Você está na página 1de 15

Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.

2013

A REVOLUÇÃO DA INDEPENDÊNCIA: CATARSE E QUADRINHOS

INDEPENDENTES COMO OPÇÃO PARA O MERCADO EDITORIAL

Victor José Pinto de Almeida

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

RESUMO

Em um período de mudanças no mercado editorial brasileiro, a cultura da participação, defendida


por Henry Jenkins, e o crowdfunding (financiamento coletivo) demonstram ser soluções cada vez
mais pertinentes para a publicação de quadrinhos no Brasil, principalmente para o setor
independente dessa área, ou seja, os profissionais que não estão afiliados a editoras. Em muitos
casos, esses artistas tornam viável algo complexo para um mercado que evita apostar em nomes não
consagrados: publicar uma obra com qualidade, com margem de lucro e, no processo, conseguir um
público cativo, dando visibilidade ao seu trabalho para novos leitores e editoras. Atualmente, a
principal plataforma de financiamento coletivo no Brasil é o Catarse, responsável por dez
projetos/lançamentos de quadrinhos no ano de 2012. Esse número é quase igual ao de lançamentos
de editoras especializadas no gênero, como a Quadrinhos na Cia., selo da Cia. das Letras, chegando
a superá-la com relação a obras nacionais. Algumas destas, inclusive, tiveram o mérito de alcançar
o dobro do investimento necessário. O presente artigo pretende apontar considerações sobre esse
método de publicação, sua repercussão para o mercado editorial como um todo e a necessidade de
uma participação mais ativa do público/fã nesse âmbito, tanto no consumo quanto na produção.

PALAVRAS-CHAVE: Quadrinhos independentes; Catarse; mercado editorial.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, o mercado editorial vem passando por um processo de inquietação
devido à transição do produto livro-papel para o digital. Essa mudança levou a uma série de
debates, eventos, artigos e preocupações sobre como essa nova e significativa fase poderia
afetar o mercado nacional, seja pela diversificação de plataformas de publicação, seja pelo
futuro do editor em meio a tantos novos casos de autopublicação. Será o fim do livro de
papel a longo prazo, agora que o mercado digital começou? O que farão as pequenas
livrarias, agora que a compra de um livro ocorre instantaneamente, com o apertar de um
botão? E principalmente: como isso afetará o nosso país?

1
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013

O Brasil, até a data deste artigo, encontra-se em processo de adaptação, de


reposicionamento, e os livros digitais (ou e-books), embora já sejam uma realidade para as
grandes e médias editoras, consequentemente ainda não apresentam grandes resultados em
vendas. Carlo Carrenho, fundador do Publishnews e especialista em mercado editorial, a
partir das previsões da DLD (Distribuidora de Livros Digitais) estabelece que, embora
esteja em uma curva ascendente de crescimento (ver Figura 1), o mercado digital em 2013
equivalerá a apenas 2,63% do total de vendas (Carrenho, 2013).

Figura 1 Venda de e-books no Brasil (2012-2013)


Fonte: <http://www.tiposdigitais.com/2013/01/o-tamanho-do-mercado-de-ebooks-no-brasil.html>.

Um dos motivos para tal dado é a continuidade da pouca prática de leitura em


território nacional. Embora o consumo de livros tenha aumentado nas classes C, D e E,
estima-se que a média de leitura brasileira seja de apenas quatro livros por habitante ao ano.
Se cogitarmos a aceitação dos e-books, a situação é ainda mais crítica: 45% dos

2
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013

entrevistados nunca ouviram falar de uma versão digital para os livros (Instituto Pró-Livro,
2012).
Logo, a transição continua concentrada nas mãos de poucos. O que pode ser
contraditório, já que a principal mudança nesse processo não é a do fim do papel e o início
da tela de e-ink com alta resolução. A principal mudança nessa transição, como bem aponta
o editor, administrador e teórico Júlio Silveira, está no acesso, na facilidade de publicação,
na facilidade do produto chegar à mão do leitor sem intermediários. Como resultado, vemos
cada vez mais casos internacionais de autores reconhecidos com projetos de self-publishing
e a Amazon defendendo abertamente o fim das editoras na Feira do Livro de Londres ao
apresentar o Kindle Direct Publishing, seu serviço de publicação independente, iniciando
uma “revolução para novos autores” e uma reação furiosa dos editores (Silveira, 2013).
No caso dos quadrinhos, um bom exemplo dessa lógica está em uma HQ nacional
com trilha sonora, criada por autores desconhecidos (até então) pelo grande público. O que
poderia parecer um projeto financeiramente inviável para algumas editoras, tornou-se
realidade no final de 2011, quando a HQ Achados e perdidos do roteirista Eduardo
Damasceno, do ilustrador Luís Felipe Garrocho e do músico Bruno Ito passou a ser, com a
ajuda de 571 apoiadores, um dos primeiros quadrinhos publicados de forma bem-sucedida
por uma plataforma de crowdfunding, ou melhor, de financiamento coletivo.1
O projeto, planejado desde 2007, acabou se tornando um material impresso de 212
páginas de quadrinhos e extras, acompanhado por um CD encartado. Para os
leitores/ouvintes, fica a opção de ler a obra sem ouvir o CD, ouvir o CD separadamente ou
unir as duas mídias para uma experiência completa. Para a impressão do álbum e gravação
dos CDs seriam necessários 25 mil reais como custo de produção. O trio arrecadou mais de
30 mil reais e se tornou um exemplo para novos artistas publicarem pelo mesmo caminho.
Em 2012, a HQ passou a ser publicada pela editora Miguilim.
Ao ser questionado sobre o motivo pelo qual publicaram por essa forma de
financiamento, pouco explorada na época, Damasceno alegou que

1
Dados retirados da página do projeto, acessível em: <http://catarse.me/pt/238-achados-e-perdidos>.

3
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013

“essa forma de financiamento (...) é muito de acordo com o que a gente acredita em
relação à produção de entretenimento. A ideia de as pessoas que querem ver o livro
pronto bancarem a produção dele é sensacional. Não vejo tanto como renovação, ou
algo do tipo porque ainda acho tanto as editoras quanto os editais formas
interessantes, consolidadas e bem estruturadas de se viabilizar projetos. Mas pra
gente, nesse momento, o crowndfunding se encaixou perfeitamente no que
estávamos querendo e na forma como produzimos. Espero sim que com o tempo e à
medida que mais projetos forem acontecendo assim se torne mais uma plataforma
de publicação. Não tenho nenhum tipo de ranço com o sistema de publicações por
editoras ou coisa do tipo. Nós somos dois, e ambos extremamente exigentes com o
nosso trabalho, com o de cada um e com o do outro. Tentamos fazer o melhor que
podemos sendo nossos próprios editores.” (grifos meus)2

Em sua resposta, o roteirista citou dois pontos relevantes, que serão abordados
neste trabalho.
1- O que necessariamente é o crowdfunding/financiamento coletivo e qual a sua
vantagem na publicação de quadrinhos?
2- Qual é o papel do leitor de quadrinhos nessa plataforma de publicação?

1. O mercado independente de quadrinhos e o crowdfunding


Uma das maiores surpresas do mercado editorial de quadrinhos no Brasil nos últimos anos
foi a quantidade de títulos lançados de maneira independente. Não apenas a quantidade,
mas a qualidade, comprovada pelos prêmios recebidos pelos artistas.
Embora já tenha categorias específicas para publicações desse tipo,3 o Troféu HQ
Mix, uma das mais tradicionais premiações dos quadrinhos brasileiros, deu a Vitor
Cafaggi,4 roteirista e quadrinista independente, o prêmio de “Novo Talento — roteirista”
em 2012. No mesmo ano, Birds, um trabalho independente e sem nenhum balão de texto,
deu a Gustavo Duarte o prêmio de “Publicação de Aventura/Terror/Ficção”.5 Achados e
perdidos recebeu uma homenagem especial.

2
Trecho retirado da entrevista concedida por Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho ao Garagem Hermética
Quadrinhos. Acessível em: <http://gHQ.com.br/entrevista-eduardo-damasceno-e-luis-felipe-garrocho/>.
3
Publicação independente de autor, publicação independente de grupo e publicação independente edição única.
4
Esse destaque ao trabalho de Cafaggi resultou no convite do estúdio Maurício de Sousa para ilustrar e roteirizar uma
graphic novel da Turma da Mônica com sua irmã, Lu Cafaggi. O novo trabalho, entitulado Laços, foi publicado no mês de
maio de 2013.
5
Gustavo já havia conquistado o Troféu HQ Mix de desenhista revelação em 2010. Em 2011, recebeu o Prêmio Angelo
Agostini como melhor cartunista brasileiro e outro HQ Mix como melhor caricaturista nacional. Suas obras Có! e Táxi

4
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013

Esse número de indicações só aumenta se avaliarmos a lista de indicados ao HQ


Mix 2013, divulgada em abril deste ano.6 E com uma interessante surpresa: muitos dos
títulos nascidos por projetos de crowdfunding e artistas que ou optaram ou estão optando
por publicar dessa forma.
Mas o que é crowdfunding? De forma bem simples, o termo é usado para designar
as iniciativas de financiamento colaborativas, em que:

“Os diversos projetos como, por exemplo, (...) a produção de um CD de uma banda
ou a publicação de um livro, são hospedados em um site voltado para captação de
doações coletivas em prol da efetivação do trabalho apresentado.” (Cocate &
Pernisa Júnior, 2012; p. 135-6)

Dessa forma, o autor estabelece a quantidade necessária para possibilitar a


realização do seu projeto ou negócio, espalha a sua ideia, e depois recompensa os que o
apoiaram financeiramente. Essas recompensas, por sua vez, dependem do valor investido
no projeto. No caso do Achados e perdidos, por exemplo, as recompensas variaram desde o
nome do colaborador na página do livro, caso investisse R$10; um pacote com livro, CD,
pôster, postal, bóton, camiseta, adesivo, caderno, esboços originais autografados, caso
investisse R$100 e até uma música original do Bruno Ito, caso investisse mais de R$1.000.
Um estudo recém divulgado pela consultoria Massolution mostrou que só em
2012 esse tipo de financiamento movimentou US$2,7 bilhões no mundo. E, em 2013, o
total deve chegar a US$5,1 bilhões (Mello Dias, 2013).
No quesito livros, o primeiro grande caso de sucesso referente a financiamento
coletivo foi a plataforma britânica Unbound, criada por John Mitchinson, um dos diretores
da cadeia de livrarias Waterstone (Silveira, 2012). Nela, interessados em publicar um livro
apresentam a sinopse do mesmo. Os leitores/internautas que apoiarem a história
“compram” a ideia. Essa “compra” consiste em valores de 10 a 250 libras. Além de ser uma
ótima ferramenta de feedback, já que os leitores podem opinar ou sugerir os temas para os
próximos livros, todos os colaboradores têm seus nomes publicados no final de cada obra e

também deram a ele prêmios na categoria “Publicação independente edição única” em 2010 e 2011, respectivamente. Em
2012, Birds também foi escolhida como melhor “Publicação independente de autor”.
6
Lista acessível em: <http://oglobo.globo.com/blogs/gibizada/posts/2013/04/11/os-indicados-ao-HQmix-2013-
493037.asp>.

5
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013

recebem participação nos lucros, caso o mesmo seja publicado. Quando a quantia
necessária não é atingida, os colaboradores/investidores são reembolsados ou recebem a
opção de investir em outro projeto.
E para os quadrinhos? O teórico e quadrinista Scott McCloud afirma em seu livro
Reinventando os quadrinhos que “temos de perguntar o que os quadrinhos podem fazer
num ambiente digital, e quais dessas opções se mostrarão valiosas a longo prazo”.
(McCloud, 2005; p. 207). Para o mercado independente, ou seja, para os autores que
apostam em publicar suas obras sem a presença de um editor, a solução pode estar no
Comixology ou no Catarse.
Para artistas que preferem publicar apenas digitalmente, ou seja, sem um formato
físico de capa, miolo e tinta, o Comixology é uma boa opção. Inicialmente, o site
trabalhava apenas como plataforma de distribuição, busca e organização de títulos digitais
das principais editoras norte-americanas, tendo atualizações semanais. Mas a partir de
março, está disponível o portal ComiXology Submit, para que criadores de HQs possam
submeter suas histórias gratuitamente. Após a inscrição e submissão do material, os
quadrinhos são avaliados e, caso sejam aprovados, são exibidos no portal principal, onde
podem ser comprados pelos leitores em versões para iPad, iPhone, Android, Kindle Fire,
Wndows 8 e Internet. O lucro com as vendas é dividido entre o autor e o ComiXology, mas
o artista mantém integralmente os seus direitos sobre a sua criação.7
Lançado em janeiro de 2011, o Catarse, por sua vez, é a primeira plataforma
brasileira de crowdfunding. Inspirado no Kickstarter8 e criado em 2008, tem o seu perfil
mais voltado ao empreendedorismo cultural e artístico. Utilizando a estratégia de apresentar
o projeto, buscar colaboradores e recompensá-los, como explicado anteriormente, o autor
tem até sessenta dias (prazo máximo) para captar o dinheiro necessário para cobrir as
despesas de produção. O valor financiado pelos apoiadores é repassado ao idealizador do
projeto, e este paga ao Catarse 7,5% da quantia recebida. Sendo assim, se o projeto não
atingir o objetivo e não arrecadar a quantia estipulada, o valor pago pelo apoiador é
devolvido.

7
Dados retirados do site, acessível em: <http://www.comixology.com/submit>.
8
Página do projeto, acessível em: <http://www.kickstarter.com/>.

6
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013

Desde a sua criação, o Catarse já levantou R$7,3 milhões, financiando assim 520
projetos. Embora as áreas de música e cinema liderem em número, a categoria mais bem-
sucedida é a de quadrinhos: 75% dos projetos atingem a meta (Mello Dias, 2013) alguns a
ultrapassando em 100% (ver projetos em negrito na Tabela 1).
Na prática, a plataforma acaba superando em número de lançamentos nacionais
(de artistas diferentes) as editoras especializadas no gênero. No ano de 2012 até a presente
data a Quadrinhos na Cia., selo de quadrinhos da editora Cia. das Letras, publicou dez
obras nacionais, de autores como Angeli, Luiz Gê e Lourenço Mutarelli (Tabela 2). No
mesmo período, o Catarse possibitou a produção e publicação de 23 projetos.

Período de
Quantidade Porcentagem
Título Autor(es) finalização do
levantada conquistada
projeto
Apagão - vol. 1 -
Raphael Fernades Em andamento R$ 11.522 102%
cidade sem lei/luz
Cuecas por cima das Rafael Koff Em andamento R$15.321 306%
calças
A maldição de Boa André Só 24/05/2013 R$24.010 112%
Fortuna
Gnut Paulo Crumbim 20/04/2013 R$25.836 143%
O monstro Coala 05/04/2013 R$43.423 201%
Libre! Librecoletivo 29/03/2013 R$14.931 213%
Abaité: bandeirantes Richard Dantas 21/03/2013 R$5.499 122%
Guarani-Kayowá
Shogum dos mortos - Daniel Wernëck 16/03/2013 R$30.976 333%
vol. 1 - Crepúsculo
dos samurais
Combo rangers Fabio Yabu 19/02/2013 R$67.540 168%
Freddy and Jason Rafael Koff 08/02/2013 R$6.200 206%
have fun
Livro comemorativo Karlo Campos 04/02/2013 R$6.070 101%

7
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013

10 anos de tira Vida de


leiturista
Mascate - Yves Santaella 26/01/2013 R$13.265 110%
Motioncomic Briquet
Tools challenge Max Andrade 18/01/2013 R$6.305 126%
volume 1
Samba 3 (SAMBA) 09/12/2012 R$17.655 117%
Ryotiras Omnibus Ricardo 27/09/2012 R$33.059 220%
Tokumoto
Álbum de coletânea do Cadu Simões 21/09/2012 R$16.535 110%
Petisco
Tirinhas do Zodíaco Rafael Koff 11/09/2012 R$8.745 174%
(2ª edição)
Happy Slap! Maxx Figueiredo 31/08/2012 R$8.960 100%
Salomão Ventura - Giorgio Galli 30/08/2012 R$2.246 124%
Caçador de lendas #3 Neto
Last RPG Fantasy - Lobo Limão 26/08/2012 R$16.852 129%
Livro jogo
Zinecórnio nº3 Mayara Pascotto 21/07/2012 R$300 142%
O beijo adolescente - Rafael Coutinho 19/08/2012 R$36.735 114%
Segunda temporada
Revista Café Espacial Café Espacial 13/08/2012 R$5.621 112%
nº 11
Tabela 1 Produções financiadas do período de agosto de 2012 a início de maio de 2013.

Fonte: http://catarse.me/pt/explore#quadrinhos.

Ano de
Título Autor(es)
publicação
Campo em branco Emilio Fraia e DW Ribatski 2013
O lixo da história Angeli 2013

8
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013

V.I.S.H.N.U. Eric Acher, Ronaldo Bressane e Fábio 2012


Cobiaco
Guadalupe Odyr e Angélica Freitas 2012
A máquina de Goldberg Vanessa Barbara e Fido Nesti 2012
Monstros! Gustavo Duarte 2012
Toda Rê Bordosa Angeli 2012
Diomedes - A trilogia do Lourenço Mutarelli 2012
acidente
Deus, essa gostosa Rafael Campos Rocha 2012
Avenida Paulista Luiz Gê 2012
Tabela 2 Lançamentos nacionais da Quadrinhos na Cia

Fonte: http://www.companhiadasletras.com.br/busca.php?b_categoria=77&b_filtro=livro.

A relação de sucesso dessas publicações pelo Catarse leva a conclusão de que o


modelo crowdfunding funciona melhor, sem dúvida, nos casos em que a pessoa que
incentiva o faz porque gosta e se identifica com os projetos. E o seu público-alvo bem
específico talvez seja a explicação para os quadrinhos serem, até agora, uma das áreas do
mercado editorial que melhor teve aceitação nesse novo modelo.
Se a “preocupante” revolução digital está sendo bem-sucedida com os quadrinhos,
a diferença pode estar na presença de seus fãs. No seu carinho pelo trabalho dos autores e
por sua cada vez maior participação no mercado.

2. O papel do fã no crowdfunding

Um bom exemplo da relação dos fãs com plataformas de financiamento é o projeto


brasileiro Queremos. A ideia nasceu da vontade de trazer ao Brasil a banda sueca Mike
Snow em setembro de 2010. Conquistada a meta, dois meses depois, uma nova proposta foi
iniciada: trazer a banda escocesa Belle & Sebastian, há nove anos ausente de nosso país.
Para tanto, seria necessário captar o valor de 56 mil reais.

9
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013

Um site foi criado e o plano mais uma vez foi bem-sucedido ao convencer 280
pessoas a pagar R$200 por cada ingresso reembolsável. Com o custo do show pago, os
organizadores iniciaram a venda do restante dos ingressos por R$100. Ao atingir certo
número de ingressos vendidos, as 280 pessoas que financiaram o projeto tiveram retorno
integral do investimento. Os shows e o projeto continuam até hoje com imenso sucesso.9
Este é apenas um exemplo de uma mudança recorrente na posição do consumidor
na sociedade. A globalização modificou drasticamente o consumo e a produção de sentidos,
ao mesmo tempo que, finalmente, possibilitou o fim da relação unilateral entre os
produtores de conhecimento e seus receptores, que deixam de viver em uma sociedade de
consumo taylorista/fordista, em que o papel do consumidor é de simples aquisição do
produto, passando para a era do chamado “capitalismo cognitivo”:

“No contexto do capitalismo cognitivo, o consumo não é mais destrutivo e sim


produtivo, de forma que a articulação das novas tecnologias, a ‘convergência
multimídia’, faz com que os usuários/consumidores transformem-se em
usuários/produtores, rompendo a tradicional separação entre trabalho e meios de
produção – o antigo controle sobre as tecnologias de produção e comunicação que
centralizava e emissão de conteúdos em poucos grupos monopolistas – e entre
mundo do trabalho e mundo da vida privada. Os novos parâmetros de produção no
capitalismo cognitivo estabelecem-se justamente na interação entre produtores e
usuários que formam, através do uso e apropriação das ferramentas informacionais
(os softwares), redes coletivas de interação produtiva (denominadas netwares).”
(Gabbay, 2003, p. 3):

Na equação de sucesso dos quadrinhos independentes pelo Catarse, acrescenta-se a


esse novo posicionamento o conceito de LoveMark. Em Cultura da convergência, Henry
Jenkins o define como as marcas que conquistam o amor e o respeito do consumidor por
meio de um novo discurso em marketing e pesquisa que “enfatiza o envolvimento
emocional dos consumidores” (Jenkins, 2008, p. 333).
Leitores são fiéis a autores. Leitores de quadrinhos são fiéis a autores, ilustradores,
universos e, em alguns casos, ao formato pelo qual tais histórias são transmitidas. Embora
não tenha o poder de criar um best-seller, considerando que é um nicho de mercado, são um

9
Página do projeto, acessível em: <http://www.queremos.com.br/>.

10
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013

público-alvo fiel. E convidá-los a participar da construção desse universo é uma forma de


fidelizá-los ainda mais.
Dessa forma, em meio à terra da Internet, lugar de Photoshops, blogs, vlogs,
fotologs e youtubes, onde nascem cada vez mais homenagens e histórias alternativas por
meio de fanfics (contos), fanarts (ilustrações), vídeos remixados etc., os fãs, em seu
posicionamento de também produtores, acabam incentivando e difundindo a indústria. Eles
conseguem assimilar as convergências midiáticas, as sucessivas atualizações e
determinações tecnológicas e desenvolver esses universos ricos. São consumidores e
propagadores. De acordo com Jenkins, eles são os:

“consumidores inspiradores, os grandes defensores da marca (...) aqueles que


sugerem melhorias e espalham novidades sobre a marca nos meios em que podem
publicar. O consumidor mais valioso pode ser o mais passional” (Jenkins, 2008, p.
47).

Assim, por meio dessa cultura participativa, o fã tem a oportunidade de tomar


parte mais ativamente, evoluindo do consumidor passivo para uma parte integrante do
negócio e, nesta nova etapa de financiamento coletivo, de parte integrante do negócio para
responsável pela produção.
Um bom e recente caso que combina a cultura da participação e o LoveMark nos
quadrinhos é a série Combo Rangers. Idealizada em 1998 por Fábio Yabu, hoje mais
conhecido como o criador da série Princesas do mar, a série de webcomics feitas em Flash
era uma paródia dos seriados super sentai10, como Flashman, Changeman etc. Neste caso,
cinco crianças eram escolhidas por um herói aposentado, Poderoso Combo, para receber
poderes e defender a Terra de ameaças alienígenas.
A divertida série infantojuvenil resultouem três temporadas11 e duas versões
impressas, uma pela editora JBC, em 2000, e uma pela Panini Comics, em 2004, ano em
que foi aposentada pelo autor, deixando muitos fãs órfãos. Mesmo com as críticas e pedidos
dos leitores, Yabu decidiu não dar continuidade ao universo dos Combo Rangers nos

10
Super sentai é uma franquia japonesa para televisão. A premissa básica é a de um grupo de geralmente cinco heróis que
ganham poderes especiais, usam roupas de cores variadas e possuem um robô gigante para combater ameaças alienígenas
ou vindas da própria Terra.
11
Combo Rangers (1998-1999), Combo Rangers Zero (1999-2000) e Combo Rangers Revolution (2000-2001).

11
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013

últimos dez anos e começou a se dedicar a outra série, voltada mais para o universo infantil
feminino: Princesas do mar. As princesas do mundo de Salácia renderam ao autor oito
livros e uma série animada exibida no canal Discovery Kids. Nesse meio-tempo, Yabu
escreveu alguns livros, como Raimundo, cidadão do mundo e Apolinário, o homem-
dicionário (Panda Books) e A última princesa (Galera Record). Sob o pseudônimo de Abu
Fobiya, lançou ainda para a editora Nerdbooks Branca dos Mortos e os sete zumbis e a HQ
Independência ou mortos.

“Os meus quadrinhos são feitos para pessoas de várias idades e gostos. Aos 17
anos, eu já tinha leitores fiéis por conta dos Combo Rangers. Fui amadurecendo e
comecei a fazer trabalhos diferentes. E o que acho mais interessante é que, hoje,
falo com varias gerações, às vezes na mesma casa. Tenho vários leitores fãs do
Combo Rangers que têm filhos fãs das Princesas do Mar” (Gama, 2013).

O carinho dos fãs de seu primeiro trabalho o levou a lançar, em dezembro de 2012,
uma campanha de financiamento coletivo no site Catarse para criação de dois álbuns dos
Combo Rangers12, com distribuição pela editora JBC. De acordo com o autor, o momento
era apropriado porque “com as redes sociais e o advento do crowdfunding, autores e fãs
podem trabalhar juntos para realizar projetos que antes eram impossíveis”.
Os fãs retribuíram o apelo: em menos de duas semanas foram arrecadados os R$40
mil suficientes para tocar o projeto, que recebeu o investimento de R$67.940.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caso Combo Rangers tem um diferencial interessante: a inclusão de uma editora. Embora
o custo de produção seja dos leitores, por meio do financiamento coletivo, a distribuição e
impressão serão feitas pela editora JBC. Esse caso entre uma plataforma interessante para
publicações independentes e o trabalho tradicional de uma editora, porém, não é isolado.
Em setembro de 2012, o escritor e ilustrador Loureço Mutarelli se aliou à editora
independente Pop e colocaram no Catarse o projeto bem-sucedido Os sketchbooks de
Lourenço Mutarelli, uma coleção de cadernos de esboços do autor. Em maior de 2013 o

12
Página do projeto acessível em: <//catarse.me/pt/comborangers>.

12
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013

roteirista Raphael Fernandes se aliou à editora Draco, da qual trabalha como editor de
quadrinhos, para viabilizar Apagão vol. 1 — Cidade sem lei/luz, obra em quadrinhos que
também já alcançou sua meta para publicação.
Embora essas propostas nasçam de editoras pequenas, é interessante notar que
existam iniciativas que fogem do tradicional processo cujo fim é tão somente a livraria. Ao
mesmo tempo que tornam condizente a abertura para publicações de nicho, já que optam
por um canal que vai de encontro a essa lógica, inicia-se uma compreensão de que o
crowdfunding vai muito além do papel de financiador. “O que se obtém ao fim de uma
campanha é visibilidade. Antes mesmo de o livro ser lançado, o público já ouviu falar
(bem) dele.” (Silveira, 2012).
Ainda que o futuro do status quo do mundo editorial ainda seja incerto, é benéfico
que o mercado preste atenção a essas “revoluções digitais” e (por que não?) agregue parte
dessa lógica à sua rotina editorial. Seja por iniciativas e flertes com o financiamento
coletivo, seja pelo interesse pelos artistas que se destacam em projetos nascidos desse meio.
O diferente, às vezes, surge para ser compreendido, não combatido. Lançamentos
exclusivos para o digital ou dar a chance dos leitores investirem e financiarem um livro
esquecido de catálogo, por exemplo, podem garantir uma nova vida para esses títulos.
Serão best-sellers? Não, mas quando somados... eis a cauda longa (Anderson, 2006).13
O futuro dos livros e dos quadrinhos ainda está sendo decidido. Os autores podem
negligenciar as livrarias físicas e as casas editoriais ou novas relações de negócios podem
surgir, em que as grandes, médias e pequenas editoras terão que repensar seus valores, cada
uma de sua maneira, e os papéis do editor e do autor poderão ser repensados.
Pensando no melhor para o leitor, obviamente.

REFERÊNCIAS

ANDERSON, C. A cauda longa. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2006.

13
O termo “cauda longa” descreve a teoria do físico e escritor Chris Anderson em que produtos de baixa demanda ou com
um baixo volume de vendas podem coletivamente alcançar uma fatia do mercado que rivaliza ou excede os poucos mais
vendidos, se a loja ou canal de distribuição for grande o bastante. Por exemplo, uma porção significativa das vendas da
Amazon é proveniente de livros obscuros que não estão disponíveis em lojas físicas.

13
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013

BURGER, A. Os efeitos da revolução digital no mercado editorial. Nós da Comunicação.


Disponível em:
<http://www.nosdacomunicacao.com.br/panorama_interna.asp?panorama=510&tipo=R>. Acesso
em: 20 maio. 2013.

CANCLINI, Néstor Garcia. Leitores, espectadores e internautas. São Paulo: Iluminuras, 2008.

CARRENHO, C. E-books responderão por 2,63 por cento do mercado em 2013. Tipos digitais.
Disponível em: < http://www.tiposdigitais.com/2013/01/o-tamanho-do-mercado-de-ebooks-no-
brasil.html>. Acesso em: 20 maio. 2013.

COCATE, F. M.; PERNISA JÚNIOR, C. Crowdfunding: estudo sobre o fenômeno virtual.


Líbero: revista acadêmica / Programa de Pós-graduação, Faculdade Cásper Líbero. – v. 15, n. 29
(junho 2012). – São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, 2012.

EARP, F. S.; KORNIS, G. A economia da cadeia produtiva do livro. Rio de Janeiro: BNDES,
2005.

FREIRE FILHO, J. Reinvenções da resistência juvenil. Rio de Janeiro: Mauad, 2007. 176p.

GABBAY, Marcelo M. O tecnobrega no contexto do capitalismo cognitivo: uma alternativa de


negócio aberto no campo performático e sensorial. Revista da Associação Nacional
dosProgramas de Pós-Graduação em Comunicação. Disponível em:
<http://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/viewFile/183/184>. Acesso em: 20
maio. 2013.

GAMA, C. Fabio Yabu e a nova realidade das HQs no Brasil. Guia da Semana. Disponível em:
< http://www.guiadasemana.com.br/celebridades/noticia/fabio-yabu-e-a-nova-realidade-das-HQs-
no-brasil>. Acesso em: 20 maio. 2013.

INSTITUTO PRÓ-LIVRO. Retratos da leitura no Brasil. 3. ed. São Paulo: Instituto Pró-Livro.
2012.

JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008.

LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. 260 p.

MCCLOUD, S. Reinventando os quadrinhos. São Paulo: M. Books: 2005.

14
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013

MELLO DIAS, T. Rede de incentivo. Estadão. Disponível em:


<http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,rede-de-incentivo-,1031569,0.htm>. Acesso em: 20
maio. 2013.

SILVEIRA, H. Vendas diretas ganham espaço no mercado. Gazeta Mercantil. São Paulo, 20 de
maio de 2008.

SILVEIRA, J. Tá “craude” na prateleira. Disponível em: <http://juliosilveira.com/2012/06/14/ta-


craude-na-prateleira/>. Acesso em 18 de março. 2012.

SILVEIRA, J. A Amazon é ré, e o mercado não anda pra frente. Publishnews. Disponível em:
<http://www.publishnews.com.br/telas/colunas/detalhes.aspx?id=72832>. Acesso em 18 de março.
2013.

VARGAS, M. L. B. Do fã consumidor ao fã navegador: o fenômeno fanfiction. 210f.


Dissertação (Mestrado em Letras), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de
Passo Fundo, Passo Fundo, 2005.

15

Você também pode gostar