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com | 5 Quaresma, 17-03-2024 | ano 47º | nº 2 3 5 4

espiritualidade e transcendência
como viver a
velhice 1
ABRO ESTAS REFLEXÕES COM Novo equívoco. A OMS, no relatório
duas frases bíblicas e três ob- 804 Alívio da dor no cancro e cuida-
servações introdutórias: dos paliativos, de 1990, depois de
"Uma rica experiência é a coroa afirmar que a espiritualidade é uma
do velho", diz o sábio Ben Sirac, componente da saúde integral, define-
num livro escrito por volta de 160 a como "aqueles aspetos da vida hu-
a.C. (Sir 25,6). mana que têm a ver com experiências
que transcendem os fenómenos senso-
"Ensina-nos a contabilizar os
riais. Não é o mesmo que religioso”.
nossos dias, para que adquiramos
Que a espiritualidade não seja o
um coração sábio", diz o Salmo 90
mesmo que religião, parece-me indis-
(Sl 90:12).
cutível, mas que tenha a ver com
Três observações introdutórias experiências que transcendem os
em torno do título: "E SPIRITUA- fenómenos sensoriais, não me parece,
LIDADE E TRANSCENDÊNCIA . assim, tão claro. A experiência espiri-
C OMO VIVER A VELHICE ." tual não ocorre fora dos sentidos, mas
1) “Como viver a velhice?”, diz o nos sentidos, e graças aos sentidos,
título. Talvez seja muito pretensioso. como o afeto amoroso, ou a emoção
Não venho dar conselhos ou receitas estética. A transcendência não se
sobre como viver a velhice, a condi- refere a um suposto mundo superior,
ção de um setor social cada vez mais para além do universo, nem a um
numeroso, felizmente, um setor social Ente ou divindade suprema, nem a
do qual faço parte. O que vos digo, uma vida para além desta vida, após a
faço-o, portanto, humildemente, co- morte. A transcendência é a profundi-
nhecendo bem a distância que vai do dade sem fundo de tudo o que é, o
dizer ao fazer e, apesar de tudo, con- sopro vital que nos anima nesta vida,
vencido de que a velhice pode ser e para além do passo, do trânsito, a
uma idade de plenitude de vida, isto que chamamos morte.
é, de liberdade no desapego, de fe- Vou apontar algumas característi-
cundidade na perda. É a isso que cas desta transcendência na imanên-
aspiramos, tenho a certeza, cada qual cia, desta profunda sabedoria vital,
à sua maneira. traços que podem ser, de alguma
2) É nisso, nesse milagre de desa- forma, mais próprios e específicos da
pego, que permite que nos abramos a velhice.
uma nova plenitude, no meio de cres- TEMPO PARA CRESCER,
centes perdas, é nisso que consiste, TEMPO PARA DECRESCER.
em última análise, a chamada "espiri-
tualidade". "Espiritualidade" é um A velhice é um tempo de decrescer
termo muito equívoco. Eu traduzi-la- ou, melhor, de crescer decrescendo.
ia como "Bom Viver", ou "vida com Entre tantos paradoxos que en-
profundidade" ou com "alma", ou, nas frentamos, deparamos com este: nin-
palavras do velho sábio Marià Corbí, guém quer morrer jovem (exceto
como a "profunda qualidade huma- alguns, muito jovens, que querem,
na". mas que, infelizmente, não podem
3) O título também fala em "Es- viver), mas ninguém - digamos – quer
piritualidade e transcendência". ser velho. Achamos que é difícil. Um
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dos grandes desafios de hoje é a duma forma mais plena e livre, sem
aprendizagem da velhice: a aceitação nos apegarmos a qualquer forma ou
das perdas, e o gozo dos bens pró- posse. É a grande exigência e a gran-
prios da velhice. O fardo indubitável de oportunidade da velhice: viver
e a inegável bênção de ser velho. cada vez mais, com cada vez menos.
Aceitar que somos velhos e aprender Estamos velhos, mas é hora de viver.
a sê-lo. É hora de perder - perder força, po-
Há pouco mais de dois mil e du- der, protagonismo, saúde – sim, mas
zentos anos, um sábio judeu escreveu o saber perder, faz parte do saber
um livrinho de dez páginas, muito viver mais profundamente.
proveitoso, conhecido como Qohelet. A velhice é a hora de viver mais
Diz ele, por exemplo: "Tudo tem o profundamente, mais plenamente,
seu momento, e tudo tem o seu tempo mais desapegada e livremente, mais
debaixo do céu: tempo para nascer e serena e reconciliadamente. Por tudo
tempo para morrer (...), tempo para isto é que a velhice é, ou deveria ser,
destruir e tempo para construir (...), a idade privilegiada para viver a espi-
tempo para chorar e tempo para dan- ritualidade, ou seja, a aceitação pací-
çar, tempo para procurar e tempo para fica da perda e do decrescimento.
perder, tempo para guardar e tempo É o grande desafio pessoal dos
para atirar fora (...), tempo para calar que somos velhos. Mas saber decres-
e tempo para falar" (Ecl 3:1-8. E cer para sermos mais, é um dos gran-
poderíamos continuar: há tempo para des desafios da sociedade, a nível
crescer e tempo para decrescer, tempo local e global. Aprender a sabedoria
para ganhar e tempo para perder, de viver melhor com menos, e com-
tempo para adquirir e tempo para nos partilhando o que temos, constitui um
despojarmos, tempo para nos esfor- desafio cultural, político, económico e
çarmos e tempo para descansar, tem- ecológico. Um desafio espiritual, no
po para aprender e tempo para esque- fundo. É, também, um desafio maior,
cer, tempo para cuidar e tempo para oferecer aos velhos os meios de vive-
se deixar cuidar, tempo para poder e rem mais plenamente, à medida que
tempo para ser capaz de... vão decrescendo cada vez mais. Não
Todos estes tempos de uma coisa só de pão e de conforto vivem os
e do seu oposto – contradições apa- velhos.
rentes –, são típicos de cada idade,
TEMPO DE LIBERTAÇÃO
mas a velhice é, duma forma especial,
o tempo de perder, de descansar, de No hinduísmo tradicional, ensina-se
se desprender, de se deixar levar. A que a vida humana compreende qua-
aprendizagem essencial da vida, em tro fases, chamadas ashrama. Apre-
todas as suas épocas, torna-se radical sento-as aqui, com alguma liberdade:
na velhice. E a raiz, o fundamental, o 1) A primeira etapa inclui os pri-
mais fundamental da vida, fonte dos meiros vinte anos de vida: neles, a
maiores bens, é a aprendizagem da criança nasce e cresce, torna-se jo-
perda, do decrescimento. Só decres- vem, desenvolve-se, adquire capaci-
cendo podemos crescer em profundi- dades; como jovem aprendiz celibatá-
dade, crescer até ao mais profundo. rio, brahmacharya, prepara-se para a
Só aprendendo a perder, podemos ser, breve e complexa viagem da vida.
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2) A segunda etapa vai dos vinte tornar livre. Que jovem pode, hoje em
aos quarenta anos: o jovem, já adulto, dia, aos vinte anos, ter um emprego
constitui um casal, cria uma família decente, uma casa adequada, alcançar
ou uma sociedade, trabalha e empe- autonomia económica, iniciar uma
nha-se, participa, plenamente, na vida vida de casal, criar uma família, se
social, cuida de si mesmo, é protago- assim o desejar? Que adulto consegue
nista, é um grihastha dedicado a mil libertar-se das suas obrigações aos
tarefas e responsabilidades. quarenta anos de idade, ou dedicar-se
3) Aos quarenta anos – isso era à contemplação aos sessenta anos?
naquela época –, liberta-se dos fardos É impensável pôr em prática o
da família e da sociedade, e pode modelo ideal da tradição hindu, e nem
passar para a terceira fase, até aos sei, sequer, se será desejável. Mas o
sessenta anos: para isso retira-se da desafio aí fica, e as perguntas sobre a
convivência, torna-se eremita, vana- nossa civilização também. O mundo
prastha, fica em silêncio, viaja para o mudou muito nestes dois mil anos, e
interior, para o mais profundo de si veja-se o que mudou, apenas, nos
mesmo e de tudo, tornando-se um últimos duzentos anos, desde o início
com o Mistério e a Presença e o Todo da Revolução Industrial até à era pós-
em qualquer parte, para além de toda industrial em que já nos encontramos.
e qualquer categoria de interioridade- Muitas coisas mudaram para melhor,
exterioridade. mas não é nada seguro que o balanço
4) Finalmente, a partir dos sessen- global do desenvolvimento se tenha
ta anos, pode aceder à derradeira revelado positivo para a vida comum:
liberdade de que é capaz, liberta-se jovens em massa, entre os vinte os
das suas aspirações, sucessos ou fra- quarenta anos de idade, mais bem
cassos, da escravidão de si mesmo e preparados do que nunca, veem-se
de todas as outras escravidões, aban- excluídos da sociedade, sem um em-
dona tudo – casa, família, bens – e prego decente ou uma casa própria; os
torna-se um renunciante, sannyasa, equilíbrios do planeta, uma comuni-
um caminhante vagabundo, sem teto dade de vida, foram destruídos. Será
nem lugar próprio; em qualquer curva que quanto mais progresso houver,
do caminho, a morte o surpreenderá, mais opressão teremos? Para onde se
encontrando-o sem nada próprio e em encaminha a nossa espécie Homo
união com tudo, de modo que nada Sapiens, tão surpreendentemente
poderá contra ele, limitando-se a ser a habilitada e tão terrivelmente contra-
sua passagem para o ser pleno sem ditória, pois o que a capacita para
forma, ou a Vida que nem nasce nem fazer o maior bem de sempre é, tam-
morre. bém, o mesmo que lhe serve para
Não é minha intenção apresentar- causar feridas e desgraças pessoais e
vos, como um modelo válido e apli- planetárias?
cável hoje em dia, estas quatro etapas Precisamos da sabedoria do Ori-
que, com certeza, se referiam, origi- ente e do Ocidente. A sabedoria do
nalmente, a homens da casta dos autêntico progresso humano liberta-
brâmanes, pois a maioria da popula- dor. De que nos adianta o progresso
ção nem sequer tem oportunidade de sem libertação?
percorrer estas quatro fases e de se A espiritualidade consiste na libe-
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ração pessoal e política, e isso é váli- todas as tradições sapienciais. Apren-
do para todas as idades da vida. Mas der a viver é aprender a desapegar-
volto à sabedoria hindu tradicional, ao nos dos sucessos e dos fracassos, do
fundamento do seu ensinamento, para que conseguimos e daquilo em que
além dos pormenores literais. A sua falhámos, de projetos e protagonis-
intuição fundamental é para nós váli- mos, do que ganhámos e do que per-
da, tanto hoje como outrora: a velhice demos. Do próprio ego, em suma.
como tempo de uma difícil, mas ne- O Bhagavad Gita (do séc. III a.c.)
cessária e possível, libertação radical. é um dos textos que melhor resume a
E isto é verdade tanto ontem como sabedoria hindu, e o mais popular e
hoje. lido. A chave da libertação, da paz e
Há de chegar uma idade – oxalá da felicidade, escusado será dizer, é o
ela chegue para todas e para todos – desapego. Leia-se, por exemplo, o
em que nos veremos livres de muitos capítulo II:
encargos familiares e sociais, da "Porque a ação, ó Dhananjaya, é
competitividade, de responsabilidades muito inferior à ação desinteressada;
profissionais, de protagonismos stres- busca refúgio na atitude de desapego.
santes, de planos e projetos para o Infelizes são os que buscam o fruto
futuro. É claro que, uma vez livres nas suas ações (49). Ó Partha! O
desses fardos – isso, na melhor das homem que deixa de lado todos os
hipóteses – outros advirão: achaques anseios que lhe surgem na mente, e se
de saúde, perda de forças, irrelevância reconforta, apenas, no Atman, esse é
social, solidão, proximidade da morte chamado o homem de sabedoria está-
... É a hora da grande libertação, de vel (55). O que não é perturbado pelas
nos libertarmos de tudo e de nós tristezas e não anseia pelas alegrias, o
mesmos, de renunciarmos a projetos, que está livre do apego, do medo e da
sucessos e lucros, de aprendermos a ira, esse é chamado o asceta da sabe-
perder, ou melhor, a sermos mais com doria estável (56). O que não sente
menos, de ganharmos perdendo. A apego onde quer que esteja, o que não
doença e a morte são laços severos e se alegra ou entristece nem com o
radicais, que a velhice traz consigo, bem nem com o mal, esse é um ho-
mas quem aceder à raiz do seu ser, mem de sabedoria estável (57)."
também deles se libertará, nada o
poderá prender porque nada tem.
Para isso, é necessário um traba-
lho interior ao longo da vida. A liber-
tação não se improvisa na velhice.
Mas, uma vez chegados à velhice,
libertos de muitos fardos, não ficaria
mal que nos dedicássemos, um pouco
mais, a essa viagem interior que nos
liberta mais profundamente.
E no capítulo VI: "Para aquele que se
Tempo de desapego conquistou a si mesmo e que perma-
A libertação profunda requer desape- nece em perfeita calma, o seu ser
go. Desapego é a palavra chave de permanece tranquilo tanto no frio
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como no calor, no prazer como na vontade de ferro ou de punhos. Trata-
dor, na honra como na desonra (7). O se de relaxar o nosso anseio, de deixar
Yogi que está satisfeito com a sabedo- o nosso ser fluir, de deixar que vá e
ria e o conhecimento, firme como venha, sem rejeições nem retenções,
uma rocha, senhor dos seus sentidos, deixar, também, que o sofrimento nos
para quem um punhado de terra, uma visite muitas vezes, apenas o sofri-
pedra ou ouro são a mesma coisa, mento inevitável, sem nos submeter-
esse está na posse do Yoga (8). É mos nem rebelarmos. A velhice é,
superior o que considera da mesma talvez, a idade propícia ao desapego
forma o benfeitor, o amigo e o inimi- radical e, portanto, à plena realização
go, o desconhecido, o indiferente e o do nosso ser. É a idade em que, como
aliado, como também o santo e o o navio que abandona o cais, pode-
pecador (9). Assim como a chama de mos levantar âncora e partir para o
uma lâmpada não oscila num lugar alto mar, porque o Oceano é o nosso
sem vento, também o Yogi, com o seu porto.
pensamento controlado, busca a união
TEMPO DE SILÊNCIO
com o Atman (19). Tal estado deve
ser conhecido como Yoga, a descone-
xão de toda a união com a dor. É
preciso praticar este Yoga com firme
resolução e fervor inesgotável (23)."
Quem se torna um com o seu ver-
dadeiro "eu mesmo", com o seu pró-
prio ser profundo (e isso significa
"Yoga" ou união), desapega-se ou
liberta-se do seu ego inquieto e infe-
liz, o ego enganador, com os seus Vivemos na voragem do ruído. A
sucessos e fracassos, ambições e palavra, as imagens, as atrações, as
medos, as suas filias e fobias. E mensagens, as informações inundam-
quem, desapegando-se de tudo quanto nos, como nunca antes na história da
não é de verdade, se concentra e uni- humanidade. Sabemos mais do que
fica no seu verdadeiro ser profundo, nunca, mas somos incapazes de dis-
realiza-se plenamente, é feliz. Jesus cernir e processar o que vemos e
de Nazaré disse o mesmo recorrendo ouvimos. Tudo muda sem cessar, sem
a outra imagem: "Quem quiser salvar nos dar tempo para olhar ou pensar.
a sua vida a perderá, mas quem perder Vivemos atordoados. A aceleração
a sua vida, por minha causa, encontrá- crescente, a primazia da produção, a
la-á" (Mt 16,25). Quem se apega ao competitividade de todos contra to-
seu ego, perde o seu ser ou a sua vida. dos, o turbilhão universal - cuja ima-
Quem se desapega do seu ego, ganha gem mais plástica são as redes soci-
o seu ser ou a sua vida. Para aprender ais, o tráfego e a bolsa -, sufocam a
a viver, há que aprender a morrer. vida da humanidade e de toda a natu-
Falar é fácil, dir-me-ão, isso tam- reza. O ruído interior e exterior afo-
bém eu sou capaz de dizer. "Ser feliz gam-nos.
é muito simples, o difícil é ser sim- A espiritualidade é silêncio: não,
ples." Mas não é uma questão de apenas ou em primeiro lugar, o silên-
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cio físico, mas mais o silenciamento mergulhar no mesmo silêncio profun-
do ruído emocional e mental. E mais do do Ser nu, ou na mesma comunhão
ainda, o profundo silêncio do ser, que universal libertadora.
não é isolamento, mas, pelo contrário,
TEMPO DE RESPIRAÇÃO
uma profunda comunhão com o nosso
E ALENTO
ser profundo, que é, também, o ser
profundo de todos os seres. Nisto se resume tudo o que fica dito:
No silêncio do ser nos comunica- a velhice é, deveria ser e poderia ser,
mos em profundidade, pois aí se nos um tempo para respirar. Um tempo de
revela o chamamento do próximo, na calma, de profunda tranquilidade, de
sua fragilidade e beleza. No silêncio, paz. Um tempo de respiração e alento.
todos os seres se tornam próximos. Mas não é verdade que quanto mais
Convido-me a mim mesmo e con- velhos somos, mais perto estamos de
vido-vos a mergulhar no silêncio. A perder o alento vital, deixando de
velhice é um período da vida privile- respirar definitivamente? Diria, antes,
giado para praticar o profundo silên- que estamos mais perto de a nossa
cio do ser, apesar da voragem que respiração se tornar uma só com a
também nos envolve. Podemos desti- respiração universal eterna, mais
nar algum tempo para fazermos uma perto de o nosso alento vital se fundir
pausa e calarmos a boca. Para ouvir- com o Alento Vital em maiúsculas,
mos a música silenciosa que emana que não tem começo nem fim. Eu
de tudo, na solidão da nossa casa, nos olho para o cosmos infinito e eterno
ruídos da rua ou no meio do campo. sustentado por essa misteriosa, pro-
Podemos dedicar algum tempo a funda e universal energia, respiração,
libertar-nos das nossas pressas, a alento vital. Foi daí que nascemos e aí
contemplar calmamente, a olhar e nos fundimos como uma gota de água
amar, simplesmente, talvez em silên- no oceano.
cio, as pessoas que passam, ou à me- E notai que Espiritualidade (deri-
ditação, ou à prática da atenção silen- vada de espírito) e respiração (como
ciosa, ou a conversar tranquilamente, inspirar e expirar) têm uma mesma
ou a ouvir música, ou a saborear uma raiz: sp, a mesma raiz de que deriva
fruta, ou um biscoito, ou um café, ou também a palavra espaço. Os linguis-
a informar-nos, tranquilamente, sobre tas dizem que a raiz indo-europeia sp
o que acontece no mundo, com as significa, precisamente, amplitude,
suas mentiras e verdades. largueza, espaço.
A espiritualidade é isto. Não se Ora bem: a espiritualidade, no
trata de crenças, de templos e de fundo, é isso mesmo: espírito ou
rezas, mas de penetrarmos, através energia vital, amplo espaço vital. A
dos sentidos, para além dos sentidos, respiração (inspirar e expirar, receber
naquele silêncio original, primordial e e dar alento vital). Todos necessita-
sereno, que sustenta tudo o que existe. mos de respirar, hoje mais do que
E aqueles a quem uma simples ora- nunca. As religiões (com os seus
ção, ou o silêncio de um templo aju- credos, os seus códigos e cultos), não
dar, farão muito bem em recorrer a são imprescindíveis, mas a respiração
isso. Mas há pessoas a quem outras é. Quando a vida se transforma numa
práticas, também, poderão ajudar a pura competição connosco mesmos e
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com os outros, quando vivemos ofe- ração profunda ou a paz profunda do
gantes e agitados numa louca correria, nosso ser.
quando os sólidos padrões religiosos A velhice é uma altura propícia
e culturais do passado caíram e se para vivermos em paz: com o nosso
perderam as confortáveis certezas, a passado, com os nossos fracassos,
necessidade de respirar torna-se ainda com as feridas que sofremos e provo-
mais evidente. Precisamos de espiri- cámos. Em paz com o nosso ambiente
tualidade, com religião ou sem religi- familiar, em que costumam abundar
ão, mas para além da religião. os conflitos arraigados, pequenos ou
Todos precisamos de respirar, de grandes rancores, ressentimentos não
alento vital. E à medida que, com os curados que precisamos de curar para
anos, a respiração se vai tornando vivermos em paz. Em paz com o
mais curta e apertada, e nos vamos mundo de hoje, apesar dos seus dra-
confrontando com os nossos últimos mas e ameaças. Em paz com a nature-
limites, os velhos, mais do que nin- za, com a qual nos comportamos
guém, precisam de respirar. A respi- como inimigos.
J OSÉ AG UE R RI . Teólogo.
(26.10.2021) https://www.religiondigital.org/el_blog_de_jose_arregi/Vejez-Espiritualidad_7_2390530931.html

d e r a m o e m ra m o
Não queiras tran sfo rmar
em nostalgia
o que foi exal tação,
e m l i xo o q ue fo i cri sta l .
A velhice,
o prim eiro sin al
de doen ça da alma,
às vezes co n tam in a o co rpo.
N en hum pá ss a ro
perm ite à mo rte dom in ar
o azul do seu can to.
F az co mo el es: dan ça de ram o
em ramo.
E U G É N I O D E A N D R A D E (1923-2005)
In Ofício de Paciência
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