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GRÁTIS CD-ROM

A U LA S P R O N T A S EM P O W E R PO IN T ,
R E S U M O S E M O D E L O S D E P R O V A S.
V__________________________ _

Wayne Grudem
TEOLQGIA
SISTEMÁTICA
ATUAL E EXAUSTIVA
N O V A E D I Ç Ã O C O M Í N D I C E S

V1DA1M0VA
44
A Igreja: Natureza,
Características e Propósitos
De que é feita uma igreja? Como podemos reconhecer uma
igreja verdadeira? Quais os propósitos de uma igreja?

E x p l ic a ç ã o e b a s e b íb l ic a
A. A NATUREZA DA IGREJA
1. Definição. A igreja é a comunidade de todos os cristãos de todos os tempos. Essa definição
compreende que a igreja é feita de todos os verdadeiramente salvos. Paulo afirma: “Cristo
amou a igreja e entregou-se a si mesmo por ela” (Ef 5.25). Aqui o termo “a igreja” é usado
para referir-se a todos aqueles pelos quais Cristo morreu para redimir, todos os salvos pela
morte de Cristo. Isso, porém, inclui todos os verdadeiros cristãos de todos os tempos, tanto
os salvos do Novo como os do Antigo Testamento.1 O plano de Deus para a igreja é tão
grande que ele exaltou Cristo a uma posição de suprema autoridade por amor à igreja:
“E pôs todas as coisas debaixo dos pés e, para ser o cabeça sobre todas as coisas, o deu à
igreja, a qual é o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em todas as coisas” (Ef
1.22-23).
O próprio Jesus Cristo edifica a igreja chamando o seu povo a si mesmo. Ele pro­
meteu: “Edificarei a minha igreja” (Mt 16.18). Lucas é cuidadoso quando nos informa que
o crescimento da igreja não se deu apenas pelo esforço humano, mas “acrescentava-lhes
o Senhor, dia a dia os que iam sendo salvos” (At 2.47). Mas esse processo pelo qual Cristo
edifica a igreja é apenas uma continuação do modelo estabelecido por Deus no Antigo
Testamento, por meio do qual ele chamou a povo para si mesmo para ser uma assembléia
em adoração diante dele. Quando Moisés diz ao povo que o Senhor havia-lhe dito: “Reúne
este povo, e os farei ouvir as minhas palavras, a fim de que aprenda a temer-me todos os
dias que na terra viver...” (Dt 4.10), a Septuaginta traduz a palavra “reúne” (heb. qãhal)
pelo termo grego ekklêsiazõ, “convocar uma assembléia”, verbo cognato do substantivo
do Novo Testamento ekklêsia, “igreja”.2
Portanto, não é surpreendente que os autores do Novo Testamento possam falar do
povo de Israel do Antigo Testamento como uma “igreja” (ekklêsia ) no deserto” (At 7.38
- tradução do autor). E o autor de Hebreus fala de Cristo como quem cantaria louvores

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(44) A Doutrina da Igreja
a Deus no meio da grande assembléia do povo de Deus no céu: “No meio da igreja
(ekklêsia) cantar-te-ei louvores” (Hb 2.12, tradução do autor, citando Sl 22.22).
Assim, o autor de Hebreus entende que os cristãos de hoje, que constituem a igreja
na terra, estão rodeados de uma grande “nuvem de testemunhas” (Hb 12.1) que retrocede
até aos primeiros períodos do Antigo Testamento e inclui Abel, Enoque, Noé, Abraão,
Sara, Gideão, Baraque, Sansão,Jefté, Davi, Samuel e os profetas (Hb 11.4-32). Todas essas
“testemunhas” rodeiam o povo de Deus de hoje, e nada mais adequado do que vê-las
como a grande “assembléia” ou “igreja”3 espiritual juntamente com o povo de Deus do
Novo Testamento. Além disso, mais tarde no capítulo 12, o autor de Hebreus afirma que
quando nós, cristãos do Novo Testamento, adoramos a Deus, entramos na presença da
“assembléia (lit. “igreja”, gr. ekklêsia) dos primogênitos arrolados nos céus”. Essa ênfase não
é surpreendente à luz do fato de que os autores do Novo Testamento vêem tanto os cristãos
judeus como gentios unidos agora na igreja. Juntos eles foram feitos “um” (Ef 2.14), são
“um novo homem” (v. 15) e “concidadãos” (v. 19) e membros “da família de Deus” (v. 19).
Portanto, embora haja certamente novos privilégios e novas bênçãos dadas ao povo
de Deus no Novo Testamento, tanto o uso do termo “igreja” nas Escrituras como o fato
de em toda a Bíblia Deus sempre chamar o seu povo para, reunido, adorá-lo, mostram
que é correto pensar na igreja como o povo de Deus de todos os tempos, tanto os salvos
do Antigo como do Novo Testamento.4
2. A igreja é invisível, ainda que visível. Em sua realidade verdadeiramente
espiritual como a comunidade de todos os cristãos genuínos, a igreja é invisível. Isso se
dá porque não podemos ver a condição espiritual do coração de ninguém. Podemos ver
os que freqüentam a igreja e perceber sinais externos de uma mudança espiritual interior,
mas não podemos de fato ver o coração das pessoas nem enxergar o estado espiritual em
que se encontram - algo que só Deus pode fazer. Foi por isso que Paulo afirmou: “ 0 Senhor
conhece os que lhe pertencem” (2Tm 2.19). Mesmo em nossas igrejas e em nossa vizinhança
só Deus sabe, com toda a certeza e sem errar, quem são os verdadeiros cristãos. Falando
da igreja como invisível, o autor de Hebreus fala da “assembléia (literalmente, “igreja”)
dos primogênitos arrolados no céu” (Hb 12.23) e diz que os cristãos do presente unem-
se àquela assembléia em adoração.
Podemos dar a seguinte definição: A igreja invisível é a igreja como Deus a vê.
Tanto Martinho Lutero como João Calvino estavam ansiosos por afirmar esse aspecto
invisível da igreja, opondo-se ao ensino católico romano de que a igreja era a organização
visível que vinha desde os apóstolos numa linha de sucessão ininterrupta (através dos
bispos da igreja). A igreja católica romana argumentara que somente na organização
visível da igreja romana poderíamos encontrar a verdadeira igreja, a única igreja verda­
deira. Até mesmo hoje tal posição é sustentada pela igreja católica romana. Na “Decla­
ração Pastoral para os Católicos sobre o Fundamentalismo Bíblico” feita em 25 de março
de 1987, a Comissão Ad Hoc da Conferência Nacional dos Bispos Católicos (dos EUA)
criticou o cristianismo evangélico (chamado “fundamentalismo bíblico”) principalmente
porque este tirou o povo da única igreja verdadeira:
A característica básica do fundamentalismo bíblico é que este elimina do cris­
tianismo a igreja como o Senhor Jesus a fundou [...] Não há menção da igreja
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(44) A Igreja: Natureza, Características e Propósitos
histórica, que tem a autoridade e preserva a continuidade com Pedro e os demais
apóstolos [...] Um estudo do Novo Testamento [...] mostra a importância de
pertencer à igreja iniciada por Jesus Cristo. Ele escolheu Pedro e os demais
apóstolos como fundamentos de sua igreja [...] Pedro e os demais apóstolos foram
sucedidos pelo bispo de Roma e pelos outros bispos, e [...] o rebanho de Cristo
ainda tem, sob Cristo, um pastor universal.5
Em resposta a esse tipo de doutrina tanto Lutero como Calvino discordaram. Eles
disseram que a igreja católica romana tinha a forma externa, a organização, mas era
apenas uma concha. Calvino argumentou que assim como Caifás (sumo sacerdote na
época de Cristo) era descendente de Arão e não era um verdadeiro sacerdote, também
os bispos católicos romanos “descendiam” dos apóstolos em uma linha de sucessão mas
não eram verdadeiros bispos da igreja de Cristo. Pelo fato de terem se afastado da
verdadeira pregação do evangelho, a organização visível deles não era a igreja verdadeira.
Calvino afirmou: “A pretensão de sucessão é vã se os descendentes não conservarem sã
e incorrupta a verdade de Cristo que eles receberam da mão de seus pais e não perma­
necerem nela [...] Que valor tal sucessão tem, se não incluir também imitação incorrupta
da parte de seus sucessores!”6
Por outro lado, a verdadeira igreja de Cristo certamente tinha também um aspecto
visível. Podemos usar a seguinte definição: A igreja visível é a igreja como os cristãos a vêem
na terra. Nesse sentido a igreja visível inclui todos os que professam fé em Cristo e dão
provas de tal fé na vida.7
Nessa definição não dizemos que a igreja visível é a igreja como qualquer pessoa no
mundo (tal como um descrente ou alguém que defende doutrinas heréticas) a vê, mas
referimo-nos à igreja percebida pelos cristãos genuínos que entendem a diferença entre
cristãos e descrentes.
Quando Paulo escreve suas epístolas, ele as escreve para a igreja visível em cada
comunidade: “à igreja de Deus que está em Corinto” (ICo 1.2); “à igreja dos tessa­
lonicenses” (ITs 1.1); “a Filemom [...] e Áfia [...] e Arquipo [...] e a igreja que está em sua
casa” (Fm 1-2). Paulo certamente sabia que havia descrentes em algumas daquelas igrejas,
que tinham feito profissão de fé, ainda que não genuína. Eles pareciam ser cristãos mas
no fim haveriam de desviar-se. Apesar disso, nem Paulo nem ninguém mais poderia dizer
com certeza quem eles eram. Paulo simplesmente escreveu para a igreja toda que se reunia
em determinado lugar. Nesse sentido, poderíamos dizer hoje que a igreja visível é o grupo
de pessoas que se reúnem toda semana para cultuar a Deus como igreja e professar a fé
em Cristo.
A igreja visível em todo o mundo sempre incluirá alguns descrentes, e as próprias
comunidades cristãs normalmente terão alguns descrentes, porque não podemos ver o
coração como Deus o vê. Paulo fala de “Himeneu e Fileto”, os quais “se desviaram da
verdade” e que “estão pervertendo a fé a alguns” (2Tm 2.17-18). Mas ele está confiante
que “o Senhor conhece os que lhe pertencem” (2Tm 2.19). Paulo afirma com tristeza:
“Demas, tendo amado o presente século, me abandonou e se foi para Tessalônica” (2Tm
4.10).
De modo semelhante, Paulo adverte os líderes de Éfeso de que depois de sua partida
“entre vós penetrarão lobos vorazes que não pouparão o rebanho. E que, dentre vós mesmos,
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(44) A Doutrina da Igreja
se levantarão homens falando coisas pervertidas para arrastar os discípulos atrás de si”
(At 20.29-30). O próprio Jesus advertiu: “Acautelai-vos dos falsos profetas, que se vos
apresentam disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos roubadores. Pelos seus frutos
os conhecereis” (Mt 7.15-16). Reconhecendo essa distinção entre a igreja invisível e a
visível, Agostinho disse, referindo-se à igreja visível: “Muitas ovelhas estão fora, e muitos
lobos estão dentro”.8
Quando reconhecemos que há descrentes na igreja visível, existe o perigo de que nos
tornemos cheios de suspeitas. Podemos começar a duvidar da salvação de muitos cristãos
verdadeiros e assim trazer grande confusão à igreja. Calvino advertiu contra tal perigo
afirmando que precisamos fazer um “julgamento amoroso” pelo qual reconhecemos como
membros da igreja todos os que “pela confissão de fé, pelo exemplo de vida e pela
participação nos sacramentos professam o mesmo Deus e o mesmo Cristo conosco”.9 Não
devemos tentar excluir ninguém da comunhão da igreja a não ser que este traga disciplina
sobre si mesmo por causa de um pecado publicamente conhecido. Por outro lado,
naturalmente, a igreja não deve tolerar entre os seus membros “descrentes assumidos”,
que pelas palavras ou pela vida claramente proclamam estar fora da verdadeira igreja.
3. A igreja é local e universal. No Novo Testamento a palavra “igreja” pode ser
aplicada a um grupo de cristãos de qualquer tamanho, desde um pequeno grupo que se
reúne sempre em uma residência até o grupo de todos os cristãos na igreja universal. A
igreja numa casa é chamada “igreja” em Romanos 16.5 (“saudai igualmente a igreja que
se reúne na casa delef) e 1Coríntios 16.19 (“No Senhor, muito vos saúdam Aqüila e Priscila
e, bem assim, a igreja que está na casa delef.) A igreja de uma cidade inteira é também
chamada “igreja” (ICo 1.2; 2Co 1.1 e ITs 1.1). A igreja de determinada região é chamada
“igreja” em Atos 9.31: “A igreja, na verdade, tinha paz por toda aJudéia, Galiléia e Samaria.”10
Finalmente, a igreja do mundo inteiro pode ser chamada “a igreja”. Paulo afirma: “Cristo
amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela” (Ef 5.25)”, e diz: “A uns estabeleceu Deus
na igreja , primeiramente apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro lugar,
mestres...” (ICo 12.28). Nesse último versículo, a menção de “apóstolos”, os quais não
foram dados a nenhuma igreja em particular, garante que a referência seja à igreja
universal.
Podemos concluir que o grupo do povo de Deus considerado desde o nível de grupo
local até o universal pode corretamente ser chamado “a igreja”. Não devemos cometer
o erro de dizer que somente uma igreja que se reúne em casas expressa a verdadeira
natureza da igreja, nem que apenas uma igreja do nível de uma cidade pode corretamente
ser chamada igreja, nem que só a igreja universal pode ser chamada apropriadamente
pelo nome “igreja”. Pelo contrário, a comunidade do povo de Deus vista em qualquer
nível pode ser corretamente chamada igreja.
4. Metáforas da igreja.11 Para ajudar-nos a entender a natureza da igreja, as
Escrituras usam uma ampla variedade de metáforas e imagens que descrevem a igreja.12
Há diversas imagens de família: por exemplo, Paulo vê a igreja como uma família quando
diz a Timóteo que agisse como se todos os membros da igreja fossem membros de uma
família maior: “Não repreendas ao homem idoso; antes, exorta-o como a pai; aos moços,
como a irmãos; às mulheres idosas, como a mães; às moças, como a irmãs, com toda a
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pureza” (ITm 5.1-2). Deus é o nosso pai celestial (Ef 3.14), e nós somos seus filhos e suas
filhas, pois Deus nos diz: “Serei vosso Pai, e vós sereis para mim filhos e filhas, diz o Senhor
Todo-Poderoso” (2Co 6.18). Somos, portanto, irmãos e irmãs uns dos outros na família de
Deus (Mt 12.49-50; ljo 3.14-18). Uma metáfora de família um pouco diferente é vista
quando Paulo refere-se à igreja como a noiva de Cristo. Ele diz que o relacionamento entre
marido e mulher “refere-se a Cristo e à igreja” (Ef 5.32) e afirma que traz à tona o noivado
entre Cristo e a igreja de Corinto e que isso se assemelha a um noivado entre uma noiva
e seu futuro marido: “Visto que vos tenho preparado para vos apresentar como virgem
pura a um só esposo, que é Cristo” (2Co 11.2) - aqui Paulo está olhando para a época da
volta de Cristo como a ocasião quando a igreja será apresentada a ele como noiva.
Em outras metáforas as Escrituras comparam a igreja a ramos de uma videira (Jo 15.5),
a uma oliveira (Rm 11.17-24), a uma lavoura (ICo 3.6-9), a um edifício (ICo 3.9) e a uma
colheita (Mt 13.1-30;Jo 4.35). A igreja também é vista como um novo templo não construído
literalmente com pedras, mas no interior do povo cristão formado de “pedras que vivem”
(IPe 2.5) edificadas sobre a “pedra angular” que é Cristojesus (IPe 2.4-8). Apesar disso,
a igreja não é somente um novo templo para adorar a Deus; é também um novo grupo de
sacerdotes, um “sacerdócio santo” que pode oferecer “sacrifícios aceitáveis a Deus” (IPe
2.5). Somos vistos também como casa de Deus: “... a qual casa somos nós” (Hb 3.6), sendo
o próprio Jesus Cristo visto como “o que estabeleceu” a casa (Hb 3.3). A igreja também
é vista como “ coluna e baluarte da verdade” (ITm 3.15).
Finalmente, outra metáfora bem conhecida vê a igreja como o corpo de Cristo (ICo
12.12-27). Devemos reconhecer que Paulo usa de fato duas metáforas diferentes do corpo
humano quando fala da igreja. Em ICoríntios 12 todo o corpo é usado como metáfora da
igreja, porque Paulo fala do “ouvido” e do “olho” e do “olfato” (ICo 12.16-17). Nessa
metáfora, Cristo não é visto como a cabeça ligada ao corpo, porque os membros são
individualmente partes da cabeça. Cristo é nessa metáfora o Senhor que está “fora” do
corpo que representa a igreja, aquele a quem a igreja serve e adora.
Mas em Efésios 1.22-23; 4.15-16 e em Colossenses 2.19, Paulo usa uma metáfora
diferente para se referir à igreja. Nesses textos Paulo diz que Cristo é a cabeça e que a igreja
é como o restante do corpo, sendo distinta da cabeça: “Cresçamos em tudo naquele que é a
cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado pelo auxílio de toda
junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a
edificação de si mesmo em amor” (Ef 4.15-16).13 Não devemos confundir essas duas
metáforas de ICoríntios 12 e de Efésios 4, mas mantê-las distintas.
A ampla gama de metáforas usadas para referir-se à igreja no Novo Testamento deve
lembrar-nos de que não devemos concentrar-nos em apenas uma delas. Por exemplo,
embora seja verdade que a igreja é o corpo de Cristo, precisamos lembrar que essa é
apenas uma das metáforas dentre muitas. Se nos concentrarmos apenas nessa metáfora,
provavelmente nos esqueceremos de que Cristo é o nosso Senhor que reina nos céus bem
como aquele que habita entre nós. Certamente não devemos concordar com a posição
católica romana de que a igreja é a “encarnação contínua” do Filho de Deus na terra hoje.
A igreja não é o Filho de Deus em carne, porque Cristo ressuscitou com um corpo e com
um corpo subiu ao céu, e agora reina como Cristo encarnado no céu, sendo claramente
distinto da igreja aqui na terra.

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(44) A Doutrina da Igreja
Cada uma das metáforas usadas para referir-se à igreja pode ajudar-nos a apreciar
mais da riqueza do privilégio que Deus nos deu, tornando-nos parte do corpo da igreja.
O fato de a igreja ser como uma família deve aumentar o nosso amor e a nossa comunhão
mútuos. A idéia de que a igreja é como a noiva de Cristo deve incentivar-nos a lutar por
mais pureza e santidade, e também para que cresça em nós o amor por Cristo e a
submissão a ele. A imagem da igreja como ramos de uma videira deve levar-nos a
descansar nele inteiramente. A idéia de uma colheita deve incentivar-nos a continuar a
crescer na vida cristã e a obter tanto para nós como para os outros os nutrientes espirituais
adequados para o crescimento. A figura da igreja como novo templo de Deus deve
aumentar a nossa consciência da presença de Deus, que está em nosso meio quando nos
reunimos. O conceito de igreja como sacerdócio deve ajudar-nos a ver mais claramente
o prazer que Deus tem nos sacrifícios de louvor e nas dádivas que oferecemos a ele (veja
Hb 13.15-16). A metáfora da igreja como corpo de Cristo deve aum entar a nossa
dependência mútua e a nossa apreciação da diversidade de dons no corpo. Muitas outras
aplicações poderiam ser tiradas dessas e de outras metáforas da igreja alistadas nas
Escrituras.
5. A igreja e Israel. Entre os protestantes evangélicos tem havido diferença de
posição sobre a questão do relacionamento entre Israel e a igreja. Essa questão foi trazida
à tona como proeminente pelos que defendem um sistema teológico “dispensacionalista”.
A mais extensa teologia sistemática escrita por um dispensacionalista, a Systematic Theology
de Lewis Sperry Chafer,14 destaca muitos aspectos distintos entre Israel e a igreja, e até
mesmo entre o Israel fiel do Antigo Testamento e a igreja do Novo Testamento.15 Chafer
argumenta que Deus tem dois planos distintos para dois diferentes grupos de pessoas que
ele redimiu: os propósitos e as promessas de Deus para Israel são bênçãos terrenaise serão
cumpridos nesse mundo em algum tempo no futuro. Por outro lado, os propósitos e as
promessas de Deus para a igreja são bênçãos celestiais, as quais serão cumpridas no céu. Essa
distinção entre os dois diferentes grupos que Deus salva será vista especialmente no
milênio, conforme Chafer, pois naquela ocasião Israel reinará na terra como povo de Deus
e desfrutará o cumprimento das promessas do Antigo Testamento, mas a igreja já terá sido
levada para o céu na ocasião da volta secreta de Cristo para os seus santos (“o arre-
batamento”). Conforme essa posição, a igreja não começou antes do Pentecostes (At 2).
E não é correto pensar nos salvos do Antigo Testamento com os do Novo Testamento
como partes de uma igreja.
Embora a posição de Chafer continue a ter influência em alguns círculos dispen-
sacionalistas, e certamente na pregação mais popular, alguns líderes dentre os dispensa-
cionalistas mais recentes não têm seguido Chafer em muitos desses pontos. Diversos
teólogos dispensacionalistas de hoje, como Robert Saucy, Craig Blaising e Darrell Bock,
chamam-se “dispensacionalistas progressistas”16 e têm conquistado muitos seguidores.
Eles não vêem a igreja como um parêntese no plano de Deus mas como o primeiro passo na
direção do estabelecimento do reino de Deus. Do ponto de vista do dispensacionalismo
progressista, Deus não tem dois propósitos separados para Israel epara a igreja, mas sim um único
propósito - o estabelecimento do reino de Deus - no qual tanto Israel como a igreja terão
parte. O dispensacionalismo progressista não vê nenhuma distinção entre Israel e a igreja no
estado eterno futuro , pois todos serão parte de um só povo de Deus. Além disso, eles
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defendem que a igreja reinará com Cristo em corpo glorificado na terra durante o milênio (veja
a discussão sobre o milênio no capítulo 55).
No entanto, há ainda uma diferença entre os dispensacionalistas progressistas e o
restante do evangelicalismo em um aspecto: eles afirmam que as profecias do Antigo
Testamento referentes a Israel ainda serão cumpridas no milênio pelo povo judeu, que crerá em
Cristo e viverá na terra de Israel como “nação-modelo” para que todas as nações o vejam
e dele aprendam. Portanto, eles não diriam que a igreja é o “novo Israel” nem que todas
as profecias do Antigo Testamento sobre Israel serão cumpridas na igreja, pois essas
profecias serão cumpridas no Israel étnico.
A posição tomada nesse livro difere muito da interpretação de Chafer sobre essa
questão e difere também um pouco da dos dispensacionalistas progressistas. Todavia, é
preciso dizer que questões sobre o modo exato como as profecias bíblicas sobre o futuro
se cumprirão são, pela própria natureza do caso, difíceis de decidir com certeza, e é sábio
chegar a conclusões que permitam certo grau de indefinição nesse assunto. Com isso em
mente, podemos dizer o seguinte:
Tanto teólogos protestantes como católicos que não compartilham da posição dispen­
sacionalista afirmam que a igreja inclui tanto os salvos do Antigo Testamento como os do
Novo Testamento em uma só igreja, ou no corpo de Cristo. Até mesmo do ponto de vista
não dispensacionalista pode-se sustentar que haverá uma conversão em massa do povo
judeu no futuro (Rm 11.12, 15, 23-24,28-31),17 embora essa conversão resulte apenas em
cristãos judeus que se tomam parte da verdadeira igreja de Deus - eles serão “enxertados
na sua própria oliveira” (Rm 11.24).
Com respeito a essa questão, devemos notar os muitos versículos do Novo Testamento
que entendem a igreja como o “novo Israel” ou o novo “povo de Deus”. O fato de que
“Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela” (Ef 5.25) sugere isso. Além disso,
a presente era da igreja, que trouxe a salvação de muitos milhões de cristãos, não é uma
interrupção ou um parêntese no plano de Deus,18 mas a continuação de seu plano de
chamar um povo para si mesmo, expresso em todo o Antigo Testamento. Paulo diz:
“Porque não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem é circuncisão a que é somente
na carne. Porém judeu é aquele que o é interiormente, e circuncisão, a que é do coração, no
espírito, não segundo a letra” (Rm 2.28-29). Paulo reconhece que ainda que haja um
sentido literal ou natural no qual os fisicamente descendentes de Abraão devem ser
chamados judeus, há também um sentido mais profundo e espiritual no qual um “verda­
deiro judeu” é quem tem a fé interiormente, cujo coração foi purificado por Deus.
Paulo afirma que Abraão não deve apenas ser considerado pai do povo judeu no
sentido físico do termo. Ele é também em um sentido mais profundo e verdadeiro “opai
de todos os que crêem, embora não circuncidados [...] e pai da circuncisão, isto é, daqueles
que não são apenas circuncisos, mas também andam nas pisadas da fé que teve Abraão,
nosso pai, antes de ser circuncidado” (Rm 4.11-12; cf. vv. 16,18). Portanto, Paulo pode
dizer: “Nem todos os de Israel são, de fato, israelitas; nem por serem descendentes de
Abraão são todos seus filhos [...] estes filhos de Deus não são propriamente os da carne,
mas devem ser considerados como descendência os filhos da promessa” (Rm 9.6-8). Paulo
indica aqui que os verdadeiros filhos de Abraão, que são no sentido mais correto “Israel”,
não são a nação de Israel fisicamente descendente de Abraão, mas sim os que creram em
Cristo. Aqueles que verdadeiramente crêem em Cristo são agora os que têm o privilégio
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de serem chamados “meu povo” pelo Senhor (Rm 9.25, citando Os 2.23); portanto, a
igreja é agora o povo escolhido de Deus. Isso quer dizer que quando o povo judeu
segundo a carne for salvo em massa futuramente, eles não formarão um povo de Deus
separado nem serão como uma oliveira separada, mas serão “enxertados na sua própria
oliveira:” (Rm 11.24). Outro texto que também indica isso é Gálatas 3.29: “E, se sois de
Cristo, também sois descendentes de Abraão e herdeiros segundo a promessa”. De igual
modo, Paulo afirma que os cristãos são a “verdadeira circuncisão” (Fp 3.3).
Longe de considerar a igreja um grupo separado do povo judeu, Paulo escreve aos
cristãos gentios de Éfeso, dizendo-lhes que anteriormente estavam “separados da comu­
nidade de Israel e estranhos às alianças da promessa” (Ef 2.12), mas agora eles foram
“aproximados pelo sangue de Cristo” (Ef 2.13). E quando os gentios foram incluídos na
igreja, judeus e gentios foram unidos em um novo corpo. Paulo afirma que Deus “de ambos
fez um\ e, tendo derribado a parede da separação que estava no meio, a inimizade [...] para
que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos
em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz” Ef 2.14-16). Portanto, Paulo pode dizer
que os gentios são “ concidadãos dos santos e da família de Deus, edificados sobre o
fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristojesus, a pedra angular” (Ef
2.19-20). Com o seu amplo conhecimento do pano-de-fundo do Antigo Testamento
aplicado à igreja do Novo Testamento, Paulo pode ainda dizer que “os gentios são co-
herdeiros, membros do mesmo corpo” (Ef 3.6). O texto inteiro fala enfaticamente da
unidade entre cristãos judeus e gentios em um corpo em Cristo e não apresenta nenhuma
indicação de algum plano distinto para o povo judeu ser salvo fora dessa inclusão no único
corpo de Cristo, a igreja. A igreja incorpora em si mesma todo o verdadeiro povo de Deus,
e quase todos os títulos usados para o povo de Deus no Antigo Testamento são em uma
passagem ou outra aplicados à igreja no Novo Testamento.
O capítulo oito de Hebreus apresenta outro forte argumento para que a igreja seja
vista como receptáculo e cumprimento das promessas do Antigo Testamento com respeito
a Israel. No contexto da nova aliança à qual os cristãos pertencem, o autor de Hebreus
faz uma citação extensa de Jeremias 31.31-34, em que diz: “Eis aí vêm dias, diz o Senhor,
e firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa deJudá [...] Porque esta é a aliança
que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o Senhor: na sua mente
imprimirei as minhas leis, também sobre o seu coração as inscreverei; e eu serei o seu
Deus, e eles serão o meu povo” (Hb 8.8-10). Aqui o autor cita a promessa do Senhor, isto
é, que ele faria uma nova aliança com a casa de Israel e com a casa deJudá , e afirma que
essa é a nova aliança agora feita com a igreja. Essa nova aliança é a aliança da qual fazem
parte os cristãos da igreja. Parece difícil evitar a conclusão de que o autor vê a igreja como
o verdadeiro Israel de Deus, no qual as profecias do Antigo Testamento encontram o seu
cumprimento.
De maneira semelhante, Tiago escreve uma carta geral para muitas das primeiras
igrejas cristãs e diz que está escrevendo “às doze tribos que se encontram na Dispersão”
(Tg 1.1). Isso indica que ele evidentemente vê os cristãos do Novo Testamento como
sucessores e como cumprimento das doze tribos de Israel.
Pedro também fala da mesma maneira. Desde o primeiro versículo, no qual chama
seus leitores “forasteiros da Dispersão” (IPe 1.1)19 até o penúltimo versículo, em que
chama “Babilônia” a cidade de Roma (IPe 5.13), Pedro fala com freqüência dos cristãos
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(44) A Igreja: Natureza, Características e Propósitos
do Novo Testamento usando imagens veterotestamentárias e promessas dadas aos judeus.
Esse tema recebe proeminente atenção em 1Pedro 2.4-10, em que20 Pedro diz que Deus
concedeu à igreja quase todas as bênçãos prometidas a Israel no Antigo Testamento. A
morada de Deus já não é o templo de Jerusalém, porque os cristãos são o novo “templo”
de Deus (v. 5). O sacerdócio apto para oferecer sacrifícios aceitáveis a Deus já não é o que
descende de Arão, porque os cristãos são agora o verdadeiro “sacerdócio real”, com
acesso ao trono de Deus (vv. 4-5, 9). O povo escolhido de Deus já não é o que descende
fisicamente de Arão, porque os cristãos são agora a verdadeira “raça eleita” (v. 9). A nação
abençoada por Deus já não é a nação de Israel, porque os cristãos são agora a verdadeira
“nação santa” (v. 9). O povo de Israel já não é chamado o povo de Deus, porque os cristãos
- tanto judeus como gentios - são agora “povo de Deus” e os que “alcançaram miseri­
córdia” (v. 10). Além disso, Pedro extrai essas citações de contextos veterotestamentários
que repetidamente advertem que Deus rejeitará o seu povo que persistir em rebelião
contra ele e que rejeitar a preciosa “pedra angular” (v. 6) que Deus estabeleceu. Que outra
declaração seria necessária para afirmar com segurança que a igreja agora se tornou o
verdadeiro Israel de Deus e que receberá todas as bênçãos prometidas a Israel no Antigo
Testamento?21
6. A igreja e o reino de Deus. Qual é o relacionamento entre a igreja e o reino de
Deus? As diferenças foram bem resumidas por George Ladd:
O reino é primeiramente o governo dinâmico ou o domínio real de Deus e,
derivando dessa idéia, a esfera na qual o domínio é experimentado. Na linguagem
bíblica, o reino não é identificado com os seus súditos. Eles são o povo do domínio
de Deus que adentram o reino, nele vivem, e por ele são governados. A igreja é a
comunidade do reino, mas nunca o reino em si. Os discípulos dejesus pertencem
ao reino assim como o reino pertence a eles; todavia, eles não são o reino. O reino
é o domínio de Deus; a igreja é uma sociedade de homens.22
Ladd prossegue até resumir cinco aspectos específicos do relacionamento entre o
reino e a igreja: (1) A igreja não é o reino (pois Jesus e os primeiros cristãos pregaram que
o reino de Deus estava próximo e não que a igreja estava próxima; eles pregaram as boas
novas do reino e não as boas novas da igreja: At 8.12; 19.8; 20.25; 28.23, 31). (2) O reino
cria a igreja (porque quando as pessoas entram no reino de Deus elas unem-se a uma
comunhão humana da igreja). (3) A igreja testemunha do reino (pois Jesus disse: “E será
pregado esse evangelho do reino por todo o mundo”, Mt 24.14). (4) A igreja é o instru­
mento do reino (porque o Espírito Santo, manifestando o poder do reino, age por meio
dos discípulos para curar os enfermos e expulsar demônios, conforme fez no ministério
dejesus: Mt 10.8; Lc 10.17). (5) A igreja é a guardiã do reino (porque à igreja foram dadas
as chaves do reino dos céus: Mt 16.19).23
Portanto, não devemos identificar o reino de Deus com a igreja (como na teologia
católica romana), nem ver o reino de Deus como inteiramente futuro, algo distinto da era
da igreja (como na teologia dispensacionalista mais antiga). Em vez disso, devemos
reconhecer que há uma relação próxima entre reino de Deus e igreja. A medida que a
igreja proclama as boas novas do reino, pessoas virão para a igreja e começarão a
723
(44) A Doutrina da Igreja
experimentar as bênçãos do domínio de Deus em suas vidas. O reino manifesta-se através
da igreja, e assim o futuro domínio de Deus irrompe no presente (ele “já” está aqui: Mt
12.28; Rm 14.17; e “não ainda” plenamente aqui: Mt 25.34; ICo 6.9-10). Portanto, os que
crêem em Cristo começarão a experimentar um pouco de como será o futuro domínio
do reino: eles conhecerão um pouco da vitória sobre o pecado (Rm 6.14; 14.17), sobre a
oposição dos demônios (Lc 10.17) e sobre as enfermidades (Lc 10.9). Eles viverão no poder
do Espírito Santo (Mt 12.28; Rm 8.4-17; 14.17), que é o poder divino do reino vindouro.
Por fim Jesus voltará, e o domínio do seu reino se estenderá por a toda a criação (ICo
15.24-28).

B. AS CARACTERÍSTICAS DISTINTIVAS DA IGREJA


1. Existem igrejas verdadeiras e falsas igrejas. O que faz de uma igreja uma igreja?
O que é necessário para existir uma igreja? Pode um grupo que se diz cristão tornar-se
tão diferente do que deve ser uma igreja que tal grupo não deva mais ser chamado igreja?
Nos primeiros séculos da igreja cristã, houve pouca polêmica sobre o que era uma
verdadeira igreja. Havia apenas uma igreja em todo o mundo, a igreja “visível” espalhada
em todo o mundo, que era, naturalmente, a verdadeira igreja. Essa igreja tinha bispos,
clérigos locais e templos que todos podiam ver. Qualquer herege que fosse achado em
algum sério erro doutrinário era simplesmente excluído da igreja.
Mas na Reforma foi levantada uma questão crucial: como podemos reconhecer uma
igreja verdadeira? A igreja católica romana é verdadeira ou não? Para responder a tal
questão era necessário decidir quais eram as características distintivas de uma igreja
verdadeira. Não há dúvida de que a Bíblia fala de falsas igrejas. Paulo assim se refere aos
templos pagãos: “Antes, digo que as coisas que eles sacrificam, é a demônios que as
sacrificam e não a Deus” (ICo 10.20). Ele diz aos coríntios que “quando éreis gentios,
deixáveis conduzir-vos aos ídolos mudos” (ICo 12.2). Esses templos pagãos eram certa­
mente falsas igrejas ou falsas assembléias religiosas. Além disso, as Escrituras falam de uma
assembléia religiosa que é de fato uma “sinagoga de Satanás” (Ap 2.9; 3.9). Aqui o Senhor
Jesus ressurreto parece estar-se referindo às assembléias judaicas cujos participantes se
diziam judeus mas não eram verdadeiros judeus que tinham fé salvífica. A assembléia
religiosa deles não era uma assembléia do povo de Cristo, mas sim dos que ainda
pertenciam ao reino das trevas, ao reino de Satanás. Essa era com certeza uma falsa igreja.
Lutero e Calvino concordaram em grande parte sobre a questão do que constituía uma
verdadeira igreja. A declaração de fé luterana, chamada Confissão de Augsburgo (1530),
definia a igreja como “a congregação de santos na qual o evangelho é ensinado corre­
tamente e os sacramentos também são ministrados corretamente” (artigo 7).24 De maneira
semelhante,João Calvino afirmou: “Onde quer que ouçamos a Palavra de Deus puramente
pregada e ouvida, e os sacramentos ministrados conforme instituídos por Cristo, ali, e não
se deve duvidar, existe uma igreja de Deus”.25 Embora Calvino tenha falado da pregação
pura da Palavra (enquanto a confissão luterana falava da pregação correta do evangelho)
e mesmo havendo dito que a Palavra precisa não só ser pregada mas também ouvida
(enquanto a Confissão de Augsburgo meramente mencionava que ela deve ser ensinada
corretamente), as visões que os dois tinham das características distintivas de uma verdadeira
igreja são muito semelhantes.26 Em contraste com o ponto de vista de Lutero e de Calvino
724
(44) A Igreja: Natureza, Características e Propósitos
sobre as características distintivas de uma igreja, a posição católica romana é que a igreja
visível que vem desde Pedro e dos apóstolos é a igreja verdadeira.
Parece apropriado tomar a posição de Lutero e Calvino sobre as características da
igreja verdadeira como correta ainda hoje. Não há dúvida de que se a Palavra de Deus
não está sendo pregada, mas apenas doutrinas falsas ou doutrinas humanas, não há então
igreja verdadeira. Em alguns casos podemos ter dificuldade de determinar exatamente
quanto a doutrina errônea pode ser tolerada para que uma igreja não seja mais consi­
derada uma verdadeira igreja, mas há muitos casos nos quais não há dúvida de que
podemos afirmar que não existe ali uma igreja verdadeira. Por exemplo, a igreja dejesus
Cristo dos Santos dos Últimos Dias (a igreja mórmon) não sustenta nenhum a das
principais doutrinas cristãs relativas à salvação, ou à pessoa de Deus, ou à obra de Cristo.
E, indubitavelmente, uma falsa igreja. De igual modo, os testemunhas-de-jeová ensinam
salvação por obras e não somente pela fé em Jesus Cristo. Esse é um desvio doutrinário
fundamental, porque se as pessoas crerem nos ensinos dos testemunhas-de-jeová, elas
simplesmente não serão salvas. Por isso, os testemunhas-de-jeová também precisam ser
considerados uma falsa igreja. Quando a pregação de uma igreja oculta de seus membros
a mensagem do evangelho de salvação pela fé, de modo que ela não é proclamada com
clareza, ficando mesmo sem ser proclamada por algum tempo, o grupo que ali se reúne
não é uma igreja.
A segunda característica da igreja, a ministração correta dos sacramentos (batismo e
ceia do Senhor) foi provavelmente afirmada em oposição à posição católica romana de
que a graça salvífica vinha através dos sacramentos, tomando-os assim “obras” pelas quais
alcançamos mérito para a salvação. Desse modo, a Igreja Católica Romana estava
insistindo em pagamento em vez de ensinar que a fé é o meio de obter salvação.
Mas há ainda outra razão para incluir os sacramentos como característica da igreja.
Uma vez que uma organização comece a praticar o batismo e a ceia do Senhor, ela é uma
organização que está perdurando e procurando funcionar como igreja. (Na sociedade
moderna, uma organização que comece a reunir-se para adorar a Deus, orar e ensinar a
Bíblia aos domingos também estará claramente procurando funcionar como uma igreja.)
O batismo e a ceia do Senhor servem também de “controle de membros” de uma
igreja. O batismo é o meio pelo qual alguém é admitido na igreja, e a ceia do Senhor é o
meio que permite que o povo dê um sinal de continuidade como membro da igreja - a
igreja mostra que ela considera que os que recebem o batismo e a ceia do Senhor são
salvos. Portanto essas atividades indicam o que uma igreja pensa sobre a salvação, e elas
estão adequadamente relacionadas como uma característica distintiva da igreja também
hoje. Em contraste, os grupos que não ministram o batismo e a ceia do Senhor mostram
que não pretendem funcionar como igreja. Alguém pode ficar em um a esquina
acompanhado de um bom grupo de pessoas, onde a Palavra é pregado e ouvida, mas eles
não formarão uma igreja ali. Mesmo uma reunião de estudo bíblico na vizinhança, em
determinada casa, pode apresentar verdadeiro ensino e aprendizado da Palavra sem se
tornar uma igreja. Mas se um grupo de estudo bíblico local começa a batizar os seus
próprios novos convertidos e participar da ceia do Senhor, isso mostra a intenção de
juncionar como igreja, e seria difícil dizer por que o grupo não deveria ser considerado uma
igreja.27

725
(44) A Doutrina da Igreja
2. Igrejas falsas e igrejas verdadeiras hoje. Em vista da questão proposta durante
a Reforma, o que dizer da Igreja Católica Romana hoje? E uma verdadeira igreja? Aqui
parece que não podemos simplesmente tomar uma decisão com respeito à Igreja Católica
Romana como um todo, pelo fato de sua grande diversidade. Perguntar se a Igreja
Católica Romana é uma igreja verdadeira ou falsa hoje é como perguntar se as igrejas
protestantes de hoje são falsas ou verdadeiras. Há uma grande variedade delas. Algumas
paróquias certamente não possuem as duas características: não há pregação pura da
Palavra, e a mensagem de salvação somente pela fé em Cristo não é conhecida nem
recebida pelo povo na paróquia. A participação nos sacramentos é vista como uma “obra”
que pode alcançar mérito para com Deus. Um grupo como esse não é uma verdadeira
igreja cristã. Por outro lado, há muitas paróquias em várias partes do mundo hoje em que
o sacerdote local tem um conhecimento salvador genuíno de Cristo e um relacionamento
pessoal vital com Cristo pela oração e pelo estudo da Bíblia. Suas próprias pregações e
ensino particular da Bíblia dão mais ênfase na fé pessoal, na necessidade da leitura da
Bíblia pelo indivíduo e na oração. Seu ensino sobre os sacramentos enfatiza muito mais
os aspectos simbólico e comemorativo do que os considera como atos que merecem
alguma infusão de graça salvífica de Deus. Em tal caso, embora tenhamos de dizer que
ainda temos diferenças profundas com relação ao ensino católico romano em algumas
doutrinas,28 parece que tal igreja estaria bem mais próxima das duas características, de
maneira que seria difícil negar que ela seja de fato uma igreja verdadeira. Ela parece ser
uma congregação de cristãos genuína na qual o evangelho é ensinado (ainda que não de
modo puro), e os sacramentos, ministrados de modo mais correto.
Existem falsas igrejas no meio protestante? Se olharmos novamente para as duas
características distintivas da igreja, no julgamento do presente autor parece apropriado
dizer que muitas igrejas protestantes liberais são na realidade falsas igrejas hoje.29 Será
que o evangelho da justificação pelas obras e de descrença na Bíblia que essas igrejas
ensinam tem mais chance de salvar o povo do que o ensino católico romano da época
da Reforma? E será que a ministração dos sacramentos desprovidos da sã doutrina aos
que entram por suas portas não trará tanta falsa segurança aos pecadores não regenerados
como o fez o uso católico romano dos sacramentos na época da Reforma? Se uma
assembléia de pessoas, apesar de levar o nome de “cristã”, ensina sistematicamente que
não se pode acreditar na Bíblia, isto é, uma igreja na qual o pastor e a congregação
raramente lêem a Bíblia ou oram de modo expressivo, e não crêem ou talvez nem
entendam o evangelho da salvação pela fé somente em Cristo, como podemos então dizer
que essa é uma igreja verdadeira?30

C. Os PROPÓSITOS DA IGREJA
Podemos entender os propósitos da igreja em termos de ministério com relação a
Deus, aos cristãos e ao mundo.
1. Ministério com relação a Deus: adorar. No relacionamento com Deus o
propósito da igreja é adorá-lo. Paulo ordena à igreja de Colossos que louve a Deus “com
salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão no coração” (Cl 3.16). Deus nos

726
(44) A Igreja: Natureza, Características e Propósitos
destinou e nos escolheu em Cristo “para sermos para louvor da sua glória” (Ef 1.12). A
adoração na igreja não é simplesmente uma preparação para algo mais. Ela está em si
mesma cumprindo o principal propósito da igreja com referência ao seu Senhor. Essa é
a razão por que Paulo, depois de nos advertir de que devemos “remir o tempo”, acrescenta
o mandamento de sermos cheios do Espírito e de estarmos “entoando e louvando de
coração ao Senhor” (Ef 5.16-19).
2. Ministério com relação aos cristãos: edificar. De acordo com as Escrituras, a
igreja tem a obrigação de nutrir aqueles que já são cristãos e edificá-los à maturidade na
fé. Paulo disse que seu próprio alvo não era apenas levar pessoas à fé salvífica inicial, mas
sim “apresentar todo homem perfeito (maduro) em Cristo” (Cl 1.28). E ele escreveu à igreja
de Efeso que Deus havia concedido à igreja pessoas com dons “com vistas ao aper­
feiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de
Cristo, até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de
Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4.12-13).
É evidentemente contrário ao modelo do Novo Testamento pensar que o nosso único alvo
para com as pessoas é levá-las à fé salvífica inicial. Nosso alvo como igreja deve ser
apresentar a Deus todo cristão “perfeito (maduro) em Cristo” (Cl 1.28).
3. Ministério com relação ao mundo: evangelização e misericórdia. Jesus disse
aos seus seguidores que eles deveriam “fazer discípulos de todas as nações” (Mt 28.19).
Essa obra evangelística de declarar o evangelho é o ministério principal da igreja com
relação ao mundo.31
Todavia, acompanhando a obra de evangelização há também o ministério de miseri­
córdia, que inclui cuidado dos pobres e dos necessitados em nome do Senhor. Embora
a ênfase do Novo Testamento esteja na ajuda material para os que fazem parte da igreja
(At 11.29; 2Co 8.4; IJo 3.17), há ainda uma afirmação de que é correto ajudar os descrentes
ainda que eles não respondam com gratidão nem aceitem a mensagem do evangelho.
Jesus nos ensina:
Amai, porém, os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem esperar nenhuma
paga; será grande o vosso galardão, e sereis filhos do Altíssimo. Pois ele é benigno
até para com os ingratos e maus. Sede misericordiosos, como também é misericordioso
vosso Pai (Lc 6.35-36).
A questão central na explicação dada por Jesus é que devemos imitar a Deus, sendo
bondosos para os que são ingratos e também egoístas. Além do mais, temos o exemplo
dejesus, que não tentou curar apenas os que o aceitaram como Messias. Em vez disso,
quando grandes multidões o procuravam, “ele os curava, impondo as mãos sobre cada um”
(Lc 4.40). Isso deve incentivar-nos a executar atos de bondade, a orar pela cura e por
outras necessidades, tanto na vida de cristãos como de descrentes. Tal ministério de
misericórdia para com o mundo pode também incluir participação em atividade cívicas
ou tentativas de influenciar a política do governo a ser mais consonante aos princípios
morais bíblicos. Onde há uma injustiça sistemática no tratamento dos pobres ou de

727
(44) A Doutrina da Igreja
minorias étnicas ou religiosas, a igreja deve também orar - quando tiver tal oportunidade
- e denunciar tal injustiça. Todos esses são meios com os quais a igreja pode complementar
seu ministério evangelístico para com o mundo e de fato adornar o evangelho que ela
professa. Mas tal ministério de misericórdia para com o mundo nunca deve tomar-se um
substituto da evangelização genuína nem de outras áreas de ministério com relação a Deus
e aos cristãos, conforme já mencionados.
4. Manter esses propósitos em equilíbrio. Uma vez relacionados esses propósitos
para a igreja, alguém pode perguntar qual deles é o mais importante? Ou alguém mais pode
perguntar se podemos negligenciar um desses três como menos importante do que os
outros.
A isso devemos responder que os três propósitos da igreja foram ordenados pelo Senhor
nas Escrituras; portanto, os três são importantes e nenhum deles pode ser negligenciado.
De fato, uma igreja forte terá ministérios eficazes nas três áreas. Devemos acautelar-nos de
quaisquer tentativas de reduzir o propósito da igreja a apenas um desses três e de dizer que
um ou outro deve ser a nossa preocupação principal. De fato, tais tentativas de tomar um
desses propósitos o principal sempre resultará em negligência dos outros dois. Uma igreja
que enfatiza apenas adoração acabará tendo um ensino bíblico inadequado, e seus membros
permanecerão na superficialidade quanto ao entendimento das Escrituras e imaturos na vida
cristã. Se ela também começar a negligenciar a evangelização, essa igreja vai parar de crescer
e de influenciar os outros; ela se tomará estagnada e finalmente começará a decair.
Uma igreja que coloca a edificação dos cristãos como um propósito que tem prece­
dência sobre os outros dois tende a produzir cristãos que sabem muita doutrina bíblica mas
são espiritualmente áridos na vida porque pouco conhecem da alegria de adorar a Deus e
de falar aos outros sobre Jesus Cristo.
Mas uma igreja que faça da evangelização sua prioridade, de modo que venha a
negligenciar os outros dois propósitos também acabará tendo cristãos imaturos que
enfatizam o crescimento numérico, mas que possuem cada vez menos do amor genuíno de
Deus expresso na adoração, maturidade doutrinária e santidade pessoal na vida. Todos esses
propósitos precisam ser enfatizados continuamente numa igreja saudável.
Todavia, indivíduos são diferentes de igrejas ao colocar uma relativa prioridade sobre
um ou outro desses propósitos. Pelo fato de sermos um corpo com diversos dons espirituais
e vários talentos, será correto colocar mais ênfase no cumprimento daquele propósito da
igreja que for mais relacionado com os dons e interesses que Deus nos deu. Com certeza
nenhum cristão é obrigado a tentar dar exatamente um terço de seu tempo na igreja para
a adoração, um terço para a edificação e um terço para a evangelização e para o ministério
de misericórdia. Alguém com o dom de evangelização deve, naturalmente, gastar algum
tempo em adoração e no cuidado de outros cristãos, mas pode terminar gastando a maior
parte do tempo no trabalho evangelístico. Alguém que é um talentoso líder de louvor pode
terminar dedicando 90 por cento do seu tempo na igreja preparando-se para isso. Essa é
apenas uma resposta adequada para a diversidade de dons que Deus nos concedeu.

728
(44) A Igreja: Natureza, Características e Propósitos
N o ta s
1. Veja na seção 5 uma discussão da posição dispensacionalista que entende que a igreja e
Israel devem ser vistos como grupos distintos. Nesse livro, assumo uma posição não dispen­
sacionalista nessa questão, ainda que deva ser ressaltado que muitos evangélicos que concordam
comigo na maior parte deste livro têm uma posição diferente nessa questão específica.
2. De fato, o termo grego ekklêsia, traduzido por “igreja” no Novo Testamento, é a palavra
que a Septuaginta mais freqüentemente usa para traduzir o termo qãhal do Antigo Testamento,
palavra usada para referir-se à “congregação” ou à “assembléia” do povo de Deus. Ekklêsia
traduz qãhal, “assembléia”, 69 vezes na Septuaginta. A próxima tradução mais freqüente é
synagõge, “sinagoga” ou “lugar de reunião” (37 vezes).
Chafer faz objeção à essa análise, dizendo que o uso da palavra ekklêsia na Septuaginta não
reflete o sentido do palavra “igreja” no Novo Testamento, sendo, porém, um termo comum que
se refere a uma “assembléia”. Portanto, não devemos chamar de igreja a “assembléia” do teatro
de Efeso (At 19.32), embora a palavra ekklêsia seja usada ali para referir-se àquele grupo de
pessoas. De maneira semelhante, quando Estêvão fala de Israel no deserto (At 7.38) como uma
ekklêsia não implica que ele pense em Israel como uma “igreja” mas apenas como uma
assembléia de pessoas. Chafer entende que esse uso do termo é diferente de seu sentido
específico no Novo Testamento que se refere à igreja (Systematic Theology, 4:39). Todavia, o uso
extensivo da palavra ekklêsia na Septuaginta referindo-se não a assembléias de massas pagãs,
mas especificamente ao povo de Deus, sem dúvida deve ser levado em conta para que se
compreenda o sentido da palavra quando usada pelos autores do Novo Testamento. A Septua­
ginta era a Bíblia mais usada, e a palavra ekklêsia certamente estava sendo usada com a cons­
ciência do seu conteúdo semântico no Antigo Testamento. Isso explicaria por que Lucas pode
facilmente falar de Estêvão referindo-se à “igreja” no deserto com Moisés e, além disso, muitas
vezes nos capítulos próximos em Atos, ele fala do crescimento da “igreja” depois do Pentecostes,
sem indicar qualquer intenção de dar ao termo um significado diferente. A igreja do Novo
Testamento é uma assembléia do povo de Deus que simplesmente dá prosseguimento ao modelo
das assembléias do povo de Deus encontrado em todo o Antigo Testamento.
3. A palavra grega ekklêsia, traduzida por “igreja” no Novo Testamento, significa simples­
mente “assembléia”.
4. Quanto à discussão de haver ou não distinção entre “igreja” e “Israel” como povos de
Deus separados, veja a seção 5.
Millard Erickson em Christian Theology, p. 1048, argumenta que a igreja não teve início antes
do Pentecostes pelo fato de Lucas não usar a palavra “igreja” (ekklêsia) em seu evangelho,
embora ele a utilize vinte e quatro vezes em Atos. Se a igreja existia antes do Pentecostes,
argumenta ele, por que Lucas não falou dela? Todavia a razão por que Lucas não usou a palavra
“igreja” para referir-se ao povo de Deus durante o ministério terreno dejesus foi porque
provavelmente não havia nenhum grupo bem definido ou visível ao qual ele pudesse assim se
referir. A igreja verdadeira existia no sentido de ser o grupo de todos os verdadeiros crentes em
Israel durante aquele tempo, embora fosse um remanescente tão pequeno de judeus fiéis (como
José, Maria, Zacarias, Isabel, Simeão, Ana e outros como eles) que não formava de modo algum
um grupo claramente perceptível ou bem definido. Grande parte da população judaica tinha se
afastado de Deus e dado lugar a outras atividades religiosas como o legalismo (fariseus), o “libe­
ralismo” descrente (saduceus), o misticismo especulativo (os autores e os seguidores da literatura
apocalíptica e os sectários de grupos como o da comunidade de Qumran), o materialismo
grosseiro (os publicanos e outros para quem a riqueza era o seu deus falso) e o ativismo político
ou militar (os zelotes e outros que buscavam salvação por meios políticos ou militares). Ainda

729
(44) A Doutrina da Igreja
que houvesse, sem dúvida, crentes verdadeiros entre muitos ou entre todos esses grupos, a nação
como um todo não constituía uma assembléia de pessoas que adorava a Deus corretamente.
Além disso, a idéia de um povo de Deus novamente “chamado” como uma assembléia para
seguir a Cristo veio a tomar-se realidade no dia de Pentecostes. Portanto, embora a “igreja” como
grupo de todos os que criam verdadeiramente em Deus existisse antes do dia de Pentecostes,
ela passou a ter uma expressão visível muito mais clara naquele dia, e é natural que Lucas
começasse a usar o termo “igreja” naquela ocasião. Antes disso, o termo “igreja” não podia ser
usado com referência a nenhuma entidade claramente estabelecida fora da nação de Israel como
um todo; depois do Pentecostes, porém, o termo pôde prontamente ser utilizado para referir-
se aos que se identificavam voluntária e visivelmente como esse novo povo de Deus.
Devemos observar também quejesus usou a palavra “igreja” (ekklêsia) duas vezes no evan­
gelho de Mateus (16.18 e 18.17).
5. O texto da Declaração dos Bispos na íntegra pode ser obtido no National Catholic News
Service, 1312, Massachusetts Avenue NW, Washington, D.C. 20005, EUA. O texto foi publicado
em “Pastoral Statement for Catholics on Biblical Fundamentalism”, in Origins vol. 17.21 (Nov. 5,
1987), p. 376-77.
6. João Calvino, Institutes 4.2.2-3, p. 1043, 1045 (publicada no Brasil pela Cultura Cristã
sob o título As Institutos ou Tratado da Religião Cristã).
7. Tanto Calvino como Lutero acrescentariam o terceiro requisito, isto é, que os que são
considerados parte da igreja visível precisam participar dos sacramentos do batismo e da ceia
do Senhor. Outros podem considerar isso uma subcategoria da exigência de que o povo dê prova
da fé na própria vida.
8. Citado por João Calvino, Institutes 4.1.8 (p. 1022).
9. João Calvino, Institutes, 4.1.8 (p. 1022-23).
10. Há uma variante textual nos manuscritos gregos de At 9.31; alguns manuscritos trazem
“a igreja”, e outros dizem “as igrejas”. A leitura no singular, “a igreja”, é de longe preferível à
variante que traz o plural. A leitura que traz o singular recebe probabilidade “B” (classificação
próxima ao mais alto grau de probabilidade de ser o texto correto) no texto das Sociedades
Bíblicas Unidas. O singular é representado por muitos textos antigos e de origem variável
enquanto a leitura que traz o plural é encontrada na tradição do texto bizantino, mas em nenhum
texto anterior ao século quinto. (Para que as relações gramaticais sejam coerentes, seis palavras
precisam ser modificadas no texto grego; portanto, a variante é uma alteração intencional quer
para uma direção, quer para outra.)
11. Uma discussão maior desse assuntos está em Edmundo P. Clowney, “Interpreting the
Biblical Models of the Church”, em Biblical Interpretation and the Church, ed. por D. A. Carson
(Nashville: Thomas Nelson, 1985), p. 64-109.
12. A lista de metáforas dada nessa seção não pretende ser exaustiva.
13. Essa segunda metáfora não é uma metáfora nem sequer completa ou “apropriada”, pois
as partes do corpo não crescem na cabeça, mas Paulo está mesclando a idéia da supremacia de
Cristo (ou autoridade) com a idéia da igreja como corpo e a idéia de que crescemos em direção
à maturidade em Cristo. Ele reúne todas em uma declaração complexa.
14. Lewis Sperry Chafer, Systematic Theology. Embora haja vários outras doutrinas distintivas
que normalmente caracterizam os dispensacionalistas, a distinção entre Israel e a igreja como
dois grupos no plano completo de Deus é provavelmente a mais importante. Outras doutrinas
defendidas pelos dispensacionalistas geralmente são o arrebatamento pré-tribulacional da igreja
para o céu (veja o capítulo 54), o cumprimento futuro literal das profecias do Antigo Testamento
com respeito a Israel, a divisão da história bíblica em sete períodos ou “dispensações” da maneira
de Deus relacionar-se com seu povo, e a idéia de que a era da igreja é um parêntese no plano

730
(44) A Igreja: Natureza, Características e Propósitos
de Deus para todas as épocas, instituído quando os judeus rejeitaram em sua maioria ajesus
como Messias. Todavia, muitos dispensacionalistas de hoje modificariam ou rejeitariam vários
desses aspectos distintos. O dispensacionalismo como sistema teve início com os escritos de J.
N. Darby (1800-1882) na Grã-Bretanha, mas foi popularizado nos EUA pela Bíblia de estudo
de Scofield.
15. Chafer, Systematic Theology, 4:45-53.
16. Veja Robert L. Saucy, The Casefor Progressive Dispensationalism (Grand Rapids: Zondervan,
1993), e Darrell L. Bock e Craig A. Blaising, eds., Progressive Dispensationalism (Wheaton: Victor,
1993). Veja também John S. Feinberg, ed. Continuity and Discontinuity: Perspectives on the
Relationship Between the Old and New Testaments (Wheaton: Crossway, 1988).
17. Veja o capítulo 54, divisões F2.f e F.3.g, onde revelo a convicção de que Romanos 9-11
ensina uma conversão em massa do povo judeu no futuro, ainda que eu não seja um dispen­
sacionalista no sentido comum do termo.
18. O termo usado por Chafer é “intercalação” e significa uma inserção de um período de
tempo em um esquema ou num calendário de eventos previamente planejado (p. 41). Chafer
afirma: “A presente era da igreja é uma intercalação no calendário revelado ou no programa de
Deus previsto pelos profetas da antigüidade”.
19. “Dispersão” (ou Diáspora) é um termo usado para referir-se ao povo judeu que saíra da
terra de Israel e vivia espalhado por todo o mundo antigo em volta do Mediterrâneo.
20. O restante desse parágrafo é em grande parte extraído de Wayne Grudem, The First
Epistle of Peter, p. 113.
21. Um dispensacionalista pode concordar com o fato de que a igreja é o receptáculo de
muitas aplicações das profecias do Antigo Testamento com respeito a Israel, mas afirma que o
verdadeiro cumprimento dessas profecias ainda virá para o Israel étnico no futuro. Mas com todos
esses exemplos evidentes do Novo Testamento de aplicações claras dessas promessas à igreja,
não parece haver nenhuma boa razão para negar que essa realidade é o único cumprimento que
Deus dará a essas promessas.
22. George Eldon Ladd, A Theology of the New Testament (publicada em português pela Êxodus
sob o título Teologia do Novo Testamento), p. 111.
23. Esses cinco pontos são um resumo de Ladd, Theology, p. 111-19.
24. Citado da obra de Philip Schaff, The Creeds of Christendom, p. 11-12.
25. Calvino, Institutes 4.1.9 (p. 1023).
26. Posteriormente algumas confissões acrescentaram uma terceira característica da igreja
(o exercício correto da disciplina eclesiástica), mas nem Lutero nem Calvino relacionaram essa
característica.
27. O Exército de Salvação é um caso incomum porque não observa o batismo nem a ceia
do Senhor. Todavia, parece ser, em todos os outros aspectos, uma igreja verdadeira. Nesse caso,
a organização instituiu outros meios alternativos que dão o significado de ser membro e de con­
tinuar a participar da igreja. Esses outros meios servem de alternativas ao batismo e à ceia do
Senhor com respeito ao “controle de membros”.
28. Entre as diferenças doutrinárias importantes encontram-se algumas como o sacrifício
contínuo da missa, a autoridade do papa e dos concílios eclesiásticos, a veneração da virgem
Maria e seu papel na redenção, a doutrina do purgatório e a extensão do cânon das Escrituras.
29. Conclusão semelhante foi apresentada porj. Gresham Machen já em 1923: “A igreja
de Roma pode representar uma perversão da religião cristã, mas o liberalismo naturalista de
modo nenhum é cristianismo” (Christianity and Liberalism [Grand Rapids: Eerdmans, 1923], p.
52).

731
(44) A Doutrina da Igreja
30. No próximo capítulo discutiremos a questão da pureza da igreja. Embora os cristãos não
devam voluntariamente associar-se a uma falsa igreja, precisamos reconhecer que entre as verda­
deiras igrejas há igrejas mais puras e outras menos puras (veja a discussão no capítulo 45). Tam­
bém é importante observar aqui que algumas denominações protestantes liberais de hoje podem
abrigar muitas falsas igrejas (onde o evangelho não é pregado nem ouvido), mas contam ainda
com algumas igrejas locais que pregam o evangelho com clareza e fidelidade, sendo assim igrejas
verdadeiras.
31. Não pretendo dizer que a evangelização é mais importante do que a adoração ou a edifi­
cação, mas apenas que é o nosso principal ministério com relação ao mundo.

732
45
Pureza e Unidade da Igreja
Que faz uma igreja ser razoavelmente agradável a Deus?
Com que tipo de igreja devemos cooperar e dela participar?

E x p l ic a ç ã o e b a s e b íb l ic a
A . I g r e ja s m a is pu r a s e m e n o s pu r a s
N o capítulo anterior vimos que existem “igrejas verdadeiras” e “falsas igrejas”. Neste
capítulo é necessário aprofundar a discussão: há igrejas mais puras e menos puras.
Tal fato fica evidente quando se faz uma breve comparação entre as epístolas de Paulo.
Quando olhamos para Filipenses ou para 1Tessalonicenses achamos prova da grande
alegria de Paulo com essas igrejas e a relativa falta de problemas doutrinários importantes
e de problemas morais (veja Fp 1.3-11; 4.10-16; ITs 1.2-10; 3.6-10; 2Ts 1.3-4; 2.13; cf. 2Co
8.1-5). Por outro lado, havia todo tipo de problemas morais e doutrinários sérios nas igrejas
da Galácia (G1 1.6-9; 3.1-5) e em Corinto (ICo 3.1-4; 4.18-21; 5.1-2,6; 6.1-8; 11.17-22; 14.20-
23; 15.12; 2Co 1.23-2.11; 11.3-5, 12-15; 12.20-13.10). Outros exemplos poderiam ser dados,
mas deve ficar claro que entre igrejas verdadeiras existem igrejas mais puras e menos puras.
Isso pode ser representado pela figura 45.1.
Falsas Igrejas Igrejas Verdadeiras
menos mais
puras puras

ENTRE AS IGREJAS VERDADEIRAS, HÁ IGREJAS MAIS PURAS E MENOS PURAS


Figura 45.1

B. D e fin iç õ e s d e pu r eza e u n id a d e
Podemos definir pureza da igreja da seguinte maneira: purezfl da igreja é o seu grau de
isenção de doutrina e de conduta errôneas e o seu grau de conformidade com a vontade de Deus
revelada à igreja.

733
(45) A Doutrina da Igreja
Como veremos na discussão adiante, é correto orar e trabalhar pela pureza maior da
igreja. Mas pureza não pode ser a nossa única preocupação, senão os cristãos terão a
tendência de separar-se em pequeninos grupos de cristãos muito “puros” e tenderão a
excluir qualquer pessoa que mostre o menor desvio de doutrina ou de conduta. Portanto,
o Novo Testamento também fala com freqüência sobre a necessidade de lutar pela unidade
da igreja visível. Isso pode ser definido da seguinte maneira: unidade da igreja é o seu grau
de isenção de divisão entre os verdadeiros cristãos.
A definição especifica “verdadeiros cristãos” porque, como vimos no capítulo
anterior, há aqueles que são cristãos só de nome, mas não tiveram nenhuma experiência
genuína de regeneração pelo Espírito Santo. Apesar disso, muitos deles levam o nome
de “cristão”, e muitas igrejas cheias de tais descrentes ainda se denominam igrejas cristãs.
Não devemos esperar uma unidade organizacional ou funcional que inclua todas essas
pessoas nem trabalhar por isso; nunca haverá unidade de todas as igrejas que se denomi­
nam “cristãs”. Mas, como veremos na discussão a seguir, o Novo Testamento com certeza
encoraja-nos a lutar pela unidade de todos os verdadeiros cristãos.

C. S in a is d e u m a ig r e ja m ais p u r a
Entre os fatores que tornam uma igreja “mais pura” encontram-se:
1. Doutrina bíblica (ou pregação correta da Palavra)
2. Uso adequado dos sacramentos (ou ordenanças)
3. Aplicação correta da disciplina eclesiástica
4. Adoração genuína
5. Oração eficaz
6. Testemunho eficaz
7. Comunhão eficaz
8. Governo eclesiástico bíblico
9. Poder espiritual no ministério
10. Santidade de vida entre os membros
11. Cuidado pelos pobres
12. Amor por Cristo
Pode haver outros sinais, mas pelos menos esses podem ser mencionados como
fatores que aumentam a conformidade de uma igreja com os propósitos de Deus.
Naturalmente, as igrejas podem ser mais puras em algumas áreas e menos puras em
outras: uma igreja pode ter excelente doutrina e boa pregação, por exemplo, e ainda ser
um terrível fracasso no testemunho aos outros ou na prática de uma adoração expressiva.
Uma igreja pode ter um testemunho dinâmico e cultos de adoração que honram a Deus,
mas ser fraca no entendimento doutrinário e no ensino bíblico.
A maioria das igrejas tenderá a pensar que as áreas nas quais são fortes são mais
importantes e que as áreas nas quais são fracas são menos importantes. Todavia, o Novo
Testamento encoraja-nos a trabalhar pela pureza da igreja em todas essas áreas. O alvo
de Cristo para a igreja é assim expresso: “... para que a santificasse, tendo-a purificado por
meio da lavagem de água pela palavra, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem
mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito” (Ef 5.26-27). O ministério
734
(45) Pureza e Unidade da Igreja
de Paulo era “advertir a todo homem e ensinar a todo homem em toda a sabedoria, a fim
de que apresentemos todo homem perfeito em Cristo” (Cl 1.28). Além disso, Paulo disse
a Tito que os bispos (líderes) devem “ter poder tanto para exortar pelo reto ensino como
para convencer os que o contradizem” (Tt 1.9) e afirmou que “é preciso calar” os falsos
mestres (Tt 1.11). Judas exortou os cristãos a batalhar “diligentemente, pela fé que uma
vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 3). O uso adequado dos sacramentos é ordenado
em ICoríntios 11.17-34, e a aplicação correta da disciplina eclesiástica para proteger a
pureza da igreja é exigida em ICoríntios 5.6-7,12-13.
O Novo Testamento também menciona alguns outros fatores pelos quais lutar:
adoração espiritual (Ef 5.18-20; Cl 3.16-17), testemunho eficaz (Mt 28.19-20; Jo 13.34-35;
At 2.44-47; ljoão 4.7), governo apropriado da igreja (ITm 3.1-13), poder espiritual no
ministério (At 1.8; Rm 1.16; ICo 4.20; 2Co 10.3-4; G13.3-5; 2Tm 3.5; Tg5.16), santidade
pessoal (ITs 4.3; Hb 12.14), cuidado dos pobres (At 4.32-35; Rm 15.26; G1 2.10) e amor
por Cristo (IPe 1.8; Ap 2.4). De fato, todos os cristãos devem “procurar progredir, para
a edificação da igreja” (ICo 14.12), exortação que não se aplica apenas ao crescimento
numérico da igreja, mas também (e de fato prioritariamente) à “edificação” ou ao cresci­
mento da igreja na maturidade cristã. A força de todas essas passagens está em recordar-
nos que devemos trabalhar pela pureza da igreja visível
Naturalmente, se devemos trabalhar pela pureza da igreja, especialmente da igreja local
a que pertencemos, precisamos reconhecer que isso é um processo e que qualquer igreja
da qual participemos terá algum grau de impureza em diversas áreas. Não houve nenhuma
igreja perfeita na época do Novo Testamento e não haverá nenhuma igreja perfeita até a
volta de Cristo.1 Isso significa que os cristãos não têm obrigação de procurar a igreja mais
perfeita que podem encontrar e lá ficar, e depois deixá-la caso uma igreja ainda mais pura
lhes chame a atenção. Em vez disso, eles devem encontrar uma verdadeira igreja na qual
possam ter um ministério eficaz e onde possam também experimentar crescimento cristão.
Assim, eles devem lá ficar e ministrar, trabalhando continuamente pela pureza da igreja.
Deus abençoará as orações e o testemunho fiel deles, e a igreja crescerá gradualmente em
pureza em muitas áreas.
Mas precisamos reconhecer que nem todas as igrejas reagirão bem às influências que
podem conduzi-las a uma pureza maior. As vezes, apesar de uns poucos cristãos fiéis de uma
igreja, a direção dominante será estabelecida por outros que estão determinados a conduzi-
la por outro caminho. A não ser que Deus intervenha por sua graça para trazer mudanças,
algumas igrejas se tomarão seitas, e outras simplesmente morrerão e fecharão as portas.
Todavia, o mais comum é que igrejas como essas afundem no protestantismo liberal.
Vale a pena a essa altura lembrar que o protestantismo liberal clássico é humanista,
e sua abordagem é essencialmente centralizada no homem e não em Deus.2 Quando uma
igreja começa a desviar-se da fidelidade a Cristo, isso se evidenciará não somente na
mudança em direção à doutrina impura (que pode às vezes ser ocultada dos membros da
igreja pelo uso de um linguajar evasivo), mas também na vida diária da igreja: as ativida­
des, a pregação, o aconselhamento e até as conversas informais entre os membros tenderá
a tomar-se cada vez mais centralizada no homem e cada vez menos em Deus. Haverá um
tendência de enfatizar repetidamente a prática de auto-ajuda, muito encontrada em
revistas populares e aconselhada por psicólogos seculares. Haverá uma orientação hori-

735
(45) A Doutrina da Igreja
zontal, em oposição a uma orientação vertical, isto é, centralizada em Deus; haverá cada
vez menos reuniões de oração prolongadas, mas maior ênfase em simplesmente sermos
uma pessoa caridosa e sensível, sempre concordando com os outros e tratando-os com
amor. As conversas e as atividades da igreja terão muito pouco conteúdo espiritual
genuíno - pouca ênfase na necessidade de oração diária pelos problemas pessoais e de
perdão de pecados, pouca ênfase na leitura diária da Bíblia e na confiança em Cristo a
cada momento e na consciência da realidade da sua presença em nossa vida. Sempre que
houver advertências a uma reforma moral, elas serão muitas vezes vistas como deficiên­
cias humanas que as pessoas podem corrigir por sua própria disciplina e por próprio es­
forço, e talvez pelo incentivo de terceiros, mas esses aspectos morais da vida não serão
vistos primeiramente como pecado contra um Deus santo, pecado que pode ser vencido
com eficácia somente pelo poder da atuação do Espírito Santo em nós. Quando tais ênfa­
ses humanistas tornam-se dominantes em uma igreja, ela já se encontra bem próxima do
limite de “menos pura” na escala, considerando muitas áreas acima relacionadas; e essa
igreja está caminhando na direção de tornar-se uma falsa igreja.

D. O ENSINO DO Novo TESTAMENTO SOBRE a UNIDADE DA IGREJA


Há uma grande ênfase no Novo Testamento sobre a unidade da igreja. O alvo dejesus
é que haja “um rebanho e um pastof (Jo 10.16), e ele ora por todos os futuros cristãos “a fim
de que todos sejam um” (Jo 17.21). Essa unidade será um testemunho para os descrentes,
pois Jesus ora “a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que tu
me enviastee os amaste, como também amaste a mim” (Jo 17.23).
Paulo lembra aos coríntios de que eles são “chamados para ser santos, com todos os que
em todo lugar invocam o nome de nosso SenhorJesus Cristo, Senhor deles e nosso” (ICo 1.2).
Então Paulo escreve a Corinto: “Rogo-vos, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus
Cristo, que faleis todos a mesma coisa e que não haja entre vós divisões; antes, sejais inteira­
mente unidos, na mesma disposição mental e no mesmo parecer” (ICo 1.10; cf. v. 13).
Ele incentiva os filipenses, dizendo: “... completai a minha alegria, de modo que
penseis a mesma coisa, tenhais o mesmo amor, sejais unidos de alma, tendo o mesmo
sentimento” (Fp 2.2). Paulo diz aos efésios que os cristãos devem estar “esforçando-se
diligentemente por preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz” (Ef 4.3), e que o
Senhor concede dons à igreja “para a edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos
à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida
da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4.12-13).
Paulo pode ordenar k igreja que viva em unidade porque há uma unidade espiritual
verdadeira em Cristo, que se vê entre os cristãos genuínos. Ele diz: “Há somente um corpo
e um Espírito, como também fostes chamados numa só esperança da vossa vocação; há
um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos,
age por meio de todos e está em todos” (Ef 4.4-6). Embora o corpo de Cristo tenha muitos
membros, todos esses membros são “um corpo” (ICo 10.17; 12.12-26).
Pelo fato de serem zelosos por proteger essa unidade da igreja, os autores do Novo
Testamento apresentam-nos sérias advertências contra os que causam divisões:

736
(45) Pureza e Unidade da Igreja
Rogo-vos, irmãos, que noteis bem aqueles que provocam divisões e escândalos, em
desacordo com a doutrina que aprendestes; afastai-vos deles, porque esses tais não
servem a Cristo, nosso Senhor, e sim a seu próprio ventre (Rm 16.17-18).
Paulo opôs-se a Pedro, face a face, porque este se afastou dos cristãos gentios e come­
çou a comer somente com os cristãos judeus (G12.11-14). Aqueles que promovem “porfias
[...] dissensões, facções [...] não herdarão o reino de Deus” (G1 5.20-21). EJudas adverte
de que os que “promovem divisões” são “sensuais [mundanos], que não têm o Espírito”
(Jd I»)-
Coerente com essa ênfase neotestamentária na unidade dos cristãos é o fato de que
as ordens diretas para separar-se de outras pessoas são sempre ordens para separar-se de
descrentes, não de cristãos dos quais alguém pode discordar. Quando Paulo afirma “retirai-
vos do meio deles, separai-vos” (2Co 6.17), ele o faz em apoio à ordem que deu na início
do trecho: “Não vos ponhais em jugo desigual com os incrédulof (2Co 6.14). Paulo afirma
a Timóteo que ele deve “fugir também destes” (2Tm 3.5), referindo-se não a cristãos, mas
a descrentes, que são “mais amigos dos prazeres que amigos de Deus, tendo forma de
piedade, negando-lhe, entretanto, o poder” (2Tm 3.4-5). Ele ainda diz que esses são
“homens de todo corrompido na mente, réprobos quanto à fé” (2Tm 3.8). Naturalmente,
há um tipo de disciplina eclesiástica que exige separação de um indivíduo que está
causando problema dentro da igreja (Mt 18.17; ICo 5.11-13), e pode haver outras razões
pelas quais os cristãos concluem que a separação é exigida,3 mas é importante notar aqui,
ao discutir a unidade da igreja, que não há mandamentos explícitos no Novo Testamento
que ordenem a separação de outros cristãos com os quais tenhamos diferenças doutri­
nárias (exceto quando tais diferenças envolvem uma heresia tão séria que chega a negar
a fé cristã).4
Esses textos sobre a unidade da igreja falam-nos que, além de trabalhar pela pureza
da igreja visível, devemos também trabalhar pela unidade da igreja visível Apesar disso,
precisamos reconhecer que tal unidade não exige na realidade um governo eclesiástico
de amplitude mundial sobre todos os cristãos. De fato, a unidade dos cristãos é freqüen­
temente demonstrada de modo muito eficaz pela cooperação e associação voluntárias
entre os grupos cristãos. Além disso, diferentes tipos de ministério com suas diversas ênfa­
ses podem resultar em diferentes organizações, todas sob o domínio universal de Cristo
como o Senhor da igreja. Portanto, a existência de diferentes denominações, juntas de
missões, instituições cristãs de ensino, ministérios em faculdades, etc., não é neces­
sariamente sinal de falta de unidade da igreja (embora possa ser em alguns casos), porque
pode haver muita cooperação e freqüentes demonstrações de unidade entre grupos
diversos como esses. (Creio que o termo moderno organização pareclesiástica não é feliz, pois
implica que essas organizações estão de alguma forma “ao lado” e portanto “fora” da
igreja, enquanto na realidade são simplesmente partes diferentes da única igreja
universal.) Além do mais, muitos cristãos argumentam que não deve haver um governo
eclesiástico de amplitude mundial, porque o modelo de governo eclesiástico do Novo
Testamento nunca apresenta um líder com autoridade sobre nenhuma outra igreja além
da sua própria (veja o capítulo 47). De fato, mesmo no Novo Testamento os apóstolos
concordaram que Paulo devia enfatizar a obra missionária aos gentios enquanto Pedro

737
(45) A Doutrina da Igreja
devia enfatizar a obra missionária aos judeus (G12.7); Paulo e Barnabé seguiram caminhos
diferentes por um tempo por causa da discordância sobre se deveriam levar consigo
Marcos (At 15.39-40), embora certamente tivessem unidade em todas as outras questões.5

E . B reve h is t ó r ia d a s e p a r a ç ã o o r g a n iz a c io n a l n a ig r e ja
As vezes, há razões por que a unidade visível ou externa da igreja não pode ser
mantida. Um breve resumo da história da separação organizacional da igreja pode
esclarecer algumas razões6 e ajudar a explicar de onde procedem as divisões denomi-
nacionais que temos hoje.
Durante os primeiros mil anos da igreja houve unidade externa generalizada. Houve
algumas divisões menores em controvérsias com grupos como os montanistas (segundo
século) e os donatistas (quarto século) e uma separação menor de algumas igrejas mono-
fisitas (quinto e sexto século), mas o sentimento que prevalecia era de uma forte oposição
à divisão no corpo de Cristo. Por exemplo, Ireneu, bispo do segundo século, disse a res­
peito dos que causam divisão na igreja: “Nenhuma reforma capaz de ser efetuada por eles
será de suficiente importância para compensar o prejuízo decorrente do cisma que causa­
ram” (Contra as Heresias 4.33.7).
A primeira divisão expressiva na igreja aconteceu em 1054 quando a igreja oriental
(atualmente ortodoxa) separou-se da igreja ocidental (católica romana). A razão foi que
o papa mudara o credo da igreja simplesmente com base em sua própria autoridade,7 e
a igreja oriental protestou que ele não tinha direito de fazer isso.
A Reforma do século XVI separou depois a igreja ocidental nos ramos católico
romano e protestante, ainda que tenha havido com freqüência grande relutância em
provocar uma divisão formal. Martinho Lutero queria reformar a igreja sem dividi-la, mas
foi excomungado em 1521. A Igreja Anglicana (Episcopal) não se separou de Roma, mas
foi excomungada em 1570. Portanto, pode-se dizer: “Nós sofremos o cisma e não o
causamos”. Por outro lado, houve muitos protestantes, especialmente entre os anabatistas,
que quiseram formar igrejas apenas de convertidos, e já em 1525 começaram a formar
igrejas separadas na Suíça e em outras partes da Europa.
Nos séculos seguintes à Reforma, o protestantismo fragmentou-se em centenas de
grupos menores. Em alguns casos, líderes de novos grupos arrependeram-se das divisões
provocadas: João Wesley, embora tenha sido o fundador do metodismo, afirmava que
viveu e morreu como membro da Igreja Anglicana. Em muitos casos, a questão da
consciência ou da liberdade religiosa obrigou à divisão, como aconteceu como os
puritanos e com muitos grupos pietistas. Por outro lado, houve ocasiões quando diferenças
de língua entre grupos imigrantes na América do Norte causaram a fundação de igrejas
separadas.
Será que as razões para a separação em diferentes organizações e denominações
sempre foram corretas? Embora quase sempre haja grandes diferenças teológicas nas
principais divisões da igreja, teme-se que, com freqüência, especialmente na história mais
recente, os motivos reais para iniciar ou manter a separação tenham sido de orientação
egocêntrica, ejoão Calvino pode estar certo ao dizer que “o orgulho ou a autoglorificação
é a causa e o ponto de partida de todas as controvérsias, quando alguém, reivindicando
para si mesmo mais do que lhe cabe, mostra-se ansioso para ter outros sob o seu poder”.8
738
(45) Pureza e Unidade da Igreja
Além disso, ele afirma: “A ambição tem sido, e ainda é, a mãe de todos os erros, de todos
os distúrbios e de todas as seitas”.9
Na metade do século XX o movimento ecumênico buscou maior unidade organizacional
entre denominações, sem muito sucesso, no entanto. Tal iniciativa não recebeu, em hipótese
alguma, calorosa aprovação ou apoio por parte dos evangélicos. Por outro lado, desde os anos
1960, o crescimento do movimento carismático entre quase todas as linhas denominacionais,
o surgimento dos grupos de estudo bíblico e oração, bem como a consciência doutrinária
bastante diminuída entre a população leiga trouxeram à tona um incrível aumento na efetiva
comunhão no âmbito local - mesmo entre protestantes e católicos.
Embora os parágrafos anteriores tenham falado da separação no sentido de (1) formação
de organizações separadas, há dois outros tipos de separação mais drásticos que devem ser
mencionados: (2) “Recusa de cooperaçãonesse caso uma igreja ou uma organização cristã
recusa-se a cooperar em atividades conjuntas com outras igrejas (atividades tais como campanhas
evangelísticas ou cultos em conjunto ou ainda reconhecimento mútuo de ordenação). (3) “Recusa
de comunhão pessoal”: isso envolve o evitar extremo de qualquer comunhão pessoal com
membros de outra igreja e a proibição de qualquer reunião conjunta de oração ou estudo bíblico
e, às vezes, até o contato social comum com membros de outro grupo cristão. Discutiremos as
possíveis razões para esses tipos de separação na seção seguinte.

F . R a z õ e s pa r a a se p a r a ç ã o
A medida que examinamos os motivos que levaram muitos a dividir a igreja através
da história, comparando tais motivos com as exigências do Novo Testamento de que
devemos buscar tanto a unidade quanto a pureza da igreja visível, podemos encontrar razões
válidas e inválidas para a separação. Entre as razões inválidas encontram-se algumas como
ambição e orgulho pessoal ou diferenças sobre práticas e doutrinas menos importantes
(padrões doutrinários ou de comportamento que não afetam qualquer outra doutrina e que
não têm nenhum efeito expressivo no modo como se vive a vida cristã).10
Por outro lado, há algumas razões de separação que devemos considerar válidas (ou
possivelmente válidas, dependendo das circunstâncias específicas). Na maioria dos casos,
essas razões surgem da necessidade de fazer algo pela pureza da igreja bem como de sua
unidade. As seguintes razões de separação podem ser consideradas em três categorias: (1)
razões doutrinárias; (2) razões de consciência; (3) considerações práticas. Na seção seguinte,
alistei algumas situações nas quais me parece uma exigência que os cristãos saiam de uma
igreja. Em seguida relacionei algumas outras situações que me parecem menos claras, nas
quais alguns cristãos podem considerar sábio sair de uma igreja, e outros o considerarão
imprudente. Nesses casos menos claros, costumo não tirar conclusões, mas apenas alistei
alguns fatores que os cristãos desejarão considerar.
1. Razões doutrinárias. Pode surgir a necessidade de separação quando a posição
doutrinária de uma igreja desvia-se seriamente dos padrões bíblicos. Tal desvio pode aparecer
nas declarações oficiais ou nas crenças e nos costumes, até onde se pode determiná-los. Mas
quando o desvio doutrinário toma-se sério o suficiente para que seja necessário sair de uma
igreja ou formar outra igreja? Como observamos acima, não há mandamentos no Novo
Testamento que ordenem a separação da igreja verdadeira, enquanto esta permanece como
739
(45) A Doutrina da Igreja
parte do corpo de Cristo. A resposta de Paulo até mesmo para os que estavam em igrejas
cheias de erros (mesmo em igrejas como a de Corinto, que tolerava sérios erros doutrinários
e morais e por certo tempo tolerou alguns que rejeitavam a autoridade apostólica de Paulo)
não foi dizer aos cristãos fiéis que se separassem de tais igrejas; Paulo admoesta essas igrejas,
trabalha para levá-las ao arrependimento e ora por elas. Naturalmente, há ordens para
disciplinar os que provocam problemas dentro da igreja, às vezes por meio da exclusão deles
da comunhão da igreja (ICo 5.11-13; 2Ts 3.14-15; Tt 3.10-11), mas não há instruções para
deixar a igreja e provocar divisão se isso não puder ser feito imediatamente (veja Ap 2.14-
16, 20-25; cf. Lc 9.50; 11.23).
Em 2João 10-11, que proíbe que se recebam os falsos mestres, vemos talvez a decla­
ração mais forte de todo o Novo Testamento: “Não o recebam em casa nem o saúdem. Pois
quem o saúda toma-se participante das suas obras malignas” (nvi). Mas deve-se observar
que tal visitante está ensinando uma heresia terrível sobre a pessoa de Cristo, a qual impede
que as pessoas tenham fé salvífica. (João está falando de alguém que “não permanece no
ensino de Cristo” e “não tem a Deus” [v. 9].) Além disso, esse versículo refere-se aos falsos
mestres, não a indivíduos que sustentam falsas crenças, pois o texto fala de alguém que chega
e “não traz esta doutrina” (v. 10; cf. v. 7, “muitos enganadores têm saído pelo mundo, os quais
não confessam quejesus Cristo veio em carne”). João chega até a usar a palavra anticristo
para tais mestres. Finalmente, a saudação que João tem em mente diz respeito ou a uma
saudação oficial da igreja ou a uma saudação que daria a impressão de endosso daquela
doutrina, porque a proibição fala de alguém que “vem ter convosco e não traz esta doutrina”
(v. 10), que sugere que a pessoa em vista é um mestre itinerante que não se dirige a uma casa,
mas sim à igreja como um todo.11
Sobre o princípio de separação dos descrentes e de erros fundamentais que envolvem
a negação da fé cristã, parece-me que os cristãos estão obrigados, com base doutrinária, a
sair de determinada igreja e a unir-se a outra ou formar uma nova organização somente
quando o erro doutrinário for tão sério e tão alastrante que a igreja-mãe já se tenha tomado
uma falsa igreja, não sendo mais parte do corpo de Cristo. Essa seria uma igreja que já não
é uma comunidade de verdadeiros cristãos, nem faz parte do verdadeiro corpo de Cristo,
nem é um lugar onde os que crêem em seus ensinos encontrarão salvação.12 No caso de sair
de uma falsa igreja, os que se separarem poderão afirmar que na verdade eles não saíram
da verdadeira igreja, mas que eles são a igreja verdadeira e que a organização-mãe
abandonou a igreja por meio do seu erro. De fato, tanto Lutero como Calvino finalmente
afirmaram que a Igreja Católica Romana não era uma igreja verdadeira.
No entanto, mesmo quando sair ou separar-se de uma igreja não seja preciso, muitos
cristãos podem achar sábio ou prudente sair antes que a igreja se tome uma falsa igreja, mas
já quando sérios desvios doutrinários aparecem. Por exemplo, alguém pode argumentar que
um desvio doutrinário toma-se intolerável sempre que posições heréticas sobre as principais
doutrinas (a Trindade, a pessoa de Cristo, a expiação, a ressurreição, etc.) podem ser
defendidas por um líder da igreja sem que ele fique sujeito à disciplina eclesiástica nem seja
excluído da comunhão da igreja. Em outros casos, muitos diriam que a separação deve
ocorrer quando a igreja, enquanto corpo, aprova publicamente alguns sérios erros
doutrinários ou morais (tal como endossar um erro doutrinário no credo da igreja ou em
sua declaração de fé). Todavia, outros cristãos não acham que a separação seja sábia ou
prudente em tais casos, mas defendem oração e atuação em favor de um avivamento e de
740
(45) Pureza e Unidade da Igreja
uma reforma dentro da igreja, expressando publicamente a discordância com qualquer erro
doutrinário ali tolerado. Em tais casos, os que decidem ficar e os que decidem sair precisam
juntos reconhecer que Deus pode chamar diferentes cristãos para papéis e ministérios
distintos, e portanto para tomarem diferentes decisões; assim, faremos bem se dermos
considerável liberdade a outros para buscar sabedoria divina nesse caso e para obedecer
a ela como melhor a entenderem para suas próprias vidas.
2. Questões de consciência. Quanto ã consciência, se um cristão não teve liberdade de
pregar ou de ensinar conforme a sua consciência baseada nas Escrituras, deve-se considerar
a separação como necessária ou pelo menos sábia. Todavia, é necessário cautela e grande
humildade aqui: o julgamento individual pode estar distorcido, especialmente se não estiver
fundamentado no consenso dos cristãos fiéis da história e dos cristãos do presente.
Além do mais, a ordem de 2Coríntios 6.14 de não se colocar sob jugo desigual com
os incrédulos pode também estar exigindo a separação caso a igreja-mãe torne-se tão
dominada pelos que não dão nenhuma prova de fé salvífica que tal “jugo desigual” seria
inevitável. Nesse texto a proibição de colocar-se sob “jugo desigual” com os incrédulos
proíbe não a mera associação ou até mesmo a aceitação de ajuda (cf. Lc 9.50 e também 3João
7), mas antes o desistir de controlar as atividades de alguém e a perda de liberdade para
agir em obediência a Deus, porque são essas restrições que estão implícitas na metáfora de
estar sob “jugo desigual”. Algumas pessoas também podem achar necessário, ou pelo menos
sábio, sair de uma igreja com base na consciência, caso permanecer na igreja implique
aprovação de alguma doutrina ou prática antibíblica, encorajando assim os outros a seguir
tal doutrina ou prática errônea. Outros, porém, podem achar correto permanecer na igreja
e expressar sua clara desaprovação da doutrina incorreta.
Em outros casos, alguns argumentam que é necessário sair de uma denominação quando
um autoridade hierárquica superior, a quem se prometeu obediência, ordena algum
procedimento claramente pecaminoso (isto é, algo nitidamente contrário às Escrituras). Num
caso desses alguns diriam que deixar a denominação é o único meio de evitar que se cometa
ou o ato pecaminoso ordenado ou o ato pecaminoso de desobediência aos que estão na
posição de autoridade. Isso, porém, não parece ser uma exigência necessária, pois muitos
textos bíblicos podem ser citados para mostrar que desobedecer a uma autoridade não é
errado quando se recebem ordens de cometer pecado (veja At 5.29; Dn 3.18; 6.10), e que
é possível ser desobediente e permanecer na igreja-mãe até ser expulso de lá.
3. Considerações práticas. Os cristãos podem decidir separar-se de uma igreja se,
depois de reflexão acompanhada de muita oração, parecer-lhes que permanecer naquela
igreja provavelmente resultará mais em mal do que em bem. Isso poderia acontecer porque
o trabalho deles pelo Senhor tornar-se-ia frustrado e ineficaz devido à oposição que
enfrentariam dentro da própria igreja, ou porque encontrariam pouca ou nenhuma
comunhão com os outros na referida igreja. Além disso, alguns podem decidir que ficar na
igreja prejudicaria a fé de outros cristãos ou impediria os descrentes de chegar à fé verdadeira
pelo fato de que a permanência como membros naquela igreja poderia parecer que eles
aprovam as falsas doutrinas de lá. Os cristãos podem ver-se em situações nas quais oraram
e trabalharam por mudanças por algum tempo, mas parece não haver esperança razoável
de mudança na igreja, talvez porque a liderança esteja resistindo à correção que vem das
741
(45) A Doutrina da Igreja
Escrituras, encontre-se arraigada na igreja e perpetue-se na posição que ocupa. Em todas
essas situações, muita oração e juízo maduro serão necessários, porque sair de uma igreja,
especialmente no caso de quem a ela pertence há muito tempo ou tem funções de liderança
estabelecida, é algo muito sério.
4. Existem ocasiões quando cooperação e comunhão pessoal são proibidas?
Finalmente, quando os cristãos devem dar passos mais sérios do que os já mencionados e
empenhar-se em um tipo de separação que anteriormente chamamos “recusa de cooperação”
ou “recusa de comunhão”? Os textos bíblicos que consideramos parecem exigir que os
cristãos “não cooperem” em tais atividades com outro grupo somente quando este é
incrédulo, ou, parece-me, somente quando um grupo incrédulo assume o controle da referida
atividade (isso está implícito na metáfora de estar sob “jugo desigual” de 2Co 6.14).
Naturalmente, pode-se achar sábio e prudente, sobre outras bases, decidir não cooperar numa
função particular, mas a recusa à cooperação não parece ser uma exigência, exceto quando
o outro grupo é um grupo incrédulo. Certamente, oposição a atividades tais como campanhas
evangelísticas realizadas por outros cristãos verdadeiros são vistas pelos autores do Novo
Testamento como divisoras e um fracasso em demonstrar a unidade do corpo de Cristo.13
O terceiro e mais extremo tipo de separação, o evitar de toda comunhão pessoal com
membros de outro grupo, nunca é ordenado no Novo Testamento. Tal medida extrema de
“nenhuma comunhão” só está implícita em sérios casos de disciplina eclesiástica e não em
casos de diferenças entre igrejas.

N otas
1. Isso é reconhecido na Confissão de Fé de Westminster: “As mais puras igrejas sob o céu
estão sujeitas tanto à mescla (doutrinária) quanto ao erro”.
2. Veja a análise notavelmente apurada de J. Gresham Machen, Christianity and
Liberalism (reimpressão, Grand Rapids: Eerdmans, 1968; publicada originalmente em 1923),
prin-cipalmente p. 64-68.
3. Veja abaixo a discussão sobre as razões para a separação na seção F.
4. 2João 10 proíbe os cristãos de saudarem os mestres hereges itinerantes que de modo
nenhum estavam pregando o evangelho verdadeiro; veja a discussão adiante.
5. As Escrituras indicam que, nessa controvérsia, Paulo estava certo e Barnabé, errado,
visto que nos dizem que Paulo e Silas deixaram Antioquia “encomendados pelos irmãos à
graça do Senhor” (At 15.40), enquanto nada semelhante é dito a respeito de Barnabé. Esse
incidente é relatado apenas em Atos, mas não é uma grande prova de que a diversificação
ministerial seja algo apropriado, visto que o relato de “desavença” (v. 39) entre Paulo e Bamabé
indica que não devemos vê-los como pessoas inteiramente isentas de defeitos.
6. Daqui até o fim do capítulo muito do material foi tirado do artigo “Separation,
Ecclesiastical” de Wayne Grudem, preparado para The Tyndale Encyclopedia of Christian
Knowledge (Wheaton, 111.: Tyndale House, copyright 1971, nunca publicada). Texto usado com
permissão.
7. Veja a discussão sobre o artigo filioque no capítulo 14, divisão C.2.d.
8. Comentário sobre ICo 4.6 (publicado em português pela editora Parácleto).
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(45) Pureza e Unidade da Igreja
9. Comentário sobre Nm 12.1.
10. Veja no capítulo 1, p. 9-10, as diferenças entre doutrinas chamadas básicas e doutrinas
secundárias.
11. Veja a discussão em John Stott, I, II e IIIJoão - Introdução e Comentário (São Paulo:
Vida Nova, 1982), p. 182-85.
12. Depois de dizer que “as igrejas puristas sob o céu estão sujeitas tanto à mescla quanto
ao erro”, a Confissão de fé de Westminster acrescenta: “e algumas têm se degenerado tanto a
ponto de já não serem mais igrejas de Cristo, mas sim sinagogas de Satanás” (25.5).
13. Os autores do Novo Testamento provavelmente também considerariam trágico o fato
de que a maioria das divisões entre os protestantes ocorreram ou são mantidas hoje por causa
de diferenças sobre as doutrinas menos enfatizadas e pouco claras do Novo Testamento, tais
como a forma de governo da igreja, a natureza exata da presença de Cristo na ceia do Senhor
e os detalhes do fim dos tempos. (Muitos ainda acrescentariam as diferenças sobre quem deve
ser batizado.)

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