Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
em tempos ambivalentes
Paulo Verano é editor e professor no curso de Editoração da Escola de
Comunicações e Artes (ECA) da USP
• Post category:Artigos
• https://jornal.usp.br/?p=229508
12/03/2019 - Publicado há 5 anos Atualizado: 13/03/2019 as 15:34
tão frenético que quase não temos condições de entender o que acontece.
Mundo afora (e adentro), saltamos de cenários progressistas a
conservadores num rápido virar de página. Bandeiras tremulam defendendo
causas radicalmente díspares. E a economia vai, na saúde e na doença,
eclipsando a cultura, quando não solapando-a, o que não impede que aqui e
acolá aconteçam surpresas provenientes de uma gama de micropolíticas.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman escreveu em um de seus livros que
“Alguns dos habitantes do mundo estão em movimento; para os demais, é o
mundo que se recusa a ficar parado” [1]. O tecnológico compete com o
artesanal, assim como o privado concorre com o público (ou tenta subjugá-
lo, levando a uma série de reações e contrarreações). Se construir uma visão
minimamente integral do que ocorre está mais para a utopia que para a mais
reduzida possibilidade, a verdade vem sendo claramente ultrapassada pela
versão. Ou versões. E há muitas, normalmente conflitantes.
Não seria diferente com o livro. Quem acompanha o mercado editorial pelo
noticiário fica sabendo que grandes livrarias como a Cultura e a Saraiva
estão em delicada situação financeira, com dívidas que, somadas, chegam
perto da casa de R$ 1 bilhão, o que é um valor assombroso em si, mas que
também provoca um delicado efeito cascata no mercado, assim como
sinaliza outras modificações que vêm sendo operadas dentro da cadeia do
livro.
Assistimos a novo deslocamento: se nos anos 1990 fomos em massa das ruas
para as grandes lojas de shopping centers, agora voltamos
das megastores para as boas e novas livrarias de rua. Não foi diferente nos
Estados Unidos, com a ruína da Borders, em 2011, e da Barnes & Noble, em
2018. Mas, além das pequenas lojas físicas mais especializadas, que
retomam a experiência pessoal, também nos deixamos seduzir pelas
interfaces virtuais, como a Amazon e seus incomparáveis descontos, grande
protagonista dentre diversos outros marketplaces sediados na internet (que
incluem, também, as lojas da maioria das próprias editoras) — e uma das
grandes responsáveis por tudo o que vimos assistindo.
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, concedida em dezembro de
2018, o livreiro Evandro Martins Fontes comentaria: ‘Foi ganância. O
negócio do livro é pequeno. É um modelo de negócio que não cabe nesse
mercado’.
Ao mesmo tempo, há uma infinidade de feiras de livros acontecendo
anualmente em várias cidades do País — como a Festa do Livro da USP, que,
com sua diversidade diretamente proporcional a, de novo, seus grandes
descontos, faz parte do calendário cultural da cidade, assim como outras
com perfis de publicações mais voltados ao universo independente, como a
Feira Miolo(s), há cinco edições acontecendo na Biblioteca Mário de
Andrade, no centro de São Paulo, com mais de 150 editoras e público que
também ultrapassa o milhar —, o que evolui tanto quanto os clubes de
livros, que, repaginados, dão fôlego novo às editoras, com vendas certas e
em grande volume.
Já estaria sendo debatido àquela altura, porém, que o amor aos livros seguia,
como seguiria, independente do resultado desastroso das duas grandes
livrarias. E que o problema de ambas companhias estaria mais ligado à sua
gestão e ao modelo que escolheram ao longo de sua história mais recente —
em 2017, por exemplo, a Cultura fez duas operações de aquisição: da rede
francesa FNAC (encerrada em 2018) e da plataforma Estante Virtual; pouco
antes, em 2014, a Saraiva decidiu vender sua rentável divisão editorial para
o grupo Somos Educação, concentrando-se no ramo de comercialização de
livros e equipamentos tecnológicos e, para isso, obrigando-se a pesado
investimento para tentar concorrer com uma gigante internacional do porte
da Amazon. Terminaria o ano amplamente deficitária, desvencilhando-se de
seu setor de equipamentos eletrônicos e fechando ao menos 20 lojas físicas.
Invenção e coletividade
O sucesso da Banca Tatuí coincidiu com a criação de vários outros espaços
não convencionais, os quais, operando em espaços diferentes do previsto e
dando oportunidade para a emergência do inesperado, vêm ajudando a
reinventar uma parcela do mercado editorial brasileiro.
Os casos são muitos. Pode ser outra antiga banca repaginada, como a Banca
Curva, iniciativa do artista gráfico Rodrigo Motta, viabilizada
por crowdfunding e inaugurada em 2018, também se localizando numa
esquina central paulistana (no quarteirão da Biblioteca Infantojuvenil
Monteiro Lobato). Pode ser um antigo ônibus escolar amarelo que itinera
pela cidade desde 2016, participando de eventos políticos ou literários. O
Rizomamóvel é a face mais visível do coletivo Rizoma, fundado em 2016 por
três editoras independentes de São Paulo (Autonomia Literária, N-1 e
Elefante), e que também se abre para a participação de outras editoras. E
outros meios de transporte: em 2018, o Rizoma ancorou um “navio-livraria-
pirata” na Festa Literária de Paraty.
O surgimento de novas livrarias de rua confirma essa tendência de os livros
esquecerem os shoppings e reocuparem as cidades. É grande o número de
novas casas surgindo. Em 2018, surgiram livrarias como a Estranha, em
Florianópolis (SC), a Barbante, em Curitiba (PR), e a Don Quixote, em Vitória
(ES), apenas três de muitas mais. Em comum, o retorno do livreiro-curador,
que escolhe seu acervo privilegiando obras de qualidade realizadas por
editoras mais especializadas, e uma ampla programação de eventos.
Nada indica que essa revolução — que envolve nada menos que a
reinvenção da cadeia do livro tal como a conhecemos — deixará de ser
impressa.
Notas
[1] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar Editor,
2001, p. 70.
[2] SCHWARCZ, Luiz. “Carta de amor aos livros”. In: Blog da Companhia.
27 nov. 2018. Disponível em:
<http://www.blogdacompanhia.com.br/conteudos/visualizar/Cartas-de-amor-
aos-livros]. Acesso em: 27 fev. 2019.
[3] CUNHA, Joana. Foi ganância, o negócio do livro é pequeno, afirma
Evandro Martins Fontes. In: Folha de S.Paulo. 8 dez. 2018. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/12/foi-ganancia-o-negocio-do-
livro-e-pequeno-afirma-evandro-martins-fontes.shtml>. Acesso em: 27 fev.
2019.
[4] TOZZI, Elisa. “Na contramão de Saraiva e Cultura essas livrarias não se
abalaram”. In: Exame. 14 fev. 2019. Disponível em:
<https://exame.abril.com.br/negocios/na-contramao-de-saraiva-e-cultura-
essas-livrarias-nao-se-abalaram/>. Acesso em: 27 fev. 2019.
[5] NETO, Leonardo. “Apesar de tudo, varejo de livros cresceu em 2018”.
In: PublishNews. 15 fev. 2019. Disponível em:
<https://www.publishnews.com.br/materias/2019/02/15/apesar-de-tudo-
varejo-de-livros-cresceu-em-2018>. Acesso em: 27 fev. 2019.
[6] RODRIGUES, Maria Fernanda. “As 20 editoras para quem a Livraria
Saraiva deve mais dinheiro”. In: O Estado de S. Paulo. 23 nov. 2018.
Disponível em: <https://cultura.estadao.com.br/blogs/babel/as-30-editoras-
para-quem-a-livraria-saraiva-mais-deve-dinheiro/>. Acesso em: 27 fev. 2019.
[7] AGUIAR, Joselia. “Pequenas, mas atrevidas”. In: Valor Econômico. 30
ago. 2013. Disponível em:
<http://www.valor.com.br/cultura/3252472/pequenas-mas-atrevidas>.
Acesso em: 27 fev. 2019.
[8] HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. São Paulo:
Editora da Unesp, 2014.
[9] EPSTEIN, Jason. O negócio do livro: passado, presente e futuro do mercado
editorial. Rio de Janeiro: Record, 2002.
O mercado editorial brasileiro em tempos ambivalentes – Jornal da USP