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cuja matriz de pensamento substancia um compromisso com o


desenvolvimento de uma abordagem interdisciplinar aos problemas
Capítulo IJ
e ao desenvolvimento humano, aplicada a indivíduos, grupos e
comunidades. Isso, em essência, define o próprio surgimento da
Psicologia Humanista em sua retomada dos valores renascentistas Humanismo e Psicologia
com ênfase na recuperação da importância do homem em seu tempo~
· contexto, valorizado em sua totalidade.
Sim, quero a palavra última que também é tão primeira que já se
O texto a seguir corresponde originalmente a uma palestra
confunde com a parte intangível do real. Ainda tenho medo de me afastar da pronunciada na IV Jornada de Psicologia Humanista,
lógica, porque caio no instintivo e no direto, e no futuro: a invenção do hoje é promovida pelo Centro de Psicologia da Pessoa e pela
o meu único meio de instaurar o futuro. Clarice Lispector em sua Água Universidade Federal do Rio de Janeiro, em agosto de J988, e
Viva parece traduzir de maneira simples e ainda assim magnífica a depois publicada em Arquivos Brasileiros de Psicologia, 41,
importância de um livro como este, em que da palavra emerge a (4), pp. 88-95, set/nov. de 1989, com o título Osignificado da
Psicologia Humanista, posicionamentos filosóficos
confinnação do vivido em sua concretude atual e do transcendente implícitos. Ainda gosto bastante dele. Parece-me que ele
como devir humano. aponta para a largueza do território de uma Psicologia
De um ponto de vista estritamente pessoal, julgo imprescindível realmente Humana. Fiz pouquíssimas modificações, somente
também reverenciar o homem Mauro Amatuzzi, meu colega e parceiro para adaptar o texto ao novo título. Hoje creio que é melhor
falarmos do Humanismo na Psicologia, do que da Psicologia
num processo em que a cronologia do tempo é de menor importância
face à grandeza do inusitado, das vivências diversas, das contradiç~- Humanista
feitas de encontros e desencontros, da magia em momentos de
descoberta acadêmica. Em meio ao turbilhão das pesquisas, dos
relatórios, das reuniões administrativas, sobrevive o aconchego de
abraços essenciais, de olhares certeiros, a nos a~alentar acerte~ de que essencial do que quero dizer a respeito
ainda nos importamos com o outro, este ~go que ~e amda ser
cúmplice nas horas, tantas vezes vazias e despidas de significado~ em
que o humano parece escapar de dentro de nossos papeis e
O
desse assunto pode ser colocado em algu-
mas poucas proposições. E a primeira é a
seguinte: o homem não é um "bicho que fala'\ _m!§
ele é a própria palavra, isto é, ele é palavra. Reen-
desempenhos. contro aqui uma ideia que é tanto de Heidegger
Vera Engler Cury : como de Buber: não é a linguagem que se encontra
i
no homem, mas o homem que se encontra na lin-
.! guagem. A segunda proposição é que isso não é_·
"poesia" ou jogo de palavras, como talvez possa
parecer. '!'rata-se de uma afinnação muito precisa,
j que nos ~oloca num outro âmbito de considera-
J ções, ou seja, que implica mudança radical de pon-
do .;.,. E • tmcira é j.......,re 'I"' ""'
to
,,.,,..,.__...,.,.,.,.....,'S'YLl'C:ft>>»--c
'~
li
10 Mauro Martins Amatuzzi Por uma Psicologia Humana
pesquisar nessa linha. Mas a incompletude a que me refiro é de outra
mudança radical de ponto de vista é o que mais caracteriza a con-
ordem.- Talvez "explicações" dessa natureza não bastem, e por mais
tribuição do humanismo para a psicologia. Não se trata, com efeito,
que somemos explicações não estaremos entendendo ainda o
nem de uma mudança de objeto, nem de uma mudança de método, e
principal desafio que se coloca para nós face ao nosso viver: E,..9!!.e
\1 ~em mesmo, quem sabe, de uma mudança teórica. Trata-se na rea-
vamos fazer com nossa vida? Que sentido vamos dar a ela, e de tal
1. hdade de uma mudança na relação com o objeto. Essa mudança é
1
capaz de assumir em determinados momentos o mesmo método, só forma que não nos isole de um sentido mais global?
1. que num contexto onde o sentido global é outro, o que faz com que a
Sob esse enfoque o ser humano nos a arece não como
resultante e uma séne de coisas, mas como, fundamentalmente, o
visão resultante (a teoria, nesse sentido) seja outra, mais abrangente,
\ iniciante de uma série de coisas, e os desafios daquilo que ele deve
capaz de conter as visões anteriores, só que como parciais, e reco-
criar não são respondíveis com explicações daquele tipo. O homem
nhecidas como parciais. Nessa nova visão a teoria, aliás, se toma ela
só aparece naquilo que ele tem de mais próprio, com a questão fil>
mesma relativa: não se trata mais de teorizar, como um fim. A teoria
1, sentido, não com a questão da causa explicativa. A relação
passa a ser ela também um momento de algo mais amplo, que é o que
i
1 afinal importa. E esse algo mais amplo é antes um compromisso que
, explicativa se refere ao homem como resultado, como repertório, ou
1.,
1:; '
1
como recebido, e, portanto, em definitivo, ao homem como passado.
uma teoria.
Não se refere ao homem atual, ao homem desafiado, ao homem tendo
: ,;' i1 Uma das coisas que subjaz a essas proposições é que a
( que responder e posicionar-se, ao homem presente (face a um
consideração do sentido é fundamental. Para compreender o ser
futuro). Este homem ·atual, presente, desafiado, interpelado, em
\' ! humano, tenho que lidar com questões de sentido. A consideração do
movimento, é o que encontra as questões de sentido: essas são as
\,.,,. ' ser humano em termos de causa e efeito, antecedente e consequente,_
questões presentes, que surpreendem o homem como existente (não
parte e todo, por mais cabível, correta ou verdadeira que possa ser"
'i apenas como natureza, como diria Merleau-Ponty).
1 não dá conta do que seja o ser humano como totalidade em Dizer que o homem é um "bicho que fala" (o que equivale a
\i movimento. Em outras palavras: posso explicar certas ocorrências
I'
dizer que é um "animal racional") é ficar no âmbito das explicações, e
i, humanas ou comportamentos a partir de "causas" internas ou
portanto, do homem como resultado. Mas isso não é ainda o homem
externas (motivações inconscientes ou configurações de estímulo,
atual. Só poderemos chegar a ele mudando o ponto de vista e
por exemplo), posso analisar relações de antecedente-consequente
ji:, assumindo as questões de sentido que definem sua atualidade. O que
(como por exemplo o efeito de uma recompensa), ou posso explicar
ele fala? O homem atual, presente, existente, é constituído pelas
certas coisas em função das relações parte-todo (como por exemplo
í questões de sentido. Ora, a palavra é exatamente a questão do
quando digo que o modo de ser de uma pessoa é a repercussão
I'r individual de problemas ou situações coletivas bem caracterizáveis).
' sentido. P~r isso o homem atual se encontra na palavra, e nâo o
contrário. E na decifração de suas questões de sentido que o homem
I' Posso ainda descrever como é que tudo isso se articula numa espécie
!j.
de história geral de conflitos e fantasias, e que se aplicaria a todas as
:i pode se instaurar em sua atualidade. Mas é preciso tomar cuidado:
essa. de~ifração pode ser vivida como uma redução ao esquema
pessoas ou à maioria (psicologia do desenvolvimento). Cada uma
/l explicativo onde apenas encontraremos o homem-resultado e não o
dessas coisas é válida e possível, e de fato é feita, com muitas
pesquisas, certamente. Mas nenhuma delas em separado, e nem todas
'f homem em sua atualidade. Isso, para Merleau-Pon~, seria
([ permanec\:r no nível da palavra secundária, da fala inautêntica, do
1
,:1 somadas, dão conta do.ser humano como totalidade em movimento.
,1, falar sobre, da fala sobre falas. A fala sobre falas é ainda um discurso
1:: Algo fica faltando, e não é algo que possa ser cumprido dentro de no passado. A decifração do sentido só será um discurso no presente
11
,!
1.
cada um daqueles enfoques. Não é tantq que essas explicações
estejam incompletas. Sim, até estão, e haverá sempre mais a
i
>i
se for vivencial, experiencial, . uma vivência do próprio sentido
r t
i
!'
12
Mauro Ma11ins Amatuzzi
criando novos sentidos. É enfrentando os desafios que vou
Por uma Psicologia Humana 13 '"
processo. O homem como resultado, ou a cultura como produto, não são
decifrando os sentidos e criando novos sentidos. A decifração dos ainda o homem atual ou a cultura que se faz.
1 sentidos que permanece no atual identifica-se com o enfrentamento Acredito que o sentido do humanismo em psicologia é o de nos
dos desafios, e não é apen~ um estudo deles. 2 colocannos na postura do atual, do presente, do atuante, do em cursei;
li
O homem atual, portanto, encontra-se no assumir as questões e todas as explicações só terão valor como instrumentos para isso,
1 de sentido e isso significa uma reviravolta completa de perspectivas t mesmo que, como instrumentos, permaneçam aquém dessa
(do homem-resultado para o homem-atu11I). E é exatamente essa atualidade.
reviravolta que faz o sentido do humanismo na psicologia. . Voltemo-nos agora para o Humanismo, e vejamos o que essa
Antes de passannos para um outro ponto, gostaria de trazer aqui ij palavra nos sugere. Podemos encontrá-la usada pelo menos de quatro
1
uma consideração paralela que pode nos ajudar a compreender essa :: modos diferentes em relação à Psicologia.
1
questão que acabo de fonnular. A diferença que existe entre essas duas { 1. No sentido estrito o Humanismo é um movimento cultural,
i
i perspectivas é a mesma que existe na consideração da cultura como f europeu, tendo seus primórdios já no século XIV, e quê
1 resultado (ou como produto), e~ cultura como ato cultural. Uma coisa é J esteve mtunamente hgado à Renascença. Mas é talvez daí
i estudar os produtos culturais (objetos, máquinas, obras de arte, J que o termo tenha se generalizado, podendo ser aplicado a
i1 i: utensílios, ou outros produtos como a ciência, a religião, ou as estruturas 1 qualquer filosofia que coloque o homem no centro de suas
:1: de parentesco ou estruturas de relações de trabalho etc.) de algum grupo :1
·i. i preocupações, ou como um adjetivo aplicável a outros
i!i! 1 social ou sociedade. Aqui estamos estudando a cultura de um povo d movimentos, como é o caso da ''psicologia humanista"
,11
1,, 1
como algo dado, e, portanto, acabado. Outra coisa completamente (ou do humanismo na psicologia).
I'''
1!
diferente (embora possa incluir a primeira) é ser agente cultural, O movimento cultural da Renascença precisa ser entendido
,,!i . produzir cultura, inserir-se num movimento vivo de produção cultural: ' em função de seu contexto. De algum modo ele aparece
Ili ' A diferença entre essas duas coisas é clara. Ora, acontece que o tenno ; como uma espécie de reação contra um sobrenaturalismo ·
li!: "cultura" pode ser definido em rima dessas duas direções, originando-se ; medieval que na4uela época significava um desprezo pelo
/1:1
:J ,! daí muita confusão. A cultura que é vista pelo estudioso não tem nada a J . que é humano: nada das coisas desta vida é importante a não
'•· !
ver com a cultura que é praticada pelo agente cultural. No primeiro caso •t ser aquilo que aqui é uma aquisição de méritos para a vida
i'::·
,, 1
',,,
temos um produto acabado e mais ou menos estático: é a cultura como j futura, eterna, após a morte. A vida presente, nesse sentido,
I ,,1
produto cultural. No segundo, temos a cultura como conteúdo de um ( não é levada a sério em sua consistência própria, não tem
I':
1•1
1' 1 1
i,1;
movimento incessante, algo em constante mutação. No primeiro caso 1 valor nenhum em si mesma. O próprio homem, em si, em seu
fazemos história no sentido de retratar~ passado (ou algo acabado), no iA
corpo, não precisa ser cultivado, uma vez que seu destino é a
/!;/i
11/1 ,
segundo fazemos história no.sentido de construir a história em curso. E a t · morte; o importante é cuidar da alma imortal. As coisas do
1:1 1 •
:,1
história que fazemos retratando só tem sentido em função da história que
estamos construindo. A cultura de um povo não é algo feito, mas algo
· mundo são transitórias e um cenário passageiro para as
:i::: coisas eternas, que são as que importam. A arte, a ciência, a
'!,;
que se faz, e reduzir uma coisa à outra é, na realidade, esmagar o política, a beleza, a flexibilidade corporal não são coisas que
::!,
!!/;1
potencial criativo de um povo, e tentar estagnar um movimento, devam deter o interesse do sábio, mas sim, as coisas eternas,
,, impedindo que esse povo enfrente seus verdadeiros desafios. A cultura ~brenaturais, as virtudes da alma. A saúde do corpo, a
1 há que ser definida como um processo vivo e não como um conjunto de maturidade psicológica não são importantes a não ser como
i' produtos acabados. O ser humano tem que ser captado em seu
i substrato mínimo para as virtudes que nos preparam para a
movimento, e isso só pode ser feito movirnen_tand<>-§_;_ · '
i
vida eterna O humano, o temporal, este mundo são assim
,.
15
Mauro Martins Amatuzzi ~uma Psicologia Humana
altamente desvaloriz.ados em favor do espiritual, do eterno, 2. Erich Fromm fala do humanismo não como um movimento
do sobrenatural. A cultura antiga, representante desse localizado na Europa do século XIV. Ele fala de uma tradição
~umano, era, assim, mais ou menos desprezada, ou então era ) da ética humanista _que encontra representantes em
hda como um símbolo ou apelo de algo outro, maior. Não :, praticamente todas as épocas do pensamento ocidental. Ele
que isso tivesse caracterizado a Idade Média toda. Mas era a \ próprio pretende ser um pensador que se insere nessa tradição.
forma como uma face do pensamento medieval foi lida a :, ''Na tradição da ética humanista", diz ele, predomina a opinião
partir do ponto de vista da Renascença e do Humanismo. f de que o conhecimento do homem é a base para o estabelecimento
de nonnas e valores (1947, p. 31). ''Nomias e valores" aqui
Uma nova necessidade nos faz frequentemente caricaturar a · f-
referem-se à questão do caminho, por onde vamos, que é a
.visão anterior. Seja lá como for, esse humanismo nasceu sob t
questão do sentido. Na tradição humanista essa questão se
a bandeira da revalorização do humano, o que significava na
responde a partir de um conhecimento do homem. E Fromm
prática um retomo aos clássicos, e à cultura pagã g continua:OstratadosdeéticadeAristóteles,SpinozaeDewey[...J
greco-romana. O que é humano tem um valor em si mesmo são por isso, ao mesmo tempo, tratados de Psicologia Qd. ibid.). Q
e não coiµo mero suporte ao sobrenatural; este mundo não ê
apenas um cenário provisório e sem importância para algo ! equacionamento e o encaminhamento desses problemas são
ao mesmo tempo ética e psicologia. Etica, porque seu
que ~o tem n~ a ver ~m ele; o tempo, o ~ue se constrói t conteúdo é a questão do sentido, do por-onde-vamos; e
paulatinamente, o crescunento humano são 1D1portantes (o psicologia, porque para isso nos debruçamos sobre o homem
tempo, e não a eternidade, é onde se constroem as coisas, e j buscando um conhecimento de sua naturez.a. Um pouco antes
estas coisas que construímos). O homem é coipo tanto i
quanto alma, e é como um todo que ele tem que ser cuidado..
Virtude é o desenvolvimento das potencialidades humana(
1 .

Erich Fromm havia dito: Na éticà humanista o bem é a afirmação


da vida, o desenvofvimento das capacidades do homem. A virtude
consiste em assumir-se a responsabilidade por sua própria
. e não algo acrescentado de fora. Para alguns isso representou existência O mal constitui a mutilação das capacidades do homem;
uma rejeição da visão teológica das coisas, e no século XX ~ d e na i ~ l i d ~ t e si mesmo Qd. ibid., pp.
isso é representado pelo humarúsmo ateu (cujo exemplo 27-8). Rogers e Maslow aproximam-se bastante de
mais contundente é Sartre). Para outros essa revalorização t semelhantes concepções. No fundo existe uma crença no
do humano, do mundo, do tempo não se define por um J: homem, uma confiança no que nele se manifesta. A expressão
posicionamento antirreligioso ou ateu. Existe todo um 1· teórica disso é a tendência atualiz.ante de Rogers, ou o
humanismo cristão segundo o qual é na trama deste mundo • conceito de autoatualização de Maslow.
que realidades definitivas estão sendo construídas (e um •.; O que está na raiz do humanismo não é, pois, apenas um
exemplo eminente desse humanismo em nosso século é 1 postulado teónco, ou uma hipóte_se, mas uma atitude
Teilhard de Chardin). De qualquer fonna essa revalorização - · .concreta em favor do homem. Isso é mais fundamental que
. do homem, das coisas do homem, da história humana, as teorias que a partir daí se constroem. Teorias diferentes
daquilo que aqui efetivamente se faz, da atualidad~ ~o sobre o homem podem ser consideradas humanistas. O que
humano não se relaciona necessariamente com uma pos1çao 1,s une não é tanto que todas aceitem detenninadas
religio~ ou antirreligiosa. O que polariza esse movimento é · afirmações, mas uma atitude. Por isso Fromm fala de uma
justamente uma volta à atualidade do humano, e um tradição ética: há valores envolvidos, mais que afirmações
acreditar que esse é o caminho. · abstratas. Há posicionamentos e com_p_romissos, e não
ftl)B'~VIH'A''-YFI..('A'-'-Vl'l•"'~'Ke«+""""..,_"'" -- .
17
Mauro Martins Amaruzzi !2! uma Psicologia Humana
questionamento não era apenas teórico: teve inumeráveis
apenas teses
. . cogm·tivas ("Isso• nao
- quer dizer
. é claro que ,.
esses posic10namentos devam ser ingênuos:' existe ' toda · manifestações pessoais e coletivas, as quais certamente
tiveram uma importância para a retirada das tropas
uma
. elaboraçao - cntica
' · posterior que tende a confirmá-los
americanas do Vietnã. Tudo isso representou um grande
e Isso no próprio Erich Fromm) '
3. André questionamento coletivo do sentido da presença americana
. . Amar
. ' .numª visao · - de · conJunto
. ·
da história da
no mundo. Uma crise ética.
p_sicologia publicada num dicionário de psicologia francês,
Esta psicologia humanista surgiu como uma reação, a partir
situa q~tro momentos dessa história. O da psicologia aâ msatisfação sentida face aoscfoiscÕn_füntos teóricos mãis
hu~msta, que, na sua consideração, é o que vem da Idade importantes em psicologia: o behaviorismo e a psi~;
Média ou mesmo da Antigüidade grega, e vai até o começo m como face a uma descrença nas possibilidades da
dã ~s~cologia científica; caracteriza-se basicamente por um filosofia Não se tratava de negar as descobertas feitas no
posicionamento ético, isto é, por uma não-dissociação entre behaviorismo e na psicanálise, mas de um sentimento de que
uma pesquisa objetiva, digamos, e um posicionamento de :i eles, permanecendo em suas perspectivas originais, não
valores: é a psicologia brotando do contexto de uma ética de :, traziam as respostas de que se precisava: o ser humano com
üiiiã'visão do sentido da existência O segundo momento'é o seus questionamentos atuais não estava lá, por mais válidas
da psicologia científica onde exatamente se dá essa ruptura (Í que fossem as explicações aí dadas. Poderíamos dizer que
entre a objetividade científica e a ética. Ele situa depois, ;: essa psicologia, permanecendo nos quadros de sua ortodoxia,
como terceiro e quarto momentos, a psicanálise e a i\ podia nos dizer como treinar um soldado, ou porque um
psicologia fenomenológica, e neste último, principalmente, soldado ficava perturbado quando voltava da guerra, mas não
começam a reaparecer coisas do primeiro momento. .~ ti era esse o problema do povo americano. O problema era qual
curioso notar que esse autor, sendo europeu, não fala da . i! o sentido da guerra, e qual o sentido da vida e da morte (ou da
psicologia humanista tal cômo esse conceito aparece nos r'. minha vida e morte, ou de meu filho ou de meu marido). E
Estados Unidos, como algo bem específico, mais do que no fi aqui a psicologia tradicional não ajudava muito. E tudo isso
sentido de Erich Fromm, inclusive. Sua classificação sugere era urgente: os jovens estavam morrendo, e o holocausto já
também que além de . um posicionamento ético \i estava no horizonte. Quanto à filosofia, para Maslow pelo
indissociáveL uma psicologia humanista implicaria uma menos, ela aparecia como um conjunto de palavras apenas,
crítica à atitude científica. Retomaremos a esse ponto. sem nad.a de mais concreto.
Vemos que esses três sentidos de humanismo convergem [! Quando o humanismo afeta a psicologia, então, resulta daí não
em seu ·denominador comum, apontam para o mesmo uma teoria específica, nem mesmo uma escola, mas sim um lugar
ponto, têm o mesmo "sentido". . •
4. Mas con~entre~o-nos _agora, então,_ na psicologia
humanista no sentido restnto e contemporaneo do termo. E
l
( comum onde se encontram (ainda que com pensamentos diferentes)
todos aqueles psicólogos insatisfeitos com a visão de homem
implícita nas psicologias oficiais disponíveis. O rótulo específico de
.aqui dois livros. que se tomaram clássicos, por exex_nplo, f psicologia humanista é apenas um episódio, diria momentâneo, de
·Psicologia Existencial Humanista, de Thomas Greemng, e f algo que tém um sentido maior: a presença de uma atitude humanista
A Psicologia do Ser, de Abraham Maslow. É o tempo e a :Í
no interior da psicologia. - -
década de 1960 nos Estados Unidos. Tempo de guerra do
Vietnã; 'crise moral, de valores. O país envolvido por uma
guerra considerada absurda pelo povo americano. E esse . i
i'
ri
Mauro Martins Ama!tJZZi
Por uma Psicologia Humana 19
~e~o qu_e p~sso colocar esse sentido maior em quatro pontos:
· pnmeira parte do livro de Maslow tem por título A ~ti~de científica define um tipo de relação (a relação
exatament obJet1ficante) que não capta a pessoa atual mas apenas
. e ''Uma J'urisdi•çao
- mais· ampla para a psicologia", e
os_ dois ~pítulos que compõem essa parte são: "Para uma o ser humano como resultado. Para Buber, o centro da
psicologia_da saúde", e "O que a psicologia pode aprender p~ss~a só se revela no ato da relação. As afirmações ,
cientificas podem ser verdadeiras mas não caracterizam
co~ os e_xistencialistas". Trata-se, no fundo, de admitir que a
aqwlo que é especificamente humano.
psicologia possa trabalhar a questão dos fins, da saúde, dã
A maneira como costuma ser tratado o processo de
ai:torrealização, e não apenas dos meios, da doença ou do
comunicação dentro de uma abordagem científica seria um
aJustamento mínimo. Mas isso tudo é a questão do "para onde
exemplo interessante. O processo pode ser dividido em seis
vamos". A psicologia não pode ser apenas um conjunto de
momentos: I) o da mensagem intencional a ser comunicada;
conhecimentos técnicos a serviço de qualquer finalidade; é J 2) o da codificação da mensagem; 3) a comunicação ou
enquanto toma para si também essa questão que ela se faz ·i expressão propriamente dita; 4) a recepção da comunicação
afinal uma ciência do homem, e não antes. j através das janelas sensoriais; 5) a decodificação no nível
Isso tem a ver com a neutralidade ética da ciência como 4 central superior; e 6) a compreensão da mensagem. Tenho
alguma coisa .a ser redimensionada (é acredito que essa ;j seis coisas diferentes e bem específicas (e um distúrbio de
questão não se aplique apenas às ciências humanas). A :j comunicação pode ser situado em um desses seis estágios).
ciência só é eticamente neutra formalmente, abstratamente. íl Por mais útil que possa ser tal esquema, em termos de
O ato científico concreto nunca é neutro: ele se insere num i compreensão do que V!=lll a ser a comunicação ou mesmo oato
contexto de sentido e serve a alguma direção do caminhar expressivo, nada de mais falso do que esse retrato. Para não
humano. Para nos convencermos disso, basta q1;1;e * falar senão de um aspecto, a própria mensagem depende dos
consideremos os critérios de financiamento de pesquisa. ) passos seguintes, neles se transforma, não está plenamente
Mas essa não neutralidade vai mais longe e toca na própria l
.
constituída independentemente deles. Ela só se toma o que é
questão do alcance do saber: aquilo que eu vejo depend~ do quando já não é mais pura mensagem intencional (mas já é .
ponto de vista a partir do qual me coloco P'.111' olhar. E só k comunicação, por exemplo). A ciência tradicional não tem
dentro de um posicionamento de compromisso com o ser como lidar com isso.
humano corno um todo (coisa que não é nada abstrata, mas Um outro exemplo é o do gesto significativo:.o dedo que
acarreta até posições políticas) que meus olhos se abrem aponta para a lua, por exemplo. Idiota é aquele que, quando
para detenninados aspectos do ser humano, ou que me E aponto para a lua, olha para meu dedo. A essência de um
disponho a pc::squisar determinados problemas e de um f gesto só é dada fora dele. Olhando para o dedo, por mais que
o analise e disseque cientificamente, não chegarei à lua, e
detenninado modo. . Í portanto, nem mesmo à realidade de minha mão atual como
2. Husserl foi tJrn dos que iniciou guestionament~ da -
gesto, como presença Ora, o homem é essencialmente um
aplicação do método científico à reahdade ~umana. Nao se
gesto, em sua presença ou em sua existência, Ele é um
negaavaia . 1.d de das conclusões· Mas se.discute_o alcance?
atribuidor de sentido, e é assim que ele constitui um mundo e
delas. Aquilo que elas afirmam caracte~ ?ser humano se constitui a si mesmo na relação com o mundo. Se
origina·lidade da consc1enc1a fica fora do
· Para Husserl, a · t r separarmos as coisas, compartimentalizando-as, não mais
alcance do método das ciências naturais exatamen e po veremos a realidade significativa, a atual, o presente. Na~
sua realidade intencional (que só é captada através da mais diferente de Ull1 movimento que um retrato, nada mais .
questão do sentido). diferente de um ser vivo que um cadáver.
-- Mauro Martins AmatUZz;
A diferen a entre a es uisa ob·etiva e a artici ante
também ilustra a mesma questão. Não se trata apenas de
uma diferença de método para se conseguir o mesmo
Capítulo III
resultado. O saber produzido é concretamente outro, o . .
assunto pesquisad? é outro, o possuidor do saber é outro.
Trata-se de uma diferença na forma de conceber a relação :
Silêncio e Palavra
h~ana e o conhecimento. :,
3. QQ.sto d~ ente~der a atitude fenomenológica por compara'2o S .:
co?I a atitude mgênua e a crítica. Segundo a atitude ingênua, .li
existe um mundo independente, constituído por si mesmo, e '1 Jlllltamente com a questão do sentido, temos também a
~mo tal cognoscível (e Maslow fica ainda nessa atitude, ao ~j questão da palavra, não menos importante para caracterizar o
qu~ par~e; ê o preço que ele paga por não ter sido um pouco hwnano. Nada entenderemos do "aparelho significatório"
mais filosofo). Já na atitude crítica, sabemos que o que (t (expressão que poderia substituir a de "aparelho psíquico')
ercebemos desse .mundo depende de nossos referenciais. il sem levar em conta a intencionalidade e a linguagem. F.$e
texto foi publicado originalmente em 1992, na revista Estudos
Costuma-se referir a Kant, com sua crítica ao conhecimento, f de Psicologia (PUC-Campinas), 9(3), pp. 77-96, com o título
para o nascimento mais forte dessa atitude; é preciso ;' O süêncio e a palavra. Faço aqui pequenas alterações de
relati~ o conhecimento e estudar os referenciais através : detalhes apenas para melhor expressar o que está sendo
dos quais ele se dá. Creio que a atitude fenomenológica vai exposto. No item III, quando se trata do secundário, houve
além da crítica, e eu a formularia assim: é só na interação que J modificações um pouco maiores, mas mesmo assim
teremos o verdadeiro conhecimento. O conhecimento 1) consistiram apenas em acréscimos de algwnas poucas frases
compõe a interação humana com o mundo, é um aspecto dela. ~; visando explicitar a relação do -tema com a psicologia e a
psicoterapia.
~ma_ mtei:açâo s~ conhecimento é po?re e de um nívef /i
infenor, e ilude se nao nos dermos conta disso. O humanismo t;
em psicologia aponta para uma atitude Jenomenologica.
4. E só nessa postura totalmente diferente que se revela O ~:
homem no que ele tem de próprio. Aquilo que se revela aí é ;:

.
E . .
stecapítulopodenaterosegumtesubt_itulo.
uma leitura de Merleau-Ponty a partir das

, .
uma totalidade em movimento, uma criatividade, e não íl' preocupações de um psicoterapeuta. De
completamente isolável de totalidades mais abrangente;,o b
fato, ele não pretende reconstituir o pensamento
homem como pessoa atual é o homem como palavra, isto é, desse Merleau-Ponty em seu contexto próprio e a
como abertura para algo outro, onde corpo e alma são (;. pàrtir das questões que ele se colocava. Mas visa
indissociáveis (não podendo ser compreendidos um sem o 1:- responder a uma pergunta como "em que esse filó-
outro); é ato e não resultado (isto é, existe na interação com · sofo nos faz pensar, a nós psicoterapeutas?", ou
·o mundo e com os outros homens); é busca de sentid<?, "em que ele pode nos ajudar a pensar nossas pró-
atribuição e comunicação de sentido, criação ~e mais : prias questões?". É claro que essa elaboração ~res-
~ - No fundo, a meu ver, a presença do Humanismo na . supõe umâ primeira leitura dos textos a partir da
Psicologia é a presença de uma saudade. _Saudade .do qual algumas pistas foram surgindo. Uma dessas
homem atual, desafiado no presente em relaçao ao sentido lpistas é a ideia de silêncio, não apenas como ausên-
de sua vida. eia de ruídos, mas como algo positivo e embrioná- t /.. .

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