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INTERDISCIPLINAR - CIÊNCIAS SOCIAIS

SUMÁRIO
MÓDULO 03

UNIDADE DE APRENDIZAGEM 4....................................115

4. O debate atual sobre o lugar da religião


na esfera pública.....................................................115

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INTERDISCIPLINAR - CIÊNCIAS SOCIAIS

MÓDULO
UNIDADE DE APRENDIZAGEM 4

4. O debate atual sobre o lugar da religião na esfera pública

OBJETIVOS
03
1 Discutir o que é a esfera pública e o lugar da religião

2 Distinguir entre esfera pública e poder público

3 Refletir sobre a presença de símbolos religiosos nos prédios públicos

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Estamos vendo ao longo da disciplina de Ciências Sociais que as religiões continuam vivas
e atuantes em todos os Continentes do planeta. Diante disso, sendo as religiões atores sociais
importantes é natural que surja o debate sobre o lugar delas na esfera pública. Faremos uma
breve distinção conceitual dos termos para, em seguida, situar essa discussão no Brasil.

O que é essa tal esfera pública?

Trata-se da arena de debate público em que os assuntos de interesse geral podem ser
discutidos e as opiniões podem ser formadas, o que é necessário para a efetiva participa-
ção democrática e para o processo democrático. Espera-se que processo culmine na for-
mação da opinião pública que, por sua vez, age como uma força oriunda da sociedade civil
em direção aos governos no sentido da transformação em legislação e políticas públicas
da vontade da população.

O debate sobre o lugar da religião na esfera pública tem sido um tópico de grande inte-
resse. A religião, enquanto parte integrante da vida de muitas pessoas, inevitavelmente se
entrelaça com a política e a sociedade. No entanto, a natureza dessa interação é complexa
e com perigos para as próprias religiões.

ESTADO E IGREJA AO LONGO DA HISTÓRIA


PARA PENSAR

Resumindo, o Novo Testamento apresenta o governo como ne-


cessário, até ordenado por Deus, mas não certamente como
um patrocinador ou amigo da fé. No fim das contas, Jesus e
Paulo e a maioria dos doze discípulos morreram como márti-

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res, e os primeiros cristãos enfrentaram ondes periódicas de perseguição promovidas


por imperadores romanos.

Dois séculos mais tarde, os cristãos viram com gratidão e alívio a conversão do im-
perador Constantino, o qual conferiu status de proteção ao cristianismo, que logo se
tornou a religião oficial do estado. Ao longo do milênio seguinte na Europa, a igreja e
o estado interagiram como um par de dançarinos, ora presos num forte abraço, ora
jogando um ao outro no salão de baile. A propagação global do cristianismo introdu-
ziu novas variações no relacionamento igreja/estado em lugares como a África e as
Américas. (Yancey, P. 2015, p. 234)

É inegável o papel desempenhado pela religião na formação dos valores morais e


éticos fundamentais para o desenvolvimento da cidadania nas sociedades modernas. A
influência da religião nos espaços públicos ajuda, por exemplo, no estabelecimento de
solidariedade e cordialidade na convivência entre as pessoas. O filósofo Jurgen Habermas,
analisando a crise das democracias, reconheceu que democracias liberais pressupõem que
seus cidadãos tenham qualidades que elas não podem proporcionar (Habermas, J. apud.
Yancey, 2015, p.232). O solo para formação das qualidades de cidadania democrática não é
uma exclusividade da religião, mas é inegável a contribuição da religião nessa área.

Entretanto, se a participação da religião no espaço público tomar a direção da hegemo-


nia o resultado poderá ir na direção da intolerância e do preconceito, nas instituições, na fa-
mília, na escola, nas decisões políticas, entre outras, reforçando atitudes fundamentalistas.
Justamente por isso, o debate sobre o lugar da religião na esfera pública é tão importante
em nossos dias, pois somente ele poderá responder como a religião pode contribuir para a
democracia e a justiça social e evitar os efeitos negativos do tratamento dos temas públi-
cos a partir da visão de mundo religiosa.

O debate sobre o lugar da religião na esfera pública parece ter chegado ao seguinte
ponto: a religião é importante demais para fazer de conta que ela não existe, entretanto,
por outro lado, as perspectivas religiosas são múltiplas e muitas vezes discordantes entre
si e, além disso, é preciso levar em conta aquelas pessoas que não são religiosas. Como
é possível colocar pessoas com perspectivas tão diferentes ao redor de uma mesa para
conversar sobre o bem comum? Como fazer isso? O teólogo Miroslav Volf, mencionado no
módulo anterior, nos ajuda. Assim ele escreve:
Sugeri que cada pessoa deveria falar na arena pública tendo sua própria
voz religiosa. Mas o que significa ter voz própria quando se fala? [...]
Falar na voz da própria religião é falar a partir do centro da fé pessoal.

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Falar numa voz cristã é falar com base nestas duas convicções funda-
mentais: que Deus ama todo mundo, incluindo os transgressores, e que
a identidade religiosa está circunscrita por fronteiras permeáveis. Qual-
quer outra coisa que se diga sobre qualquer tópico deve ser dito levando
em conta essas convicções. Quando isso acontece a voz que fala será
propriamente cristã, mas poderia conter, mesmo assim, os ecos de mui-
tas outras vozes, e muitas outras vozes repercutiram com ela. É óbvio
que, às vezes, a a voz não encontrará nenhum eco, apenas contestação.
Esse é o material de que são feitas as boas discussões, tanto em conta-
tos pessoais como na esfera pública. (Volf, 2018, p. 159-160)

Reflexões como acima abrem caminho para inserção mais madura das religiões no
debate na esfera pública. De um lado pessoas religiosas têm o direito de falar sobre os
temas públicos a partir de suas convicções de fé e a separação entre Estado e religião não
significa um “cala-boca” para argumentos que nasçam no campo religioso. Entretanto, a
maturidade nesse debate também exige da religião o respeito à pluralidade de atores que
participam do debate público.

Diferença entre esfera pública e poder público

Já vimos o que é a esfera pública e o lugar das vozes religiosas nessa esfera. Vejamos
agora o que é o poder público. Trata-se do conjunto dos órgãos com autoridade para realizar
os trabalhos do Estado, constituído de Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário. A
noção de poder público abarca todos os poderes que são próprios do Estado. O Estado exerce
o poder legislativo (cria e modifica leis), o poder judicial (aplica essas normas) e o poder execu-
tivo (desenvolve políticas de governo) através de diversas instituições. Na esfera pública cada
grupo faz ouvir sua voz, seu ponto de vista e seus interesses, porém, o poder público representa
a todos. Um equívoco comum no debate atual sobre a separação entre religião e Estado é julgar
que porque a maioria da população é cristã o Estado deva sê-lo também. Na esfera pública o
Poder público deve ouvir a todos, sem distinção, porém enquanto órgão estatal ele não deve
impor ponto de vista ou representar simbolicamente nenhuma religião.

Propomos abaixo uma leitura que problematiza o tema da laicidade nos contornos que
vem assumindo no Brasil nas últimas décadas. Todavia, o sociólogo José de Souza Martins
retoma pontos importantes e caros aos protestantes na discussão da separação entre reli-
gião e Estado no Brasil.

“ BÊ-Á-BÍBLIA
autor:JOSÉ DE SOUZA MARTINS -
Fonte: O ESTADO DE S. PAULO, 26 Julho 2014

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A Câmara Municipal de Nova Odessa (SP) aprovou projeto de lei, de vereador


evangélico, que obriga os alunos das escolas municipais a lerem pelo menos um
versículo da Bíblia no início da aula, todos os dias. A lei foi vetada pelo prefeito,
mas o veto pode cair. A proposta abusiva expressa a crescente intolerância
religiosa no País e as armadilhas usadas para fazer as instituições públicas e do
Estado cúmplices do proselitismo religioso. A lei é inconstitucional. Viola a
liberdade de consciência e o direito dos pais educarem os
filhos na própria crença.
Na passagem do regime de religião compulsória para o de livre opção religiosa,
em 1889, ocorreram ataques ao que fora a religião oficial do Império, quando
ficou claro que as religiões se equivaliam e nenhuma delas tinha privilégios em
relação às outras. O caso de Nova Odessa remete ao debate que se travou nos
jornais e nos tribunais sobre a chamada questão do Cristo no júri. Mas inverte o
cenário: os beneficiados pela liberdade religiosa da República querem agora
cercear a liberdade religiosa dos demais, impondo a sua.
Um decreto de 1890 proibia às autoridades “instituírem alguma religião ou
vedarem-na”. Dele se valeu Miguel Vieira Ferreira, positivista, pastor da Igreja
Evangélica Fluminense, oriundo da Igreja Presbiteriana. Jurado em sessão do
tribunal do júri, em 1891, requereu ao juiz que o crucifixo fosse removido da sala.
A lei o obrigava a servir como jurado e ele o fazia como cidadão. Mas não o
obrigava a fazê-lo sob o império de um símbolo religioso.
Em face dos conflitos que se disseminavam, Rodrigo Octávio de Langgaard
Menezes, procurador da República, em 1892, emitiu luminoso parecer sobre a
questão, que se tornaria um marco no debate e nas decisões sobre o assunto.
Nele, alude ao despedaçamento de imagens de Cristo na sala do júri do Rio de
Janeiro, ao apedrejamento de templos protestantes e à violência contra uma
procissão católica. Invocando valores da Revolução Francesa, que inspiraram as
leis da República, sentenciou: “A permanência de um símbolo religioso em um
lugar público onde são chamados os cidadãos a cumprir um dever cívico ofende o
preceito constitucional de liberdade de consciência”.

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Rui Barbosa, em 1903, interpreta a questão da religião na Constituição


republicana, que ajudara a escrever, e atenua a interpretação de Rodrigo Octávio.
Diz que a inspiração da Carta fora a mesma da americana, na qual os fundadores
da nação viram a religião como anterior à fundação do Estado e inspiradora das
leis. É provavelmente essa interpretação que influenciará uma decisão da
ditadura no Estado Novo no sentido de reconhecer a religião católica como a da
maioria da nação. Isso abrandava a separação entre o Estado e a Igreja e abria
caminho para transgressões várias, numa recíproca cumplicidade.
Os protestantes já haviam adotado uma estratégia de calmo confinamento nos
templos. Nem quando Café Filho, presbiteriano, tornou-se presidente da
República, em 1954, fizeram alarde ou se valeram do poder para impor ao País
seus próprios valores. Desde a proclamação da República, em face da liberdade
religiosa do novo regime, a maioria deles preferira limitar-se a explorar brechas
na organização do Estado para viabilizar a difusão de seus valores sociais e não
propriamente de suas concepções religiosas. Impunham-se pelo republicanismo
de sua tradição e nesse sentido tentavam enquadrar os católicos e os confessantes
de outros credos no mesmo princípio cívico. Uma das consequências da celeuma
inicial da República fora, justamente, um agressivo reavivamento do catolicismo.
Sobretudo nos anos 1910, com o movimento generalizado de cerimônias de
reintrodução do Cristo nas salas do júri e nas escolas públicas. A campanha
protestante contra o Cristo no júri fortalecera o catolicismo.
Com a multiplicação das igrejas pentecostais nas décadas recentes ressurgiu a
hostilidade contra religiões e crenças que delas diferem, especialmente contra o
catolicismo, no âmbito de uma “guerra santa” que tem tido expressões em
episódios como o do “chute na santa”, em 1995. Foi quando um pastor da Igreja
Universal chutou na TV uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Ou o
despedaçamento da imagem original e sagrada da santinha negra em 1978 por
um jovem pentecostal, depois de ouvir um sermão preconceituoso de seu pastor.
Têm sido frequentes as manifestações dessa ordem no Brasil, incidindo de
preferência em imagens de Nossa Senhora Aparecida. Mesmo na visita do papa
Francisco, no Rio de Janeiro um homem quebrou uma imagem da santa e

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pisoteou-a em público. Proclamada Padroeira do Brasil, a incidência de agressões


sobre esse símbolo religioso, que é também um símbolo político da
nacionalidade, parece indicar que o que está em jogo não é a religião, mas o
poder. O episódio de Nova Odessa indica isso e muito mais: é uma clara mostra
de ilegal tentativa de uso do poder para sobrepor a fé da minoria à dos demais.

Qual é a vontade de Deus para a sociedade e qual seria o papel do Estado

Existe uma vontade de Deus para a sociedade democrática? Se existe, como podemos
conhecê-la? Qual o papel do Estado na implementação da vontade de Deus para socieda-
de? Os reformadores, especialmente Martinho Lutero e João Calvino, trataram de separar
Estado e Igreja, separar a esfera de governo temporal da esfera de governo espiritual. Esse
assunto é conhecido como teologia dos dois reinos na teologia luterana. Deus é um só,
mas ele decidiu governar o mundo por meio do Estado e da Igreja. Tudo o que diz respeito à
convicção pessoal, espiritual e eterna é remetido ao reino espiritual; tudo o que é externo ao
indivíduo e trata da vida em sociedade diz respeito ao Estado, portanto, ao reino temporal.

É importante destacar a mudança do Antigo Testamento para o Novo Testamento. Na


antiga aliança, havia convergência entre as leis civis e as leis religiosas. Na nova aliança,
sob Cristo, a Igreja é a reunião daqueles que creem e vivem uma vida piedosa em qualquer
que seja o regime político. A adesão das pessoas é voluntária e a obediência ao estilo
de vida cristão não é fruto da imposição de qualquer lei por parte do Estado. Ainda que o
Estado venha a criar embaraços para que cristãos vivam de acordo com sua fé – e tem sido
assim em muitos momentos da história – a resposta será sempre: “antes importa obedecer
a Deus do que aos homens (Atos 5.29)”.

Mas, se no Antigo Israel havia coincidência entre a lei civil e a lei religiosa, ou seja, aqui-
lo que era imoral era também ilegal, qual é a visão cristã do papel do Estado na nova alian-
ça? De diferentes modos o Novo Testamento enfatiza que o papel do Estado é a promoção
da justiça e não a promoção da fé. Na expressão de Paulo no texto dirigido ao jovem Timó-
teo (1 Timóteo 2.1-7), isto aparece nas orações que devem ser feitas em favor de todas as
autoridades para “que tenhamos uma vida tranquila e pacífica” na sociedade. Na Carta aos
Romanos, capítulo 13, Paulo afirma que a existência de autoridades é da vontade de Deus
e que a missão delas é a promoção da justiça.

Por fim, cabe registrar, ainda que todos admitam ser a promoção da justiça o dever

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maior do Estado, definir o que é ou não justo não é nada fácil e, por isso, requer diálogo, tole-
rância e boa vontade de todos. À luz da fé a participação política numa sociedade democrá-
tica, como a brasileira, deve ocorrer em torno da busca da justiça para todos os cidadãos.
Na leitura do Antigo Testamento não se deve buscar inspiração para invenção de uma teo-
cracia tupiniquim sob o tosco argumento que cristãos são maioria na sociedade brasileira e
logo seu estilo de vida deve prevalecer sobre os demais. Cristãos envolvidos com a política
numa sociedade democrática oferecem bom testemunho do Evangelho quando lutam pela
justiça e não quando pregam moralidade. Do Antigo Testamento, a teocracia foi superada,
mas a busca pela justiça permanece: “Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei
ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas. (Isaías 1.17)

ANTES DE VIRAR A PÁGINA

Ao percorrer tantas nuances sobre o testemunho cristão na esfera pública é importan-


te recordar as palavras de Jesus: Eis que eu vos envio como ovelhas para o meio de
lobos; sede, portanto, prudentes como as serpentes e símplices como as pombas. (Al-
meida Revista e Atualizada) Mateus 10:16. Dar testemunho do amor de Deus exigirá
sempre essa combinação de prudência e simplicidade. Você já teve alguma experiên-
cia sobre falar com sua voz religiosa numa esfera pública? Como foi a experiência?

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