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Capitulo

Mtbdos vivenciais em T&D


Paula Falcão

20.1 Objetivos
Os métodos vivenciais de desenvolvimento do ser humano não são novidade. O sistema edu-
cacional mais antigo de que temos conhecimento em detalhes é o dos gregos: desde aquela épo-
ca, jogos e esportes eram utilizados como forma de obter excelência na aprendizagem.
Na educação de adullos nas organizações, dinâmicas de grupo são utilizadas desde a déca-
da de 1940. Nos últimos dez anos, entretanto, as metodologias vivenciais en1 T&D (dinâmicas
de grupo, jogos de diversos tipos, alividades ao ar livre, esportes radicais, trabalhos voluntários
e ouu·os) tê m sido utilizadas com alto grau de sucesso.
Neste capftulo, passearemos pelas principais metodologias vivenciais, seus fundamentos e
mostl-aremos alguns recursos avançados que podem ajudar a garantir o sucesso de seu programa
de T&D.
O objetivo é que você, leitor, faça uma reflexão sobre o melhor a usar em cada caso. Para
tanto, terá o fundamento e algumas dicas de minha própria experiência no uso de atividades
VIvenCiais.

20.2 Dinâmica, jogo e vivência


Quando pergum o aos profissionais de RH qual a diferença entre jogos, vivências e dinâmicas
de grupo, a maioria não sabe dizer. Alguns usam o termo 'dinâmicas', outros, ~ogos', outros,
'brincadeiras' etc.
Pe rcebo que existe grande resistência dos treinandos ao que se convencionou chamar di-
nâmicas de grupo . Na minha percepção, isso se deve ao mau uso de uma excelente ferramenta,
principalmente durante processos seletivos. A resistência é tamanha que há alguns anos chegou
a existir um site na Internet chamado www.odeiodinamicas.com.br!
Para que essas coisas não mais aco nteçam, o profissional de T&D precisa usar as ferrament.as
vivenciais disponíveis com cuidado, bom senso e, acima de mdo, respeito pelo treinando. O bom
senso c o respeito são atitudes de cada um, mas neste capítulo espero ajudar bastante no quesito
cuidado. E a p1·imeira parte desse cuidado é saber os conceitos e utilizá-los adequadamente. Você
usa jogos ou dinâmicas de grupo em seus treinamentos? Todos concordam que as atividades ao
ar livre são vivenciais, mas será que uma reunião também é? Ou não?
Bom, vamos definir estas coisas. O Dicionário Houaiss da Língua. Portuguesa tem duas definições
para dinâmica de grupos: "técnica e conjunto de procedimentos que visam estabelecer um bom
níve l de imeração entre os membros de um gtupo de pessoas, a fim de alcançar o seu maior ren-
dimemo num u-abalho em conjumo"; e "estudo de como funcionam os grupos humanos em ação
e de como modificar o seu comportamento, tomando-os conscientes dos motivos de suas atitudes
e interações". Podemos perceber nessas defin ições que apenas a primeira transctição menciona
conjunto de procedimentos, ou seja, pedit· que o grupo execULe at ividades eslruturadas. Porém,
essa definição fala apenas em bom relacionamemo, não em aprendizado em geral. l a segunda,
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que se relaciona com o desenvolvimento de consciência nas pessoas, me nciona-se apenas o es-
tudo do funcionamento do grupo e não a aplicação de uma a tividade específica. Inte ressante,
não? O importante aqui é percebermos que Kun Lewin , o criador da técnica, tirou a idéia de
dinâmica de grupo da física, mais precisamente da mecânica, que esmda o comportamento de
corpos em movime nto e a ação das forças que produzem ou modificam esses mo.,.imcntos. Então,
em seu conceito o riginal, dinâmica de grupo não é a aplicação de uma a tividadc específica, e sim
o estudo da interação e nu·e as pessoas e de como o movimemo de um dos membros de um gru-
po imerfe re no movimento dos outros. Isso pode acontecer em um jogo, e m uma reun ião, uma
festa, ao pegar um ônibus o u qualquer o utra atividade . Portanto, "dinâmica não é a atividade cm
si, mas o que se observa c se aprende a partir da atividade".
Se pesquisarmos o que é jogo, enconu-aremos imíme1-as definições diferentes. O espone tem
uma definição para jogo. A psicologia, ourra. A pedagogia, mm-a. As ciências sociais, ainda ouu-a.
Todas elas completamente diferentes entre si. A mais abrangente que encontrei é a de J ohn Von
Neumann- matemático austríaco e criado•~ entre outr-as coisas, da teoria dosjogos, pane da mate-
mática que estuda a maneira pela qual as pessoas tomam decisões. Em 1947, Von Neumann definiu:
'jogo é toda e q ualque r int.eração entre dois ou mais st~íeitos dentro de um conjunto definido de
regras". Para ele, uma criança jogando tênis em um paredão é j ogo (stticit.o 1, a criança; sujeito 2, a
bola); futebol é j ogo, assim como torcer por um time. Paque ra, segundo essa definição, também é
jogo, e também almoço de domingo com a família, reunião de acompan ha me nto, treinamemo, ir
à praia ou qualque r o utra atividade humana. Em resumo, a vida é um grande j ogo.
Pant vivê ncia, o Dicioná1·io Hou.aiss apresenta várias definições: "o fato de te r vida; o processo
de viver", "coisa que se experime ntou vivendo, vivenciando"; e "conhecime nto adqui rido no pro-
cesso de viver ou vivenciar uma simação ou de realizar alguma coisa; e xpe riê ncia prática". Aqui
podemos e nfatizar para a parte prática do processo. Se pensarmos especificame nte na atividade
de T&D, Feia Moscovici define vivência como "um processo de e nsino-aprendizagem de nomi-
nado 'educação de labor-atório', ou seja, um conjunto me todológico q ue o bje tiva o alcance de
muda nças pessoais a pa rtir de aprendizagens baseadas em expe riências d ire tas ou vivê ncias".
Podemos conclui r, portanto, que a vivência engloba os dois conceitos an teJ;ores: o jogo, como
a atividade que est<Í sendo vi venciada, e a dinâmica de grupo, como o que se pode observar, e o
a pre ndizado decorrido a partir do jogo. Como, segundo Von Ncumann, qualque r coisa pode ser
jogo, podemos definir que a "metodologia vivencial e m T&D é o aprendizado obtido por meio
da dinâmica de grupo ge1-ada por um jogo".

Tempo para pensar


• Você já parou para pensar sobre qual a finalidade real do uso de atividades do tipo 'pagar mico' em T&D?
• Será que o fato de alguém imitar uma geléia de morango por ter fracassado em uma atlvldade vai motivar
ou desmotivar?
• Será que 'dançar na boquinha da garrafa' por ter chegado atrasado vai fazer com que a pessoa torne·se
pontual?
• Será que não são essas pessoas os criadores de sites como o www.odeiodinamlcas.com.br?
• Será que o 'mico' não aumenta a resistência dos treinandos, dificultando assim o aprendizado?

20.2. 1 Mais detalhes sobre jogos


MuitO se tem falado c escrito sobre jogos em T&D. Alguns pontos são bastante importantes
para garantir o sucesso ao utilizá-los:
a) Usar jogos coope1-ativos e não competitivos
Ro bert Kaplan, cm um de seus últimos boletins on-line, declarou que as empresas que so-
breviverão ao século XXI são aquelas que têm alinhamento de missão, '~são c valores enu·e
todos os cola boradores, forte e eficaz u-abalho e m equipe e foco nos resultados desejados.
Para tanto, os colaboradores precisam estar unidos, e não uns conu-a os o utros. Então,
não faz sentido estimular a competição. Um dos princípios da teoria geral de siste mas diz
238 Manual de treinamento e desenvolvimento: processos e operações

que, para um sistema sobreviver, precisa apresentar alto gr.tu de coesão (união entre seus
elementos) e baixo grau de acoplamento (dependência de outros sistemas). Se conside-
J-armos a organização um sistema, isso significa que as pessoas que o compõem devem
estar altamente coesas, com visão alinhada, trabalhandojunras para um foco bem definido
c que a org-anização como um todo precisa depender pouco de outras organizações. Por-
tanto, para uma organização ser competitiva no mercado, as pessoas precisam cooperar
em um grau bastante alto e assumir o papel de protagonistas, sabendo se autogerenciar.
Isso mdo se obtém pelo uso de jogos cooperativos, e não competitivos.

Tempo para pensar


• Você já considerou a hipótese de que estimular a competição em uma equipe de vendas pode fazer com
que um vendedor ignore oportunidades que possam beneficiar outro colega, fazendo com que a organização
perca ao invés de ganhar?
• Você já percebeu que quando usamos jogos competitivos para negociação estamos introduzindo o conceito
de 'ganha-perde' e não o de 'ganha- ganha'. e se isso for usado depois do treinamento podemos estar des-
truindo parcerias valiosas com clientes e fornecedores?

Além de todas as razões expostas, os jogos cooperaüvos estimulam nos treimmdos um pm-
cesso associ(t/.iuo, deixando-os abertos ao aprencliz.r"ldo, prontos a colaborar c caminhar na direção
do outro. Os jogos competitivos, por sua vez, trazem consigo o tnrxesso dissociativo, pois, como
a competição envolve defesa e ataque, os u·einandos precisam construir barreiras de autodefe-
sa, distanciando-se uns dos outros e muito provavelmente gerando conflito. A pergunta aqui é:
quem aprende melhor? Aquele que está aberto e colaborativo ou aquele que está resisteme e
defendendo-se?

Pergunta crucia l
Mas como transformar os jogos competitivos que utilizo em cooperativos?

• Em vez de colocar a meta de "quem fizer mais pontos ganha", coloque uma meta muito mais ambiciosa: se
quem ganha está fazendo 200 pontos e forem 5 grupos, coloque a meta "todos os grupos juntos têm que
fazer no mlnimo 1.200 pontos".
• Em vez de dizer que quem fizer a tarefa mais rapidamente ganha, diga que o jogo estará terminado quando
todos finalizarem a tarefa e jogue a isca: "O último grupo em que eu apliquei este jogo conseguiu em 1O
minutos, vocês acham que conseguem antes?"
• Troque as pessoas que fizerem pontos de equipe; afinal, é o que acontece na vida real: quando •marcamos
ponto' mudamos de função ou, muitas vezes, de empresa.

Aconteceu comigo
Em uma das reuniões do Grupo Jogos em T&D, estudamos jogos de cartas e tentamos transformar os jogos co-
muns de baralho em jogos cooperativos. Estudamos o jogo de Mexe-mexe, baseado no Buraco, em que os jogadores
podem mexer nos jogos da mesa, e ganha aquele que terminar suas cartas primeiro. Mudamos as regras: o objetivo
passou a ser baixar na mesa todas as cartas do baralho, no menor tempo possível. Se acabarem as cartas de alguém
antes disso. o grupo todo perde. Ficou interessantfssimo. Baseado nele, criei o Mexe-mexe do Atendimento. Preparei
um baralho com palavras-chave de atendimento a clientes, além de verbos, conjunções etc. Imprimi em quatro co-
res, como se fossem os quatro naipes do baralho comum, e todos deveriam jogá-lo formando frases importantes no
atendimento ao cliente. Depois do jogo, é feita uma reflexão sobre as frases que se formaram.

b) Encarar os jogos como infinitos


O padre e filósofo norte-americano James Carse diz que um jogo pode ser encarado de
forma finita ou infinita. Quando o vemos como finito, ou seja, acabou ali na sala de trei-
namento, não o relacionamos com mais nada. Quando o consideramos infinito, isto é,
dentro do conceito de que a vida é um grande jogo composto de jogos menores, continua-
mos a j ogar sempre, eternamente. Além de ser um modo de encarar a vida que favorece
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o apre ndizado e a melhoria contínua, pois vemos todos os acontecimentos encadeados e
percebemos melhor as causas e as conseqüências dos fatos, essa postura facilita a percep-
ção da dinâmica do grupo e a construção das relações enu·e o jogo e a vida diária.
c) Usar o jogo certo no mome nto certo
Um grupo de treinandos aquece-se de fonna gradual. Ponanto, a complexidade dos jogos
a serem aplicados também deve seguir esse ritmo. Inicie com jogos leves, ativadores, sem
maiores compromissos. Deixe para usar atividades que ex!jam esu-atégia e união pa1-a o
momento em que sentir o gn1po bem aquecido e pronto para o 'trabalho pesado'.
O uso de jogos mais complexos do que pede o momento do grupo traz desequilíbrio e con-
níto. Pode ser uma excelente esu-atégia para queb1-ar resistências, se você tiver tempo pa1-a
reconstnlir o gmpo. Se não tiver esse tempo, preste muita atenção no grau do desafio que
está propondo: não pode ser tão simples que se torne chato, nem tão complicado que o
grupo não consiga faze r. O ideal é que o grupo se esfo1·ce bastan te, mas obtenha sucesso.

20.2.2 Conexão com a realidade organizacional


O principal motivo que leva as atividades vivenciais a ser tão efe tivas e m te rmos de aprendi-
zagem é o fat.o de o nosso cérebro límbico (a parte do cérebro responsável pelo processamento
de nossas emoções) não ter a capacidade de distinguir entre o que é imagimírío c o que é real.
Nesse sentido, se, ao jogar, fazemos um planejamento estratégico para conquistar o sistema solar
de Alpha Centamo, o aprendizado acontece exatameme como se estivéssemos fazendo o plane-
jame nto estratégico de nosso de partamento para o ano seguinte.
Poré m, a ludicidade faz com que o treinando entre e m contato com seu lado cria nça, mo-
mento em que se encontrava muito mais aberto ao aprendizado. Portanto, quanto mais conse-
guirmos tal contato, mais fácil será aprender.
O aprendizado por meio de uma vivência pode ser inconsciente. Por exemplo, durante o
jogo o u·cinando percebe que consegue maior comprometimento das pessoas quando todos es-
tão envolvidos com a decisão. Então, inconsciente mente, passa a fazer isso em seu dia-a-dia, o q ue
acaba dando certo.
Este é um 'resultado automático' da vivência. Entretanto, ele se potencializa quando o treinando
está consciente do q ue mudou e do que ainda precisa ser mudado, e a consciência acomece quando
as ligações eno·e o que viveu e o seu dia-a-dia estão claras.
Por exemplo, um dos meus jogos é Aasgard - O jogo vikiug de desenvolvimento de potencial.
1 esse jogo, os treinandos s.-lo vikingsdo século lX em uma aldeia da Dinamarca e precisam construir
um barco c amwcssar o mar para chegar ao cliente com suas mercadorias. Apliquei o Aasgard em
uma empresa de logística do Centro-oeste com a finalidade de u-abalhar competências de liderança.
Devido à semelhança da missão do Aasgard com a missão da e mpres.'l, além elas competências ele
liderança, os treinandos puderam discutir uma série de questões de aperfeiçoamento ele processos.
Outra questão imeressante sobre o Aasgard é que, por ser um jogo vilúng, também tem efeito
de extre ma motivação e m empresas escandinavas e alemãs.

20.3 Aprendendo com a vivência para o dia-a-dia


Mesmo que a conexão e ntre o jogo e a realidade do treinando não seja tão di reta, existem
técnicas para auxiliar os participantes a fazê-la. E' importante conside 1-ar que, em geral, os trei-
nanelos não têm o mesmo olhar do focalizado r, mais acostumado a lidar com o simbólico elo que
a maioria das outras profissões. As principais técnicas são o Ciclo de Aprendizagem Vivencial
(CAV) e a maiêutica.

20.3 . 1 Ciclo de Aprendizagem Vivencial


Ao m ilizar a estru tut-a do Ciclo de Aprendizagem Vivencial, podemos ga1-anti r a conexão
en tre o jogo e a 'vida real', ajudando o treinando a elaborar um plano de ação para seu dia-a-dia.
O CAV apresenta a seguinte estrutura:
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Figura 17.1 Ciclo de Aprendizagem Vivencial

Vivência

Aplicação Relato

Generalização Processamento

a) Vivência
A vivência, como o próprio nome diz, é o jogo ou a atividade propriameme dito. Devemos
considerar para essa fase cerca de metade do tempo envolvido.
b) Relato
O relato trata elos sentimentos que o jogo despertou. Normalmente, quando ao final do
jogo as pessoas imecliatament.e começam a falar sobre isso, mesmo que o focalizador não
se re(tna com o grupo para fazê-lo. Quanto mais impactante a atividacle, mais as pessoas
querem falar, c é importante deixá-las esgotar o assunto.
c) Processamento
O processamento é a descrição do que aconteceu durante o jogo. Normalmente essa fase
e a anterior acontecem mescladas. As pessoas falam, por exemplo, "Eu estava morrendo
de medo por estar de olltos Yendados e ninguém me falar o que fazer". Nesse exemplo,
o "morrendo de medo" é relato, e o "estava de olhos vendados e ninguém me falar o que
fazer"
, é processamento.
E importante que o focalizador lembre de 'puxar' das pessoas, por meio de perguntas,
essa conexão entre comportamentos e sentimentos.
d) Generalização ,
1essa fase, o grupo deve relacionar o que viveu com seu dia-a-dia. E aqui que entram duas

perguntinhas muito úteis para o focalizador: "O que isto tem que ver com seu dia-a-dia?";
e "O que aconteceu aqui acontece no seu dia-a-dia?".
e) Aplicação
Essa é a fase de discussão dos comportam entos a serem mudados e de elaboração de um
plano de ação. Dê preferência a fazer planos de ação em grupo, para que as pessoas real-
mente comprometam-se com as mudanças a serem implantadas.

20.3.2 Maiêutica
A maiêutica é uma técnica criada e utilizada por Sócrates, que acreditava ser sua principal
tarefa e nsinar o homem a cuidar de sua própria alma (psic!té).
Por ser filho de uma parteira, Sócrates costurna,ra comparat· sua atividadc com a de trazer
ao mundo a verdade que há dentro de cada um. Ele nada e nsinava, apenas ajudava as pessoas a
extraírem de si mesmas opiniões próprias e isentas de falsos valores. Para Sócrates o processo de
aprender é interno, c tanto mais eficaz quanto maior for o interesse de aprender. Só o conheci-
mento que advém de de ntro é capaz de revelar o verdadeiro discernimento.
Na maiêutica, o focalizado r ado ta a posição de uma pessoa que apenas 'sabe que nada sabe',
fazendo, assim, as pessoas usarem a razão e extrair de si mesmas a resposta em tudo lógica e com-
parível com os problemas expostos, fornecendo-lhes a solução. Isso é feito de maneira simples,
devolvendo a pergunta a quem a fez. A frase-chave é "O que você acha?".
Mlbdos vivenciais em T&D 24 1

Aconteceu comigo
Certa vez deparei com alguns participantes bastante resistentes. Um deles perguntou se eu achava que a em·
presa estava realmente querendo mudar e tornar a comunicação clara e transparente, uma vez que nunca havia sido
assim. Eu devolvi a pergunta com o famoso ·o que você acha?" da maiêutica, e imediatamente o ambiente ficou
bastante tenso. Após pensar um pouco, o treinando respondeu: "É, você tem razão. Eles não iam investir em trazer
gente do Brasil inteiro para fazer este treinamento se não quisessem que isso aconteça de verdade. Vou colaborar".
Muito mais forte do que se alguém tivesse dito isso a ele...

20.4 Recursos vivenciais avancados


A seguir temos alguns recursos que podem auxiliar você a obter resultados excelentes em
treinamentos vivenciais.

20.4.1 Aprendizagem significativa


Você consegue se lembrar agora, imediatamente, sem pesquisar nem parar para pensar, o
nome, a seqüência e o peso atômico dos dez primeiros elementos químicos? Certamente todos
estudamos isso na escola, mas, seguramente também, a maioria das pessoas não se lembra mais.
Segundo David Paul Ausubel, o aprendizado só é significativo, isto é, algo que lembramos para a
vida toda, quando é relevante ou pode se ancor.1r em algo relevante. Caso contrário, será o que
Ausubel chama de aprendizagem mecânica, coisa que se aprende e logo se esquece, como os
elementos químicos o são para boa pane das pessoas.
Ausubel diz que a aprendizagem significativa acontece em degraus, como uma escada, por
meio de conceitos ancorados uns sobre os outros. O conceito que serve de âncora pare~ o pró-
ximo é chamado de 'conceito subsunçor'. Quando não existe um conceito subsunçor, cabe ao
focalizado r introduzir o que Ausubel chama de 'organizadores prévios', conceitos anteriores ao
que deve ser aprendido em que o aprendizado possa se apoiar.
Para que a a prendizagem significativa ocorra, deve ser gradual. Ausubel chama isso de 'di-
ferenciação progressiva': começar vendo as coisas de maneira geral e ir gradualmente entrando
em detalhes.
·nunbém é recomendado que o focalizador faça, no final de cada etapa de aprendizado, o
que Ausubcl chama de 'reconciliação integradora': fazer as relações entre o que foi aprendido e
sua aplicação prática, ou seja, nada mais do que o nosso CAV.
• Exemplo prát.ico de aprendizagem significativa
Para dar treinamento sobre balanced scorecard (BSC), criei um jogo chamado 'Iai-Pan 22,
em que os participantes devem fazer comércio no espaço sideral. O perfil do profissional
que trabalha com BSC é normalmente bastante lógico e analítico. Portanto, visando cons-
tmir 11111 organizador prévio, criei um jogo de tabuleiro, que normalmente agrada bastan-
te esse tipo de público. Então, o organizador prévio é: "para aprender com este jogo, vou
usar lógica e esu-<négia, e eu gosto disso".
Tai-Pan 22 é um jogo que acontece em rodadas, no conceito de diferenciação progressiva.
Na primeira rodada, forneço as regras e inicio a rodada imediatamente. O grupo normal-
mente se dá mal na primeira rodada, percebendo como pode ser problermhico para a
organização sair fazendo as coisas sem nenhum tipo de alinhamento. Po rtanto, o primeiro
subsunçor passa a ser: "precisamos nos alinhar para trabalhar direito".
Antes da segunda rodada, concein1o missão, visão, valores e as perspectivas do BSC, mos-
trando a missão e a visão da empresa Tai-Pan 22. Com essas informações, os treinandos pla-
ncjam-se c jogam a segunda rodada, normalmente um pouco melhor do que a primeira,
mas ainda deixando a desejar. Eles percebem que o mero alinhamento não é suficien te;
precisam definir algum tipo de estratégia. Esse é o segundo subsunçor.
Portanto, antes da terceira rodada consU<Jímos o BSC da Tai-Pan 22 até a fase dos objetivos
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estratégicos e jogamos novamente. O resultado melhora, mas ainda não é o ideal; o gmpo
percebe que a mera esu·atégia sem metas não resolve. Esse é o terceiro subsunçor.
Portanto, antes da quana rodada estabelecemos metas. E a~sim vamos, gradativamente,
,
fazendo mais e mais rodadas, até que o grupo tenha dominado o uso do BSC. E claro que
isso não acontece e m uma hora. Este é um jogo que dura dezesseis horas ou dois dias de
treinamento.

20.4.2 Economia de experiência


A economia de experiência é uma teoria de marketing criada por James Gil more e Joseph
Pine. Ela diz que estamos na U<msição de uma economia de serviços para uma economia de
experiências, ou seja: de agora em diante, as pessoas não vão procurar apenas bons serviços; vão
."' . . , .
procurar e xpe n enc1as mesquec1ve1s.
Você deve estar se perguntando o que isso tem que ver com T&D. Simples, a vivência não
supõe experimentar, passar por uma experiência? Pois é! Se a experiência for inesquecível, o
aprendizado também será, e a teoria de Pine e Gilmore mostra como tornar uma expe riê ncia
inesquecíve l. Para isso, precisamos de quatro elememos:
a) Entretenimento
Entreter-se é estar passivamente absotvido pelos sentidos, como q uando assistimos à tele-
visão. Ponanto, a experiência inesquecível deve absorver os sentidos dos participantes.
b) Educação
Na educação, estamos ativamente absorvidos na atividade, aprendendo. Portanto, a expe-
riência inesquecível deve proporcionar algum aprendizado.
c) Estética
Na esté1ica o ambie nte e nvolve e maravilha o participante. Um exemplo elo impacto da
estética é a primeira visão que uma pessoa tem das cataratas do Iguaçu. Portanto, a expe-
riência inesquecível eleve acontecer em um ambiente que cause alto impacto nos partici-
pames.
d) Evasão
A evasão acon tece quando nos envolvemos tanto com algo, a ponto de perder a noção do
tempo, e n unndo no que Danie l Goleman chama de 'estado de nuxo' . As atividades lúdi-
cas em geral têm esse poder.
Portamo, a vivência ideal, aquela que se torna inesquecfvel, deve entreter, educai~ exercer
alto impacto estético e faze r com que os participantes percam a noção do tempo.

Devemos lembrar também que as pessoas, ao experimentar algo de que gostam, tendem a
não querer nada menos que isso. Portanto, as atividades vivenciais como um todo devem sempre
evoluir e m termos do impacto da e xperiência. Tenho utilizado a economia de experiência e m
meu trabalho de duas maneiras:
a) jogos com cenários
Use jogos e m que os participantes se sintam U<lnsportados para outro local. Isso pode
ser feito por me io de uma cenografia bem e laborada, aliada a e lementos como música
adequada, postura do focalizador (se o jogo for sobre os cavaleiros da távola redonda,
por exemplo, você pode se vestir e se comportar como os personagens rei Artur, Me rlin,
Morgana etc.) e providenciar, também, roupas características para os treinandos.

Aconteceu comigo
Em 2004, fui procurada pelo RH de uma empresa de saúde que precisava treinar o corpo de auxiliares de en·
fermagem em duas competências: trabalho em equipe e visão sistêmica, a fim de perceber o paciente como um ser
humano. Esse trabalho tinha dois desafios: o primeiro é que, como auxiliares de enfermagem normalmente têm dois
empregos e não podem se afastar muito do posto de trabalho, o treinamento não podia durar mais de duas horas.
No ano anterior, eles tinham assistido a um filme, mas o cliente queria algo de mais impacto. O segundo desafio era
Mcbdos vivenciais em T&D 24 3

que, em ambos os hospitais da rede, as salas de treinamento tinham aproximadamente 20 metros quadrados (4 x 5
metros), para abrigar turmas de 15 a 18 pessoas!
A primeira coisa que me preocupou foi a sensação de claustrofobia que pode ser gerada ao se passar duas horas
com cerca de um metro quadrado por pessoa. A segunda, a necessidade de trabalhar conceitos tão profundos em
tão pouco tempo.
Pensei bastante e criei o jogo Resgate em Moa-Moa. Nesse jogo, os participantes são transportados para Moa-
Moa, um arquipélago de ilhas do Pacífico. Eles sofreram um desastre de avião e espalharam-se per três ilhas. Todos
estão 'machucados', com algum tipo de restrição física (olhos vendados, mãos amarradas etc.). O objetivo é, usando
uma jangada, juntar todos os participantes, comida, água e peças do rádio em uma única ilha, pedindo o resgate.
Para tanto, criei um cenário: toda a sala foi forrada por painéis representando o céu e o mar. Isso dá amplidão e
acaba com a sensação de aperto de tanta gente em um lugar pequeno. Além disso, colocamos o mar no chao, ilhas,
pedras cenográficas, coqueiros cenográficos. barbatanas de tubarão e a jangada. Foi tanto o impacto nos participan-
tes que o grupo ficou aquecido apenas ao entrar no ambiente.
Os resultados foram excelentes e treinamos cerca de 1.200 auxiliares de enfermagem em 60 sessões de duas
horas. Deu trabalho, mas valeu a pena!

b) Role Playing Game (RPG)


RPG, ou Role Playing Game, é uma modalidade de jogo em q ue, os participantes vivem
uma avcntma conduzidos pelo 'Mestre', o contador da história. E muito jogado por ado-
lescentes c existe toda uma indústria milionária que produz livros com as histórias que os
jogadores vivem.
Claro que, para usar RPG na realidade organizacional, algumas mudanças precisam se•· feitas.
No jogo original, cada jogador compõe um personagem, c esse personagem apresenta uma
ficha com seu grau de proficiência em ,rárias habilidades, chamadas de perícias pelosjogado-
res. RPG é tunjogo em que as jogadas e decisões acomecem com dados (utilizamos não só
os dados rradicionais, de seis faces, mas alguns jogos chegam a urilizar dados de 64 faces). O
grau dojogador c m cada habilidade define quantas faces tem o dado que ""i utilizar. Portan-
to, o inicia me usa um dado com quatro faces, que sorteará no máximo o mímero 4, e o perito
usa um dado com 20 faces, que sorteará núuneros bem maiores.
O uso dessas fichas de personagens é bem complicado. Portanto, simplifiquei bastante
o uso cm T&D. Corno o que irnport.a em um treiname nto é o desenvolvimento de com-
petências, divido os participantes em gmpos e cada um deles recebe uma ficha com as
competências do grupo. Conforme vão sendo vencidos os desafios, cada grupo aumenta o
número de pontos por competência, e ganha assim o direito de usar dados maiores.
O importante no RPG é a força da aventura. A economia de experiência acontece de
dentro para fora, não de fora para dentro, como no caso dos cenários. Os panicipantes
e ntram na fantasia da história e apaixonam-se pelo jogo. Claro que, se além da história
tivermos cenários e fantasias para os participantes, o resultado é potencializado.

Aconteceu comigo
Aasgard - O jogo viking de desenvolvimento de potencial, citado anteriormente. é um RPG, em que os partici-
pantes sao divididos em clãs vikings e precisam construir um navio e atravessar o mar para chegar ao continente da
conquista, onde estão os clientes.
Aasgard há tempos vem se tornando case nas empresas em que é aplicado. O jogo foi originalmente criado
para ser utilizado em oito horas. em sala de aula. Apliquei assim durante bastante tempo, até que um cliente me
procurou e pediu para que fossem agregadas atividades ao ar livre durante o jogo. Então criei uma nova versão,
dessa vez com doze horas de duração. Nessa nova versão, quando os participantes fossem para a parte do jogo que
se passa na floresta, os desafios seriam jogos ao ar livre. Também mudei os desafios da travessia do mar, fazendo os
participantes construfrem uma balsa e atravessarem a piscina dispcnlvel. Além disso, para esta versão do Aasgard,
todos se vestiriam de vikings.
O jogo é um grande sucesso. os jogadores realmente entram com força na fantasia, perdem os bloqueios e expõem
suas competências desenvolvidas e a desenvolver, aprendendo bastante. Nessa primeira aplicação da versão mista
(sala de aula/ar livre), fomos para uma pousada do Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), em Salesõ-
2 44 Manual de treinamento e desenvolvimento: processos e operações

polis, SP. Além de o lugar ser muito bonito, a pousada é rústica e fica ao lado de uma represa e de uma floresta de
pinheiros.
Além disso, fizemos com que a principal refeição fosse um churrasco ao ar livre, com uma fogueira, leitão no
rolete e carnes que as pessoas pudessem comer com as mãos, e bebidas em canecas de barro. Altíssimo impacto e
resultados notáveis!

20.4.3 Sincronicidade
Sincron icidade é o nome que Carl GustavJung deu ao fato de que, quando o observador está
aberto, observa uma série de coincidências significativas que acontecem a tOdo momento. Jung
não explica por que essas coincidências ocorrem, mas as reconhece e, mais imponame, declara
que o fato de muitas vezes não sermos capazes de notá-las vem de nossa mente ocidemal, que
divide as coisas cm pequenas porções separadas. Segundo Jung, quando buscamos um 'olhar
oriental' para as coisas, tentando perceber o todo primeiro para depois entender as partes, tor-
namo-nos conscientes da sincronicidade.
Em uma at ividade vivencial, a sincronicidade está presente durante todo o tempo. Se o lhar-
mos com esse olhar 'oriental', perceberemos que acontece cxatarnentc o que precisa aconte-
cer com cada um dos treinandos. Comecei a reparar isso ao introduzir dados cm meus jogos
para treinamento, algo que poucas pessoas no mercado utilizam. Não esperava, mas vi que,
na prática, as pessoas sempre sorteavam o número ou a atividade que mais contribuiria para o
aprendizado.
Espantei-me, mas isso apenas reforçou um conceito que a andragogia c o próprio CAV já
trazem: "o focalizador não deve interferir na vivência". Deixe as coisas fluírem, algo de bom está
acontecendo!
Além disso, quanto mais se consegue perceber o todo c a sincronicidadc acontecendo, mais
profundidade poderá se dar ao CAV!

20.5 Conclusão
A metodologia vivencial de T&D é uma das mais motivadoras c instigantes. Quando utiliza-
da com propriedade, seus resultados são imbaúveis. O importante é que o focalizador a adote
sabendo exatamente quais são seus objetivos. A seguir, algumas 'dicas' baseadas em minha
experiência:
• use atividades que tenham um obj etivo detenninado. Colocar um jogo apenas para preen-
cher tempo ou porque 'é legal' pode levar a resulLados desastrosos;
• aumente gradativamente a profundidade do trabalho;
• use e abuse da economia de experiência;
• deixe a dinâmica do grupo acontece •~ evite ao máximo interfe rir;
• lembre-se de que as pessoas precisam de pausas para se alimentar, tomar água e usar o
banheiro;
• acima de tudo, respeite as pessoas. Não force ninguém, nem 1nesmo de maneira subjetiva,
a fazer o que não quer.

Boa sorte!

Referências bibliográficas
AUSUBEL, David Paul. Acquisition and retention of know/edge. Nova York: Kluwer Academic, 2000.
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COOK, Monte et ai. Dungeons & dragons: livro do mestre. São Paulo: Devir, 2001.
Mcbdos vivenciais em T&D 24 5
FALCÃO, Paula. Criação e adaptação de jogos em T&D. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2003.
_ __ ; VILA, Magda. Focalização de jogos em T&D. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2003.
GOLEMAN, Daniel; MCKEE, Anne; BOYATZIS, Richard. O poder da inteligência emocional. Rio de Janeiro:
Campus, 2002.
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VON NEUMANN, John; MORGENSTERN, Oskar. Theory of games and economic behavior. Princeton: Princeton
University Press, 2004.

Sites indicados
www.ancorarh.com. br
www.grupoted.com. br
www. jogodeaprender.com.br
www.jogoscooperativos.com.br
www.kdpkepler.com .br

Grupos de discussão e estudo

Grupo Jogos em T&D


• Virtual: para participar envie um e-mail com três jogos para paulafalcao@kdpkepler.com.br, solicitando sua
inscrição no grupo.
• Presencial: reuniões em São Paulo nas primeiras terças-feiras de todo mês, das 14 h às 17 h. Solicite inclu-
são no mailing enviando um e-mail para: eventos@kdpkepler.com.br.

Paula Falcão
É diretora da KDP-Kepler Consultoria em Desenvolvimento de Potencial - São Paulo. Formada em Informática
pelo /TA e com pós-graduação em Jogos Cooperativos pela UNIMONTE. Éprofessora do curso de pós-graduação
em jogos cooperativos da Unimonte e dos MBAs em recursos humanos do CESUMAR e em liderança empresa-
rial corporativa da FA MEC. Autora de Criação de jogos em T&D, Qualilymark, 2003, eco-autora de Focalização
de jogos em T&D, Qualitymark, 2002, Manual de gestão de pessoas e equipes: estratégias e tendências, Edítora
Gente, 2002, The ISBA book of business astrology, ISBA, 2002, e Brasil, corpo e alma: reconhecendo o Brasil
pela astrologia, Editora TRIOM, 2001. Criadora dos jogos para treinamento Aprimore*, Modelo de Uderança• ,
O Resgate do Mais Antigo•, Tai-Pan 22*, Via Novo, Resgate em Moa-Moa•, As Trilhas de Tupá*, Puerto Ensola-
rado• e Aasgard, o Jogo Viking de Desenvolvimento de Potencial• e co-criadora de Via Novo e Hércules: O Jogo
das Competências. Co-criadora das metodologias IA - lntegrated Assessment• e BSC 3600*.
Te/.: (11) 5031-9098
E-mail: paulafalcao@kdpkepler.com.br

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