo a princesa encontrou aquele menino?

— E quem sabe? Mas o fato de a Princesa Ariel oferecer tanto apoio me faz
pensar. Talvez seja o filho ilegítimo de algum nobre de alto escalão.

— Ah, então faz alguma ideia sobre de onde ele é?

— De fato. Vários anos atrás, fui visitar meu primo na Região de Fittoa. Aquele
primo compareceu à cerimônia de aniversário da neta de dez anos de Lorde Sauros.

— Ah, a neta do Lorde Sauros… Quer dizer a princesa macaca ruiva dos
Boreas?

— Sim, aquela com a reputação de que vai à escola só para bater em outras
crianças de sua idade. Aquela que negligenciou tanto os estudos que não conseguia
nem cumprimentar as pessoas direito. Aquela princesa macaca.

— E o que uma coisa tem a ver com a outra?

— Sim, bem, de acordo com a história do meu primo, aquela princesa macaca
mudou bastante. Ela cumprimentou as pessoas com educação, comportou-se de
uma maneira elegante e dançou magnificamente.

— Tenho certeza de que não passam de rumores embelezados. Isso não é só


por a princesa macaca não ter se comportado como um macaco pela primeira vez?

— Não, não é o caso. De acordo com meu primo, quando ele cumprimentou o
lorde suserano, Sauros gabou-se disso.

— Disso o quê?

— Que aquele que ensinou a sua neta era um menino dois anos mais novo que
ela.

— Ah… então a idade bate.


— O lorde o elogiou tanto que meu primo começou a suspeitar e até perguntou:
“Esse menino é seu parente?”

— Minha nossa.

— Claro que o lorde não disse muito, mas ouvi que ele também não negou que
fosse verdade.

— Então essa é a história… Será que aquele jovem impressionante poderia ser
o garoto que Ariel reivindicou como seu guardião?

— Talvez.

— Então essa é a razão pela qual o menino tem tanta etiqueta, apesar de ser
um plebeu.

Foi então que outro nobre de repente pensou em voz alta:

— Mas ele é realmente tão forte?

De acordo com Ariel, Fitz era ágil o suficiente para envergonhar os cavaleiros
em treinamento da corte. Ele também era versado em leitura, escrita e aritmética, e
tinha um conhecimento mais íntimo de magia do que até mesmo os professores da
Universidade de Magia. Sem mencionar que podia usar magia de nível avançado
sem quaisquer encantamentos, com apenas dez anos de idade!

— Deve ser só baboseira.

— No entanto, depois do que a Princesa Ariel passou, é difícil acreditar que


manteria alguém que não fosse forte ao seu lado.

— Hmm, por que não conferimos por nós mesmos? Tiremos a máscara daquele
garoto e vejamos quem ele realmente é…

— Eu não aconselharia isso. Se ele realmente for tão poderoso, você só estará
causando problemas para si mesmo.

— Verdade. No entanto, como ele é um guardião, pelo menos gostaria que


aprendesse algumas das tradições da corte.

— Concordo. Estou farto dele sendo um caipira vulgar do meio do nada.

Era assim que os nobres criticavam Fitz, fofocando maliciosamente sobre ele
enquanto assistiam, sem qualquer intenção de deixar suas hostilidades claras. Por
sorte, era justo isso que Ariel esperava que fizessem.

— Então, devemos fazer o filho de Lorde Tink entrar na Guilda dos Cavaleiros?
— Sim, ele é habilidoso em aritmética. Faça-o entrar na guilda e aprender
pessoalmente com o contador deles.

Era o início da tarde. Ariel estava se encontrando com o pai de Luke, Pilemon
Notos Greyrat. Pilemon liderava a lista de apoiadores dela. Embora não fosse bom
em julgamentos, ele era um jovem agindo como o Lorde Soberano da Região de
Milbotts. Cada vez que algo acontecia, fazia uma visita para discutir o futuro.

Ariel atualmente não tinha muitos apoiadores. Ainda não era adulta e, embora
fosse popular com o público em geral, não gozava do mesmo nível de aclamação
entre os nobres. Era por isso que ainda estavam estabelecendo as bases.

Os nobres poderosos e de alto escalão que apoiavam o primeiro ou segundo


príncipe não os trairiam simplesmente para apoiar Ariel. As posições dentro de suas
facções já eram sólidas.

Foi por isso que Pilemon sugeriu capturar aqueles que permaneciam indecisos.
Isso significava conquistar nobres do interior que não se envolviam nas disputas
políticas do continente, bem como nobres de escalão médio e inferior que não
tinham muito poder. Então usaria seu poder para nomeá-los como oficiais do
governo, colocando aqueles que eram excepcionais em posições inferiores (embora
importantes).

A estratégia deles era para o futuro, para algo dentro de dez ou vinte anos.
Dentro de uma década, aqueles que apoiassem Ariel graças ao trabalho de Pilemon
estariam em várias posições-chave (mesmo que não estivessem no topo) e
forneceriam um grande apoio para ela.

— A Guilda dos Cavaleiros, a Guilda dos Magos, a Guarda Imperial e a Guarda


da Cidade… Com isso, lançamos as bases para todas as posições-chave.

— É muito cedo para dizer se as sementes que plantamos darão frutos. É


possível que alguém veja nosso plano e o arranque pela raiz.

Primeiro, trabalharam para suprimir a força dos militares e torná-la sua. Nesta
era de paz, soldados e cavaleiros não eram tão valorizados quanto antes. Seu
trabalho consistia em eliminar monstros e ladrões, no máximo. Pode-se dizer que
não tinham poder político, razão pela qual as outras facções não tentaram obter seu
apoio. Ainda assim, se algo acontecesse, os militares seriam os únicos a agir.

O Reino Asura não via uma guerra civil há muito tempo. Enquanto não houvesse
nenhuma prova sólida deixada para trás, até mesmo assassinato na corte seria
permitido. Consequentemente, os nobres esqueceram o poder dos militares. Ariel e
Pilemon, por outro lado, trabalharam primeiro e principalmente para obter o apoio
militar.

— Ter que tomar esses tipos de medidas indiretas é irritante.

— De fato. — Pilemon era o chefe da família Notos Greyrat, mas era mais jovem
que os outros Greyrat e não tinha muita popularidade ou dinheiro.
Ariel estava na mesma. Fazia parte da família real, então podia usar o dinheiro
livremente, mas ficava claro à primeira vista que havia uma enorme lacuna entre ela
e os outros candidatos. Sua única vantagem era sua popularidade com o povo, e
isso seria fácil de perder. Os outros príncipes não fizeram muito para mudar o
coração das pessoas. A popularidade era muito instável para ser usada como base.

Mas exatamente contra quem ela estava lutando, e com que propósito?

— Mas, Alteza, um caminho sólido e estável é o mais rápido.

— Sim, mas é claro. Eu sei disso. Para obter a coroa, é necessário seguir por
uma estrada sinuosa.

Foi por isso que Ariel decidiu se tornar a rainha. Ela havia começado a trilhar o
caminho que a levaria ao trono.

Enquanto os que estavam na corte tinham sua atenção voltada para Fitz, Ariel
trabalhava nos bastidores para fortalecer seus laços com os nobres influentes que
a apoiavam, silenciosamente travando uma guerra política própria.

Ela vestiu o manto de princesa apavorada, tentando de tudo para se proteger.


Era como uma capa de invisibilidade que escondia seus dentes de leão enquanto
avançava. Exatamente como seu falecido ex-guardião Derek Redbat desejava.

Duas pessoas ficavam de guarda enquanto Pilemon e Ariel trabalhavam em


assuntos pessoais. Luke e Fitz assistiam em silêncio, sem se envolver na conversa.

Se um comerciante ou aventureiro com um olho aguçado visse o equipamento


que os dois usavam, ficariam boquiabertos de surpresa. Ambos estavam
completamente equipados com itens mágicos. Fitz e Luke usavam Botas da Rapidez
que lhes permitiam correr com o dobro da velocidade normal, uma Capa de Captura
de Chamas que os mantinha em uma temperatura corporal constante sem deixar o
calor passar por ela e Luvas de Superação que reduziam qualquer impacto na palma
da mão do usuário pela metade. Além disso, na cintura de Luke estava uma Espada
Corta-Aço que poderia facilmente rasgar um escudo de aço.

De armas a armaduras, o equipamento era perfeito. Ariel havia obtido tudo logo
após seu incidente anterior. Apenas a varinha que Fitz segurava era diferente. Era
uma pequena, do mesmo tipo que seria dado a um aprendiz que estava começando
a aprender magia. Não era um item mágico nem um instrumento mágico.

— Bem, então, Lorde Pilemon, obrigada pelo seu tempo.

— Sim. E Princesa Ariel, esta pode ser a abertura perfeita para alguém
descobrir o que estamos planejando, então não deixe nenhuma lacuna transparecer.

— De fato.

Enquanto Luke e Fitz os protegiam, Ariel e Pilemon concluíram seu encontro.


Ambos pareciam satisfeitos enquanto atravessavam a sala e se dirigiam para a
porta. Em resposta, Luke acompanhou o ritmo de Ariel e ficou exatamente atrás
dela. Fitz foi um pouco mais lento, mas seguiu o exemplo de Luke.

— Luke, certifique-se de proteger sua senhoria.

— Ha ha.

Pilemon falou apenas isso ao seu filho antes de partir. Enquanto observava o
pai ir embora, Luke se curvou conforme o costume exigia.

— Ufa… isso demorou um pouco. E aí, vamos comer?

— Sim, Princesa. — Luke tocou a campainha para chamar os criados. Soou


três vezes. Quando uma dama de companhia apareceu, ele a instruiu a preparar a
comida e depois voltou para seu lugar atrás de Ariel.

Fitz assistiu a toda a interação com grande interesse.

— Existe algum tipo de sistema com esse sino? Tipo, você bate um certo
número de vezes para pedir comida?

— Claro que não. É apenas um sino normal — disse Luke exasperado.

Fitz empurrou os lábios em um beicinho e acenou com a cabeça.

— Ah, tudo bem. Acho que faz sentido.

Ultimamente, ele fazia perguntas desse tipo a Luke o tempo todo, inclusive
sobre modos na hora das refeições e etiqueta de saudação. O próprio Fitz tinha
pouco mais do que um vago conhecimento dessas coisas, razão pela qual outros
nobres riam de cada um de seus passos. Cada vez, ficava vermelho de vergonha e
então perguntava a Luke a etiqueta apropriada para que pudesse acertar
perfeitamente na próxima vez.

— Hee hee. — Ariel riu diante da conversa. — Fitz, você finalmente começou a
se acostumar com a etiqueta da corte, não é?

— De forma alguma. Eu tenho um longo caminho a percorrer.

— Ver o quão duro você está trabalhando aqueceria o coração de qualquer


pessoa.

— Não tenho certeza disso. Bem, os outros nobres parecem me odiar. — Fitz
apertou os lábios em outro beicinho e se virou para olhar para Luke. O último apenas
desviou o olhar como se o assunto não tivesse nada a ver com ele.

— A fofoca da ralé não é nada para se preocupar. Eu gosto de você — disse a


princesa.
— Obrigado… — Fitz não parecia particularmente feliz com isso, mas curvou a
cabeça para Ariel. — Outra coisa, Princesa, você já encontrou minha família ou meu
mestre?

Ariel balançou a cabeça fracamente.

— Não…

Fitz concordou em se tornar o guardião dela, mas só com algumas condições.


A primeira delas era que perdoaria seu crime de entrar no palácio sem autorização.
Ele apareceu de repente no dia do Incidente de Deslocamento. Mesmo que não
tenha sido por sua própria vontade, entrou no lugar sem permissão, o que era uma
ofensa punível, ao menos de acordo com as leis do Reino Asura. A critério de Ariel,
foi poupado da punição, embora isso certamente teria acontecido de qualquer
maneira, visto que salvou a vida dela no processo.

A outra condição era que procurasse os amigos e familiares de quem ele se


separou. Dado que o incidente ocorreu na Região de Fittoa, o lorde suserano
daquela região (Boreas) deveria fiscalizar isso. Mas a família Boreas havia perdido
todas as suas terras e as pessoas sob seu comando junto com elas.

Os nobres que consideravam a família Boreas sua inimiga viram uma


oportunidade perfeita e lançaram seu ataque impiedoso. Tudo o que a família pôde
fazer foi tentar preservar sua posição. Não tinham o luxo para procurar os residentes
desaparecidos. Eles haviam organizado algo parecido com uma equipe de busca,
mais ou menos, mas era uma coisa só para dizer que existia. Então Ariel usou o
dinheiro de seu próprio bolso para montar uma equipe e ordenou que fizessem uma
busca.

A propósito, Dario, o ministro de alto escalão que apoiava o primeiro príncipe,


mais tarde colocaria a família Boreas sob sua proteção e investiria em um grupo de
busca. Um grupo de busca que aumentaria de tamanho, mas… Bem, isso é uma
história para outra hora.

Com essas duas condições, Fitz se tornou o guardião e protetor de Ariel.

— Eu não sei o paradeiro de sua família. Como você sabe, estão espalhados
por todo o mundo.

— Sim… entendo. — O rosto de Fitz ruiu, o suficiente para que qualquer um


que visse sentisse pena dele.

Ariel percebeu e demonstrou uma rara expressão de angústia no rosto.

— Fitz… peço desculpas. No momento, não tenho muito poder.

— Não, eu não seria capaz de fazer nada sozinho, então estou grato pelo que
você fez.

A expressão de Ariel ficou pensativa ao ver como Fitz reagiu com bravura.
Então, de repente, ela bateu palmas.
— Isso mesmo! Fitz, venha ao meu quarto esta noite.

— Hã?! — Sua proposta repentina fez Fitz soltar um grito estridente.

— Ouvi dizer que você tem tido pesadelos ultimamente, fazendo muito barulho
durante o sono. Se dormir ao lado de alguém, isso pode aliviar um pouco o
problema, não?

— M-mas eu sou apenas seu guarda-costas, um caipira do interior, e você é


uma princesa… Luke, por favor, diga algo!

Quando a conversa mudou de repente para Luke, ele deu um sorriso afetado e
apropriado e disse:

— Por que não aceitar a oferta dela? Pense nisso como uma recompensa.

— Uma recompensa…?

— Bem, tenho certeza de que vai despertar alguns rumores estranhos, mas
você deve ficar bem. Você suportou a fofoca deles até agora, certo?

Fitz não tinha aliados na corte. Assim que percebeu isso, soltou um suspiro.

Enquanto Ariel e Pilemon conspiravam um com o outro, em algum outro lugar


do palácio imperial, outra conspiração estava tomando forma.

— Como estão os movimentos recentes de Ariel?

Dois homens conversavam em uma sala. Um deles era um jovem de cabelos


loiros macios, com cerca de vinte e poucos anos. Em uma das mãos, segurava uma
taça de vinho feita de vidro Begaritt, que continha vinho fresco da Região Milbotts.

O outro homem era um sujeito corpulento que parecia ter cinquenta e poucos
anos. Uma garota seminua estava sentada em seu colo, e sua mão estava estendida
em direção ao seu traseiro.

— Um pouco suspeitos, eu diria. — Sua voz estava fria e seus olhos ardiam de
luxúria enquanto observava a garota. Ela corou e olhou para baixo enquanto ele
esfregava sua bunda.

O homem mais jovem não pareceu se importar. Apenas apreciou o gosto de


seu vinho, movimentando o líquido dentro de sua taça.

— Isso não diz nada.

— Recebi relatos de que ela inseriu seus próprios homens na Guilda dos
Cavaleiros e na Guarda Imperial.
— A Guilda dos Cavaleiros e a Guarda Imperial? Droga, aquela Ariel. Ela
pretende dar um golpe de estado?

O homem mais velho enfiou a mão na calcinha da garota e balançou a cabeça.

— Impossível. Ela não é tão impaciente. Tenho certeza de que pretende apenas
aumentar seus aliados.

— Mas a Guilda dos Cavaleiros e a Guarda Imperial não têm nenhuma


influência política.

— Sim, de fato. Mas existem muitas pessoas comuns entre a Guilda dos
Cavaleiros e a Guarda Imperial. São as mais simples com quem ela pode trabalhar.
Tenho certeza que isso é apenas o começo de seus planos.

— Hm…

O homem mais velho continuou:

— Além disso, Ariel não tem seu próprio exército particular.

O jovem começou a pensar. A Guilda dos Cavaleiros e a Guarda Imperial não


tinham poder político. O Reino Asura, sem dúvidas, tinha a maior força militar do
mundo, mas metade de seus soldados eram pessoas comuns. Os que estavam no
topo eram nobres e seguidores dele, então substituí-los não seria fácil.

Mesmo assim, a guilda e a guarda seriam os primeiros a se mover se algo


acontecesse na capital imperial. Se os capitães e oficiais comandantes fossem
substituídos por pessoas que apoiassem Ariel, os soldados e cavaleiros sob seu
comando também se aliariam a ela, já que seria a mais popular. Nesse caso, ele
não poderia descartar a possibilidade de um golpe de estado.

— Acabei deixando isso passar em branco. Parece que minha irmã mais nova
é muito inteligente. — Havia admiração em sua voz enquanto falava.

O gordo apenas bufou de tanto rir enquanto brincava com o corpo da garota.

— Mas que absurdo. É apenas um ato desesperado, tenho certeza. — Um


sorriso cruzou seus lábios enquanto os gemidos abafados da garota começaram a
aumentar. — No entanto, por mais desesperada que seja, é uma boa jogada. Achei
que aquele rapaz neófito do Notos não passava de um rato dissimulado, mas parece
que ele tem alguma visão, afinal.

— O que deveríamos fazer? — perguntou o jovem.

O gordo tirou a mão do corpo da garota. Ele mergulhou a ponta do dedo em


uma taça de vinho e o enfiou, com um líquido roxo pingando, na boca dela. A garota
não tentou impedir, apenas lambeu.
— Não há nada a ser feito — disse. — Passei o último ano os observando em
silêncio. Se vão ser inimigos de Vossa Majestade, Príncipe Grabel, então,
naturalmente, devemos nos livrar deles.

— Por qual meio?

O gordo levou o dedo, que a jovem estava lambendo, aos lábios e o envolveu
com a língua.

— Em vez de arrancar as mudas, vamos nos livrar de quem está lançando as


sementes.

— Tudo bem, Darius. Vou deixar isso para você.

— Como ordenar, meu príncipe.

O Primeiro Príncipe Grabel e o alto Ministro Darius pareciam dois funcionários


corruptos do período Edo enquanto conspiravam para a reclusão em algum lugar
privado. A única pessoa que ouviu sua conversa foi a escrava descansando em cima
do colo de Darius. E aquela garota aconteceu de ser…

Era tarde da noite, hora de todos estarem descansando em suas camas,


quando Fitz chegou ao quarto de Ariel. O vapor estava visivelmente subindo de seu
rosto.

— Um, Princesa Ariel, estou aqui como você pediu.

Antes de ele chegar, as damas de companhia de Ariel o levaram ao banho,


banharam seu corpo com óleos perfumados e o envolveram em uma roupa de
dormir de alta qualidade tecida em tecido macio.

— Fico feliz que você veio. Já podem sair — disse ela às duas damas de
companhia. Cada uma delas fez uma reverência antes de passar pela porta. Fitz e
Ariel ficaram subitamente sozinhos em seu quarto mal iluminado. — Algo de errado?
Venha aqui e sente-se ao meu lado.

— C-certo. — Fitz obedeceu, sentando-se com bastante nervosismo ao lado da


princesa.

Ariel aproximou seu corpo do dele.

Fitz moveu seu corpo para mais longe. Então, ligeiramente em pânico, ergueu
a mão para detê-la.

— Uh, um… só vamos dormir juntos, certo?

— Sim, com certeza.


— Um… uh… você diz isso, mas seu olhar está assustador.

Ariel gradualmente se aproximou mais e Fitz logo colocou mais distância entre
eles.

— Não precisa se assustar com isso. É verdade, estou empolgada com o brilho
da sua pele, mas está tudo bem. Eu não vou fazer nada. Agora, deite-se na cama.

— Não, isso é assustador. Você está me assustando, Princesa!

— Não há nada a temer — murmurou Ariel em resposta.

— Não, estou dizendo… Eu sou, você sabe. Você sabe disso, né? Que na
verdade eu sou…

— Eu sei — disse. — Claro que eu sei.

Por fim, ela encurralou Fitz na beirada da cama. Ariel colocou a mão em seu
ombro e o forçou contra o colchão.

— É por isso que gostaria que você também soubesse mais sobre mim.

Fitz fechou os olhos com força, como se fosse um virgem. Foi demais para ele,
então cedeu, entregando seu corpo às mãos dela. Afinal, ele não tinha parentes a
quem recorrer, então não podia ir contra a vontade da princesa.

— Brincadeirinha. Vou parar por aqui — disse a Ariel. Ela se afastou dele e se
jogou ao seu lado, deitada de costas.

Surpreso com isso, Fitz virou a cabeça e seus olhos se encontraram.

— Um…

— Eu te disse, não disse? Que só vamos dormir juntos. Você entendeu algo
errado? Pensou que eu iria me forçar sobre você?

Fitz ficou com uma tonalidade vermelho brilhante até as orelhas. Ariel riu
quando viu isso.

— É verdade, ver a cara que você está fazendo agora me dá vontade de fazer
isso, mas hoje eu realmente vou apenas dormir ao seu lado. — Ela olhou para cima
e exalou.

Fitz permaneceu confuso, sem saber o que fazer. Seu corpo ficou rígido.

Por um momento, o silêncio caiu entre os dois. Quem finalmente o quebrou foi
Ariel.

— Eu também — disse ela. — Eu também andei sonhando.


— Sonhando?

— Sim, sobre aquele dia. Sobre Derek sendo assassinado por aquele monstro,
e aquilo se virando para me devorar em seguida. Aquele pesadelo. — Fitz voltou a
olhar para o rosto de Ariel. Seu sorriso gentil usual se foi, deixando uma expressão
vazia e transparente. — Eu tenho esse sonho o tempo todo. Luto em meu sono e
finalmente acordo quando tudo acaba. Já faz dias.

— Com você também? — perguntou Fitz.

— Sim. — Ariel assentiu e apertou a mão dele com a sua. Seus dedos eram
delicados e finos, tanto que pareciam poder quebrar a qualquer momento. No
entanto, a força de seu aperto assegurou-lhe que ela estava cheia de vida. — Fitz,
não consigo entender sua dor, mas você não foi o único que sentiu dor naquele dia.
Se está passando por um momento difícil, pode confiar em alguém.

— Obrigado…

— É por isso que não hesitei em me apoiar em você. Talvez se eu dormir ao


lado da pessoa que me salvou naquele dia, não terei mais aquele pesadelo.

Essas palavras soaram estranhamente relaxantes para Fitz. Era como se ela
soubesse que ele não conseguia relaxar desde o Incidente de Deslocamento. A
princesa percebeu como o garoto lutou para ganhar sua aprovação, blefando para
que não pensasse que era inútil, trabalhando duro para que não o dispensasse de
imediato.

— Agora eu entendo…

Nada daquilo foi necessário. Ariel certamente o teria mantido ao seu lado,
mesmo se não pudesse usar magia, porque ele era alguém que podia entender sua
dor.

— Princesa Ariel?

— O que foi?

— Vou fazer o melhor que puder como seu guardião — disse.

— É bom que faça. Mas, por enquanto, espero que faça isso em meus sonhos.
— Ela riu.

Como se encorajado por sua risada, Fitz sentiu um sorriso aparecendo também
nos seus lábios. Foi o primeiro desde o incidente, há um ano.

— Tudo bem, então vamos dormir.

— Sim, Princesa. Boa noite.

Ariel manteve os dedos em volta da mão de Fitz enquanto fechava os olhos.


Fitz também fechou os olhos, antecipando o conforto do sono. Mas então,
quando estava prestes a deixar sua consciência ir, percebeu algo.

— Hã…?

Havia uma presença no quarto. Apenas alguns momentos atrás, as únicas que
sentiu eram a sua e de Ariel, mas havia alguém de pé ao lado da cama. Uma jovem
garota. Ela estava pairando ao lado da cama deles, usando roupas que mal
escondiam suas regiões inferiores, e em sua mão carregava uma enorme faca.

A garota se moveu no momento em que os olhos de Fitz encontraram os dela.


Ela se jogou em Ariel na tentativa de atacar.

Fitz percebeu que era uma assassina, mas antes que pudesse gritar qualquer
coisa, seu corpo já estava se movendo. No mesmo instante em que saltou para
proteger o corpo da princesa, estendeu as duas mãos em direção à garota e lançou
sua magia.

— Explosão de Ar!

— Gah! — A magia, que havia sido lançada sem nenhum encantamento, atingiu
a garota em cheio, jogando-a para longe de onde Ariel estava deitada.

— O que está acontecendo?! — gritou a princesa.

— Princesa! É uma assassina! Por favor, fique atrás de mim! Luke, é um ataque
inimigo! — A voz de Fitz ecoou. O quarto dos guardiões ficava bem ao lado do quarto
da princesa, então Luke deveria aparecer logo.

— Uff…

A assassina se levantou. Seus olhos se voltaram para Fitz e Ariel, passando


rapidamente pelos dois antes de finalmente se fixar em Fitz. Parecia que planejava
acabar com o guarda-costas antes de lidar com seu alvo.

Encontrando-se sob o domínio do olhar do intruso, Fitz se abaixou e assumiu


uma postura de batalha. Ele ainda estava vestido com suas roupas de cama, sem
uma única peça de seu extravagante equipamento, mas isso não impactou em seu
espírito de luta.

— Hssh…! — A assassina correu para frente, indo direto para ele.

Fitz virou as palmas das mãos para fora e liberou sua magia.

— Hah! — A mana fluindo de suas mãos não tinha nenhuma forma. O som de
uma explosão foi acompanhado pelo da cama dossel sendo destruída, deixando um
buraco na parede.

Este era um feitiço de nível avançado, Estrondo Sônico. Não havia muitos que
poderiam enfrentar uma explosão como aquela e sobreviver. No entanto, a
assassina ainda estava viva. Ela fez parecer que estava correndo em direção a ele
antes de pular para o lado. Uma finta. Intencional ou por coincidência, a assassina
conseguiu escapar do ataque de Fitz. Então chicoteou sua faca no ar. E voou direto
para Ariel.

Fitz instantaneamente esticou a mão no ar como se tentando pegá-la. Claro,


pegar uma faca voando pelo ar não era uma tarefa fácil. Felizmente, aquilo pegou
apenas nas pontas de seus dedos, cortando sua pele e interrompendo sua trajetória.

Tendo falhado em sua técnica de execução, a assassina mudou para a defesa,


quase como um gato tentando manter a distância.

— Ah…!

Em segundos, ela foi enviada voando pelo ar pela segunda vez graças à magia
de Fitz. O impacto direto cortou todos os quatro membros da assassina, e ela ficou
cambaleando no ar, caindo pelo buraco na parede para a escuridão da noite.

— Hah… hah…

A mudança repentina da defesa para o ataque deixou Fitz sem fôlego enquanto
olhava para fora do buraco. Era uma noite sem lua, então estava excepcionalmente
escuro lá fora. Ele não tinha certeza do que viu abaixo, mas a assassina havia caído
com os membros decepados. Não havia como ainda estar viva.

— Uff…

A sensação de que havia matado alguém ainda não havia aparecido.

— Ah… Princesa Ariel, você está bem? — Ele correu de volta para o quarto
para confirmar que ela estava segura. No meio do caminho, suas pernas se ficaram
moles. — H-hein? — As pontas dos dedos de seus pés ficaram dormentes e ele
desabou no local, com seu corpo cedendo ao peso.

Veneno…! Já era tarde demais quando ele percebeu, e todo o seu corpo
começou a tremer enquanto sua consciência ficava nublada. Magia de
Desintoxicação…! Se Fitz fosse um mago comum, ou se não fosse capaz de
executar um feitiço não verbal, provavelmente teria morrido na mesma hora.

Mesmo com sua consciência sendo consumida pela escuridão, conseguiu


lançar a magia de desintoxicação. Então olhou para os lados. Ariel estava segura e,
embora tivesse chegado tarde, Luke também estava lá.

— Luke, a assassina! Fitz a derrotou, mas foi envenenado! Chame um médico


agora! E a Guarda Imperial. Acho que o corpo da assassina caiu.

— Entendido! — Luke acenou com a cabeça e desceu as escadas correndo


enquanto chamava os guardas.

Fitz observou, ainda sentindo-se tonto, e só perdeu a consciência quando Luke


sumiu de vista.
Assim, a tentativa de assassinato de Ariel foi frustrada.

Fitz havia sido infectado pelo veneno, mas o corte em seu dedo era tão pequeno
que apenas um pouco dele entrou em seu sistema. Graças à sua resposta rápida
ao usar magia de desintoxicação, escapou com vida por muito pouco e não houve
efeitos prolongados do veneno.

Quando ele voltou ao palácio, as impressões dos nobres sobre Fitz haviam
mudado. Foi por causa da assassina que derrotou naquele dia. Seus restos mortais
haviam caído no pátio, onde os guardas acabaram encontrando. Ela foi identificada
como uma assassina famosa que trabalhou no Reino Asura pelos últimos dez anos,
conhecida como Corvo do Olho Noturno.

Vários nobres já tinham sido vítimas de sua lâmina. O fato de que Fitz a derrotou
demonstrou que sua força era genuína. Como usava magia não verbal e
normalmente não falava muito, foi apelidado de “Fitz Silencioso” e reconhecido por
todos os nobres como digno de sua posição como guardião de Ariel.

Com isso, o assunto foi resolvido e a paz prosperou em torno da princesa… ou


assim parecia. Nenhuma história jamais teve suas cortinas fechadas com tanta
facilidade. Daquele dia em diante, mais assassinos apareceram para reivindicar a
vida de Ariel, foi um ataque após o outro.

Cada um deles foi despachado pelas mãos competentes de Fitz, mas nunca
pararam e nenhum culpado foi identificado. A Guilda dos Cavaleiros conduziu suas
investigações, mas alguém estava pressionando-os, deixando os casos sem
solução.

Ariel estava mentalmente encurralada e exausta pelo fato de que, embora


pudesse ter relativa certeza de quem estava enviando os assassinos, não poderia
expôr sua identidade. Como resultado, Pilemon concluiu que era muito arriscado
para ela ficar e propôs um plano para deixar o país sob o pretexto de estudar no
exterior. Mas essa é uma história para outro dia.

O Guardião Fitz havia perdido aqueles mais próximos a ele no Incidente de


Deslocamento, interrompendo toda a sua vida. Embora não tenha sido por sua
própria vontade, se viu sendo arrastado para as profundezas da sangrenta batalha
política do Reino Asura.

No entanto, havia uma coisa boa. Após o dia da tentativa de assassinato de


Ariel, ele parou de ter pesadelos – aqueles em que foi lançado voando pelo ar,
lutando inutilmente até se espatifar no chão. Isso, pelo menos, poderia ser
considerado como sua única misericórdia.

Ainda resta algum tempo em nossa história até que os destinos desse jovem e
de Rudeus Greyrat se entrelacem.

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