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Revista de

Filosofia Moderna
e Contemporânea
Dossiê
Espinosa

Brasília, v. 7, n. 2, ago. 2019


Equipe Editorial/Editorial Team Elisabete M. J. de Sousa (Universidade de Lisboa)
João Vergílio Gallerani Cuter (USP)
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Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea CiteFactor, CLASE, Diadorim, DOAJ, DRJI, Latin-
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A Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea é uma
publicação quadrimestral do Departamento de Filosofia e do
Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade de
Brasília (UnB)
The Journal of Modern and Contemporary Philosophy is a
triannual publication of the Department of Philosophy and the
Graduate Program in Philosophy of the University of Brasília

Brasília, volume 7, número 2, 2º quadrimestre de 2019


ISSN 2317-9570 (publicação eletrônica)
http://periodicos.unb.br/index.php/fmc
Pareceristas desta Edição/Reviewers of this Issue:

André Luis Muniz Garcia (UnB), Antônio Mário David Siqueira Ferreira
(USP), Ericka Marie Itokazu (UnB), Fran de Oliveira Alavina (UFVJM),
Giorgio Gonçalves Ferreira (UEBA), Giovanni Zanotti (UnB), Henrique
Piccinato Xavier (UFABC), Homero Santiago (USP), Jarlee Oliveira Silva
Salviano (UFBA), Jonas Roos (UFJS), José Miranda Justo (Universidade de
Lisboa), Leon Farhi Neto (UFT), Lorrayne Colares (UnB), Luis Cesar Oliva
(USP), Luiz Carlos Montans Braga (UEFS), Luiz Manoel Lopes (UFC),
Malcom Guimarães Rodrigues (UEFS), Marcos Aurélio Fernandes (UnB),
Marilia Pacheco (UnB), Philippe Claude Thierry Lacour (UnB), Roberto de
Almeida Pereira de Barros (UFPA)
Sumário
i. Páginas Iniciais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 01

ii. Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 07

iii. Dossiê: Espinosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

Notas Sobre os Instrumentos Cientı́ficos em Galileu


Cristiano Novaes de Rezende . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

O Jogo das Trevas: Heidegger, Schelling e Espinosa


Vittorio Morfino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

Dramas da Imanência: Gebhardt, Deleuze, Benjamin e o Infinito Bar-


roco de Espinosa
Henrique Piccinato Xavier . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71

Há Abstração de Si na Origem de toda a Abstração na Filosofia de


Espinosa?
Rafael Arcanjo Teixeira, Cristiano Novaes de Rezende . . . . . . . . . . . . . 89

Segurança, Liberdade e Concórdia no Pensamento Republicano de Es-


pinosa
Stefano Vinsentin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

Comunicação e Silêncio na Experiência Polı́tica Espinosana


Daniel Santos da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137

Sobre o Desespero: São Paulo, Junho de 2013


Fernando Bonadia de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147

iv. Artigos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189

A Influência de Schelling sobre Schopenhauer


Helio Lopes da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189

De Dicto and De Re: A Brandomian experiment on Kierkegaard


Gabriel Ferreira da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221

Introducción Histórica al Psychologismusstreit


Mario Ariel González Porta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239

A Antiguidade, um Erro Profundo? – Foucault, a Filosofia e suas Ati-


tudes
Jean Dyêgo Gomes Soares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271

Sobre a centralidade e a estrutura do capı́tulo “Os corpos dóceis” do


Vigiar e Punir
Kleverton Bacelar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293
Subjetividade e Formas de Vida em Foucault
Lara Pimentel Figueira Anastacio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 327

v. Normas para Publicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 345


DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v7i2.28228

Editorial

Apresentação do Dossiê Espinosa

No fio do tempo e da história...

A violência nas palavras. De nosimos dos séculos seguintes.


família portuguesa, escolhido o Contudo, se no fio da histó-
nome de Bento (ou Baruch) ao ria a filosofia de Espinosa é cons-
nascer na comunidade judaica tantemente retomada no turbi-
de Amsterdã, ninguém imagina- lhão por vezes ensurdecedor de
ria que Espinosa, ainda na tenra múltiplas acusações daqueles to-
juventude e neste mesmo lugar, mados pelo horror frente ao seu
dela seria excomungado sob a sistema, é preciso ressaltar to-
mais violenta acusação que in- davia que sua retomada nunca
verteria o sentido de seu nome, é consensual e que, simultane-
transformando-o sob a pecha de amente, apresentaram-se inten-
“Maldito”. Proscrito uma vez, e, sos elogios, por dissonantes vo-
logo depois, mais uma vez acu- zes, em reinterpretações por ve-
sado de herege pela Santa Sé, Es- zes divergentes que procuraram
pinosa será o primeiro filósofo defendê-lo, muitos dos quais nele
de origem judaica a ser incluído identificaram o seu próprio pro-
no Index. Mais ainda, ninguém jeto filosófico e por isso de se
imaginaria que, um século de- aproximaram ou, inversamente,
pois, a palavra “espinosista” seria por nele encontrarem um cami-
usurpada de seu sobrenome para nho sem volta rumo a uma filoso-
tornar-se sinônimo de grave acu- fia encerrada em si mesma, dela
sação da qual muitos tiveram que afastaram-se vigorosamente para
se defender e que, contudo, não evitar o perigo de serem engolidos
se encerrou no século XVIII, pelo em sua trama geométrica, aquela
contrário, persevera nas polêmi- “máquina infernal” de proeza de-
cas das tantas querelas dos espi- monstrativa inescapável.

7
EDITORIAL

São tão conhecidas as ima- um aspecto seríamos obrigados a


gens do espinosismo, quanto concordar, para lembrar em outro
são diversas e contraditórias1 . contexto as palavras de J. Israel:
“Monstruoso ateu de sistema” “ninguém nem mais remotamente
ou “filósofo ébrio de Deus”; chegou a rivalizar a notoriedade
“panteísta” ou “ateísta virtuoso”; de Espinosa”2 . E se com essa breve
defensor de um “fatalismo descrição antevemos o eterno re-
inexpugnável” onde a liberdade torno ao espinosismo, com isso
não tem lugar ou o maior “filósofo também concluímos que, mesmo
da liberdade”; “cartesiano”, “anti- no século XXI, há ainda algo revo-
cartesiano”, “ultra-cartesiano”; lucionário a ser pesquisado nesta
fortaleza de um “idealismo filosofia que teima em nos esca-
absoluto” em que o indivíduo par. Tal fenômeno talvez ocorra
não tem lugar ou responsável porque, especificamente, seja esta
pela mais potente “refundação do uma filosofia que levou a termo
materialismo”, num realismo po- a difícil tarefa de fundamentar-
lítico radical, cravado no fulcro da se exclusivamente no difícil con-
modernidade... enfim, a lista se- ceito do absolutamente infinito ou
gue indefinidamente... Malebran- infinito positivo como causa de si e
che, Leibniz, More, Jacobi, Kant, da natureza inteira, mantendo com
Hegel, Schelling, Nietzsche, Berg- isso, em seu interior, aquele mis-
son, Einstein, Deleuze, Negri, Ma- tério ao qual se referia Merleau-
chado de Assis, Jorge Luis Bor- Ponty:
ges, Clarice Lispector, Nise da Sil-
veira... Nenhum de seus leitores
parece ter permanecido incólume O século XVII é o momento
após atravessar o seu sistema filo- privilegiado em que o conhe-
sófico. cimento da natureza e a meta-
Perante tantas e diversas lei- física julgaram encontrar um
turas possíveis, pelo menos em fundamento comum. Criou

1 Sobre as diversas imagens do espinosismo, recomendo o belíssimo capítulo “A construção do Espinosismo” in


A Nervura do Real. Imanência e liberdade, vol. 1, São Paulo: Cia. das Letras, 1999, pp. 113-330.
2 Israel, J. Radical Enlightenment: Philosophy, Making of Modernity 1650-1750. Oxford University Press, 2001.

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uma ciência da natureza e no aplica-lo à sua compreensão de
entanto não fez do objeto da história da filosofia: “Não há uma
ciência o cânone da ontolo- filosofia que contenha todas as fi-
gia. Admite que uma filoso- losofias: a filosofia inteira está, em
fia sombranceie a ciência, sem certos momentos, em cada uma
ser uma rival para ela. (...) delas. Repetindo a famosa expres-
Essa extraordinária harmonia são, seu centro está em toda parte
entre o exterior e o interior e sua circunferência em parte al-
[da filosofia] só é possível pela guma”4 .
mediação de um infinito posi- Se concordarmos com Merleau-
tivo, ou infinitamente infinito Ponty que o conceito fundador
(...). É nele que se comuni- do sistema de Espinosa é o ab-
cam ou se unem uma à outra solutamente infinito, a partir do
a existência efetiva das coisas qual emerge uma extraordiná-
partes extra partes e a exten- ria harmonia entre o “interior”
são pensada por nós, que, pelo e o “exterior” da filosofia, tam-
contrário, é contínua e infi- bém neste mesmo conceito pode-
nita. Se há, no centro e como remos encontrar aquilo que, numa
que no núcleo do Ser, um in- filosofia escrita e datada no sé-
finitamente infinito, todo ser culo XVII, ou seja, escrita a par-
parcial está real ou iminente- tir da e contra as misérias e vio-
mente contigo nele3 . lências de seu tempo, pode atin-
gir, para utilizar uma expressão
espinosana, “um certo aspecto da
Eis porque Merleau-Ponty toma
eternidade” no interior do qual,
de empréstimo o célebre mote
fora de seu tempo, ele dialoga tão
seiscentista – que visava explici-
intensamente com as filosofias
tar o desafio de compreender um
posteriores, e não somente isso,
universo aberto e infinito pós re-
mas também dialoga com aquilo
volução galileana –, deslocando-o
que supostamente é exterior à fi-
do campo da Nova Ciência para

3 Merleau-Ponty, M. “Em toda parte e em parte alguma” in Signos, São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 163.
4 Idem. p. 140.

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losofia, a saber, as artes, as ci- Assim os partidários de uma


ências, as políticas, enfim, a his- filosofia “pura” e os da ex-
tória. Mais ainda, não se res- plicação socioeconômica tro-
tringindo ao campo acadêmico, cam de papel diante dos nos-
e transitando no campo da cul- sos olhos e não devemos en-
tura e da literatura, contra ou a fa- trar em seu perpétuo debate,
vor, o “espinosismo” foi ganhando não devemos tomar partido
terreno e certa popularidade que entre uma falsa concepção de
tanto o invade, quanto o faz in- “interior” e “exterior”. A fi-
vadir a própria vida. Para lem- losofia está em toda parte,
brar novamente as palavras de mesmo nos “fatos” – e não
Merleau-Ponty: possui em parte alguma um
campo em que esteja preser-
vada do contagio da vida5 .

2019, Brasília entrando na trama tecida pelo espinosismo

Dentre as diversas retomadas nhou força renovada e novas te-


do espinosismo, um período e lu- ses foram surgindo nas mãos de
gar se destacam particularmente: M. Guéroult, A. Matheron, P. Ma-
em Paris e Vincennes, nos anos 60 cherey, G. Deleuze, L. Althusser...
do século passado, diversos estu- É neste contexto que, no calor de
diosos voltam a estuda-lo, muni- 1968 parisiense, uma jovem es-
dos de novas ferramentas inter- tudiosa brasileira, que na época
pretativas, como a análise estru- fazia seus estudos de doutorado
tural de sistemas filosóficos golds- na França com V. Goldschmidt, e,
chmiditana, a análise filosófico- frequentando Vincennes, decide
filológica, e a análise filosófico- dedicar-se também à filosofia de
histórica. A partir do trabalho Espinosa: Marilena Chaui.
deste grupo, o espinosismo ga- Quase meio século depois,

5 Idem. p. 141.

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tornando-se reconhecidamente naquele ano com a vinda de diver-
uma das maiores estudiosas do sos estudiosos de Espinosa do Bra-
filósofo holandês, uma rede es- sil e do exterior, o que promoveu
pinosana fortaleceu-se no Bra- o coletivo esforço por, finalmente,
sil, sobretudo em grupos de São dar início aos trabalhos do Grupo
Paulo, no Rio de Janeiro, no Ce- de Estudos Espinosanos da UnB
ará, Tocantins, Paraná... com sin- que, integrando-se à rede brasi-
gular importância para o Grupo leira, celebrou a sua fundação com
de Estudos Espinosanos da USP realização da I Jornada de Estu-
(GEE-USP), ainda hoje sob a co- dos Espinosanos na UnB. Foi no
ordenação de Marilena. Esta rede clima celebrativo deste primeiro
brasileira, fortemente articulada, encontro, intensa e afetivamente
muito colaborou para a constru- potente, que nasceu não somente
ção de um grupo ainda maior, o Grupo de Estudos Espinosanos da
contribuindo para o desenvolvi- UnB (GEE-UnB), mas também o
mento do espinosimo na América projeto para o Núcleo de Estudos
Latina e que, no ano de 2018, co- Seiscentistas do Cerrado. O pre-
memorou seus 15 anos de traba- sente “Dossiê Espinosa”, portanto,
lho contínuo realizado em encon- contando a oportuna presença e
tros anuais dos Colóquios Inter- interlocução com diversos especi-
nacionais de Espinosa na América alistas do Brasil e do exterior, con-
Latina e que, atualmente, confi- gratula a criação de duas institui-
gura o maior colóquio no mundo ções que permitirão participação
dedicado ao filósofo. de docentes e discentes pesquisa-
Ora, foi justamente neste ano dores da UnB e do Centro-oeste
comemorativo de 2018 que a Uni- para continuar o trabalho de per-
versidade de Brasília conferiu à seguir, atravessar, reinterpretar e
filósofa Marilena Chaui o título refletir a partir dessa filosofia tão
de doutora Honoris causa, promo- única quanto histórica e potente-
vendo um colóquio em sua ho- mente revolucionária.
menagem. Devido à organiza- Entre a Primeira Jornada Espi-
ção da vinda de Marilena à UnB nosana na UnB, quando a maioria
e dos conferencistas que discuti- dos textos que compõem este Dos-
riam sua obra, a UnB pode contar siê foi escrita, e o presente ano de

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2019, muito se sucedeu na histó- no tema nele diretamente abor-


ria política brasileira... um movi- dado, seja na verve que o anima
mento histórico ainda inconcluso, e inspira. Pensando nisso, pro-
se pensarmos nos rumos do traba- pusemos um percurso temático-
lho universitário, na fragilidade cronológico: os temas tratam de
do apoio ao desenvolvimento filo- entrecruzamentos, notadamente
sófico, cultural e científico. Faz-se no diálogo entre filosofia e ciên-
necessário portanto, e novamente, cia (Cristiano Novaes de Rezende
perguntar-se sobre a filosofia, a - UFG), metafísica e história (Vit-
partir do seu interior, levando-a torio Morfino – Univ. Milano-
ao limite do entrecruzamento en- Bicocca), filosofia e as artes (Hen-
tre a “filosofia” e seu “exterior”, rique Xavier - USP), ontologia e
como diria Merleau-Ponty. Na ética (Rafael Teixeira - UFG), ética
relação da problemática conjun- e política (Stefano Visentin – Univ.
tura que atualmente enfrentamos, De Urbino e Daniel Santos Silva –
é preciso não apenas voltar aos Unespar), filosofia e ciências polí-
estudos filosóficos, mas também cias e sociais (Fernando Bonadia -
voltar a defender a sua importân- UFRRJ); a cronologia segue prin-
cia sócio-cultural pela relação in- cipiando por artigos que tratam
terna (partes intra partes) entre a especificamente do século XVII,
filosofia e as ciências, entre a filo- seguindo para a recepção do es-
sofia e as artes, entre a filosofia e pinosimo nos séculos posteriores,
o mundo. Mais uma vez, precisa- para, finalmente, propor o exercí-
mos retomar a defesa fundamen- cio da reflexão política dos tempos
tal da liberdade de pensamento e atuais numa perspectiva espino-
expressão – adágio espinosano por sana.
excelência– e, talvez, imbuídos de Que o leitor possa neles en-
certo espinosismo renovado, en- contrar, na singularidade de cada
contremos um caminho de uma artigo, o entrelaçamento das no-
filosofia contagiada pela vida. ções comuns que os percorre,
Ora, o leitor encontrará, no pre- permitindo-se vivenciar e, num
sente Dossiê, a proposta de re- pequeno passeio pela filosofia de
flexão destas mesmas relações, Espinosa, vislumbrar parte da
seja no interior dos artigos, seja imensa multiplicidade não uní-

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voca, muito menos uníssona, de pla e complexa, entrelaçada en-
pensamentos que, ao olhar atento, tre outros tantos modos finitos–,
perfazem um conjunto em mo- portanto, propõe uma nova práxis
saico composto por distintas co- filosófica que, nascida no interior
res, formas, texturas, estilos e vo- desta filosofia, nos conduz para
zes, numa articulação interna so- fora dela e, inversamente, é este
mente possível porque todos com- mesmo conceito que, numa filo-
partilham de um fundamento co- sofia da imanência, não permite
mum, um conceito filosófico único que o “exterior” da filosofia lhe
capaz de produzir a partir de si permaneça alheio e, muito menos,
um infinito de pensamentos dis- deixe de contagiar tanto a filosofia
tintos e singulares, mas interna- como a própria vida.
mente articulados, num universo Que este Dossiê seja tam-
de trabalhos intelectuais, indivi- bém o convite, permanentemente
duais e coletivos, tais como os que aberto, para o leitor participar do
apresentamos neste Dossiê. O con- Grupo Espinosano recém inaugu-
ceito mesmo de substância única rado na UnB e de tantos outros
absolutamente infinita, – potên- encontros inspirados nessa filoso-
cia infinita da natureza inteira da fia.
qual somos parte finita, múlti-

Ericka Marie Itokazu

Coordenadora do Grupo de Estudos Espinosanos da UnB


Membro co-fundador do Núcleo de Estudos Seiscentistas do Cerrado
(Organizadora do Dossiê)

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Além dos trabalhos que compõem a convicção de que a disputa em


o Dossiê, o presente número tam- torno do psicologismo foi unívoca,
bém conta com outras contribui- teve seu epicentro nos “Prolegô-
ções recebidas em fluxo contínuo. menos” husserlianos e se concen-
(1) Helio Lopes da Silva, profes- trou na lógica. Em vez disso, de-
sor da UFOP, investiga as influên- fende que essa disputa foi um pro-
cias legadas pela filosofia schel- cesso com diferentes etapas, ten-
linguiana no pensamento schope- dências e núcleos temáticos.
nhaueriano. Com isso, procura (4) "A Antiguidade, um Erro
mostrar que, apesar do Schope- Profundo? – Foucault, a Filoso-
nhauer maduro ter rejeitado a fi- fia e suas Atitudes", artigo de Jean
losofia de Schelling, o jovem Scho- Dyêgo Gomes Soares, doutor em
penhauer pode ter reformulado e filosofia pela PUC-RJ e professor
incorporado algumas ideias deste do Centro Universitário Unihori-
último. zontes, apresenta uma interpreta-
(2) Em seu De Dicto and De ção para a afirmação foucaultiana
Re: A Brandomian experiment de que a Antiguidade teria sido
on Kierkegaard, Gabriel Ferreira um erro profundo. Para tanto,
da Silva, professor do PPGFIL da busca explicitar o deslocamento
UNISINOS, expõe o método de teórico executado por Foucault na
reconstrução racional de Robert problematização do sujeito.
Brandom e, em seguida, o aplica a (5) Em seu “Sobre a centrali-
Kierkegaard. Esse exercício busca dade e a estrutura do capítulo
explicitar os compromissos on- “Os corpos dóceis” do Vigiar e Pu-
tológicos de Kierkegaard quanto nir”, Kleverton Bacelar, professor
exemplificar o valor dessa ferra- da UFBA, propõe uma hipótese de
menta metodológica para a histó- leitura na qual o mencionado ca-
ria da filosofia. pítulo cumpre uma função central
(3) Mario Ariel González Porta, no principal argumento foucaulti-
professor titular da PUC-SP, em ano da obra em questão.
seu artigo “Introducción Histórica (6) Por fim, Lara Pimentel Fi-
al Psychologismusstreit”, combate gueira Anastacio, doutoranda em

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filosofia na USP, defende que a prias condutas.
noção foucaultiana de “subjetivi- Gostaríamos de aproveitar o en-
dade” também deve ser entendida sejo para agradecer a todos os au-
como uma crítica da razão gover- tores, por terem honrado a nossa
namental. Para tanto, após ana- Revista com as suas produções,
lisar a produção de subjetividade bem como aos membros do corpo
dos antigos, argumenta que a no- editorial, avaliadores, editores e
ção de subjetividade m Foucault leitores de provas, pela funda-
está necessariamente vinculada à mental colaboração na confecção
criação de um governo das pró- da presente edição.

Os Editores

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DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v7i2.25738

Notas sobre os Instrumentos Científicos em Galileu


[Notes on Scientific Instruments in Galileo]

Cristiano Novaes de Rezende*

Resumo: Na primeira parte deste artigo, procuramos caracterizar


o conceito de instrumentalismo a partir dos problemas astronômi-
cos, políticos e teológicos que levaram à contraposição desse pro-
grama epistemológico — que limita a ciência ao trabalho de “salvar
as aparências” — à concepção de ciência que culminou na Revolução
científica dos séculos XVI e XVII. Na segunda parte, mostramos que
há certa concepção do conhecimento matemático que se alinha com
o instrumentalismo, mas que também há uma outra concepção, sus-
tentada por Galileu, que considera a matemática como expressão de
relações estruturais constitutivas da própria realidade física. Na ter-
ceira parte, defendemos que, contra a ideia de instrumento contida no
programa instrumentalista, Galileu entende seus instrumentos cien-
tíficos como teorias em estado concreto e operante. Para demonstrar
isso, examinamos algumas posições de Galileu sobre o uso de alguns
instrumentos científicos que ele próprio confeccionou, a saber: o com-
passo geométrico militar, a balança hidrostática e o telescópio.
Palavras-chave: realismo, instrumentalismo, ciência, teologia, polí-
tica.
Abstract: In the first part of this paper, we try to characterize the
concept of instrumentalism analyzing the astronomical, political and
theological problems that led to the contraposition of such episte-
mological program — that reduces science to the work of "saving
appearances" — to the conception of science that culminated with
the Scientific Revolution of the sixteenth and seventeenth centuries.
In the second part, we show that there is a certain conception of
mathematical knowledge that aligns with instrumentalism, but that
there is also another conception, supported by Galileo, that considers
mathematics as an expression of structural relations constitutive of
physical reality itself. In the third part, we defend that, against the
idea of instrument contained in the instrumentalist program, Galileo
understands his scientific instruments as theories in concrete and
operant state. To demonstrate such interpretation, we have examined
Galileo’s positions on the use of some of the scientific instruments
he has made, namely, the military-geometric compass, the hydrostatic
scale, and the telescope.
Keywords: realism, instrumentalism, science, theology, politics.

* Professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutor em filosofia pela USP.
E-mail: cnrz1972@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4935-629X.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 17-41 17
ISSN: 2317-9570
CRISTIANO NOVAES DE REZENDE

Para Marcelo Moschetti

1- Instrumentalismo, Teologia e ção do Diálogo e da consequente


política condenação de Galileu, o Car-
deal Belarmino — intelectual or-
O caso da condenação de Ga- gânico da inquisição romana —
lileu Galilei pela inquisição ro- recomendara aos adeptos do co-
mana articula de forma emblemá- pernicanismo que, por prudên-
tica um problema epistemológico cia, fizessem o contrário: deixas-
e um problema teológico-político. sem a verdade ao encargo da au-
Uma defesa realista do coperni- toridade religiosa e reduzissem o
canismo, como a pretendida por sistema copernicano não propri-
Galileu no Diálogo sobre os dois amente a uma metáfora mas sim
Máximos Sistemas de Mundo: Pto- a um mero instrumento matemá-
lomaico e Copernicano, de 1632, tico de reprodução e predição das
exigia uma correlata interpretação posições observáveis dos planetas.
não-realista, mas sim metafórica, Belarmino está longe de ser um
das passagens da Bíblia que pare- tolo. Ele reconhece que o sistema
cem corroborar um sistema plane- copernicano é superior em simpli-
tário geocêntrico e com uma Terra cidade e comodidade no nível dos
estacionária. No entanto, no con- cálculos, mas também sabe que o
texto da Contra Reforma, onde o realismo tem uma tarefa demons-
modo de interpretar as Sagradas trativa: precisa primeiro mostrar
Escrituras dividia católicos e pro- que a teoria proposta é capaz de
testantes, a admissão de interpre- reproduzir os fenômenos passa-
tações do texto bíblico alternati- dos, coincidir com os fenômenos
vas às autorizadas, como seriam presentes e predizer os fenôme-
as interpretações metafóricas, era nos futuros. Para usar o jargão da
uma questão extremamente deli- época, a tarefa liminar de uma te-
cada. Mormente se lembrarmos oria é mostrar-se capaz de “salvar
que, de ambos os lados, o poder as aparências” . Mas isso, embora
político pretendia-se fundado na absolutamente necessário para a
autoridade religiosa, a qual, por verdade, não é suficiente. Leia-
sua vez, encontrava fundamento mos as palavras de Belarmino, nas
nas escrituras e, em última instân- quais ele aceita, inclusive, que seja
cia, na revelação divina. dada outra interpretação das pas-
sagens bíblicas relevantes, desde
Na célebre Carta a Foscarini,
que uma verdadeira demonstração
de 1615, isto é, antes da publica-
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seja apresentada: foi demonstrado. Con-


tudo, não acreditarei que
Dizer que se salvam melhor exista tal demonstração
as aparências de acordo antes que alguém a mos-
com a suposição de a Terra tre a mim: pois demons-
ser móvel e o Sol imó- trar que, supondo o Sol imó-
vel, do que supondo os vel no centro e a Terra se
excêntricos e os epiciclos, movendo pelo céu, podere-
é falar muito bem — não mos salvar as aparências,
havendo nenhum perigo não é o mesmo que demons-
nisso e por ser isso sufi- trar que assim é na verdade.
ciente para o matemático. Acredito que a primeira
Mas afirmar que na rea- demonstração possa ser
lidade o Sol é imóvel no dada, mas tenho as mai-
centro do universo... é ores dúvidas em relação à
arriscar-se não somente segunda e, em caso de dú-
a irritar todos os filóso- vida, não devemos aban-
fos escolásticos e teólogos, donar a interpretação das
mas também a ofender a Sagradas Escrituras dada
Santa Fé, tornando fal- pelos Padres da Igreja [. . .]
sas as Sagradas Escrituras. (BELARMINO apud LO-
[. . .] Se existir uma verda- PARIC, 2008, p. 240, itá-
deira demonstração de que licos nossos).
o Sol está parado no cen-
tro do mundo, de que a Para explicitar plenamente por
Terra está no terceiro céu que salvar as aparências não é o
e de que o Sol não cir- mesmo que demonstrar que as-
cula em torno da Terra, sim é na verdade, cabe remeter
mas a Terra em torno do a expressão ao seu contexto de
Sol, afirmo que deveremos origem. Ela deriva da crítica de
começar a trabalhar com Aristóteles aos arroubos teóricos
muita ponderação para do pitagorismo (Metafísica, A, 5,
explicar as Passagens das 985b 23ss apud KIRK, RAVEN &
Escrituras aparentemente SCHFIELD, 1994, p. 347), cu-
contrárias a essa opinião jos partícipes, diante de discre-
e que deveremos dizer pâncias entre a teoria (logos) e
não termos entendido es- os dados observacionais (phaino-
sas passagens, em vez de mena), conservavam a teoria e mu-
sustentar ser falso o que davam os dados, forjando obje-
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tos exigidos pela teoria mas ja- coincidir com os fenômenos pre-
mais observados (ou até mesmo sentes e predizer os fenômenos fu-
jamais observáveis!). Contra isso, turos. Logo, fazê-lo não é condi-
o sensato Aristóteles propõe: em ção suficiente para afirmar a ver-
caso de discrepância entre a te- dade da teoria, embora não fazê-
oria e os fenômenos, “conservar lo seja suficiente para afirmar sua
os fenômenos!” (sozein ta phaino- falsidade.
mena), isto é, literalmente, “salvar É nesse mesmo espírito que o
as aparências”, num uso do verbo luterano Andreas Osiander — que
“salvar” que significa mais pro- supervisionara a publicação do De
priamente manter, guardar, con- Revolutionibus Orbium Coelestium,
servar. Ora, muitos astrôno- de Copérnico, em 1543 — tentara
mos gregos — de Eudoxo e Ca- possivelmente proteger o autor,
lipo, no século IV a.C. a Ptolo- adicionando a esta obra um pre-
meu, no século II d.C. — leva- fácio apócrifo com um programa
ram às últimas consequências esse instrumentalista, de matriz pro-
preceito aristotélico. Diante de testante, que constituíra, quase
alguns fenômenos astronômicos um século antes, um precedente
tradicionalmente desafiadores, tal até mais radical que o da inquisi-
como o chamado movimento re- ção romana:
trógrado aparente dos planetas1 ,
esses astrônomos propuseram ar-
tifícios geométricos2 , artifícios que Com efeito, é próprio do as-
eles nunca pretenderam que des- trônomo compor, por meio
crevessem a real estrutura do uni- de uma observação diligente
verso, mas que, ainda assim, eram e habilidosa, o registro dos
eficazes justamente em “salvar as movimentos celestes. E, em
aparências”. Ou seja, uma teoria seguida, inventar e ima-
assumidamente falsa — no sen- ginar as causas dos mes-
tido de jamais haver pretendido mos, ou melhor, já que
que esses círculos matemáticos em não se podem alcançar de
que os planetas eram colocados modo algum as verdadeiras,
durante o cálculo existissem na re- quaisquer hipóteses que,
alidade — pode perfeitamente re- uma vez supostas, per-
produzir os fenômenos passados, mitam que esses mesmos

1 O movimento retrógrado corresponde ao fato de que, em dado momento de sua trajetória anual, os planetas
parecem ‘andar para trás’, para depois retomarem o sentido original
2 Por exemplo: o artifício do epiciclo e deferente consistia em colocar o planeta orbitando não diretamente ao
redor da Terra mas ao redor de um ponto que, este sim, orbitava ao redor da Terra.

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movimentos sejam corre- seja revelado por Deus. Per-


tamente calculados, tanto mitamos, pois, que, junto
no passado como no fu- com as antigas, em nada
turo, de acordo com os prin- mais verossímeis, façam-
cípios da geometria. Ora, se conhecer também es-
ambas as tarefas foram sas novas hipóteses, tanto
executadas com excelên- mais por serem elas ao
cia pelo autor. Com efeito, mesmo tempo admiráveis
não é necessário que essas e fáceis, e por trazerem
hipóteses sejam verdadeiras consigo um enorme te-
e nem mesmo verossímeis, souro de doutíssimas ob-
bastando apenas que for- servações. E que ninguém
neçam cálculos que concor- espere da astronomia algo
dem com as observações (. . .) de certo no que concerne a
Pois é mais do que patente hipóteses, pois nada disso
que essa arte ignora sim- procura ela nos oferecer
plesmente e por completo (OSIANDER, 1980 - itáli-
as causas dos movimen- cos nossos).
tos aparentes irregulares.
E se inventa algumas na É com base nesse prefácio que
imaginação, como certa- Belarmino começa sua argumen-
mente inventa muitas de- tação na Carta a Foscarini, di-
las, todavia não o faz de zendo que para este último, assim
modo algum para persu- como para Galileu, seria prudente
adir quem quer que seja contentar-se em falar “por suposi-
de que assim é, mas tão ção (ex hypothesi) e não de modo
somente para estabelecer absoluto, como eu sempre cri que
corretamente o cálculo. E tenha falado Copérnico” (em GA-
como às vezes várias hipó- LILEU, 2009, p. 131 - itálicos
teses se oferecem para um nossos). Assim, a manutenção do
mesmo movimento (. . .), sistema astronômico heliocêntrico
o astrônomo de preferência na condição de uma hipótese eficaz,
tomará aquela cuja compre- garante que o direito ao discurso
ensão seja a mais fácil. O robusto sobre como as coisas efe-
filósofo talvez exigisse antes tivamente são permaneça — por
a verossimilhança, contudo, impossibilidade do contrário (Osi-
nenhum dos dois compre- ander) ou por prudência (Belar-
enderá ou transmitirá nada mino) — sob a guarda da religião,
de certo a não ser que lhe direito no qual, em última aná-
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lise, funda-se o poder teológico- 2 - Instrumentalismo e Matemá-


político. Ora, como se vê, um pro- tica
grama que trata o trabalho cien-
tífico como a mera elaboração de Em seu artigo “Descartes e Gali-
instrumentos eficazes de reprodu- leu: copernicanismo e o funda-
ção e predição de fenômenos em- mento metafísico da física” , M.
píricos presta-se, portanto, a ope- Friedman (2011) apresenta um
rar como correlato epistemológico enunciado especialmente claro do
do fundamentalismo religioso no realismo de Galileu. Trata-se do
plano político. Amansado cogni- seguinte trecho da Primeira Carta
tivamente, o copernicanismo po- sobre as Manchas Solares, de 1612:
deria ser empregado como sendo
apenas uma nova tecnologia de
cálculo, mais leve e ágil do que a os astrônomos filosóficos
maquinaria geométrica de Ptolo- [são aqueles] que, indo
meu, mas em nada ameaçadora no além da exigência de, de
âmbito do discurso sobre como as alguma forma, salvar as
coisas realmente são. E — supos- aparências, procuraram
tamente — nada haveria de vergo- investigar a verdadeira
nhoso nessa deflação epistemoló- constituição do universo
gica, nessa redução instrumental, — o problema mais im-
visto que tantos outros do mesmo portante e admirável que
modo se resignaram. existe. Pois esta consti-
tuição existe; ela é única,
verdadeira, real e não po-
deria ser de outra forma.
E a grandeza e a nobreza
deste problema lhe con-
fere o direito de ser co-
Nesse sentido, o realismo de locado à frente de todas
Galileu, defendido no Diálogo so- as questões suscetíveis de
bre os dois Máximos Sistemas de solução teórica (FRIED-
Mundo, e responsável por sua der- MAN, 2011, p. 82)
radeira condenação, é a reivindi-
cação do direito ao discurso sobre
a realidade, desde fora dos par- Como explica Friedman, nesta
ticulares grupos agraciados pela carta Galileu distingue os
revelação divina ou fundados na “astrônomos filosóficos” daqueles
autoridade dos mesmos. que o próprio Galileu chama de
“astrônomos matemáticos”, sendo
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estes últimos os que usam quais- xar de salvar as aparências, fosse


quer instrumentos que possam fa- além disso.
cilitar seus cálculos. De nossa Mas, então, cabe perguntar: se
parte, gostaríamos de notar que, o realismo possui duas tarefas,
a bem dizer desde os pitagóri- das quais apenas a primeira é sal-
cos, o que está em questão é o es- var as aparências, qual será a se-
tatuto da relação entre matemá- gunda? Isto é, nas palavras de Fri-
tica e realidade física. A crítica edman: “como pode um sistema
de Aristóteles aos pitagóricos já astronômico ir além de salvar as
era precisamente uma recusa de aparências de modo a capturar ou
certo realismo matemático: “os corresponder à ‘verdadeira cons-
chamados pitagóricos dedicaram- tituição do Universo’?” (FRIED-
se às matemáticas; foram eles os MAN, 2011, p. 83). Ora, o modo
primeiros a fazer progredir estes como o comentador reconstrói a
estudos, e tendo sido criados ne- resposta galileana é bastante elu-
les, pensaram que seus princípios cidativo, pois mostra que a con-
eram princípios das coisas (archas cepção de conhecimento matemá-
tôn ontôn)” (Metafísica, A, 5, 985b tico sustentada pela tradição cien-
23ss apud KIRK, RAVEN & SCH- tífica em que se alinham Galileu,
FIELD, 1994, p. 347). Osian- Descartes e Newton é considera-
der, por sua vez, coloca “os prin- velmente mais forte tanto frente
cípios da Geometria” sob regime ao instrumentalismo antigo e mo-
de completa recusa não só da ver- derno quanto frente ao contem-
dade mas até mesmo da verossi- porâneo método hipotético dedu-
milhança, bastando a uma teoria, tivo, limitado a cotejar os dados
reduzida à condição de mera hi- observacionais com as hipóteses
pótese, fornecer cálculos que con- teóricas e suas consequências:
cordem com as observações. Já
Belarmino recomenda muita pru- Segundo [a concepção ga-
dência aos copernicanos, mas isso lileana], a matemática não
justamente em razão da profunda apenas poderia ser usada
diferença que há entre a demons- para modelar os fenô-
tração “suficiente ao matemático” menos, como há muito
e a “demonstração verdadeira” . já vinha sendo feito na
E o próprio Galileu, como se viu, astronomia tradicional,
também reconhece tal diferença, como poderia também ser
defendendo, consequentemente, empregada progressiva-
ao contrário de Osiander, uma as- mente para analisar as
tronomia filosófica que, sem dei- ações das causas dos fenô-
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menos. Quanto a isso, a trada a partir dos fenôme-


célebre análise feita por nos (FRIEDMAN, 2011, p.
Galileu da queda dos cor- 83 - itálicos nossos).
pos e do movimento dos
projéteis foi paradigmá- Há, portanto, um uso da mate-
tica [. . .] [No caso dos pro- mática que é puramente instru-
jéteis,] a trajetória parabó- mental e que, como tal, compõe-
lica resultante não é ob- se tranquilamente com o funda-
tida somente pela adap- mentalismo religioso tanto da Re-
tação da curva aos dados forma quanto da Contra Reforma;
observados: ela é matema- mas há também uma outra atitude
ticamente derivada de uma matemática, de ascendência pita-
análise das ações causais re- górica, que encontra-se, ao contrá-
levantes. [. . .] Visto que rio, afinada com os anseios filosó-
nossa descrição proposita- ficos que impulsionaram a Revo-
damente abstrai de todas lução Científica dos séculos XVI e
as outras ações (atrito, re- XVII. Ambos os usos da matemá-
sistência do ar, etc.), este é tica consistem na produção de ins-
apenas um primeiro passo trumentos de cálculo. Mas a pró-
da análise. Uma teoria pria concepção de instrumento aí
matemática completa irá, presente varia, assim como varia o
portanto, proceder pro- estatuto epistemológico da mate-
gressivamente à medida mática.
que formos capazes de in-
corporar essas ações cau-
sais adicionais [. . . ]. Em
3 - Os Instrumentos científicos
consequência, o resultado
construídos por Galileu
será muito mais que um
modelo entre outros para O que há de ser um instrumento
salvar as aparências [. . . ]. científico para Galileu? Certa-
Em vez disso, a interação mente não parece equivaler à
contínua e progressiva en- mesma concepção de instrumento
tre análises causais mate- que preside a própria elaboração
máticas e evidências empíri- do conceito de instrumentalismo.
cas resultaria, esperava-se, Esse termo foi empregado por
ao final, em um modelo Karl Popper para designar um dos
único - que, então, teria o três pontos de vista sobre o conhe-
estatuto de uma conclusão cimento humano apresentados em
matematicamente demons- Conjecturas e Refutações (POPPER
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1982 p. 125-246) a propósito das racteriza o instrumento evocado


diferentes apreciações que podem pelo instrumentalismo é sua ex-
ser feitas sobre a ciência de Gali- terioridade, independência e se-
leu, embora digam respeito à ci- cundariedade frente ao objeto a
ência em geral. A concepção de que ele, portanto, simplesmente
instrumento que parece ter levado se sub-mete. Para o instrumenta-
Popper a usar precisamente esse lismo, o logos devém, assim, um
nome para designar uma tal ma- servo invertebrado das evidências
neira de compreender a ciência é empíricas: pode ser usado e abu-
a de um meio de cálculo que, en- sado, vergado do jeito que for,
quanto hipotético, é literalmente desde que produza cálculos que
sub-posto: posto embaixo e depois concordem com as observações.
— isto é, como um sustentáculo Uma crítica desse desrespeito
ad hoc — dos fenômenos observa- para com o logos pode ser lida
dos. Um instrumento, na acep- numa importante passagem da
ção instrumentalista, é algo pro- Carta-Prefácio do próprio Copér-
duzido ‘sob encomenda’ para fun- nico ao Papa Paulo III, para a edi-
cionar, para salvar os phainomena, ção do De Revolutionibus, e que
custe isso o que custar ao logos. fora substituída, à revelia de Co-
Assim como um homem venal e pérnico, pelo prefácio apócrifo de
sem princípios, tal instrumento Osiander:
não tem, por assim dizer, escrú-
pulos próprios: faz qualquer ne- Assim, não quero escon-
gócio teórico para sustentar os da- der de vossa Santidade
dos observacionais, numa perfeita que nada mais me mo-
inversão dos excessos dos pitagó- veu a pensar a respeito
ricos, que faziam qualquer negó- de uma outra maneira de
cio para salvar sua teoria (como calcular (alia ratione sub-
forjar, sob encomenda da teoria, ducendorum) os movimen-
realidades inobserváveis). Os úni- tos das esferas do mundo
cos princípios a que o instrumen- senão que entendi (intel-
talista obedece são justamente os lexi) que os próprios Ma-
princípios da matemática (como temáticos não são consis-
dizia Osiander). Mas tais prin- tentes consigo próprios
cípios não passam disso mesmo, (sibi ipsis non constare) ao
ou seja, de princípios da matemá- investigá-los [sc. tais mo-
tica, sem nenhuma conexão com vimentos]. (. . .) Também a
os princípios que presidem a pró- forma do mundo (mundi
pria natureza. Portanto, o que ca- formam) e a exata sime-
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tria de suas partes (par- rompam a dignidade daquele pri-


tium eius certam symme- meiro. Enquanto, por exemplo,
triam) é a coisa principal o instrumentalismo reduz as te-
(rem præcipuam) que eles orias a meros instrumentos não
não conseguiram encon- estaria Galileu pensando seus ins-
trar nem inferir (invenire, trumentos como teorias em estado
vel ... colligere) (. . .). Ao concreto e operante? Procurare-
contrário, aconteceu-lhes mos, a seguir, responder afirmati-
como se alguém tomasse vamente a essa questão, buscando
(sumeret), de diversos lu- justificar tal resposta através de
gares (à diversis locis), pés, passagens textuais de Galileu so-
cabeça, e outros mem- bre o uso de alguns instrumentos
bros, pintados (depicta) científicos que ele próprio confec-
até mesmo de maneira cionou, a saber: o compasso geomé-
perfeita (optime quidem), trico militar, a balança hidrostática
mas sem comparação com e o telescópio.
um corpo único (sed non
unius corporis comparati-
one), de modo algum corres-
3.1 - O Compasso Geométrico-
pondendo reciprocamente
Militar
entre si (nullatenus invi-
cem sibi respondentibus), Comecemos pelo Compasso geomé-
de sorte a compor com trico e militar. Tratava-se de algo
eles (ex illis componeretur) que “no seu tempo correspondia
mais um monstro do que mais ou menos à régua de cálculo
um homem (monstrum po- ou à minicalculadora” (THUIL-
tius quàm homo). (COPÉR- LER, 1986, p. 139), ou, nas pa-
NICO 2008 pp. 262-263). lavras do próprio Galileu, um ins-
trumento que “em pouquíssimos
Mas, além desse “servil instrumen- dias ensina tudo aquilo que da ge-
to”, meramente acoplado à Na- ometria e da aritmética, para uso
tureza mesmo que ao preço do civil e militar, não sem longuís-
esquartejamento da organicidade simos estudos pelas vias ordiná-
do logos, parece-nos haver em Ga- rias, se recebe” (GALILEU, 1649,
lileu, um pensamento do instru- p. 369). Pode-se com ele, por
mento ativo, no qual se constata exemplo, aplicar de diversas ma-
uma verdadeira unidade entre o neiras as regras de três; transpor
logos e as operações técnicas de em proporção figuras semelhan-
cálculo, sem que estas últimas cor- tes; realizar divisões iguais e de-
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siguais no círculo; extrair as raí- pensada de modo que pudesse


zes quadrada e cúbica; estabelecer ser aprendida por aqueles que,
proporções entre pesos de diver- como os militares no campo de
sos materiais; fazer medidas trigo- batalha, “estando em tantos ou-
nométricas com a vista, e inúme- tros misteres ocupados e distraí-
ras outras operazioni que são ex- dos, não podem exercitar nestes
plicadas no manual de instruções aquela assídua paciência, que aí
que ensina o uso do instrumento. seria necessária” (idem, ibidem).
E, de fato, o que é mais relevante Mas leiamos também, por outro
para o nosso tema é justamente a lado, as seguintes palavras de Ga-
existência desse manual — talvez lileu:
um dos primeiros no gênero — e
as considerações que, nele, Gali- Lamento somente, be-
leu faz a seu respeito e a respeito nigno leitor, que, por mais
do instrumento. que eu tenha engenhado
Não é, pois, de pouca relevância em explicar as seguintes
que, neste manual de instruções, coisas com toda a clareza
Galileu se refira ao próprio ma- e facilidade possível, to-
nual e ao sentido de fazê-lo acom- davia, a quem as terá de
panhar o instrumento: só com isso extrair dos escritos, perma-
Galileu já nos dá indícios de que necerão envoltas em al-
em tal instrumento encarna-se um guma obscuridade, per-
certo saber — o qual não se li- dendo por isso muito da-
mita ao mero manuseio da peça quela graça que, ao vê-
particular, mas, como dito acima, las operar atualmente e ao
“insegna tutto quello che dalla geo- aprendê-las de viva voz, as
metria e dall’aritmetica [. . . ] si ri- torna maravilhosas: esta
ceve” . Eis o que promete, no pre- é, porém, uma daquelas
fácio do manual, a i discreti let- matérias que não supor-
tori: “poder, seja qual for a pes- tam ser descritas com cla-
soa, resolver em instantes as mais reza e facilidade e enten-
difíceis operações de aritmética; didas se, antes de viva voz
das frequentemente acontecem” não se as auscultam e no ato
(idem, ibidem). mesmo não se veem exerci-
Se, por um lado, o compasso tar. E esta teria sido po-
é um instrumento de cálculo, a derosa causa, que me te-
necessidade da presença de seu ria feito abster-me de im-
manual, por outro, diz respeito à primir esta obra...” (GA-
própria aquisição da geometria, LILEU, 1649, p. 370 —
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itálicos nossos). 3.2 - A Balança Hidrostática

Em La Bilancetta, Galileu (1986,


pp. 105-107) pretende resolver,
com exatidão, o famoso problema
da coroa de Hieron, que aqui des-
crevemos através das palavras de
Devemos, portanto, com tais pala-
Pierre Lucie:
vras reforçar a ideia de que a com-
preensão que Galileu tem de seu
Compasso Geométrico e Militar é Cerca de 250 a.c., Hie-
tal que, nem o instrumento pode ron, rei de Siracusa, en-
ser usado e atingir seus propósi- comendou uma coroa de
tos sem o manual e toda a geome- ouro a seu ourives. En-
tria — a ser ensinada — que ele tregue a coroa, Hieron
contém, nem o manual será sufici- desconfiou que o ourives
ente a quem não dispuser do ins- o tinha roubado, mistu-
trumento para vê-lo “operar atual- rando prata ao ouro. Cha-
mente”. A matemática, aqui, não mou então Arquimedes
vêm de fora. Muito pelo contrário: e o encarregou de apu-
existe de modo concreto como que rar a possível fraude. Ar-
nas inscrições das linhas feitas no quimedes, de fato, confir-
metal desse compasso; a geome- mou o roubo, mas o len-
tria aí presente não é a dos astrô- dário “Heureka!!” é pra-
nomos gregos instrumentalistas, ticamente tudo o que co-
mas sim a de uma tradição que, nhecemos do processo uti-
assim como se passa nos pitagóri- lizado pelo célebre ma-
cos, considera que os princípios temático para resolver o
da matemática eram princípios problema (LUCIE, 1986,
verdadeiros do comportamento p. 96).
das coisas. Nessa tradição insere-
se também Arquimedes, nominal-
mente citado por Galileu no ma- Nesse pequenino texto sobre a
nual do compasso como seu inspi- construção da balança hidrostá-
rador. E com tal referência a Ar- tica, Galileu afirma que, até seus
quimedes, passamos diretamente dias, não se sabia exatamente
ao contexto da tradição em que se como teria procedido Arquime-
inscreve aquele outro instrumento des para descobrir o furto do ou-
de Galileu: a balança hidrostática. rives e a quantidade exata de ouro
subtraída e substituída por prata.
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Galileu frisa que — a despeito des] haviam entendido de sua so-


da informação histórica muito di- lução do problema”. Era pre-
fundida de que Arquimedes te- ciso, antes, elaborar um instru-
ria posto a coroa na água depois mento3 . Contando com um ins-
de haver mergulhado separada- trumento, Galileu pôde acrescen-
mente ouro puro e prata pura, tar, em seu texto, à expressão “por
deduzindo, através das propor- meio da água”, a expressão “de
ções de água deslocada em cada modo rigoroso”.
caso, a composição da liga de que É conhecido de toda a tradição
a coroa se compunha — isto se- interpretativa focada na revolução
ria, no entanto, “coisa muito gros- científica dos séculos XVI e XVII
seira e longe da perfeição” se tiver- o texto de Aristóteles, na Ética a
mos em conta “as mui engenhosas Nicômaco, em que ele diz que “a
invenções” de Arquimedes (GA- precisão não deve ser procurada
LILEU, 1986, p. 105). Pierre Lu- igualmente em todas as discus-
cie mostra, em seu artigo sobre La sões, como não deve ser procu-
Bilancetta (LUCIE, 1986, p. 95), rada, por exemplo, na demiurgia”
que o paradigma arquimediano (ARISTÓTELES, 1948, 1094b e
permanece em Galileu como base ss). Ora, tomando a falta de ri-
para a geometrização de proble- gor e precisão do procedimento
mas físicos, de maneira que a refe- vulgarmente considerado o de Ar-
rência às “invenções engenhosas” quimedes no caso da coroa de Hi-
de Arquimedes, feita pelo próprio eron como sendo a principal mo-
Galileu, poderia ser um exem- tivação para a construção de sua
plo relevante da maneira especí- balança hidrostática, Galileu está
fica pela qual este paradigma ope- rompendo com essa tradição aris-
rava em seu pensamento: para totélica que separa poiésis (produ-
conseguir “a precisão requerida ção, saber fazer com que algo ve-
nas coisas matemáticas” (GALI- nha a ser) e epistéme (ciência, co-
LEU, 1986, p. 105) não bastaria, nhecimento do necessário). Des-
no caso, simplesmente “utilizar tarte, Galileu — como no caso do
a água” — que era “o pouco que compasso geométrico e militar —
[os contemporâneos de Arquime- sugerindo novamente que a exati-

3 Cf. Clavelin (1986 p. 39), onde se demonstra que, se é verdade que Galileu não dispunha de todos os conceitos
e pressupostos dos quais depende o método experimental moderno, não é menos verdade, porém, que nele há “um
método determinado — ou, se preferirmos, uma visão coerente e estável das condições que uma teoria ou modelo
explicativo devem satisfazer para serem considerados verdadeiros, intrinsecamente conformes à realidade”. De
nossa parte, pretendemos apenas propor que a construção do instrumento parece ser um dos pontos centrais desse
método.

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dão do procedimento depende de tical, para cima, igual ao peso do


um uso apropriado dos elementos líquido deslocado, de modo que o
materiais e de uma consequente peso do corpo imerso é igual ao
produção de instrumentos, mas seu peso no ar menos o peso, no
também, em contrapartida, de um ar, do volume de fluido que esse
conhecimento teórico, nos conta corpo deslocou. Galileu, assim,
que reviu “cuidadosamente os tra- nos propõe:
tados de Arquimedes” (GALILEU,
1986, p. 105), e, assim, adverte
suspendamos, então, um
que “o método [para resolver o
metal em uma excelente
problema] procede por meio de
balança e, no outro braço,
uma balança cuja construção e uso
um contrapeso de mesmo
serão expostos depois que se te-
peso no ar que o metal.
nha explicado o que é necessário
Se agora mergulharmos o
para entender o assunto” (idem su-
metal na água, deixando o
pra, itálicos nossos). E o que é ne-
contrapeso no ar, teremos
cessário saber é, primeiramente, o
de aproximar este último
Princípio de Arquimedes ou lei do
do fulcro [o ponto fixo en-
empuxo:
tre os braços da balança],
a fim de continuar equi-
um sólido mais pesado librando o metal (GALI-
que um fluido, quando LEU, 1986, p. 106).
posto nele, desce para o
fundo do fluido; e o só- Explica-se, também, que o peso
lido pesado no fluido será específico do metal será tantas ve-
mais leve que seu ver- zes maior que o da água deslocada
dadeiro peso [no ar] [de quantas vezes a distância inicial
uma quantidade igual ao] entre o contrapeso e o fulcro for
peso do fluido deslocado maior que essa distância no equi-
(ARQUIMEDES. Sobre os líbrio hidrostático (que é quando
corpos flutuantes, Livro I, aproximamos o contrapeso do ful-
proposição 7 apud LU- cro a fim de manter os braços da
CIE, 1986, p. 98 - itálico balança na horizontal). Trata-se
nosso). agora do chamado princípio da ala-
vanca, ou seja, nas palavras do
próprio Galileu em Le mechaniche:
Numa linguagem atual: todo
corpo mergulhado em um fluido
sofre a ação de um empuxo ver- pesos desiguais, suspen-
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sos em distâncias desi- “ser leve” não é uma qualidade do


guais, pesarão igualmente corpo tomado em si mesmo. Não
quando essas distâncias há, pois, aquilo que Arquimedes
estiverem [em relação ao chamava de “o verdadeiro peso”
fulcro] em proporção in- de um corpo. Ora, isso é o contrá-
versa à de seus pesos rio do que supunha a física aris-
(GALILEU. Le mechaniche. totélica, para a qual materiais in-
Opere, v. 2, 161, apud Lu- trinsecamente pesados, como se-
cie, 1986, p. 99). ria a terra, possuem seu lugar na-
tural embaixo, e por isso tendem
Desse modo, combinando a lei do a descer, enquanto materiais in-
empuxo e o princípio da alavanca, trinsecamente leves, como seria o
é possível, pois, calcular, a partir fogo, possuem seu lugar natural
das diversas posições do contra- em cima e por isso tendem sempre
peso nos diversos equilíbrios hi- a subir. O sistema aristotélico, ao
drostáticos, os pesos específicos, supor corpos naturalmente leves
em relação à água, do ouro, da ou pesados, pressupunha uma or-
prata, e da liga composta dos dois dem cósmica, com seus lugares fi-
na coroa, bem como a exata pro- xados “em cima” e “embaixo” , se-
porção desses primeiros nesta úl- parando regiões qualitativamente
tima. distintas no espaço. Assim, além
Algumas implicações desses da já comentada recusa galileana
dois princípios nos são particu- da epistemologia aristotélica, que
larmente sugestivas. A lei do em- separava ciência e demiurgia, epis-
puxo, como nota Lucie, “convence téme e poiésis, essa pequena ba-
Galileu de que não há corpos pe- lança hidrostática, através de um
sados em si ou corpos leves em problema que parecia ser mera-
si” (LUCIE, 1986, p. 98), mas mente técnico (a coroa de Hieron),
sim, dizendo em termos contem- permite que Galileu, a partir do
porâneos, corpos que, dispondo- sentido especulativo que ele ex-
se como corpos imersos ou como traiu do princípio de Arquimedes,
meios de imersão, encontram-se recuse, juntamente com a episte-
em diferentes relações de densi- mologia de Aristóteles, também
dade; relações estas que variam sua cosmologia, composta de dife-
conforme o caso, de modo que, rentes lugares naturais para obje-
mudada a relação com o meio re- tos feitos de diferentes materiais.
ferencial, um mesmo corpo pode Mas esse sentido especula-
“flutuar” ou “afundar”. Con- tivo do princípio de Arquimedes
sequentemente, “ser pesado” ou ajuda, além disso, a compreender

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melhor a própria epistemologia alguma sua qualidade intrínseca,


galileana. Com efeito, não se trata nem está em nós, como se fosse
de dizer que o “ser pesado” e o mera aparência subjetiva: o mo-
“ser leve” sejam considerados por vimento e a gravidade são reais
Galileu como qualidades secundá- e não fenomênicos, mas não são
rias, que são aspectos que parecem realidades absolutas. Isso mostra,
pertencer aos objetos mas são, na com efeito, que a separação entre
realidade, os efeitos que o objeto qualidades primárias matemati-
produz em um sujeito percipiente, camente apreensíveis e qualida-
como as cores, os odores, os sabo- des secundárias sensíveis não é
res, etc., que não estão nas pró- suficiente para atribuir a Galileu
prias coisas mais do que a dor ou uma ontologia de caráter platô-
a cócega estão na agulha que nos nico, que afirmaria o real como
fere ou na pluma que nos toca (Cf. essências absolutas, ocultas por
GALILEU, 2013). Entre as quali- trás das aparências. As qualida-
dades primárias de um corpo, isto des primárias nos parecem, an-
é, entre as coisas que são necessa- tes, algo que seria imanente ao
riamente pensadas ao ser conce- mundo justamente na medida em
bida uma substância corpórea em que existem no interior de um sis-
geral, encontra-se, por exemplo, tema de relações. Em linguagem
o “mover-se” e o “estar parado” anacrônica diríamos, talvez, que
(idem, ibidem), os quais sabemos, segundo as articulações entre a
por outro lado, que, para Gali- epistemologia e a ontologia de Ga-
leu, também não eram proprie- lileu, não conhecemos tais essên-
dades absolutas, mas estados que cias, mas sim estruturas:
se determinam num sistema de re-
lações4 . Também nos parece ser [Galileu] mantém-se den-
este o estatuto do pesado e do leve. tro da perspectiva rea-
No caso da gravidade dos corpos, lista, pois a estrutura do
assim como no estatuto do movi- universo é dada objetiva-
mento, temos algo que nem está mente e cabe ao homem
objetivamente na coisa tomada em apenas desvendar parte
si mesma e isoladamente, como dessa estrutura. Esse des-

4 Abstemo-nos de explicar a superação galileana da oposição ontológica afirmada por Aristóteles entre movi-
mento e repouso, bem como toda a concepção de Galileu sobre as condições de operatividade (mecânica e/ou
ótica) do movimento, pois julgamos que isso excederia demasiadamente nosso tema. Limitamo-nos a sugerir que
a retirada do movimento e da gravidade da condição de realidades isoladas mas, por outro lado, sua qualificação
como qualidades primárias, isto é, como propriedades reais, tende a indicar que a própria natureza, para Galileu,
é precisamente um sistema de relações: seu relativismo não é uma negação da realidade dos eventos naturais por
ele visados.

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vendamento se faz através mos também, ainda nesse regis-


de demonstrações neces- tro alegórico, que a própria con-
sárias cujo o protótipo é figuração de uma balança sugere,
precisamente a Geometria de modo privilegiado, a noção de
(NASCIMENTO, 1986, p. estrutura que empregamos acima
58, itálicos nossos). para indicar a concepção de co-
nhecimento envolvida nos instru-
Ao mostrar que “ser pesado” e mentos galileanos: é apenas na re-
“ser leve” é algo derivado de um lação entre dois objetos colocados
sistema de relações e, mais ainda, nos pratos da balança que tais ob-
ao mostrá-lo justamente produ- jetos se definem reciprocamente
zindo esse sistema sob a forma de quanto àquilo que se procura me-
um instrumento material real e dir, isto é, no caso, os pesos. Os
indicando a possibilidade de, com objetos não podem, pois, ser to-
ele, calcular tais relações, Galileu mados separadamente ou fora do
nos permite pensar os instrumen- instrumento capaz de coordená-
tos não como algo que o homem los: o instrumento, como esta-
usa como um reles meio de repre- mos tentando sugerir, deve ser,
sentar a natureza distante. Em vez pois, a própria existência mate-
de um sustentáculo matemático rial de uma lei ou princípio pelo
extrínseco, acoplado desde fora à qual a natureza age. Acrescen-
natureza, os instrumentos científi- tamos, ademais, que, etimologi-
cos galileanos parecem ser, antes, camente, tanto a palavra instru-
partes da natureza. mento quanto a palavra estrutura
Assim, aproveitando uma se- derivam do mesmo verbo, struo,
gunda consideração especulativa cujo sentido não é outro senão
dos princípios empregados na bi- o de: arranjar, dispor ordenada-
lancetta, poderíamos fazer um uso mente (e.g. as tropas militares
alegórico do princípio da alavanca ou as palavras numa frase), mas
para responder, por exemplo, a também construir, produzir, ou
Descartes, que o ponto fixo arqui- ainda arquitetar, maquinar, pla-
mediano procurado nas Medita- nejar. Ora, neste único verbo já
ções, o fundamento para a ciên- se conjugam a mutabilidade das
cia e que ele julgava encontrar ações e gerações e a estabilidade
apenas no cogito, Galileu o en- da consistência interna; o aspecto
contra na possibilidade de fixar, poiético da construção e o epistê-
sob a forma de um instrumento, mico da ordem e da inteligibili-
as relações matemáticas operan- dade.
tes no seio da natureza. Diría- Vale lembrarmos também, a tí-

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tulo de breve exemplo, algumas das coisas se não fosse feita essa
passagens dos Discorsi circunja- aplicação — a qual há de ser, por-
centes à demonstração do prin- tanto, coisa muito diferente da
cípio do movimento uniforme- aplicação instrumentalista que não
mente acelerado: depois que Sim- se comprometia com o valor de
plício, o aristotélico, diz que “teria verdade das teorias (Cf. NASCI-
sido oportuno apresentar neste lu- MENTO, 1996). E se nos dois ca-
gar alguma experiência...”, Salvi- sos — por exemplo, em Osiander
ati, o galileano, responde: e em Galileu — as teorias mesmas
podem ser de algum modo chama-
das de instrumentos, a profunda
Vós, como verdadeiro diferença entre suas concepções
cientista, fazeis pedido de conhecimento deve residir pre-
muito razoável, [. . .] e as- cisamente no que se pode conside-
sim convém nas ciências rar como instrumento nos dois ca-
que aplicam às conclusões sos: em Osiander trata-se de meros
naturais as demonstrações instrumentos de cálculo, em Gali-
matemáticas, [. . . e] confir- leu, trata-se de uma máquina teó-
mam com experiências sen- rica de conclusões verdadeiras, que
síveis os seus princípios que se prolonga em máquinas men-
são o fundamento de toda tais, tais como, no caso dos Dis-
a estrutura subsequente. corsi, o dispositivo do plano incli-
(GALILEU, 1988, p. 174 nado, mas também, como preten-
e ss - itálicos nossos). demos haver mostrado aqui, em
máquinas materiais, tais como a
E a própria teoria galileana — ex- bilancetta e o compasso geomé-
posta previamente sob a forma trico e militar.
de definições, axiomas, teoremas,
proposições etc. — é, então, des-
crita como uma “. . . imensa má- 3.3 - O Telescópio
quina de infinitas conclusões...”
(idem, ibidem). Ora, das citações Resta, portanto, que nos encami-
supra decorre que os princípios, nhemos ao telescópio. Tentar en-
que, por um lado, já haviam sido contrar, nesse instrumento par-
formulados de acordo com toda ticularmente, os traços da união
a parte teórica precedente da ter- entre especulação filosófica e pro-
ceira jornada dos Discorsi, seriam, dução técnica que viemos apon-
por outro lado, inconfirmáveis e tando nos demais, será algo bas-
virtualmente externos à natureza tante significativo, visto que, dife-
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rentemente do compasso e da ba- Há cerca de dez meses


lança, ligados diretamente à tra- chegou aos meus ouvi-
dição pitagórica e arquimediana, dos a notícia que certo
o telescópio foi construído de um belga tinha construído um
modo bastante peculiar, envol- pequeno telescópio por
vendo controvérsias desde a época meio do qual objetos vi-
mesma de Galileu. A controvér- síveis, embora muito dis-
sia histórica diz respeito ao fato tantes dos olhos do ob-
de que Galileu não foi o inventor servador, eram vistos cla-
da ideia do telescópio, tendo sa- ramente como se estives-
bido de sua existência por meio sem perto. Desse efeito,
de relatos de amigos numa via- verdadeiramente notável,
gem a Veneza, em 1609, mas ha- várias experiências foram
vendo, segundo alguns de seus relatadas, às quais algu-
contemporâneos, feito do telescó- mas pessoas davam cré-
pio um “filho” seu. Já uma ou- dito enquanto outras recu-
tra controvérsia, epistemológica, savam. Uns poucos dias
diz respeito à questão de saber mais tarde a notícia me foi
se Galileu produziu o telescópio confirmada [. . .] o que me
procedendo dentro dos cânones motivou a dedicar-me sin-
racionalistas, isto é, partindo de ceramente à investigação
premissas teóricas gerais e de- do meio pelo qual eu po-
las deduzindo necessariamente dia chegar à invenção de
consequências particulares, ou um instrumento similar,
valendo-se de um procedimento o que consegui pouco de-
eminentemente empírico, ou seja, pois baseando-me na dou-
por tentativa e erro. Nossa lei- trina das refrações (GA-
tura, que pretende mostrar, não a LILEU, Sidereus Nuncius,
perfeita conformidade da produ- apud ÉVORA, 1994, p. 37,
ção deste instrumento com as de- itálicos nossos).
mais, mas sim uma mesma com-
preensão geral sobre a relação en- Todavia, Fátima Évora (1994,
tre racionalidade e técnica, procu- Caps. 2 e 3) mostra-nos que —
rará justamente coordenar as duas a julgar, seja pelos procedimentos
controvérsias, a histórica e a epis- apresentados pelo próprio Gali-
temológica. leu, seja pelas teorias óticas a que
Em Sidereus Nuncius, Galileu Galileu poderia ter tido acesso —
escreve: a afirmação de que o instrumento
foi produzido com bases na dou-
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trina da refração deve ser tomada ambos? É para tentar responder


como deveras problemática5 . A a essas perguntas que atentamos
argumentação teórica minuciosa e às controvérsias históricas sobre a
a ampla investigação documental autoria do instrumento.
de Fátima Évora nos é completa- Respondendo em Il Saggiatore
mente persuasiva e sua conclusão à acusação de plágio feita por
se nos impõe de modo inelutável: Sarsi, Galileu escreve que, visto
que já avisara, no Sidereus Nun-
cius, ter sabido da existência do
A descoberta de Galileu
telescópio antecipadamente, res-
do telescópio nem foi obra
taria somente explicar que espécie
do acaso, nem simples re-
de auxílio podia lhe ter represen-
produção de um disposi-
tado esse conhecimento prévio.
tivo cuja as partes e dis-
Reconhecendo que sem essa in-
posições se conhecia pre-
formação talvez não houvesse se
viamente. Porém também
quer pensado no assunto e ten-
não foi feita a partir de
tado construir o aparelho, Galileu,
um raciocínio lógico de-
no entanto, adverte:
dutivo [. . .]. Galileu conse-
guiu o progresso graças a
tentativa e erro” (ÉVORA,
1994, p. 81). . . . que tal notícia tenha
facilitado invenção, não
creio; e digo mais, que en-
Resta-nos, porém, refletir um contrar a solução de um
pouco sobre o que poderiam signi- problema marcado e no-
ficar para nosso cientista-filósofo meado é obra de muito
essas investidas concretas e tate- maior engenho do que
antes que ele realizou — certa- aquela necessária para
mente sem seguir nenhum a pri- encontrar a [solução] de
ori, ou melhor, nenhum a priori um problema ainda não
particular sobre ótica e produção de pensado nem nomeado,
imagens através de lentes. O que se- pois neste caso pode haver
ria afinal isso que se encontra en- grandíssima influência do
tre o raciocínio lógico dedutivo e acaso, mas naquele é tudo
puro acaso, sem se confundir com obra do argumento (dis-

5 “. . . os estudos existentes no século XVI e começo do século XVII sobre a formação de imagens em lentes ou
sistemas de lentes não ofereciam bases para a construção do telescópio, com exceção, talvez, do Ad Vitellionem
Paralipomena, quibus Astronomia pars Optica Traditur, de Kepler (1604, Frankfurt), o qual Galileu, até outubro
de 1610, não havia conseguido ler” (ÉVORA, 1994, p. 43).

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corso) (GALILEU, Sidereus ideias, que julgamos encontrar no


Nuncius, apud ÉVORA, II Saggiatore, quando, no Side-
1994, p. 44-45 - itálicos reus Nuncius, Galileu dizia que,
nossos). dedicou-se sinceramente à inves-
tigação e que só o fez depois que a
notícia foi confirmada e não en-
O que temos aqui? Mais uma ale- quanto algumas pessoas davam
gação da qual devemos suspeitar? crédito é experiência mas outras
Talvez não. Afinal, o que Galileu não. Talvez nessa sinceridade algo
nos diz é que a certeza da existên- insuspeitado se encontre: não es-
cia do instrumento afasta o acaso tando as fontes de Galileu a in-
e torna a situação um problema ventar ficções fabulosas sobre um
para o engenho do cientista. Não maravilhoso instrumento, a exis-
era uma hipótese a ser testada tência do telescópio passa a ser,
empiricamente: era uma certeza pois, de direito, matéria da ciên-
que a construção do telescópio era cia; e o procedimento tateante, o
possível; afinal, ela era um fato, correr sucessivo das tentativas de
ela era real . . . e o que é real deve alguém que, no entanto, sabe com
poder ser demonstrado com base certeza que é realizável seu pro-
na ciência6 . Este seria o a priori de jeto, bem poderia constituir uma
Galileu, um a priori geral que nada das conotações da expressão dis-
tem de platônico, de idealista ou corso. Se a existência do telescó-
de solipsista, porque, muito pelo pio não era uma fantasia como os
contrário, diz respeito à inteligibi- eventos narrados nas obras dos li-
lidade dos eventos empíricos con- teratos, então a empreitada de Ga-
siderados em seu âmbito próprio. lileu para produzir o instrumento,
Não poderia ser essa uma ex- ainda que de modo tateante, era
plicação mais justa para com o tarefa a exigir-lhe engenho e argu-
ilustre filósofo e matemático do mento; e ao senhor Sarsi, que lhe
que a que supõe que estaria men- acusava de plágio, também nesse
tindo para garantir a legitimidade contexto Galileu poderia dizer: Sr.
científica do seu equipamento ao Sarsi, a coisa não é assim! Porque
dizer que fundava-se na doutrina um telescópio existia, tentativa e
da refração? Ora, já poderíamos, erro para encontrá-lo já não era
com efeito, perceber estas mesmas

6 Não se deve entender aqui o contrário do que já disséramos, a saber, que Galileu recusa o conhecimento de
essências: “O que é acessível ao conhecimento científico são os acidentes, as propriedades ou sintomas. Estes, à
medida que revelam o real, são os acidentes primários, isto é, o que pode ser tratado geometricamente” (NASCI-
MENTO, 1986, p. 57). É preciso simplesmente que não esqueçamos que estes acidentes são “acidentes primários e
reais” (Galileu, 2013, p. 13).

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vaguear inutilmente num escuro encarna-se no seu tatear e no ins-


labirinto. trumento assim encontrado: a ci-
ência não está fundada nos livros
escritos pelos homens nem no elu-
cubrar subjetivo, está fundada nas
Conclusão
coisas7 . Assim, é possível a um
cientista, “após haver cuidadosa-
(...) A filosofia está escrita
mente revisto o que Arquimedes
neste grandíssimo livro
demonstra em seus tratados” (GA-
que aí está aberto continu-
LILEU, 1986 p. 105) ir em direção
amente diante dos olhos
da natureza e produzir uma ba-
(isto é, o universo), mas
lança hidrostática; mas também,
não se pode entendê-lo se
em contrapartida, sabendo que
primeiro não se aprende
existe um telescópio, colocar-se a
a entender a língua e co-
produzi-lo, consciente de que está
nhecer os caracteres nos
lidando, na prática, com a dou-
quais está escrito. Ele
trina da refração — a ser escrita,
está escrito em língua ma-
talvez com mais perfeição do que,
temática, e os caracteres
no momento, podia sê-lo por suas
são triângulos, círculos e
mãos, num outro tratado pelas
outras figuras geométri-
mãos de um outro cientista.
cas, meios sem os quais é
Já se pode, portanto, compre-
humanamente impossível
ender quão significativa é esta
entender-lhe sequer uma
caracterização dos instrumentos
palavra; sem estes trata-
para a mudança na concepção ge-
se de um inútil vaguear
ral acerca da ciência. Por tudo
por um obscuro labirinto
que dissemos, parece não estar-
(. . .) (GALILEU, Il Saggia-
mos muito enganados se reco-
tore §6 apud MOSCHETTI,
nhecermos em tais instrumentos
2013, p. 56)
a síntese entre a instrumentação
Quando Galileu diz, na supraci- — que valoriza o trabalho em-
tada frase do parágrafo 6 de Il Sag- pírico e a tentativa de dar conta
giatore (Cf. MOSCHETTI, 2013), dos fenômenos particulares — e
que o universo está escrito em lín- a postura ativa do homem diante
gua matemática, revela que o logos da natureza, que valoriza o re-

7 Confira-se também, em Moschetti, 2013, pp. 92ss, especialmente o trecho: “A famosa frase de Galileu parece
enunciar um princípio não apenas metodológico mas também ontológico: assim deve ser a física porque a maté-
ria é ela mesma estruturada geometricamente”. Tal leitura confirma, por assim dizer, o que nós, aqui, estamos
apresentando quase como uma “revanche” moderna da ontologia pitagórica.

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torno ao próprio intelecto para en- se, aqueles experimentos descri-


contrar os princípios do conheci- tos nos livros de Galileu, a meros
mento. Os princípios da matemá- expedientes de pensamento. As-
tica são os princípios da natureza; sim, se, por um lado, não acei-
qualquer transcendência de estilo tamos completamente a tese de
platônico é aqui excluída. Koyré — de que Galileu não fez
Para salientar apenas uma das concretamente seus experimentos
implicações dessa investigação — por julgá-la, não como sendo
para a compreensão do pensa- falsa, mas como sendo difícil de
mento de Galileu e da própria ser demonstrada, por outro lado,
Revolução científica dos séculos queremos crer que mesmo que
XVI e XVII, cabe salientar que ela Galileu tenha efetivamente feito
incide diretamente na — já um experimentos, algo da concepção
tanto envelhecida — polêmica en- básica de Koyré — ao menos na-
tre Alexandre Koyré e Stillman quilo que concerne ao caráter es-
Drake, reportada e resumida por sencial da postura ativa da ciência
THUIILER (1994), no capítulo galileana — pode ser mantido se
cujo título enuncia a pergunta atentarmos à maneira pela qual
ao redor da qual polemizaram os os instrumentos são pensados por
dois primeiros comentadores: “fez Galileu. Se não é certo que expe-
Galileu experiências?”. A resposta rimentos existiram, não se pode
de Koyré é negativa, ao passo que dizer o mesmo dos instrumen-
a de Drake é afirmativa. Drake, tos. Assim, repetindo a questão
analisando, por exemplo, anota- que se encontra no título do ca-
ções manuscritas de Galileu, tenta pítulo de Thuillier — “fez Gali-
demonstrar que elas seriam me- leu experiências?” — poderemos
dições de dados concretos reco- arriscar uma conclusão dizendo:
lhidos em efetivos experimentos não sabemos, mas sabemos que,
(THUIILER, 1994, p. 130). Koyré, em sua oficina, ele construiu re-
sublinhando, entre outras coisas, almente inúmeros instrumentos,
a impossibilidade de medições su- como o compasso geométrico mi-
ficientemente precisas, bem como litar, a balança hidrostática e o te-
um possível fundo platônico para lescópio. E tais instrumentos são,
o estabelecimento das teorias ga- eles próprios, as concretizações
lileanas, procura provar que esse materiais de certas leis da natu-
estabelecimento em nada depen- reza, legíveis apenas matematica-
deu de experimentos concretos, mente. Não se tratam de arma-
os quais, portanto, poderiam não duras extrínsecas ou armadilhas
haver sequer existido, reduzindo- para capturar e aprisionar os da-

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CRISTIANO NOVAES DE REZENDE

dos observacionais em uma reles viços) sem potência para questio-


“regra de cálculo”, mas uma real nar o poder teológico-político que,
articulação inteligível no seio da por não haver sido superado mas
natureza sensível. tão somente recalcado, calamito-
Ora, não é pouco o que fica samente retorna com tal reedição
posto em jogo: trata-se, naquele do programa instrumentalista —
momento histórico de fundação é imperioso, portanto, diferenciar
de um novo modo de pensar, “de a despotencializadora instrumen-
uma determinada imagem da ci- talização da ciência, limitada a
ência, uma determinada maneira salvar as aparências, de sua de-
de interpretar o trabalho científico” sejável instrumentação. Esta úl-
(THUIILER, 1994, p. 117). Hoje, tima, com seus instrumentos si-
em 2019 — quando a política ci- multaneamente corporais e inte-
entífica brasileira exibe uma ima- lectuais, recoloca um brado que,
gem da ciência que a recoloca na pensávamos, havia sofrido sua ob-
servil posição de técnica solucio- solescência junto com as promes-
nadora de problemas práticos (es- sas não cumpridas do iluminismo,
pecialmente daqueles necessários mas que mostra hoje sua renovada
à indústria e ao mercado de ser- importância: Sapere Aude!

Referências

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Recebido: 04/07/2019
Aprovado: 09/11/2019
Publicado: 17/11/2019

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 17-41 41
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v7i2.28164

O Jogo das Trevas: Heidegger, Schelling e Espinosa*


[The Game of Darkness: Heidegger, Schelling and Spinoza]

Vittorio Morfino**

Resumo: Este artigo visa analisar, em primeiro lugar, a problemá-


tica do panteísmo relativa ao determinismo e à liberdade, tratada por
Schelling quando este se posiciona sobre o "erro de Espinosa". Em
segundo lugar, procuraremos entender, tanto no pensamento schel-
linguiano quanto na sua interpretação heideggeriana, a afirmação de
Heidegger de que haveria em Schelling um “tratado que abala a Ló-
gica de Hegel, antes mesmo dela aparecer”. Em terceiro lugar, se-
guindo o percurso da linhagem Descartes-Kant-Hegel na história da
metafísica, procuraremos elaborar a trajetória do problema da “liber-
dade e do caráter inteligível”, confrontando-a com a solução schellin-
guiana, a fim de analisa-la mediante o conflito da origem do mal e a
impossibilidade da liberdade. Finalmente, procuraremos responder
à acusação de “erro de Espinosa” e com isso propor a abertura para
interpretações ulteriores de Espinosa, principalmente no que diz res-
peito ao problema de liberdade humana.
Palavras-chave: Schelling, Heidegger, Kant, Espinosa, Liberdade, o
Mal.
Abstract: This article aims to analyze, first, the problem of pantheism
concerning determinism and freedom, treated by Schelling when he
defines a position concerning "Spinoza’s error". Secondly, we will seek
to understand, both in Schellingian thought and in his Heideggerian
interpretation, Heidegger’s statement that there would be in Schelling
a "treatise that shakes Hegel’s Logic even before it appears". Thirdly,
following the path of the Descartes-Kant-Hegel lineage in the history
of metaphysics, we will seek to elaborate the trajectory of the problem
of “freedom and intelligible character”, confronting the former one
with the Schellingian solution, in order to analyze it through the
conflict of the origin of evil and the impossibility of freedom. Finally,
we will endeavor to respond to the accusation concerning “Spinoza’s
error” and thereby propose the opening for further interpretations of
Spinoza, especially with regard to the problem of human freedom.
Keywords: Schelling, Heidegger, Kant, Spinoza, Freedom, Evilness.

* O presente artigo é uma versão para o público brasileiro de um texto originalmente publicado como capítulo
do livro Il tempo della moltitudine. Materialismo e politica prima e dopo Spinoza, Roma: Manifestolibri, 2005, pp.149-
172. A tradução do italiano foi realizada por Daniel Santos Silva [notação de tradutor identificada como “Nota
DSS”], a tradução das citações e filósofos alemães foram feitas por Fabio Nolasco [notação de tradutor identificada
como “Nota FN”], revisão geral feita por Ericka Marie Itokazu.
** Professor da Università degli Studi di Milano-Bicocca. Doutor em Ciência Política pela Université de Paris VIII
(Vincennes - Saint-Denis). E-mail: vittorio.morfino@unimib.it. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4512-9759.

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ISSN: 2317-9570
VITTORIO MORFINO

(...) uma paixão é para nós como um caráter temporário


e diferente, que substitui o outro e elimina os signos,
até então invariáveis, pelos quais ele se exprimia.
(Marcel Proust, Du côté de chez Swann)

Schelling na história da metafí- e naufrágio do idealismo alemão


sica ou, ainda, apenas colher dela
seu sentido no quadro da histó-
ria da metafísica, tentarei inter-
Em 1936, quando Heidegger in- rogar o texto nas suas margens,
troduz aos estudantes a obra de lá onde Heidegger desenha rela-
Schelling nas lições dedicadas às ções de oposição ou de continui-
Investigações filosóficas sobre a es- dade com algumas figuras funda-
sência da liberdade humana, ele mentais do pensamento moderno:
apresenta-a nestes termos: “(...) Espinosa, Kant, Hegel. E, talvez, é
é o que de maior fez Schelling desses acenos marginais que será
e, ao mesmo tempo, uma das possível aceder à compreensão da-
obras mais profundas da filoso- quilo que está em jogo na inter-
fia alemã e, portanto, da filosofia pretação heideggeriana de Schel-
ocidental”1 . Não seria este, pois, ling.
um tratado que tem em mira uma 1) Espinosa. A proximidade de
questão particular, como havia Schelling com respeito à filosofia
pensado Hegel, mas sim uma obra espinosana foi sublinhada por ele
filosófica fundamental dedicada mesmo (na célebre carta a Hegel
não à questão do livre-arbítrio do de 1795 em que declara "ich bin
homem, mas à liberdade do Ser indessen Spinozist geworden!"3 ),
“ao qual o homem tem de ser re- por escritos polêmicos (primeiro
conduzido para que se torne ver- entre todos, como não, o de Jacobi)
dadeiramente homem”2 . Entre- e por uma ininterrupta série de ar-
tanto, em vez de restituir o con- tigos e ensaios ao longo de todo o
junto da interpretação heidegge- Novecentos. A afirmação de Hei-
riana de Schelling como cume

1 HEIDEGGER, M. Schellings Abhandlung über das Wesen der menschlichen Freiheit (1809), hrsg. von H. Feick,
Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1971, p.2. [∗ As traduções de Heidegger foram feitas a partir do italiano por Da-
niel Santos, e revisadas em cotejo com o alemão por Fabio Mascarenhas Nolasco, a não ser quando especialmente
indicado. Nota FN]
2 Ibidem, p. 11. Acrescenta Heidegger: "Note-se: não a liberdade como propriedade (Eigenschaft) do homem, e
sim o homem como propriedade (Eigentum) da liberdade” (Ibidem).
3 Carta de Schelling a Hegel, em 4 de fevereiro de 1795, em Briefe von und an Hegel, Bd. I, hrsg. von J. HOFF-
MEISTER, Hambruf, Meiner, 1952, p. 22.

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ISSN: 2317-9570
O JOGO DAS TREVAS: HEIDEGGER, SCHELLING E ESPINOSA

degger tem então a força de um 2) Kant. A relação Kant-


tiro de canhão para o senso co- Schelling vem caracterizada por
mum filosófico: Heidegger em termos de con-
O fato que a filosofia de tinuidade/aprofundamento. Se
Schelling tenha sido to- idealismo em sentido amplo sig-
mada por espinosismo re- nifica "interpretação da essên-
cai naquela história curi- cia do Ser como ‘ideia’, como
osa de malentendidos que ser-representado pelo ente em
todos os filósofos sofrem geral”5 , para entender a linha
da parte de seus contem- da metafísica moderna Descartes-
porâneos. Se há um sis- Leibniz, somente com Kant o eu
tema que Schelling com- representativo ele atinge sua es-
bateu de modo radical sência, a liberdade, abrindo cami-
[von Grund aus bekämpfte], nho ao idealismo entendido em
é propriamente aquele de sentido histórico6 :
Espinosa. E se houve um
pensador que reconheceu Kant, sobre a via que o
o verdadeiro erro de Espi- leva da Crítica da razão
nosa, este é Schelling.4 pura à Crítica da razão
prática, reconhece todavia
Duas indicações fundamentais: 1) que a essência autêntica
não somente Schelling não é es- do eu não é o eu penso, mas
pinosista, mas pelo contrário, se o eu ajo; dou-me a mim
se quer ler Schelling de modo cor- mesmo a lei trazendo-a
reto, deve-se colher na sua filo- do fundamento da essên-
sofia esta oposição radical ao sis- cia, eu sou livre. Nesse
tema espinosano que, por assim ser-livre, o eu está verda-
dizer, o atravessa; 2) no sistema deiramente consigo, não
espinosano existe, segundo Hei- distante de si, mas ver-
degger, um erro fundamental que dadeiramente em si. O
Schelling especificou da melhor eu como eu represento,
forma. a ideia, vem então con-

4 HEIDEGGER, M. Schellings Abhandlung über das Wesen der menschlichen Freiheit (1809), FEICK, H. (org.),
Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1971; tr. it. MAZZARELLA, E. e TATASCIORE, C. (orgs.), Nápoles: Guida, 1998,
p. 41.
5 Ibidem, p. 110.
6 “O idealismo como sistema foi fundado pela Doutrina da Ciência de Fichte, completado de maneira essencial
pela filosofia da natureza de Schelling, elevado a um nível superior pelo seu Sistema do idealismo transcenden-
tal, consumado por seu Sistema da identidade e fundado propriamente num movimento conclusivo apenas pela
Fenomenologia do espírito, de Hegel”, ibidem, p.109.

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VITTORIO MORFINO

cebido a partir da liber- fira ao amigo de um tempo ou


dade. O idealismo como a seus maus divulgadores, como
interpretação do Ser en- lhe assegura em uma carta, certo
tende então o ser-em-si do é que esse juízo tem a força de
ente como ser-livre; o ide- uma sentença de condenação que
alismo é dentro de si idea- transforma a filosofia schellin-
lismo da liberdade.7 guiana em um momento do pro-
cesso histórico-filosófico que de-
veria conduzir ao idealismo ab-
Enquanto partícipe do idealismo,
soluto de Hegel. Que Schelling
Schelling é, segundo Heidegger,
continue a viver e a escrever após
profundamente devedor de Kant
o florir daquele botão tardio de
pelo conceito de liberdade como
Suábia é uma pura contingência
“subsistência própria e autodeter-
sem significado algum do ponto
minação na própria lei essencial”
de vista da weltgeschichtlich. Hei-
(Eigenständigkeit und Selbstbestim-
degger distancia-se precisamente
mung im eigenen Wesengesetz8 ), ao
de uma perspectiva de tal gênero.
exceder esse movimento de pen-
O simples movimento de dedicar
samento, ele aprofunda o conceito
um curso à única obra publicada
de Kant mudando sua filosofia de
por Schelling em vida, depois do
terreno: “o idealismo alcançou de
surgimento da Fenomenologia (se
fato o conceito formal da liber-
são excluídas obras de caráter po-
dade (...) mas ainda não compre-
lêmico), é suficiente para mos-
endeu o fato [Tatsache] da liber-
trar que existe um pensamento de
dade humana na sua facticidade
Schelling para além de Hegel, ou
[Tatsächlichkeit]”9 .
seja, para além da filosofia schel-
3) Hegel. A perspectiva a par-
linguiana como posição subordi-
tir da qual o senso comum filo-
nada àquela do saber absoluto.
sófico considera a relação Hegel-
Longe porém de limitar-se a uma
Schelling foi imposta pelo célebre
valorização somente implícita do
movimento teórico do Prefácio da
pensamento de Schelling, Heideg-
Fenomenologia do espírito: o abso-
ger afirma explicitamente a força
luto de Schelling é "a noite em que
desse pensamento próprio em re-
’todos os gatos são pardos’, como
lação àquele de Hegel:
se costuma dizer"10 . Quer se re-

7 Ibidem, p. 111.
8 Ibidem, p. 109.
9 Ibidem.
10 HEGEL, G.W.F. Phänomenologie des Geistes, in GW, Bd. 9, hrsg. von W. Bonsiepen - R. Heede, Hamburg:
Meiner, 1980, p. 17 [Nota FN: trad. em português de Paulo Meneses, Parte I, Petrópolis, Vozes, 1992, p. 29].

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ISSN: 2317-9570
O JOGO DAS TREVAS: HEIDEGGER, SCHELLING E ESPINOSA

mente as coordenadas através das


quais Heidegger nos permite si-
Quando se cita o tratado
tuar o pensamento de Schelling na
schellinguiano sobre a li-
história da metafísica moderna:
berdade apenas ocasional-
Schelling refuta Espinosa, apro-
mente, a fim de assim do-
funda Kant, faz vacilar Hegel. Re-
cumentar uma certa vi-
tomaremos analiticamente esses
sada de Schelling sobre o
pontos, contudo em ordem in-
mal e a liberdade, não se
versa.
tem desse tratado conceito
algum. Torna-se agora
também visível em que
medida a avaliação de He- O tratado sobre a liberdade
gel sobre esse tratado, em-
As Investigações12 schellinguianas
bora reconhecedora, é fa-
partem da polêmica com algumas
lha: trata-se apenas de
das célebres teses de Jacobi pre-
uma questão particular!
sentes em Sobre a doutrina de Es-
O tratado que abala [ers-
pinosa em cartas ao Senhor Moses
chüttert] a Lógica de Hegel
Mendelssohn nas quais se conec-
antes mesmo dela apare-
tavam de modo estreito raciona-
cer!11
lismo, panteísmo e fatalismo (bem
resumida na célebre frase de Les-
Não apenas, pois o pensamento sing: “não há outra filosofia senão
de Schelling não desvanece em a de Espinosa”13 ). Numa deta-
frente ao surgir do pensamento lhada análise dos diferentes sen-
hegeliano, mas põe em questão tidos que se pode atribuir ao con-
ante-litteram os fundamentos de ceito de panteísmo, Schelling de-
seu sistema (erschüttern significa dica a primeira parte de sua obra
abalar, fazer tremer, mas também para mostrar como, em realidade,
romper), a grande lógica, lá onde do panteísmo não segue necessa-
os pensamentos de Deus são reco- riamente a negação da liberdade.
lhidos antes de tornar-se mundo. Ao contrário, se o compreende-
Antes de aproximarmo-nos do mos corretamente, o panteísmo
conteúdo verdadeiro e próprio implica liberdade:
do tratado, reassumamos breve-

11 HEIDEGGER, M. Schellings Abhandlung, op. cit. p. 117.


12 SCHELLING, F. W. J. Philosophische Untersuchungen über das Wesen der menschlichen Freiheit und die dammit
zusammenhängenden Gegenstände, in SW, Bd. 4, pp. 238-239.
13 JACOBI, F.H. Über die Lehre des Spinoza, hrsg. von Hammacher et alii, Hamburg: Meiner, 2000, p. 23.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 43-69 47
ISSN: 2317-9570
VITTORIO MORFINO

Se já não fosse vivente qual emanou, portanto


[por si] aquilo que é com- nada próprio, autosubsis-
preendido em outro, en- tente. A sequência das
tão haveria uma compre- coisas a partir de Deus
ensibilidade sem compre- é uma automanifestação
endido, i.e., nada seria de Deus. Deus, contudo,
compreendido. Um ponto pode se manifestar a si
de vista muito mais alto apenas naquilo que lhe é
é assegurado pela consi- semelhante, em essências
deração da própria essên- livres que agem a partir
cia divina, cuja ideia con- de si próprias; para cujo
tradiria completamente ser não há nenhum outro
uma sequência que não fundamento senão Deus,
é produção, i.e., o pôr as quais, porém, são tal
de um autossubsistente. como Deus é. Ele fala e
Deus não é um Deus dos aí estão elas. Mesmo se
mortos, mas dos viven- fossem todos os seres cri-
tes. É incompreensível ados apenas pensamentos
como a essência comple- do íntimo divino, já por
tamente perfeita se apra- isso haveriam de ser vi-
zeria mesmo que em face vos.14
da mais completa das má-
quinas. Como quer que Assim, o panteísmo não implica,
se queira pensar o tipo de maneira alguma, conclusões
de sequência das essên- espinosistas, como considerava
cias a partir de Deus, Jacobi, mas pelo contrário, se-
ela nunca pode ser uma gundo Schelling, só internamente
sequência mecânica, de ao panteísmo é possível pensar a
modo algum um mero efe- liberdade: “imanência em Deus
tuar ou colocar em que e liberdade contradizem-se tão
o efetuado não é nada pouco que unicamente o livre, e
por si próprio; tampouco na medida em que é livre, é em
uma emanação em que Deus; o não-livre, e na medida
o que emana permaneça em que não é livre, [é] necessa-
o mesmo que aquele do riamente fora de Deus”15 .

14 SCHELLING, F.W.J. Philosophische Untersuchungen über das Wesen der menschlichen Freiheit und die damit zu-
sammenhängenden Gegenstäande, in: Sämtliche Werke (SW), vol 4, pp 238-239. [Nota FN: as traduções para o
português a seguir foram feitas diretamente do alemão por Fábio Nolasco]
15 Ibidem, p. 239.

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ISSN: 2317-9570
O JOGO DAS TREVAS: HEIDEGGER, SCHELLING E ESPINOSA

Uma vez estabelecido que liber- salvar Deus, a razão e a liberdade


dade e sistema podem conviver, no seu panteísmo, encontra-se em
Schelling enfrenta a questão fun- uma distinção que ele pôs na fi-
damental, qual seja: o problema losofia da natureza: “a filosofia da
da liberdade de que o idealismo natureza do nosso tempo estabele-
teria fornecido apenas um con- ceu na ciência, em primeiro lugar,
ceito formal (forma no sentido a diferenciação entre a essência,
daquilo que determina a essên- enquanto existe, e a essência, en-
cia, anota Heidegger), mas não quanto é mero fundamento [blos
vivente, que residiria em uma Grund] de existência”19 . Por essa
“faculdade do bem e do mal” distinção entre existência e funda-
(Vermögen des Guten und des Bö- mento, Schelling chegará a expli-
sen)16 . Aqui, contudo, um novo car o mal.
problema para o panteísmo, já que Deus deve ter em si mesmo o
“ou se concede um mal efetivo, e fundamento de sua existência, e
assim é inevitável implicar o mal esse fundamento, se se quer torná-
na substância infinita ou na pró- lo humanamente compreensível,
pria vontade originária, e com isso deve ser pensado como o desejo
o conceito de uma essência suma- que o eterno experimenta ao gerar
mente perfeita é completamente a si próprio, um querer no qual
destruído; ou é preciso que de al- não há intelecto, mas um que-
guma maneira a realidade do mal rer do intelecto (genitivo objetivo),
seja negada, com o que, no en- presságio do intelecto. Esse desejo
tanto, o conceito real da liberdade foi desde muito tempo suplantado
ao mesmo tempo desaparece”17 . pelo ser mais alto, surgido dele, e
Perde-se, pois, ou Deus ou a li- todavia, embora não perceptível,
berdade – ao menos se não nos é concebível pelo pensamento:
abandonamos à teoria dos dois
princípios (que Schelling chama,
no tratado, de dualismo) e, neste Segundo o ato eterno
caso perde-se entretanto a razão da automanifestação, no
(“o dualismo ... é apenas um sis- mundo tal como o vi-
tema do autodilaceramento e de- samos agora, tudo é re-
sespero da razão”18 ). A solução gra, ordem e forma; mas
schellinguiana, pela qual procura no fundo subjaz sempre

16 Ibidem, p. 244.
17 Ibidem, p. 245.
18 Ibidem, p. 246.
19 Ibidem, p. 249.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 43-69 49
ISSN: 2317-9570
VITTORIO MORFINO

ainda o sem-regra [Regel- à criativiadade filosófica de Schel-


lose], como se ele pudesse ling e à ironia de Schopenhauer
irromper mais uma vez, que diante de um “relatório de-
e em lugar nenhum pa- talhado sobre um Deus do qual o
rece que a ordenação e senhor autor dá a entender pos-
a forma seriam o origi- suir conhecimento íntimo, posto
nário, mas que um sem- que nos descreve até mesmo o seu
regra inicial teria sido or- surgimento”, deplora o fato de
denado. Isso é nas coisas a que “ele não gaste uma só palavra
base inapreensível da rea- para mencionar como teria então
lidade, o resto que nunca alcançado tal conhecimento”21 .
se esvai, aquilo que não Em tal contexto, talvez seja mais
se deixa dissolver no en- interessante tomá-la como pura
tendimento mesmo com estratégia, verdadeira e própria
o maior esforço, mas que luta filosófica para salvar a razão,
permanece eternamente Deus e liberdade22 .
no fundo [im Grunde]. Ora, em cada ser da natureza,
Dessa ausência de enten- em cada graduação sua, estão pre-
dimento nasceu, em sen- sentes os dois princípios, mas ape-
tido estrito, o entendi- nas no homem de forma plena:
mento. Sem essa escuri- “no ser humano está o poder in-
dão antecedente não há teiro do princípio tenebroso e
qualquer realidade da cri- também nele, simultaneamente,
atura; a treva é seu neces- toda a força da luz. Nele está o
sário legado.20 mais profundo abismo e o mais
alto céu (der tiefste Abgrund und
der höcheste Himmel), ou ambos
A partir, pois, da distinção entre
os centros” 23 . O mal então não
fundamento e existência em Deus,
pode ser compreendido como ma-
Schelling desencadeia o processo
lum metaphysicum, como limita-
através do qual Deus mesmo se
ção (ou seja, como privação), mas
gera, gerando a natureza e a his-
como positiva perversão dos dois
tória. Frente a essa verdadeira
princípios:
teo/cosmo-gonia, combateu-se
entre uma atitude de admiração

20 Ibidem, p. 251-252.
21 SCHOPENHAUER, A. Preisschrift über die Freiheit des Willens, in Werke (W), vol 4, p. 84.
22 “Quiçá derradeiramente, e pos isso com extrema fúria, Schelling luta para ganhar a batalha da razão.” (G.
ALBIAC, La sinagoga vacía, Madrid, Ediciones Hiperión, 1987, p. 337.)
23 SCHELLING, F.W.J. Philosophische Untersuchungen cit., p. 255.

50 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 43-69
ISSN: 2317-9570
O JOGO DAS TREVAS: HEIDEGGER, SCHELLING E ESPINOSA

Pois já a simples ponde- criatura, a fim de que, quando sur-


ração de que o ser hu- gir o espírito como a vontade de
mano, a mais perfeita de amor, este encontre algo que lhe
todas as criaturas visíveis, resista, no qual possa se efetivar”
25
é a única capaz do mal, (e isso possa ser apreendido, se-
mostra que o fundamento gundo Schelling, no irracional e
disso não poderia de ma- no acaso, que se encontra conec-
neira alguma dever-se à tado com o necessário, especial-
falta ou privação. O diabo, mente nos seres orgânicos, signo
segundo a visada cristã, de uma "individualidade ativa"26 ,
não era a mais limitada operando neles). Sobretudo, no
das criaturas, senão que fazer da individualidade mesma,
muito mais a mais ilimi- o mal consiste no perverter a re-
tada. A imperfeição no lação entre os dois princípios, em
sentido metafísico geral vez de base e órgão da espiritua-
não é o caráter usual do lidade, um princípio “dominante
mal, posto que ele fre- e vontade-total (...), e em contra-
quentemente se mostra partida, do espiritual em si um
unificado a uma excelên- meio (...)” 27 . Uma perversão desse
cia das forças singulares, gênero é possível somente no ho-
as quais com muito menor mem, ou seja, no reino do espírito,
frequência acompanham da história, enquanto no animal o
o bem.24 vínculo entre os dois princípios
é determinado e não passível de
perversão (o animal não é, assim,
Schelling explica pois o mal pelo capaz de mal, o ser capaz do mal é
fundamento, o qual não está fora propriamente aquilo que constitui
de Deus, mas é em Deus mesmo. a essência do homem).
Mas o mal não é o fundamento, já Trata-se de compreender, nesse
que, contrariamente, “a vontade quadro, em que sentido a liber-
do fundamento já na primeira cri- dade consiste em uma faculdade
ação coexcita a vontade própria da do bem e do mal. Schelling re-

24 Ibidem, p. 260-261.
25 Ibidem, p. 267-268. A propósito, escreve Parayson: “A impossibilidade de separar a liberdade humana da
liberdade divina implica que o mal, posto que é o resultado da liberdade humana, e dela apenas, tem uma prehis-
tória sobrehumana, um fundo metafísico, um pressuposto [antefatto] escuro e abissal. Isso tem a sua origem remota
no fundamento obscuro da essência divina, que o próprio Deus supera e vence no evento portentoso do seu devir,
e a sua causa próxima e imediata na liberdade humana.” (Introduzione a F.W.J. Schelling, Scritti sulla filosofia della
religione, la libertà, op. cit., p. 15).
26 Ibidem, p. 268.
27 Ibidem, p. 281.

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cusa de modo preciso tanto a con- pria essência;


cepção da liberdade como liberum - o mal como perversão da re-
arbitrium indifferentiae quanto a lação entre os dois princípios co-
concepção determinista ou, como originários em Deus.
ele a chama, pré-determinista:
“em ambas é igualmente desco- Estamos agora em condições
nhecida aquela necessidade supe- para retornar ao texto de Hei-
rior, (...) necessidade que brota da degger e procurar compreender
essência do próprio agente”28 . A melhor o sentido dessa relação
liberdade se identifica, pois, com de continuidade e de oposição
essa mais alta necessidade, que que ele estabeleceu com Espinosa,
coincide com a ação que segue da Kant, Hegel.
própria essência. O problema se
desloca então para a liberdade da
essência. E eis a resposta schel-
linguiana: “o ser humano é na O princípio das trevas e a trans-
criação originária (...) uma es- parência do conceito
sência indecisa, (...) mas ele pró-
prio pode decidir-se. No entanto, Assinalamos para o fato de que
essa decisão não pode ocorrer no Heidegger põe em discussão a re-
tempo”29 . O homem é, pois, livre construção hegeliana da história
para escolher o bem e o mal não do idealismo na qual Schelling
no tempo, mas na eternidade, an- não seria senão um momento ne-
tes que o tempo seja; escolhe sua cessário (a reequilibrar o subjeti-
essência no eterno e dessa escolha vismo fichteano) mas parcial e su-
seguem necessariamente todas as bordinado ao idealismo absoluto.
suas ações no tempo: o agir do Em realidade, Schelling, longe de
homem, por assim dizer, não se ser um momento do desenvolvi-
torna, mas é por natureza eterno. mento em direção ao saber abso-
Para retomar o principal do tra- luto, é o pensador que “empurra
tado, eis os dois movimentos teó- o idealismo alemão desde o seu
ricos fundamentais: interior para fora e além de sua
própria posição fundamental”30 .
Aqui, o que está em jogo é a rela-
- a liberdade como autodeter- ção com Hegel, como mostra esta
minação intemporal da sua pró- exclamação de Heidegger: “o tra-

28 Ibidem, p. 275.
29 Ibidem, p. 277.
30 HEIDEGGER, M. Schellings Abhandlung, op.cit., p. 4.

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O JOGO DAS TREVAS: HEIDEGGER, SCHELLING E ESPINOSA

tado que abala a Lógica de Hegel o acaso) e continuamente a supera


antes mesmo dela aparecer!” dando-lhe forma:
Em que sentido o tratado de
Schelling abala a Lógica? A ló-
A identidade da ideia con-
gica de Hegel é a completude da
sigo mesma – escreve He-
metafísica moderna, daquele mo-
gel – é um com o pro-
vimento filosófico posto em ato
cesso; o pensamento que
pela primeira vez por Descartes,
liberta a efetividade da
para quem a medida do ser está
aparência [Schein] da al-
no pensamento, no sujeito. A ló-
terabilidade sem finali-
gica é a ciência da ideia não mais
dade e a transfigura [ver-
entendida como o conteúdo men-
klärt] em ideia, não tem de
tal cartesiano, mas como cora-
representar essa verdade
ção mesmo da totalidade, como
da efetividade como o re-
aquele processo de pensamento
pouso morto, como uma
que no seu fazer-se institui ao
mera imagem, fraca, sem
mesmo tempo as estruturas fun-
impulso e movimento,
damentais do ser da natureza e da
como um gênio ou um nú-
história. Costuma-se citar a desca-
mero ou um pensamento
rada imagem hegeliana segundo a
abstrato; a ideia, em vir-
qual a lógica seria “a apresentação
tude da liberdade que o
(Darstellung) de Deus, tal como ele
conceito alcança nela, tem
é em sua essência eterna antes da
também a oposição mais
criação da natureza e de um es-
dura dentro de si; seu re-
pírito finito” 31 . Aqui é possível
pouso consiste na segu-
compreender, naturalmente, sob
rança e na certeza com as
a condição de renunciar a toda
quais ela eternamente a
transcendência de Deus e a toda
gera e eternamente a su-
anterioridade entendida em sen-
pera e, nela, junta-se con-
tido temporal. Não se pode, de
sigo mesma.32
fato, separar a ideia do processo
pelo qual ela continuamente põe
diante de si uma alteridade (o ou- Em que sentido, então, o Schelling
tro do pensamento, do conceito, do tratado abala a lógica de Hegel?
ou seja, o acidental, o contingente, Enquanto, em Hegel, Deus é o lu-

31 HEGEL, G.W.F. Wissenschaft der Logik, in GW, Bd. 11, hrsg. Von F. Hogemann – W. Jaescke, p. 21. [Nota FN:
tradução portuguesa a cargo de Ch. Iber, F. Orsini, M. Miranda, vol. 1, Petrópolis-Bragança Paulista, Vozes, 2016,
p. 52]
32 Ibidem, Bd. 12, p. 177, tr. Br. citada, p. 242 (grifos do autor)

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gar das puras estruturas lógicas recíproca integral [seja]


do ser que encontram a opacidade completamente atualizá-
da contingência e da acidentali- vel, no sentido de uma sua
dade no fazer-se mundo, mas so- translucidez sem resíduo,
mente no caminho para a trans- para o pensamento hu-
parência do espírito (isto é, de mano sub specie do traba-
um Deus que enfim se sabe como lho filosófico do espírito.33
tal), em Schelling, a luz do pensa-
mento é em Deus precedida, em
um sentido intemporal, por um Em substância, Schelling faria va-
princípio tenebroso que a deseja e cilar a concepção hegeliana da li-
ao mesmo tempo a individualiza, berdade como processo histórico
e assim não é de modo algum a ela de autoapropriação da totalidade
redutível. Trata-se daquele con- – liberdade que, nessa ótica, não
ceito que Heidegger denomina de pode senão ser coletiva, inserida
Seynsfuge, encaixe do ser, articula- nas instituições políticas.
ção do ser. Como escreve Eugenio Em Schelling, a impossível
Mazzarela, transparência imposta pela Seyns-
fuge mostra o limite do conceito
o fundamental do tratado idealista de liberdade como au-
schellinguiano de 1809 todeterminação a partir de uma
consiste em ter levado a essência própria: a liberdade vi-
problemática da dialética vente necessita de uma definição
especulativa do idealismo mais profunda, a liberdade vi-
sobre um terreno, a li- vente é faculdade do bem e do
berdade, de onde ‘salta’ a mal. Schelling faria assim vacilar
solução integralmente ló- o inteiro sistema hegeliano pen-
gica do nexo ontológico, a sando a liberdade como poten-
reinvindicação de que no cialidade de transgressão contra
‘conceito’ o ser e o pen- Deus: o mal não se cura sem ci-
sar se convertem integral- catrizes, como na Fenomenologia
mente e que a participa- hegeliana34 , mas é o sintoma da
ção nessa compreensão existência do conflito no ser di-

33 MAZZABELLA, E. Presentazione a M. Heidegger, Schelling, op.cit., p. 31.


34 “As feridas do espírito curam sem deixar cicatrizes. O fato não é o imperecível, mas é reabsorvido pelo espí-
rito dentro de si; o que desvanece imediatamente é o lado da singularidade presente no fato – seja como intenção,
seja como negatividade e limitação aí-essente do fato.” (HEGEL, G.W.F. Phänomenologie des Geistes, op.cit., p. 360)
[Nota FN: trad. brasileira, op.cit., p. 444]
35 Sobre o mal físico e o mal moral cf. MOISO, F. Vita natura libertà. Schelling (1795-1809), Milão: Mursia, 1990,
pp. 294-335.

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O JOGO DAS TREVAS: HEIDEGGER, SCHELLING E ESPINOSA

vino mesmo35 . tempo, foi, no entanto,


criado no começo da cri-
ação (o centro). O ato
mediante o qual sua vida
A liberdade e o caráter inteligí-
é determinada no tempo
vel
não pertence ele mesmo
No percurso da metafísica mo- ao tempo, mas à eterni-
derna que conduz de Descartes a dade: ele não antecede à
Schelling, sem dúvida, em Kant vida também segundo o
está o nó fundamental: é Kant, de tempo, mas decorre atra-
fato, que – segundo Heidegger – vés do tempo (inapreen-
formula o conceito formal de li- dido por ele) como um
berdade como “autossubsistência ato eterno segundo a na-
como subsistência própria na pró- tureza. Mediante esse ato
pria lei essencial” 36 . Há um evi- a vida do ser humano al-
dente débito no tratado sobre a li- cança até ao começo da
berdade nos confrontos de Kant criação; por isso ele, me-
que todavia Schelling não su- diante tal ato e mesmo
blinha de modo suficientemente fora do criado, é livre e ele
claro e que mesmo Heidegger, em próprio começo eterno.
comentários, não contribui para Embora essa ideia possa
iluminar. Escreve Schelling: ao modo comum de pen-
sar parecer tão incompre-
ensível, em cada ser hu-
O ser humano é na cria- mano, porém, há um sen-
ção originária (...) uma es- timento concordante com
sência indecisa, (...) mas isso [Schelling se refere ao
ele próprio pode decidir- sentimento de responsabi-
se. No entanto, essa lidade que sentimos pelas
decisão não pode ocor- nossas ações; V.M.], como
rer no tempo; ela ocorre se ele já tivesse sido o que
fora de todo tempo e, é desde toda eternidade,
portanto, coincide com e de modo algum apenas
a primeira criação (em- veio a ser no tempo. Por
bora enquanto um ato di- isso, a despeito da ine-
verso dela). O ser hu- gável necessidade de to-
mano, embora nasça no das as ações, e mesmo que

36 HEIDEGGER, M. Schellings Abhandlung, op.cit., p. 109.

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cada um, quando atenta a se determinam, segundo a or-


si próprio, tenha de con- dem da natureza, pelo seu carác-
ceder que de modo al- ter empírico e pelas outras causas
gum é bom ou mau por concomitantes”38 , de outra, tanto
acaso ou arbitrariamente, esse caráter quanto as causas coo-
o mal, p.ex., aparece a si perantes seriam a manifestação de
como nada menos que co- um ato único de escolha originá-
agido (posto que a coa- rio e intemporal: precisamente, o
ção pode apenas ser sen- caráter inteligível. Malgrado algu-
tida no devir, não no ser), mas oscilações39 , essa teoria vem
mas faz suas ações com retomada também na “Elucidação
vontade, não contra sua crítica” que conclui o primeiro li-
vontade. Que Judas te- vro da Crítica da razão prática:
nha se tornado um trai-
dor de Cristo, não o po-
dia alterar ele próprio ou Nessa consideração [como
qualquer criatura mudar, coisa em si; VM], o ser ra-
e ainda assim ele não foi cional pode agora dizer
coagido a trair Cristo, mas corretamente sobre cada
propositadamente e com ação contrária à lei prati-
total liberdade.37 cada por ele, que poderia
tê-la omitido, mesmo que
ela esteja, enquanto fenô-
Schopenhauer sustenta que essa meno, suficientemente
página não seria nada mais que determinada no passado
uma paráfrase explicativa – apre- e seja nessa medida infali-
ciável exclusivamente por seu tom velmente necessária; pois
vivaz – da teoria kantiana do ca- essa ação, com todo o pas-
ráter inteligível. Ora, na Crítica da sado que a determina, per-
razão pura, Kant estabelece uma tence a um único fenô-
dupla causalidade operante nos meno de seu caráter, que
atos de escolha humanos: uma ele [o ser racional; VM]
causalidade natural e uma por li- fornece a si mesmo e se-
berdade. De uma parte, “todas gundo o qual ele imputa
as ações do homem no fenômeno a si mesmo, enquanto

37 SCHELLING, F.W.J. Philosophische Untersuchungen, op.cit., pp. 277-278.


38 KANT, I. Crítica da Razão Pura, A549 B577 [Nota FN: trad. de M. P. dos Santos e A. F. Morujão, Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2001]
39 Cf. a sismografia detalhada de LANDUCCI, S. Sull’etica di Kant, Milão: Guerini, 1994, pp. 251-266.

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uma causa independente tação de Schelling quanto no co-


de toda a sensibilidade, a mentário de Heidegger41 . Isso im-
causalidade desses fenô- pede que se volte contra essa teo-
menos.40 ria a objeção fundamental que não
reside mais em conciliar a liber-
dade de Deus com aquela do ho-
Para reassumir a terminologia mem (a célebre pergunta do Da ira
proposta por Schopenhauer no es- de Lactâncio: "Si Deus, unde ma-
crito sobre a Liberdade da Vontade, lum?"), mas em conciliar a plura-
a liberdade não consiste no operar, lidade das escolhas humanas en-
mas acima de tudo no ser: como tre si: encontramo-nos frente a
no mito platônico de Er, uma vez uma pluralidade de centros livres,
escolhida uma dentre as vidas te- cada um dos quais deveria fazer-
cidas pelas Moiras, a alma não se mundo (ainda que, como su-
pode mais modificar o próprio blinha Landucci, limitadamente
destino. às séries causais pertinentes às
Em que sentido Schelling apro- ações do sujeito42 ), uma espécie de
funda o discurso de Kant? Ele faz monadologia sem harmonia pré-
emergir a teoria kantiana do ca- estabelecida. A resposta de Hegel
ráter inteligível de uma teogonia a essa objeção consistirá precisa-
de origem böhmiana, fundada so- mente na re-instituição de uma
bre aquilo que Heidegger chama harmonia pré-estabelecida, a as-
de Seynsfuge. A distinção entre túcia da razão, que tece a trama
fundamento e existência permite da história com os fios das paixões
explicar a origem do mal e, as- e dos interesses individuais: nesse
sim, fundar ontologicamente a li- sentido, a liberdade é sempre his-
berdade como vivente faculdade tórica e coletiva, o indivíduo que
do bem e do mal. Todavia, a pre- possui o grau de liberdade que
sença da teoria de Kant tem con- é dado a seu próprio tempo, não
tornos vagos tanto na argumen- pode ser livre – quando o é – senão

40 KANT, I. Crítica da Razão Prática, A175 [Nota FN: trad. de M. Hulshof, Petrópolis – Bragança Paulista, Vozes,
p. 131]
41 Assim Heidegger retraduz na sua terminologia a teoria do caráter inteligível: “este ponto profundíssimo da
mais alta amplidão do saber a si próprio na decidibilidade [Entschiedenheit] da sua mais própria essência, este
ponto alcançam apenas alguns poucos, e raramente. E se [alcançam], então apenas enquanto esse piscar de olhos
[Augen-Blick] do mirada mais íntima na essência também é instante [Augenblick], estritíssima historicidade. Isto
quer dizer: a decidibilidade não recolhe a essência própria num ponto vazio da mera contemplação ociosa do eu
[Ichbegaffung, Nota FN], mas a decidibilidade da essência própria é apenas o que ela é como resolutidade [Nota
FN: Entschlossenheit]. Com isso queremos dizer o estar dentro no aberto da verdade da história, a insistência,
que, antes de toda contagem e inacessível a todo cálculo, leva a cabo o que há de levar a cabo.” (HEIDEGGER, M.
Schellings Abhandlung, op.cit., p. 187)
42 LANDUCCI, S. Sull’etica di Kant, Milão: Guerini, 1994, p. 254.

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dentro do processo histórico e da se a uma passagem do tratado


própria comunidade política. A de Schelling que nesse sentido é
resposta de Schopenhauer consis- inequívoca:
tirá, inversamente, na negação de
toda forma de harmonia: o caráter
inteligível é sim “um ato de von- E aqui de uma vez por to-
tade extratemporal e indivisível”, das, portanto, nossa opi-
cujo caráter empírico não é ou- nião determinada sobre
tro que “seu fenômeno [Erschei- o espinosismo! Esse sis-
nung] no espaço, tempo e causa- tema não é um fatalismo,
lidade (essas figuras do princípio porque ele deixa as coi-
de razão suficiente, da forma do sas serem conceituadas
fenômeno”43 ), mas esse ato, que é em Deus; pois, como mos-
“manifestação imediata [unmittel- tramos, o panteísmo não
bare Erscheinung] da vontade”44 , torna impossível pelo me-
não é escolha também das causas nos a verdade formal; Es-
cooperantes, dos motivos45 , e as- pinosa há de ser, por-
sim de um mundo (embora limita- tanto, fatalista em virtude
damente às séries causais que con- de uma razão completa-
cernem à ação do sujeito). Perde- mente diferente e inde-
se, pois, ou a Liberdade ou o Sen- pendente dessa. O erro
tido: não é claro como Schelling do seu sistema não está
possa salvar a ambos. de modo algum no fato de
que ele põe as coisas em
Deus, mas no fato de que
são coisas – no conceito
O erro de Espinosa abstrato dos seres criados
sim, até mesmo substân-
Resta agora enfrentar a questão cia infinita, que para ele
decisiva que consiste na tentativa também é uma coisa. Por
de compreender de que maneira isso seus argumentos con-
Schelling teria mostrado o erro tra a liberdade são com-
fundamental da filosofia de Espi- pletamente deterministas,
nosa. Heidegger parece referir- e de maneira alguma pan-

43 SCHOPENHAUER, A. Die Welt als Wille und Vostellung, in Werke (W), vol. II, p. 341.
44 Ibidem, p, 388.
45 O caráter atinge, pelo conhecimento, os motivos, segundo Schopenhauer. Por essa razão a conduta de um
homem (isto é, a manifestação do caráter) pode mudar com base no grau de conhecimento “sem que seja lícito
inferir-lhe uma alteração do caráter”: pois o conhecimento não pode exercitar alguma influência sobre a vontade
“mas [apenas] segundo o modo com o qual a vontade se revela nas ações” (ibidem, pp. 347 e 350).

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O JOGO DAS TREVAS: HEIDEGGER, SCHELLING E ESPINOSA

teístas. Ele trata também juízo de Schelling, glosa-o sim-


da vontade como um fato, plesmente afirmando que o erro
e demonstra, então, muito do espinosismo não é teológico
naturalmente, que ela ha- mas ontológico, o ente é conce-
veria de ser determinada bido como coisa, como presente
em qualquer caso da efe- (Das Vorhandene), já que ele não
tuação por um outro fato, “não conhece o vivente e nem
o qual, por sua vez, é de- mesmo o espiritual como modos
terminado por um outro próprios e talvez mais originários
e assim em diante infi- do ser”47 . Contudo, Espinosa não
nitamente. Daí a falta entra nunca realmente em jogo no
de vida do seu sistema, texto de Heidegger; quando é ci-
a falta de sentimento in- tado o é de modo superficial e não
terno] da forma, a cares- sem uma ponta de desprezo (para
tia dos conceitos e expres- dizer a verdade, jamais racista,
sões, a intragável auste- como no Schmitt daqueles anos,
ridade das determinações ainda que seja difícil não perceber
que tão bem coaduna com o orgulho alemão que perpassa
a forma de consideração seu texto)48 . Entretanto, pelo me-
abstrata; por isso, e de ma- nos em um caso, a total ausência
neira completamente con- de qualquer discussão não pode
sequente, a sua visão me- não ser relevada. Heidegger cita
cânica da natureza.46 este trecho de Schelling:

O erro de Espinosa consiste em A filosofia da natureza do


uma generalizada reificação: de nosso tempo estabeleceu
Deus, da natureza, da vontade. pela primeira vez na ci-
Heidegger se detém somente no ência a diferença entre

46 SCHELLING, F.W.J. Philosophische Untersuchungen, op.cit., p. 241.


47 HEIDEGGER, M. Schellings Abhandlung, op.cit., p. 107.
48 Relato em seguida algumas passagens de Heidegger: “o único sistema completo, construído até o fim em seu
nexo fundacional é a metafísica de Espinosa [...]. Já o título traz à tona o domínio da exigência científica matemática
– ordine geometrico. Que essa metafísica, i.e., ciência do ser total, se designa por “Ética”, isso traz à tona que o agir
e o comportamento do ser humano tem um significado determinante para o tipo de procedimento no saber e de
fundamentação científica. Esse sistema, porém, apenas se tornou possível com base numa singular unilateralidade,
sobre a qual falaremos mais tarde; ademais, porque os conceitos metafísicos fundamentais da escolástica medieval
foram simplesmente acoplados no sistema com uma rara ausência de crítica. Para se levar a cabo o próprio sistema
tomou-se a mathesis universalis, a doutrina do método cartesiana, e o conceito metafísico propriamente fundamen-
tal advém em todos os seus detalhes de Giordano Bruno” (Ibidem, p. 40-41); “Para evitar aqui um equívoco, esteja
enfatizado que a filosofia de Espinosa não pode ser igualada com a filosofia hebraica. Já apenas o fato conhecido de
que Espinosa foi expulso da comunidade hebraica é significativo. Sua filosofia é essencialmente determinada pelo
espírito da época, Bruno, Descartes e a escolástica medieval” (Ibidem, p. 80).

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a essência, enquanto ela Schelling se distancia no Kampf-


existe, e a essência, en- platz filosófico: poderíamos di-
quanto ela é apenas fun- zer que Schelling identifica aqui
damento de existência. a própria filosofia diferenciando-a
Embora esse seja preci- daquela de Espinosa. Ora, mesmo
samente o ponto em que reportando fielmente a referência
ela desvia da maneira a a Espinosa, Heidegger ignora-o
mais determinada do ca- completamente em seus comen-
minho de Espinosa, ainda tários. Desde esse ponto, o nome
assim se pôde na Ale- Espinosa desaparece do texto por
manha até hoje ser afir- cerca das cem páginas que se-
mado que seus princípios guem. Seríamos tentados a atri-
metafísicos eram os mes- buir a essa ausência uma signi-
mos que os de Espinosa; ficado sintomático, de ver nela o
e apesar de que precisa- aflorar de um problema para a
mente aquela diferencia- reflexão heideggeriana, como fez
ção é o que simultanea- Balibar em um belo ensaio dedi-
mente conduz à diferen- cado a Heidegger e Espinosa50 .
ciação mais determinada Mas talvez seja suficiente pro-
entre natureza e Deus, curar explicar o passo schellin-
isso no entanto não obs- guiano para tentar compreender
tava a que se a acusasse de se Espinosa, com respeito a este,
misturar Deus com a na- possa constituir um simples erro.
tureza.49

Heidegger cita integralmente essa O problema do mal


passagem. Trata-se de uma pas-
sagem fundamental na sua inter- A passagem que citamos das In-
pretação, já que Schelling nela ex- vestigações sobre a Liberdade é a
prime a Seynsfuge que está no cen- chave teórica que permite a Schel-
tro de toda leitura heideggeriana. ling resolver o problema do mal:
Nela, Espinosa desempenha um sobre a Seynsfuge se constrói a te-
papel central, é a teoria da qual oria schellinguiana do mal como

49 SCHELLING, F.W.J. Philosophische Untersuchungen, op.cit., p. 249.


50 Balibar defende que o silêncio de Heidegger sobre Espinosa seja sintomático do "puissant finalisme qui, para-
doxalement, ne cesse de hanter la pensée ’négative’ de Heidegger" [Nota DSS: “potente finalismo que, paradoxal-
mente, não cessa de assombrar o pensamento ‘negativo’ de Heidegger” ] (BALIBAR, E. "Heidegger et Spinoza" in
Spinoza au XX siècle, BLOCH, O. (sous la direction de), Paris: PUF, 1993, ps. 327-343: 343. Cf. também VAYSSE, J,
-M. Totalité et finitude. Spinoza et Heidegger, Paris: Vrin, 2004.

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perversão da relação entre os dois no mal [seria] de fato com-


princípios. parativamente mais im-
A pergunta fundamental nesse perfeita que aquela que se
ponto diz respeito ao sentido da- mostra no bem, mas con-
quela referência a Espinosa, trata- siderada em si, ou fora da
se, isto é, de compreender em que comparação, seria ela pró-
sentido Espinosa negou a distin- pria, todavia, uma perfei-
ção entre fundamento e existên- ção que, portanto, como
cia. Heidegger, sobre tal ponto, qualquer outra, precisa
não nos ajuda de fato, simples- ser derivada de Deus. O
mente não explica a referência; se, que chamamos nisso de
entretanto, tivesse que traduzir na mal é apenas o menor
sua filosofia a acusação de Schel- grau da perfeição, o qual
ling, teria talvez dito que Espi- aparece como uma falta
nosa nega a diferença ontológica. apenas para a nossa com-
Schelling parece afirmar a ausên- paração, não sendo falta
cia de fundamento em Espinosa, alguma na natureza. Não
ou seja, daquele princípio tene- se deve negar que essa se-
broso que, embora não sendo mais ria a verdadeira assunção
perceptível no mundo da forma de Espinosa.51
e da ordem, é todavia pensável.
Para Espinosa tudo é luz, mas luz
privada de vida e de liberdade, A luz da necessidade geométrica
porque é luz geométrica em que ilumina, embora de modo dife-
Deus, o mundo e até a vontade rente, os graus do ser tornando de
são petrificados, são tomados por fato impossível a liberdade.
simples coisas. Quando Schelling Alguns anos depois, nas Lições
expõe a teoria espinosana do mal, de Munique, Schelling rejeitará
parece-me que essa interpretação em Espinosa precisamente esse li-
venha perfeitamente à luz: mite, ou seja, o fato de que nele
o ser existe sem sujeito, excluindo
todo não ser, toda potência, toda
[...] a força que se mostra liberdade: trata-se pois de um ser

51 SCHELLING, F.W.J. Philosophische Untersuchungen, op.cit., p. 246. Heidegger, ao comentar tal passagem, as-
sente plenamente à interpretação schellinguiana de tal aspecto sobre a teoria espinosana: “Concede-se que o mal
valha como o não-bom, como falta, como imperfeito; o que falta não está aí; não-estar-aí, não estar presente -—
assim chamamos o não-ente. Daquilo que, segundo sua essência, é o que não é, não pode, contudo, ser dito que
seja um ente. Assim, a efetividade do mal é apenas uma ilusão. Aquilo que sempre é efetivo só pode ser o positivo.
E o que há pouco chamamos de mal, e já por nomeá-lo falseamo-lo em positivo, esse imperfeito é, na medida em
que é, sempre apenas um grau em cada caso diferente do bem – assim ensina Espinosa” (M. Heidegger, Schellings
Abhandlung, op. cit., p. 122).

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impotente que não tem em si o po- ela reconhece o erro fundamental


der de ser diverso daquilo que é52 . de Espinosa na ausência total de
E, na Filosofia da Revelação (lição história, de um âmbito humano
VII), fará dele o campeão da fi- que de algum modo exceda a luz
losofia negativa a que contraporá da necessidade geométrica. Mas
sua filosofia como filosofia posi- se trata realmente de um erro?
tiva: Ou existe no pensamento de Es-
pinosa alguma coisa que perturba
a posição da simples alternativa
se, no entanto, Espinosa Schelling-Hegel?
usa aquela verdade ge-
ométrica como exemplo
para elucidar como, se-
gundo a sua opinião, as Coisas e pessoas
coisas singulares seguem
da natureza de Deus, a Antes de passar às conclusões, al-
saber, de uma maneira guns breves pontos sobre a leitura
igualmente atemporal, schellinguiana de Espinosa. Se-
eterna, então a sua expli- ríamos tentados a dizer que não é
cação do mundo é bem tanto Espinosa que reifica Deus,
anti-histórica, e, em opo- os modos e a vontade, quanto,
sição a ela, ao contrário, a principalmente, Schelling que rei-
doutrina cristã pela qual fica uma palavra de Espinosa (é
o mundo seria efeito de certo, pode-se reificar também o
uma livre decisão, de um termo res!) fixando o seu conteúdo
fato, haveria de ser cha- (de modo abstrato) exteriormente
mada uma explicação his- à estratégia teórica na qual está
tórica.53 inserida. É verdade que Espinosa
associa o termo res tanto a Deus
quanto aos modos (não à vontade,
Se, então, a filosofia de Schelling porque esta se trata de um ens
faz vacilar a lógica de Hegel já rationis) e, contudo, não se pode
que mostra a impossibilidade do esquecer o fato de que no escó-
conceito de retraduzir-se sem re- lio I da proposição 40 da segunda
síduos no tempo, de permear de si parte da Ética haja uma crítica aos
a temporalidade e a história nela transcendentais:
anulando de fato a eventualidade,

52 SCHELLING, F.W.J. Münchener Vorlesung, in SW, vol. 5, pp. 104-105.


53 SCHELLING, F.W.J. Philosophie der Offenbarung, in SW, vol. 6, pp. 138-139.

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O JOGO DAS TREVAS: HEIDEGGER, SCHELLING E ESPINOSA

(...) a Mente humana po- traços de um número indefinido


derá imaginar distinta- de encontros com os corpos ex-
mente em simultâneo tan- ternos quanto de traços de con-
tos corpos quantas ima- tornos indefinidos, efeitos de en-
gens possam ser forma- contros recém mantidos: trata-se
das simultaneamente em pois de uma noção que perdeu
seu próprio corpo. Ora, ou nunca possuiu o seu objeto,
quando as imagens se como escreve Macherey, é uma
confundirem completa- "quase-noção", "uma maneira de
mente no corpo, também falar que se serve de articulação
a Mente imaginará confu- no discurso sem deter uma sig-
samente todos os corpos nificação racional nela mesma”55 .
sem qualquer distinção Não há sentido algum, assim, em
e os compreenderá como fixar a atenção sobre ocorrências
que sob um único atri- do termo res na escrita espino-
buto, a saber, sob o atri- sana, perdendo a estratégia teó-
buto do Ser, da Coisa etc. rica que a comanda56 : para dar
Isso pode também ser de- apenas um exemplo, se tomarmos
duzido de que as imagens em consideração as duas primei-
nem sempre têm o mesmo ras proposições da segunda parte
vigor e de outras causas da Ética ("Cogitatio attributum Dei
análogas a estas, que não est, sive Deus est res cogitans"; "Ex-
é preciso explicar aqui; tensio attributum Dei est, sive Deus
pois para o escopo ao qual est res extensa"), seria de todo ilu-
visamos basta considerar sório pôr o acento sobre a reifica-
apenas uma. Com efeito, ção de Deus –extrapolando o frag-
todas se reduzem a que mento "(...) Deus est res (...)" – sem
estes termos significam apreender a estratégia que aí está
ideias confusas em sumo operando: um trabalho de redefi-
grau.54 nição da linguagem cartesiana das
três substâncias agora no sentido
da teoria da substância única da
O termo res indica uma ideia con-
qual pensamento e extensão são
fusa que deriva tanto da incapa-
atributos.
cidade do corpo de conservar os

54 Eth, in G, Bd. II, pp. 120-121. [Nota DSS: tradução brasileira da Ética, doravante tr. br, Grupo de Estudos
Espinosanos da USP, São Paulo: Edusp, 2015, p. 199]
55 MACHEREY, P. Introduction à l’Éthique de Spinoza II, Paris : PUF, 1997, p. 307.
56 Trata-se, para ser exato, de 893 ocorrências (M. Gueret – A. Robinet – Tombeur, Spinoza Ethica, Concordances,
Index, Listes des fréquences, Tables comparatives, Louvain-la-Neuve, Cetedoc, 1977, pp. 289-298).

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Voltemos à leitura de Schelling. sublinha Althusser58 - mas reto-


Que coisa ele entende por "coisa"? mada do direito romano e em par-
Uma unidade fechada e privada ticular das Istitutiones de Gaio):
de relações com o externo? A=A? res é aquilo que não é persona,
Nesse sentido, em Espinosa não aquilo que não é dotado de li-
existe "coisa" alguma. Deus é berdade e, assim, de responsabi-
causa de si no mesmo sentido em lidade. Não é por acaso que a in-
que é causa imanente dos modos dicação do erro fundamental de
(a sua essência é, pois, potência Espinosa faça um conjunto, em
produtiva), os modos são compos- Schelling, com uma teoria do in-
tos instáveis cuja essência reside divíduo humano entendido como
na complexidade das relações ins- persona que é, enquanto tal, res-
tituídas entre suas partes e com ponsável pelas próprias ações, não
o ambiente externo (e Jonas com- porque seja livre no tempo (toda
preendeu com agudeza a origina- ação singular é de fato determi-
lidade da teoria do organismo es- nada por motivos e, então, ne-
pinosana), a vontade, enfim, não cessária), mas porque pôde, an-
passa de um puro ens rationis de- tes que o tempo fosse, determi-
fronte às volições singulares (que nar a própria essência (tanto Kant
são ao mesmo tempo intelecções) quanto Schelling e Schopenhauer
e, elas mesmas, longe de serem insistem sobre a responsabilidade
coisas, são o lugar de condensa- que sente o homem por aquilo que
ção de complexas tramas relaci- é e por aquilo que faz como sin-
onais que não apenas não reifi- toma desse ato originário de es-
cam o indivíduo, mas impedem colha do próprio caráter inteligí-
que este seja pensado como tal em vel). Talvez então a identificação
sentido estrito (como, ao contrá- do erro espinosano, por parte de
rio, o fazem tanto Schelling como Schelling, não aponte tanto a rei-
Heidegger), abrindo-o a uma di- ficação do indivíduo quanto, prin-
nâmica transindividual57 . Talvez, cipalmente, a impossibilidade de
então, a acusação schellinguiana sua classificação em relação à tra-
de reificação deva ser compreen- dição teológico-jurídica da identi-
dida no seio da ideologia jurí- dade pessoal que vê sua primeira
dica (burguesa, certamente - como grande expressão moderna no ca-

57 Cf. MORFINO, V. Ontologia della relazione e materialismo della contingenza in “Oltrecorrente” , 6, 2002, pp.
129-144. Cfr. também MONTAG, W. Chi ha paura della moltitudine? in “Quaderni Materialistti” , 2, 2003, pp.
63-79. Inspiração de ambos BALIBAR, E. Spinoza, il transindividuale, tr. it. di MARTINO, L. Di, PINZOLO, L.
Milão: Ghibli, 2002.
58 ALTHUSSER, L. Réponse a John Lewis, Paris: Maspero, 1972, p. 73.

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O JOGO DAS TREVAS: HEIDEGGER, SCHELLING E ESPINOSA

pítulo sobre Identidade e diferença uma teoria bem mais profunda


dos Essay de Locke59 . Nesse sen- do bem e do mal segundo a qual
tido, o problema é sim o deter- estes não corresponderiam a um
minismo, mas talvez, de modo grau maior ou menor de perfei-
ainda mais radical, a não impu- ção do ser, mas principalmente a
tabilidade jurídica de uma ação a um efeito imaginário do precon-
uma multidão60 : que coisa é, com ceito antropocêntrico: a necessi-
efeito, o indivíduo na teoria de Es- dade natural se encontra, em re-
pinosa se não a configuração de- alidade, além do bem e do mal e
terminada de uma multidão (de a ontologização desses conceitos
ideias e de corpos)? não é outra coisa senão a con-
sequência da potência da imagi-
nação que põe o homem como
Além do bem e do mal centro e medida do ser63 . Quando
Espinosa, depois, na quarta parte
Voltando à questão do mal como da Ética, define positivamente o
privação, é verdade que Espinosa bem e o mal, pode fazê-lo apenas
parece autorizar uma tal leitura, em termos plurais e relativos, ou
especialmente nas cartas a Blyen- seja, não como escolha intempo-
berg61 . Trata-se, porém, a meu ral e absoluta entre amor cristão e
modo de ver, da necessidade de egoísmo (isto é, a alternativa pro-
colocar-se sobre o terreno linguís- posta por Schelling), mas na di-
tico do correspondente62 . Pode-se mensão conjuntural do encontro
reencontrar em seu pensamento dos corpos: "as coisas que fazem

59 Neste capítulo são perfeitamente compreensíveis os enjeux teológico-jurídicos do conceito de identidade pes-
soal: a possibilidade da consciência de redobrar-se sobre a linha tempo reconhecendo no passado aquele mesmo
self que é agora presente garante a infalibilidade da justiça divina que pode perscrutar nos corações, embora não
daquela terrena que pode ser enganada pela linguagem.
60 É célebre o passo hobbesiano em que a discriminação entre povo e multidão passa precisamente por esse
ponto: "O povo é uno, tendo uma só vontade, e a ele pode atribuir-se uma ação; mas nada disso se pode dizer de
uma multidão" (Hobbes, T. De cive, XII, 8, in M, vol. II, p. 291) [Nota DSS: tradução brasileira de Renato Janine
Ribeiro, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.189]
61 Esta passagem [de Espinosa] parece ser particularmente relevante na leitura de Schelling seguida por Heideg-
ger: “[...] a privação não é o ato de privar, mas simples e mera carência, a qual não é em si nada outro que um
ente de razão, ou seja, uma espécie de pensamento que formamos quando confrontamos as coisas entre si. Diga-
mos, por exemplo, que o cego é privado da vista porque somos levados a imaginá-lo como vidente, por efeito do
confronto que fazemos seja com os outros que vêem, seja com o seu estado precedente. E porquanto consideramos
este homem deste modo, isto é, comparando a sua natureza com aquela dos outros ou com aquela que perdeu,
por isso afirmamos que a visão pertence à sua natureza e que portanto dela ele foi privado. Mas, se se considera
o decreto de Deus e a sua natureza, não podemos afirmar daquele homem, mais que a pedra, que tenha lhe sido
retirada a vista.” (Espinosa a Blyenberg, XXI, in G., Bd IV, p. 128; tr. it. DROETTO, A. (org.),Turim: Einaudi, 1938,
pp 133-134)
62 É um dado de fato relevante que as 11 ocorrências do termo privatio na Ética não digam respeito nunca à
questão do mal, mas exclusivamente à da falsidade (GUERET, M. e ROBINET, A. Spinoza Ethica. Concordances,
Index, Listes des fréquences, Tables comparatives, p. 275).
63 Eth I, app., pp. 81-82 [Nota DSS: trad. br., op. cit. pp. 109-121]

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com que se conserve a proporção mem a coloração do Zeitgeist que


de movimento e repouso que as reduz sua complexidade e anula a
partes do Corpo humano têm en- contingência. As paixões não são
tre si são boas; e más, ao contrário, propriedade do indivíduo que são
as que fazem com que as partes ativadas por motivos, mas verda-
do Corpo humano tenham entre deiras e próprias forças que exis-
si outra proporção de movimento tem entre o indivíduo e a causa
e repouso"64 . que o gerou, como aparece nas
Para Espinosa, o homem tem proposições 5 e 6 da quarta parte:
tanto direito a existir e a agir
quanto o tem o leão e o gato: o
Proposição V: A força e o
direito equivale à sua potência.
crescimento de uma pai-
Mas ele não pode escolher para
xão qualquer e sua per-
si sua essência (em uma atempo-
severança no existir não
ralidade que, ainda que não pre-
são definidos pela potên-
cedendo o tempo, deve ser mesmo
cia pela qual nos esforça-
assim um lugar outro com rela-
mos para perseverar no
ção ao tempo), tanto quanto não
existir, mas pela potên-
pode escolher para si um corpo
cia da causa comparada à
(são ou doente), uma mente (sã ou
nossa. (...)
doente), um sexo, uma cor de pele,
um ambiente, um clima, uma fa-
mília, uma sociedade, uma lín- Proposição VI: A força de
gua, um período histórico. Mais: uma paixão ou afeto pode
não existe na filosofia de Espinosa superar as demais ações
uma essência feita de tal modo ou a potência do homem
que preceda a existência e, nesse de tal maneira que o afeto
sentido, talvez ganhe pleno sig- adere pertinazmente ao
nificado o silêncio de Heidegger homem.65
sobre a ausência da Seynsfuge. A
essência se faz na complexidade Como escreve Montag, “os encon-
das relações (dos corpos, das men- tros com outros corpos, necessário
tes, com o ambiente, com a famí- para a conservação da coisa singu-
lia, com a língua, com o próprio lar, inclui simultaneamente inte-
tempo), sem que tais relações to- rações regulares e ‘fortuitas’” 66 .

64 Eth IV, pr. 39, p. 239 [Nota DSS: trad. br., op. cit. p. 439]
65 Eth IV, pr. 5 e 6, p. 214. [Nota DSS: trad. br., op. cit., p. 389]
66 MONTAG, W. Bodies, masses, power. Spinoza and his contemporaries, London-New York, 1999, p. 34.
67 As ocorrências do termo occursus são extremamente raras sob a pena de Espinosa. Uma, entretanto, é demais

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O JOGO DAS TREVAS: HEIDEGGER, SCHELLING E ESPINOSA

O occursus67 , o encontro, torna- mudar para uma natu-


se então o conceito chave na de- reza de todo diversa da
terminação da força (vis) de uma sua. De fato, nenhuma ra-
paixão, encontro entre potências zão me obriga a sustentar
(causae externae potentia cum nos- que o Corpo não morre se-
tra comparata) cujas despropor- não mudado em cadáver;
ções podem produzir a dominân- e mais, a própria expe-
cia pertinaz (pertinaciter) de uma riência parece persuadir-
paixão concernente ao comporta- me do contrário. Com
mento complexivo de um homem efeito, às vezes ocorre a
sem que isso seja atribuído à imu- um homem padecer tais
tabilidade de seu caráter (isto é, mudanças, que não é fá-
se não a uma escolha intempo- cil dizer que continue o
ral, pelo menos a uma constitui- mesmo, como ouvi contar
ção essencial). Mas não somente, sobre um Poeta Espanhol
o encontro pode inclusive mudar que fora tomado pela do-
a identidade mesma de um ho- ença e, embora se tenha
mem, o seu caráter (na termino- curado, ficou porém tão
logia kantiana), precisamente por- esquecido de sua vida pas-
que a identidade não reside em sada que não acreditava
uma escolha intemporal mas em serem suas as Fábulas e
uma determinada proporção de Tragédias que escrevera, e
movimento e de repouso entre as certamente poderia ser to-
partes. É o caso do célebre exem- mado por um bebê adulto
plo de Gôngora citado por Espi- se também tivesse esque-
nosa: cido a língua vernácula.68

Pois não ouso negar que Nesse contexto teórico, a liber-


o Corpo humano, manti- dade toma duas faces: 1) a liber-
das a circulação do san- dade como idêntica ao grau de po-
gue e outras coisas pe- tência e como contrário de coação,
las quais se estima que o 2) a liberdade como causalidade
Corpo vive, contudo possa adequada da ação. A primeira

significativa, no escólio da prop. 29 da segunda parte da Ética, quando são conectados conhecimento confuso e
percepção da coisas "ex communi naturae ordine, hoc est (...) ex rerum (...) fortuito occursu" (G, Bd.II, p. 144). A im-
portância do tema do occursus em Espinosa foi sublinhado por DELEUZE, G. Spinoza. Philosophie pratique, Paris:
Editions de Munuit, 1981, passim; cf. também MARCUCCI, M. Occursus, ’Cosmologia negativa’ e terzo genere, in
DEL LUCCHESE, F., MORFINO, V. (a cura di), Sulla scienza intuitiva in Spinoza. Ontologia, politica, estetica, Milano:
Ghibli, 2003, pp. 137-153.
68 Eth IV, prop. 39, schol., p. 240. [Nota DSS: trad. br., op. cit. p. 441]

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VITTORIO MORFINO

diz respeito a todos os seres natu- fosse precisamente o ponto cego


rais: quanto mais estes são poten- do idealismo, e não tanto a ne-
tes, mais são livres. A segunda é gação da história (seja entendida
a liberdade da razão enquanto co- como marcha da ideia ou como
nhecimento que nos permite agir advento do Cristo), mas precisa-
– sempre de forma parcial e confli- mente a desconstrução ante litte-
tiva, porém, de outro modo, uma ram da dupla natureza-história?
parte da natureza se faria o todo – Nesse sentido, abre-se talvez uma
na complexidadde de relações que ulterior via de interpretação, qual
nos constitui. A segunda concep- seja, ler o espinosismo não tanto
ção, que para os corpos políticos como filosofia da luz em que a
se identifica com um processo de necessidade geométrica petrifica a
democratização, está todavia im- vida, como Medusa sob seu olhar,
plicada na primeira enquanto a mas como filosofia de um princí-
razão não é outro da natureza, mas pio tenebroso jamais sobrepujado
um grau de potência seu. pela luz, em que a luz (ou seja, a
O erro de Espinosa consiste, ordem e a forma) e o espírito (ou
pois, não tanto na reificação seja, a razão humana) não são se-
da vontade, quanto na refutação não efeitos aleatórios – em nada
mais precisa de toda forma de an- desejados, porque a treva não é
tropocentrismo que procure atri- desejo mas potência – do com-
buir a ela um império no impé- plexo jogo das trevas.
rio da natureza. E se esse erro

Referências

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DELEUZE, G. Spinoza. Philosophie pratique, Paris: Editions de Munuit,
1981.
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HEEDE, R. (orgs.), Hamburgo: Meiner, 1980.
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F., JAESCKE,W. (orgs),Hamburgo: Meiner, 1980.
HEIDEGGER, M. Schellings Abhandlung über das Wesen der menschlichen
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O JOGO DAS TREVAS: HEIDEGGER, SCHELLING E ESPINOSA

1971; tr. it. MAZZARELLA, E. e TATASCIORE, C. (orgs.), Nápo-


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burgo: Meiner, 2000.
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LANDUCCI, S. Sull’etica di Kant, Milão: Guerini, 1994.
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SPINOZA, B. Ethica in Opera (G). GEBHARDT, G. (org.), Heidelberg:
Carl Winters, 1972.

Recebido: 04/07/2019
Aprovado: 09/11/2019
Publicado: 17/11/2019

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 43-69 69
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v7i2.25619

O Drama da Imanência: Gebhardt, Deleuze, Benjamin e


o Infinito Barroco de Espinosa
[The Drama of Immanence: Gebhardt, Deleuze, Benjamin and Spi-
noza’s Baroque Infinite]

Henrique Piccinato Xavier*

Resumo: Investigando a filosofia de Espinosa, visamos atravessar o


drama da imanência elaborado por Walter Benjamin em Origem do
drama barroco alemão, isto é, atravessar a peculiar interpretação me-
lancólica que relaciona a ideia de imanência presente na filosofia mo-
derna à arte de sua época, ou seja, a barroca. Mais que um drama,
para um olhar espinosano, tal interpretação é uma tragédia, pois pro-
duz uma teatralidade aporética que dilapida a positividade da ideia
de imanência. Para compreendermos esta tragédia, será preciso pas-
sar por dois preâmbulos filosóficos ao drama: Rembrandt e Espinosa
de Carl Gebhardt e A dobra: Leibniz e o barroco de Gilles Deleuze. Da
melancólica tragédia para algo mais feliz, reelaboraremos o drama,
procurando desfazer tais aporias, conduzindo-nos à compreensão da
positividade da imanência “barroca” em Espinosa.
Palavras-chave: Espinosa, Carl Gebhardt, Gilles Deleuze, Walter Ben-
jamin, Arte Barroca.

Abstract: With Espinosa’s philosophy, we aim to confront the drama


of immanence developed by Walter Benjamin in his The Origin of the
German Tragic Drama, in other words, we aim to confront a peculiar
melancholic interpretation that relates the idea of immanence present
in modern philosophy to the art of its time, that is, baroque art. More
than a drama, in a Spinosist perspective, such interpretation is a
tragedy, because it produces an aporetic theatricality that demolishes
the positivity in the idea of immanence. To understand this tragedy,
it will be necessary to go through two philosophical preambles to this
drama: Rembrandt and Spinoza by Carl Gebhardt and Fold: Leibniz
and the Baroque by Gilles Deleuze. We will rework the drama from
the melancholic tragedy to something happier, trying to undo these
aporias, leading us to an understanding of the positivity of the
"baroque" immanence in Spinoza.
Keywords: Spinoza, Carl Gebhardt, Gilles Deleuze, Walter Benjamin,
Baroque Art.

* Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: henrique.xavier0@gmail.com.


ORCID:https://orcid.org/0000-0001-7325-0252

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 71-87 71
ISSN: 2317-9570
HENRIQUE PICCINATO XAVIER

I - Preâmbulos ao drama ficações finitas, na natureza não


há nenhum evento excepcional
O absolutamente infinito, ou seja, para além de suas leis eternas, por
a substância (ou a natureza) na isso, nela não pode haver o mi-
filosofia de Espinosa é ordenada lagre como evento que se sairia
segundo leis eternas, universais da ordem da natureza, pois neste
e imutáveis, como nos afirma a caso a natureza deixaria de ser
cada passo da Parte I da Ética. a natureza. Exatamente por sua
Mas o que, de fato, são estas essência atuosa radicar na mais
leis eternas senão a pura movi- completa liberdade, em Espinosa,
mentação da transformação de há uma natureza absolutamente
auto-diferenciação infinita de si infinita que em sua imanência é
mesmo, uma atividade infinita de necessariamente e por completo
uma essência atuosa? Lembremos sempre renovada, ou seja, temos
da Proposição 16 da parte I da uma natureza que apenas produz
Ética: “Da necessidade da natu- coisas, ideias e essências singula-
reza divina devem seguir infini- res.
tas coisas em infinitos modos (isto Se a passagem do infinito ao
é, tudo que pode cair sob o inte- finito é deduzida, como afirmar-
lecto infinito)” (ESPINOSA, 2015, mos, a partir da Proposição 16 da
p. 75). Assim, a substância pro- Parte I da Ética, a operação in-
duz infinitas coisas sob infinitos versa, ou seja, a passagem entre
atributos, seus modos infinitos e o finito (modos finitos) e o infinito
modificações finitas. Ademais, sa- (a substância única) será realizada
bemos que esta essência atuosa pela síntese dinâmica como lei de
não age segundo um fim, mas flui interação entre partes, que não se-
absolutamente livre, pois a essên- gue uma finalidade preestabele-
cia atuosa da substância conce- cida ou um modelo exterior, mas
bida como causa sui radica na sua constitui um infinito de relações
completa liberdade, afinal, a subs- que produz a si mesmo em uma
tância é a causa de si, ou seja, sua ordenação imanente: este e um
existência exprime a si mesma e dos pontos centrais da filosofia de
que, por sua vez, não é limitada Espinosa. Contudo, ela nos co-
por nada e nem por si mesma, loca diante do seguinte problema:
sendo ela mesma a abertura de como agir individualmente, no
uma transformação infinita sem interior da finitude, sendo parte
teleologia e sem finalismo. De de um fluxo dinâmico e absoluta-
fato, pela relação de imanência da mente infinito? Como, desde seu
substância infinita até suas modi- interior, não apenas ser uma parte,

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mas ao se-la, também, já tomar (ou seja, curar) um melancólico


parte ativa neste infinito? Cremos problema matemático, epistemo-
que o grande problema reside na lógico e ontológico, produzindo
dificuldade para entender a po- a continuidade na passagem en-
sitividade de um sistema aberto, tre nós, seres limitados (ou seja,
ainda mais quando este e absolu- modos finitos da substância infi-
tamente infinito. nita) e o absolutamente infinito
Heinrich Wölfflin, em Renas- indivisível (ou seja, a substância
cença e barroco1 (1888) e em Con- única)? A emenda da incomensu-
ceitos fundamentais da história da rabilidade numérica e imaginária
arte2 (1915), textos fundantes dos do infinito irá garantir ao enten-
estudos contemporâneos acerca dimento a condução a uma nova
da pintura clássica e barroca, síntese intelectual de um infinito
mostra-nos como o estilo barroco positivo, este não mais definido
produz a liberação das formas de em termos negativos, indefinidos
seu isolamento, o princípio da re- ou potenciais (que se contentam
presentação barroca sendo a subs- em delinear a constância ou in-
tituição da composição de formas constância de relações truncadas
fechadas da arte clássica por um na justaposição de partes), mas,
movimento visual em direção a uma sim, como um absolutamente infi-
unidade entre parte e todo, que, nito real, em ato, positivo e indi-
em uma visualidade fluida, dis- visível.
solve a anterior estrutura rígida Ao abordarmos, portanto, a
dos contornos das figuras do es- passagem entre finito e infinito3
tilo clássico. Wölfflin afirma o na filosofia de Espinosa e as afir-
entendimento da experiência da mações de Wölfflin acerca do bar-
pintura do XVII como um orde- roco, surge-nos a pergunta: como
namento que se transforma diante conceber ordem em uma natureza
dos olhos do observador. que mescla a parte e o todo, e pre-
Se consideramos a passagem servar uma identificação sem que
entre finito e infinito um dos gran- esta se torne uma identidade es-
des desafios que a filosofia de Es- tanque, tanto na filosofia que ex-
pinosa enfrenta, como emendar pressa o absolutamente infinito da

1 WOLFFLIN, H. (2005) Renascença e barroco. São Paulo, Perspectiva.


2 WOLFFLIN, H. (1984) Conceitos fundamentais da História da Arte. São Paulo, Martins Fontes, 1984.
3 O presente artigo faz parte de um conjunto maior de trabalho e pesquisa. Assim, as questões aqui propostas
podem ser lidas em continuidade às questões trabalhadas no artigo ‘Espinosa, melancolia e o absolutamente infi-
nito na geometria dos indivisíveis do século XVII’ (XAVIER, 2016) que tematiza a passagem entre finito e infinito
na filosofia de Espinosa.

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substância, como no rompimento barroco dá-lhes a inqui-


da forma pela visualidade infini- etude de esboços pri-
tamente aberta do barroco? Cre- vados de ordem, e não
mos que esta questão constitui um fecha o ponto de vista
dos problemas centrais de uma que devemos ter sobre
aproximação crítica da filosofia de eles, a fim de que a
Espinosa à arte de sua época. Para infinidade da obra dis-
respondê-la, iremos nos contrapor forme não seja restrin-
a uma das mais célebres e históri- gida pela limitação de
cas interpretações da relação en- uma forma. (GEBHARDT,
tre arte barroca e filosofia da ima- 2000, p.106)
nência: o drama da imanência cu-
nhado por Walter Benjamin. Vere- Gebhardt entende a composição
mos que, em uma perspectiva es- aberta barroca como algo privado
pinosana, para além de um mero de ordem, cujo efeito produziria
drama, tal interpretação será uma uma obra que não seria restrin-
melancólica tragédia, produzindo gida pela forma fechada. Prosse-
uma teatralidade aporética que guindo, o autor extrapola tal ideia
dilapida toda e qualquer positi- de matriz wölffliniana até chegar
vidade para a ideia de imanência. à radical conclusão de que “o Re-
Para darmos conta deste drama, nascimento definiu a beleza como
precisaremos antes passar breve- a conspiração das partes e a en-
mente por dois preâmbulos, duas controu realizada na razão natu-
interpretações contemporâneas, ral, contudo, a beleza do barroco,
uma de Gebhardt, outra de De- enquanto uma forma não limi-
leuze, que relacionam a filosofia tada, é irracional” (GEBHARDT,
do século XVII à arte seiscentista. 2000, p.107). Gebhardt conclui
algo sobre o barroco que buscará
aproximar de Espinosa, mas que
contradiz a própria letra do filó-
Preâmbulo I - Gebhardt, Rem-
sofo. De fato, Gebhardt afirma
brandt e Espinosa, 1927
que algo por não ser limitado seria
irracional, quando em Espinosa
Em seu clássico texto intitu- verificamos claramente o contrá-
lado Rembrandt e Espinosa, Carl rio, pois, de um lado, a substân-
Gebhardt, em uma aproximação cia ou o absolutamente infinito é
entre a obra do filósofo e a do pin- ilimitado (em contraposição ao li-
tor barroco, afirma que: mite que define o finito), mas é o
mais inteligível ou o mais racional
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de todos os seres (como vemos de- então, realmente apenas a subs-


monstrado na Parte I da Ética), sua tância, desprovida de qualidades
potência é livre porque determi- e de diferenças – portanto, inde-
nada apenas por si mesma, sendo terminada, donde, impensável ou
por isso causa de si que flui na- irracional. Em outras palavras,
turalmente por si mesma, despro- o infinito é irracional e o finito,
vida de uma causa externa ou um impensável. Gebhardt reproduz
limite externo. Por ser causa de si quase literalmente o texto hege-
absolutamente infinita é inteligí- liano, alegando que em Espinosa
vel, pois a inteligibilidade decorre “abertura ao infinito da substân-
do conhecimento da causalidade e cia acabaria com a possibilidade
de suas ações; ou seja, a ausência de existir identidades” e, ainda
de limites convém perfeitamente mais, ele redobra essa afirmação
com a razão. Contudo, cremos para o barroco de Rembrandt, cuja
que Gebhardt associa a deformi- obra seria uma arte espinosista
dade e o irracionalismo à filosofia acosmista: “a categoria do bar-
de Espinosa, pois está influenci- roco é a da substancialidade, se-
ado pela leitura de tradição alemã, gundo a qual tudo o que é particu-
que vê em Espinosa uma opera- lar possui apenas uma existência
ção de dissolução do singular no relativa, tanto que a existência ve-
seio do absoluto, como fora alme- rificável pertence apenas à totali-
jada pelos românticos (Schelling, dade infinita, eis o que custo a di-
principalmente), e que, a partir zer (em relação às coisas particu-
de Hegel (inspirado em Bayle), lares): que só existe a substância”
toma a forma negativa de um acos- (GEBHARDT, 2000, p.107).
mismo4 . Considerando, na filoso-
fia de Espinosa, o absoluto como
indiferenciação e indeterminação
absolutas, faltaria a essa filoso-
fia um princípio de identidade
para os modos finitos, existindo,

4 É vasta e complexa a crítica que Hegel faz a Espinosa, contudo, gostaria de insistir que um de seus pontos altos
é identificação da filosofia de Espinosa ao acosmismo. Segundo Hegel, na demonstração espinosana da unidade
absoluta da substância o sujeito necessariamente se perderia, se diluiria, neste absoluto, excluindo a possibilidade
do principio ocidental da individualidade. Em grande parte a própria dialética hegeliana e sua ontologia seriam
a tentativa de superar este dilema. Nas Lições sobre a história da filosofia de 1825-26, Hegel escreve no parágrafo
de abertura de seu artigo sobre Espinosa: “Esta profunda unidade de sua filosofia [de Espinosa], tal como ela foi
expressa na Europa, – o espírito, o finito e o infinito idênticos em Deus, e não mais como um terceiro termo[...]”
e, mais adiante no mesmo parágrafo, ele explicita o acosmismo de Espinosa: “o modo como tal [definido por Espi-
nosa] é justamente o não-verdadeiro, e somente a substância é verdadeira”. (HEGEL, 1970, Leçons sur l’histoire de
la philosophie. Paris, Gallimard, verbete sobre Espinosa).

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Preâmbulo II - Deleuze, A dobra: Se o Barroco instaurou


Leibniz e o barroco, 1988 uma arte total ou uma
unidade das artes, isso
Gilles Deleuze, na conclusão de A se deu primeiramente em
Dobra: Leibniz e o Barroco, segue e extensão, tendendo cada
amplia uma ideia central no livro arte a se prolongar e
de Gebhardt de que obra de arte mesmo a se realizar na se-
barroca opera a interação ativa de guinte, que a transborda.
uma continuidade entre o interno Observou-se que o Bar-
e o externo em um turbilhão de roco restringiria frequen-
movimentos que parece não se de- temente a pintura e a cir-
limitar por nada nem por si, sendo cunscreveria ao retábulos,
como um gesto que se expande mas isso ocorreria porque
para além de si mesmo em uma a pintura sai da sua mol-
multiplicidade de relações simul- dura e realiza-se na es-
tâneas5 : cultura em mármore po-
licromado; e a escultura
ultrapassa-se e realiza-se
O quadro é uma parte do na arquitetura; e a arqui-
infinito que transborda da tetura, a sua vez, encon-
moldura, a estátua é um tra na fachada uma mol-
turbilhão do rio infinito dura, mas essa própria
que uiva por através da moldura desloca-se do in-
igreja barroca, e o espaço terior e coloca-se em re-
mesmo da igreja se cons- lação com a circunvizi-
titui num quadro de altar, nhança, de modo que rea-
e uma estátua não é nada liza a arquitetura no urba-
outro que a nave do infi- nismo (DELEUZE, 1991,
nito (GEBHARDT, 2000, p.187).
p.107).

Na versão desdobrada de Deleuze, Ainda que o livro de Deleuze seja


em uma das passagens mais belas sobre Leibniz e o barroco, a força
do livro: de tal ideia – que apresenta, nas

5 Esta característica torna-se extremamente patente na produção artística seiscentista, por exemplo, no drama
em que palco fictício era posto no próprio palco, ou quando o auditório era incluído na cena (BENJAMIN, W. Ori-
gem do drama barroco alemão. São Paulo, Brasiliense, 1984); nas pinturas que possuem molduras pintadas dentro
da sua representação, ou quando as próprias molduras se tornam tão importantes quanto as obras de arte por elas
cercadas; no uso de espelhos da que refletem espaços para além da própria superfície da tela, como nas Meninas de
Velázquez; ou ainda, na inacreditável dinâmica dos movimentos em todas as direções nas esculturas de Bernini.

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obras de arte seiscentistas, uma de Leibniz. Neste sentido, o espi-


causa atuosa que faz com que elas nosismo, influência inegável nas
se expandam tanto internamente obras de Deleuze, ainda que não
quanto externamente em um con- seja mencionado explicitamente,
tínuo como uma multiplicidade faz sentir-se em sua presença ma-
de relações ativas – irá abalar a ciça: não teríamos em sua conclu-
argumentação deleuziana acerca são um barroco espinosano? Eis
de Leibniz. Ora, a tal ideia não que na conclusão de A dobra: Leib-
nos afastaria de Leibniz, pois a niz e o barroco, após uma longa
força desta poética que nos leva aproximação sistemática entre a
a interpretá-la como expressão da harmonia pré-estabelecida das mô-
ideia de um infinito em ato ou ab- nadas e a harmonia da música
solutamente infinito, que nunca barroca em acordos/acordes, mô-
poderia ser a decorrência de uma nadas tônicas/dominantes, Deleuze
predeterminação, mas se consti- faz o inesperado e rompe a base
tui exatamente como a própria or- mais elementar do pensamento de
dem de interação e de transfor- Leibniz: abre as mônadas. Es-
mação de uma realidade conce- tas, que necessariamente sempre
bida em ato a partir de partes in- estariam submetidas à clausura,
tra partes6 ? Não haveríamos nos em cujo interior se incluiria o uni-
aproximado de Espinosa? De fato, verso inteiro (não podendo haver
a ideia de uma ordenação como existência fora delas), ao serem
uma abertura para uma multi- abertas romperiam diretamente,
plicidade simultânea se aproxima tanto com a filosofia de Leibniz,
muito da imanência em Espinosa. quanto com a própria sistemati-
Assim, a despeito da intenção de zação entre a harmonia musical e
uma leitura leibniziana do bar- a harmonia metafísica que o au-
roco, vemos Deleuze, em sua do- tor acabara de propor. Segundo
bradura, necessariamente chegar Deleuze, a seleção que as môna-
a uma conclusão que o distancia das operam acabaria por desapa-

6 Tanto Espinosa como Leibniz operam com a ideia de absolutamente infinito ou infinito em ato, uma ideia que
se contrapõe à noção de um infinito potencial e acumulativo, ou seja, composto pela adição de partes discretas. O
infinito em ato faz com que as partes sejam partes intra partes, em que cada parte se prolonga ao tomar parte em
novas relações com outras partes, constituindo dinamicamente um novo indivíduo, ainda mais complexo (ou am-
plo); o que, também, exige que cada pequena parte seja constituída também de partes intra partes ainda menores.
Por um lado, não existe algo como um átomo ou uma unidade discreta mínima; por outro, tudo estaria, ao mesmo
tempo, em uma relação que constitui sempre algo maior; lembremos como Espinosa define a própria noção do li-
mite como isso que podemos conceber no interior de outro ainda maior e que o envolve; o que nos levaria ao limite
de conceber a natureza como um único indivíduo, isso é a “fisionomia total do universo” como escreve Espinosa a
Oldenburg (na carta 32). Contudo, Espinosa demonstra que ambos limites (tanto o atômico como a natureza como
um único individuo) são entes abstratos sem realidade concreta na imanência da substância, ou melhor, são apenas
auxila imaginari, auxiliares imaginários, ou entes de razão, de nossas operações intelectuais.

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recer e, assim, a harmonia univer- seguem linhas de melo-


sal perderia todo o seu privilégio dia), mas as duas entram
de ordenação; e as dissonâncias em fusão numa espécie de
à harmonia já não teriam de ser diagonal em que as mô-
“resolvidas” e as divergências po- nadas interpenetram-se,
deriam ser afirmadas em séries modificam-se, [...] consti-
que escapariam à predetermina- tuindo outras tantas cap-
ção, e, assim, dissolver-se-ia a pró- turas transitórias. A ques-
pria harmonia preestabelecida. Se- tão é sempre habitar o
gundo Deleuze: mundo, mas o habitat mu-
sical [...] e o habitat plás-
tico [...] não deixam sub-
dir-se-ia que a mônada, o
sistir a diferença entre o
cavaleiro de vários mun-
interior e o exterior, en-
dos, é mantida semiaberta
tre o privado e o público:
como que por pinças.
eles identificam a varia-
Uma vez que o mundo é
ção da trajetória, e dupli-
agora constituído por sé-
cam a monadologia com
ries divergentes (caosmos)
uma “nomadologia” (DE-
ou que o lance de dados
LEUZE, 1991, p. 208).
substitui o jogo do Pleno,
a mônada já não pode
incluir o mundo inteiro Assim, as mônadas são desdobra-
como um círculo fechado das em uma atividade muito pró-
modificável por projeção, xima à nossa concepção de ima-
mas ela se abre a uma tra- nência. Leibniz ficaria horrori-
jetória ou espiral em ex- zado, mas, a despeito de suas in-
pansão, que se distancia tenções, Deleuze está correto, pois
cada vez mais de um cen- para tornar a monadologia ade-
tro. Já não se pode dis- quada ao que houve de mais radi-
tinguir entre [...] o estado cal na arte do XVII, esta teria que
privado de uma mônada mudar a sua base mais elementar,
dominante (que produz a própria mônada, aproximando-
em si mesma seus pró- se ao que com maior intensidade
prios acordos/acordes) e procurou negar: a filosofia de Es-
o estado público das mô- pinosa7 .
nadas em multidão (que Neste turbilhão imanente de

7 Cabe lembrar que, em uma carta a Bourget, Leibniz afirma que, se não fossem as mônadas, sua filosofia cairia
no espinosismo.

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uma arte que cada gesto, sem uma ação histórica em pleno de-
qualquer predeterminação, trans- senvolvimento. Assim, chegamos
borda a si mesmo, em um extremo a uma arte que sequer representa
imaginário onde o pintor se torna a realidade, mas é parte de seu
urbanista e vice-versa, eis que, próprio discurso social, poético
neste limite da imanência “as es- e histórico. Contudo, devemos
culturas são aí verdadeiros perso- nos lembrar que a multiplicidade
nagens, e a cidade é um cenário, destes artistas-atores, bailarinos-
sendo os próprios espectadores espectadores (e demais variáveis
imagens pintadas ou esculturas. A atuantes) neste teatro vivo dan-
arte inteira se torna socius, espaço çam uma música imanente, sem
social público, povoado de baila- uma harmonia preestabelecida que
rinos barrocos” (DELEUZE, 1991, lhes fornecesse uma continuidade
p. 187), como escrevera Deleuze. linear e simples de suas tramas
Nesta arte, em que a imagem de narrativas.
um desenho transborda-se na ar-
quitetura, naturalmente acaba-
mos por atingir a própria cidade
II - Drama da imanência - Ben-
em sua realidade sócio-histórica
jamin, Origem do drama barroco
enquanto mais um limite desta
alemão, 1928
“representação” poética. Neste
sentido, temos uma arte que in- O drama da imanência será figu-
clui o espectador real, em seu ato rado em uma das leituras filosó-
poético de transformação (cria- ficas mais famosas e instigantes
ção), uma arte que não se con- acerca do universo da arte seis-
tenta em ser a mera representação centista: a Origem do drama bar-
de um modelo de beleza abstrato, roco alemão de Walter Benjamin,
ideal ou transcendente, mas busca fazendo com que a multiplicidade
mesclar-se à própria realidade vi- sem predeterminação da imanên-
vida na e pela própria cidade. As- cia assuma um contorno comple-
sim, muito distante da busca de tamente contrário ao espinosano,
um ideal externo que transcenda pois esta será tomada negativa-
a própria realidade do artista, te- mente como um saldo de aleato-
mos uma arte que não mais pode riedade e melancolia.
ser tomada enquanto mera repre- Pretendemos mostrar como as
sentação ideal, mas é efeito da e principais ideias presentes nos
procurará voltar-se para a própria dois preâmbulos também estão,
realidade em que toma parte, na de certo modo, articuladas e de-
interioridade de um discurso e de senhadas por Benjamin ao relacio-
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nar a imanência a mais uma forma do período barroco, onde vemos


de arte barroca: o teatro. No o drama da imanência, na expres-
primeiro preâmbulo, vimos como são concebida Benjamin, se trans-
Gebhardt concebe a imanência e formar em uma pilha de corpos.
a visualidade da pintura barroca A consequência radical da assi-
enquanto formas não limitadas e milação da imanência à cena te-
portanto irracionais. No segundo atral alemã seria o efeito quase
preâmbulo, analisamos que para imediato da ação histórica de um
Deleuze a imanência e a música mundo religiosamente incapaz de
barroca são compreendidas como ascender ao plano transcendente,
aberturas para uma multiplici- pois o mistério da crônica cristã,
dade de relações simultâneas que que abrangia a totalidade da his-
em ato negam qualquer predeter- tória universal, não poderia mais
minação proveniente de uma har- ser encontrado quando, segundo
monia metafísica transcendente. Benjamin:
Nesta última parte, analisaremos
como tais teses encontram-se en-
trelaçadas na imanência articu- a cristandade europeia es-
lada entre irracionalidade e a ne- tava dividida numa mul-
gação de qualquer predetermina- tiplicidade de reinos cris-
ção transcendente que constituem tãos, cujas ações históri-
a chave da compreensão do filó- cas não mais aspiravam
sofo alemão acerca o luto que re- a transcorrer dentro do
cobre a essência mais íntima do processo de salvação. O
drama alemão seiscentista que en- parentesco entre o drama
contrará no solo histórico sob o re- barroco e o mistério é
gime da imanência um dos prin- posto em questão pelo de-
cipais motivos, se não o próprio, sespero radical que pare-
para o desacerto do mundo. cia ser a última palavra
Benjamin conceberá a imanên- do drama cristão secula-
cia como um poço de melancolia rizado (BENJAMIN, 1984,
que, contrariamente à vitalidade p.101).
da proposta por Espinosa, será fi-
gurada eminentemente na alego- De fato, vários séculos de cristia-
ria de um cadáver; assim, con- nismo que precederam o XVII ti-
duzimos nossa análise não exa- nham no mistério transcendente
tamente para uma obra de arte, da Graça Divina a garantia do seu
mas para o interior de uma das sentido último por uma história
leituras mais melancólicas acerca universal, ideal e revelada que nos
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ESPINOSA

conduziria em direção a nossa re- donado por Deus, constituindo-


denção; e, assim, todas as ações, se como uma physis cega, a pró-
das mais simples na vida cotidi- pria natureza em um estado de
ana até as decisões mais contun- pura aleatoriedade. Eis que, mais
dentes e complicadas do Estado, baixo que os animais que habita-
teriam os seus papéis justificados, riam um estado de ignorância ino-
ainda que em um horizonte para cente, restaria ao personagem bar-
além de uma história empírica e roco apenas o martírio da culpa de
principalmente para além do en- haver se perdido de Deus. O bar-
tendimento humano. Segundo roco teria se perdido das leis que
Benjamin, o drama alemão, ao ordenariam a vida mundana, es-
contrário do barroco literário ibé- sas completamente derivadas de
rico, teria se perdido inteiramente uma causa transcendente, isto é,
na desesperança da condição ter- da vontade divina. Leis que, na
rena; e mesmo a renascença, com interpretação de Benjamin, fariam
seu intenso desenvolvimento hu- com que a ação humana carecesse
manista, em comparação à condi- de qualquer poder efetivo e tam-
ção alemã, não apareceria como bém de qualquer contingência,
uma época incrédula de paga- pois todas as ações seriam no má-
nismo, mas como uma era profana ximo um produto secundário, se-
e de grande liberdade mística e re- guindo a predeterminação da von-
ligiosa (BENJAMIN, 1984, p. 102). tade divina, no máximo as suas
Vemos então configurar-se no ações teriam um papel acessório
XVII alemão a origem do drama como no ocasionalismo de Male-
da imanência, expressão cunhada branche. Esta causalidade trans-
por Benjamin, como a imanência cendente, que fornecera o sentido
que em si mesma nunca poderia comum a todos os seres humanos,
ser aceita como um bem, mas, sim, seria irreparavelmente fraturada
entendida como um castigo neces- num século XVII reformado, em
sário enviado por Deus, devido ao que o avanço da ideia de imanên-
mais antigo dos pecados, o ori- cia irremediavelmente se propa-
ginal cometido por Adão. Nesta garia com sua exigência de uma
perspectiva, a imanência seria a vida, em todos sentidos, terrena e
condenação de uma vida longe de profana.
Deus: o personagem barroco, re- A imanência nos forçaria a
baixado à mera condição humana, abandonar a imagem da ordem
seria completamente incapacitado universal e predeterminada a par-
da existência sacra, e mesmo o tir de um aparato transcendente.
mundo que o cerca estaria aban- Essa seria a velha imagem de or-

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dem transcendente que seria di- fazemos da imanência a imagem


lapidada em prol de uma nova de algo absolutamente caótico, e
ordem imanente, como nos de- sob tais termos o drama da ima-
monstra a filosofia de Espinosa: nência barroca é necessariamente
por um lado, com esta, na ausên- compreendido como o efeito da
cia de qualquer transcendência, catástrofe de uma natureza abso-
teríamos que abandonar a ideia lutamente aleatória e desprovida
de uma predeterminação em uma de sentido. E segundo Benjamin,
vontade divina, assim como a pos-
sibilidade de que a Terra se es-
pelhasse em leis divinas, e, tam- se e homem religioso do
bém, abandonar qualquer possí- Barroco adere tanto ao
vel redenção escatológica extrater- mundo, é porque se sente
rena; além disto, a própria ciên- arrastado com ele em di-
cia que conceberia uma natureza reção a uma catarata. O
hierarquizada dividida nas opo- barroco não conhece ne-
sições reais de categorias e gêne- nhuma escatologia; o que
ros, herdadas de Aristóteles, que existe, por isso mesmo, é
percorreriam toda a Idade Mé- uma dinâmica que junta e
dia, torna-se apenas um aparato exalta todas as coisas ter-
imaginário, assim como os con- renas, antes que elas se-
ceitos transcendentais como uni- jam entregues à consuma-
dade, ser, verdade etc., capazes ção (BENJAMIN, 1984, p.
de identificar qualquer objeto ou 89).
realidade tomados apenas como
entes de imaginação e, por fim, Contudo, veremos que a grande
mas não por último em sua lista catástrofe melancólica do drama
de efeitos heréticos, qualquer fi- da imanência não está na ima-
nalismo no seio da natureza de- nência, mas em um contraditó-
veria ontologicamente ser aban- rio sentimento barroco que, por
donado. Como resultado da ima- um lado, exclui a transcendên-
nência chegaríamos à anulação de cia e, por outro, negativamente
qualquer teologia e mesmo tele- ainda a tem como um impossí-
ologia. Assim, instala-se o mal vel horizonte desejado. Neste
verdadeiro neste mundo barroco drama, a imanência contraditori-
reformado, pois julgando o sen- amente apenas existe em relação a
tido da imanência a partir dos en- aquilo que lhe é exterior, ou seja,
raizados parâmetros imaginários esta se apresenta como negação da
da antiga ordem transcendente, transcendência. Assim, a imanên-
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cia é dada exclusivamente pela transcendente. Por outro lado,


perspectiva saudosista da trans- para se encarar a imanência com-
cendência perdida. Não por acaso, pleta, ou seja, em sua plena po-
esta dramaturgia tem a imanência sitividade, seria preciso realmente
alegorizada no emblema do cadá- abandonar a velha ordem trans-
ver, e a base de sua trama ocorre cendente, e não fazer como a con-
sob o sentimento do luto: diría- traditória maneira do drama bar-
mos que seria o luto de haver per- roco alemão que a nega somente
dido a própria sacralidade trans- para interiorizá-la disfarçada sob
cendente. Assim, a vida neste a forma de uma imanência in-
drama não excederia ao estado de completa e melancólica. Con-
luto da lembrança do corte com tudo, para a religiosidade, ainda
o divino, o que provocará o rei- que reformada, do barroco ale-
nante sentimento de melancolia e mão, seria quase impossível acei-
a obsessão pelo cadáver que mo- tar um Deus realmente imanente
vem o drama alemão8 . A própria que não fosse provido do atributo
noção da natureza imanente como humano da livre escolha e da von-
uma physis cega e desgraçada, pois tade para realizar uma ação; lem-
aleatória, só pode ser compreen- bremos como Espinosa, na parte I
dida como a ideia de uma ima- da Ética, demonstra como, na ima-
nência incompleta, e constituída nência, a espontaneidade da ação
apenas como a carência da velha divina, na verdade, segue de uma
ordem predeterminada pela von- necessidade absoluta, nunca pré-
tade ou por um ideal transcenden- refletida, nem premeditada, nem
tes9 . Ou seja, a ordem imanente decidida segundo uma escolha ar-
é tida por aleatória, pois a com- bitrária; e esta será a perfeição
plexidade de sua ordem é a aber- de uma ação que decorre da ne-
tura para uma multiplicidade si- cessidade intrínseca da identidade
multânea que se desdobra no novo imanente entre essência e existên-
e excede a perspectiva restrita cia, entre natureza naturante e a
e unívoca de uma linha teleoló- natureza naturada.
gica, desde sempre e para sempre,
predeterminada pela velha ordem

8 Lembremos que, em sua argumentação, Benjamin trabalha a gravura Melencolia I de Dürer como uma anteci-
pação da amputação do espírito barroco expresso pelo drama da imanência.
9 Acompanhando Espinosa veremos justamente o contrário do que propõe o drama alemão, pois se levarmos
a rigor a possibilidade do mundo ser criado e ordenado por uma causa voluntária que lhe seja externa, além de
inúmeros problemas teológicos que restringem a própria perfeição de Deus, teríamos uma natureza desregrada e
contingente, como demonstra Marilena Chaui, em ‘Ontologia do necessário’, quarto item do capítulo 6 do Nervura
do Real (CHAUI, 1999, pp. 901-918).

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HENRIQUE PICCINATO XAVIER

Lembremos que para Espinosa em qualquer estruturação artís-


um dos momentos cruciais da tica, como, por exemplo, as di-
vida ética é afastar a tristeza, so- versas práticas de martírios cor-
bretudo, a mais terrível de todas porais enumeradas por Benjamin,
as tristezas, a melancolia e que, nas quais fica explícito o prazer
para ele, “não há nenhuma coisa da crueldade do dramaturgo e das
em que o homem livre pense me- personagens (que se deliciam com
nos do que na morte, e sua sa- o despedaçar da carne humana).
bedoria não é uma meditação so- Pois aos personagens de uma na-
bre a morte, mas sobre a vida.” tureza desgraçada restaria da ima-
(ESPINOSA, 2015, p. 483, Ética nência somente o peso de seus
IV, P.67). Não poderia ser maior corpos, cabendo-lhes apenas o lu-
a distância em relação à concep- dismo sadomasoquista do martí-
ção benjaminiana, na qual a ima- rio. Dentre os diversos exem-
nência é transformada na obses- plos citados por Benjamin, salta
são com a morte, sequer tratando- aos olhos a tentativa impossível
se da obsessiva reflexão sobre o de ascender a alguma significa-
fim da vida mundana e os seus ção sacra por meio da “dissecação
desígnios futuros no eterno além anatômica em que as diversas par-
túmulo (Inferno, Purgatório e Pa- tes do corpo são numeradas com
raíso), mas como uma operação uma insofismável alegria na cru-
que consiste em encarar a vida em eldade desse ato” (BENJAMIN,
si mesma, em seu estado presente 1984, p.242). Pois se o corpo
e terreno, já como a encarnação humano enquanto um organismo
da morte. Neste sentido, o bar- vivo (em sua opulência imanente)
roco de Benjamin, sempre contrá- não cabe na estreiteza de um ícone
rio à filosofia de Espinosa, nunca simbólico que prometeria uma as-
será uma meditação sobre a vida, censão, as suas partes amputa-
e “se os personagens do drama das, classificadas e inertes talvez
barroco morrem, [...] se eles são coubessem. Assim, a imagem do
destruídos não é para que ascen- corpo humano despedaçado será
dam à imortalidade, mas que as- mais uma das alegorias da “vida”
cendam à condição de cadáver” barroca que, no mais primoroso e
(BENJAMIN, 1984, p.241). As- sádico dilaceramento, apenas pro-
sim, em oposição à vitalidade da duz a dispersão do corpo em uma
concepção espinosana, o drama inútil fragmentação classificatória
alemão, em sua imanência nega- em que inumeráveis cortes apenas
tiva, produziria inúmeras coisas reconduzem à falta de sentido, ao
que até então não tinham entrado

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O DRAMA DA IMANÊNCIA: GEBHARDT, DELEUZE, BENJAMIN E O INFINITO BARROCO DE
ESPINOSA

nada, ao vazio10 .

‘In Occasionem’ emblema CXXI do livro Emblemata, de Andrea Alciato, edição de 1548.

10 Mais ainda, para Benjamin o estado de exceção na política seria fruto desta imanência negativa que naturalmente
levaria à contraditória soberania dos tiranos. Pois, uma vez que a realidade não possui uma ordem, ao soberano
seria designada uma tarefa impossível: dar ordem a isso que essencialmente é necessariamente desprovido dela.
Assim, restar-lhe-ia um contraditório e inexorável papel, também, de mártir, pois, sendo o soberano parte desta
mesma natureza, as suas ações também seriam desprovidas de ordem e somente pela violência ele estabeleceria
uma ordem social que, contudo, seria apenas a contingência melancólica redobrada. Por outro lado, em Espinosa,
a democracia é o mais natural dos regimes, sendo explicado como um fruto da própria imanência. Assim, um
desdobramento futuro a ser desenvolvido por nossa pesquisa tem como horizonte a compreensão da positividade
da imanência na política. Gostaríamos de seguir as demonstrações de como uma ontologia imanente é a causa da
estruturação da democracia real, entendida por Espinosa como o mais perfeito dos regimes políticos e assim dar
uma resposta à equivocada aproximação entre imanência e estado de exceção.

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ISSN: 2317-9570
HENRIQUE PICCINATO XAVIER

Vimos como a experiência hu- imanente desta multiplicidade em


mana, regulada pela imaginação ato, que imaginariamente tanto
ao buscar na natureza uma or- inspira o medo de nossa fragi-
denação preestabelecida, linear e lidade frente à fortuna. Pene-
unívoca (como no drama de Ben- trar neste caminho implica em
jamin), ao confrontar-se com a entender a própria liberdade de
multiplicidade de uma ordena- uma natureza em um movimento
ção imanente, parece nos conde- constante de auto-diferenciação,
nar a viver em um labirinto de ou seja, não se busca simplificá-
contingências de múltiplas cau- la ou estagná-la, mas reconhecer
sas simultâneas em múltiplos pla- a ordem desta transformação in-
nos de acontecimentos que estão, cessante que apenas imaginaria-
ainda por cima, em constantes mente pode ser tomada enquanto
mutações11 . Como se estivésse- aleatoriedade. Entender, acima
mos obrigados a viver à mercê de tudo, seria um respeito ao que
da velha imagem feminina da for- irredutivelmente é sempre com-
tuna12 , uma das alegorias mais fa- plexo (e nunca poderia ser redu-
mosas da literatura barroca, que zida a uma perspectiva simples
no girar em falso de sua roda, em uma linearidade predetermi-
de uma mesma maneira arbitrá- nada). Entender a sua complexi-
ria, distribui e tira bens. Con- dade é deslocar-se, movimentar-
tudo, a Ética de Espinosa vem se, expandir-se e no interior
jogar luz e reforçar o contraste desta multiplicidade, é conscien-
desta imagem desafortunada do temente ligar-se ao mundo, o que,
labirinto de contingências, produ- ao mesmo tempo, significa agir ra-
zindo um claro contraste em que cionalmente, pois é encontrar a
o próprio labirinto se desfaz ao potência da mente humana imersa
expor, frente à multiplicidade do no conhecimento da ordem fixa e
ente absolutamente infinito, um imutável da natureza.
árduo e complexo, embora inequí- Neste caso, também não pode-
voco, caminho rumo ao seu enten- mos cair no equívoco da má e su-
dimento. A Ética, sua obra má- perficial interpretação acerca do
xima, nos fornece um claro exem- que seria “a ordem fixa e imu-
plo de como penetrar na ordem tável da natureza” que nos leva-

11 Como Espinosa escreve na Ética, no escólio da Proposição 42 da Parte V: “Com efeito, o ignorante, além de ser
agitado pelas causas externas de muitas maneiras, e de nunca possuir o verdadeiro contentamento do ânimo, vive
quase inconsciente de si, de Deus e das coisas;[...]” (ESPINOSA, 2015, p. 579.)
12 Como ilustrada no famoso emblema CXXI, ‘In Occasionem’, do livro Emblemata de Andrea Alciato cuja pri-
meira publicação é de 1531.

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O DRAMA DA IMANÊNCIA: GEBHARDT, DELEUZE, BENJAMIN E O INFINITO BARROCO DE
ESPINOSA

ria a crer em um determinismo – nexão necessárias que definem a


ou como se diz no XVII, um fata- natureza imanente e que determi-
lismo – que impossibilitaria conce- nam a inteligibilidade de sua com-
ber a liberdade no interior da fi- plexa atividade de transformação,
losofia de Espinosa13 ; muito pelo vemos que nesta se radica a mais
contrario, quando nos voltamos, completa liberdade.
com o filósofo, para a ordem e co-

Referências

ALCIATO, A. (1548). Emblemata. PDF digital da edição de 1548, obtido


na internet.
BENJAMIN, W. (1984). Origem do drama barraco alemão. São Paulo, Bra-
siliense.
CHAUI, M. (1999). ‘Ontologia do necessário’ quarto item do Cap. 6
do Nervura do Real, Vol. I, São Paulo, Companhia das Letras, pp.
901-918.
DELEUZE, G. (1991). A dobra, Leibniz e o barroco. Campinas, Papirus.
ESPINOSA, B. (2015). Ética. São Paulo, Edusp.
GEBHARDT, C. (2000). Spinoza, judaisme et barroque. Paris, Presses de
l’Université Paris-Sorbone.
HEGEL, G. W. F. (1970). Leçons sur l’histoire de la philosophie. Paris,
Gallimard.
WOLFFLIN, H. (2005). Renascença e Barroco. São Paulo, Perspectiva.
_________. (1984). Conceitos fundamentais da História da Arte. São
Paulo, Martins Fontes.
XAVIER, H. (2016). “Espinosa, melancolia e o absolutamente infinito
na geometria dos indivisíveis do século XVII” . In: Cadernos Espi-
nosanos, nº 35, pp. 295-347.

Recebido: 02/07/2019
Aprovado: 09/11/2019
Publicado: 17/11/2019

13 O equívoco imaginário de um fatalismo apenas ocorre quando supomos a ordem natural como linear e a
liberdade como escolha voluntária em vista de fins.

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ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v7i2.25586

Há Abstração de Si na Origem de Toda a Abstração na


Filosofia de Espinosa?
[Is There an Auto-Abstraction within All Abstraction in Spinoza’s Philo-
sophy?]

Rafael Arcanjo Teixeira* Cristiano Novaes de Rezende**

Resumo: Inserido no contexto histórico de críticas à abstração, Espinosa


retoma o tom de sua época e faz severas advertências contra as abstrações.
Entretanto, a crítica espinosana difere de outras da mesma época. Acredi-
tamos que a distinção de Espinosa ocorre porque para ele a abstração não é
apenas uma metodologia epistêmica (o ato de separar e fragmentar os obje-
tos do conhecimento), nem é o estabelecimento arbitrário de princípios para
conhecimento por meio da interferência da vontade no intelecto. Nossa hipó-
tese é que para Espinosa a abstração ocorre quando a força mental produtiva
não se encontra enquanto tal; em outros termos: quando a mente não tem
consciência do seu próprio produzir — é precisamente isso o que chamamos
de abstração de si. Nosso artigo visa abordar essa hipótese e apontar como
o conceito de abstração de si pode auxiliar na interpretação de algumas teses
espinosanas. Ao final deste artigo analisaremos como o conceito de abstra-
ção de si oferece uma chave interpretativa para a hipótese-retórica que abre o
Tratado Teológico-Político.
Palavras-chave: abstração, Espinosa.
Abstract: Spinoza’s criticism of abstraction retakes the common tone
of his own time warning against etc. Nevertheless, the spinozistic critique
differentiates considerably from his contemporaries, whereas he also criticize
some of the philosophers that stand against the concept of abstractions. We
believe that Spinoza’s distinctiveness occurs because he consider abstraction
not only as some epistemic methodology (the act of select, divide and
disintegrate the objects of knowledge), neither the arbitrary foundation of
principles for knowledge through the interference of Will in the Intellect. But
rather as the productive mental force when it is not within itself, therefore,
when the productive mental force isn’t what it should be as it naturally is.
In other words: when the mind has not the counscioness of its own work —
it’s precisely this what we call auto-abstraction. Moreover, our article aims
to approach this hypothesis and elaborate how exactly the concept of self-
abstraction can help us understand some of the spinozian thesis, so that we
may focus on the rhetorical hypothesis that opens the Theological-Political
Treatise.
Keywords: abstraction, Espinosa.

* Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Atualmente realiza pós-graduação latu sensu em Do-
cência do Ensino Superior (pela FARA - Faculdade Araguaia). Também é membro do Programa de Direitos Humanos da
PUC-Goiás (extensão). E-mail: rarcanjo32@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5359-885X.
** Professor da Faculdade de Filosofia da UFG. Doutor em filosofia pela USP. E-mail: cnrz1972@gmail.com. ORCID:

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ISSN: 2317-9570
RAFAEL ARCANJO TEIXEIRA

Em uma conceituação geral, abstrair que por natureza são abstratos (CÉ-
consiste em considerar a parte predi- SAR, J. V. 1958, p. 26). Ao con-
cativa de uma sentença separada de trário dos substantivos concretos que
sua parte nominal. Em outras pa- se referem às coisas cuja a existên-
lavras, trata-se de tomar os predica- cia é autônoma, os substantivos abs-
dos de maneira isolada desconside- tratos andam “encostados” em sujei-
rando que por definição um predicado tos (CÉSAR, J. V. 1958). Domin-
vincula-se a outra coisa sobre a qual gos de Azevedo, na Gramática Naci-
ele predica algo. Podemos também onal de Lisboa, classifica como abs-
recorrer à etimologia para compreen- trato o “substantivo que designa pro-
dermos o que é uma abstração. A priedades ideais comuns a muitos in-
palavra abstração é a tradução por- divíduos, como: virtude, honra [...]
tuguesa para o termo latino abstrac- e os adjetivos e os infinitos dos ver-
tio que é originário de abstrahere e bos substantivados pelo artigo, expri-
este, por sua vez, é fruto da junção mindo qualidades ou sujeito indeter-
do prefixo ab (que tem o sentido de minado como: o belo, o grande, o
afastamento e distância — como no viver” (1889, p. 43-4 apud, idem,
caso de abstinência) com trahere (que p. 28). César, voltando-se mais
significa puxar, como no caso de ex- para o terreno da filosofia, comenta
traho — extrair). Assim, abstrahere, que na tradição aristotélica o ser en-
em sua literalidade, significa puxar quanto substância (οὐσία) representa
para longe, separar e extrair algo do aquilo que não depende ou não de-
todo ao qual pertence. Abstracte é o corre de outro para ser e, consequen-
que foi separado, isolado ou afastado. temente, a substância é a região do
Ainda no nível da linguagem vale concreto. Em contrapartida, os aci-
lembrar que os gramáticos dividem dentes se dividem em três grupos: (I)
os substantivos em abstratos e con- os que são concretos, (II) os que os-
cretos. José Vicente César comenta cilam conforme o uso e (III) os que
que são considerados abstratos aque- sempre são abstratos1 (CÉSAR, J. V.
les substantivos que não subsistem 1958). De acordo com César perten-
sozinhos – em geral são qualidades cem ao primeiro grupo as categorias
de seres concretos como amor, jus- (ou predicamentos) que podem exis-
tiça, beleza etc. Para César, expres- tir sem estarem necessariamente vin-
sões como “a bondade em pessoa” são culadas a um sujeito; a dizer: lugar
tentativas de concretizar substantivos (ποῦ, ubi), tempo (ποτέ, quando), es-

1 César comenta que no caso da quantidade há uma oscilação entre a gramática e a filosofia: as gramáticas tomam a quan-
tidade como um substantivo concreto, enquanto os filósofos podem tomá-la em sentido transcendental e, por isso, de maneira
abstrata. No caso o autor toma a posição gramatical.

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HÁ ABSTRAÇÃO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRAÇÃO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA?

tado (κεῖσθαι, situs), hábito (ἔχειν, século XVII vemos que o termo abs-
habere). Por sua vez, encontram-se tração possui sentidos diversos. An-
no grupo dos oscilantes a ação (ποι- toine Arnauld e Pierre Nicole ex-
εῖν, actio) e a paixão (πάσχειν, pas- plicam, por exemplo, no capítulo V
sio). Finalmente, quantidade (ποσόν, da Logique que, graças à parca ex-
quantitas), qualidade (ποιόν, quali- tensão de nosso espírito, só pode-
tas) e relação (πρός τι, relatio) são mos compreender as coisas compos-
predicamentos abstratos uma vez que tas de forma perfeita “se as conside-
eles estão intimamente vinculados a rarmos por partes e segundo os diver-
algo (a um sujeito)2 . A partir do sos aspectos que elas podem assumir”
que foi dito, podemos observar que (2016 [1683], p. 81) e concluem: “é
o termo abstração geralmente aparece isso que em geral se chama conhecer
associado: (I) à ideia de impossibi- por abstração” (idem, ibidem– itáli-
lidade de existência concreta e autô- cos nossos). Deste modo, para os
noma da coisa referida; (II) à substan- jansenistas a abstração é uma espécie
tivação daquilo que geralmente (ou de metodologia que possibilita a com-
constantemente) é um adjetivo e (III) preensão das coisas complexas3 .
ao processo de isolar o predicado de Arnauld e Nicole oferecem três
um sujeito. exemplos sobre essa maneira de
Feitas essas considerações de âm- “conhecer por abstração”: (I) a ana-
bito geral, faz-se necessário, para o tomia, (II) a geometria e (III) o co-
fim proposto neste artigo, uma breve gito — que para nós é o mais abs-
digressão a respeito do debate sobre trato de todos. Para eles o primeiro
as abstrações no século XVII. Nós to- caso não é uma abstração propria-
maremos dois exemplos paradigmáti- mente dita, de fato o corpo é formado
cos: Antoine Arnauld e Pierre Nicole por partes distintas uma das outras
com a sua Logique e Francis Bacon e seria impossível adquirir conheci-
com o Novum Organum. Não entra- mento do corpo caso não tomássemos
remos nas minúcias dos textos desses as suas partes separadas umas das ou-
autores já que, antes de entrarmos nas tras. O exemplo anatômico é corres-
análises do texto espinosano, preten- pondente, para os jansenistas, ao caso
demos fornecer ao leitor apenas um da aritmética: “toda a aritmética se
vislumbre amplo da discussão seis- funda também nisto” (idem, p. 82).
centista acerca da abstração. Levando-se em conta que não preci-
Ao voltarmos nosso olhar para o samos de nenhuma capacidade espe-

2 Não nos interessa aqui questionar a validade do comentário de César a respeito da lógica aristotélica, antes, nós o citamos
porque ele apresenta de maneira sucinta o sentido geral que o termo “abstração” assume.
3 Vale ressaltar que a definição que Arnauld e Nicole oferecem para o “conhecer por abstração” mantém-se fiel à origem
etimológica do termo abstração que traz em si a ideia de separação e extração.

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RAFAEL ARCANJO TEIXEIRA

cial ou de grande esforço para con- composição —, os jansenistas expli-


tar os números pequenos, “toda a arte cam que os geômetras “não supõem
consiste em contar por partes aquilo de maneira nenhuma que haja linhas
que não poderíamos contar pelo todo” sem larguras ou superfícies sem pro-
(idem, ibidem). Destarte, ao lidarmos fundidades, tão somente acreditam
com números grandes é preciso fa- que se pode considerar o compri-
zer na aritmética o que o anatomista mento sem prestar atenção à largura
faz com o corpo: decompor em partes [...]” (idem, p. 83). O que ocorre
e considerá-las uma a uma em sepa- no caso dos geômetras é, também,
rado. Isso torna evidente que no caso uma separação do complexo em par-
da metáfora anatômica Arnauld e Ni- tes, ou melhor, é, pelo menos no mo-
cole tomam a abstração como meto- mento inicial, uma desconsideração
dologia que procede em ordem analí- dos fatores de complexidade — as in-
tica. O segundo exemplo dado por Ar- tersecções entre as dimensões. Para
nauld e Nicole é o dos geômetras que, Arnauld e Nicole é essa metodologia
segundo eles, para melhor conhecer que torna o espírito “capaz de melhor
os corpos extensos partem primeira- conhecer” (idem, ibidem)4 .
mente de apenas uma das três di- O terceiro exemplo oferecido por
mensões, o comprimento (chamando- Arnauld e Nicole é mais peculiar e,
os de linhas); depois os consideram em nossa leitura, é o que mais pro-
segundo duas dimensões, o compri- priamente pode ser qualificado como
mento e a largura (chamando-os de abstração5 . Trata-se do cogito univer-
superfícies); e, por fim, consideram salizado para todos os seres pensan-
os corpos extensos em todas as três tes. Arnauld e Nicole explicam que se
dimensões, comprimento, largura e eu reflito sobre o fato de estar a pen-
profundidade (chamando-os de sóli- sar e, neste caso, sou eu o que pensa,
dos ou corpos) (idem, ibidem). Em- posso, a partir de um processo de abs-
bora à primeira vista o método ex- tração, “aplicar-me na consideração
posto neste segundo exemplo pareça de uma coisa que pensa sem prestar
possuir alguma coisa da ordem sin- atenção ao facto de ser eu, [...] eu
tética — já que se procede do mais e aquele que pensa sejam a mesma
simples ao mais complexo ordem de coisa” (idem, p. 84). Neste caso há

4 Aqui, assim como no caso da anatomia e da aritmética, a abstração é tomada como um método de aprendizagem. No
primeiro caso, o método de decompor em partes menores é adequado graças à incapacidade da mente e à natureza dos objetos
que são compostos por partes. No segundo caso, o método facilita o conhecimento de coisas que em sua concretude não exis-
tem separadas umas das outras. Vale ressaltar que a maneira em que Arnauld e Nicole tomam a geometria aqui não permite
que ela seja concebida como ciência puramente conceitual. Ao afirmar que no real não há linhas sem largura Arnauld e Nicole
vinculam geometria e extensão, aliás, o próprio conceito de linha (sem largura) é tomado como uma abstração que tem papel
meramente metodológico e didático.
5 Isto é, segundo uma perspectiva espinosana.

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HÁ ABSTRAÇÃO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRAÇÃO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA?

uma cisão imposta entre o pensante samento, isso é, só pode ocorrer na


e o pensamento, cisão que se mani- medida em que é desfeita a autorre-
festa na passagem da ideia do “eu ferência presente no “eu penso” por
penso” para a consideração “de uma meio da extração do “eu” — o que Ar-
coisa que pensa”. Essa cisão permite nauld e Nicole chamam de desconsi-
a generalização do cogito, como ex- derar alguns atributos de uma coisa6 .
plica Arnauld e Nicole: “assim a ideia Assim, o que a Lógica de Port-Royal
que eu conceberia de uma pessoa que chama de abstração é uma metodolo-
pensa poderia representar-me, não so- gia que opera por meio da decompo-
mente a mim, mas a todas as outras sição do concreto em conceitos cada
pessoas que pensam” (idem, ibidem). vez mais elementares e gerais; pro-
Neste caso a abstração opera por ci- cesso que possibilita a ida do singu-
são e generalização. Isso é possível lar concreto ao universal. Por vezes
porque, nas palavras dos jansenistas, os jansenistas parecem misturar o mé-
“perante uma mesma coisa que tem todo analítico com o processo de abs-
diferentes atributos, pensamos num tração. Ainda assim, nos três exem-
deles sem pensar nos outros, ainda plos dados por Arnauld e Nicole para
que haja entre eles uma tão-só distin- o “conhecer por partes” há menções
ção de razão” (idem, p. 83). A re- a uma suposta ampliação do conhe-
ferência à distinção “tão-só de razão” cimento: no primeiro exemplo é dito
é importante, pois no cogito não é que não é possível possuir um conhe-
possível separar realmente o pensante cimento da anatomia ou realizar cál-
e o pensamento (da mesma maneira culos aritméticos se não decompor o
que não é possível separar um passe- corpo ou os números em partes; no
ante do passear). No entanto, é pos- segundo exemplo essa separação em
sível transportar o cogito para uma partes constitui a maneira pela qual
instância abstrata e generalizante: a os geômetras conhecem os sólidos; e,
coisa que pensa. Esse transporte só por fim, no terceiro exemplo a abs-
pode ocorrer graças à cisão “tão-só de tração permite a ascese ao mais geral
razão” entre o eu pensante e o pen- e mais elementar (além de permitir a

6 Arnauld e Nicole oferecem um exemplo complementar deste terceiro modo de conceber as coisas abstratamente: a pas-
sagem da imagem de um triângulo à ideia de extensão pura. Este exemplo estrutura-se da seguinte maneira: (I) supondo que
eu tenha desenhado sobre o papel um triângulo equilátero, na medida em que eu considerar apenas este triângulo poderei ter
apenas a ideia de um triângulo. (II) No entanto, se eu afastar o meu espírito da consideração de todos os acidentes que o de-
terminam – fatores de singularização – e se eu aplicar-me a pensar que se trata de uma figura limitada por três linhas iguais eu
ficarei apenas com a ideia de triângulo equilátero. (III) Se eu for mais longe e ignorar a igualdade entre as linhas, considerando
que se trata apenas de uma figura determinada por três linhas retas, poderei formar uma ideia que representa todos os triângulos
– um conceito universal de triângulo. (IV) Se, além disso, eu desconsiderar as três linhas e focar apenas no fato de que se trata
de uma superfície plana limitada por linhas poderei chegar à ideia de figura retilínea, e “assim posso subir grau a grau até a
pura extensão” (ARNAULD, A.; NICOLE, P. 2016 [1683], p.84). Curiosamente este exemplo inverte a ordem do segundo
modo de conhecer por abstração, pois aqui o ponto de partida é o complexo (um singular concreto: o desenho de triângulo)
enquanto que lá parte-se do ponto para a reta e desta para o plano até chegar à ao corpo (o complexo).

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generalização de conceitos, como no princípios estes que terão bases pre-


caso do cogito). cárias e, por isso, aproximarão mais
Em sentido oposto à lógica de Ar- da ficção que do conhecimento ver-
nauld e Nicole, Bacon faz severas crí- dadeiro. No aforismo XLVIII, Bacon
ticas às abstrações. No aforismo XXII afirma que o intelecto humano jamais
do Novum Organum, o barão de Ve- pode encontrar repouso; agitado, ele
rulam fala que enquanto a verdadeira sempre procura ir além. “Daí ser im-
via para o conhecimento se detém de pensável, inconcebível, que haja um
forma ordenada nos dados da expe- limite extremo e último do mundo.
riência sensível e se eleva gradual- Antes, sempre ocorre como necessá-
mente às coisas que realmente são ria a existência de algo além” (idem,
as “mais comuns na natureza”, a ou- p. 43). Para Bacon, o intelecto
tra via “desde o início estabelece cer- humano, em um determinado domí-
tas generalizações abstratas e inúteis” nio de suas atividades (aquele da via
(BACON, 1999 p. 36). Para Bacon que conduz ao erro) se vê atormen-
tanto a via do erro quanto a da ver- tado por questões às quais não pode
dade partem dos dados sensíveis e da evitar e, no entanto, não pode res-
experiência, ou seja, as vias não se ponder. Como ele fala no aforismo
distinguem quanto à origem de seus XLVI: “o intelecto humano, quando
conteúdos. Partindo ambas de um assente em uma convicção, tudo ar-
mesmo ponto elas só podem se dife- rasta para seu apoio e acordo” (idem,
renciar quanto ao método. No afo- p. 42). No aforismo XLIX, Bacon
rismo IX, Bacon fala que todos os afirma que “o intelecto humano não é
males na ciência se originam quando uma luz pura, pois recebe a influên-
“admiramos e exaltamos de modo cia da vontade e dos afetos, donde
falso os poderes da mente” (idem, p. poder gerar a ciência que se quer”
34) e, também, no aforismo X ele (idem, p. 43). Deste modo, sendo
ressalta que a “natureza supera em o intelecto uma luz afetada pela von-
muito, em complexidade, os sentidos tade ele tende a produzir a “ciência
e o intelecto” (idem, ibidem). Além que se quer” (idem, ibidem), ou seja,
disso, para Bacon “a mente anseia pode compor como ciência o que lhe
por ascender aos princípios mais ge- apetecer. A conclusão desses enca-
rais para aí se deter” (idem, p. 36). deamentos vem no aforismo LI, no
Assim, a abstração ocorre quando a qual Bacon fala que “o intelecto hu-
mente voluptuosa não se detém nos mano, por sua própria natureza, tende
dados primários passando a experi- ao abstrato [...]” e, assim, “é melhor
ência na carreira a fim de estabele- dividir em partes a natureza do que
cer os princípios pelos quais passará traduzi-la em abstrações” (idem, p.
a julgar os novos dados sensíveis — 44). Desta maneira, Bacon toma as

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abstrações num registro diferente do rárquica dos seres, os jansenistas Ar-


tomado por Arnauld e Nicole. No No- nauld e Nicole têm cravado em suas
vum Organum, a abstração não apa- mentes as palavras de Agostinho no
rece como o método de divisão em De Vera Religione: “o que julga é
partes, mas como negligência, confu- maior do que o julgado” (AGOSTI-
são, arrogância e cupidez que levam NHO, 1987, p. 88). Sendo assim,
ao estabelecimento de princípios ge- o espírito humano possui ontologi-
rais incapazes de apreender a concre- camente garantida a capacidade e o
tude e complexidade da natureza. Ne- direito de julgar e determinar o co-
gligência porque o intelecto estabe- nhecimento segundo uma lei própria,
lece na carreira os princípios sobre os ou melhor dizendo, segundo uma lei
quais irá fundamentar-se, sem se de- que transcende à própria natureza e
ter cuidadosamente nos dados empí- que se encontra assegurada na pró-
ricos. Confusão porque sem o devido pria iluminação divina. Bacon, por
cuidado o intelecto acaba misturando outro lado, parte do pressuposto de
aquilo que lhe é próprio — as abstra- que o intelecto humano “por sua pró-
ções — com aquilo que é da natureza. pria natureza” é corrompido. Isso
Arrogância porque tal confusão nasce fica mais evidente se tomarmos nota
de um narcisismo epistêmico no qual do que Bacon fala em The Interpre-
o homem admira desmedidamente o tation of nature e, também, no The
engenho de seu intelecto. Cupidez advancement of learning. No pri-
porque o intelecto opera sob a influên- meiro, Bacon escreve que o homem,
cia da vontade e, por isso, faz a ciên- sendo investido por Deus desde a cri-
cia “que se quer”. ação “da soberania de todas as coi-
Enquanto para Arnauld e Nicole a sas [...] não tinha necessidade de po-
abstração está mais vinculada ao sen- der ou de domínio” (BACON, 1963,
tido etimológico do termo, isto é, ao p. 217 op. cit. in ZATERKA, 2004,
processo de separação e decomposi- p. 96-7); já no Advancement, Ba-
ção, para Bacon ela se aproxima do con afirma que o verdadeiro fim do
ficcional por ser o estabelecimento de conhecimento é a “restituição e res-
alguns princípios abstraídos de par- tauração do homem à soberania e ao
cas experiências – de sorte confusas poder que ele tinha no primeiro es-
e misturadas com elementos que per- tágio da criação” (idem, p. 222 op.
tencentes apenas ao espírito humano. cit. idem, p. 98). Para Bacon o ho-
O núcleo dessa divergência se encon- mem perdeu aquele poder que tivera
tra na maneira pela qual cada uma das nos primórdios da criação, quando ele
duas perspectivas toma a relação ho- foi capaz de ‘chamar as criaturas pe-
mem e natureza. Partindo do pressu- los seus nomes e comandá-las’ (idem,
posto agostiniano de uma ordem hie- ibidem). É a perda desse domínio

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que consiste na própria fraqueza do envolto de questões teológicas. Além


intelecto. Se no aforismo III do pri- disso, tanto Bacon quanto Arnauld e
meiro livro do Novum Organum Ba- Nicole se encaixam naquilo que pode-
con afirma que “ciência e poder do mos chamar de epistemologias da do-
homem coincidem” é porque ele está minação; o primeiro critica as abstra-
convicto de que o projeto científico é ções pois acredita que por meio disso
uma restauração de um poderio per- os homens poderão recuperar o domí-
dido. Além disso, se no mesmo afo- nio sobre a natureza, os segundos to-
rismo Bacon afirma que se deve obe- mam a abstração como metodologia
decer a natureza para vencê-la, isso pois acreditam que os homens pos-
ocorre porque na perspectiva baco- suem ontologicamente garantida a ca-
niana o intelecto já não possui mais pacidade de domínio. Entretanto, pa-
aquela força e capacidade necessária radoxalmente nos dois casos citados
para, a partir de si mesmo, fazer a ci- a abstração aparece vinculada à in-
ência. Não devemos esquecer as pala- capacidade humana: seja entendida
vras finais do segundo livro do Novum como método para a sua superação,
Organum: “Pelo pecado o homem seja entendida como desdobramento
perdeu a inocência e o domínio das de nossa fragilidade.
criaturas. Ambas as perdas podem ∗∗∗
ser reparadas, mesmo que em parte,
ainda nesta vida; a primeira com a re- Espinosa se insere no contexto das
ligião e com a fé, a segunda com as críticas modernas às abstrações. Re-
artes e com as ciências.” (BACON, tomando o tom crítico de sua época
1999, p. 218)7 . Deste modo, pode- ele faz severas advertências contra
mos concluir a partir da análise do as abstrações. No TIE8 ele assevera:
exemplo de Bacon e dos jansenistas “um máximo engano [...] origina-se
Arnauld e Nicole que o tema da abs- do seguinte: eles concebem as coisas
tração nos seiscentos ultrapassa os li- abstratamente demais” (TIE, §74-5).
mites da mera epstemologia e aparece Alguns parágrafos à frente ele faz a
seguinte exortação: “nunca nos será

7 É justamente essa concepção abstrata que Espinosa implode na abertura do TTP. Nós faremos uma análise detalhada sobre
isso no tópico deste artigo intitulado “Um exemplo de como opera a crítica espinosana à abstração de si: a abertura do Tratado
Teológico-Político”.
8 As obras de Espinosa serão citadas com as seguintes siglas e abreviaturas: E: Ética demonstrada em ordem geométrica.
As partes serão indicadas em algarismos romanos. Em algarismos arábicos, acompanhados de abreviaturas, serão indicados: as
definições, suas explicações; os axiomas; os enunciados das proposições, suas demonstrações, os seus escólios; os prefácios e
o apêndice; exemplo: E, III, P24, schol. TIE: Tratado da Emenda do Intelecto (lat.: Tractatus de Intellectus Emendatione). Os
parágrafos serão indicados com § seguido da numeração correspondente (TIE §7). As seguintes abreviaturas serão utilizadas
para se referir às obras de Espinosa: TTP: Tratado Teológico-Político. TP: Tratado Político. CM: Cogitata Metafísica. Todas
as citações da Ética são referentes à tradução realizada pelo Grupo de Estudos Espinosanos da USP, publicada em 2015 pela
Editora Edusp (referenciada na Bibliografia). Todas as citações do Tratado da Emenda do Intelecto são referentes à tradução
de Cristiano Novaes Rezende, publicada em 2015 pela Editora da Unicamp (referenciada na Bibliografia). As demais obras de
Espinosa (incluindo do TTP e o TP) serão citadas de acordo com as normas vigentes da ABNT para citações.

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lícito, enquanto tratarmos da Inquisi- os em três conjuntos de crenças que


ção das coisas, concluir algo a par- exemplificam os erros cometidos pelo
tir de abstrações” (idem, §93). As- Barão de Verulam: (1) a suposição
sim, Espinosa possui uma posição de que o entendimento humano erra
contrária à de Arnauld e Nicole, já por sua própria natureza, pois, tudo
que para o filósofo a abstração jamais concebe segundo a sua imagem e não
pode ser tida como um método para segundo a imagem do universo, (2)
o verdadeiro conhecimento. Entre- a crença de que o intelecto por sua
tanto, isso não o aproxima de Bacon. própria natureza tende ao abstrato e
Ao contrário, ao ser questionado por finge ser fixo o que na verdade é cam-
Oldemburg a respeito de quais erros baleante, e (3) que a vontade humana
ele imputava a Bacon e a Descar- é livre e mais ampla que o próprio
tes, Espinosa responde que, embora entendimento e que por isso ele não
não esteja acostumado a assinalar os é uma luz pura, antes, sofre interfe-
erros cometidos por outros, irá ex- rência da vontade e dos afetos. Se,
por os três principais erros de ambos: conforme explica Lívio Teixeira, para
“primeiro estão muitíssimo distanci- Espinosa todos os erros que os filóso-
ados de conhecer a primeira causa e fos comentem envolvem algum nível
a origem de todas as coisas. [. . . de- de abstração, então, nosso filósofo, ao
pois] não conhecem verdadeiramente caracterizar como errada a crítica ba-
a natureza da alma humana. [. . . por coniana à abstração, acaba por apon-
fim] jamais aprenderam a causa do tar que a própria crítica de Bacon é
erro” (ESPINOSA, 2014, p. 42). O uma abstração. Engenho!
conhecimento dessas três coisas (a Diante do que foi exposto pode-
causa primeira, a natureza da mente mos perguntar em que Espinosa se
e a causa dos erros) é, nas palavras distingue dos filósofos citados quanto
de Espinosa, “indispensável para o ao tema da abstração. Acreditamos
exato conhecimento” e “somente o que tal distinção ocorre porque para
ignora aqueles que carecem em ab- nosso filósofo a abstração não con-
soluto de todo estudo e disciplina” siste apenas no ato de separar e frag-
(ESPINOSA, 1988, p. 82). Duras pa- mentar os objetos do conhecimento e
lavras! Espinosa não se detém apenas não é o mero estabelecimento arbitrá-
no anúncio dos erros alheios, ele dá rio de princípios para conhecimento
exemplos de como estes erros se tor- graças à interferência da vontade no
nam manifestos na teoria de Bacon intelecto. Antes, nossa hipótese é
e Descartes. No caso de Bacon, Es- que para Espinosa a abstração ocorre
pinosa parafraseia os aforismos XLI, quando uma força produtiva da mente
XLVIII, XLIX e LI do primeiro li- não se encontra enquanto tal; em ou-
vro do Novum Organum resumindo- tros termos: quando a mente não tem

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consciência do seu próprio produzir se distribuem em sua obra da seguinte


– é precisamente isso o que chama- maneira: quatorze delas estão no TIE,
mos de abstração de si. Assim, se nas onze na correspondência de Espinosa
formulações presentes na Lógica de (uma na Carta II, oito na Carta XII
Port-Royal e no Novum Organum, o e duas na Carta XIX), uma no KV,
problema da abstração aparece como cinco na Ética e, por fim, mais duas
um problema na relação sujeito e ob- menções no TP. Além das já citadas,
jeto, acreditamos que em Espinosa a há mais uma no prefácio que Ludo-
abstração possui sua origem na re- vicus Meyer fez para o Principiorum
lação do indivíduo consigo mesmo9 . Philosophie. Entretanto, a abordagem
Para melhor fundamentar tal hipótese do tema das abstrações não se limita
resolvemos dividir o texto a seguir às já citadas menções. Podermos ava-
da seguinte maneira: primeiro, co- liar a importância deste tema dentro
meçaremos com um panorama a res- da filosofia espinosana recorrendo ao
peito do tema da abstração na obra de levantamento feito por Samuel Ne-
Espinosa; depois entramos no tema wlands sobre os diversos temas que,
da abstração de si; por fim, nós da- segundo o comentador, aparecem re-
remos um exemplo de como opera lacionados a ele na obra espinosana:
a crítica espinosana à abstração de
si. Dessa maneira, nós partiremos do A visão materialista da alma
mais abrangente (a análise geral) até (TIE §74).
o mais concreto (um caso exemplar O paradoxo de Zenão (carta
na obra de Espinosa, o TTP). Prossi- 12).
gamos. Teoria da privação do Mal
(carta 19).
Concepções destorcidas so-
O tema das abstrações na obra de bre a providência e o co-
Espinosa nhecimento Divino (KV I, 6;
CM II, 7).
Em toda a sua obra Espinosa faz trinta Falsa concepção da física
e três menções diretas ao termo abs- mecânica (carta 12).
tração ou a algum termo derivado do Concepções distorcidas da
radical latino abstrac. Tais menções liberdade e da vontade hu-

9 Isso implica dizer que há um certo nível de autorreferência na questão da abstração em Espinosa – o que não nos pa-
rece absurdo diante do que é exposto no KV no Primeiro Diálogo quando a Razão responde para a Concupiscência que “o
entendimento é a causa de suas ideias [. . .], pois que suas ideias dele dependem. E, de outro lado, um todo, tendo em vista ser
composto por suas ideias” (ESPINOSA, B. 2014, p. 65). Isto é, o entendimento não produz seus conteúdos como realidades
externas, não há cisão entre o produzir e o produto do agir mental. Essa identidade entre o entendimento como produtor de suas
ideias e o entendimento como a totalidade de suas ideias nos permite dizer que há uma espécie de “refluxo” sobre o indivíduo
quando este produz ideias abstratamente. Supomos que a superstição seja uma das manifestações desse “refluxo”.

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mana (KV II, 16; carta 2; E tada ao departamento de filosofia da


II P49s). Universidade de São Paulo em 1953
Falsas concepções acerca da — um marco histórico nos estudos so-
perfeição e da imperfeição bre a filosofia de Espinosa. Sob o tí-
(E IV prefácio). tulo A doutrina dos modos de percep-
O problema do Mal (KV, I, ção e o conceito de abstração na filo-
6; E I apêndice; E IV prefá- sofia de Espinosa, a tese de Lívio não
cio). era pioneira apenas por tratar do tema
Formas de antropomorfismo das abstrações, mas por apresentar
teológico (E I apêndice). um original e inédito estudo a respeito
O conceito de faculdades do Tratado da Emenda do Intelecto.
psicológicas (KV II, 16; E Até então, o TIE era tido por muitos
II P48s; E II P49s). (e ainda é para alguns) como um texto
Os afetos de culpa, louvor e demasiado juvenil no qual Espinosa
mérito (E I apêndice). não expõe propriamente a sua epis-
Estética objetiva (E Iapp, G temologia, mas a de Descartes. Con-
2:82); tudo, Lívio Teixeira mostra que as crí-
Teleologia divina ou natural ticas às abstrações presentes no TIE
(E I apêndice). são fundamentais para compreender-
Realismo Moral (CM I, 6; mos a recusa de Espinosa ao dualismo
KV, I, 10; KV, II, 4; KV, I, 6; substancial cartesiano e à teoria da fa-
E IV prefácio). culdade da vontade. O ponto nevrál-
Ceticismo (E I apêndice). gico da tese de Lívio Teixeira é a rela-
(NEWLANDS, S. 2015, p. ção que ele mostra haver entre a epis-
74-5) temologia e a ontologia espinosana.
Sem este vínculo não é possível en-
O levantamento realizado por Ne- tender o âmago do conceito de abstra-
wlands revela que temas caros à Espi- ção em Espinosa: o fato de que para
nosa (como a crítica ao livre-arbítrio, o filósofo as ideias abstratas não são
à teleologia e ao antropomorfismo) apenas entes de razão desprovidos de
são, na verdade, consequências e realidades extramental, mas, também,
desdobramentos das críticas erigidas qualquer conceito concebido à parte
pelo filósofo contra as abstrações. do Todo. Lívio comenta: “abstrair
Embora seja assim, o primeiro grande é querer compreender a parte sem
estudo dedicado ao tema das abstra- o todo. Ou melhor, é atribuir reali-
ções na filosofia de Espinosa só veio dade ao que é parcial” (TEIXEIRA,
a ser realizado na segunda metade do L. [1953] 2001, p. 11). Ora, uma
século XX. Trata-se da tese de livre- vez que o Real para Espinosa consiste
docência de Lívio Teixeira apresen- em uma única Substância que é causa

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imanente de si mesma, e dado que lósofo diz no KV I, 6 (7): “todas as


para o filósofo conhecer é conhecer coisas particulares, e somente elas,
pela causa (ir das causas aos efeitos), têm causa, e não as universais, pois
conclui-se que “só podemos conhecer estas nada são”. Também, no mesmo
a parte a partir do todo ou integrada capítulo do KV, mas agora no §9, Es-
ao todo” (idem, ibidem). Ideias são pinosa toma os conceitos de bem, mal
abstratas não porque são mutiladas, e pecado como abstrações e, por isso,
confusas e desordenadas, ao contrá- como não sendo “outra coisa do que
rio, justamente porque são concebi- modos de pensar, e de maneira ne-
das à parte do Real concreto (o Todo) nhuma coisas ou algo que tenham
é que elas serão mutiladas, confusas e existência” (itálicos de Espinosa). Em
desordenadas, isto é, abstratas. Con- outra passagem do KV – a nota de ro-
ceber uma ideia abstratamente signi- dapé do §4 de KV II, 16 – Espinosa
fica concebê-la fora de suas relações e fala que os conceitos de vontade e
nexos. Conceber algo fora dos nexos intelecto enquanto faculdades do es-
que o constitui significa concebê-lo pírito não passam universais concebi-
parcialmente, sem clareza e distinção. dos a partir de abstrações realizadas a
Além disso, Lívio Teixeira defende partir de volições mentais singulares
que a teoria dos modos de percep- e, por isso, conclui que enquanto ens
ção/concepção realizada por Espinosa rationis “não posso atribuir-lhes nada
no Emendatione, no Breve Tratado e real”. Já nos CM, I, 1, Espinosa diz
na Ética é “um apelo ao aprofunda- que gênero, espécie, tempo, número e
mento da consciência” que simulta- medida “não são ideias de coisas e de
neamente “constitui o processo de eli- modo algum podem ser colocados en-
minação do pensamento abstrato e ao tre as ideias; por isso também não têm
mesmo tempo a identificação da alma eles nenhum ideado que exista neces-
humana com a Realidade” (idem, p. sariamente ou que possa existir”.
171). Para Samuel Newlands esses
Seguindo a via aberta por Lívio trechos parecem endossar que
Teixeira, façamos uma breve análise Espinosa mantém um “strong-
das diversas aparições do tema das anti-abstractionism (SAA)”10 (NE-
abstrações na filosofia de Espinosa. WLANDS, 2015 [I], p. 256). Em
Podemos apreender a visão que Es- outros termos: para Newlands esses
pinosa tem dos conceitos abstratos se trechos aparentemente reforçam que
tomarmos como exemplo o que o fi- para Espinosa as abstrações nada são.

10 Literalmente: antiabstracionismo forte.


11 “(SAA): There are no such things as abstract objects. According to SAA, abstracta do not exist, full stop” (NEWLANDS,
2015 [I], p. 256).

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Assim, de acordo com a SAA “não outra que nos seja familiar e
existem coisas como objetos abstra- que com ela convenha [...];
tos [...] ponto final” (idem, ibidem)11 . de modo semelhante [hunc
Assim, o strong-anti-abstractionism similiter in modum], os filó-
se caracterizaria por uma postura me- sofos reduziram todas as coi-
ramente eliminativa, tomando as abs- sas naturais a certas classes,
trações como meras quimeras ou ir- às quais recorrem quando
realidades a serem descartadas12 . En- ocorre-lhes algo novo e a que
tretanto, em outras passagens do texto chamam de gênero, espécie,
espinosano nós encontramos uma etc (CM I, 1).
posição mais moderada em relação
às abstrações, aquilo que Newlands
chama de “weak-anti-abstractionism Esse trecho insere-se na parte dos Co-
(WAA)”13 (NEWLANDS, 2015 [I] gitata dedicada a explicar o que são
257). Um dos trechos levantados pelo os entia rationis (entes de razão) e,
comentador para reforçar a sua hipó- em vista disso, Newlands comenta
tese é a passagem dos Cogitata I, 1. que na perspectiva de um WAA “os
Lá Espinosa usa o exemplo da técnica objetos abstratos são entidades [en-
mnemônica, que consiste em estabe- tities] dependentes da mente. Mais
lecer relações entre conteúdos men- especificamente, Espinosa pensa que
tais diversos, para explicar os univer- as abstrações são representações con-
sais: fusas de uma mente finita” (NE-
WLANDS, 2015 [I], 257)14 . Assim,
na leitura de Newlands os objetos
Que haja certos modos de abstratos são representações determi-
pensar que sirvam para mais nadas pelos modos finitos de pensa-
firme e facilmente reter as mento15 . A sequência do texto dos
coisas [. . .] consta-o sufici- Cogitata parece reforçar a tese de Ne-
entemente os que utilizam wlands, afinal, Espinosa afirma que
aquela notória regra de me- quando se indaga o que é uma es-
mória pela qual, para reter pécie nada mais busca-se “do que a
e imprimir na memória uma natureza deste modo de pensar, que
coisa novíssima, recorre-se a é deveras um ente e distingue-se de

12 Outras passagens parecem endossar uma posição do tipo SAA, por exemplo Espinosa no §99 do TIE escreve que “é neces-
sário, desde o início, sempre deduzir nossas ideias [...] a partir de um ente real para outro ente real, de modo que seguramente
não passemos a ideias abstratas e universais [. . .] pois interrompem o verdadeiro progresso do intelecto”.
13 Literalmente: antiabstracionismo fraco.
14 “(WAA): Abstract objects are mind-dependent entities. More specifically, Spinoza thinks abstracta are confused represen-
tations of a finite mind” (NEWLANDS, 2015 [I], 257).
15 “In Spinoza’s preferred ontology, abstract objects are the representational contents of particular finite modes of thinking”
(NEWLANDS, 2015 [I], 257).

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outro modo de pensar; esses modos imaginar as coisas entendidas” (idem,


de pensar, contudo, não podem ser ibidem – itálico nosso), e não como
chamados de ideias nem podem ser “representações confusas” , como
ditos verdadeiros ou falsos” (CM, I, afirma Newlands. A respeito da ideia
1). Além disso, Espinosa distingue de representação vale ressaltar que
a ficção da abstração ao afirmar que Espinosa é contrário a tal concep-
um ente de razão não “depende só ção. De fato, na Ética Espinosa se
da vontade e nem consta de termos refere à ideia como “conceito que a
conectados entre si” (idem, ibidem). mente forma por ser coisa pensante”
Vinculando isso com o §93 do TIE — (EII, D3 – itálico nosso). Na explica-
no qual Espinosa fala que devemos ção dessa definição ele acrescenta que
nos acautelar e nunca concluir algo usou o termo “conceito” em vez de
a partir de abstrações ao tratarmos “percepção” com o objetivo de indi-
da inquisição das coisas, evitando, car o caráter ativo da mente. Embora
dessa maneira, confundir o que está Espinosa diga diversas vezes nos Co-
somente no nosso intelecto com o que gitata que os entes de razão não são
está na coisa — Samuel Newlands ca- ideias e não podem ser chamados de
racteriza o weak-anti-abstractionism ideias — afinal toda ideia possui um
(WAA) como sendo uma preocupação caráter objetivo e os ens rationis não
de Espinosa sobre os efeitos de pen- — ele não fala que os entes de ra-
sarmos abstratamente ao investigar- zão são representações. Antes, ele
mos a natureza; a dizer, a reificação se refere aos entes de razão com a ex-
da abstração no conteúdo da investi- pressão “modum cogitandi” que numa
gação16 . tradução flexível poderia ser chamado
Embora a interpretação de Ne- de “maneiras de pensar”. Assim, os
wlands seja riquíssima17 , há alguns entes de razão se aproximam mais
pontos que é útil lembrar ao lidarmos de um modo de operação mental do
com os textos do Cogitata: primeiro, que de uma representação objetiva.
Espinosa mantém-se próximo da lin- Também é preciso ressaltar que na
guagem cartesiana, como pode-se no- definição oferecida por Espinosa aos
tar pela referência à vontade. Além entes de razão no CM ele fala que
disso, Espinosa define o ente de razão eles auxiliam na retenção, explicação
como “um modo de pensar que serve e imaginação das “coisas entendidas
para mais facilmente reter, explicar e [res intellectas]” (CM, I, 1). O que o

16 “Spinoza’s main concern is that thinking abstractly while “investigating nature” often leads to a confused reification of
abstracta” (NEWLANDS, 2015 [I], 265).
17 As considerações de Newlands sobre o tema das abstrações em Espinosa são muito importantes na medida em que ele
aponta para o processo de reificação da abstração. Além disso, Newlands faz uma inovadora leitura sobre a aplicação que
Espinosa faz no campo ético das críticas às abstrações.

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nosso filósofo aponta repetidamente sado. Aqueles que não attendum ac-
nesse primeiro capítulo dos Cogitata curatissimè tendem a cometer o erro
é que o erro em relação aos entes de denunciado no §93 do TIE: mistu-
razão está em afirmá-los como entes rar aquilo que está somente no inte-
[ens], isto é, está em confundir uma lecto (processo) com aquilo que está
maneira de pensar com uma realidade na coisa (processado). A esta confu-
objetiva. Neste sentido, é significa- são acrescenta-se mais uma, originá-
tivo que Espinosa compare os entes ria não apenas da falta de uma caute-
de razão com uma técnica mnemô- losa atenção, mas, também, da dilata-
nica. A relação estabelecida por Es- ção linguística: atribui-se nomes aos
pinosa não é entre tipos de entes (um processos mentais da mesma maneira
real e o outro apenas mental); antes, a que se nomeia coisas. Essa dupla
relação é estabelecida entre uma téc- confusão permite não apenas o total
nica e o que é comumente chamado desconhecimento da natureza da ati-
de ens rationis. Por fim, Espinosa ex- vidade mental quanto a sua reificação
plica a origem da confusão existente numa suposta coisa independente: um
em chamar uma maneira de pensar de suposto ente. Assim, embora dis-
ens: cordamos de Newlands quando ele
chama as abstrações de representa-
ções confusas da mente finita, concor-
a causa por que esses mo- damos com ele quanto ao fato do pro-
dos de pensar são tidos cesso de abstração envolver uma reifi-
como ideias de coisas é que cação. Entretanto, a respeito deste úl-
tão imediatamente provêm timo ponto gostaríamos de acrescen-
e originam-se das ideias de tar que a reificação não ocorre ape-
entes reais que são facil- nas no uso das abstrações (por exem-
mente confundidos com elas plo nas ciências “ao lidarmos com as
por aqueles que não atentam coisas naturais”), mas, sobretudo, a
mui cuidadosamente [accu- própria produção de conceitos abstra-
ratissimè attendum]; donde tos envolve um processo de reifica-
também lhes terem imposto ção. Nossa hipótese é que os próprios
nomes como se para signi- conceitos abstratos são reificações de
ficar entes que existem fora processos mentais na categoria geral
de nossa mente, e chamando de ente. Reificação essa que só é pos-
tais entes, ou antes, não en- sível mediante o apagamento do cará-
tes, de entes de razão (idem, ter produtivo (e, portanto, causal) das
ibidem). ideias. Isso evidencia porque Espi-
A causa da confusão está no fato de nosa diz que da mesma maneira que
confundir o processo com o proces- a técnica mnemônica é apenas uma

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maneira de pensar e organizar os da- apenas um aspecto dessa nota: a refe-


dos de nossa memória, assim também rência à linguagem. Espinosa afirma
as classificações como gêneros, espé- que os homens atribuem aos concei-
cies etc, são modos de pensar. Toma- tos abstratos os mesmos nomes que
dos sob esse prisma, os universais, os usaram para significar coisas que lhes
gêneros e as espécies não passariam são familiares [res familiaria]. Deste
de associações mentais arbitrárias18 modo, a nota h parece solidária do
19
— não são coisas, mas operações Cogitata ao afirmar que há uma trans-
mentais. posição do campo das abstrações para
No entanto, para ficar mais evi- o campo das coisas quando se nomeia
dente o ponto levantado tomemos em as primeiras da mesma maneira que
consideração outro trecho da obra de as últimas. Assim, podemos afirmar
Espinosa em que o filósofo fala sobre que quando o campo semântico que
o tema das abstrações: a nota h do discursa sobre coisas [res] passa a
§21 do TIE. Lá o filósofo explica que ser usado para referir-se às abstra-
quando chegamos às conclusões de ções ocorre um mascaramento das
maneira abstrata é preciso sermos ma- próprias abstrações, que se ocultam
ximamente cautelosos [caventibus]. sob o manto supostamente límpido da
Espinosa informa que tais conclusões, linguagem que discursa a respeito das
ainda que sejam verdadeiras, “não es- coisas.
tão suficientemente protegidas” con- Acreditamos, também, que essa
tra confusões. Que tipo de confu- confusão, ou melhor, transposição de
sões? Espinosa explica: aquilo que um conjunto de signos (palavras que
os homens concebem abstrata, sepa- versam sobre coisas) para um campo
rada e confusamente, “eles impõe no- diverso (o campo semântico das ope-
mes, os quais já são usados por eles rações mentais) explica a primeira
para significar outras coisas mais fa- parte da nota h20 . Antes de tudo,
miliares, o que faz com que aquelas devemos nos lembrar que os nomes
coisas sejam imaginadas do mesmo são signos que pertencem ao campo
modo que estas” (TIE, §21 nota – itá- da imaginação; além disso, sabemos
licos nossos). Gostaríamos de focar que a razão (conforme o exemplo da

18 Que o leitor não confunda arbitrário com livre-arbítrio ou como associações estabelecidas pela vontade (o que aproxi-
maria Espinosa de Bacon). Arbitrário aqui é tomado em seu sentido mais fraco: como algo que não necessariamente possui
correspondência com os entes extramentais.
19 Ora, uma vez que as associações são dependentes de semelhanças, os universais tendem às generalidades abstratas que
não conseguem alcançar singularidades. Isso parece ser reforçado pelo que Espinosa no TIE §93 quando conclui que “a partir
tão somente dos axiomas universais, o intelecto não pode descer às coisas singulares”. Assim, cruzando a passagem do CM
com o §93 do TIE podemos entender o que foi dito em KV I, 6 (7) a respeito de que somente as coisas particulares possuem
causa e as universais não: é que somente as coisas singulares são de fato realidades existentes fora da mente, isto é, são coisas.
20 O início da nota h diz que os homens no uso da razão “se não se acautelam, incidirão imediatamente em erros; pois, quando
se concebem as coisas assim abstratamente e não pela verdadeira essência, são imediatamente confundidos pela imaginação”.

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HÁ ABSTRAÇÃO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRAÇÃO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA?

quarta proporcional nos §23 e §24 do signos”. Portanto, o verda-


TIE) muitas vezes opera pelo mero deiro perigo, [...] é que a ra-
cálculo sobre os signos sem se dar zão se tome e se dê por autô-
conta dos verdadeiros processos men- noma, limitando a percepção
tais que estão envolvidos em tal ação. a essa capacidade de super-
Sobre esse ponto vale retomar aqui visionar o mundo, então re-
brevemente as considerações de Cris- duzido ao objeto X das ope-
tiano Rezende em seu artigo Os Pe- rações racionais (idem, ibi-
rigos da Razão Segundo Espinosa: dem).
a inadequação do terceiro modo de Para o comentador essa operatividade
perceber no tratado da emenda do in- da razão pode desdobrar-se numa
telecto. O comentador argumenta que postura fetichista na qual a pes-
a razão abre chancela para a abstração soa se entreteria mais com a eficá-
na medida em que opera de maneira cia das operações racionais do que
meramente mecânica. Apoiando-se com o próprio estar no mundo, o
no exemplo dado por Espinosa no §24 que redundaria na pessoa deixar de
do TIE a respeito da quarta proporci- “juntar-se ao mundo através de suas
onal, Cristiano Rezende conclui que construções” (idem, p. 112). Em
“a razão realiza certas operações lógi- suma, Cristiano Rezende diz, dando
cas sem que, no entanto, sejam real- um sentido espinosano para a frase de
mente efetuados todos os atos mentais Merleau-Ponty, que a percepção redu-
em que se baseiam os sinais” (RE- zida à sua forma meramente racional
ZENDE, C. N. 2004 p. 111). Este desemboca “numa ciência que mani-
operar às cegas pode degenerar-se em pula as coisas sem habitá-las” (idem,
mera “técnica teórica” aplicada de ibidem). Assim, atribuir às abstrações
maneira generalizada e indistinta a um campo semântico cujo o uso co-
qualquer objeto. Para Cristiano, Espi- mum é direcionado às coisas pode,
nosa diz que a razão opera de maneira em última instância, abrir margem
não adequada justamente porque: para as confusões da imaginação, já
que a razão ao atuar com signos tende
a maneira racional de conhe- a operar de maneira meramente calcu-
cer, à diferença da intelec- lativa.
tual, corre o risco de limitar- A nota h do TIE nos lembra ou-
se à aplicação externa de um tro texto, além dos Cogitata e escrito
instrumento de cálculo, de posteriormente a ambas as obras: o
utilidade inquestionável mas, Compêndio de Gramática Hebraica.
em essência, indistinta de um Espinosa dedica o capítulo V de sua
competente trabalho admi- gramática para explicar o que são no-
nistrativo sobre um “jogo de mes: “por nome entendo uma pala-
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vra pela qual significamos ou indica- Compêndio podemos conjecturar que


mos algo que cai sob o entendimento” na nota h, ao afirmar que nós nome-
(ESPINOSA, B. 2014, p. 418). Na amos abstrações da mesma maneira
sequência Espinosa faz uma ressalva: que nomeamos coisas, Espinosa de-
nem tudo o que cai sob o enten- sejava apontar a tendência de subs-
dimento são coisas, mas, também tantivar aquilo que não é e não pode
“atributos de coisas, modos e rela- ser qualificado como um substantivo
ções, ou ações e modos de relações (como é o caso das abstrações).
de ações” (idem, ibidem). Sendo as- Há em todos esses textos algo cen-
sim, a linguagem possui uma dilata- tral que até o momento não demos
ção maior do que o campo próprio das muita atenção: a referência à cautela.
coisas. Disso a preocupação de Espi- Espinosa fala, na supracitada nota h,
nosa em distinguir o que é um subs- que a confusão ocorre aos que não
tantivo, o que é um adjetivo, o que é são “maximamente cautelosos [ma-
um nome relativo, um particípio, um ximè caventibus]”; nos Cogitata ele
infinitivo e um advérbio. Espinosa fala que isso ocorre aos que não atten-
afirma veementemente que um subs- dum accuratissimè. Isso indica que
tantivo e um nome próprio só podem tais confusões, que redundam na afir-
ser ditos de coisas singulares — “não mação de conceitos ou termos abstra-
podemos indicar senão um indivíduo tos, podem ser evitadas por meio da
singular” (idem, p. 419 – itálico cautela e da atenção ao operar men-
nosso). Capítulos a frente Espinosa talmente de determinada maneira —
volta a insistir que substantivos são no caso dos Cogitata ao fazer associa-
nomes de coisas, “nomes [...] para ções mentais e no caso do TIE ao pro-
indicar as coisas de modo absoluto” ceder de maneira analítica indo dos
(idem, p. 432). Não satisfeito, Es- efeitos para a causa. Esse ponto nos
pinosa faz uma lista com exemplos interessa, pois acreditamos que toda
nos quais demonstra o que é um ad- abstração envolve um certo desconhe-
jetivo e o que é um substantivo. Em cimento de si. Nossa hipótese é que
síntese: em toda a primeira parte do para Espinosa os problemas originá-
Compêndio Espinosa demonstra uma rios no uso dos conceitos abstratos
preocupação atenuada em distinguir não se estabelecem de maneira imedi-
o que é um adjetivo e o que é um ata na relação de um suposto sujeito e
nome próprio ou um substantivo. Es- um objeto, antes, eles são originários
pinosa também alerta que um nome do fato de aquele que se coloca como
relativo, como adjetivos etc, só faz sujeito não se perceber enquanto pro-
sentido em relação a algo e, por isso, dutor das abstrações. Assim, abre-se
‘repugna à natureza dos nomes pró- uma fenda entre o agir mental deste
prios’ (idem, ibidem). A partir do indivíduo e o produto dessa ação de

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HÁ ABSTRAÇÃO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRAÇÃO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA?

tal maneira que aquele que produz as vras, Chaui comenta:


abstrações não tem consciência plena
de seu próprio produzir e nem dos re-
sultados de sua produção. É precisa- nossa mente é uma potên-
mente isso que chamamos de abstra- cia pensante que causa a
ção de si. E é este o próximo foco de suas próprias ideias e as arti-
nossa atenção. cula com outras ideias [. . .].
Ideias são, pois, aconteci-
mentos mentais que, quando
Há abstração de si na origem de verdadeiras ou adequadas,
toda abstração? são atos intelectuais que
põem sua própria necessi-
Até onde sabemos nenhum comenta- dade tanto quanto à sua gê-
dor da obra de Espinosa usou a ex- nese como quanto aos seus
pressão abstração de si, no entanto, efeitos e às relações com ou-
a tradição interpretativa já trabalha e tras ideias, afirmando o mo-
indica a presença deste tema na filo- vimento e o trabalho do pen-
sofia espinosana há um certo tempo. samento que somos e no qual
Em seu Nervura do Real, Marilena estamos (CHAUI, M. 1999,
Chaui ressalta que, para Espinosa, p. 88 – itálicos nossos).
uma vez que somos partes de uma
causalidade imanente, nossa mente é
concebida como vis nativa e espon- Como acontecimento mental uma
tânea para o conhecimento (CHAUI, ideia é originária na atividade interna
M. 1999, p. 83). Isso significa que à própria mente na qual também par-
nossa mente, na medida em que é ticipa efetivamente. Nas palavras de
partícipe do agir da Realidade, age Chaui a atividade mental consiste em
por si mesma segundo a sua neces- compreender a gênese das afecções
sidade interna e as conexões entre as corporais, as relações necessárias en-
suas ideias; ou seja, a mente é, nas pa- tre os corpos, a gênese de suas pró-
lavras de Espinosa, um “automa spi- prias ideias e as conexões necessárias
rituale”. Chaui chama a nossa aten- entre elas de tal maneira a apreender
ção para as seguintes palavras de Es- os nexos que constituem a realidade
pinosa no Breve Tratado: “chamo o inteira e as essências singulares por
Intelecto de causa, enquanto é causa ela produzidas (idem, ibidem). É a
de seus conceitos (ou enquanto de- partir da compreensão dos nexos que
pende de seus conceitos); e o chamo constituem as relações entre os cor-
de todo, enquanto constituído por to- pos, as relações entre as ideias e a
dos os seus conceitos” (ESPINOSA, articulação entre corpos e ideias que
B. 2012 p. 65). À guisa dessas pala- a mente pode enveredar-se, por assim
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dizer, na nervura do real. Ou seja, a de Newlands, que demonstram que


mente pode apreender-se como parte o processo de abstração envolvem a
ativa da Realidade. Lívio Teixeira reificação dos conteúdos meramente
– conforme o que comentamos an- mentais; qual é a conclusão? Pelo
teriormente – e Marilena Chaui nos prisma dessas interpretações a abstra-
mostram que para Espinosa a mente ção não é apenas uma ideia confusa
só pode compreender-se como parte e mutilada, mas, sobretudo, um pro-
de um Todo no momento em que cesso que reflui sobre o indivíduo e
ela encontra-se em plena identidade envolve uma perda de si mesmo. Seja
consigo mesma. Essa identificação uma perda enquanto parte do Todo
nasce do esforço reflexivo da mente (Lívio Teixeira e Marilena Chaui),
em apreender a sua própria gênese seja uma perda em relação à cons-
e a gênese de suas ideias. O cora- ciência de suas próprias atividades
ção dessa via interpretativa está em mentais (Cristiano Rezende e Samuel
mostrar que na filosofia espinosana Newlands). Acreditamos que tal in-
o caminho reflexivo consiste simul- terpretação possui lastro no próprio
taneamente na saída das abstrações e texto espinosano.
na descoberta da mente como partí- Em nossa análise do texto espino-
cipe da atividade do Real concreto — sano nós frisamos a repetida expres-
o que poderíamos chamar de saída de são espinosana “da mesma maneira”
uma condição propriamente abstrata (eodem modo no TIE e hunc simili-
na qual o próprio homem se concebe ter in modum no CM). É muito cu-
à parte da realidade e do Todo. Assim, rioso que em vários dos momentos
cruzando (I) a tese de Lívio Teixeira, que Espinosa explica o processo de
na qual a abstração consiste em con- abstração ele usa exemplos de outros
siderar a parte fora do todo; (II) os processos mentais que operam “da
comentários de Marilena Chaui, que mesma maneira”. Nos dois casos aqui
mostram que a superação da abstra- citados (a formação dos conceitos de
ção é a verdadeira entrada da mente espécie e gênero no CM e o ato de no-
na nervura do real, isto é, o seu en- mear na nota h do TIE) Espinosa usa
contro consigo mesma como parte exemplos comuns e cotidianos. As-
da atividade do Real; (III) os traba- sim, Espinosa parece vincular a abs-
lhos de Cristiano Rezende, nos quais tração a uma atividade banal e sem
evidencia-se que para Espinosa a abs- grandes mistérios (o ato de nomear,
tração envolve a construção de uma calcular uma regra de três ou uma téc-
racionalidade meramente instrumen- nica mnemônica). A diferença entre
tal e incapaz de compreender todos essas ações comuns e as abstrações
os atos mentais implicados em seus não nos parece estar associada aos
cálculos; e, por fim, (IV) as pesquisas processos dessas atividades. A dis-

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tinção entre a técnica mnemônica e de nosso trabalho mental com desco-


a formação dos gêneros, por exem- bertas que aparecem como indepen-
plo, não parece encontrar-se na lógica dentes de nós e existentes em si mes-
operativa pela qual cada um desses mas. A abstração envolve um modo
processos ocorrem. Antes, ela pa- de produção no qual a causalidade
rece residir no grau de consciência imanente é apagada em detrimento de
que a pessoa tem a respeito do seu uma causalidade transitiva que pende
próprio agir mental. Um gênero é para o transcendente de tal maneira
formado hunc similiter in modum à que produtor e o produzido não se
técnica mnemônica. Nomeia-se um identificam. Aliás, essa é a marca da
conceito abstrato da mesma maneira causalidade transcendente: a cisão ir-
que nomeia-se uma coisa. A dife- remediável entre causa e efeito.
rença, porém, é que aquele que aplica A urgência de um autoconheci-
e técnica de associação mental das mento aparece diversas vezes no TIE.
memórias sabe que fez tal associ- No §105 do TIE, Espinosa escreve
ação e, em consequência sabe que que o método para se chegar ao co-
ela é arbitrária e não algo que exista nhecimento das coisas eternas é refle-
fora de sua mente. Ocorre o mesmo xivo e consiste em conhecer o próprio
com aquele que nomeia algo e sabe intelecto: suas forças e suas propri-
o que nomeou; ainda mais, sabe o edades. Também, no mesmo pará-
que é nomear e que tipo de nome grafo, Espinosa fala que este autoco-
dar de acordo com o que se nomeia. nhecimento por parte do intelecto é o
Por outro lado, aquele que concebe meio para a aquisição do fundamento
abstratamente “vive quase inconsci- a partir do qual “deduziremos nos-
ente de si, de Deus e das coisas” (E sos pensamentos na medida em que
V, P42, sch.)21 . Ou seja, não sabe nossa capacidade suporta”. No §25
que os gêneros são frutos de seu la- TIE o primeiro ponto levantado por
bor mental, não sabe o que nomeia e Espinosa para alcançar o “nosso fim”,
nem sabe nomear. O mais trágico é aquele que se encontra no §13 do
que este não saber permite a reifica- TIE (o “conhecimento da união que a
ção do labor mental numa abstração mente tem com a Natureza inteira” –
que aparece para o indivíduo como que é também a saída da abstração), é:
coisa real, desconectada dele e a ele “(i) Conhecer exatamente a nossa na-
revelada. Quando operamos de ma- tureza, que desejamos aperfeiçoar e,
neira abstrata confundimos os frutos simultaneamente, da natureza das coi-

21 É importante lembrarmos que quando Espinosa critica Descartes e Bacon à Oldemburg na Carta II ele fala que ambos os
filósofos encontram-se em situação relativamente próxima da citada neste escólio: “o primeiro e maior erro de ambos consiste
em que estão muitíssimos distanciados de conhecer a primeira causa e a origem de todas as coisas [Deus]. A segunda é que
não conhecem verdadeiramente a natureza da alma humana [inconsciência de si]” (ESPINOSA, 2014, p. 42).

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sas quanto seja necessário” (TIE, §25 o autoconhecimento, ou melhor, o co-


– itálicos nossos). De outro modo: nhecimento reflexivo, o que impede a
sair da abstração e conhecer a união hipótese de ser classificada no §57 do
que a nossa mente tem com a natu- TIE como mera abstração. Vejamos.
reza inteira envolve necessariamente Cristiano Rezende comenta que o
e em primeiro lugar “conhecer exa- estatuto epistêmico das hipóteses era
tamente nossa natureza” (idem, ibi- algo em disputa no século XVII22 .
dem). Também, no mesmo sentido, A tradição havia caracterizado as hi-
o §16 do TIE afirma: “antes de tudo póteses como um tipo de proposição
[ante omnia], porém, há de se exco- da qual não é possível, num primeiro
gitar um modo de remediar o inte- momento, haver demonstração e que
lecto e expurgá-lo, o quanto permite estabelece ou não o ser de algo. Ori-
o início, para que ele intelija as coisas ginária da palavra ὑπόθεσις, do grego
com felicidade, sem erro e da melhor antigo, ‘hypóthesis’ (transliteração) é
maneira”. Na sequência Espinosa fala formada pela união de ‘hypo’ (‘sob’,
que para realizar tal intento faz-se ne- ‘abaixo de’) e ‘thésis’ (‘posição’).
cessário “que eu resuma aqui todos os Assim, uma ‘hypothesis’ caracteriza-
modos de perceber de que até agora se pelo ato de fazer deduções concisas
dispus para afirmar ou negar algo [...] a partir da ação de colocar algo sob
para que eu eleja o melhor de todos [hypo] uma certa perspectiva intelec-
e simultaneamente comece a conhe- tual [a thesis] — perspectiva essa que
cer minhas forças e natureza, que de- só pode ser intelectual, pois não há
sejo aperfeiçoar” (TIE, §18 – itálico como realizar experimentos daquilo
nosso). Se nos textos em que Espi- que não é efetivo, mas contrafactual.
nosa trata da abstração ele faz refe- Nos seiscentos, porém, as hipóteses
rências aos que não são cautelosos, haviam sido reduzidas ao instrumen-
não prestam atenção e não conhecem talismo. O exemplo máximo disso
a natureza do intelecto, nos textos em encontra-se na disputa entre teólo-
que ele propõe a maneira de sair da gos e cientistas com relação à vali-
abstração ele sempre exorta o retorno dade das hipóteses do De Revolutio-
a si na busca do autoconhecimento. nibus Orbium Coelestium de Copér-
Para acrescentar um exemplo a res- nico. Andreas Osiander, em vistas de
peito de quão determinante é o co- abrandar os teólogos, inseriu apocri-
nhecimento de si nós citaremos, ainda famente no Revolutionibus um prefá-
que brevemente, a questão das hipóte- cio no qual dizia: “não é necessário
ses em Espinosa. Acreditamos que é que essas hipóteses sejam verdadei-

22 Cf. REZENDE, Cristiano N. O Estatuto das Hipóteses Científicas na Epistemologia de Espinosa. Cadernos de História
de Filosofia e Ciência, Campinas, Série 3, v. 18, n. 1, jan.-jun. 2008. p. 147-71.

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ras, e nem mesmo verossímeis, bas- derada uma abstração afinal, como
tando apenas que forneçam cálculos vimos no caso dos entes de razão no
que concordem com as observações” CM, Espinosa também os distingue
(OSIANDER, A. apud REZENDE, da mera ficção e da quimera. Veja-
2018, v. 18, p. 150)23 . Dessa ma- mos como prossegue nosso filósofo.
neira, a questão que surge a respeito Definida a quimera e a ficção, Es-
das hipóteses pode ser sintetizada da pinosa fala no §57 do TIE que tra-
seguinte forma: seriam elas apenas tará das “questões supostas, o que
um instrumento abstrato, sem com- por vezes também acontece a pro-
promisso com o conhecimento da re- pósito de impossibilidades”, isto é,
alidade; ou, estariam elas de acordo das hipóteses. Espinosa recorre en-
com a ‘norma da verdade’, isto é, ca- tão ao exemplo da vela ‘ardente que
pazes de proporcionar aos homens não arde’. Ele propõe então duas su-
conhecimentos verdadeiros? Espi- posições hipotéticas nas quais uma
nosa estava consciente dessa discus- vela, ainda que flamejante, perdura
são, prova disso é que ao tratar das sem se consumir: (I) quando dizer-
hipóteses no TIE ele faz referência ao mos “suponhamos que esta vela ar-
tema copernicano24 . Faz-se necessá- dente não arde agora” (idem, ibidem
rio perguntar: o que nos fala Espinosa – itálicos nossos), isto é, quando tra-
sobre as hipóteses? No §57 do Emen- zemos à mente a ideia de uma ou-
datione, Espinosa começa por definir tra vela não acesa; (II) quando, ao
o que é uma quimera e o que é uma contrário, falamos “suponhamos ar-
ficção; somente após isso é que ele der em algum espaço imaginário ou
dedica-se a tratar da hipótese. Ao fa- onde não se dá corpo algum” (idem,
zer isso, a primeira coisa que o filó- ibidem). À primeira vista essas duas
sofo estabelece são as fronteiras entre suposições encaixam-se como a mão
as duas primeiras e a última25 . Disso e a luva naquilo que poderíamos cha-
uma conclusão é imediata: uma hi- mar de processos abstratos ou de abs-
pótese não é uma quimera e não é tração. De fato, no primeiro caso
uma ficção e, portanto, não pode ser substitui-se uma coisa real, um ente,
uma ferramenta de caráter meramente por uma coisa imaginária. Por sua
ficcional. Entretanto, essa conclusão vez, no segundo caso abstraimos algo
não protege a hipótese de ser consi- das diversas relações concretas que

23 Como o próprio Osiander posteriormente assumiu em carta “os teólogos serão facilmente abrandados se lhes for dito que
[...] que essas hipóteses são propostas não porque de fato são verdadeiras, mas porque regulam a computação do movimento
aparente”. O trecho da carta se encontra traduzido para português na introdução que Zeljko Loparic fez para sua tradução do
“Prefácio” de Andreas Osiander publicado nos Cadernos de História e Filosofia da Ciência, v. 1, n.1, pp. 44-61, 1980.
24 Cf. TIE §56-7.
25 O mesmo que ele fez no CM ao definir o que era os “entes de razão”, primeiro ele distinguiu o que é uma quimera e uma
ficção (cf. CM I, 1).

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ele estabelece imaginando-o em um experiência. Embora uma hipótese


espaço imaginário no qual nada lhe seja um experimento realizável ape-
afeta. Nada poderia ser mais abs- nas no nível mental, ela não é mera
trato do que esses dois casos. Entre- abstração ou ficcionismo instrumen-
tanto, Espinosa faz a seguinte obser- tal. Isso porque ela opera a partir do
vação: “embora claramente se intelija conhecimento que o indivíduo possui
que esta última é impossível; mas, tanto de si quanto a respeito da coisa
quando isso se faz absolutamente sobre a qual ele formula a hipótese.
nada é fingido” (idem, ibidem – itáli- Além disso, a hipótese inclui o conhe-
cos nosso)26 . Embora tal experimento cimento das leis da natureza. Uma hi-
seja fisicamente impossível, pois ele pótese não nasce do encontro fortuito
supõe mover a vela para um espaço da mente com as coisas — como se
no qual ela não esteja circuncidada ela fosse aprendiz delas —, antes, ela
de corpos, “nada é fingido”. A pri- origina-se da ação do intelecto que
meira pergunta que nos vem à mente atua como juiz que julga a partir de
é: por que nada é fingido? A primeira suas regras e do conhecimento prévio
parte da resposta a essa pergunta é de como algo se comporta em situ-
evidente: “sabe-se que é impossível”. ações diversas (Cf. REZENDE, C.
De saída já estamos de posse do co- 2008. p. 147-71). No exemplo das
nhecimento a respeito da impossibi- velas, o ponto cardeal é que em am-
lidade real de tal experimento que, bos os casos temos uma ideia clara e
justamente por isso, só pode ser men- distinta da vela e é justamente por isso
tal. A segunda parte da resposta é que podemos tanto movê-la para o es-
que a inteligibilidade a respeito do paço imaginário, quanto alterar racio-
que é vela e o conhecimento das leis nalmente suas características, tirando
de inércia garantem que, em um es- disso conclusões acertadas (CHAUI,
paço no qual não exista nada que a M. 2016, p. 24). Pois, como nos ex-
impeça de continuar na existência, a plica Chaui, temos a construção de
vela perduraria sem consumir-se (cf. “uma essência em sua inteligibilidade
CHAUI, M. 2016, p. 24). Desta ma- de tal maneira que ela permita dedu-
neira, Espinosa desloca o problema ções ordenadas e, por conseguinte,
da correspondência entre o conteúdo bem fundamentadas” (idem, ibidem).
de uma hipótese e alguma realidade Enquanto a abstração envolve o des-
para a construção intelectual de uma conhecimento de si e a confusão do

26 O tom usado aqui por Espinosa nos lembra Galileu Galilei que, ao tratar das hipóteses referentes à queda de uma bola
de canhão perpendicular a um mastro de navio em movimento, coloca na boca da personagem Salviati as seguintes palavras
emblemáticas: “Eu, sem experiência, estou certo de que o efeito seguir-se-á como vos digo, porque assim é necessário que se
siga”. GALILEU, Galilei. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo – ptolomaico e copernicano. Trad. Pablo Rubén
Mariconda. 3º ed. Editora 34, São Paulo, 2011. p 226.

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HÁ ABSTRAÇÃO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRAÇÃO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA?

que há em nossa mente com o que (II) o conhecimento da essência obje-


constitui a essência de algo, a hipó- tiva sobre a qual opera.
tese, justamente porque “sabe-se”, é, Em suma: seja nos Cogitata, seja
para Espinosa, originária da potência no TIE (para não citarmos as outras
da mente em compreender a essên- obras de Espinosa) a abstração sem-
cia singular das coisas e, também, em pre vem acompanhada da ideia de
deduzir seu comportamento em es- uma perda de si, uma ignorância em
paços ou condições imaginárias. Por relação a si mesmo. Em sentido con-
isso, como comenta Cristiano Novaes trário, no KV Espinosa chama o mo-
Rezende, uma hipótese é uma ideia mento em que a mente descobre a si
verdadeira... mesma como potência para o verda-
deiro de “renascimento”, pois “sem
a soberania do entendimento, tudo se
quando inserida no processo encaminha para a perda, sem que pos-
regular e contínuo no qual a samos gozar de qualquer descanso,
mente não é determinada de vivendo como se estivéssemos fora
fora, isto é, determinada pelo de nosso elemento” (KV, II, 26).
encontro fortuito das coisas
e com as coisas, as quais por
si mesmas não nos levam a
considerar umas de preferên- Um exemplo de como opera a crí-
cia a outras. A hipótese é tica espinosana à abstração de si:
uma ideia verdadeira quando a abertura do Tratado Teológico-
a mente não funda a verdade Político
nos fenômenos, mas sim em
si própria, isto é, quando a O leitor há de estranhar que escolhe-
mente se determina desde de mos justamente o TTP para servir de
dentro ao mesmo tempo em exemplo, afinal esta é a única obra
que vai ao encontro dos ob- em que Espinosa não faz referência
jetos da experiência” (RE- direta ao tema abstração. Entretanto,
ZENDE, C. N. 2008, p. 165). pretendemos mostrar que as conside-
rações a respeito das abstrações sus-
tentam algumas teses de Espinosa no
Sendo assim, podemos concluir que seu polêmico tratado. Para demons-
a hipótese é uma ideia verdadeira trar isso nós analisaremos a primeira
quando não opera a partir da abstra- frase do prefácio do TTP. Há três as-
ção de si, quando sua formulação é pectos dessa sentença inicial que con-
acompanhada de um duplo conheci- sideramos serem os mais importan-
mento: (I) o conhecimento de si, isto tes: (1) trata-se de uma proposição
é, da força e natureza do intelecto, e condicional negativa que se estrutura
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RAFAEL ARCANJO TEIXEIRA

à maneira de uma hipótese; (2) ela é imagem do homem que foi tecida pela
referente à natureza humana e às re- tradição teológica; em segundo lugar,
lações que essa natureza estabelece essa retomada dá-se no seio de uma
no mundo; (3) trata-se uma sentença hipótese negativa, ou seja, tal ima-
com efeito retórico que corrói uma gem é tomada como esvaziada de re-
imagem abstrata do homem27 . alidade. Acreditamos ser este o cerne
Espinosa abre o TTP com a se- da hipótese que abre o TTP.
guinte proposição: “se os homens pu- Em sua tese de doutoramento, Ma-
dessem, em todas as circunstâncias, rilena Chaui defende que o termo
decidir pelo seguro ou se a fortuna se mais importante da proposição ini-
lhes mostrasse sempre favorável, ja- cial do TTP é a conjunção condicio-
mais seriam vítimas da superstição” nal “se”, pois ela abre as duas condi-
(ESPINOSA, B. 2003, p. 5)”. O “se” ções necessárias para a existência da
inicial nos coloca diante de uma pro- superstição (CHAUI, 1970, p. 134).
posição condicional e negativa. Ma- Ora, em que consistem essas duas
rilena Chaui comenta que “Espinosa condições? Consistem numa mu-
critica indiretamente os medievais e dança ou na natureza humana ou na
Descartes, reescrevendo as teses que natureza do mundo, que permitisse
combate na forma de orações hipoté- aos homens serem iguais à vela ar-
ticas (se. . . então), retirando das hi- dente que não arde. Se lermos atenta-
póteses conclusões que as negam” mente o enunciado da primeira parte
(CHAUI, M. 1974, p. 56). A co- da hipótese na abertura do TTP, no-
mentadora ressalta que esse procedi- taremos que Espinosa propõe a mu-
mento é tão constante em Espinosa dança imaginária de uma das carac-
que quase poderíamos tomá-lo como terísticas dos “homens”. Qual? A
norma de leitura: “as orações hipoté- chave para compreender isso está na
ticas apresentam teses que não são es- palavra latina regere, que na tradução
pinosanas, que são levadas à autodes- espanhola do TTP, de Atilano Domin-
truição no decorrer da argumentação” guez, foi traduzida por “conducir”, na
(idem, ibidem)28 . Assim, a abertura portuguesa, de Diogo P. Aurélio, por
do TTP é polêmica: primeiro, por- “decidir” e na brasileira, de J. Guins-
que, conforme veremos, ela retoma a burg e Newton Cunha, por “regrar”.

27 Conforme veremos, dessas três características seguem-se algumas consequências: (1) a superstição deixa de ser uma
característica acidental, já que supressão absoluta da superstição só é possível com uma concepção abstrata natureza humana.
(2) Sendo inerente à natureza humana, a superstição deixa de servir como distintiva entre as diversas religiosidades e etnias.
(3) Espinosa desvincula o conceito de superstição do mito fundador da moral judaica-cristã, ou seja, do mito da queda original.
Ao final, pretendemos deixar evidente a maneira pela qual opera a crítica espinosana às abstrações na abertura do TTP.
28 A mesma chave de leitura é mobilizada pela comentadora ao comentar a abertura do TTP em sua tese de doutoramento:
“O prefácio do TTP começa com uma proposição condicional e negativa, característica peculiar de Espinosa todas as vezes em
que, para demonstrar a necessidade de um conceito, passa pela hipótese a ser recusada — toda proposição negativa é ausência
de definição e, portanto, de realidade” (CHAUI, M. 1970, p. 133).

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HÁ ABSTRAÇÃO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRAÇÃO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA?

Embora distintos uns dos outros, cada PINOSA, Op. Cit.). Oriunda
vocábulo escolhido nessas traduções do universo teológico a fortuna é
ressalta aspectos daquilo que consti- “imperatrix mundi”, nos escrevem os
tui o poder regencial: poder de deci- Carmina Burana. Deusa da glória
são, de condução e de regulação. Ori- e da riqueza, a fortuna representa o
ginária do campo político, regere é a imprevisto, a volatilidade da vida, as
forma no infinitivo presente do verbo circunstâncias que fogem ao nosso
latino rego, que tem sentido de regên- controle. Ora nossa sorte, ora nossa
cia. Reger é ter o dominium29 sobre os perdição, a fortuna detém a roda da
assuntos internos de um imperium. A vida. Como disse Boécio: “Assim
abertura do TTP alude a um poder re- ela brinca, assim ela dá prova de seu
gencial que redunda num “certo con- poder, e oferece aos seus súditos um
silio” sobre “res omnes suas”; alude, grande espetáculo: o de um homem
potanto, para uma deliberação certa que em uma hora passa da desgraça
sobre todas suas coisas. É muito in- à glória” (2012, p. 42). Experiência
teressante que essa forma de regência da contingência, a fortuna também é
impõe a exterioridade já que “a deli- a experiência da insegurança e, por
beração supõe exterioridade — os ho- isso, do medo. Nenhuma alma pode-
mens estão diante das coisas, situados ria descrever melhor essa experiência
na natureza e face a ela” (CHAUI, M. do que a do melancólico, afinal, como
1970, p. 134). Considerar-se fora da escreve Espinosa, “a sua senhora é a
natureza, em face a ela, é encontra- Fortuna”. Robert Burton, melancó-
se em estado de abstração do Todo. lico confesso, descreveu-se nas pri-
O que Espinosa faz é partir de uma meiras páginas de sua Anatomia da
imagem abstrata dos homens (ima- Melancolia como um observador das
gem que oferece a ilusão de um con- fortunas do mundo:
trole imperial: decidir, conduzir e re-
grar todas as suas coisas); entretanto,
se assim fosse os homens jamais se- [Sou] um mero especta-
riam vítimas da superstição, explica o dor das fortunas e venturas
nosso filósofo. alheias, de como atuam em
A segunda parte da hipótese con- seus papéis, que, penso, são-
tinua: “ou se a fortuna se lhes me tão diversamente apre-
mostrasse sempre favorável” (ES- sentados, como se num te-
atro ou cena pública. [...]

29 Em latim casa se chama domus e o poder sobre ela dominium. O regente que possui o dominium absoluto sobre o pa-
trimonium é o Pater. A instância do pater não é a de um progenitor natural (genitor), é maior do que isso, trata-se do poder
judicial e senhoril. É neste sentido preciso que a igreja dizia “Deus é Pai”. Cf: CHAUI, Marilena. Mito Fundador e Sociedade
Autoritária in Escritos de Marilena Chaui Vl. II – Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Org. André Rocha.
Autêntica Editora, São Paulo, 2013; p. 156.

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Um é liberto, o outro aprisio- palco do mundo só se apresentasse o


nado; um enriquece, o outro bonum, então os homens não seriam
quebra; este prospera, e seu vítimas da superstição.
vizinho está falindo; ora far- A abertura do TTP aponta as condi-
tura, ora carestia e fome; um ções necessárias para que os homens
corre, outro cavalga, com- jamais sejam vítimas da superstição:
bate, ri, chora, etc. Isso eu (I) a presença de um certo consilio
ouço a cada dia, e outro tanto sobre “omnes res” ou (II) uma for-
de notícias públicas e priva- tuna “semper prospera”. Ora, uma
das, entre a galanteia e a mi- vez que a fortuna é aquilo que escapa
séria do mundo, jovialidade, ao nosso poder, podemos supor que o
orgulho, perplexidades e pre- problema da superstição possa ser re-
ocupações, simplicidade e solvido pela via da deliberação certa
vilania; sutileza, patifaria, (o certo consilio), ou seja, pela con-
candor e integridade, mutua- tínua ampliação de nossa capacidade
mente misturado e ofertado” deliberativa. Isso parece assegurado
(BURTON, R. 2013 [I], p. pela presença do vocábulo vel [ou] in-
58). dicando que basta a presença de ape-
nas uma das condições – (I) ou (II) –
No palco da vida e no coro do mundo, para que a superstição deixe de impe-
quem abre e fecha os atos é a For- rar sobre os homens. Entretanto, vale
tuna. No espetáculo em que a Fortuna notar que todas as expressões são to-
é roteirista, a protagonista é a melan- tais: nenhuma superstição, delibera-
colia. Um ponto importante é que a ção certa sobre todas as coisas, uma
fortuna acentua ainda mais a exterio- fortuna sempre próspera. Embora seja
ridade, como manifesta as palavras de totalmente aceitável do ponto de vista
Burton: “[sou] um mero espectador”. de outros trechos da obra de Espinosa
Sob essa perspectiva o mundo se abre deduzir que quanto mais capenga for
como espaço no qual as coisas se rela- a nossa capacidade deliberativa mais
cionam entre si contingentemente em atuará sobre nós o imperioso poder da
uma “incerta fortuna” . Expectador, fortuna e, consequentemente, da su-
o homem não possui a capacidade de- perstição, não nos parece que na aber-
liberativa, não é regente, restando-lhe tura do TTP haja condições para a de-
apenas esperar pela “bona fortunae”. dução de uma solução. Esperar que
Aqui também a conclusão é nega- os homens sempre deliberem de ma-
tiva: “Si fortuna ipsis prospera sem- neira certa ou que o mundo não lhes
per foret” . Se a fortuna se mostrasse apareça fortuito é o mesmo que de-
sempre próspera, se na ‘cena pública’ sejar que a vela queime sem se quei-
as coisas sempre fossem boas, se no mar. As únicas duas maneiras de con-

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ceber os homens como estando abso- ção é intrínseca à condição humana,


lutamente fora das garras da supersti- faz parte do que significa ser humano
ção são: (I) concebendo mentalmente e viver neste mundo. Se é preciso fa-
outros homens, isto é, substituindo a zer uma crítica à superstição é preciso
natureza humana por outra abstrata; primeiro reconhecê-la e trabalhá-la.
ou (II) concebendo os homens num Isto é, é preciso positivá-la enquanto
espaço imaginário, no qual eles se en- objeto da reflexão, tomá-la a partir de
contram abstraídos de toda experiên- suas causas e observar o desenvolvi-
cia da contigência. Embora conceber mento de sua trama. Em suma, é pre-
essas condições não nos seja impossí- ciso abandonar a concepção abstrata
vel mediante um experimento mental — postura do sentinela que vigia à
(uma hipótese) é certo que, in rerum distância, nas fortalezas de sua torre
natura, elas versam sobre impossibi- — e entrar na concretude do Real.
lidades. Apesar de ‘nada ser fingido’, Em outros termos: é preciso deixar
claramente ‘intelige-se que é impos- de tomar a superstição como coisa ex-
sível’. Em última instância as duas terior e alheia, pertencente aos ou-
condições redundam em que a huma- tros (de sorte, hereges ou ignorantes).
nidade deixe de ser humanidade e que A postura de sentinela da superstição
o mundo deixe de ser mundo. Con- redunda numa ação que impõe uma
fundir a hipótese inicial do TTP — relação autoritária entre aqueles que
uma espécie de experimento mental - dizem-se não-supersticiosos e os ti-
– com a fala sobre possibilidades ex- dos por supersticiosos. Na tradição
tramentais reais é entrar no campo da cristã isso se deu pelos senhores da
abstração. Na verdade, o sentido mais moral e oficiantes do culto; na tra-
profundo da hipótese na abertura do dição científica assumiram este papel
TTP consiste em mostrar que a pró- os portadores das luzes na sua mar-
pria noção de “nulla superstitione” é cha pelo aufklärung. Ora, se tivermos
uma abstração30 . em mente que para Espinosa a abstra-
A lição oferecida por Espinosa na ção é considerar a parte fora do Todo,
abertura do TTP é a que a supersti- entenderemos que a ideia de um ho-

30 Se levarmos em conta o que Espinosa fala sobre o cavalo e o inseto na Ética visualizaremos o que a hipótese de abertura
do TTP aponta: todo projeto de erradicação absoluta da superstição é um projeto genocida. “O fato é que um cavalo, por
exemplo, é destruído [destruitur] tanto ao ser mudado em homem como em inseto” (E, IV, praef.). Não há evolução do cavalo
para o homem, assim como também não a há declínio do cavalo para o inseto, tanto num caso como no outro há apenas des-
truição. Querer que cavalos atuem como homens é, em última instância, desejar a destruição dos cavalos. Essa metáfora ganha
força quando vinculada à hipótese inicial do TTP, afinal, desejar que as pessoas estejam absolutamente livres da superstição é
o mesmo que desejar que elas deixem de ser humanas. Desejo esse que não passa de uma das faces do desejo de destruição dos
homens e do mundo. Trata-se de um desejo suicida — quando referido à subjetividade — e de um desejo genocida — quando
referido ao mundo e à intersubjetividade. A abertura do TTP indica que pela primeira vez na história da filosofia a superstição
não será tratada como algo a ser erradicado e eliminado, uma espécie de posição higienizadora, mas como algo intrínseco aos
homens e com o qual devemos aprender a lidar.

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mem regente consiste em pura abstra- rimento mental que à primeira vista
ção autorreferente, pois nela nós não pode ser tomado como abstrato, mas
estamos mudando ou abstraindo ca- que ao fim e ao cabo implode a pró-
racterísticas de um objeto; antes nós pria concepção abstrata que os ho-
mesmos nos tomamos numa perspec- mens possuem de si. Retórica con-
tiva abstrata, separados do mundo e tra os retóricos, o ato inaugural do
regentes dele — versão extrema da TTP subverte o mito adâmico, nos ar-
abstração de si. Não é apenas um rebata da abstração lançando-nos na
perder-se de si, é a reificação em si trama do Real. A abertura do TTP
mesmo de uma imagem abstrata de si. é uma guerra contra a imagem abs-
O engenho de Espinosa não para trata do homem e contra as propostas
nisso, antes o filósofo aponta que tal genocidas que decorrem dessa abstra-
abstração se inscreve na própria ima- ção. Falamos em guerra porque ela
gem fundante da sociedade ocidental. opera de maneira retórica, partindo do
O leitor não demorará a perceber isso que é comum — a concepção teoló-
se fizermos a seguinte pergunta: den- gica do homem — para em seguida
tro da mitologia judaico-cristã qual é subvertê-la. A instância dessa guerra
o momento em que o homem possui é a mente dos leitores ‘que poderia fi-
plena regência sobre o mundo, go- losofar mais livremente caso não jul-
zando de perfeição, e vive num para- gassem que a razão deva ser serva da
disíaco mundo afortunado? A hipó- teologia’ (ESPINOSA, 2003, p. 14).
tese de abertura do TTP aponta para o A hipótese-retórica do início do
Jardim do Éden: paraíso onde nosso TTP é um convite a pensar a condi-
pai terrestre, Adão, antes da queda, ção humana sem as abstrações e os
gozava de perfeição (poder regencial fantasmas que a tradição teológica cu-
sobre si e domínio sobre todas as coi- nhou. Afastado o paraíso — agora
sas) e vivia em um mundo em que a perdendo-o de nossas vistas para sem-
fortuna sempre se lhe mostrava bené- pre — qual é a condição humana? A
fica. O engenho da hipótese inicial do resposta vem logo em sequência: re-
TTP está no fato de Espinosa afirmar duzidos, amantes e desejosos, experi-
que se em algum momento o homem mentando a perda constante dos obje-
gozasse de tais condições ou de tal na- tos amados e o escape dos desejados,
tureza ele jamais seria vítima da su- os homens se encontram arrastados de
perstição31 . Eis a retórica da hipótese um lado ao outro num turbilhão de
inaugural do TTP: propor um expe- afetos que por fim os leva à supers-

31 A formulação mais evidente da questão posta na hipótese inaugural do TTP se encontra no capítulo II §6 do Tratado
Político, onde Espinosa questiona sobre “como pode acontecer, além disso, que o primeiro homem, estando de posse de si
próprio e sendo e senhor de sua vontade, se deixasse seduzir e enganar?” (ESPINOSA, 2014 [I], p. 376).

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tição (ESPINOSA. 2003, p. 5) — eis batados de nós mesmos é que pro-


a realidade desesperadora a qual Es- duzimos abstrações. Neste sentido
pinosa nos apresenta em todas as suas é interessante lembramos as pala-
tramas. Mas, se o nosso filósofo faz vras de Espinosa no Breve Tratado
isso é porque sabe que a única pos- a respeito do conhecimento claro:
sibilidade de fazer uma política ver- “denominamos conhecimento claro
dadeira é quando partimos da reali- àquele que não é por convencimento
dade concreta e não das abstrações. da razão, mas sim por um sentir e go-
Uma verdadeira política dos homens, zar a própria coisa” (KV, II, cap. 2 §2)
não uma utopia ou uma sátira, exige e, caso algum homem chegue a con-
como seu princípio a veemente recusa templar algo por essa maneira de co-
da abstração de si. nhecer, “dirá em verdade que a coisa é
∗∗∗ assim, considerando que ela está nele,
e não fora dele” (idem, cap. 4 §2).
Neste ponto, ao final do artigo, pode- É que a verdade, ao contrário da abs-
mos afirmar que a abstração é não me- tração, envolve uma interioridade, um
ramente uma operação mental, mas encontro consigo mesmo que é outro
também uma abstração de si. Justa- nome da liberdade.
mente porque nos encontramos arre-

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Recebido: 02/07/2019
Aprovado: 08/09/2019
Publicado: 17/11/2019

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 89-121 121
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v7i2.25781

Segurança, Liberdade e Concórdia no Pensamento


Republicano de Espinosa*
[Security, Freedom and Concordia in Spinoza’s Republican Thought]

Stefano Visentin**

Resumo: O artigo pretende apresentar a construção dos conceitos de


segurança e liberdade nos escritos políticos de Espinosa, para rearti-
cular sua construção em diálogo com a tradição humanista, mais espe-
cificamente de Thomas More e Erasmo de Rotterdam. Tal diálogo será
relacionado com o problema da pietas, no seu aspecto moral, e a con-
cordia, em seu aspecto político, para serem reconsiderados e articula-
dos com o realismo político introduzido por Maquiavel e Hobbes. Fi-
nalmente, pretendemos analisar a peculiaridade do filósofo holandês,
problematizando tais conceitos na escrita do Tratado teológico-político
e do Tratado Político.
Palavras-chave: Espinosa, Humanismo, Política, Segurança e Liber-
dade.
Abstract: This paper intends to present the construction of the
concepts of security and freedom in the Spinoza’s political writings,
rethinking its construction in dialogue with the humanist tradition,
most specifically with Thomas More and Erasmus of Rotterdam.
This dialogue is related to the humanist problem of pietas, in the
moral aspect, and concordia, in politics aspect, to be reconsidered
and articulated with the political realism introduced by Machiavel
and Hobbes. Finally, we aim to analyze the peculiarity of the dutch
philosopher, problematizing such concepts in the Theological-political
Treatise and the Political Treatise.
Keywords: Spinoza, Humanism, Politics, Security, and Freedom.

1 - A tradição irenista nos Países pia por Thomas More, o manifesto


Baixos dos séculos XVI e XVII mais significativo do humanismo
do século XVI1 . Os fundamentos
Em 1517, Erasmo de Rotterdam da defesa erasmiana da paz são
publicou a Querela Pacis, consi- essencialmente a pietas cristã, no
derada, juntamente com a Uto- referente à moral, e a busca cons-

* Uma versão anterior e distinta deste artigo foi publicada em inglês na Revista Theoria, vol. 66, n. 15, 2019.
Tradução desta versão por Ericka Marie Itokazu e Marília Pacheco.
** Professor assistente (ricercatore confermato) de História das Doutrinas Políticas no Departamento de Economia,
Sociedade e Política (Desp) da Università di Urbino "Carlo Bo", e professor da Scuola di Scienze politiche e sociali.
E-mail: stefano.visentin@uniurb.it. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6963-4798.
1 Il lamento della pace. Testo latino a fronte, Federico Cinti (org.), com um ensaio de Jean-Claude Margolin, Milão:
BUR, 2005.

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tante da concordia, no referente manha, Dirck Coornhert nos Paí-


à política; em particular, esta úl- ses Baixos4 . Especialmente nos
tima torna-se, nas décadas seguin- Países Baixos, entre o final do sé-
tes, um elemento de grande im- culo XVI e o começo do século se-
portância dentro do debate polí- guinte, numerosas tentativas são
tico e religioso, distinguindo-se da feitas para elaborar e colocar em
tolerância que insiste na necessi- prática uma doutrina religiosa
dade de aceitar a coexistência de fundada em dogmas universal-
uma pluralidade de fés no interior mente aceitos por todas as cren-
do mesmo espaço político con- ças cristãs presentes no território:
trariamente à concórdia, que visa e uma das tentativas mais origi-
construir um terreno comum para nais é realizada por um grupo de
as diferentes correntes do cristi- crentes, provenientes de diferen-
anismo: em outros termos, en- tes seitas (calvinistas, arminianos,
quanto a tolerância quer "despoli- menonitas, quakers, socinianos),
tizar" a religião (segundo a famosa chamados Colegiantes, que esta-
frase pronunciada por Michel de belecem uma comunidade fun-
L’Hospital, em 1562, segundo a dada exclusivamente na leitura
qual “il n’est pas icy de constitu- comum do texto bíblico e na prá-
enda religione, sed de constituenda tica do amor fraterno5 . Sabe-se
republica; et plusieurs peuvent es- que alguns amigos de Espinosa
tre cives, qui non erunt christiani” participam desses encontros de-
2
), a concórdia, diversamente, pro- nominados colloquia prophetica,
põe a tarefa de transformar a polí- entre os quais certamente Jarig
tica segundo uma perspectiva re- Jelles e Pieter Balling, e que pro-
ligiosa3 . vavelmente o próprio Espinosa o
O legado erasmiano percorre frequenta durante sua estada em
todo o século XVI, influenciando Rijnsburg, no início dos anos 60
também muitos teólogos reforma- do século XVII6 .
dos, como Sébastien Castellion na Em resumo, não há dúvida de
França, Sebastian Franck na Ale- que o contexto histórico e biográ-
fico no qual Espinosa amadurece a

2 de L’HOSPITAL, M. (1561). Oeuvres complètes de Michel de L’Hospital. Ed. por P.S.J. DUFEY, vol. 1, Paris:
Boulland, 1824-5, p. 452.
3 Sobre este tema, veja-se TURCHETTI, M. “Religious Concord and Political Tolerance in Sixteenth- and
Seventeenth-Century France” in Sixteenth Century Journal, 1/22, 1991, pp. 15-25.
4 Cfr. BIETENHOLZ, P.G. Encounters with a Radical Erasmus: Erasmus’ Work as a Source of Radical Thought
in Early Modern Europe. Toronto: Toronto University Press, 2009.
5 FIX, A.C. Prophecy and Reason. The Dutch Collegiants in the Early Enlightenment. Princeton: Princeton Univer-
sity Press, 1990.
6 Cfr. NADLER, S. Spinoza. A Life. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, cap. 7.

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escrita do Tratado teológico-político tura e discussão dos escritos do


exerce sobre ele uma influência secretário florentino e do filósofo
"erasmiana", no sentido de uma inglês. Em particular, nesse arca-
busca de como estabelecer uma bouço teórico marcado por uma
república livre e pacífica, tanto abordagem realista da natureza
no seu próprio interior, quanto e da política humanas, o espaço
no confronto com os outros Es- para um elogio e a busca pela con-
tados; e de fato o subtítulo do li- córdia entre indivíduos e Estados
vro já mostra essa orientação: “em parece ter sido reduzido ao mí-
que se demonstra que a liberdade nimo, senão até mesmo cancelado.
de filosofar não só é compatível Espinosa conhece bem o traba-
com a preservação da piedade e lho desses dois escritores "maldi-
da paz como, inclusivamente, não tos", cita-os em seus escritos e ex-
pode ser abolida sem se abolir ao trai muitas ideias – em particular,
mesmo tempo a paz da república mas não apenas, do "agudíssimo
e a própria piedade” 7 . Maquiavel"; consequentemente,
No entanto, ao lado do ideal seria muito difícil acreditar que a
humanista irênico, uma reflexão reflexão espinosana sobre a paz e
teológico-política se desenvolveu a concórdia não seja afetada pela
na República das Províncias Uni- crítica maquiaveliana e hobbesi-
das durante o século XVII, colo- ana da visão humanista da reli-
cando o realismo político no cen- gião e da política.
tro da cena e inspirando-se no
pensamento de Nicolau Maqui-
avel e Thomas Hobbes8 . Sem
2 - Paz, concórdia e liberdade no
aprofundar a recepção do traba-
Tratado teológico-político
lho desses dois autores na Ho-
landa seiscentista, é preciso lem- No Tratado Teológico-Político, Es-
brar que tanto o desenvolvimento pinosa repetidamente insiste na
do neoestoicismo nas universida- necessidade de instituir, dentro da
des quanto o do republicanismo república holandesa, uma coexis-
fora do mundo acadêmico são afe- tência pacífica entre as diferen-
tados fundamentalmente pela lei- tes fés religiosas. O prefácio, por

7 Tratado Teológico-político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. Lisboa: Imprensa Nacional-
Casa da Moeda, 2004, p. 121. Doravante: TTP.
8 Sobre a recepção de Maquiavel cfr. HAITSMA MULIER, E.O.G. “A Controversial Republican: Dutch Views on
Machiavelli in the Seventeenth and Eighteenth Centuries” in BOCK, G., SKINNER, Q., VIROLI. M. (orgs.); Machi-
avelli and Republicanism. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, pp. 247-263; sobre a recepção de Hobbes
cfr. SECRÉTAN, C. “La réception de Hobbes aux Pays-Bas au XVIIéme siècle” in Studia Spinozana 3, 1987, pp.
27-46.

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exemplo, contém um elogio da re- letividade de fiéis que produziu


pública, "onde se concede a cada a degeneração da república – e
um inteira liberdade de julgar e dessa maneira gerou uma "narra-
de prestar culto a Deus à sua ma- tiva compartilhada"12 que consoli-
neira, e onde não há nada que se dou as relações afetivas e a confi-
considere mais caro e mais doce ança mútua entre os cidadãos.
que a liberdade"9 . Um elogio aná- Geralmente, a reconstrução his-
logo, dirigido no entanto apenas a toriográfica que Espinosa realiza
Amsterdã, está presente no capí- da república mosaica (em parti-
tulo final, onde Espinosa escreve cular no capítulo XVII) e os en-
que na cidade holandesa "todos os sinamentos políticos que dela de-
homens, seja qual for a sua na- duz (no capítulo XVIII) propõem-
ção e sua seita, vivem na mais se a dois objetivos fundamentais:
perfeita concórdia"10 . No seu es- (1) mostrar o perigo que todo or-
tudo da república teocrática fun- ganismo político corre quando o
dada por Moisés, também surgem clero se torna um poder separado
razões pelas quais um governo re- da comunidade e, assim, assu-
publicano é naturalmente levado mindo um papel político mantido
a apoiar a paz e a concórdia em para si; (2) enfatizar a superiori-
vez de fomentar a guerra e as di- dade de um governo exercido por
visões internas. De fato, a história todo o povo com relação ao go-
judaica mostra que os ritos e ce- verno monárquico: uma superio-
rimônias religiosas desempenha- ridade baseada no imaginário co-
ram um papel político fundamen- letivo, que apesar do risco sempre
tal (na verdade, eles foram ende- presente de se tornar superstição,
reçados “à contingente felicidade dispõe da potência para estabele-
do corpo e do Estado” 11 ), uma cer um regime no qual, pelo me-
vez que envolveram toda a comu- nos por um certo período, reinem
nidade sem a necessidade de um a pietas religiosa e a concórdia.
clero que agisse como um corpo Ao lermos o último capítulo do
separado – e, de fato, foi precisa- Tratado – cujo título afirma: "onde
mente o nascimento de um apa- se demonstra que numa republica
rato eclesiástico distinto da co- livre é uma lícito a cada um pen-

9 TTP, p. 127.
10 TTP. p. 390.
11 TTP, p. 191.
12 Retomo estes termos de JAMES, S. “Narrative as the means to freedom: Spinoza on the uses of imagination” in
MELAMED, Y.Y., ROSENTHAL, M.A. (orgs.). Spinoza’s Theological-Political Treatise. A Critical Guide. Cambridge:
Cambridge University Press, 2010, pp. 250-267.
13 TTP, p. 383.

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sar o que quiser e dizer aquilo à figura do "súdito" é particular-


pensa"13 – tendo em mente o ensi- mente interessante porque quebra
namento dos capítulos históricos, a oposição dicotômica entre o es-
então a liberdade, a piedade e a cravo e o homem livre – típica em
paz não só aparecem inextricavel- muitos aspectos da ideologia re-
mente conexas, mas também jun- publicana da época –, abrindo es-
tas elas contribuem para a forma paço para uma concepção dinâ-
democrática da república, que Es- mica de liberdade individual, que
pinosa considera o melhor regime, Espinosa define a partir da evo-
orientando seus leitores nessa di- lução do sistema de relações soci-
reção. A referência à paz, por- ais e políticas na direção de uma
tanto, não expressa simplesmente república livre –, isto é, daquela
a necessidade de garantir a cada em que "se liberta" das restrições
cidadão um espaço intangível por da superstição e da dominação do
parte das autoridades, no interior homem pelo homem. Analoga-
do qual ele possa pensar e dizer mente, a defesa extrema da li-
aquilo em que acredita sem medo berdade de expressão no Tratado
de ser perseguido, ao contrário, teológico-político constitui o "grau
a paz é a expressão da partici- zero" de um percurso de emanci-
pação ativa de todos na discus- pação, que procede de uma con-
são pública, seja sobre os prin- cepção individualista de tolerân-
cípios da religião, seja sobre os cia mútua para o envolvimento de
assuntos do Estado: somente se cada cidadão na constituição de
os cidadãos participam das deci- uma "paz ativa", ou melhor, de
sões políticas, de modo que visem uma concórdia universal entre os
ao bem comum, é possível afir- corpos e mentes de cada um, inte-
mar, como no capítulo XVI, que grando imaginação e razão15 .
“numa república e num Estado, Neste ponto, resta entender
onde a lei suprema é a salvação quais serão, de acordo com Espi-
de todo o povo e não daquele que nosa, os instrumentos que permi-
manda, quem obedece em tudo tem a uma república estabelecer
ao soberano não deve dizer-se es- e defender a paz e a concórdia,
cravo e inútil a si mesmo, mas sem pôr em risco a segurança co-
apenas súdito” 14 . Esta referência mum. Este último passo requer

14 TTP, p. 331.
15 Sobre esta passagem decisiva da reflexão política de Espinosa, veja-se dois recentes artigos que seguem em
direção análoga: JAMES, S. “Narrative as the means to freedom: Spinoza on the uses of imagination” , cit., e SKE-
AFF, C. Becoming Political. Spinoza’s Vital Republicanism and the Democratic Power of Judgment, Chicago: Chicago
University Press, 2018.

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levar em consideração o segundo tado17 .


escrito político espinosista, o Tra-
tado político.
Essas duas afirmações têm sido in-
terpretadas como um sinal de mu-
3 - O processo coletivo de cons- dança na atitude de Espinosa em
trução da paz no Tratado político relação à situação política de seu
país, uma mudança em direção
A transição do primeiro para o se- a um maior realismo (ou pessi-
gundo Tratado de Espinosa apre- mismo) do que o Tratado Teológico-
senta imediatamente um pro- Político mais "militante" e demo-
blema teórico relevante, que diz crático: no segundo Tratado, a se-
respeito precisamente à relação gurança torna-se assim um ele-
entre liberdade, paz e segurança. mento a ser salvaguardado mais
De fato, enquanto nas últimas pá- importante que a liberdade e, por-
ginas do Tratado Teológico-Político tanto, a paz deve ser entendida
aparece a famosa definição se- mais como tolerância e respeito
gundo a qual "o verdadeiro fim mútuo do que como concórdia e
da república é, de fato, a liber- união dos ânimos.
dade"16 , por outro lado o Tratado Na realidade, uma leitura mais
Político principia por uma afir- cuidadosa mostra que as coisas
mação que parece ir na direção são mais complexas e que não é
oposta: possível contrapor claramente os
dois escritos. Em primeiro lugar,
Nem importa, para a se- mesmo no primeiro Tratado, a se-
gurança do estado, que gurança é considerada um obje-
ânimo dos homens sejam tivo fundamental de todo regime
induzidos a administrar político e, em particular, da repú-
corretamente as coisas, blica, cujo objetivo é
contanto que as coisas se-
jam corretamente admi- não é dominar nem con-
nistradas. A liberdade de ter os homens pelo medo
ânimo, ou fortaleza, é com e submetê-los a um di-
efeito uma virtude pri- reito alheio; é, pelo con-
vada, ao passo que a se- trário, libertar o indivíduo
gurança é a virtude do es- do medo a fim de que ele

16 TTP, p. 383.
17 Tratado Político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio, revisão de Homero Santiago. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2009, p. 9. Doravante: TP.

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viva, tanto quanto possí- rança é assumido por Espinosa no


vel, em segurança, isto é, interior de um regime temporal
a fim de que ele preserve o imaginário como uma medida de
melhor possível, sem pre- flutuações afetivas, no sentido de
juízo para si ou para os que a busca por segurança se ex-
outros, o seu direito na- prime como uma tentativa de que-
tural a existir e a agir.18 brar definitivamente a sucessão
contínua de medo e esperança que
produz incerteza e mal-estar nos
Nessas páginas, portanto, Espi-
homens19 ; (2) se a segurança é o
nosa mostra como a questão da
objetivo do Estado, contudo, nem
segurança está implicada na da li-
todo regime político é adequado
berdade; por outro lado, no Tra-
para garanti-lo: na verdade, um
tado Político, parece que entre
Estado é seguro somente se for
os dois planos há uma distinção
organizado de modo a defender
clara, uma vez que a primeira
seus súditos não apenas de amea-
diz respeito à esfera pública, en-
ças externas, mas também de pe-
quanto a segunda parece estar
rigos “internos” . Assim, evita-
confinada à dimensão da existên-
se, por um lado, que a sociedade
cia individual ou, ainda, da vida
se polarize em grupos de indiví-
"privada", para a qual a paz de-
duos sui juris e alterius juris – ou
penderia mais da criação de um
ainda, estes subordinados àque-
espaço de segurança individual
les20 –, e, por outro lado, que a
do que da interação entre os ci-
busca por segurança leve a uma
dadãos, como se Espinosa tivesse
concentração de poder nas mãos
assumido uma inclinação "hobbe-
de poucos, uma vez que os gover-
siana" (isto é, negativa) em rela-
nantes e, em particular, os reis,
ção à possibilidade de estabelecer
"não são deuses, mas homens que
um espaço comum de concórdia
se deixam muitas vezes apanhar
no interior do Estado.
pelo canto das sereias"21 . O prin-
Neste ponto, é necessário apro-
cipal problema com que Espinosa
fundar as teses presentes no Tra-
se confronta, portanto, diz res-
tado político. Dois são os aspectos
peito ao fato de que, se o único
mais significativos que devem ser
modo de vida seguro é estabili-
evidenciados: (1) o tema da segu-

18 TTP, p. 385.
19 Cfr. ISRAËL, N. “La question de la sécurité dans le Traité politique” in JAQUET, C. SÉVÉRAC, P., SUHAMY,
A. (eds.). La multitude libre. Nouvelles lectures du Traité politique. Paris: Éditions Amsterdam, 2008, pp. 81-93.
20 Cfr. TP, II, § 9.
21 TP VII, § 1, p. 64.

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zar os direitos naturais através ção ao tempo da guerra25 ; con-


de leis, esse processo envolve o trariamente, Espinosa escreve que
risco de que um modelo de "se- “da cidade cujos súditos, toma-
gurança" seja imposto (para usar dos pelo medo, não pegam em ar-
um termo do léxico político con- mas, deve antes dizer-se que estão
temporâneo), que isola os indiví- sem guerra do que dizer-se que
duos e os controla através de um têm paz. Porque a paz não é au-
dispositivo que mistura medo e sência de guerra, mas virtude que
confiança cega na ação das auto- nasce da fortaleza de ânimo” 26
ridades: para escapar desse risco, O conceito de segurança é assim
mais uma vez, é necessária uma redefinido com base em uma con-
estratégia coletiva22 . cepção "ativa" de paz, que retoma
Cabe ao Capítulo V esclarecer a mesma lógica encontrada nas úl-
os princípios dessa estratégia, que timas páginas do Tratado teológico-
deve necessariamente envolver o político e que pressupõe a possibi-
maior número possível de cida- lidade concreta de que a multidão
dãos. De fato, se o direito de possa exercer uma força de auto-
um Estado "se define pela potên- emancipação em relação às con-
cia da multidão"23 , segue-se que dições determinadas pelas leis e
somente a participação ativa da instituições.
multidão de cidadãos torna pos- A multidão – um nome que no
sível produzir leis que atinjam o Tratado Político define o conjunto
objetivo de uma comunidade po- de relações que vincula os indi-
lítica, ou melhor, “a paz e a se- víduos em uma comunidade po-
gurança de vida, pelo que o me- lítica, ainda que em uma dimen-
lhor estado é aquele onde os ho- são dinâmica e transformadora –
mens passam a vida em concórdia é, portanto, a portadora de uma
e onde os direitos se conservam liberdade específica, não explícita
inviolados” 24 . Emerge, a essa al- ou completamente racional. No-
tura, uma definição de paz que vamente, o capítulo V afirma que
se opõe explicitamente à famosa a multidão livre “conduz-se mais
tese hobbesiana, que define a paz pela esperança que pelo medo, ao
como o tempo residual em rela- passo que uma multidão subju-

22 Sobre a natureza estratétgica do pensamento ético e político espinosano, cfr. BOVE, L. La stratégie du conatus.
Affirmation et résistance chez Spinoza. Paris: Vrin, 1996.
23 TP, II, § 17, p. 20.
24 TP, V, § 2, p. 44.
25 “A natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo
em que não há garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz” (T. Hobbes, Leviatã, I, XIII, tradução livre).
26 TP, V, § 4, pp. 44-45.

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gada conduz-se mais pelo medo nosano de paz, creio que está claro
que pela esperança” 27 . Nesse sen- que a concepção erasmiana, se-
tido, a multidão existe em função gundo a qual a paz coincide com
da liberdade, não porque a de- a concórdia e a união fraterna dos
seje conscientemente, mas porque homens, encontra no Tratado po-
pertence à sua natureza a tendên- lítico uma reinterpretação política
cia a se libertar – ao menos como que pretende responder ao desa-
uma fuga da solidão e da escra- fio proveniente do realismo ma-
vidão: uma liberdade necessária, quiavélico e hobbesiano. Isso sig-
embora enigmática, como a de- nifica que, por um lado, o texto
fendeu François Zourabichvili28 espinosano refuta uma concepção
em um belo ensaio há alguns anos da concórdia puramente moral ou
atrás. utópica, uma vez que não seria ca-
Segundo Zourabichvili, a liber- paz de construir um Estado que
dade da multidão coincide com o garanta a segurança de seus cida-
problema político da transição de dãos, no entanto, a paz não pode
uma condição de escravidão para ser considerada como a mera au-
um regime de autonomia, talvez sência de conflito, já que “daquela
somente parcial. Isto significa cidade cuja paz depende da inér-
que, para Espinosa, a liberdade cia dos súditos, os quais são con-
não tem valor fundacional, não duzidos como ovelhas para que
sendo um direito natural original aprendam só a servir, mais cor-
que deve ser salvaguardado, nem retamente se pode dizer uma so-
é um princípio regulador que di- lidão do que uma cidade” 29 . O
reciona a ação de um sujeito para contraste – também terminológico
um fim externo a ele; a liberdade – entre a "multidão" e a "solidão",
é o índice de uma prática transfor- que aparece nestas páginas, ex-
madora em contínuo devir, o re- prime com a máxima clareza o
sultado conjuntural e, ao mesmo que definimos como estratégia po-
tempo, dos processos de transfor- lítica de Espinosa, o seu "realismo
mação sempre em ato da estrutura anômalo", como define Diego Ta-
de uma comunidade. tián30 , capaz de unir a força ana-
Para retornar ao conceito espi- lítica de Maquiavel e Hobbes com

27 TP, V, § 6, p. 45.
28 ZOURABICHVILI, F. L’énigme de la “multitude libre” in JAQUET, C., SÉVÉRAC, P., SUHAMY, A. (orgs), La
multitude libre. Nouvelles lectures du Traité politique, cit., pp. 69-80.
29 TP, V, § 4, p. 45.
30 TATIÁN, D. “Spinoza, un realismo anómalo de la paz” in Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofía,
Política y Humanidades,16/32, 2014, pp. 93-109.

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uma perspectiva política que pre- rapidamente algumas dessas ins-


tende dar efetividade aos proces- tituições da multidão (que se) li-
sos coletivos de emancipação. A berta, uma para cada forma de go-
"solidão", de fato, não representa verno: (1) o exército popular que,
uma condição apolítica, uma es- sobretudo em uma monarquia,
pécie de retorno do estado de na- impede o soberano de fazer guerra
tureza, mas define aquele regime para seu ganho pessoal, e contra
(que anteriormente era definido o interesse de seus súditos31 ; (2)
como "de segurança") no qual a as formas de controle dos regi-
potência comum da multidão está mes aristocráticos por parte dos
em seu grau mínimo, fazendo com cidadãos, em particular o sistema
que os cidadãos individuais vivam de remuneração dos governantes,
em uma condição de isolamento e de tal modo que “para eles, seja
indiferença mútuos – condição ge- de mais utilidade a paz do que a
rada pelo poder político –, o que guerra” 32 ; (3) a abertura de car-
torna extremamente difícil a co- gos públicos para todos os cida-
municação e, com ela, a ativação dãos em uma democracia, o que
de processos de mútuo acordo e impede que um grupo limitado de
colaboração. indivíduos monopolize os postos
Para combater esta tendência – do governo33 . No entanto, além
alimentada pela inércia e passi- das numerosas medidas de enge-
vidade própria das paixões tris- nharia institucional que Espinosa
tes e da superstição que sempre, propõe no Tratado Político, há tam-
em certa medida, atravessam a bém outro "instrumento” de fun-
multidão –, Espinosa desenvolve damental importância – além das
uma série de medidas institucio- leis e instituições – para impedir
nais que desempenham a tarefa de a gênese de um regime baseado
fortalecer os afetos alegres, contri- na solidão, qual seja, o direito de
buindo, assim, à produção de di- guerra que constitui o baluarte ex-
reitos coletivos comuns e ao forta- tremo da liberdade da multidão:
lecimento da união e da concórdia de fato, se as leis de um Estado
dos ânimos. Vale a pena recordar

31 Cfr. TP VI, § 10, p. 51: “O exército deve ser formado só por cidadãos, sem excetuar nenhum, e por mais
ninguém, de maneira que todos tenham de ter armas e ninguém seja admitido no número dos cidadãos a não ser
depois de ter preparação militar e se comprometer a exercitá-la em determinadas alturas do ano” .
32 TP, VIII, § 31, p. 105.
33 Cfr. TP XI, § 1, p. 137: “todos aqueles cujos pais são cidadãos, ou que nasceram no solo pátrio, ou que são
beneméritos da república, ou a quem a lei, por outros motivos, manda atribuir o direito de cidade, todos esses,
digo, reclamarão para si o direito de voto no conselho supremo e de aceder por direito a cargos do estado, o qual
não é lícito recusar-lhes a não ser devido a crime ou infâmia” .

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são de natureza tal que nos, mesmo que trilhando per-


não podem ser violadas cursos diferentes, é apresentada
sem que ao mesmo tempo a mesma tentativa de repensar
se debilite a robustez da a concepção humanista de paz
cidade, isto é, sem que ao e concórdia após o desafio tra-
mesmo tempo o medo co- zido pelo realismo antropológico
mum da maioria dos cida- e político de Maquiavel e Hob-
dãos se converta em indig- bes. Para tornar eficaz o projeto
nação, a cidade, por isso de Erasmo, é necessário "politizá-
mesmo, dissolve-se e cessa lo", ou melhor, reconhecer que só é
o contrato, o qual, por possível através do envolvimento
conseguinte, não é defen- ativo da multidão, em cuja potên-
dido pelo direito civil mas cia se radica a busca do bem co-
pelo direito de guerra34 . mum (a res publica), se não para
garantir a paz de forma definitiva,
pelo menos para impedir que se
A referência a um "direito" (ou transforme em solidão e subservi-
melhor, a uma "força", para não ência ao poder de um. Somente
cair no equívoco de pensar em uma prática comum que põe em
um Espinosa monarcômaco) que jogo a imaginação, os afetos e a ra-
excede o nível do direito estatal zão coletivas pode gerar uma paz
também está presente nas páginas que consiste não apenas em evitar
conclusivas do Tratado teológico- a morte, mas também e sobretudo
político, onde se afirma que na no "cultivar a vida". Por essa ra-
maioria dos homens há uma ten- zão, não pode haver uma condição
dência inevitável para resistir à de paz que não seja também uma
opressão, a ponto de “julgarem condição de liberdade, tanto indi-
que é uma coisa mais honesta e vidual quanto coletiva: uma liber-
não uma vergonha que não seja dade sempre por recomeçar, ou,
somente com as pretensões de como escreve Marilena Chaui, por
crimes” 35 . "introduzir o novo no mundo"36 ,
Para concluir: nas páginas dos contra a repetição interminável e
dois tratados políticos espinosa- mortal da guerra e da escravidão.

34 TP IV, § 6, p. 41.
35 TTP XX, p. 388.
36 CHAUI, M. “Segurança e liberdade: Espinosa e a construção da paz” in Discurso, 35, 2005, pp. 158-159.

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ISSN: 2317-9570
STEFANO VISENTIN

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ISSN: 2317-9570
SEGURANÇA, LIBERDADE E CONCÓRDIA NO PENSAMENTO REPUBLICANO DE ESPINOSA

du Traité politique, Paris: Éditions Amsterdam, 2008.

Recebido: 04/07/2019
Aprovado: 09/11/2019
Publicado: 17/11/2019

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 123-135 135
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v7i2.25780

Comunicação e Silêncio na Experiência Política


Espinosana
[Communication and Silence in the Spinozist Political Experience]

Daniel Santos da Silva*

Resumo: Um problema fundamental ético e político, a comunicação


encerra menos a preocupação com a verdade como mero objeto do
que com os afetos como exercício de vida e explicitação prática da
experiência que ensina. Aqui, alguns elementos são elencados para
caracterizar a difícil relação do filósofo – da filosofia, da reflexão, do
pensamento crítico – com a violência (anti)política que se expressa,
em muitas ocasiões, no verbo "idiota" – porém, às vezes, efetivo – e na
proliferação do ódio, do medo e da exclusão.
Palavras-chave: Comunicação, silêncio, afetos, política

Abstract: A fundamental ethical and political problem, communica-


tion has less concern with truth as a mere object than with affections
as the exercise of life and the practical explanation of the experience
that teaches. Here, some elements are listed to characterize the
philosopher’s - philosophy, reflection, critical thinking - difficult
relationship with the (anti)political violence that is often expressed
in the verb "idiot" - but sometimes effective - and in the proliferation
of hatred, fear, and exclusion.
Keywords: Communication, silence, affections, politics

A cautela era, reconhecidamente, de como a paixão do medo des-


a marca de Espinosa. A palavra figura nossas potências, amortece
caute figurava no anel de sinete as veias de comunicação essenci-
com o qual selava suas correspon- ais à própria existência da vida
dências ao se comunicar com ami- coletiva. Ora, como distinguir a
gos, em muitas das quais eram prudência presente no emblema
ressaltados alguns dos perigos que Caute para a comunicação do pen-
atingem a quem pensa livremente; samento livre, sem a confundir
por outro lado, também outras com a paixão de medo que a des-
tantas cartas e escritos de Espi- figura? Afinal, segundo Espinosa,
nosa nos permitem tomar essa fi- uma é a potência de viver e resistir
losofia por uma exposição clara pela esperança de vida; outra é a

* Professor da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR). Doutor em Filosofia pela Universidade de São
Paulo. E-mail: danidani_ss@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3841-2516.

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potência (ou impotência) na confi- vezes a serviço de barrar a ambi-


guração de meios e fins para ape- ção de quem se imagina melhor
nas existir com o medo da morte: e vive como melhor frente à po-
tência da multidão. De qualquer
maneira, ao propormos a questão
a multidão livre conduz- sobre comunicação e o silêncio na
se mais pela esperança política, raramente a prudência,
que pelo medo, ao passo a deliberação ou a cautela foram
que uma multidão subju- reduzidas na filosofia à paixão do
gada conduz-se mais pelo medo. Há linhas que podem ser
medo que pela esperança: bem demarcadas entre as duas
aquela procura cultivar posturas: na cautela, um certo co-
a vida, esta procura so- nhecimento das coisas do mundo
mente que evitar a morte; tende a orientar os passos a se-
aquela, sublinho, procura rem dados se temos em vista um
viver para si, esta é obri- fim; o medo, em geral, apenas des-
gada a ser do vencedor, e nuda nossa impotência e ignorân-
daí dizermos esta é serva cia, por isso não nos surpreende
e aquela é livre. (...) E que, inclusive, quem se guia por
embora entre o estado que tal paixão se ponha a vociferar e a
é criado pela multidão li- fingir destemor quando instâncias
vre e aquele que é adqui- determinadas garantem proteção
rido por direito de guerra, ou anonimato. O medo pode fa-
se atendermos generica- zer calar, mas pode igualmente fa-
mente ao direito de cada zer gritar alucinadamente. A cau-
um, não haja nenhuma tela, por sua vez, também pode
diferença essencial, con- nos fazer calar, mas nunca com-
tudo, quer o fim, como já pletamente como mostraremos a
mostramos, quer os meios seguir, e o grito que pode acompa-
com os quais cada um de- nhar a cautela é de outra natureza
les se deve conservar têm que a do medo - uma espécie de
enormes diferenças (ESPI- conhecimento que acompanha a
NOSA, 2009, p. 45) cautela faz do grito algo expres-
sivo de quem se comunica; a cau-
Porém, ainda que o medo indi- tela esconde o que pode ser escon-
que servidão, ele é paixão inso- dido (não há desejo de martírio),
lúvel e encarnada em muitos dos mas expõe o que pode e deve ser
movimentos afetivos que realiza- vivido.
mos entre outras pessoas, muitas São sentidos de urgência dis-

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tintos, mesmo assim não dicotô- caída e víciosa, as paixões serão


micos, pois somos habitados por ali compreendidas como proprie-
afetos múltiplos e a coerência que dades humanas, tal com o plano
deles podemos trazer conosco é e a reta são propriedades das fi-
sempre esforço (conatus). A prática guras geométricas. As paixões
espinosana da filosofia funda-se entretecem as relações dos seres
no desejo (conatus-cupiditas) tam- humanos como prevalentemente
bém de comunicar-se, e a coerên- ambiciosos, invejosos e ávidos de
cia de nossos esforços está mais na distinção, ao mesmo tempo em
necessidade de fazer fluir experi- que pelas mesmas propriedades
ências vitais do que em produzir da natureza humana compreen-
discursos sem contradições. Nesse demos também a solidariedade, a
sentido, o mais determinante são generosidade, a fortaleza.
os afetos comuns, que nos asseme- Os afetos mais ativos que decor-
lham e nos diferenciam em nossas rem de nossa natureza são, con-
experiências vitais e se expressam cretamente, exercício vivo de rela-
a nossas próprias vistas. A expe- ções que carregam consigo o pen-
riência de comunicar-se, então, é samento reflexivo; são igualmente
por demais complexa e não reside produções efetivas de laços entre
apenas em disseminar ideias ade- o indivíduo e o que o cerca, mais
quadas (em uma sorte de vanguar- firmes que a parceria efêmera com
dismo filosófico), tampouco em as coisas e pessoas fundada na ri-
simplesmente informar (um certo queza, no prazer ou na glória, ou
tipo de razão instrumental discur- em outras paixões dessa estirpe,
siva). Em vez disso, o ponto co- para lembrar o proêmio Tratado
mum de que partimos para com- da emenda do intelecto (Espinosa,
preender as experiências políticas 2015b). Ao fim, não é a “ideia
são as paixões, os afetos comuns, da verdade” que determina nos-
como medo e esperança tal como sas ações, pois mesmo no campo
se apresentam na prática, aqui re- da compreensão racional, a po-
tomada para relembrar o lema es- tência intelectual que somos é to-
pinosano do Tratado político: a rei- mada como expressão de afetos. A
vindicação por uma filosofia po- verdade portanto não opera como
lítica que compreenda as paixões negação das paixões e nem uma
de modo realista e não utópico, e ideia verdadeira é capaz de refrear
que portanto não seja apenas sa- as paixões, afinal, é a força de um
ber teórico discursivo distante da afeto contrário e mais forte (seja
prática. Sem serem condenadas ele racional ou irracional, ade-
pela imagem de uma natureza de- quado ou inadequado) que pode

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suprimir, por exemplo, o medo1 . o anonimato do Tratado


Esse contexto nos aproxima de Teológico-Político não é
ideias fundamentais da ética es- prova de repulsiva cobar-
pinosana e poderá nos oferecer o dia; pelo que sabemos,
real sentido afetivo do que o filó- ou antes ignoramos, da
sofo entende por cautela. índole de Espinosa, pen-
Certo dia, encontrei um texto samos antes que é teste-
de Joaquim de Carvalho sobre o munho da humanitas seu
anonimato de Espinosa na publi- modestia, virtude que a
cação do Tratado Teológico-político Ética admiravelmente de-
que traduz o que aqui defendemos fine (CARVALHO, 2019).
a propósito de sua cautela:

O anonimato recobre a prudên-


Espinosa não nascera com cia e, não menos, a urgência de
alma de mártir. Ele ti- intervir filosoficamente na expe-
nha que dizer aos con- riência comum política que, por
temporâneos e aos vin- sua vez, intervinha diretamente
douros; preocupava-o o em sua vida, a ponto de quase ser
destino da mensagem, e morto quando esfaqueado por um
não a fama de a haver “inimigo” amedrontado pelo livre
proferido. Se declarasse pensar. No caso, a pobre expe-
o nome, abriam-se-lhe as riência política do medo das li-
portas do cárcere, e à infâ- vres ideias não se identifica pron-
mia da pessoa sucederiam tamente às atitudes violentas de
a reclusão e a ignorância quem teme o livre comunicar-se
do seu pensamento. Onde – ao contrário, podemos afirmar
está o filósofo que não an- que a violência é a fronteira para
teponha a discussão das lá da qual a experiência política
ideias ao renome da pes- "torna a ser" experiência de guerra
soa, ao viver o perviver, (não de conflito, nos moldes a que
e para resguardar o des- estamos acostumados contempo-
tino das suas meditações raneamente, pois aqui retomamos
não recate o ser físico, se a partir de Maquiavel e Espinosa
isso for propício? Não; a reflexão sobre direito de guerra).

1 Remeto à quarta parte da Ética, Proposição I (Espinosa, 2015a, p. 383): “Nada que uma ideia falsa tem de
positivo é suprimido pela presença do verdadeiro, enquanto verdadeiro”; e a Proposição VII (Espinosa, 2015a, p.
389): “Um afeto não pode ser coibido nem suprimido a não ser por um afeto contrário e mais forte que o afeto a
ser coibido.”

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COMUNICAÇÃO E SILÊNCIO NA EXPERIÊNCIA POLÍTICA ESPINOSANA

Espinosa seguia as trilhas de um tência, nesse caso, da imagem do


mundo político, em seu tempo, político2 : pérfido, sempre a pre-
que insinuava constantemente o parar armadilhas, e sua extrapo-
terror como força capaz de manter lação justamente segue na mesma
unida a república, de fazer passar esteira daquilo que poderia produ-
a disseminação da violência por zir o reverso, alguma forma de es-
força integradora e restauradora clarecimento na multiplicação dos
de potência política. meios de comunicação.
Assim, a cautela provoca silên- O falar e o calar, sentimos mui-
cios estratégicos e pode ocultar tas vezes, constituem uma expe-
um nome enquanto expõe algo riência ética tanto quanto polí-
profundamente político, e deve tica. Espinosa escreve no escólio
saber discernir, na experiência po- da segunda proposição da terceira
lítica, o que esta experiência re- parte da Ética: "as coisas humanas
vela de violento, de antipolítico, dar-se-iam muito mais felizmente
de desejo de exclusão e destrui- se nos homens estivesse igual-
ção. A maior dificuldade surge mente o poder (potestate) tanto de
exatamente quando a comunica- falar quanto de calar. Ora, a expe-
ção ela mesma e suas condições riência ensina mais que suficien-
de efetividade são deturpadas até temente que os homens nada têm
que a violência que perpassa cer- menos em seu poder do que a lín-
tas ações seja vista como ato polí- gua, e que nada podem menos do
tico – como as que se substanciam que moderar seus apetites" (Espi-
na negação da alteridade, das di- nosa, 2015, p. 245). Se a política
ferenças –, e que as possibilidades existe em função da dificuldade
de comunhão sejam tão bloquea- intrínseca à existência humana de
das às nossas vistas cansadas do moderar os apetites, existe, tam-
cotidiano que o que diz respeito, bém, como esfera de moderação da
de fato, à cidade, passa a ser ne- fala - e o moderar também nos en-
gligenciado ou mesmo excomun- via ao governar, ao criar medidas
gado como pérfido e prejudicial – (impor a justeza). Nesse sentido,
podemos reconhecer bem a persis- o campo político põe-se também

2 Cf. Tratado Político (ESPINOSA, 2009, pp. 6-7): “Os políticos, pelo contrário, crê-se que em vez de cuidarem
dos interesses dos homens lhes armam ciladas e, mais do que sábios, são considerados habilidosos. A experiência,
na verdade, ensinou-lhes que, enquanto houver homens, haverá vícios. Daí que, ao procurarem precaver-se da
malícia humana, por meio daquelas artes que uma experiência de longa data ensina e que os homens, conduzidos
mais pelo medo que pela razão, costumam usar, pareçam adversários da religião, principalmente dos teólogos, os
quais creem que os poderes soberanos devem tratar dos assuntos públicos segundo as mesmas regras da piedade
que tem um homem particular. É no entanto inquestionável que os políticos escreveram sobre as coisas políticas de
maneira muito mais feliz que os filósofos. Dado, com efeito, que tiveram a experiência por mestra, não ensinaram
nada que se afastasse da prática.”

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DANIEL SANTOS DA SILVA

como produtor de sentido de falas nos ânimos como é man-


e pode ser encarado como condi- dar na línguas, não have-
ção de muitas expressões comuns, ria nenhum governo que
mas, inversamente, pode ser ter- não estivesse em segu-
reno de violência àquilo que se rança ou que recorresse à
constitui comunitariamente. violência, uma vez que to-
A violência pode estar no calar, dos os súditos viveriam de
aquela a que mais atentamos, nor- acordo com o desígnio dos
malmente; pode estar também, governantes e só em fun-
contudo, no fazer falar, no induzir ção das suas prescrições é
à expressão falada, forma menos que ajuizariam do que era
costumeira, aparentemente, mas bom ou mau, verdadeiro
das mais recorrentes em nossos ou falso, justo e iníquo.
dias. O transtorno dessa forma (ESPINOSA, 2008, p. 300)
de indução à tagarelice é legível
na escrita de Espinosa, seja por- O tom quase matemático não sur-
que admite que, apesar de não ser preende, pelo menos a quem não
tão fácil submeter ânimos como espera juízo moral dessa filoso-
se submetem línguas, os ânimos fia política: o que temos, no con-
estão de certa forma sob os pode- texto dessa citação, é uma sorte de
res soberanos e se submetem aos alerta a quem pretende dominar –
meios capazes de levar a maioria e como isso apenas é possível se
a amar e odiar o que querem tais a potência de muitos dá suporte
poderes – mais, a gritar de ódio ou a tamanha ambição, a consequên-
de amor com a medida, a "mode- cia mais necessária que daí segue
ração" requerida para suas finali- é a violência, sempre à sombra
dades (ESPINOSA, 2008, p. 252); de pensamentos e práticas irredu-
seja, enfim, porque prognostica, tíveis em sua persistência ético-
nessa menor dificuldade em do- política. A liberdade de fala, es-
minar as línguas que os ânimos, tudo e ensino diferencia-se do cul-
a necessária violência em que re- tivo da fala violentamente antipo-
cai toda forma de poder que se lítica como a resistência de quem
exerce sobre nossa liberdade de deseja a liberdade diferencia-se do
raciocinar e de ajuizar. Em rela- desejo de abandonar a potência
ção a isso, lembremos as primei- própria. Nessa configuração em
ras linhas do último capítulo do que a fala antipolítica exerce o do-
Tratado Teológico-Político: mínio político, são os indivíduos
mais notáveis pelo conhecimento
Se fosse tão fácil mandar e pelo exercício da comunicação,
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COMUNICAÇÃO E SILÊNCIO NA EXPERIÊNCIA POLÍTICA ESPINOSANA

pelo envolvimento livre e afetivo dominação formatam a política,


com as partes mais violentadas da é impregnada de arrebatamento
cidade que serão os primeiros per- em crenças e em desprezos que
seguidos nos confrontos – ainda surgem, como escreve Espinosa,
que verbais – que se instalam em sob a autoridade e a orientação de
meio à “comunidade”3 . quem domina – "o que a experi-
O “mandar nos ânimos e nas ência abundantemente confirma"
línguas” em nome da segurança (ESPINOSA, 2008, p.252).
a que busca o exercício violento E porque são muitos os indi-
de poder, no Tratado Teológico- víduos orientados pela liberdade
político, não se identifica, pois, ilusória e arrebanhados pela am-
com a definição de segurança do bição de domínio de poucos, ou
Tratado político4 , entendida como a imagem da política se apro-
uma virtude da cidade correspon- xima da dinâmica de um sindi-
dente à virtude privada que, jus- cato de ladrões, ou ela é reformu-
tamente, preserva a liberdade e a lada. Ora, isso que implica ou-
fortaleza do ânimo. Neste caso, a tra armadura para o que se consi-
individual liberdade de ânimo (ou dera a experiência política, outra
fortaleza) se realiza na mesma me- medida (moderação) para o que
dida em que sinaliza a concreção se tem vulgarmente por ação po-
dos direitos naturais dos indiví- lítica e, na mesma corrente, por
duos em atividade comum, como ação pública. Se o pouco poder
vemos muito bem articulado no que temos sobre nossas línguas
segundo Tratado. Paralelamente, pode ser deixado a quem deseja
a ilusória "liberdade" de expres- dominar; se, além disso, para do-
sar em fala o ódio – ou de per- minar é preciso atacar os ânimos
seguir odiosamente a fala livre –, dos indivíduos, um meio eficaz
nessa configuração em que com- para isso seria exatamente, em
plexos imaginários (efetivos) de primeiro lugar, dar à voz submissa

3 No Tratado Teológico-político (ESPINOSA, 2008, p. 307): “Quanto mais não valeria conter a ira e o furor
do vulgo, em vez de promulgar leis inúteis que só podem ser violadas por aqueles que prezam as virtudes e as
artes, leis que reduzem o Estado a uma situação tal que é incapaz de defender os homens livres! Que coisa pior
pode imaginar-se para um Estado que serem mandados para o exílio como indesejáveis homens honestos, só por-
que pensam de maneira diferente e não sabem dissimular? (...) os que sabem que são honestos não têm, como os
criminosos, medo de morrer nem imploram clemência; na medida em que não os angustia o remorso de nenhum
feito vergonhoso recusam-se a considerar castigo o morrer por uma causa justa e têm por uma glória dar a vida
pela liberdade. Que exemplo poderá então ter ficado da morte de pessoas assim, cujo ideal é incompreendido pelos
fracos e moralmente impotentes, odiado pelos revoltosos e amado pelos homens de bem? Ninguém, certamente, aí
colhe exemplo algum, a não ser para os imitar ou, pelo menos, admirar.”
4 No Tratado Político (ESPINOSA, 2009, p. 9): “Nem importa, para a segurança do estado (imperium), com que
ânimo os homens são induzidos a administrar corretamente as coisas, contanto que as coisas sejam corretamente
administradas. A liberdade de ânimo, ou fortaleza, é com efeito uma virtude privada, ao passo que a segurança é a
virtude do estado”.

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todo incentivo à fala (entendida mente questiona a permanência


aqui como falsa liberdade de co- da vida como simples sobrevida6 .
municação), e, em segundo lugar, Talvez, então, possamos pers-
inversamente, à verdadeira liber- pectivar como resistência a ne-
dade de juízo e de ânimo dar ares gação a aderir à fala orientada, e
de subversão, de amotinamento, o quem sabe até possamos ver nisso
qual é fundado, em realidade, na o silêncio como constituição, em
comunicação do que é verdadeira- alguns momentos, de verdadeira
mente útil ao comum. aliança comunicativa. Em certas
Nessa configuração, em ambos configurações, há resistência ativa
os casos, o medo é o afeto mais co- no silêncio, assim como há igual-
mum, ainda assim traços diversos mente cautela no pronunciar-se
denunciam a natural diferença en- ou no anunciar-se; inevitavel-
tre os locais em que habita; se pen- mente, existe o vazio das falas
samos em termos maquiavelianos, submissas e fundadas na negação
notamos que o desejo de domí- e no medo da liberdade comum.
nio é inseparável do medo a tudo, Para que uma asserção como essa
medo da verdade – como desejo faça sentido, hoje, não liguemos
de ser enganado5 –, eis uma das à ideia de dominação apenas go-
razões de não poder durar, e Es- vernantes políticos, já que meios
pinosa relembra Sêneca para afir- e instrumentos de subjugação do
mar que o despotismo tem neces- ânimo muito se complexificaram e
sariamente vida curta (Espinosa, refinaram-se. A eficácia atual so-
2008, p. 86). Por outro lado, o de- bre os ânimos já é capaz de fazer
sejo de não ser dominado – e tam- parecer bobagem falar – critica-
bém o desejo que persiste em não mente, não como frase pronta de
ser governado por semelhantes – mercadoria – em desejo de liber-
enlaça o medo inevitável pela pró- dade.
pria sobrevivência, mas especial- Portanto, a violência política

5 Cf. essa bela passagem de MARILENA CHAUI, em Política em Espinosa, p. 279: “O soberbo, no orgulho
desmedido, considera que tudo lhe é permitido; o abjeto, na humilhação desmedida, considera que nada lhe é
permitido. O primeiro se torna dominador insolente; o outro, servo adulador, invejoso e ressentido. Ambos, sub-
missos às suas paixões, são fonte de novas servidões, pois o soberbo julga-se livre porque domina e despreza os
outros, enquanto o abjeto adulador imagina-se dependente dos favores do soberbo que, por definição, nunca hão
de vir. Assim, o segundo movimento do texto do Político (VII, 27) inicia-se quando, transferido o topos liviano
da plebe para o vulgar, passamos daquele que se deixa enganar por inexperiência e ignorância àquele que deseja
ser enganado por orgulho e ambição ou por auto-abjeção. Por isso, servidão e liberdade não andam juntas, pois o
soberbo é servo de suas paixões que o fazem servo de seus aduladores e estes, servos de suas paixões que os fazem
servos do dominador.”
6 Cf. Tratado Político (ESPINOSA, 2009. p. 45): “Quando, por conseguinte, dizemos que o melhor estado é
aquele onde os homens passam a vida em concórdia, entendo a vida humana, a qual não se define só pela cir-
culação do sangue e outras coisas que são comuns a todos os animais, mas se define acima de tudo pela razão,
verdadeira virtude e vida da mente.”

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ISSN: 2317-9570
COMUNICAÇÃO E SILÊNCIO NA EXPERIÊNCIA POLÍTICA ESPINOSANA

não existe porque há ânimos in- Suponho, pois, que a cautela e a


submissos – simplesmente exis- potência que ela envolve mais que
tem potências singulares e ativi- nunca passam por resistir a certas
dades comuns, e a violência acom- falas, a calar o nome de si em oca-
panha o desejo de dominar, o qual siões determinadas, a comunicar
em geral tem braços curtos e voz até no silêncio, mas repudia maxi-
rouca, pois, para homenagear La mamente o medo, mesmo que dele
Boétie, precisa invariavelmente de não se livre completamente, mui-
muitos braços e vozes estridentes tas vezes. Por outro lado, supo-
para agir, e a arena política é um nho que a comunicação constitu-
palco bem iluminado para isso. É tiva da experiência política, múl-
nessa linha que, do ódio, do des- tipla, obviamente, é hostil à pro-
prezo e de tudo mais surgido do liferação do ódio e da exclusão,
desejo de dominar de poucos, Es- e que toda resistência ou ação li-
pinosa afirma: vre, quando política, é conflito di-
reto com quem usurpa o direito
E, se bem que esses senti- do indivíduo dando-lhe voz – que,
mentos não surjam direta- quando útil, é conquistada, não
mente por ordem do sobe- dada – e orientando de mil modos
rano, muitas vezes, como sua fala, que assim será constan-
a experiência abundante- temente uma fala contra, generali-
mente confirma, eles sur- zante; nem por isso todas e todos
gem, no entanto, por força que assim falam aderem de fato
de sua autoridade e sob ao ódio, ao desprezo, é de se no-
sua orientação... daí que tar que violências são exercidas so-
possamos conceber, sem bre indivíduos quando na cidade os
violentar minimamente a instrumentos mais eficazes de comu-
inteligência, homens que nicação são antipolíticos, e a polí-
não acreditem, odeiem, tica passa a alimentar a ilusão de
desprezem ou sejam arre- que a voz publicizada é já voz polí-
batados por qualquer ou- tica, ocultando que a experiência que
tro sentimento a não ser aí se constitui é primordialmente de
em virtude do direito do negação, de subserviência – de circo,
Estado (ESPINOSA, 2008, por que não?
p.252).

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ISSN: 2317-9570
DANIEL SANTOS DA SILVA

Referências

CARVALHO, J. de. "Espinosa e a publicação do Tratado teológico-político".


Artigo eletrônico. [Acessado em 03 de junho de 2019]
CHAUI, M. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras,
2003.
ESPINOSA, B. de. Tratado político. Trad. de Diogo Pires Aurélio. São
Paulo: Martins Fontes, 2009.
_____________. Ética. Trad. do Grupo de Estudos Espinosanos. São
Paulo: Edusp, 2015a.
_____________. Tratado teológico-político. Trad. Diogo Pires Aurélio.
São Paulo: Martins Fontes, 2008.
_____________. Tratado da emenda do intelecto. Trad. de Cristiano No-
vaes de Rezende. Campinas: Editora da Unicamp, 2015b.
LA BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária. Trad. Laymert
Garcia dos Santos. São Paulo : Brasiliense, 1999.

Recebido: 04/07/2019
Aprovado: 09/11/2019
Publicado: 17/11/2019

146 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 137-146
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v7i2.25632

Sobre o Desespero: São Paulo, Junho de 2013


[Of Despair: São Paulo, June 2013]

Fernando Bonadia de Oliveira*

Resumo: Este artigo pretende analisar as jornadas de junho de 2013


na cidade de São Paulo, assumindo como perspectiva a definição de
desespero elaborada por Bento de Espinosa (1632-1677) na parte III
da Ética. A partir da ideia de que houve um sequestro da narrativa
sobre as jornadas, o texto reconstitui a cobertura midiática dos qua-
tro primeiros atos contra o aumento da tarifa do transporte público,
ocorridos na cidade entre os dias 6 e 13 de junho. Em seguida, arti-
cula uma discussão a respeito das interfaces possíveis entre a filosofia
prática de Espinosa e estes acontecimentos, evidenciando como, se-
gundo certa interpretação, o desespero pode ser considerado o afeto
predominante das jornadas, tendo como principal protagonista uma
juventude organizada, combativa e crítica.
Palavras-chave: Jornadas de Junho de 2013, Bento de Espinosa, De-
sespero, Movimento Social, Juventud.

Abstract: This article intends to analyze the journey occurred in


June 2013 in the city of São Paulo assuming the definition of despair
developed by Benedictus Spinoza (1632-1677) in his treatise Ethics III
as perspective. From the point of view that the narrative about the
journeys was sequestered, the text reconstitutes the media coverage
of the four initial acts/protests against the public transport tax raise,
occurred among june 6th to 13th. Following this, a discussion about
the correlations between the practical philosophy of Spinoza and
these events is developed, showing how, according to a way of in-
terpreting the case, despair can be considered the predominant
affect of those acts, with an organized, combative and critic youth as
protagonist.
Keywords: June Journeys in São Paulo, Benedictus Spinoza, Despair,
Social Movement, Youth.

Uma introdução necessária em desenvolvimento, sobre as jor-


nadas de junho de 20131 na cidade
Este artigo corresponde à pri-
meira parte de um estudo, ainda
* Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Doutor em Filosofia pela Universidade de
São Paulo (USP). E-mail: fernandofilosofia@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4627-3162.
1 As jornadas de junho de 2013 correspondem a “várias manifestações populares por todo o país que inici-
almente surgiram para contestar os aumentos nas tarifas de transporte público, principalmente nas principais
capitais”. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jornadas_de_Junho Acesso: 23 de fevereiro de 2019. A
forma de nomear o evento varia muito. Entre as designações mais comuns estão atos (denominação do Movimento
Passe Livre), acontecimentos (SINGER, 2013, p. 26), protestos (GOHN, 2014, p. 435) e manifestações (CHAUI,

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ISSN: 2317-9570
FERNANDO BONADIA DE OLIVEIRA

de São Paulo, segundo a percepção conclusões dignas de crédito cien-


de um leitor-filósofo de Espinosa2 . tífico.
As inquietações que conduziram Como minha presença no mo-
ao problema aqui examinado nas- vimento das jornadas de junho de
ceram de minha participação nos 2013 não resultou de uma obser-
eventos políticos então deflagra- vação planejada, a única maneira
dos nas ruas e, por conseguinte, de produzir um estudo coerente
envolvem uma dimensão maior de depende do reconhecimento, em
subjetividade. primeiro lugar, das noções de que
A metodologia de pesquisa en- eu dispunha conscientemente na-
sina os casos em que a coleta de quele momento e, em segundo lu-
dados por meio de uma observa- gar, do respaldo de uma bibliogra-
ção científica rigorosamente pla- fia que, tendo abordado as jorna-
nejada pode ser um excelente re- das com o distanciamento neces-
curso de investigação, de tal modo sário a uma realização científica,
que as impressões pessoais do pes- sustente o sentido de minhas in-
quisador não deformem a reali- terpretações. As noções aqui ex-
dade observada. Um investigador plicitadas estão no universo con-
esclarecido, ao preparar devida- ceitual de Espinosa e, em especial,
mente a observação da situação a em uma noção específica, a de de-
pesquisar, põe às claras para sua sespero, que em geral não aparece
própria consciência as ideias pré- com destaque em estudos feitos
concebidas que podem vir a de- sobre o espinosismo. Não há dú-
turpar a apreensão rigorosa dos vida de que os comentários so-
fatos e, dessa maneira, permanece bre a política de Espinosa atra-
metodicamente prevenido delas. vessam o debate ético em torno
Coisa diferente é alguém viven- deste afeto e, sobretudo, do par
ciar uma situação determinada, que ele compõe com a segurança.
de forma contingente ou interes- Apesar disso, não há tantos tra-
sada e, em seguida, descrevê-la balhos que circunscrevam espe-
com base em emoções vagas, pre- cialmente o desespero no campo
tendendo ingenuamente chegar a político, como os que abordam o

2013). Exceto o último termo, que evitaremos por ter adquirido, depois de 2013, uma conotação de “festa”, muito
difundida pela grande mídia, empregaremos todas as outras expressões. O termo jornada foi especialmente esco-
lhido por conter, entre outros, o sentido militar de batalha, expedição de guerra, fenômenos que, conforme o leitor
perceberá, espelham melhor os fatos transcorridos na cidade de São Paulo no período que será enfatizado aqui, a
saber, os dias 6 a 17 de junho.
2 As referências à obra de Espinosa serão feitas pela indicação da parte de obra citada ou mencionada. Além
disso, será indicado o número do volume e da página, de acordo com a referência padrão das obras espinosanas
por Carl Gebhardt (SPINOZA, 1972), registradas pela inicial “G”. A tradução da Ética utilizada corresponde à da
Edusp (ESPINOSA, 2015), e a tradução do Tratado Teológico-Político à da Martins Fontes (ESPINOSA, 2003).

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SOBRE O DESESPERO: SÃO PAULO, JUNHO DE 2013

medo, a esperança e a segurança; meira narrativa, assim defende-


mesmo quando enfatizam o de- remos, tem como afeto predomi-
sespero, tomam-no estritamente nante o desespero; a segunda tem
naquilo que ele tem de evidente: como afeto hegemônico a indigna-
o fato de ser uma tristeza. Neste ção.
trabalho, convém destacar, o de- Há, sem dúvida, referências bi-
sespero será entendido na dimen- bliográficas que levam em conta a
são da tristeza, como não pode- temporalidade dos atos que cons-
ria deixar de ser, mas uma tristeza tituíram os acontecimentos de ju-
que pode se ligar a outros afetos nho. Neste trabalho, contudo, a
e, em coletividade, tornar-se ale- compreensão da distinção de na-
gria3 . tureza entre os atos de 6 a 13 de
A bibliografia sobre as recen- junho, e os atos de 17 de junho em
tes mobilizações de rua no Brasil, diante é o paradigma central do
por sua vez, é vasta e apreende as entendimento das jornadas aqui
jornadas a partir de vieses distin- pretendido5 . Ademais, diferente-
tos, tais como a atuação dos mo- mente da maioria das bibliogra-
vimentos sociais, os dados sobre o fias disponíveis, tomaremos como
perfil dos insurretos4 , as análises basilar algo que, sempre em dis-
midiáticas dos eventos, entre ou- cussão, também não costuma re-
tros. Ocorre, porém, que as refe- ceber a devida ênfase: o pivô de
rências bibliográficas localizadas todas as ações que chamaram a
não dão a devida consideração a atenção do público naquela oca-
um dado que a experiência reve- sião foi a juventude paulistana.
lou importante no cotidiano das Neste artigo conceberemos a ju-
jornadas: os atos, desde a perspec- ventude como a principal ativa-
tiva de seus originais organizado- dora do início das movimentações
res, tiveram no dia 13 de junho de rua que tomaram o Brasil e,
um divisor de águas que delineou ao mesmo tempo, como o prin-
duas narrativas distintas. A pri- cipal objeto da necessidade, per-

3 Sobre as noções de alegria e tristeza aqui empregadas, cabe ressaltar seu sentido espinosano: a “alegria é a
passagem do homem de uma perfeição menor a uma maior”; a “tristeza é a passagem do homem de uma perfei-
ção maior a uma menor” (GII, p. 191). Ao lado do desejo, tais noções compõem a tríade dos principais afetos da
filosofia prática de Espinosa.
4 Apontamos aqui os militantes como “insurretos”, tomando como “insurreição” aquilo que, para Negri (2003,
p. 197), “é a forma de um movimento de massa resistente, quando se torna ativa em pouco tempo (...)”. A insur-
reição, nesse sentido, é o que “aperta as diversas formas de resistência em um único nó”. Tal descrição se aproxima
das características políticas que definiram as jornadas enquanto certa espécie de batalha.
5 Ampara-nos neste ponto o livro Vinte Centavos: A Luta Contra o Aumento, que se opõe a interpretações que,
embaladas pelos meios de comunicação e pelo descuido de analistas, não atentam para o começo dos protestos e os
seus precedentes, permitindo que se torne consensual a tese de que a reivindicação pela redução das tarifas foi um
mero acidente das jornadas de junho (ORTELLADO, 2015).

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FERNANDO BONADIA DE OLIVEIRA

cebida pelos dominantes, de se Interpretada em perspectiva es-


criar o quanto antes, pela ideo- pinosana, esta solidariedade, con-
logia, um discurso diferente da- forme será visto, pode ser uma ex-
quele das ruas, bem como uma periência de estar-com capaz de fa-
política objetiva contra os direitos zer nascer, no seio da condição de
dos jovens e das gerações futuras servidão (característica do indiví-
do país, conforme será tematizado duo desesperado), um gosto pela
nas conclusões. libertação, isto é, pela passagem
O objetivo deste texto foi, em para uma vida coletivamente li-
suma, interpretar as jornadas de vre, mantida pelo auxílio mútuo.
junho de 2013 na cidade de São A experiência de lutar, constitu-
Paulo a partir de um diálogo com tiva do potencial democrático de
a noção espinosana de desespero, um coletivo, quando é vivenciada
deixando para outro momento o por aqueles que, em desespero,
diálogo com a noção de indigna- afrontam todas as formas de lide-
ção. Uma vez que a percepção rança e comando que se dirigem
das jornadas depende da forma contra o bem comum, contém um
pela qual concebemos sua traje- devir-ativo6 .
tória completa naqueles dias, ini- O sentimento de uma alegre li-
ciaremos tratando o problema do berdade em meio ao caos da re-
“sequestro da narrativa” sobre o pressão é comum entre os que já
que foram, afinal, os atos contra a estiveram em situação de orga-
tarifa. Em seguida, mostraremos nização política guiada por uma
como estavam estruturados esses estratégia revolucionária contra a
atos e como a concepção espino- opressão. No documentário Ma-
sana de desespero pode ser relaci- righella (Ferraz, 2012), o depoi-
onada a eles. Por fim, buscaremos mento de Guiomar Silva Lopes,
identificar a contribuição da lei- médica e ex-militante contra a di-
tura de Espinosa para se pensar tadura civil-militar brasileira, é
a transformação política dos afe- um bom exemplo disso, afinal,
tos tristes em alegres, ou, noutras para ela, sua vida em combate se
palavras, para conhecer como a situava “no fio da navalha”, mas
multidão pode vir a formar, com havia algo fantástico: “uma sen-
participação e ação direta, a soli- sação de liberdade inacreditável”
dariedade entre desesperados. de estar em meio à resistência.

6 Expressão empregada por Gilles Deleuze (2017, p. 358). Ver Michael Hardt (1996, p. 156-157) que explica o
devir-ativo de Deleuze, na leitura de Espinosa, como passagem da tristeza à alegria, produzida pela descoberta das
noções comuns e pela formação de ideias adequadas.

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SOBRE O DESESPERO: SÃO PAULO, JUNHO DE 2013

No mesmo sentido, descrevendo francês (e não as jornadas de ju-


as imagens francesas de maio de nho, conforme se disseminou ge-
1968, Marilena Chaui conta, em neralizadamente), seu relato põe
discurso emocionado, a percepção em paralelo a paixão revolucio-
que teve: nária e a grande paixão amorosa,
raridades afetivas dignas de uma
vida bem vivida. O impulso dos
Vocês não imaginam o que
registros já oferecidos reaparece
é passar pela experiên-
com outras cores em certa reflexão
cia revolucionária. É uma
de Antonio Negri e Michael Hardt
coisa, é uma coisa... Eu
(2005, p. 276), no livro Multidão.
digo que todo mundo tem
Dispostos a mostrar como os con-
que viver uma grande pai-
flitos sociais mobilizam o comum,
xão amorosa e ter uma ex-
eles escrevem:
periência pela possibili-
dade de revolução. Sem
essas duas coisas você não
viveu uma vida completa. O conflito direto com o
Tem que ter, porque o poder, para o melhor ou
mundo se abre com to- para o pior, eleva essa in-
das as janelas a um fu- tensidade comum a um
turo completamente ne- nível ainda mais alto: o
buloso, e que está lá, você cheiro cáustico do gás la-
sabe que está lá, e você crimogêneo mobiliza os
sabe que você vai para ele, sentidos e os confrontos
que vai acontecer, que ele de rua com a polícia fa-
vai acontecer com as tuas zem o sangue ferver de
mãos (CHAUI, 2016a, p. raiva, elevando a intensi-
28). dade ao ponto da explo-
são. Finalmente, a intensi-
ficação do comum produz
Embora Chaui (2018, p. 417) de- uma transformação antro-
fenda que a ocupação das escolas pológica de tal ordem que
pelos jovens em 2015 foi o mais das lutas surge uma nova
autêntico movimento brasileiro humanidade.
capaz de traduzir o maio de 68

7 Esta expressão emerge na descrição, feita por Gohn (2014, p. 432), das diversas tendências que apareciam nos
atos. Entre elas, revela a autora, “(...) há também um novo humanismo na ação de alguns, expresso em visões ho-
lísticas e comunitaristas, que critica a sociedade de consumo, o egoísmo, a violência cotidiana – real ou monitorada
pelo medo nas manchetes diárias sobre assaltos, roubos, mortes etc., a destruição que o consumo de drogas está

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FERNANDO BONADIA DE OLIVEIRA

Esta nova humanidade, espécie de ciar ter sido sobre jovens assim
“novo humanismo”7 , nasceu na desesperançados que, em junho
resistência ativa e criativa de jo- de 2013, um aumento rotineiro de
vens contra um sistema brutal de tarifa não caiu bem.
repressão: a Polícia Militar do Es- Antes de tudo, vale a pena
tado de São Paulo. Quem expe- ainda uma última observação so-
rimentou a emoção revolucioná- bre o critério com que abordare-
ria de 2013 se deixou marcar pela mos o problema examinado. Sem-
luta coletiva e pela descoberta da pre que nos voltamos a estudos
ação no seio da paixão, isto é, pela históricos sobre o Brasil, precisa-
liberdade contida no âmbito das mos ter em pensamento a indaga-
experiências da própria passio- ção que Carlos Alberto Vesentini
nalidade, e não em algum ideal (1997, p. 15) coloca em seu es-
transcendente ou em certo deus tudo sobre 1930: “Com que crité-
ex machina. No contexto dos atos rio um historiador fala das lutas
aqui estudados, como veremos, a e agentes de uma época que não
paixão em pauta é o desespero que é a sua?”. No caso das jornadas
surge – na parte III da Ética de Es- de junho, inversamente, estamos
pinosa – da ausência de dúvidas tratando de uma época que vive-
quanto a um futuro amedronta- mos e de agentes que acompanha-
dor que acena cada vez mais de mos, integrando-nos como parte
perto. A ação consiste na arte da da narrativa. Ainda assim, para
organização coletiva mediada pela nossos intentos, cabe refletir sobre
performance de jovens que tornam a pergunta de Vesentini em sen-
o próprio desespero capaz de cau- tido filosófico: tomar a definição
sar desespero. de um afeto da filosofia de Espi-
É certo que o dispositivo que nosa (no século XVII) para inter-
incendiou as ruas não parece ter pretar a vivência das jornadas de
sido motivado pela ação de jo- junho de 2013 não envolve uma
vens reivindicando o direito à ira contradição temporal que pode
ou ao exercício gratuito do deses- eventualmente turvar a própria
pero quanto ao futuro, mas uma interpretação? A fim de esclare-
questão de circulação urbana (o cer este ponto, devemos advertir
aumento da tarifa). A linha argu- que, conforme sustentou Antonio
mentativa deste artigo se orienta Negri (1993, p. 26) em sua obra A
justamente no sentido de reconhe- anomalia selvagem (publicada em
cer isso, mas também de eviden- 1981), Espinosa pode ser tomado

causando na juventude e outros”.

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ISSN: 2317-9570
SOBRE O DESESPERO: SÃO PAULO, JUNHO DE 2013

como um filósofo contemporâneo, outros pressupostos, ou-


isto é, atento a tensões que só es- tros referenciais.
tão se explicitando agora, séculos
depois de sua época. “Espinosa é Este trabalho buscou, tanto
um filósofo contemporâneo, pois quanto possível, não aplicar ver-
sua filosofia é a de nosso futuro”, ticalmente a teoria política de
escreveu ele8 . Por motivos simila- Espinosa sobre os fatos de ju-
res, observamos que neste traba- nho, a ponto de formar uma ideia
lho o espinosismo será entendido de totalidade sobre as jornadas,
pelos princípios de sua teoria dos mas construir uma articulação por
afetos cuja dinâmica pode dialo- meio da qual pudessem ser apre-
gar com os afetos em circulação no sentadas sobre estes eventos im-
cenário político brasileiro atual. pressões que parecem ter ficado
Tais considerações introdutó- até agora senão inauditas, margi-
rias são necessárias para não in- nais.
cidirmos no erro comum, expli-
citado por Maria da Glória Gohn
(2014, p. 437), em relação a uma
Antecedentes: São Paulo, 20139
série de abordagens sobre as jor-
nadas. Para ela, muitos analistas As jornadas surgiram na cena
de junho de 2013 social e política do Brasil como
um problema de transporte. São
fazem uma leitura com os Paulo, como outras metrópoles, é
óculos de uma dada abor- célebre pela rotina urbana do en-
dagem e, como não encon- garrafamento, isto é, pela cotidi-
tram os elementos dessa anidade do trânsito lento, ocasio-
abordagem nas manifes- nado pelo excesso de veículos nas
tações, descaracterizam- vias urbanas. A poluição pelo gás
nas. Não querem ver ou carbônico e pelo som ataca prin-
não aceitam que elas têm cipalmente os pedestres, mas é

8 Para Negri (1993, p. 30), “estudar Espinosa é colocar o problema da desproporção na história”. Situado na
Holanda dos seiscentos, um país anômalo cuja forma política permanecerá em aberto, Espinosa não esteve disposto
a propor uma fundamentação para as relações econômicas e sociais do capitalismo do seu tempo. Não esteve em
busca de uma resposta para as crises que então se anunciavam. Ao contrário, esteve envolvido em criar uma forma
política futura, a democracia absoluta, da qual podemos progressivamente nos aproximar no mundo contemporâ-
neo. Sobre isso, ver Negri (1993, prefácio e capítulo 1).
9 Apesar de afirmarem, em geral, que as jornadas ganharam impulso em todo o Brasil a partir de São Paulo, é
necessário tratar de antecedentes. Aqui nos limitaremos aos antecedentes do cotidiano paulistano, mas é preciso
trazer à memória o mês fevereiro de 2013, quando uma relevante agitação promovida pelo Bloco de Lutas por
um Transporte Público de Porto Alegre-RS, depois de protestos de rua, conseguiu fazer a Justiça reverter, meses
depois, um aumento de tarifa. Para não estender ainda mais esta parte introdutória, limito-me a indicar sobre isso
os trabalhos de Cardoso e Di Fátima (2013, p. 158-159) e de Scherer-Warren (2014, p. 418).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 147-187 153
ISSN: 2317-9570
FERNANDO BONADIA DE OLIVEIRA

posta geralmente como dificul- é, a proteção da sombra


dade de menor importância em em país semitropical, é es-
comparação com todos os outros cassa, a não ser em certos
males de uma cidade cujos indi- bairros, como os Jardins,
víduos parecem ter incorporado subtraindo da maior parte
em definitivo o hábito de evitar dos cidadãos o prazer es-
horários e trajetos muito visados. tético de ver belas flora-
A vida ou – em termos mais pau- das multicores a assinalar
listanos – a agenda é determinada a sequência das estações.
pela lógica do transporte privado As principais vias estão
que impede sistematicamente o preenchidas por veículos
direito à cidade. que mal circulam, reve-
A descrição de Wilheim (2013, lando uma péssima rela-
p. 8-9), feita precisamente no ano ção entre número de veí-
das jornadas, oferece em um só culos e vias disponíveis
lance o retrato urbano da capital: para sua circulação. Em
resumo: a qualidade ur-
bana está muito aquém da
São Paulo apresenta uma
expressão econômica de
dinâmica urbana de in-
São Paulo, muito abaixo
cessante movimento, com
das expectativas de sua
escassos espaços para o
população e com serviços
gozo, individual ou cole-
e equipamentos mal dis-
tivo, de paisagens, cujo
tribuídos (grifos do origi-
potencial natural foi des-
nal).
perdiçado pela cupidez
com que cada lote foi edi-
ficado. Os espaços públi- O pedestre, “principal elemento e
cos encontram-se degra- usuário do sistema de transporte
dados, seja no aspecto fí- público”, não tem suas expecta-
sico de difícil uso pelos tivas atendidas10 e se, em tese, é
pedestres, seja pela sina- “a partir de suas necessidades e
lização defeituosa, e pelos expectativas” que a mobilidade
muros hostis que por vezes deveria ser pensada (WILHEIM,
cercam quarteirões intei- 2013, p. 16), São Paulo é um
ros, de propriedades pri- exemplo de como não proceder à
vadas. A arborização, isto política urbana.

10 Wilheim assinala com razão (2013, p. 16): “o pedestre paulistano é especialmente prejudicado pelo mau
estado das calçadas e ruas em que pisa”.

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ISSN: 2317-9570
SOBRE O DESESPERO: SÃO PAULO, JUNHO DE 2013

Ao longo dos meses de maio e tarifas de ônibus e metrô na ci-


junho de 2013, em meio a esse dade de São Paulo; de três reais,
caos urbano, a cidade transbor- passariam a três reais e vinte cen-
dou vivacidade política. Durante tavos a partir de dois de junho.
o mês de maio, o Grupo de Estu- “Vinte centavos a mais para um
dos Espinosanos da Universidade transporte cada vez mais precário
de São Paulo (USP) organizou a e inseguro”, comentavam todos.
Jornada Marxistas Leitores de Es- Na época, o aumento da tarifa me
pinosa com a colaboração expres- tocou de perto. Para um dou-
siva de colegas cariocas do campo torando, professor da rede par-
do Direito da PUC-Rio. A jornada, ticular do ensino da cidade, vi-
uma jornada acadêmica, ocorreu vendo ininterrupta contenção de
nos dias 27, 28 e 29 (segunda, gastos, o valor da passagem as-
terça e quarta-feira) na Faculdade sustava. Ir e voltar do centro ao
de Filosofia, Letras e Ciências Hu- bairro do Morumbi algumas ve-
manas. Antes deste encontro – no zes por semana consumia meu
dia 25 de maio – ocorrera a Mar- tempo, meu descanso e meu di-
cha Feminista das Vadias, inici- nheiro. Em meio aos preparati-
ada às 12 horas no cruzamento vos para o início da redação do
da Avenida Paulista com a Rua da meu texto de qualificação de dou-
Consolação (Praça do Ciclista). O torado, eu lia Espinosa e, especifi-
anúncio da marcha deixava a ame- camente relia A anomalia selvagem
aça: “São Paulo vai parar”. O final de Antonio Negri. De um lado,
do ato comoveu por ter feito ecoar, envolvia-me sua defesa intransi-
para além dos gritos convencio- gente de que Espinosa expulsou a
nais, típicos da luta por igualdade noção de mediação de seu sistema,
de gênero, uma ira política e um negando o recurso à representa-
refinamento discursivo que apon- ção e ao contrato em sua forma
tava para um combate mais ge- clássica (NEGRI, 1993). De ou-
ral, mais próximo da negação do tro, percebia a coerência da ad-
Império, substrato que origina e vertência de Marilena Chaui que
mantém a forma mais arquetípica foi posteriormente explicitada em
do machismo contemporâneo. texto (CHAUI, 2013), acentuando
A grande mídia, por essa se- o risco à democracia que assumi-
mana, alardeava com a naturali- mos quando, incautamente, dese-
dade costumeira o aumento das jamos suspender as ideias de me-

11 Explicitei melhor esse ponto em “Espinosa, um anarquista?”, texto apresentado em outubro de 2016 na Uni-
versidade de São Paulo e publicado no volume do VI Colóquio Espinosa de Fortaleza (OLIVEIRA, 2017).

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diação e representação política11 . No dia 07, o segundo; no dia 11, o


Percebíamos, nas escolas, nas terceiro e no dia 13, o quarto, to-
universidades e na própria socie- dos tendo início no final da tarde,
dade os esforços para formar mo- começo da noite15 . Hoje é difícil
vimentos sociais que se caracte- por em xeque a tese de que houve
rizassem pela horizontalidade e um sequestro da narrativa soci-
pela ausência de lideranças, traços almente estabelecida sobre esses
que permitiam efeitos incríveis, a encontros16 e, por este motivo, é
começar pela satisfação de gritar preciso entender como este rapto
por novos direitos e pela radica- se deu, acompanhando ato a ato
lização de direitos que existiam até o dia 13. O primeiro, o me-
apenas na letra da lei. Porém, vi- nos destacado de todos em termos
mos o quanto a capacidade de or- de intensidade e visibilidade, foi
ganizar o desespero estava midi- (como muitos outros) alvo de críti-
aticamente vulnerável à captura cas na grande mídia. Anelise Ma-
por um comando de viés reacio- radei (2013, p. 4) teve o cuidado
nário, capaz de inserir uma medi- de acompanhar, no jornal Folha de
ação para o conservadorismo12 . São Paulo, como foi a cobertura de
cada ato, do dia 6 ao dia 20 de ju-
nho.

A narrativa sequestrada
Na capa do jornal Folha de
O aumento da tarifa do transporte S. Paulo do dia 6, não ha-
público foi dado e as pessoas saí- via menção à manifesta-
ram às ruas13 . No dia 06 de junho ção que ocorreria no pe-
de 2013, o Movimento Passe Livre ríodo noturno. Nenhuma
(MPL)14 chamou o primeiro ato. chamada sobre o que es-

12 É amplamente conhecido o desvio do movimento (de junho de 2013) da esquerda em direção ao conservado-
rismo que desaguará, a partir de 2015, nos chamados “protestos antigoverno”, tipicamente de direita e contrários
à presidenta Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores).
13 Não foi, evidentemente, a primeira vez que houve mobilização intensa pela melhoria no transporte público no
Brasil. Sobre o histórico das mobilizações em defesa do transporte de qualidade, ver Gondim (2016, p. 366-368).
14 De acordo com Céli Regina Jardim Pinto (2017, p. 158), o MPL se apresentava, no tempo das jornadas, como
“um movimento social autônomo, apartidário, horizontal e independente, que luta por um transporte público de
verdade, gratuito para o conjunto da população e fora da iniciativa privada” . Foi constituído desde a Plenária
Nacional pelo Passe Livre (Porto Alegre-RS, 2005) por “um grupo de pessoas comuns (...) para discutir e lutar por
outro projeto de transporte para a cidade” . Presente em diversas cidades brasileiras, o MPL sustenta lutar “pela
democratização efetiva do acesso ao espaço urbano e seus serviços a partir da tarifa zero” .
15 Outros atos se seguiram a esses no mesmo mês, mas, neste primeiro trabalho, apenas os consideraremos em
seus traços gerais.
16 Veja-se, por exemplo, Céli Regina Jardim Pinto (2017, p. 119) e Eliana Carlos (2015, p. 11), que tratam o
tema, respectivamente, como “deslocamento narrativo” e “mudança de discurso”. Outras denominações são da-
das: “ampliação de pauta”, “desvio de discurso”, entre outras.

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taria por vir foi esboçada. perimentada generalizadamente.


Já no dia 7, o tema me- No dia 8, subsequente ao segundo
receria destaque na capa ato, a capa da Folha de São Paulo
Folha em decorrência, evi- estampava: “Manifestantes cau-
dentemente, das manifes- sam medo, param marginal e pi-
tações do dia anterior. Em cham ônibus”. Ainda sem ne-
tom contrário aos mani- nhuma novidade, os militantes
festantes, o jornal estam- eram identificados por este veí-
pou “Vandalismo marca culo da grande imprensa como
ato por transporte mais vândalos causadores de terror.
barato em SP”. A cha- Até mesmo o terceiro ato, na ma-
mada era para o caderno nhã do dia 11, não recebeu muito
Cotidiano. Uma foto destaque nem neste nem em ou-
em destaque na capa da tros meios de comunicação. A se-
edição trazia a legenda ção “Painel do Leitor” do mesmo
“Manifestantes liderados jornal, por exemplo, não deu des-
pelo Movimento Passe Li- taque ao tema do transporte e dos
vre, ligado a estudantes, atos (MARADEI, 2013, p. 4), nem
ao PSOL e ao PSTU, quei- mesmo pelo tópico da suposta vi-
mam catracas de papelão olência dos militantes.
na Avenida 23 de Maio”. No dia 12, depois do ato da
Em Opinião e Tendências noite do dia 11, a manchete foi
e Debates não havia uma “Contra tarifa, manifestantes van-
linha sobre o tema, de- dalizam centro e Paulista” e o sub-
monstrando que a publi- título frisava: “No 3º e mais vio-
cação ainda não conside- lento protesto, ativistas enfrentam
rava o tema relevante para PM e atacam ônibus e estações do
merecer destaque nos edi- metrô; 20 cidadãos são detidos”.
toriais. Estimado pelas fontes estatais em
cinco mil pessoas e pelo o MPL
em 10 mil17 , o terceiro ato foi mar-
Nada de novo aparece a quem
cado por cenas de grande violên-
sempre acompanhou o citado jor-
cia que a Folha de São Paulo, entre
nal e nunca se questionou sobre a
outros órgãos da imprensa, colo-
causa do protesto e a respeito das
cou na conta do povo. Embora as
condições urbanas da metrópole
redes sociais já publicassem ima-
cuja situação de caos era então ex-

17 Como observou Singer (2013, p. 24), é muito difícil apontar o número exato de pessoas que foram as ruas nos
quatro atos iniciais.

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gens da força desproporcional da vida de que o discurso se firma-


Polícia Militar contra os insurre- ria, afinal, até aquele momento
tos, não havia destaque social a al- havia se firmado; ninguém per-
gum sentimento de injustiça con- guntava se a polícia devia estar
tra os cidadãos. Na amanhã do ato preparada para suportar supos-
da quinta-feira, dia 13, o governa- tas provocações, ou mesmo se tais
dor do Estado, Geraldo Alckmin provocações eram reais. Mais fá-
(PSDB/SP), tomou o palco para cil do que discutir a razoabilidade
divulgar, com indisfarçável tom da informação segundo a qual ci-
de ameaça, que haveria um enri- vis desarmados ousam provocar
jecimento ainda maior no trata- tropas armadas foi justificar pu-
mento policial militar (SINGER, blicamente a ação repressiva da
2013, p. 25). Este quarto e úl- polícia. Mas como seria viável jus-
timo ato da série que será aqui tificar nos jornais a repressão da
analisada, ocorrido naquela noite, noite do dia 13 depois que cen-
foi um verdadeiro massacre poli- tenas de pessoas compartilharam
cial. Assim como nos atos anteri- na rede a cena clássica em que os
ores, muitas imagens da repressão policiais bombardeavam minutos
chegaram às redes sociais, provo- a fio grupos de cidadãos a gritar
cando nos internautas um ódio si- encurralados “Sem violência!”19 ?
milar ao que foi sentido por aque- A concessão apelativa da
les que registraram o terror. grande mídia à causa da violência
Os jornais impressos, em seus do Estado contra o povo foi par-
noticiários da manhã do dia 14, cial, momentânea e interessada,
ainda afirmavam sem pudores que pois na noite do dia 13, sete jorna-
os manifestantes haviam provo- listas da Folha de São Paulo foram
cado os policiais, iniciando com atingidos pela fúria destrutiva da
isso um tratamento de choque18 . Polícia Militar. A jornalista Giuli-
A intenção de criminalização da anna Avalone foi gravemente atin-
ação do movimento era até então gida em um dos olhos por um dis-
evidente: os manifestantes eram paro de bala de borracha dado por
estimados publicamente como um policial que intencional e gra-
meros marginais, vândalos e play- tuitamente apontou para ela. O
boys, todos irresponsáveis a in- estarrecimento foi geral.
cendiar a cidade. Não havia dú- Antes disso, ainda no dia 13,

18 A manchete da Folha de São Paulo no dia 14 foi: “Polícia reage com violência a protesto e SP vive noite de caos”.
Como se nota, o termo “violência” se liga à “polícia”, e não aos que reivindicavam a redução da tarifa. Porém, a
atuação dos policiais foi posta como “reação”, dando a entender que os insurgentes iniciaram o tumulto.
19 Ver vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=U3ohG4IYqdQ Acesso: 25 de fevereiro de 2019.

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deu-se o famoso ataque de Ar- protesto”21 . O programa, com alto


naldo Jabor ao movimento e aos nível de popularidade, demons-
seus participantes, majoritaria- trava aquilo que as redes sociais já
mente jovens, durante o Jornal da podiam captar, não obstante a mí-
Globo. A ofensiva de Jabor se en- dia ainda centralizasse seu alvo de
cerrava com a frase: “Realmente, crítica nos militantes: a pauta da
esses revoltosos de classe média mobilidade urbana de São Paulo
não valem nem vinte centavos”20 . tinha de ser profundamente re-
José Luiz Datena, âncora de um pensada, porque a revolta contra
programa de TV, protagonizou os cartéis das empresas de trans-
uma das situações mais pitores- porte era intensa.
cas da televisão brasileira justa- O pronunciamento de Jabor
mente nesse dia, quando o ato es- tornou-se emblemático em outro
tava para começar. Ele decidiu fa- sentido, afinal, cinco dias depois
zer uma enquete ao vivo, e saber de ridicularizar o povo nas ruas,
dos expectadores se eles concor- seu parecer foi outro: “Estamos
davam ou não com a realização de vivendo um momento histórico
“protestos com baderna”. A in- lindo e novo. Os jovens terão
tenção de desmoralizar os agentes nos dado uma lição: a democracia
dos atos contra a tarifa era clarís- já temos, agora temos de formar
sima, mas a opinião do público uma república”22 . Como, pergun-
cresceu para o lado dos que res- taram todos, jovens indignos até
pondiam que concordavam com o de “vinte centavos” se convertem
protesto dito violento. Surpreso tão rapidamente em porta-vozes
com o resultado, o jornalista pe- de um momento histórico “lindo e
diu para que os programadores novo”? Como a mobilização dos
reelaborassem a pergunta, a fim jovens bárbaros se transformou
de que o público a “entendesse em movimento que aceita a tese
melhor”. Mas o resultado se re- de que já vivemos em uma demo-
petiu, e ele então teve de reconhe- cracia e então é preciso torná-la
cer: “Já deu para sentir: o povo uma república? Não se trata de
está tão pê da vida com o aumento um equívoco de análise, mas de
de passagem – não interessa se é um deslocamento estratégico da
de ônibus, se é de trem ou de me- narrativa.
trô – que apoia qualquer tipo de Em geral, essa situação – o des-

20 Ver vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tZNkg26g-Ng Acesso: 25 de fevereiro de 2019.


21 Ver vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7cxOK7SOI2k Acesso: 25 de fevereiro de 2019.
22 Ver vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8zQ9TnTpeKw Acesso: 25 de fevereiro de 2019.
23 A percepção de uma “ampliação de pauta” é bem descrita por Gohn (2013, p. 431): “O crescimento das

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locamento da narrativa – foi to- centavos” sugeria, de fato, uma


mada como expansão da pauta23 . ampliação ou até mesmo um apro-
A pauta do transporte havia pas- fundamento. Em si mesma a am-
sado subitamente a abranger tam- pliação não teria motivo para ser
bém outros domínios da socie- nociva ou falsa. No ato de quinta-
dade, como saúde e educação, até feira, dia 13, outras bandeiras li-
chegar ao ponto da crítica aos de- gadas à pauta da tarifa foram em-
tentores do poder que, impunes punhadas24 . Mas durante o final
e corruptos, estavam indiferentes da semana, entre os dias 15 e 16
aos gritos da população. “Não é (sábado e domingo), enquanto a
só por vinte centavos”, começa- pauta estava solta e sem identi-
vam a bradar as redes sociais em dade, a grande mídia tramava a
uníssono. Nesse momento – a pas- captura do discurso reivindicató-
sagem do dia 13 para o dia 14 – a rio e a substituição dele por uma
narrativa das jornadas ficou em defesa do espírito nacional contra
suspensão, sem autor, pois a linha a Proposta de Emenda à Consti-
que conduzia os acontecimentos tuição (PEC) n. 37/201125 , que
até então era a redução da tarifa, então se debatia nos noticiários
mas subitamente passou a ser a e no Congresso Nacional (MELO;
repressão policial, força motriz da VAZ, 2018, p. 36).
revolta que tomou conta da popu- A fala de Jabor na noite das acu-
lação da cidade já no dia seguinte sações (a crônica do dia 13 à noite)
ao quarto ato. O policiamento, já era um sintoma; ele dizia que ao
despreparado e incapaz, era repu- invés de os jovens estarem lutando
tado como insuficiente para pro- contra a PEC 37 (que daria per-
mover a ordem e proteger o cida- missão de “impunidade eterna”
dão comum, o mero transeunte ou para todos os políticos corruptos),
o profissional da comunicação que estavam por aí, arruaçando. Tam-
atravessava os atos. bém no comentário do “momento
Conquanto não tenha sido ape- histórico lindo e novo”, proferido
nas uma questão de extensão no dia 18, ele já repetia a decla-
ou ampliação indevida de pauta, ração sobre a necessidade de lutar
o lema “Não é só por vinte contra a PEC.

manifestações levou à ampliação das demandas com um foco central: a má qualidade dos serviços públicos, espe-
cialmente transportes, saúde, educação e segurança pública”.
24 Por exemplo: contra a corrupção no governo Alckmin (no Estado de São Paulo), a inépcia da Prefeitura de São
Paulo, as condições de trabalho na cidade e a repressão policial cada vez mais crescente naqueles dias.
25 A PEC 37 foi proposta pelo deputado Lourival Mendes (PTdoB/MA) e conhecida como “PEC da impunidade”;
a proposta previa tomar a apuração de investigações criminais como atividade privativa da polícia judiciária, e
tramitou, sem aprovação final, ao longo do primeiro semestre de 2013.

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Seria simples demais (e talvez esquerda mais radical aproveitava


impossível) demonstrar que foi o a ocasião para lançar reivindica-
apelo de Jabor à luta contra a PEC ções mais profundas com as quais
37 que teria levado tanta gente, somente ela mesma aceitava intei-
já nos atos da semana do dia 17, ramente27 ; a esquerda local, par-
às ruas de São Paulo para gritar tidariamente organizada, alcan-
contra a corrupção. O fato é que çava expressiva coerência no dis-
mesmo a tese do deslocamento da curso, mas teve pouca organização
pauta não confere com o que se- para resistir à mordacidade da vi-
ria mais natural de se esperar. Se olência policial28 ; a esquerda ati-
a surpresa das massas nasceu da vista fazia o que podia e o que lhe
repressão policial ao ato, por que restava fazer: organizar a propa-
o objeto das jornadas não se con- ganda (pelos muros da cidade) e
verteu em luta contra o governa- preparar a depredação de emble-
dor do Estado ou em reivindicação mas do Estado e do grande capital,
pelo fim da Polícia Militar, mas em especial, da indústria automo-
em combate aos políticos corrup- bilística especialmente conveni-
tos? ada ao problema do transporte29 .
Doravante, a esquerda, prota- Diante de toda a fragmentação
gonista dos acontecimentos até da esquerda, o discurso reinante
então, se dividiu: a centro- enclausurou o grande propósito
esquerda, atônita com a possibi- do MPL: o passe livre. Mesmo o
lidade de que recaíssem sobre ela movimento continuando a exis-
mesma as reivindicações paulis- tir com a convicção vitoriosa de
tanas, sentia-se incomodada de que, afinal, havia conseguido re-
defender o Partido dos Trabalha- verter o aumento, algo sorratei-
dores e o trabalhismo, alinhando ramente o superou. Uma parte
sua retirada de campo; brutal- dos militantes acreditou que o
mente, ela era afrontada nas pas- melhor seria assumir que “não
seatas pela extrema direita26 . A era apenas por vinte centavos”

26 Ficaram conhecidas as ações de grupos de extrema direita que passaram a frequentar as manifestações e a im-
pedir que os partidos políticos se expressassem com suas bandeiras. Os partidos, sempre bem recebidos pelos que
protestavam junto ao MPL (movimento apartidário, mas não antipartidário), precisavam agora ser socorridos pelos
demais militantes para não serem agredidos. Sobre a abordagem que mídias progressistas fizeram desta situação,
ver a reportagem do dia 20 de junho (AZENHA, 2013).
27 Ver, por exemplo, o panfleto de orientação para o ato do dia 20 de junho publicado pela corrente “Esquerda
Marxista” (ESQUERDA MARXISTA, 2013).
28 Ver, por exemplo, os posicionamentos de Vladmir Safatle, professor de Filosofia da Universidade de São Paulo
(USP) que atuou fortemente nos atos ao lado PSOL/SP, partido pelo qual seria cogitado a concorrer como candidato
ao governo do Estado no ano seguinte (2014). Entre os artigos do professor que evidenciam a contundência de seu
discurso com os propósitos das esquerdas partidariamente organizadas, ver Safatle (2013).
29 Referimo-nos aqui aos jovens que seguiam a tática Black Bloc, sobre os quais trataremos adiante.

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e especializar a luta contra algo cidade, onde estava programada a


maior, como o “Império”, seja concentração e a saída em passe-
no “domínio global” mantido ata. Eu tinha em mente o que as
pelo capital transnacional, seja no mídias comunicavam: os manifes-
“domínio local” mantido pelo car- tantes eram, em sua maioria, arru-
tel dos donos de empresas de ôni- aceiros e criminosos. Mesmo sus-
bus; outra parte, mais rigorosa, in- peitando da informação, ao che-
sistia em dizer que todos os atos gar ao Viaduto do Chá, em meio a
foram, sim, justamente por vinte jornalistas, políticos e muitos po-
centavos. Foi neste ponto – o des- liciais, vi qual era a massa cha-
pertar do sentimento de indigna- mada de bagunceira e criminosa
ção socialmente propagado pelas pela grande mídia. Eram jovens –
redes e pela grande mídia – que meninos e meninas – entre quinze
se pôs em flutuação30 a narrativa e vinte anos, pelo menos a maio-
sobre as jornadas. ria. Muitos tinham a idade e do
perfil dos meus alunos de então,
matriculados na primeira e na se-
gunda série do Ensino Médio31 .
Desesperados e pacifistas Alguns estavam mascarados, ou-
tros vestidos de vermelho e preto
Quando eu soube o que ocorrera ou somente preto, jamais de verde
no dia 11, mediado por amigos e e/ou amarelo. Eles se conversa-
pelos jornais, programei-me para vam, se entreolhavam, faziam-se
ir ao quarto ato. Era uma quinta- sinais e aguardavam a definição
feira e eu havia acabado de encer- da rota da passeata, decidida cole-
rar minha jornada de trabalho se- tiva e horizontalmente.
manal; segui para o Teatro Muni- Quando a marcha partiu, se-
cipal (Anhangabaú), no centro da

30 Ver Céli Regina Jardim Pinto (2017, p. 123-138) e sua reflexão acerca da flutuação do discurso sobre as jorna-
das, sustentada a partir de Ernesto Laclau e das noções de significante vazio e significante flutuante.
31 Esta observação, em um primeiro momento, me levou a ponderar sobre a possibilidade de eu estar projetando
esta imagem muito pessoal para a análise dos fatos. Por atuar como docente (e profissional) junto a um público
cujo perfil era semelhante àquele que estava nos atos, algo de projetivo poderia estar prejudicando a correção de
minha percepção. Conforme escreve Espinosa, certas “noções não são formadas por todos da mesma maneira, mas
variam em cada um conforme a coisa pela qual o corpo foi mais frequentemente afetado e que mais facilmente a
Mente imagina ou recorda. Por exemplo, os que mais frequentemente contemplaram com admiração a estatura dos
homens, inteligem sob o nome de homem o animal de estatura ereta; os que, porém, se acostumaram a contemplar
outra coisa, formarão outra imagem comum dos homens (...); e assim (...) cada um formará imagens universais das
coisas de acordo com a disposição de seu corpo. Por isso, não é de admirar que, entre os Filósofos que quiseram
explicar as coisas naturais só pelas imagens das coisas, tenham nascido tantas controvérsias” (GII, p. 121). Não
foram encontrados dados seguros sobre o perfil dos militantes nos primeiros atos, de modo a permitir a confirma-
ção ou não de minha impressão. Apesar disso, sinto-me amparado pelos fatos, uma vez que mesmo as estatísticas
do evento colhidas no dia 17 (quando os atos já estavam permeados de grupos mais heterogêneos) indicavam a
predominância do público jovem até 25 anos (SINGER, 2013, p. 28).

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guindo para a Avenida Conso- bombas e nova dispersão; mui-


lação, o policiamento já osten- tas explosões, muitas dispersões,
sivo começava a ficar provocativo. muitos reencontros foram se su-
Desnecessariamente, a Polícia Mi- cedendo. No meio do caminho,
litar continha com truculência os mascarados destruíam lixeiras, in-
militantes, criando barreiras late- cendiavam o lixo, jogavam pedras
rais. Não tardou a iniciar os pri- nos bancos e batiam em tudo que
meiro conflitos da polícia com os fosse emblema das concessioná-
cidadãos (fossem eles manifestan- rias automobilísticas. Ao grito de
tes ou mero transeuntes) e, de- “sem vandalismo”, emitido por
pois, já à altura da Praça Roose- um par pacifista que ali se ma-
velt, as primeiras bombas ressoa- nifestava, eles respondiam algo
ram. Nesse instante veio a grande como: “Vandalismo é o que faz
dispersão inicial. Estado”, “Vândalos são banquei-
O grupo com o qual me refu- ros e industriais”. Quando ou-
giei no início da Rua Augusta foi tro bom cidadão contribuinte de
jogado para cima de automóveis classe média lhes dizia: “Parem
guiados por motoristas perplexos de desrespeitar a nossa luta!”,
diante da barbaridade e do estam- ou coisa semelhante, eles respon-
pido das balas de borracha. O diam: “Não vamos fugir sem fa-
gosto do explosivo travava a gar- zer nada”. Uma garota pintava
ganta; o ar, irrespirável. Vinagre no muro o seu recado enquanto
era atirado às camisetas, porque berrava que aquilo não era vanda-
diziam que a respiração melho- lismo, mas propaganda de liberta-
rava ao inalá-lo. Se no primeiro ção.
instante a paralisação foi geral – As ações eram discutidas no
até porque os olhos ardiam muito fazer do ato; os conflitos ali se
– tão logo garotos e garotas per- davam como diálogos mal aca-
cebiam as brechas, continuavam. bados no meio do caos, ao som
Na esquina adiante, encontravam dos gritos, dos tiros e das bom-
outro grupo e sentiam a alegria bas. Ninguém brigava fisicamente
do encontro, comemorada com com ninguém; havia, decerto, um
gritos amplificados. Prosseguía- entendimento de que lutavam no
mos. Adiante, outra sequência de mesmo campo, mas com métodos

32 Uma reação muito comum do público pacifista dos atos de São Paulo era sentar no chão no momento em que
os ativistas iniciavam o processo de destruição de símbolos. A ideia consistia em permitir que os policiais locali-
zassem os supostos “vândalos” e os distinguessem dos demais. Em vão faziam isso, pois as bombas tinham sempre
o mesmo destino e deixavam pairar a mesma fumaça igualmente intragável. Sem alternativas, eles também se
levantam e corriam.

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diferentes. Éramos igualmente Desespero; a saber, a Ale-


alvo privilegiado do mesmo he- gria ou a Tristeza origina-
licóptero que sondava de perto32 . das da imagem de uma coisa
Afinal, o que diferenciava os que temíamos ou esperáva-
dois tipos que conviviam na mul- mos (GII, p. 155).
tidão? Em primeiro lugar, o deses-
pero da condição social dos ditos Na proposição 18 da terceira parte
vândalos, desespero que não es- da Ética, como se lê acima, o de-
tava presente nos pacifistas. Em sespero é tomado como “tristeza
segundo lugar, o modo de reagir à originada da imagem de uma
ofensiva policial: os desesperados coisa” da qual antes duvidáva-
impunham a potência, ainda que mos que pudesse acontecer, mas
destrutiva, já os cidadãos de es- agora já não temos mais moti-
querda, com suas bandeiras, eram vos para dela duvidar. Portanto,
surpreendidos pelo simples medo. imaginamos que acontecerá irre-
Estes fugiam, aqueles avançavam. versivelmente. Em sua defini-
O desespero é, de acordo com ção, no conjunto das definições
Espinosa, afeto feito de medo. dos afetos, o desespero é consi-
derado a “Tristeza originada da
ideia de uma coisa futura ou pas-
a Esperança é nada ou- sada da qual foi suprimida a causa
tro que a Alegria incons- de duvidar” (Ética III, Def. Af. 15;
tante originada da imagem GII, p. 194). Espinosa já não trata
de uma coisa futura ou pas- mais o problema como imagem,
sada, de cuja ocorrência mas como ideia. A ação de su-
duvidamos. O Medo, ao primir a causa da dúvida de que
contrário, é a Tristeza in- venha a acontecer algo que teme-
constante originada da ima- mos não equivale imediatamente
gem de uma coisa duvidosa. a ter certeza daquilo. “Embora
Além disso, caso a dúvida nunca possamos estar certos da
seja suprimida desses afe- ocorrência das coisas singulares
tos, da Esperança faz-se a (...), pode, contudo, acontecer
Segurança, e do Medo, o que não duvidemos da ocorrên-

33 Na explicação dada logo depois das definições de desespero e esperança, tendo em mente o escólio da Propo-
sição 49 da parte II da Ética, Espinosa escreve: “uma coisa é não duvidar de algo, outra é ter certeza daquilo; e por
isso pode acontecer que, a partir da imagem de uma coisa passada ou futura, sejamos afetados pelo mesmo afeto de
Alegria ou Tristeza pelo qual seríamos afetados a partir da imagem de uma coisa presente” (GII, p. 194-195). No
que concerne aos desdobramentos éticos e políticos da operação imaginativa pela qual um indivíduo chega à au-
sência de dúvida sobre algo que teme ou espera, Marilena Chaui (2016b, p. 339-340) esclarece que, nessa situação,
o indivíduo imagina presentes coisas passadas ou futuras, de sorte que o presente, em si mesmo, toma a forma de

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cia delas” (Ética III, Def. Af. 15, desespero, e não uma evidência
expl.; GII, idem)33 . Trata-se de um da consciência de impunidade
processo imaginativo: dominados por parte da juventude transvi-
pela imagem da ausência de dú- ada, como sempre defenderam os
vida sobre a ocorrência de algo mais reacionários34 . Parecia claro
que tememos, somos levados ao que o medo, nos jovens da ativa,
desespero, a exata contrapartida convertia-se em desespero, mas
da segurança. A segurança “é a um desespero elaborado a partir
Alegria originada da idéia de uma da experiência de saber que lhes
coisa futura ou passada da qual está (e estará) inviabilizado o di-
foi suprimida a causa de duvidar” reito à cidade. A veemência do
(Ética III, Def. Af. 15; GII, idem). desespero aumentava diante da
O desespero, entretanto, não se repressão preparada por gover-
limita meramente à noção de in- nantes que raramente entram em
segurança, mas é precisamente a ônibus. Refém dos cartéis agenci-
consciência (imaginativa) de que ados pelo Estado, quem lutava por
o pior da desesperança está por um transporte justo e recebia em
vir. troca as balas e o gás lacrimogêneo
Nitidamente se via, no olhar da Polícia se revoltava profunda-
dos jovens que destruíam a ci- mente. O medo dos que fugiam ao
dade, a ausência de esperança som da primeira explosão expres-
quanto ao futuro; fazia-se pre- sava o entendimento dos que, sim,
sente, nos gestos e nas palavras, tinham muito a perder; para es-
o sentimento de quem nada tinha tes, o melhor era voltar para casa
a perder, mesmo que pudesse ter. e continuar a opinar nas redes so-
Eles agiam como se fosse possível ciais até o próximo ato e até a pró-
retribuir o mal recebido a qual- xima primeira bomba.
quer custo, não importando o que O pesadelo desses jovens de-
lhes sobreviesse. A banalização sesperados envolvia a insatisfação
das consequências do ato de ba- com a má administração do es-
ter, quebrar, depredar e incendiar paço público, o descontentamento
as coisas foi o indício maior desse com a vida familiar, com a escola e

um “vazio” repleto de afetos referidos aos outros tempos. O acontecimento temido ou esperado foi ou será, mas é
sentido como presente. Segundo Chaui (2011, p. 158), “a ausência de dúvida, no caso da segurança e do desespero,
(...) não é o mesmo que a presença da certeza”, mas a imaginação que “traz o passado e o futuro para o presente,
excluindo imagens de tudo aquilo quanto possa impedir essa presença”.
34 Basta constatar que no dia 16 de abril de 2013, antes mesmo das jornadas, o deputado Carlos Sampaio
(PSDB/SP) já apresentara o Projeto de Lei n. 5.385, que previa o aumento do período máximo de internação
dos jovens de três para oito anos, isto é, o aumento do grau de punição.
35 Foi o caso, muito conhecido, de Rafael Braga, jovem detido no dia 20 de junho de 2013 por simplesmente

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com a sociedade iníqua, capaz de perança e Medo. E as-


prender um indivíduo por porte sim, quanto mais nos es-
de vinagre ou “Pinho Sol”35 e, forçamos para viver sob a
ao mesmo tempo, conceder liber- condução da razão, tanto
dade e poder a comprovados cor- mais nos esforçamos para
ruptos (RIBEIRO-JR, 2011). Eles depender menos da Espe-
pareciam querer bradar contra a rança, para nos libertar
Polícia Militar, assim como Espi- do Medo, para comandar
nosa ousara afrontar os assassi- (imperare), o quanto pu-
nos dos irmãos De Witt, provo- dermos, a fortuna, e para
cando: “Vocês são os últimos dos dirigir nossas ações pelo
bárbaros!”. conselho certo da razão
O desespero, no entanto, nas- (GII, p. 246).
cido de certa suspensão da insta-
bilidade36 que caracteriza o medo,
é uma tristeza; vítimas dele, nós A passagem acima suscita a in-
estamos em pleno campo da passi- teração entre afeto e conheci-
vidade. No escólio da proposição mento. Afetos instáveis, espe-
47 da parte IV da Ética, Espinosa rança e medo indicam (indicant)
explica: defeito e impotência; um defeito
do conhecimento que, desde a
parte I da Ética, é considerado a
[Esperança e medo] in- causa de percebermos as coisas
dicam defeito do conhe- como contingentes e não necessá-
cimento e impotência da rias, e uma impotência da mente
Mente; e por este motivo que, incapaz de afirmar a exis-
também a Segurança, o tência de uma coisa ou excluí-la
Desespero, o Gozo e o Re- de vez, oscila e fica instável, mais
morso são sinais de im- suscetível a afetos contrários a sua
potência do ânimo. Pois, própria natureza. Em primeiro
embora a Segurança e o lugar, o defeito do conhecimento
Gozo sejam afetos de Ale- se deve à limitação do próprio
gria, contudo supõem te- conhecimento enquanto coisa fi-
rem sido precedidos por nita, impedida de saber da essên-
Tristeza, a saber, por Es- cia de cada uma de todas as coi-

portar o produto.
36 Macherey (1995, p. 174) alerta que a suspensão da instabilidade que redunda em desespero ou em segurança
não é absoluta. De acordo com Luiz Carlos Braga (2016, p. 110), “o fim da dúvida nos casos da securitas e da despe-
ratio não implica total estabilidade, uma cristalização afetiva absoluta, pois as coisas que vêm à mente do homem
ficam apenas menos contingentes, uma vez finda a dúvida”.

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sas existentes. Por isso, facilmente de acordo com Espinosa, o ser


tal conhecimento deixa escapar a humano chega a gozar de uma
ordem necessária das causas dos coisa ou vem a se sentir seguro
fenômenos. em dada situação, sem dificuldade
veremos a presença do elemento
da parcialidade do conhecimento
Uma coisa cuja essência que ele possui a respeito do que
ignoramos envolver con- o circunda. O gozo nasce, as-
tradição, ou da qual sa- sim como o remorso, daquilo que
bemos bem que não en- ocorre “contra toda a esperança”,
volve nenhuma contradi- portanto, de uma condição de ini-
ção e de cuja existên- cial de instabilidade entre alegria
cia, contudo, não pode- e tristeza.
mos afirmar nada de certo
porque a ordem das cau-
sas nos escapa, tal coisa O Gozo é a Alegria con-
nunca pode ser vista por juntamente à ideia de uma
nós nem como necessá- coisa passada que ocorreu
ria, nem como impossí- contra toda Esperança. O
vel, e por isso chamamo- Remorso é a Tristeza con-
la ou contingente ou pos- juntamente à ideia de uma
sível (Ética I, Prop. 33, esc. coisa passada que ocor-
1; GII, p. 74). reu contra toda Esperança
(Ética III, Def. Af. 16 e 17;
A esperança e o medo, por envol- GII, p. 195).
verem dúvida quanto a alguma
coisa que implicará alegria ou tris-
teza, manifestam, em segundo lu- A filosofia de Espinosa visa, em
gar, a impotência da mente, pela termos éticos, promover uma vida
qual ela nem afirma nem exclui dependente no menor grau pos-
a existência da coisa que teme ou sível da esperança e do medo, de
espera; nem a toma como neces- modo a ser maximamente condu-
sária, nem como impossível, mas zida pela razão que percebe as coi-
como contingente ou possível. sas como necessárias, e não como
À primeira vista é estranho pen- contingentes (Ética II, Prop. 44,
sar que a segurança e o gozo sejam cor. 2, dem; GII, p. 126). É o
colocados pelo filósofo na lista dos conhecimento da ordem necessá-
afetos que, apesar de alegres, si- ria da natureza que permite ao
nalizam a impotência. Se atentar- vivente imperar, na medida do
mos, porém, ao modo pelo qual, possível, sobre a contingência (ex-
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pressa na figura da Fortuna), e não emoção de estar avançando con-


sucumbir diante dela. O deses- tra quem esperava de nós uma
pero faz cessar o medo, mas nem resposta de medo. Isto explica,
por isso ao entrar em desespero é certo, a ligação entre desespero
sentiremos alegria; os desespera- e a busca do gozo, mas podemos
dos ficam livres da esperança e do indagar: como os militantes po-
medo, mas não da tristeza, que só diam contornar os riscos do re-
poderá ser abalada se uma alegria morso, expondo-se daquela ma-
em sentido contrário se der (Ética neira à violência policial? A res-
IV, Prop. 7; GII, p. 214). Desta posta só pode ser uma: fazendo
alegria é que pode um ser humano da movimentação e da destrui-
realmente afastar a tristeza e pas- ção dos símbolos do Estado e do
sar a entender adequadamente as capital uma performance, e não
coisas. uma expressão de puro ódio des-
Desesperados, os indivíduos fa- governado que, no intuito de des-
zem muitas coisas das quais, pos- truir o que deve ser destruído, fere
teriormente, sentem remorso; no e ataca pessoas inocentes (meros
entanto, apenas desesperados po- transeuntes ou militantes pacifis-
dem experimentar este tipo espe- tas dos atos).
cial de alegria que é o gozo (a ale- Em entrevista à revista Carta
gria contra toda a esperança). A Capital, um jovem Black Bloc afir-
participação dos jovens nas jorna- mou:
das de 2013 parece ter evidenci-
ado uma forma de se viver o de- Nossa sociedade é perme-
sespero, na qual o remorso é ao ada por símbolos. Partici-
máximo evitado e o gozo se con- par no Black Blocs é usá-
verte em meta final de cada ato. los para quebrar precon-
Como seria isso possível? ceitos, não somente o alvo
Durante as jornadas, conforme atacado, mas a ideia de
já foi expresso, cada vez que con- vandalismo. Não há vi-
seguíamos avançar e encontrar olência, mas performance.
outro grupo de militantes – depois Eu não me sinto represen-
de termos sido dispersados pelas tado pelos partidos. E não
bombas – a sensação era de uma sou a favor da democra-
verdadeira apoteose de alegria ou, cia representativa, mas da
como diria Leminski (2004), de democracia direta. Não
um “gozo fabuloso”. Um gozo é depredação pelo sim-
que, mesmo passivamente dado, ples prazer de quebrar
produzia no cerne do desespero a coisas, mas atacar símbo-
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los que estão representa- efetivamente a expressão de um


dos lá (ORTELLADO; SO- desespero de quem não tem a li-
LANO; VIEIRA; LOCA- berdade de dizer o que pensa, mas
TELLI, 2013). sabe se expressar e viver sem es-
peranças; tristeza de quem tocou
o núcleo mais íntimo do problema
Em matéria da Folha de São Paulo,
político que vivencia: o grande ca-
publicada no final do ano de 2013
pital e o patrocínio do Estado para
e citada por Gohn (2013, p. 434),
o livre desenvolvimento dos capi-
jornalistas que ouviram os jovens
talistas (sobretudo os da indústria
protagonistas das jornadas de ju-
dos transportes) pela exploração
nho afirmam:
da força produtiva.
Para a análise dessa questão,
Muitos Black Blocs já me o escólio da Proposição 49 da
disseram que, para eles, a parte IV da Ética pode oferecer um
violência é a única forma exemplo que nos interessa em par-
de expressão pela qual, de ticular: a ação de bater, uma ação
fato, são ouvidos. É difícil que corresponde com exatidão ao
contestar esse raciocínio. que faziam os jovens durante os
Se a imprensa só dá voz às atos.
formas de protestos vio-
lentos, se o governo reage
(...) a ação de bater, en-
com mais força diante do
quanto é considerada fi-
fator violência, como im-
sicamente e só prestamos
pedir que a violência se
atenção a que um homem
torne uma forma de pro-
levanta o braço, fecha a
testo generalizada? A vio-
mão e move com força
lência como forma de pro-
todo o braço de cima para
testo não estaria sendo le-
baixo, é uma virtude que
gitimada e reforçada por
é concebida pela estrutura
toda a sociedade que joga
do Corpo humano. Se en-
o jogo da espetaculariza-
tão um homem, movido
ção?
pela Ira ou Ódio, é deter-
minado a fechar a mão ou
Não se trata, naturalmente, de mover o braço, isso, como
afirmar que a juventude que in- mostramos na Segunda
corporava em São Paulo a tática Parte, ocorre porque uma
Black Bloc agia com afetuosidade e a mesma ação pode unir-
e ternura em suas operações. Era se a quaisquer imagens de
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coisas; e, assim, tanto a 20; GIII, p. 243), Espinosa es-


partir daquelas imagens creve: “longe de uma coisa des-
das coisas que concebe- sas poder acontecer, ou seja, de
mos confusamente quanto todos se limitarem a dizer o que
daquelas que concebemos está prescrito, quanto mais se pro-
clara e distintamente, po- cura retirar aos homens a liber-
demos ser determinados a dade de expressão mais obstina-
uma e mesma ação (GII, p. damente eles resistem” . Exceto
255). os bajuladores e avaros (estes sim,
de ânimo verdadeiramente impo-
Em si mesmas consideradas, as tente), ninguém que se sinta livre
ações de quebrar, depredar e in- recusar-se-á a resistir contra um
cendiar não são necessariamente Estado opressor.
sintomas de passividade. Se es- Sob a mesma perspectiva dos
tas ações se relacionam a algo que, desesperados que gritavam aos
com o cuidado de não ferir ne- pacifistas nas ruas de São Paulo
nhum dos pares, deponha con- que o verdadeiro vandalismo ad-
tra os inimigos do bem verdadei- vinha do Estado iníquo, o filósofo
ramente comum, elas podem ser escreveu em certa passagem da
consideradas virtudes. Planejada mesma obra:
e realizada como ação dramática,
não como expressão de ira ou ódio Que coisa pior pode
gratuito, a ação Black Bloc cora- imaginar-se para um im-
josamente se embebia do deses- pério que serem manda-
pero em performance, exercitando dos para o exílio como in-
o gozo e afastando o remorso. A desejáveis homens hones-
tristeza, neste caso, se situava ine- tos, só porque pensam de
quivocamente ao lado do Estado, maneira diferente e não
que impedia a livre expressão; sabem dissimular? Ha-
ademais, estava ao lado dos ges- verá algo mais pernicioso,
tores da cidade que não se inte- repito, do que conside-
ressam pela livre circulação dos rar inimigos e condenar
cidadãos e, enfim, ao lado do po- à morte homens que não
liciamento que, ao invés de prote- praticaram outro crime ou
ger o povo, o oprimia. ação criticável senão pen-
O problema dos jovens estava sar livremente, e fazer as-
principalmente na ausência de li- sim do cadafalso que é o
berdade de expressão. No Tra- terror dos delinquentes,
tado Teológico-Político (Capítulo um palco belíssimo em
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que se mostra, para vergo- passaram a ser admirados por jo-


nha do soberano, o mais vens ainda mais jovens que eles,
sublime exemplo de to- cujo desejo de imitação talvez te-
lerância e virtude? Por- nha sido o estopim para outras
que os que sabem que são ações de desobediência civil, leva-
honestos não têm, como das a cabo por jovens paulistas nos
os criminosos, medo de anos de 2015 e 2016. Uma marca
morrer, nem imploram a – não se pode questionar – eles
clemência; na medida em deixaram, e com um eco profun-
que não os angustia o re- damente espinosano que podemos
morso de nenhum feito entrever se nos servirmos de uma
vergonhoso – pelo contrá- passagem da análise de Marilena
rio, o que fizeram era ho- Chaui (2011, p. 167): “os verda-
nesto –, recusam-se a con- deiros sediciosos são (...) aque-
siderar castigo o morrer les que, em uma sociedade livre,
por uma causa justa e têm querem suprimir a liberdade de
por glória dar a vida pela pensamento e de expressão por-
liberdade. Que exemplo que não conseguem destruí-la”.
poderá então ter ficado da Finalmente, e os pacifistas? Os
morte de pessoas assim, pacifistas provavelmente não te-
cujo ideal é incompreen- riam feito as jornadas de junho,
dido pelos fracos e moral- pois não teriam afrontado a vio-
mente impotentes, odiado lência policial, risco essencial para
pelos sediciosos e amado destruir as engrenagens que man-
pelos homens de bem? têm o Estado produtor de iniqui-
Ninguém, certamente, aí dades. Eles não teriam feito as
colhe exemplo algum, a jornadas acontecerem como acon-
não ser para os imitar ou, teceram, não por discordarem da
pelo menos, admirar (Tra- pauta da redução da tarifa e da
tado Teológico-Político, 20; repressão policial, mas porque se-
GIII, p. 245). guiram à risca a primeira parte
do enunciado da Proposição 39 da
É bem verdade que os jovens de parte III da Ética: “Quem odeia al-
junho em São Paulo não foram exi- guém esforçar-se-á para lhe fazer
lados do país, nem mortos pelo o mal, a não ser que tema originar-
Estado. Todavia, muitíssimos fo- se daí um maior mal para si” (GII,
ram presos, interrogados e sub- p. 169; grifos nossos). Os de-
metidos à execração pública. Fora sesperados, em contrapartida, ti-
de dúvida está o fato de que eles nham a temer um mal maior, mas

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agiam como se o mal maior para como declara a primeira das de-
si mesmos já estivesse dado, “sem finições dos afetos da parte III
dúvidas”. da Ética (GII, p. 190), “o esforço
pelo qual o homem se esforça para
perseverar em seu ser”, conforme
explicita a demonstração da Pro-
Do desespero ao encontro da co-
posição 18 da parte IV (GII, p.
munidade
221-222). Enquanto esforço por
Em geral, o desespero é estimado, continuar a existir, nosso desejo
no campo político, como um afeto pode ter origem na alegria ou na
a ser evitado. Ao contrário, o tristeza, no amor e no ódio. Ao
que todos buscam na vida social experimentarmos uma tristeza,
é o seu oposto, o afeto de segu- observa Espinosa, nos esforçare-
rança. Em especial, nos estudos mos por afastá-la; contrariamente,
sobre o impacto políticos da teoria ao experimentarmos uma alegria,
dos afetos de Espinosa, o livro de nos esforçaremos por reforçá-la,
Braga (2016, p. 244) nos faz lem- isto é, por fazer com que ela não
brar disso algumas vezes (e com se afaste de nós. A demonstra-
razão): “afeto triste, no qual a dú- ção da Proposição 37 da parte III
vida acerca do medo antes sentido emerge como um excelente auxí-
cessa, o desespero é o retrato de lio para pensarmos como cada ser
uma cidade cujos súditos não têm humano age quando vivencia uma
ânimo, virtude, potência”. Nas so- tristeza.
ciedades, “o afeto predominante
deve ser a segurança, advinda da A Tristeza (...) diminui ou
esperança, e não o desespero, ad- coíbe a potência de agir
vindo do medo” (p. 260). É certo do homem, isto é, (...) di-
que aqui exploramos o desespero minui ou coíbe o esforço
para além de sua dinâmica indivi- pelo qual o homem se es-
dual (isolada de outros afetos) e, força para perseverar no
por isso, pudemos perceber como seu ser; por isso (...) ela
ele vem a se ligar à alegria do gozo é contrária a este esforço,
e à performance. e afastar a Tristeza é tudo
O que tornou isso possível foi para que se esforça o ho-
um elemento presente em toda mem afetado de Tristeza.
a nossa análise, mas que apenas Ora, (...) quanto maior é
aqui colocamos em evidência: o a Tristeza, tanto maior é a
desejo. “O desejo”, para Espinosa, parte da potência de agir
é “a própria essência do homem”, do homem à qual é neces-
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sário que se oponha; logo, da estabilização da esperança e de


quanto maior é a Tristeza, seu ultrapassamento” é precisa-
tanto maior é a potência mente o fato de “começarmos a
de agir com que o homem perceber que as coisas necessárias
se esforçará para afastá- – ou seja, aquelas sobre as quais
la, isto é (...), com tanto não pesam dúvidas – são mais for-
maior desejo, ou seja, ape- tes que as contingentes”.
tite, se esforçará para afas- No mesmo sentido, comen-
tar a Tristeza (GII, p. 168). tando o pensamento ético de Espi-
nosa, Lorenzo Vinciguerra (2003,
Um indivíduo impotente é aquele p. 13) afirma que em uma para-
que não consegue aplacar a tris- doxal flutuação, “onde o espírito
teza e dela permanece como re- conhece a suprema impotência e
fém. Já o indivíduo que, embora onde conhece também a suprema
aplacado por uma tristeza, é ca- potência”, não é a razão que opera
paz de encontrar uma alegria con- como uma espécie de mediação
trária à tristeza, este sim expressa para o conflito afetivo dado. Se-
certo grau de potência, uma vez gundo o comentador, “a razão”,
que, mesmo no campo passional, abalada, “toma partido do con-
alcança uma primeira fonte de ati- flito e põe a mente em sua última
vidade pela qual já não pode se trincheira”. De acordo com Givigi
dizer plenamente passivo em rela- (2018, p. 79), Vinciguerra consi-
ção ao que ocorre nele e fora dele. dera que, no sistema de Espinosa,
Neste ponto, ganha plena rele- “pode vir a ser do agravamento da
vância a afirmação já feita aqui de fluctuatio ao ponto de uma deses-
passagem e que aparece em diver- peratio” que advenha uma delibe-
sos comentadores de Espinosa: a ração ativa dos indivíduos sobre
razão não surge aos homens como seus impasses.
um deus ex machina, vinda do Negri (2016, p. 223) não apre-
além, mas no próprio seio da pai- senta um parecer diferente. Para
xão. De acordo com Chaui (2011, ele também é no campo próprio
p. 169), “a passagem do medo à da passividade que se conquista,
esperança deverá ocorrer no pró- em termos espinosanos, a pleni-
prio campo passional, sem qual- tude do ser:
quer intervenção da razão, passa-
gem que ocorrerá quando a espe- a multitudo nasce, julga
rança da vida for para o conatus e se comporta como um
um desejo mais forte que o medo conjunto de brutos; mas,
da morte”. Para a autora, “o efeito de qualquer forma, ela
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é sempre investida pela A resposta negriana é afirmativa.


metamorfose do ser, ou Jó inicia um processo de liberta-
seja, por uma metamor- ção que o revelará não como pa-
fose que o ser humano ciente, mas potente37 . A sua dor,
conduz na plenitude co- a dor com que luta contra os fla-
letiva do gênero”. gelos impostos pela Natureza, é
“uma chave que abre a porta da co-
munidade”. Segundo Negri (2007,
O espinosismo de Negri (2007, p. p. 139-140),
39) no livro Jó – a força do escravo
nos explica, antes de tudo, qual é
o sentido da miséria experimen- todos os coletivos são
tada pela multidão enleada ao seu formados pela dor, pelo
desejo de luta. Acerca desta obra, menos aqueles que lu-
escrita no cárcere – assim como o tam contra a exploração
clássico sobre Espinosa A anoma- do tempo da vida por
lia selvagem – ele assevera: parte do poder, aqueles
que descobriram o tempo
de novo, como potência,
A realidade de nossa mi- como recusa do trabalho
séria é aquela de Jó; as per- explorado e dos manda-
guntas e as respostas que mentos que se instauram
fazemos ao mundo são com base na exploração.
as mesmas de Jó, com o A dor é o fundamento de-
mesmo desespero, as mes- mocrático da sociedade po-
mas blasfêmias nós nos lítica, na mesma medida
exprimimos. (...) Pode- em que o medo é seu fun-
remos, nós também, guiar damento ditatorial, auto-
a nossa miséria através de ritário. Hobbes, e todos os
uma análise do ser e da chamados “realistas” da
dor? E a partir dessa pro- filosofia política, são antes
fundidade ontológica re- de tudo homens imorais,
montar a uma teoria da pois, de maneira infame,
ação, ou melhor, a uma falam do medo – daquele
prática de reconstrução do medo que eles acrescen-
mundo? tam à dor da vida – como

37 “Jó não é paciente, é potente. Os próprios textos que recordamos compõem a imagem de um homem que,
através da luta, mesmo na dor e na miséria mais tremendas, afirma seu domínio sobre o ser. A potência forma-se
na dor, mas se desenvolve na relação com o ser” (NEGRI, 2007, p. 128).

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de um fundamento. (...) mento e a dor, que vêm de


A potência instaura-se na baixo, que constroem o ser
dor, é potência do não-ser, próprio do mundo. Spi-
é potência da comunidade noza moveu-se, ele tam-
– uma essência inconclusa bém, nesse mesmo terreno
dentro de um processo in- e nessa mesma perspec-
definidamente criativo. tiva. A função univer-
sal e constitutiva do so-
frimento encontra-se lá
De onde se pode extrair tanta afir- onde a paixão transforma-
mação na dor e – acrescentamos se em compaixão e a tris-
nós – do desespero? Para Negri, o teza desenvolve-se em ale-
que permite ao desesperado e so- gria da comunhão com
fredor desviar-se para a alegria em o outro. A ontologia da
meio à própria dor é manter uma comunidade é descoberta
atitude diferente diante da vida, através do sofrer junto –
ou seja, ter em vista um horizonte um sofrer que se subtrai
coletivo e ter disposição de com- à passividade e torna-se
partilhar com os outros a mesma construtivo. Ético.
dor. Tal disposição consiste em
lutar para ter o sofrimento reco-
nhecido e desejar, com o outro, Vê-se, a partir dessa citação, que
“sofrer junto”. Pode parecer pesa- a coletividade-comunhão nascida
rosa tal constatação, uma vez que no desespero pode converter a po-
reúne uma série de sofrimentos, tência contra o poder.
mas não é. Citemos ainda uma Experimentamos nos dias de
vez Negri (2007, p. 145): junho de 2013, a “ação de
compaixão” por garotos e garotas
paulistanas. Foi, entretanto, de
Não posso reconhecer o acordo com a explicação de Ne-
outro tomado pela dor, gri, uma ação de compaixão, e não
se não a compartilho com a compaixão contra a qual Nietzs-
ele. Mas através dessa che se voltou, isto é, a compai-
ação de colocar-me nele xão “hipócrita”, a “comiseração
com amor, dessa ação de que não se faz universalidade”
compaixão, posso levar (NEGRI, 2007, p. 145). Não
a efeito a construção do diremos, portanto, “ação de
mundo. Não é a divin- compaixão”, porque nesse con-
dade, um significado que texto pode soar anti-espinosano;
vem do alto, mas o sofri- diremos “solidariedade”, princí-
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pio libertário por excelência e que professores, dos partidos e de toda


encontra certo respaldo na ideia a geração adulta foi constituída ao
espinosana de “auxílio mútuo”, a longo do processo histórico sem o
ação fundadora da vida comum38 . gosto da participação política e na
Em função de ler Espinosa, eu (e mais profunda inexperiência da
muitos outros, movidos pela pró- democracia direta. Nos meios in-
pria aprendizagem da luta) des- telectuais, a revolta da juventude
pertei para essa espécie de solida- radical só poderia mesmo indiciar
riedade que produz o desejo de co- ódio à política, ao invés de simbo-
munidade e de estar junto com a lizar ódio à representação política.
juventude contra a qual, no Brasil, Para uma parte dos intelectuais
tudo é lícito. que se acostumou a desempenhar
Muitos professores, intelectu- o papel de reprodução da ideolo-
ais e lideranças partidárias de es- gia da classe dominante, a polí-
querda, cientes, na maioria das tica é (e deve continuar a ser) isso
vezes, do que se passava nos atos, que os partidos fazem em nome
não podiam afirmar categorica- deles e para eles. Uma fatia im-
mente que a luta da juventude portante da dita elite pensante,
era legítima. Por recear a reta- uma vez abandonada pelo jogo da
liação dos controladores sociais representação política, do pacto,
(sobretudo os midiáticos), mui- da mediação exclusivamente par-
tos deixaram a juventude mais tidária do poder e de outras tantas
radical na vala comum, ao fei- invenções fantasiosas da burgue-
tio de “fascistas depredadores do sia, sente ter tudo a perder. Po-
patrimônio público”. Na classe rém, estando o jogo da represen-
média politizada pela esquerda, tação assegurado, já respira a es-
havia sempre o medo típico dos perança (mais forte em alguns do
que se sentem solitários e fogem, que em outros) de constituir uma
mesmo estando em coletivo, sim- cidade livre e para todos. Basta
plesmente porque sentem que essa tênue esperança, cotidiana-
ainda têm muito a perder. mente negada, para que se recu-
Não resolve nenhum problema sem a atacar as instituições, sa-
apontar supostas covardias ou fa- tisfeitos com seus representantes,
zer alguma autocrítica circunstan- mesmo quando estes atiram bom-
cial. A maioria dos intelectuais e bas.

38 No escólio da Proposição 35 da parte IV da Ética, Espinosa argumenta que os seres humanos “dificilmente
passam a vida em solidão”. Em seguida, afirma: “os homens, com o auxílio mútuo, podem prover-se muito mais
facilmente das coisas de que precisam, e só com as forças reunidas podem evitar os perigos que em toda parte os
ameaçam” (GII, p. 234).

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É também pelo processo histó- sobre a imputabilidade penal do


rico que se compreende não ter indivíduo maior de 16 anos.
sido enfatizada, pela maioria das A página de notícias do Senado
análises, a presença diferencial da Federal na internet, no dia 30 de
juventude brasileira no papel de maio de 2016, afirmou:
real disparadora das jornadas da
cidade de São Paulo. Conforme A redução da maioridade
já foi aqui registrado, todos os penal volta à pauta da Co-
analistas tiveram que reconhecer missão de Constituição,
a presença jovem no movimento, Justiça e Cidadania (CCJ)
mas poucos souberam perceber o (...). A PEC 33/2012, do
potencial caracteristicamente jo- senador Aloysio Nunes
vem do impulso revolucionário Ferreira (PSDB-SP), abre a
daqueles atos. As forças reacioná- possibilidade de penaliza-
rias, por outro lado, parecem ter ção de menores de 18 anos
percebido bem esse elemento. e maiores de 16 anos” (SE-
Já apontamos em nota que, a NADO, 2016).
16 de abril de 2013, o deputado
Carlos Sampaio (PSDB/SP) apre-
sentou o Projeto de Lei n. 5.385, Em setembro de 2017, em situa-
requerendo o aumento do tempo ção pura de repetição, anunciou a
máximo de internação de jovens, revista Carta Capital:
que passaria de três para oito
anos. Só em 2013, foram apresen- A redução da maioridade
tadas pelo menos duas PECs pela penal volta à pauta da Co-
redução da maioridade penal. Em missão de Constituição,
julho de 2015, por meio de ma- Justiça e Cidadania (CCJ)
nobra (SANTOS, 2015, p. 910), do Senado (...). A Pro-
o então presidente da Câmara posta de Emenda à Cons-
dos Deputados, Eduardo Cunha tituição (PEC) 33/2012,
(PMBD/RJ), conseguiu algo iné- do senador Aloysio Nunes
dito: a aprovação da PEC n. Ferreira (PSDB-SP), abre a
171/1993 na Comissão de Consti- possibilidade de penaliza-
tuição e Justiça. Tal emenda, como ção de menores de 18 anos
outras 35 que viriam a tramitar de e maiores de 16 anos (...).
1993 até 2013 (SILVA; HÜNING, A proposta tramita em
2017, p. 237) propunha alterar a conjunto com mais três
redação do artigo 228 da Consti- PECs que versam sobre o
tuição Federal, justamente aquele tema (BELCHIOR, 2017).
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Logo no início do ano de 2018, (BRASIL, 2017).


o tema foi novamente ventilado
pela imprensa:

Apesar de ser ano de elei- A verdade vindo à tona


ção, quando os parlamen-
tares deixam os trabalhos
legislativos em segundo O espírito das jornadas de junho
plano e costumam evitar de 2013 na cidade de São Paulo,
temas polêmicos, o rela- para quem se fazia leitor de Espi-
tor da matéria, senador nosa, foi a combinação entre tá-
Ricardo Ferraço (PSDB- tica e horizontalidade contra os
ES), acredita que o pro- símbolos e as forças do Império
jeto [de redução da maio- encarnadas na lógica hierarqui-
ridade penal] será votado zada da repressão das tropas de
em 2018 (MARIZ, 2018). choque. Foi, em suma, conforme
propusemos, a experiência polí-
tica de colocar medo nos deten-
A PEC 33/2012 consta como ar- tores de privilégio, fazê-los sen-
quivada desde 21 de dezembro tir, por algumas noites, o deses-
de 2018, mas tem sempre retor- pero das minorias políticas que
nado nos últimos cinco anos como se metamorfoseiam em multidão.
pauta para as grandes reportagens Não, evidentemente, apenas pelo
televisivas sobre menores reputa- consenso, mas também pelo con-
dos criminosos, e como bode ex- flito. Não foi jamais o caso de
piatório de toda a desigualdade “tocar o terror” pela cidade, por-
social brasileira. Podemos, além que os insurretos não tinham ar-
disso, mencionar a forte repres- mas para aterrorizar. Tratava-se
são que jovens estudantes de vá- de encontrar, na Avenida Paulista,
rios lugares do Brasil sofreram no o grande capital financeiro para
tempo das ocupações de escolas, apedrejá-lo; apedrejá-lo sim, mas
depois de junho de 2013: tanto no sem violência. A atuação dos jo-
ano de 2015, em São Paulo, contra vens de vermelho e preto, tam-
uma decisão do governador Ge- bém eles com seus gritos, compu-
raldo Alckmin (PSDB/SP) de fe- seram um “processo indefinida-
char escolas no Estado, quanto em mente criativo”, como é criar um
2016, no país inteiro, contra a re- “corpo-sem-órgãos”, segundo De-
forma do Ensino Médio que viria leuze e Guattari (1996). Criar algo
a se tornar a Lei n. 13.415/2017 assim, não é exatamente um pro-
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cesso suave, mas tenso39 . passam a ser simples con-


Nesse percurso, não pode faltar junto de efeitos, desde que
uma palavra final sobre os possí- o concurso de circunstân-
veis descaminhos autoritários do cias que atuam durante o
desespero coletivo, sobretudo di- período da transição re-
ante do cenário de reação conser- volucionária começa a pôr
vadora que se sobrepôs a essa pri- em evidência fatores no-
meira fase das jornadas (DEMIER; vos e desconhecidos pela
HOEVELER, 2016). É preciso, limitada visão dos com-
pois, renovar neste momento a ad- parsas.
vertência segundo a qual a luta
contra as instituições e todas as
formas de representação, fomen- Plínio Salgado, figura autoritá-
tada por afetos feitos de tristeza, ria e de direita, pensava o Es-
pode culminar no aparecimento tado como “um joguete nas mãos
de forças tirânicas que se legiti- dos poderosos” (CHAUI, 2014a,
mam pelo exercício do poder. O p. 110). Para ele, como para
debate é amplo e não teremos con- os conservadores da segunda me-
dição de aprofundá-lo aqui. No tade do século XIX, uma crise ex-
caso brasileiro, entretanto, a cau- pressa sempre um sintoma da in-
tela contra o ímpeto destrutivo de competência dos seres humanos
certos movimentos tem justifica- em dominar a história (p. 115),
tivas históricas e teóricas impor- de modo a exigir a intervenção da
tantíssimas. Citemos Plínio Sal- “classe média urbana”, “a única
gado (1953, p. 56) e, em seguida, classe que só pode representar-
um conjunto de breves comentá- se a si mesma como ‘ideia’ e
rios de Marilena Chaui ao integra- como ‘ideadora’”. Para mobili-
lismo. zar esta classe, os integralistas
se apoiavam em uma pretensa
“crise radical das ideias”, culti-
Uma Revolução se efetiva vando o recanto da ausência de
objetivamente na Histó- pensamento bem ali onde plan-
ria, obedecendo, na apa- tam seu programa político. “A
rência, a certas causas di- irracionalidade” das ideias – ge-
retas; mas essas causas neralizada na sociedade – é o

39 “[Criar um Corpo-sem-Órgãos] Não é tranquilizador, porque você pode falhar. Ou às vezes pode ser aterrori-
zante, conduzi-lo à morte. Ele é não-desejo, mas também desejo. Não é uma noção, um conceito, mas antes uma
prática, um conjunto de práticas. Ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar
a ele, é um limite” (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p. 8-9).

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que “desencadeia a racionalidade (p. 49). Embora não seja plausí-


integralista” (p. 113). vel sequer ousar pôr em discus-
Chaui (2014a, p. 113), retra- são agora o caso argentino, gos-
tando a lógica de Plínio Salgado, taríamos de pensar esta declara-
escreve: ção à luz da experiência brasileira,
ainda que desviemos o contexto
da afirmação original. Ao dizer
a tarefa destrutiva deve destemidamente que venham en-
ser feita pela sociedade, tão os autoritários, esquecemos a
enquanto o momento diferença substancial entre estes
constitutivo da revolução e aqueles que, apesar de agirem
será obra do Estado, ex- contra a multidão, fazem ques-
pressão positiva dos an- tão de manter, em certos limites,
seios da sociedade. Esta a institucionalidade. Os autoritá-
só pode ser levada à ação rios de tipo hitlerista só saem do
destrutiva se perceber a poder depois de terem destruído
construção por vir, mas, todos os opositores, ao passo que
sobretudo, se perceber a os demais, ao deixarem o exercício
crise existente. do poder legalmente obtido, ainda
cogitam voltar ao poder pela ins-
Na história do Brasil, sequestrar titucionalidade e, para isso, preci-
narrativas, criar o caos das ideias sam dos adversários vivos. O “ya”
e exercer o poder destrutivo con- da sentença “ya estamos” é um tí-
tra quem é a causa direta do fer- pico caso de expressão do deses-
vor revolucionário não são tramas pero político, momento em que
isoladas, mas práticas constantes não temos dúvida da ocorrência
teoricamente orientadas. de algo que temíamos acontecer,
Em dezembro de 2001, tivemos não obstante na ordem da reali-
notícia da “baderna argentina” dade isso não tenha efetivamente
(HOPSTEIN, 2002), movimento se dado.
com muitas semelhanças e dife- Não se pode colocar em xeque
renças em relação a junho de 2013 a existência de situações em que
no Brasil. No contexto deste mo- todos os políticos e poderosos de
vimento, o cientista político Guil- uma cidade, província ou país
lermo O’Donnell, em entrevista atuem como ditadores ao modo
ao jornal Clarín, em setembro de de Hitler e Mussolini. Portanto,
2002, declarou: “ ¿Un Hitler? ¿Un há todo um sentido legítimo em
Mussolini? Bueno que venga. No- se bradar “que se vayan todos, que
sotros ya estamos en ese tobogán” no quede ni uno sólo”, lema fre-

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quente durante as agitações da de manifestações e saques, já ob-


Argentina em 2001 (HOPSTEIN, servando a potência constitutiva
2002, p. 48). A pergunta necessá- por trás das ações de rua. Na-
ria é a seguinte: depois de destruir quela ocasião – nos primeiros dias
a todos os fantasmas da represen- de abril de 1983 – a ação popular
tação, qual é a força constitutiva (realizada também na cidade de
desses movimentos que apenas São Paulo) foi uma resposta à crise
aparecem na cena midiática como econômica, e fazia ecoar generali-
vândalos? Ninguém levou a sério zadamente o horror social frente
o potente movimento constitutivo à agressividade reinante. Chaui
de luta horizontal que antecedia (2014b, p. 266), então, compa-
e determinava os assim chamados rou a reação social de comiseração
“atos com quebra-quebra”; obser- em relação ao espetáculo midiá-
varam apenas o quebra-quebra40 . tico das cenas de miséria expostas
No final das contas, desta força diariamente para a sociedade com
constituinte ou – nas palavras de o medo despertado pelas manifes-
Chaui – desta “construção por tações de rua ditas violentas. Em
vir”, radicalmente democrática seu parecer, as agitações urbanas
(porque direta), quem mais pa- do povo – que a mídia de massa
receu ter entendido foi o conser- quer converter em espetáculos –
vadorismo modulador das narra- invadem o domínio do político;
tivas sociais. Certamente, sobre não existem para que sejam vistas,
esta força constitutiva dos insur- “mas para criar participação e so-
retos, os conservadores souberam lidariedade, suscitando o contra-
mais do que qualquer outro setor ataque repressivo”. O resultado
político, pois a combateram, com da confrontação violenta conduz
o auxílio daquela classe social re- ao desejo geral de “preservação
dentora, dia a dia, ato a ato. da ordem”, pois a população sabe
Uma ressalva deve ser feita. que “independentemente dos re-
Trinta anos antes de junho de sultados da ação popular, sua sim-
2013, Chaui (2014b, p. 265) es- ples existência revela a injustiça
creveu um curto artigo a respeito da ordem vigente”. Segundo a au-

40 Reação similar se deu, ao que tudo indica, também na Argentina em 2001. Ao comentar o modo pelo qual
muitos responderam aos movimentos daquele então, Hopstein (2002, p. 47) assinala: “As análises e reflexões que
surgiram em torno desses acontecimentos geraram os mais diversos diagnósticos apocalípticos: ‘revolução socia-
lista’, ‘fascismo antidemocrático’, ‘amalucado estalido irracional’, ‘morte lenta da democracia’”. Ninguém parece
ter visto, como Hopstein acentua, que “estas lutas” (na Argentina, mas poderíamos também estender ao caso do
Brasil) “por serem em sua essência constituintes, são antitranscendentes e antiteleológicas, e se opõem , portanto,
a todo signo de institucionalização, de definição externa, contribuindo desta forma para criar novos espaços públi-
cos e novas formas de comunidade (p. 57)”. Apenas recentemente temos nos deparado com estudos que relevam a
força e solidez dos ativistas de São Paulo (FRÚGOLI, 2018) e de sua racionalidade política (MORENO, 2018).

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tora, o medo causado pela ação do


povo “não está no perigo de suas
O que tento pensar é que o
intenções explícitas – (...) contes-
desespero pode ser alegre:
tar a política econômica do go-
que a felicidade seja de-
verno –, nem na desordem mo-
sesperada e o desespero,
mentânea causada por sua apa-
feliz! Isso quer dizer
rição – o quebra-quebra (...) –,
que o desespero, no sen-
mas no seu sentido tácito, reve-
tido em que eu o tomo,
lação do avesso. Verdade vindo
não é o extremo da infe-
à tona” (CHAUI, 2014b, p. 266).
licidade ou o acabrunha-
Realizado também por indivíduos
mento depressivo do sui-
tomados pela cultura jovem em si-
cida. É antes o contrário:
tuação de desespero41 (criada bem
emprego a palavra num
antes de junho de 2013), o ato foi
sentido literal, quase eti-
repreendido pela administração
mológico, para designar o
de São Paulo com a brutalidade
grau zero da esperança,
e a força militar habituais, produ-
a pura e simples ausên-
zindo a tristeza e negando a cons-
cia de esperança. Tam-
trução democrática por vir, isto é,
bém poderíamos chamá-
a verdade que sempre vem à tona
lo de inesperança... Mas
tacitamente a proliferar solidarie-
não gosto muito de neolo-
dade e participação.
gismos e, além do mais, o
Para encerrar estas reflexões,
termo inesperança daria a
apresentamos um texto que, em
falsa impressão da facili-
suas dimensões literárias e exis-
dade, como se nos tornás-
tenciais, propõe uma ressignifi-
semos sábios de um dia
cação do desespero e nos lança a
para o outro, como se bas-
uma série de conexões que con-
tasse decidir, como se pu-
trariam a dureza do discurso re-
déssemos nos instalar na
acionário. O fragmento abaixo,
sabedoria como quem se
de André Comte-Sponville (2001,
instala numa poltrona... A
p. 26), embala a imaginação po-
palavra desespero, em sua
eticamente para contemplar for-
dureza, em sua luz escura,
mas criativas de pensar o sentido
exprime a dificuldade do
de afetos como esperança e deses-
caminho. Ela supõe um
pero.
trabalho, no sentido em

41 Segundo Chaui (2014b, p. 267), os responsáveis pelo quebra-quebra eram “homens robustos”, vestindo
“jaquetas de couro”, “tendo por trás sabe-se lá que garantia”.

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que Freud fala de traba- nos ainda o niilismo, a re-


lho do luto, e no fundo é núncia ou a resignação: é
o mesmo trabalho. A es- antes o que eu chamaria
perança é primeira; por- de um gaio desespero, um
tanto é necessário perdê- pouco no mesmo sentido
la, o que é quase sem- em que Nietzsche falava
pre doloroso. Eu gosto, do gaio saber. Seria o de-
na palavra desespero, que sespero do sábio: seria a
se ouça um pouco essa sabedoria do desespero.
dor, esse trabalho, essa di-
ficuldade. Um esforço, O contato com jovens que personi-
dizia Spinoza, para nos ficavam a inesperança trouxe ine-
tornar menos dependen- gavelmente uma espécie nietzs-
tes da esperança... Por- chiana de “gaia ciência”, um saber
tanto o desespero, no sen- que, uma vez descoberto, traz ale-
tido em que emprego a pa- gria – uma forte alegria – a quem
lavra, não é a tristeza, me- o obtém.

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Recebido: 02/07/2019
Aprovado: 08/08/2019
Publicado: 17/11/2019

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 147-187 187
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v7i2.24828

A Influência de Schelling sobre Schoppenhauer


[Schelling’s Influence on Schopenhauer]

Helio Lopes da Silva*

Resumo: Neste artigo investigo as contribuições positivas que a filo-


sofia de Schelling fez ao desenvolvimento do pensamento filosófico de
Schopenhauer. Deixando de lado a rejeição desta filosofia por parte do
Schopenhauer maduro, examinarei algumas ideias que o jovem Scho-
penhauer (1811-1813), através da leitura e estudo dos livros de Schel-
ling, poderia ter aceitado, reformulado, e incorporado ao seu pensa-
mento filosófico original.
Palavras-chave: Schopenhauer, Schelling, Influência.

Abstract: In this paper I investigate the positive contributions that


Schelling’s philosophy have made to the development of Scho-
penhauer’s philosophical thought. Leaving aside Schopenhauer’s
mature rejection of this philosophy, I will examine some ideas which
the young Schopenhauer (1811-1813), through reading and studying
Schelling’s books, could have accepted, re-formulated, and introdu-
ced into his original philosophical thought.
Keywords: Schopenhauer, Schelling, Influence.

Introdução chte e a Hegel a atitude de Scho-


penhauer é sempre a de animo-
Schopenhauer sempre manifes- sidade, e até de desrespeito, em
tou, ao longo de toda sua obra, relação a Schelling aquela rejei-
uma completa rejeição da filosofia ção é de certa forma mais nuan-
de Schelling, assim como da de Fi- çada, mais amena, em função de
chte e da de Hegel, qualificando- motivos que procuraremos des-
as como tentativas de restauração cortinar. Já na primeira edição
de uma metafísica dogmática e de sua obra-prima, O Mundo como
transcendente que, em vista dos Vontade e Representação1 de 1818-
resultados da Crítica kantiana, já 1819, Schopenhauer, depois de
deveria ter sido considerada como desqualificar o idealismo de Fi-
completamente impossível. Mas, chte como uma tentativa de de-
enquanto que em relação a Fi- rivar o objeto a partir do sujeito,

* Professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutor em filosofia pela USP.
E-mail: heliolopes2009@bol.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2117-4854.
1 SCHOPENHAUER, A. Die Welt als Wille und Vorstellung. Vol.I e II (Mundo 1 e Mundo2). Frankfurt: Insel
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HELIO LOPES DA SILVA

“como a teia sai da aranha” , diz (Mundo1, p. 60/26). Embora


que, embora sua filosofia afirme a Schopenhauer denuncie, assim,
dependência mútua entre sujeito o esoterismo envolvido na intui-
e objeto enquanto partes constitu- ção racional, ou “intelectual” , de
tivas do mundo como representa- Schelling, é bastante significativo
ção, ela não deve ser confundida que, nesta primeira publicação do
com a “Filosofia da Identidade” seu sistema filosófico completo,
(de Schelling), pois, apesar desta Schopenhauer já se defenda, e já
filosofia não tomar como ponto se antecipe à suspeita, da aproxi-
de partida, nem o sujeito, nem mação de sua filosofia para com
o objeto, mas sim a identidade aquela de Schelling.
ou indiferença entre ambos num Apesar desta defesa, o público
“Absoluto” , tal absoluto, supos- filosófico, para grande irritação de
tamente acessível através de uma Schopenhauer, imediatamente de-
“intuição racional” (Vernunft- tectou semelhanças entre a sua fi-
Anschauung), intuição que, diz losofia e a filosofia de Schelling –
desafiadoramente Schopenhauer, tal como nos informa Cartwright2 ,
ele não possui, ao se desdobrar praticamente todas as, poucas, re-
nas duas séries do “Idealismo senhas que imediatamente aco-
Transcendental” , onde o ob- lheram em 1819 O Mundo como
jeto é, à maneira de Fichte, ex- Vontade e Representação notaram
traido do sujeito, e da “Filosofia nele vestígios do pensamento de
da Natureza” , onde o sujeito é Schelling (CARTWRIGHT, p. 180
extraído do objeto, faz com que ss) – por exemplo, a resenha feita
Schelling esteja na realidade in- por Herbart nota que, apesar
corporando as duas versões, a ide- de Schopenhauer denunciar em
alista e a materialista, do mesmo Schelling o uso transcendente da
erro anteriormente denunciado forma do tempo, quando este fala
por ele, a saber, o de supor que, num “vir-a-ser” , num “tornar-
entre sujeito e objeto, haja qual- se” , num “vir à luz a partir da
quer relação segundo o Princípio escuridão” , etc., no Absoluto, ele
de Razão Suficiente. Isso, sali- mesmo, ao falar de sua Vontade
enta ironicamente Schopenhauer, como vindo a se conhecer no, ou
é aquilo que ao menos podemos como, mundo, passando de um
supor a partir do depoimento da- não-querer originário a um que-
quelas pessoas que se dizem ca- rer, e depois deste, a um querer-
pazes de tal “intuição racional” nada, estaria “apresentando uma

2 CARTWRIGHT, D. Schopenhauer: a biography. (CARTWRIGHT). Cambridge: Cambridge Univ.Press, 2010.

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história como se fosse filosofia, de E, de um modo geral, a impressão


uma maneira semelhante à histó- de que Schelling já houvera ante-
ria natural de Deus de Schelling” cipado ideias importantes da sua
(CARTWRIGHT, p. 386). As- filosofia foi tal que, em Parerga e
sim também Safranski, em cone- Paralipomena5 , o próprio Schope-
xão com o ensaio de Schelling so- nhauer procurou defender-se da
bre a liberdade, que discutiremos acusação de plágio – diante da ob-
em breve, diz que, dos contem- servação de que Schelling já ha-
porâneos de Schopenhauer, Schel- via falado da vontade como o “Ser
ling foi o que mais se aproximou primal, e coisas parecidas” , Scho-
do conceito schopenhaueriano de penhauer diz, em primeiro lugar,
vontade3 . No mesmo sentido, que, dado que ambas as filoso-
4
Rappaport , comentando em 1899 fias, a sua e a de Schelling, par-
as relações de Schopenhauer para tem da filosofia de Kant, é natu-
com Espinosa, afirma que: ral que hajam semelhanças entre
elas. Além disso, continua Scho-
penhauer, é comum acontecer, na
A filosofia de Schelling, história do pensamento, da des-
que Schopenhauer pôde coberta de uma grande ideia por
aprender em traços ge- parte de um autor ser antes pre-
rais através de Schulze cedida, em pensadores anterio-
em Göttingen, foi para ele res, por várias antecipações va-
objeto de zeloso estudo gas e nebulosas a seu respeito, por
em Berlim. “Schelling divagações hesitantes proferidas
é aquele a quem Scho- num estado quase sonambúlico.
penhauer, na medida em Mas, diz Schopenhauer, o verda-
que se diferencia de Kant deiro autor de uma ideia é ape-
e de sua escola, deve nas aquele que reconheceu clara-
seus mais importantes mente a sua importância, e a ex-
pensamentos” , diz Edu- plorou em todas as conexões – de
ard v. Hartmann em Ge- fato, acrescenta ele, apenas após
genwart, de 1898 (RAPPA- o verdadeiro autor da ideia ter
PORT, p. 126) feito isto, é que a ideia em questão

3 SAFRANSKI, R. Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia. Lagos, W.(trad). São Paulo: Geração
Editorial, 2011, p. 582-583.
4 RAPPAPORT, S. Spinoza und Schopenhauer. Halle-Wittenberg: Halle Als, 1899.https://epdf.tips/spinoza-
und-schopenhauer.htm (RAPPAPORT)
5 SCHOPENHAUER, A. Parerga and Paralipomena. Vol.I e II (PP1 e PP2). Payne, E.F.J.(trad). Oxford: Oxford
Univ.Press, 2010.

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HELIO LOPES DA SILVA

será procurada em autores anteri- juntas não, e todas juntas equi-


ores – da mesma maneira como é valem quase a uma confissão de
Colombo o descobridor da Amé- culpa. É como se, diz Welchman,
rica, e não algum naufrago que, Schopenhauer estivesse dizendo:
porventura, pudesse lá ter sido jo- “Sou original, mas Schelling tam-
gado pelas ondas. E, finalmente, bém não é” . Mesmo sem ir tão
conclui Schopenhauer, se for para longe, esta observação de Welch-
localizar alguma fonte anterior a man nos serve, no entanto, para
ele daquela ideia, não será pre- notar que Schopenhauer, mesmo
ciso parar em Schelling, pois vá- defendendo adequadamente a ori-
rios outros autores da antiguidade ginalidade de sua obra, acaba ad-
já haviam feito alusões a ela (PP1, mitindo algumas semelhanças en-
p. 132-134). tre a sua filosofia e a de Schelling.
Esta defesa da originalidade de E, de um modo geral, precisamos
sua obra por parte de Schope- notar que, no que segue, não es-
nhauer nos parece perfeitamente taremos de modo algum interes-
adequada e suficiente. Apesar sados em determinar a autoria, ou
disso, e como nota Welchman6 , a prioridade intelectual, de Schel-
ela não é desprovida de uma certa ling ou de Schopenhauer relativa-
ambiguidade - ela se assemelha, mente a algumas ideias presentes
diz Welchman, à famosa piada na filosofia deste último. O que
contada por Freud a respeito do nos interessa é averiguar a ma-
sujeito que, diante da reclama- neira como a leitura dos livros de
ção de que havia devolvido com Schelling, realizadas pelo jovem
furos um balde anteriormente Schopenhauer no período anterior
tomado emprestado, defendeu- à publicação em 1818-1819 de O
se dizendo, em primeiro lugar, Mundo como Vontade e Representa-
“que já recebera o balde com ção, possa ter estimulado Schope-
furos” , e que, em segundo lu- nhauer na formação de seu pen-
gar, “quando devolveu o balde samento filosófico. Conforme diz
este estava intacto” e, finalmente, acertadamente Gardner, embora
em terceiro lugar, que “nunca, ja- Schopenhauer tenha sempre rejei-
mais, tomou emprestado balde tado as filosofias de Schelling e de
algum” . Cada uma destas ale- Fichte como prolongamentos ile-
gações, tomadas isoladamente, gítimos da filosofia de Kant, e em-
serviria como defesa, mas todas bora tenha ele sempre pretendido

6 WELCHMAN, A. Schopenhauer’s Understanding of Schelling, (WELCHMAN), p. 03


(https://www.researchgate.net)

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A INFLUÊNCIA DE SCHELLING SOBRE SCHOPPENHAUER

estar realizando, contra estas duas muito cedo tenha feito uma dis-
filosofias, um “retorno a Kant” , é tinção entre os filósofos genuínos,
preciso reconhecer que, dado que que manifestam um espanto ou
nos seus anos de formação Scho- admiração diretamente diante do
penhauer não estudou mais ne- mundo da vida, e aqueles filósofos
nhum outro filósofo, com exceção que, como Fichte, manifestam es-
de Kant, do que Schelling e Fichte, panto apenas diante de livros, ou
então este seu retorno a Kant foi de um sistema filosófico já exis-
um retorno “a partir de Schelling tente (MR1, p. 81), é preciso reco-
e Fichte” , foi um retorno a partir nhecer que, mesmo partindo da-
de ideias que Schopenhauer, seja quela intuição direta do mundo,
pela recusa e rejeição, seja pela a intuição schopenhaueriana pre-
aceitação e re-elaboração, encon- cisou ser expressa em conceitos,
trou na leitura destes filósofos7 . conceitos que ele não poderia ter
Dado que o jovem Schopenhauer, encontrado em outro lugar que
já desde 1811, estudava os livros não nos livros e nos sistemas filo-
de Schelling, e neles fez anotações sóficos que lhe eram disponíveis.
importantes, reunidas em seu Ma-
nuscritos Póstumos8 , assim como
discutiu aspectos da filosofia de Consciência “melhor” e intuição
Schelling em sua primeira publi- intelectual
cação, a edição de 1813 de sua tese
doutoral Sobre a quádrupla raiz Um dos pontos em que, segundo
do Princípio de Razão Suficiente9 , alguns comentadores10 , a incipi-
acreditamos poder determinar, a ente filosofia do jovem Schope-
partir deste material, a contribui- nhauer se aproxima da de Schel-
ção positiva do pensamento filo- ling diz respeito à noção de
sófico de Schelling para a forma- “consciência melhor” – já desde
ção da filosofia de Schopenhauer. seus mais precoces manuscritos
Embora Schopenhauer já desde (1808-1813), Schopenhauer fala

7 GARDNER, S. Schopenhauer’s Deconstruction of German Idealism, (GARDNER), p. 03


(https://www.discovery.ud.ac.uk)
8 SCHOPENHAUER, A. Manuscript Remains. Vol. I e II (MR1 e MR2). Hübscher, A. (ed) e Payne, E.F.J.
(trad). Oxford: Berg, 1988/Aus Arthur Schopenhauer’s handschriften Nachlass. (HN) Fräuenstadt, J. (ed). Leipzig:
Brockhaus, 1864 (http://books.google.com)
9 SCHOPENHAUER, A. Über die vierfache Wurzel des Satz vom zureichend Grunde (RAIZES). Rudolstadt:
Bayerische Staats Bibliothek – Müncher Digitalisierungs Zentrum, 1813.
10 Cf.SEGALA, M. e DE CIAN, N. “What is will?” . In: Schopenhauer-Jahrbuch, 83, 2002, p.06. Cartwright
menciona também alguns autores (Kamata, Y., Zint, H., Malter, R., Safranski, R., e Decher, F.) que se dedicaram
ao estudo das relações entre a noção de “consciência melhor” do jovem Schopenhauer e a descrição da “intuição
intelectual” de Schelling nas Cartas Filosóficas sobre o Dogmatismo e o Criticismo (CARTWRIGHT, p. 181-182, n.
5)

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de um estado de consciência no
qual nós nos retiramos das deter-
minações, principalmente da de- Presente em todos nós há
terminação temporal, da consci- uma capacidade secreta e
ência empírica e mundana, e en- maravilhosa de retirarmo-
tramos num estado a partir do nos da mudança e da su-
qual contemplamos calma e se- cessão do tempo em di-
renamente aqueles mesmos ob- reção ao nosso ser mais
jetos e acontecimentos que, no íntimo, que é despido de
outro estado de consciência, na tudo aquilo que lhe adveio
“consciência empírica” , nos tra- de fora, e de então intuir o
zem agitação e sofrimento (MR1, eterno em nós mesmos sob
p. 8, 14-15, 44, 86). Trata-se da- a forma da imutabilidade.
quele estado de espírito que, na Esta intuição (Anschau-
fase madura de sua filosofia, cons- ung) é a nossa experiên-
tituirá o âmago de suas belas e in- cia a mais íntima, e apenas
teressantes descrições do estado dela depende tudo aquilo
de espírito, seja da contemplação que sabemos e acredi-
estética, seja do êxtase do santo tamos a respeito de um
e do asceta. Mas, que este es- mundo supra-sensível. É
tado “melhor” de consciência do esta intuição aquilo que,
jovem Schopenhauer se aproxime em primeiro lugar, nos
daquilo que Schelling chama de convence de que algo é,
“intuição intelectual” , isto aque- no sentido real do termo,
les comentadores afirmam base- ao passo que tudo o mais,
ados numa passagem da oitava para o qual nós transferi-
das Cartas Filosóficas sobre o Dog- mos esta palavra, apenas
matismo e o Criticismo, passagem aparece (erscheint) (MR2,
que o jovem Schopenhauer anota p. 347/HN, p. 250 - itáli-
à margem como “contendo grande cos de Schelling).
e genuína verdade” , onde Schel-
ling, procurando mostrar que a Mas, se é claro que esta descrição
intuição espinosista do absoluto, por parte de Schelling daquilo que
junto ao anseio por unificação se dá à sua “intuição intelectual”
neste absoluto e a anulação de si se aproxima bastante daquilo que
mesmo, ou a intuição do mundo o jovem Schopenhauer entende
“sob o aspecto da eternidade” , se como sua “consciência melhor”,
baseava na intuição que Espinosa é preciso reconhecer que ela se as-
tinha a respeito de si mesmo, diz: semelha também, tanto à intuição
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A INFLUÊNCIA DE SCHELLING SOBRE SCHOPPENHAUER

“mais alta” de Fichte, cujos cur- 72-73; MR2, p. 385-385, 429-


sos foram presenciados pelo jo- 430, 436). Pode-se, assim, di-
vem Schopenhauer em 1811-1812 zer que, de um modo geral, o jo-
(MR2, p. 79-80), como à, acima vem Schopenhauer concorda com
mencionada, intuição ou conheci- Schelling (e com Fichte também)
mento de “terceiro gênero” de Es- em que (1) é possível uma intui-
pinosa (MR1, p. 306). Pode-se di- ção do supra-sensível (tanto do
zer que a “consciência melhor” do Eu quanto do mundo) enquanto
jovem Schopenhauer coincide per- atemporal, e que (2) o mundo
feitamente com aquilo que Schel- sensível e temporal apresenta-se
ling, Fichte e Espinosa dizem a como “vazio e irreal”, como uma
respeito da intuição do mundo mera “aparência”, tal como men-
supra-sensível, ou com aquilo que cionado acima, mas ele rejeita a
estes chamarão de “Absoluto” , tentativa de Schelling (e de Fichte)
mas, diferentemente destes, Scho- de suprir este vazio e irrealidade
penhauer, ao menos nestes anos do mundo sensível mediante uma
iniciais de formação de seu pen- derivação deste mundo sensível a
samento filosófico, recusa-se a co- partir do mundo supra-sensível,
locar este mundo supra-sensível ou mediante uma fundamenta-
como fundamento do mundo sen- ção daquele mundo sensível neste
sível, ele recusa-se a derivar a mundo supra-sensível.
“consciência empírica” a partir É assim, e em particular no
da sua “consciência melhor”, as- que diz respeito a Schelling, que
sim como incansavelmente qua- Schopenhauer, já em sua pri-
lifica como transcendente e con- meira publicação, a Quádrupla
traditória as tentativas de Fichte e Raiz do Princípio de Razão Su-
Schelling no sentido de derivar a ficiente de 1813, diz que, se a
consciência empírica a partir do Naturphilosophie pretende, com
“Absoluto” - pois, segundo ele, sua “identidade entre subjetivo
qualquer derivação deste tipo pre- e objetivo”, significar a mera de-
cisará se valer de relações (tem- pendência mútua entre sujeito e
porais, causais, de fundamento- objeto enquanto pressupostos por
consequência, etc.) que só exis- toda aplicação do Princípio de Ra-
tem na, e são condições apenas zão Suficiente, então, diz Scho-
da, consciência empírica, e não penhauer, ele “estaria de acordo”
se pode colocar duas coisas em com ela, se bem que para isso não
relação segundo os termos de é preciso nenhuma intuição in-
uma relação que é válida apenas telectual (intellektuale Anschau-
para uma delas (MR1, p. 20, 37, ung), mas sim a mera reflexão (Be-

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HELIO LOPES DA SILVA

sinnen), a mesma reflexão que nos sua tese doutoral, as anotações fei-
mostra, por exemplo, as expres- tas por ele aos livros de Schelling
sões “pai” e “filho” como mutu- são, a este respeito, bem mais inci-
amente dependentes. Daí, conti- sivas – por exemplo, numa anota-
nua Schopenhauer, que, quando ção ao Sobre o Eu como o princípio
se faz abstração de toda determi- da filosofia, Schopenhauer diz que,
nação do ser-objeto, assim como na concepção de uma existência
de todas as faculdades do ser- qualquer, já pressupomos a duali-
sujeito, restarão, de cada lado, dade representante-representado,
apenas um “x” e um “y”; e, se qui- e que, se quisermos falar de um
sermos, ainda assim, afirma-los ser que existe fora de toda re-
como idênticos, estaremos, além lação, que existe em si, por si,
da duvidosa “vantagem” de trocar a partir de si, e por nada fora
duas incognitas por uma só, apli- de si, etc., estaremos falando de
cando uma categoria, a categoria algo completamente inconcebível
da identidade, que, no entanto, foi (MR2, p. 342-3). Da mesma ma-
eliminada por aquela abstração, neira, numa longa anotação ao
e que é condição apenas do ser- Sistema do Idealismo Transcenden-
objeto, e não do ser-sujeito. Ou tal12 , o jovem Schopenhauer diz
seja, não é possível derivar, nem que, dado que a dualidade sujeito-
o objeto, nem o sujeito, a par- objeto não é causa da, mas sim é
tir disto que Schelling chama de analiticamente idêntica à, cons-
“identidade sujeito-objeto”, pois ciência empírica, a pergunta de
qualquer derivação deste tipo pre- Schelling, sobre se o objetivo pre-
cisará se valer, seja de categorias cede o subjetivo ou, ao contrá-
que pertencem apenas ao sujeito rio, o subjetivo precede o obje-
(se houver alguma categoria que, tivo, esta pergunta é sem-sentido,
de fato, seja aplicável ao sujeito), já que anterior e posterior, causa
seja de categorias que pertencem e efeito, já pressupõem a consci-
apenas ao objeto (RAIZES, p. 108- ência empírica e, com esta, aquela
111). Mas, ao contrário do tom dualidade sujeito-objeto. Tomar
respeitoso e cauteloso11 adotado qualquer um desses dois, isola-
pelo jovem Schopenhauer nesta damente, para daí tentar deri-

11 Cartwright sugere que o tom cauteloso adotado por Schopenhauer em relação a Schelling nesta tese doutoral
deveu-se ao fato de Schopenhauer estar se dirigindo à Academia, e de não querer ferir alguma suscetibilidade de
seus avaliadores (CARTWRIGHT, p. 196). De fato, porém, e como já mencionamos, sua atitude, mesmo em suas
anotações privadas, em relação a Schelling é bem mais amena do que aquela manifesta em relação a Fichte ou a
Hegel.
12 SCHELLING, F.W.J. System des transzendentalen Idealismus. Hamburg: Meiner, 2000 (SCHELLING-
SISTEMA)

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A INFLUÊNCIA DE SCHELLING SOBRE SCHOPPENHAUER

var o outro é uma tarefa con- cura apreender conceitualmente


traditória e impossível, pois, ao o supra-sensível, assim como sua
desvincular um do outro, estare- relação para com o sensível, atra-
mos abolindo a própria consci- vés de relações que são pertinen-
ência – ou, dito de outro modo, tes apenas a este último domínio
tentar pensar um “sujeito” que – por exemplo, quando Schelling
não seja algo que representa um procura fazer o tempo surgir a
objeto, ou um “objeto” que não partir da eternidade, o relativo a
seja algo representado por um su- partir do absoluto, o finito a par-
jeito, é tentar algo impossível e tir do infinito, ele está, diz Scho-
contraditório (MR2, p. 378-379). penhauer, simplesmente abolindo
As relações anterior-posterior, o princípio de não-contradição
causa-efeito, etc., aplicam-se ape- (MR2, p. 340) e fazendo um uso
nas a objetos, mas não à rela- transcendente (MR2, p. 376, 385)
ção sujeito-objeto (MR2, p. 380), de relações que, embora sejam
e, diz Schopenhauer, “que o su- condições a priori da consciência
jeito mesmo se torne objeto (Schel- empírica, para além dela não se
ling usa a expressão: “Sich-selbst- estendem, como já havia ensinado
Objekt-Werden des Subjektiven” Kant.
– SCHELLING-SISTEMA, p. 15), Ao fazer tais objeções, o jovem
esta é a mais monstruosa contradi- Schopenhauer parece não ter com-
ção jamais formulada, pois objeto preendido, ou, melhor, não ter
e sujeito só são concebíveis um aceitado, mesmo que de forma
em referência ao outro, e esta refe- não muito clara e explícita para
rência é sua única característica” si mesmo, a principal motivação
(MR2, p. 381). O sujeito, diz da elaboração filosófica de Schel-
Schopenhauer, nunca pode tornar- ling – pois este concordaria com
se objeto, e isto devido à razão aquela afirmação da tese douto-
muito simples de que, fosse este ral de Schopenhauer, no sentido
o caso, então já não haveria ne- de que toda determinação do su-
nhum sujeito para quem este ob- jeito não é uma determinação do
jeto (em que se transformou o su- objeto, e toda determinação do
jeito) seria objeto (MR2, p. 383). objeto não é uma determinação
Assim, a filosofia da identidade do sujeito. Mas, diria Schelling,
subjetivo-objetivo de Schelling é o que é preciso explicar é justa-
em muitas passagens destes ma- mente o encontro, a “síntese”, de
nuscritos denunciada pelo jovem ambos no conhecimento, e é este
Schopenhauer como um empreen- problema acerca das condições
dimento contraditório, que pro- de possibilidade do conhecimento

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sintético, problema que, segundo jetos seriam idênticos entre si, e


Kant, a sua Crítica da Razão Pura que forneceria assim a explicação
procurara resolver. Para expli- transcendental da necessidade de
car como sujeito e objeto se en- sua conexão. Mas o jovem Schope-
contram um ao outro no conhe- nhauer, já nesta sua tese doutoral
cimento sintético (ou, mais pre- de 1813, e embora ele não se en-
cisamente, como se dá o encon- derece explicitamente a esta ques-
tro entre a “unicidade” do En- tão, dá mostras de que recusaria
tendimento e a “multiplicidade” estes desenvolvimentos do empre-
do dado proveniente da Sensibili- endimento filosófico de Schelling
dade), e como o elemento comum (e de Fichte também) – falando da
a ambos, que permitiria sua sín- exigência de uma “prova” do Prin-
tese ou união, não pode provir, cípio de Razão Suficiente, ele diz
nem de um, nem de outro, to- que toda prova é o remontar de
mados isoladamente, então será algo duvidoso a algo admitido, e,
preciso admitir que, antes, no se pedirmos uma prova deste ad-
“absoluto”, eles eram idênticos, e mitido, chegaremos ultimamente
que, depois de uma cisão aí ocor- a proposições que são, simples-
rida, eles agora são juntados nova- mente, a condição de todo o pen-
mente por aquele juízo sintético, sar e conhecer, e que são mesmo
de modo que tal juízo só pode, diz aquilo em que consistem o pró-
Schelling, ser compreendido como prio pensar e conhecer, de modo
uma restauração daquela identi- que a certeza (Gewissheit) nada
dade e unidade perdida – a sín- mais é que a concordância com es-
tese empírica entre o sujeito e o tas proposições, e não pode ser re-
objeto condicionados, assim, só montada a proposições mais cer-
é possível enquanto restauração tas do que estas (RAIZES, p. 20).
da síntese e identidade incondi- E, um pouco mais adiante, o jo-
cionada sujeito-objeto. O mesmo vem Schopenhauer já manifesta
ocorre, continuaria Schelling, com uma recusa de todo o empreendi-
os objetos conectados pelo Prin- mento transcendental kantiano de
cípio de Razão Suficiente, de que que Schelling (e Fichte) se preten-
trata aquela tese doutoral de Scho- dem herdeiros:
penhauer – a necessidade com que
este princípio conecta seus ob- Desde a Dedução das Ca-
jetos (fundamento-consequência, tegorias de Kant (...) pa-
causa-efeito, etc.) só pode ser ex- rece quase não haver nada
plicada mediante referência a um de mais originário e ime-
“absoluto” anterior, onde estes ob- diato que já não tenha
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sido deduzido a priori. livrarmos de todas estas


Tais coisas, cujo remon- determinações (este é, me
tar aos seus fundamen- parece, o fundamento de
tos nenhuma época an- todo esforço filosófico ge-
terior imaginava ser pos- nuíno)(...) mas só pode-
sível, deu a ocasião para mos ir ao ponto de dizer
que Göethe dissesse: ‘O que precisa haver um es-
filósofo chega, e nos de- tado no qual não há, nem
monstra que assim preci- sujeito, nem objeto, e, por-
sava ser’ (RAIZES, p. 25) tanto, não há nada de aná-
logo à minha consciência
atual; e, embora haja nele
Apesar desta rejeição, que na fase um esforço e pressenti-
madura de sua filosofia se tornará mento (Vorgefühl) destes,
completamente explícita, da pre- nunca pode ser-lhe espe-
tensão fundacionista que a filosofia cificado um conceito, jus-
de Schelling compartilha com a fi- tamente porque ele está
losofia do Idealismo alemão como acima e além de todo En-
um todo, vemos, no entanto, o jo- tendimento.(MR2, p. 360;
vem Schopenhauer, numa anota- HN, p. 212 -itálicos nos-
ção ao “adendo à Introdução” às sos)
Ideias para uma Filosofia da Natu-
reza, descortinar aquilo que es-
taria por detrás desta concepção De fato, a “consciência melhor”
de Schelling a respeito da coinci- do jovem Schopenhauer também
dência do absolutamente ideal (o não inclui, nem tempo, nem su-
saber filosófico como saber abso- jeito, nem objeto (MR1, p. 73-74)
luto) com o absolutamente real (o de modo que, segundo ele, o erro
próprio Absoluto): de Schelling estaria, não na afir-
mação da possibilidade de tal in-
tuição do supra-sensível, mas sim
(...) pois, quando adentra- no querer colocá-la em relação
mos profundamente em com a consciência atual ou em-
nós mesmos, constatamos pírica mediante categorias que só
que (...) o tempo nos é ines- são válidas para esta última cons-
sencial, tal como o é a divi- ciência. Em particular, o jovem
são de nossa consciência em Schopenhauer recusa a tentativa
sujeito e objeto; nós sen- de apreender este supra-sensível
timos até mesmo um an- através de conceitos. É assim que,
seio (Sehnsucht) de nos numa anotação ao Filosofia e Re-
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ligião, Schopenhauer, discutindo não-contradição, nada é conce-


a afirmação de Schelling no sen- bido realmente por seu intermé-
tido de que, antes e ainda na au- dio, embora elas possam ser pro-
sência de uma intuição direta do feridas, da mesma maneira como
Infinito, a razão filosófica, através pode-se desenhar um edifício que
de seus conceitos, não pode fazer não se sustenta de acordo com a
outra coisa que não uma alusão lei da gravidade (MR2, p. 374).
indireta a este, mediante a cons- Para o jovem Schopenhauer a Ra-
tatação “do vazio e irrealidade de zão, em particular, a Razão filo-
todos os contrastes finitos”, diz: sófica, tem, através de seus con-
ceitos, apenas esta função de, ao
fazer uma apresentação negativa
Bom, e inteiramente de da “consciência melhor” (não está
acordo com minha opi- no tempo, não está no espaço, não
nião!. Mas então que a está em nenhuma conexão atra-
filosofia se contente em vés do Princípio de Razão Sufici-
mostrar a natureza limi- ente, etc.) na consciência empí-
tada do Entendimento, rica, fazer com que esta tenha ao
como fez Kant, e acres- menos o pressentimento de que,
cente que há em nós além e acima dela, há uma ou-
uma faculdade inteira- tra consciência, uma consciência
mente diferente do En- “melhor” que ela (MR1, p. 23-
tendimento (...) Mas que 24, 53-54). E é por isso que ele,
ela não leve este (Enten- acima, concorda com a afirmação
dimento) a pôr o absoluto de Schelling, no sentido de a ra-
como um conceito, e dar zão filosófica deve se limitar à ta-
dele explicações que não refa de demonstrar o vazio e ir-
passam de impossibilida- realidade dos contrastes estabe-
des lógicas (...) (MR2, p. lecidos pelo Entendimento. Mas,
372 - itálicos nossos) para ele, a razão filosófica deve
parar aí, mantendo-se assim como
Assim, diz Schopenhauer, ao in- o verdadeiro “criticismo”, o que,
vés de, corretamente, dizer “aqui segundo ele, não é o que ocorre
termina o domínio do Entendi- em Schelling, que procura estabe-
mento e começa o da consciência lecer uma ponte ou uma união en-
melhor”, Schelling diz que “em tre estes dois mundos, o sensível
Deus o sujeito é o objeto, o ge- e o supra-sensível, que falam lin-
ral é o particular” e, como tais guagens tão incomensuráveis en-
sentenças violam o princípio de tre si, produzindo então uma con-

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fusão “babilônica” de linguagens, conceitos (Befriffe), mas


sem se dar conta de que “união” já que estamos justificados
é um conceito inexoravelmente li- em exigir a priori de todos,
gado ao mundo espaço-temporal, porque é uma ação sem a
e, portanto, aplicável apenas ao qual a lei moral, em outras
mundo sensível (MR1, p. 37) palavras, um comando po-
Mas, em relação à “intuição sitiva e incondicionalmente
intelectual” de Schelling, o jovem imposto a todas as pessoas
Schopenhauer, em conexão com na mera qualidade de sua
o Tratado para o esclarecimento do natureza humana, lhe se-
Idealismo da Doutrina da Ciência, a ria inteiramente ininteli-
recusa, e a diferencia de sua no- gível.(MR2, p. 350; HN,
ção de “consciência melhor” na p. 255 - itálicos de Schel-
medida em que, segundo ele, a ling)
intuição de Schelling depende-
ria do cultivo do Entendimento Schelling parece aqui afastar de
(Verstandeskultur), que está su- sua intuição intelectual, tanto a
jeito a várias circunstâncias aci- necessidade de um cultivo do En-
dentais, e da vontade empírica, ou tendimento, como a ação arbitrá-
da “escolha do arbítrio (Willkühr) ria possível através de conceitos –
através de conceitos”, ao passo para ele, a pessoa deve ser capaz
que sua “consciência melhor” não de tal intuição apenas em fun-
depende destes, embora dependa ção de sua qualidade de ser hu-
de uma “vontade pura” (reinen mano, em função de, como tal,
Willen) (MR2, p. 350-351/HN, p. ver-se obrigada ou submetida a
256; MR2, p. 373/ HN, p. 230). um comando moral incondicio-
Mas, tal como exposta por Schel- nal (a autonomia conectada ao
ling, estas conclusões do jovem “imperativo categórico” de Kant).
Schopenhauer parecem não serem Assim, diz Schelling, embora ele
muito exatas – segundo Schelling, exprima aquela ação originária
como uma proposição fundamen-
(A intuição intelectual) é tal (Grundsatz), em relação à pes-
uma intuição cujo objeto soa com quem ele fala, trata-se de
é uma ação originária (urs- um postulado (uma ordem para re-
prüngliches Handeln), e, alizar uma ação, tal como o pos-
de fato, é uma intuição tulado da geometria “trace uma
que não podemos tentar linha tal...”), e “quem quer que
despertar em outras pes- seja incapaz de cumpri-lo, ao me-
soas de início através de nos deveria ser capaz de cumpri-
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lo”, ao que o jovem Schopenhauer cher Dinge), e visto de um


objeta ironicamente: “Este é um ponto de vista prático é
novo uso da expressão ‘postulado’ um querer (Wollen) (HN,
teórico: ou você admite que seu p.255 - itálicos nossos)
representar é uma ação originária
sua sobre você mesmo, ou você é
um canalha (Schurke)!” (MR2, p.
350/ HN, p. 255). Ora, podemos
ver aqui a maneira como, embora
rejeite este ponto de partida da fi-
losofia de Schelling (e de Fichte Representação e Vontade são
também), embora rejeite o esote- apresentados aqui ao jovem Scho-
rismo de seus postulados – pois, penhauer como dois aspectos da-
diante da ordem, proferida por quela ação originária dada à in-
Schelling e Fichte, para que se efe- tuição intelectual de Schelling,
tue ou se realize tal ação, a pessoa e, embora Schopenhauer recuse
não sabe decidir entre o “realizei a maneira como Schelling (e Fi-
a ação, mas encontrei resultados chte também) a pretende estabe-
diferentes” e o “não cheguei, real- lecer – é como se Schopenhauer,
mente, a realizar a ação”, e esta é diante do postulado em questão, o
a fonte das constantes críticas de encarasse da mesma forma como
Schopenhauer a Schelling e a Fi- Freud considerou uma possível
chte no sentido de que estes se di- objeção concernente ao caráter
rigem apenas a um grupo de pes- arbitrário das interpretações psi-
soas “convertidas” - não há uma canalíticas: “lancemos um mo-
diferença no conteúdo entre am- eda, se der cara, eu ganho, se
bas as intuições, pois, diz Schel- der coroa, você perde” – parece
ling: bastante plausível supor que es-
tes desenvolvimentos da filosofia
Este princípio íntimo não de Schelling tenham, posterior-
é outro que não a ação ori- mente, contribuído para formu-
ginária do espírito sobre si lação por parte de Schopenhauer
mesmo, a autonomia ori- de seu pensamento filosófico ori-
ginária, que, vista de um ginal. Voltaremos a este ponto
ponto de vista teórico, é quando, mais adiante, discutir-
um representar (Vorstel- mos as anotações feitas por Scho-
len) ou, o que é o mesmo, penhauer nas Ideias para uma Filo-
o construir de coisas fi- sofia da Natureza de Schelling.
nitas (Construiren endli-
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As investigações sobre a liber- conflito com a onipotência di-


dade de Schelling vina que se chega a afirmar que
“estamos em Deus, e não fora
Antes disso, porém, precisamos dele” . Daí, continua Schelling,
considerar o objeto que provo- não estar o panteísmo necessari-
cou aquela defesa, realizada por amente conectado à negação da
Schopenhauer no Parerga e Pa- liberdade. Mesmo o fatalismo de
ralipomena, da originalidade de Espinosa, diz Schelling, é devido,
sua obra frente à observação de não ao seu panteísmo, não ao fato
que Schelling já houvera avan- dele dizer que as coisas estão con-
çado a ideia da vontade como o tidas em Deus, mas sim ao fato
“Ser primal” . Constataremos que, dele conceber estas coisas indi-
embora Schelling avance aí ideias viduais como coisas, submetidas
que claramente serão incorpora- ao mecanicismo. Até mesmo sua
das por Schopenhauer à sua filo- noção de vontade, diz Schelling,
sofia, não há como recusar a de- é a noção de uma coisa (Sache),
fesa de Schopenhauer, no sentido determinadas por forças exter-
de que tais ideias encontram ex- nas. Agora, diz Schelling, quando
pressão aí de uma forma muito os conceitos fundamentais de Es-
difusa e nebulosa. pinosa são espiritualizados (ver-
Nas Investigações Filosóficas so- geistg) pelo Idealismo, temos a Fi-
bre a Essência da Liberdade Hu- losofia da Natureza que, como a
mana13 , Schelling, no interior da parte real do sistema, desaguará
famosa “controvérsia panteísta” , na parte ideal, na parte do sistema
e contestando a denúncia de Ja- onde reina a Liberdade:
cobi no sentido de que o pan-
teísmo espinosista conduz inevi-
tavelmente ao fatalismo e à ne- Admite-se que neste
gação da liberdade, começa por emergir (da liberdade) se
apontar que este não é o caso, já encontra o ato potencia-
que é justamente a preocupação lizador final através do
com a liberdade o que, em pri- qual o todo da natureza
meiro lugar, conduz à afirmação transfigura-se em senti-
do panteísmo – pois, diz Schel- mento, inteligência e, fi-
ling, é de modo a fazer com que nalmente, em vontade. No
a liberdade pessoal não entre em juízo final e mais alto,

13 SCHELLING, F.W.J. Philosophical Investigations into the Essence of Human Freedom. Love, J. e Schmidt,
J.(trad). New York: State Univ. of N.Y. Press, 2006/ Philosophische Untersuchungen über das Wesen der mensch-
lichen Freiheit http://data.bnf.fr (SCHELLING-LIBERDADE).

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não há outro Ser (Sein) em meio a um sonho ou delírio,


a não ser o querer, ou a pois Schelling não procura argu-
Vontade (Wollen). A Von- mentar e demonstrar tal tese à
tade é o Ser primal (Ur- maneira tradicional – tanto é as-
sein) ao qual unicamente sim que Love e Schmidt quali-
se aplicam todos os pre- ficam esta passagem das Investi-
dicados do Ser: infunda- gações como “extremamente radi-
bilidade (Grundlosigkeit), cal e enigmática” (SCHELLING-
eternidade, independên- LIBERDADE, p. 143, n.24).
cia em relação ao tempo Quando, porém, levamos em con-
(Unabhängigkeit von der sideração a exposição do jovem
Zeit), auto-afirmação Schopenhauer a estes devaneios
(Selbstbejahung). O do “naufrago” Schelling, podemos
todo da filosofia pro- constatar que, ao elaborar sua fi-
cura apenas dar expres- losofia, a noção de “Vontade” não
são a isto. (SCHELLING- era, de modo algum, algo comple-
LIBERDADE, p. 21/03 - tamente ausente nas elaborações
itálicos nossos). filosóficas por ele estudadas.
Vemos aqui Schelling anunciar A seguir, Schelling diz que foi o
seu Idealismo como resultando de Idealimo o que nos elevou à posi-
uma inversão do Espinosismo – ção de obter o primeiro conceito
quando trocamos a “substância” formal de liberdade, mas, ape-
ou a “coisa” de Espinosa pelo sar disso, diz Schelling, este ide-
“espírito”, ou pela “inteligência”, alismo ainda é incompleto, pois
a Vontade se revela, na parte não basta mostrar, como mostra
Ideal do sistema, como mais fun- Fichte, que a “atividade, vida e
damental do que o sentimento, liberdade” é tudo o que há de ver-
e até mesmo do que a inteli- dadeiramente real, mas também é
gência (Intelligenz). E Schelling preciso mostrar que tudo, a natu-
alinha, como predicados deste reza e o mundo das coisas, possui
Ser primal, os mesmos predica- a atividade, a vida e a liberdade
dos que, frequentemente, Scho- por fundamento. Daí, diz Schel-
penhauer atribui à sua Vontade ling, antecipando um movimento
metafísica. Não podemos, po- em relação a Kant exatamente
rém, deixar de dar razão a Schope- similar àquele a ser posterior-
nhauer quando ele, naquela pas- mente adotado por Schopenhauer
sagem do Parerga e Paralipomena, no apêndice “Crítica da Filosofia
afirma que estas alusões de Schel- Kantiana” de O Mundo como Von-
ling à vontade são feitas como que tade e Representação (Mundo1, p.

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570/422), que: continente, é preciso reconhecer


que Schelling, mesmo que em
meio a um sonho ou delírio, es-
Permanecerá sempre algo teve muito próximo daquilo que,
estranho o fato de que segundo o próprio Schopenhauer,
Kant, após primeiro ter constitui o ponto inicial e fun-
distinguido as coisas-em- damental de sua filosofia – pois,
si dos fenômenos apenas diz Schelling acima, trata-se de
negativamente através da transferir ou estender para o em-
sua (das coisas-em-si) in- si das coisas em geral o conceito
dependência em relação positivo do em-si que, de início,
ao tempo, e após tratar apresenta-se apenas na liberdade
a independência em re- e vontade humanas, e é exata-
lação ao tempo e a liber- mente isto o que, conforme Scho-
dade como conceitos cor- penhauer diz naquele “apêndice”
relatos na discussão me- mencionado acima, ele pretende
tafísica da Crítica da Ra- estar avançando como seu mais
zão Prática, não foi adiante importante e original acréscimo
no propósito de transfe- à, e prolongamento da, doutrina
rir este único conceito po- kantiana. Mas, continua Schel-
sitivo do em-si também ling, o panteísmo não foi des-
para as coisas; por este truído pelo Idealismo, já que,
meio teria ele se elevado a para o panteísmo tanto faz afir-
um ponto da reflexão mais mar que as coisas individuais es-
elevado, situado acima da tão na substância absoluta, e te-
negatividade que é carac- ríamos aí um panteísmo-realista-
terística de sua filosofia espinosista, quanto “afirmar que
teórica. (SCHELLING- as vontades individuais (ein-
LIBERDADE, p. 22- zelne Willen) estão na Vontade
23/04) primal (Urwillen)”, e aqui te-
ríamos um panteísmo-idealista
Mesmo aceitando aquela defesa (SCHELLING-LIBERDADE, p.
da originalidade de seu pensa- 22-23/04). Assim, diz Schelling,
mento, mesmo aceitando que, não devemos esperar que as mais
como dizia Schopenhauer naquela importantes questões sobre a li-
passagem do Parerga e Paralipo- berdade sejam resolvidas, quer
mena, é Colombo o descobridor da pelo idealismo, quer pelo rea-
América, e não algum naufrago lismo, tomados isoladamente. E
que houvesse divagado sobre este a questão mais importante acerca

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da liberdade, diz Schelling, é a Schelling o caracteriza como um


questão do Mal – pois, ou o Mal anseio (Sehnsucht), que quer dar
representa algo de positivo (e nascimento à unidade infundada,
não, tal como ocorre na maio- ao Uno, a Deus, mas que não é esta
ria das “teodiceias” tradicionais, unidade mesma:
uma mera ausência ou privação
do Bem), e neste caso o Mal te-
ria que ser colocado “no interior Daí que ele é, consi-
da substância infinita ou da Von- derado por si mesmo,
tade primal (Urwillen) mesma”, também Vontade (Wille);
ou a realidade e positividade do mas Vontade na qual não
Mal deveria, de alguma maneira, há nenhum Entendimento
ser negada, caso em que seria (Verstand), e, por esta
negado também o conceito real razão, não é uma von-
de liberdade, já que esta precisa tade completa e inde-
ser, também, liberdade para o pendente (...) Apesar
Mal (SCHELLING-LIBERDADE, disso, ele é uma Vontade
p. 23/04) de Entendimento, a sa-
Não pretendemos examinar a ber, é um anseio e desejo
maneira como Schelling procura, deste último; ele não é
através da distinção entre o Ser, uma vontade consciente,
na medida em que existe, e o Ser, mas sim uma vontade
na medida em que é mero fun- premonitória (ahnender
damento (Grund) da existência14 , Wille), cuja premoni-
resolver este grande problema do ção é o Entendimento
Mal com que se ocupa a Teodicéia. (...) Foi a partir deste
Do ponto de vista da evolução algo desprovido de En-
do pensamento do jovem Schope- tendimento (Verstandlo-
nhauer é preciso considerar que, sen) que o Entendimento,
falando deste fundamento das no sentido próprio, nas-
coisas “em Deus que não é Deus ceu. (SCHELLING-
mesmo”, ou falando da Natureza, LIBERDADE, p. 28-29/05

14 Na terceira edição (1847) de sua A Quádrupla Raiz do Princípio de Razão Suficiente Schopenhauer dirá que
esta distinção de Schelling nada mais é do que um aprofundamento da confusão, de que Espinosa também foi
vítima, relativamente ao argumento ontológico de Descartes – enquanto Espinosa teria, indevidamente, assimi-
lado a relação causa-efeito à relação fundamento-consequência, Schelling, tentando tornar mais “real” esta última
relação, teria procurado separar, em Deus, o “fundamento” da “consequência”, o que lhe permitirá falar, como
falará a seguir, de um “fundamento em Deus que não é Deus mesmo”. Nesta ocasião Schopenhauer, além de dizer
que Schelling nisto está simplesmente plagiando J.Böhme, pretende ter descoberto a fonte (os “Valencianos” , uma
seita herética do sec.II d.C.) de que se valeu o próprio Böhme. Cf.SCHOPENHAUER, A. The Fourfold Roots of the
Principle of Sufficient Reason. Hillebrand, K.(trad). London: G.Bell and Sons, 1903. p.18.

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A INFLUÊNCIA DE SCHELLING SOBRE SCHOPPENHAUER

- itálicos nossos). observações verdadeiras, Schel-


Gardiner, no artigo já mencio- ling, ao querer adaptar a essên-
nado, enfatiza, em conexão com cia atemporal do homem às con-
esta passagem das Investigações, dições de sua aparição fenome-
que o fato de Schelling falar aqui nal no tempo, acaba produzindo
de uma vontade “cega” em nada “absurdidades monstruosas”, e,
depõe contra a originalidade da de um modo geral, estas Investi-
concepção schopenhaueriana de gações de Schelling seriam apenas
vontade, já que esta vontade de uma re-elaboração (para não dizer
Schelling é completamente vol- plágio) daquilo que, em J.Böhme,
tada em direção ao Entendimento correspondia a uma intuição viva
(GARDINER, p. 19). Além e direta da verdade (MR2, p. 353-
disso, continua Gardner, apesar 354).
de Schelling ser aqui pioneiro na Em sua primeira publicação, A
afirmação da positividade do Mal, Quádrupla Raiz do Princípio de Ra-
este Mal, para ele, é apenas o mal zão Suficiente de 1813, o jovem
moral humano, e não, tal como Schopenhauer, procurando atri-
ocorrem em Schopenhauer, é algo buir à relação motivo-ação, ou à
inscrito na própria essência do Lei da Motivação, a mesma neces-
mundo (GARDINER, p. 38). De sidade que vigora nas outras três
fato, talvez pudéssemos dizer que, figuras do Princípio de Razão Su-
embora Schelling afirme a positi- ficiente, recorre, numa seção in-
vidade do Mal, ele não chega, em teiramente excluída das edições
momento algum, a afirmar, como posteriores desta obra, à doutrina
afirmará Schopenhauer, a nega- kantiana do caráter “inteligível”
tividade do Bem, o fato do Bem enquanto contraposto ao cará-
ser apenas a ausência ou priva- ter “empírico”, e, a este respeito,
ção de um Mal positivo. Ape- ele não economiza elogios a Kant
sar desta diferença, não pode ha- e a Schelling – Kant teria dado
ver dúvida alguma de que estas uma explicação desta distinção,
elaborações de Schelling, estuda- assim como da relação da liber-
das pelo jovem Schopenhauer em dade para com a natureza, que,
1812, devem ter deixado algumas diz o jovem Schopenhauer, é uma
marcas em seu pensamento filosó- das mais admiráveis peças da sa-
fico, se bem que, em suas anota- bedoria de que é capaz o espí-
ções a esta obra de Schelling, o jo- rito humano, ao passo que Schel-
vem Schopenhauer se mostre bas- ling teria dado, desta explicação
tante crítico: segundo ele, embora kantiana, uma “apresentação alta-
nela hajam, “aqui e ali”, algumas mente esclarecedora” em suas In-

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vestigações sobre a Liberdade (RAI- doutrina, Schopenhauer não rei-


ZES, p. 119-120). De fato, o leitor vindica nenhuma originalidade,
de Schopenhauer, ao deparar-se dado que ele, confessadamente,
com estas páginas (SCHELLING- a aceita integralmente, se não de
LIBERDADE, p. 49 ss./10 ss.) Schelling, ao menos de Kant, não
das Investigações em que Schelling precisamos nos deter em sua aná-
faz a apresentação da doutrina de lise. Mesmo porque, parece-nos, é
Kant (é bem verdade que, como em conexão com a leitura de outra
nota asperamente o jovem Scho- obra de Schelling, as Ideias para
penhauer, Schelling não menci- uma Filosofia da Natureza, que se
ona o nome de Kant) a respeito do encontra a principal contribuição
caráter “inteligível”, e da coexis- deste ao desenvolvimento do pen-
tência da liberdade com a neces- samento filosófico do jovem Scho-
sidade natural, não poderá deixar penhauer.
de reconhecer o quanto as expo-
sições acerca dos mesmos temas
por parte de Schopenhauer (por As ideias para uma filosofia da
exemplo, na seção 55 de O Mundo natureza de Schelling
como Vontade e Representação, as-
sim como em seus ensaios Sobre a Tal como nos informa Cartwright,
Liberdade da Vontade e Sobre o Fun- o jovem Schopenhauer, antes
damento da Moral15 ) devem a ela, e ainda de frequentar seu primeiro
o quanto os elogios, mencionados curso de filosofia, o curso de
acima, a Kant e a Schelling fei- Schulze em 1810, retirou na bi-
tos pelo jovem Schopenhauer em blioteca da Universidade de Göt-
sua tese doutoral eram realmente tingen, além do A Alma do Mundo,
justificados e sinceros. A única também as Ideias para uma Filo-
coisa que, em toda esta apresenta- sofia da Natureza16 de Schelling
ção, é rejeitado por Schopenhauer (CARTWRIGHT, p. 147, n. 21).
é que ela seja realmente de Schel- Já nos referimos ao modo como,
ling, isto é, ele incessantemente comentando o “adendo” à Intro-
acusa Schelling de estar querendo dução a esta obra, que trata da
passar como de sua autoria uma “Exposição da Ideia Universal da
doutrina que, de fato, é de Kant. Filosofia em geral” (SCHELLING-
Mas, dado que, a respeito desta NATUREZA, p.65-88), o jovem

15 SCHOPENHAUER, A. The Two Fundamental Problems of Ethics. Cartwrigh, D. e Erdmann, E.(trad.). Oxford:
Oxford Univ.Press, 2010, p. 73 ss, 183 ss..
16 SCHELLING, F.W.J. Ideen zu einer Philosophie der Natur. (2ª ed.) Landshut: P.Krüll, 1803.(SCHELLING-
NATUREZA)

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A INFLUÊNCIA DE SCHELLING SOBRE SCHOPPENHAUER

Schopenhauer entrevê como por cedimento básico da filosofia de


detrás desta exposição a intui- Schelling, e da tentativa de até
ção de sua “consciência melhor”, mesmo ridicularizá-lo, há, no en-
a intuição de nós mesmos como tanto, nesta obra de Schelling um
num estado em que o tempo, e capítulo que, parece-nos, deve ter
a distinção entre sujeito e objeto, vivamente impressionado o jovem
deixam de importar. Mas tal es- Schopenhauer – trata-se do capí-
tado, dizia lá Schopenhauer, não tulo IV, intitulado “Primeira ori-
tem nada de análogo à consciên- gem do conceito de matéria a par-
cia empírica e atual, e está para tir da natureza da intuição e do
além de toda apreensão possí- espírito humano”. Nele, Schel-
vel através de conceitos do En- ling começa dizendo que o fra-
tendimento. E, conforme vimos, casso na tentativa de explicar a
o que o jovem Schopenhauer re- força de atração (Anziehung) atra-
cusa de Schelling é a tentativa vés de causas físicas leva à con-
de colocar esta “indiferença” en- clusão de que o conceito de tais
tre sujeito e objeto como funda- forças não obtém sua certificação
mento da consciência empírica, (Beglaubigung) no interior destas
é a tentativa, segundo Schope- próprias ciências físicas, mas, sim,
naheur, levada a efeito por Schel- numa ciência “mais alta” – estas
ling neste “adendo” , de mostrar ciências físicas precisam, assim,
como este Uno, em primeiro lugar, confessar que se apoiam em prin-
passa perpetuamente como o infi- cípios que lhe são fornecidos por
nito no finito e, em segundo lu- outra ciência. E, no entanto, a im-
gar, ao mesmo tempo volta como pressão de que as forças de atra-
o finito no infinito e, por último ção e repulsão pertencem à essên-
e em terceiro lugar, mantém-se cia (Wesen) da matéria já deveria,
eternamente numa identidade e diz Schelling, ter feito com que
unidade absoluta consigo mesmo. os investigadores da natureza se
Isto tudo, conclui o jovem Scho- perguntassem sobre a origem do
penhauer, não passa de uma pa- conceito de matéria – pois “as for-
ródia da “santíssima trindade” ças (Kräfte) não são algo que acon-
(1-Deus-filho; 2-Espírito Santo;3- teça de ser apresentável (darstell-
Deus-pai), cuja necessidade não bar) na intuição” (SCHELLING-
pode ser demonstrada, e que é ob- NATUREZA, p. 299-300). Mas, a
tida mediante a abolição do prin- confiança nos conceitos de atração
cípio de não-contradição (MR2, p. e repulsão é tal que eles precisam
360-361). ser, senão objetos (Gegenstände)
Apesar desta rejeição do pro- da intuição, ao menos condições

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de possibilidade de todo conhe- uma realidade apreendida, ou


cimento objetivo. Trata-se, por- produzida, em outra instância –
tanto, diz Schelling, de uma dis- daí Schelling dizer, a seguir, que
cussão transcendental do conceito os homens, cuja força do espírito
de matéria em geral, que co- é toda voltada à faculdade de fa-
meça por perguntar: “de onde zer conceitos e de analisar concei-
vem o conceito de força atrativa tos, não conhecem nenhuma rea-
e repulsiva?”: lidade (Realität), de modo que a
própria pergunta a respeito desta
lhes parece sem-sentido. E quem
Dos raciocínios (Schlüs- não conhece o real (Reales) em
sen), responder-se-á tal- si e fora de si, quem apenas vive
vez, e com isto se acredita em, e joga com, conceitos, aqueles
ter posto fim à questão. O cuja existência própria é apenas
conceito de força eu devo, um pensamento embaçado (mat-
é claro, aos raciocínios ter Gedanke), estes, diz Schelling,
que fiz. Só que conceitos são como cegos que pretendem
são meras sombras projeta- falar das cores; toda a realidade
das (Schattenrisse) da reali- comportada pelos meros conceitos
dade. Eles compõem uma lhes advém da intuição (Anschau-
faculdade útil, o Entendi- ung). Se o todo de nosso saber re-
mento, que só entra em cena pousasse, continua Schelling, em
quando a realidade já está conceitos, então nunca podería-
aí, e que só compreende, mos nos convencer a respeito de
agarra/conceitua (be- alguma realidade – mas afirma-
greift) e fixa aquilo que só mos a matéria como existindo re-
uma (outra) faculdade cri- almente fora de nós, e como com-
adora pôde produzir em portando as forças de atração e re-
seu lugar.(SCHELLING- pulsão:
NATUREZA, p. 301 - itá-
licos nossos)
Ela (a matéria) não ape-
nas existe para nós real-
Ora, Schelling parece aqui carac- mente, como também é
terizar os conceitos de uma ma- imediatamente dada sem
neira muito semelhante àquela a a mediação de conceitos,
ser posteriormente adotada por sem nenhuma consciên-
Schopenhauer – os conceitos, pró- cia de nossa liberdade. E
prios a uma faculdade útil, são nada de outro nos chega
sombras projetadas a partir de imediatamente, a não ser
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A INFLUÊNCIA DE SCHELLING SOBRE SCHOPPENHAUER

através da intuição, e, por tam ter esgotado a es-


isso, a intuição é o que há sência (o fundo) do ser-
de mais alto em nosso co- homem quando remon-
nhecimento.(SCHELLING- tam tudo em nós ao pen-
NATUREZA, p. 303 - itá- sar (Denken) e ao repre-
licos nossos). sentar (Vorstellen). Só
que não se compreende
É na intuição, diz Schelling, que como um tal ser, que ori-
deve ser encontrado o funda- ginalmente é apenas pen-
mento pelo qual aquelas forças sante e representante, po-
pertencem à matéria, ou, dito de deria ter uma realidade
outro modo, o fundamento pelo fora de si. Para um tal
qual o objeto da intuição externa ser o todo do mundo real
se apresenta como o produto des- (que ainda existe ape-
tas forças, que passam assim a nas em suas representa-
ser entendidas como condições ções) seria um mero pen-
de possibilidade desta intuição samento. Que algo exista,
externa, e explica a necessidade e que exista independen-
com a qual as pensamos. Mas, temente de mim, isto eu
pergunta Schelling, o que é a in- só posso saber na medida
tuição? Diz-se que a intuição em que eu simplesmente
segue-se a uma impressão (Ein- sinto necessário me repre-
druck) externa, mas, continua sentar este algo, e eu não
Schelling, seria melhor perguntar: poderia sentir esta neces-
como é possível haver uma im- sidade sem, ao mesmo
pressão sobre nós? Mesmo a massa tempo, sentir que sou ori-
(Masse) morta não pode ser atu- ginariamente livre em re-
ada (bewirkt) sem que ela atue de lação a todo represen-
volta (zurückewirke). Mas em nós tar, e que o representar
nada atua, sem que essa atuação não constitui o meu Ser ou
ou efeito chegue à consciência, de essência (Wesen) mesma,
modo que esta impressão não ape- mas, sim e ao contrá-
nas incide sobre uma atividade rio, é apenas uma modi-
originária em nós, mas esta ativi- ficação (Modifikation) de
dade mesma precisa permanecer meu Ser. (SCHELLING-
livre para elevar esta impressão à NATUREZA, p. 304-305 -
consciência. Daí, diz Schelling: Itálicos nossos).

Há filósofos que acredi- Apenas uma atividade livre


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em mim, enquanto contraposta como outro, é outro, e o que é ou-


àquilo que livremente sobre mim tro, é intuído como outro. Daí,
atua, comporta, diz Schelling, a continua Schelling:
propriedade da efetividade – é só
na “força originária de meu Eu” Todo o pensar e represen-
que irrompe a “força do mundo tar em nós é necessaria-
externo”. Mas, por outro lado, e mente precedido por uma
tal como a luz só se torna cor nos atividade originária que,
corpos sobre os quais incide, ape- por anteceder todo o pen-
nas nos objetos esta força originá- samento, é, nesta medida,
ria em mim se torna um pensar, simplesmente indetermi-
um representar auto-consciente. nada e ilimitada. Apenas
Assim, a consciência e a crença após algo ser-lhe contra-
num mundo externo se dão con- posto, torna-se ela uma
juntamente com a consciência e atividade limitada e, por
crença em mim mesmo, e vice- isso, determinada (pensá-
versa, e juntas constituem o ele- vel). Fosse esta atividade
mento do todo de nossa vida e de nosso espírito original-
atividade. Há homens, continua mente limitada (tal como a
Schelling, que acreditam que nos imaginam os filósofos que
certificamos a respeito da reali- remontam tudo ao pen-
dade apenas através de uma pas- sar e representar), então
sividade absoluta, mas, de fato, e o espírito nunca poderia
como mostra a experiência, nos sentir-se limitado. Ele só
momentos mais altos da intui- sente sua limitação na me-
ção o conhecer e o usufruir (Ge- dida em que, ao mesmo
nusses), a atividade e a passivi- tempo, sente sua originá-
dade, ou sofrimento (Leiden), es- ria ilimitação.
tão numa completa atuação recí- Sobre esta atividade ori-
proca, de modo que, que eu so- ginária agora atua (...)
fra, isto eu só sei na medida em uma (outra) atividade que
que sou ativo, e, que eu seja ativo, lhe é contrária, e que
isto só sei na medida em que sofro. até agora é igualmente
Quanto mais ativo o espírito, diz completamente indeter-
Schelling, mais alta a sua sensibi- minada, de modo que te-
lidade (Sinn), e vice-versa, quanto mos duas atividades que
mais embotada está a sensibili- se contrapõem mutuamente
dade, mais rebaixado se encontra como condições necessárias
o espírito. Aquilo que é intuído da possibilidade de uma
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A INFLUÊNCIA DE SCHELLING SOBRE SCHOPPENHAUER

intuição. De onde pro- encontram um com o outro no co-


vém esta atividade con- nhecer e na intuição, ou então ele
trária? (SCHELLING- está rejeitando que tal coisa possa
NATUREZA, p. 306-307 ser explicada – é assim que, em
- itálicos de Schelling). conexão com o Sistema do Idea-
lismo Transcendental, e a respeito
Agora vemos em que sentido o da afirmação inicial de Schelling
pensar e representar não cons- no sentido de que, no conhecer,
titui, conforme dizia Schelling o subjetivo e o objetivo precisam
acima, a essência do ser-homem “concordar” (Übereinstimmung)
– pois todo representar é um re- um com o outro (SCHELLING-
presentar determinado e limitado, SISTEMA, p. 09), Schopenhauer
determinação e limitação que, diz que tais expressões são sem-
dado o lema espinosista de que sentido, pois “um objetivo que
“toda determinação é negação”, não concorde com um subjetivo”
só são possíveis através do, e em é algo tão impossível quanto um
oposição ao, indeterminado e ili- círculo triangular (MR2, p. 378).
mitado. Mas, a seguir, e respon- Mas, continuando com Schelling,
dendo à última questão, Schelling este diz que:
diz que este é um problema que
precisamos indefinidamente ten- Como uma primeira ten-
tar resolver, mas que nunca re- tativa de definir este “x”,
solvemos de fato, de modo que o conceito de força (Kraft)
o todo de nosso conhecimento é logo se apresenta. Já os ob-
apenas uma contínua aproxima- jetos mesmos só podem ser
ção deste “x”, ao que o jovem considerados como produtos
Schopenhauer observa que apenas de forças, e com isso desa-
o conhecimento filosófico consiste parece automaticamente a
nesta aproximação, e que: “Neste quimera (Hirnegespinst)
ensaio há em geral muita coisa boa da coisa-em-si, que era su-
e verdadeira. Mas tudo isto não posta ser a causa de nos-
poderia ser reduzido à afirmação sas representações. Em
de que nossa consciência neces- geral, aquilo que é capaz
sariamente se divide em objeto e de atuar sobre o espírito,
sujeito?” (MR2, p. 363). Scho- (precisa atuar) como este
penhauer, nesta ocasião, parece mesmo (espírito) atua, ou
não se dar conta de que Schelling ter uma natureza aparen-
está justamente procurando expli- tada à (natureza) dele. É
car como é que sujeito e objeto se necessário, portanto, re-
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presentar a natureza como ferente do espírito atue sobre ele.


um produto de forças, Deste modo, a intuição do objeto
pois apenas a força é aquilo é resultante da contraposição en-
que há de não-sensível tre a “força do Espírito” e a força
(Nichtsinnliche) nos obje- “física” que, ultimamente, é apa-
tos, e apenas aquilo que é rentada à força do Espírito. E, no
análogo ao espírito pode, interior do próprio espírito, o que
este espírito, contrapor a há de mais aparentado à força, do
si mesmo.(SCHELLING- que a Vontade?
NATUREZA, p. 308 - itá- Mas é curioso que, a respeito
licos nossos). destes desenvolvimentos da refle-
xão schellinguiana, o jovem Scho-
penhauer inicialmente a recuse,
Ora, aqui Schelling fala do ob- recusa que, no entanto, inequivo-
jeto da intuição empírica, da ma- camente prenuncia a descoberta
téria, como o produto de forças de sua filosofia - é assim que ele
que, para constituírem aquele “x”, anota à margem da passagem de
para constituírem aquela ativi- Schelling acima:
dade que se contrapõe à ativi-
dade originária ilimitada e inde- Se, ao invés de coisas-em-
terminada do espírito, precisam si mesmas, tivermos forças-
ser “aparentadas” a este espírito, em-si mesmas, isto não nos
precisam, dado que elas atuam so- ajudará a avançar – A
bre o espírito, ser elas mesmas força é tão pouco o supra-
forças “do espírito”. É apenas sensível que, antes, ela é
devido àquilo que, no objeto, há apenas um conceito abs-
de menos sensível, de mais es- trato, retirado do sensí-
piritual, que este objeto “atua” vel, e que é apenas figura-
sobre o espírito. Com isto, diz damente transferido para
Schelling, desaparece o famoso o supra-sensível que deve
problema17 acerca da coisa-em-si ser. (MR2, p. 364 - itálicos
kantiana como causa da “matéria” de Schopenhauer)
(enquanto contraposta à forma)
do fenômeno – já não será preciso O jovem Schopenhauer recusa,
supor que algo essencialmente di- nesta ocasião, a sugestão de Schel-

17 A possível aplicação transcendente, por parte de Kant, da categoria da causalidade na concepção da coisa-em-
si como causa da matéria sensível dos fenômenos foi objeto de inúmeras críticas por parte de Jacobi, Schulze, e do
próprio Schopenhauer quando jovem (MR1, p.61, 104; MR2, p. 270, 290-294). Pode-se dizer que esta “polêmica
acerca da coisa-em-si” esteve na origem, tanto do Idealismo alemão, como da própria filosofia de Schopenhauer.

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A INFLUÊNCIA DE SCHELLING SOBRE SCHOPPENHAUER

ling já que, para ele, as “forças” (1814-1818) a esta fase que es-
nada mais são do que marcas tamos considerando (1811-1813),
ou sinais que fazemos para de- manuscritos onde o jovem Scho-
notar regularidades observadas penhauer procede a uma re-
entre fenômenos – é assim que, avaliação do status metafísico das
numa anotação anterior a esta, “forças” empregadas pela ciência,
o jovem Schopenhauer recusa a é plausível supor que estas suges-
sugestão de Schelling no sen- tões de Schelling tenham contri-
tido de que a origem do con- buído decisivamente para a sua
ceito de força está “para além de descoberta de que a Vontade, apa-
toda a consciência como a condi- rentada à “Força”, seja aquilo em
ção de sua possibilidade”, e ex- relação ao qual os objetos da in-
plica o fato deste conceito “não tuição empírica sejam objetivações.
ser apresentável em nenhuma Vimos, anteriormente, Schope-
intuição”, como dizia Schelling nhauer recusar, vigorosamente, a
acima, como significando ape- sugestão de Schelling no sentido
nas que seu objeto é apenas su- de que o sujeito, ele próprio, po-
posto em favor do avanço do deria tornar-se objeto, ou de que
conhecimento das cadeias cau- pudesse haver um “tornar-se ob-
sais, como uma marca que fa- jeto do subjetivo” – e agora ve-
zemos na esperança de desfazê- mos Schelling sugerir que o que
la, e de empurrá-la sempre um se torna objeto nestas objetiva-
pouco mais para adiante (MR2, ções não é o sujeito, mas sim uma
p. 363). Desta forma, e como até “força do espírito”, força que,
então vinha incansavelmente cri- neste sujeito, só pode ser a Von-
ticando no procedimento da filo- tade.
sofia de Schelling, o jovem Scho- Numa nota, acrescentada em
penhauer está aqui afirmando que 1849, a um de seus manuscritos
o conceito de “força”, tal como o de 1814, o maduro Schopenhauer
conceito de “coisa”, é inexoravel- afirma que estas “folhas, escritas
mente ligado à consciência em- em Dresden nos anos 1814-1818,
pírica e sensível, de modo que mostram o processo fermentativo
transferi-lo, de maneira literal e de meu pensamento, a partir do
não-metafórica, ao supra-sensível, qual, naquela ocasião, o todo de
à sua “consciência melhor”, é um minha filosofia emergiu” (MR1, p.
procedimento transcendente, que 122) – trata-se da ideia de que o
viola as interdições kantianas. corpo é a objetidade da vontade,
Porém, e conforme mostram ou é a vontade tornada objeto visí-
seus manuscritos posteriores vel, ou é a aparição fenomênica da

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vontade (MR1, p. 115, 121, 130, jeto, e embora compartilhasse com


137, 146, 156), de que entre a von- Schelling também a constatação,
tade e o corpo não há uma relação decorrente desta intuição, do ca-
de causalidade, mas sim de iden- ráter vazio, irreal e meramente
tidade (MR1, 171), enfim, trata-se aparente da experiência sensí-
da ideia que, um pouco mais tarde vel e temporal, o jovem Schope-
(1817), Schopenhauer designará nhauer, no entanto, e ao contrário
como a “pedra angular” de sua fi- de Schelling, rejeitava que tal in-
losofia (MR1, p. 490-491). Parece- tuição supra-sensível pudesse ser
nos que a sugestão de Schelling, posta como fundamento da intui-
no sentido de que “já os objetos ção sensível e empírica, rejeitava a
só podem ser considerados como tentativa transcendental de colo-
produtos de forças”, contribuiu car a primeira intuição como con-
decisivamente para a descoberta dição de possibilidade da última.
original de Schopenhauer a res- E isto porque, como incansavel-
peito do corpo como produto da mente denuncia o jovem Schope-
Vontade. nhauer nestes anos, qualquer rela-
ção que se queira estabelecer entre
estes dois mundos precisará valer-
se de relações (temporais, causais,
Conclusão
fundamento-consequência, etc.)
Vimos que, desde o início de sua válidas apenas para o mundo sen-
elaboração filosófica (1811-1813), sível, de modo que tais tentativas,
o jovem Schopenhauer, ainda im- ao aplicar sobre o mundo supra-
buído do, como o chama Rappa- sensível, sobre a sua “consciência
port, “fenomenalismo cético” de melhor”, relações e categorias re-
seu professor Schulze (RAPPA- tiradas do mundo sensível, estará
PORT, p. 127), rejeita o prin- fazendo um uso transcendente
cipal do empreendimento filosó- destas categorias, uso este já de-
fico a que se dedicava Schelling – monstrado por Kant como equi-
embora compartilhasse com este vocado e impossível.
a mesma intuição a respeito do Para além desta discordância
mundo supra-sensível, chamado fundamental de Schopenhauer
por ele então de “consciência para com a pretensão fundacio-
melhor”, um estado de consci- nista da filosofia de Schelling, o
ência em que, seja o Eu, seja que procuramos descortinar fo-
o mundo, se apresentam como ram temas, presentes na obra de
atemporais, e como não compor- Schelling estudadas pelo jovem
tando a distinção sujeito x ob- Schopenhauer, que pudessem ter

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A INFLUÊNCIA DE SCHELLING SOBRE SCHOPPENHAUER

contribuído para o desenvolvi- é emprestada pela intuição, que o


mento filosófico deste último. A real é apreendido por esta intui-
respeito da obra de Schelling onde ção de forma completamente in-
normalmente se vê as maiores an- dependente de qualquer conceito,
tecipações da filosofia de Schope- etc., chegando mesmo Schelling,
nhauer, a respeito das Investiga- ao final, a concluir que “(...) a
ções Filosóficas sobre a Essência da intuição não é, como muitos pre-
Liberdade Humana, constatamos tensos filósofos imaginam, o mais
que, embora Schelling aí avance baixo estágio, mas sim o mais
ideias (como a da Vontade como alto (Höchste) estágio do espírito
o Ser primal, e da liberdade como humano, é aquilo que propria-
o aspecto positivo da coisa-em-si mente constitui sua espirituali-
kantiana, assim como sua expo- dade (Geistigkeit)” (SCHELLING-
sição da teoria kantiana do cará- NATUREZA, p. 312). Mesmo sem
ter “inteligível”) que inequivoca- poder examinar suficientemente
mente deixaram marcas no pensa- a questão aqui, ousaríamos di-
mento de Schopenhauer, este tem, zer que é justamente esta valori-
no entanto, razão quando afirma zação da intuição (e uma conse-
que tais ideias são aí avançadas quente desvalorização do pensa-
por Schelling de maneira hesi- mento meramente conceitual), o
tante e nebulosa, como que num que Schopenhauer considera mais
estado quase sonambúlico. atraente na filosofia de Schelling,
Mas, mais do que estas alu- enquanto contrastada à de Fichte
sões do “naufrago” Schelling, o e, sobretudo, de Hegel, o que ex-
que nos pareceu mais importante plica, talvez, aquele caráter mais
como contribuição de Schelling ameno e contido de suas críticas
ao desenvolvimento futuro do a Schelling, enquanto compara-
pensamento filosófico de Schope- das às que ele endereça aspera-
nhauer foram ideias, que destaca- mente a Fichte e Hegel. Se, tal
mos acima, de seu Ideias para uma como pretende Welchman, o que
Filosofia da Natureza – nesta, o jo- Schopenhauer rejeita na “intuição
vem Schopenhauer viu Schelling intelectual” de Schelling não é
qualificar os conceitos como som- a sua transcendência, não é sua
bras projetadas de uma realidade pretensão metafísica de acesso às
apreendida ou produzida em ou- coisas-em-si-mesmas, mas sim a
tra instância, a saber, na intuição. sua dependência do pensamento
Ele viu Schelling afirmar que toda conceitual envolvido no “fato (mo-
realidade comportada por um ral) da Razão”, próprio a todos os
conceito é uma realidade que lhe seres racionais puros, detentores

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ISSN: 2317-9570
HELIO LOPES DA SILVA

de conceitos cuja realidade supos- nos sensível nestes objetos, forças


tamente prescinde de qualquer estas ultimamente aparentadas às
apelo à intuição (WELCHMAN, “forças” do próprio espírito, de
p. 07 ss), então vemos que, di- modo que os objetos materiais são
ante das passagens das Ideias para como que aparições sensíveis de for-
uma Filosofia da Natureza discu- ças espirituais não-sensíveis, são es-
tidas acima, a rejeição de Scho- tas sugestões o que nos pareceu
penhauer à “intuição intelectual” anunciar diretamente a inovação
de Schelling deveria ter sido bem de Schopenhauer relativamente
menor do que aparentemente foi aos corpos materiais como objeti-
– pois aí, e como vimos, Schel- vações da Vontade. Vimos o jovem
ling explicitamente nega que os Schopenhauer rejeitar, desde suas
conceitos possam comportar qual- críticas à filosofia da identidade
quer realidade independente da sujeito-objeto de Schelling, a su-
que lhe é fornecida pela intuição. gestão deste último no sentido de
De qualquer forma, ao conectar que o sujeito poderia apresentar-
explicitamente, e como vimos, sua se (também a si mesmo) como
“intuição intelectual” à autono- objeto – para o jovem Schope-
mia prática dos puros seres raci- nhauer, o fato de não haver, em
onais kantianos, Schelling teria, sua “consciência melhor”, tal dis-
parece, dificuldades na acomoda- tinção entre sujeito e objeto em
ção destas ideias avançadas neste nada contribui para o esclareci-
capítulo IV de suas Ideias para uma mento da distinção sujeito-objeto
Filosofia da Natureza, e merece- presente na, e de fato idêntica à,
ria as críticas de Schopenhauer no consciência empírica. Mas, estas
sentido de que, tal como as diva- últimas passagens do cap.IV das
gações do naufrago, falta-lhe cla- Ideias para uma Filosofia da Natu-
reza e consistência. reza alude à possibilidade de, se
Mas foi, sobretudo, a sugestão não o sujeito, ao menos algo pre-
de Schelling, avançada acima, no sente neste sujeito, ou neste espí-
sentido de que o objeto material rito, é que se torna objeto – e esta
real da intuição empírica só atua ‘força do Espírito” , cuja aparição
sobre o espírito (só é, afinal, in- visível produz o objeto da intui-
tuído por este espírito) porque ele ção empírica, que é então objetiva-
mesmo é resultante de “forças”, ção desta força, não pode ser outra
forças que são o que há de me- senão a Vontade.

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ISSN: 2317-9570
A INFLUÊNCIA DE SCHELLING SOBRE SCHOPPENHAUER

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ISSN: 2317-9570
HELIO LOPES DA SILVA

Recebido: 25/05/2019
Aprovado: 16/07/2019
Publicado: 17/11/2019

220 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 189-220
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v7i2.24797

De Dicto and De Re: A Brandomian Experiment on


Kierkegaard
[De Dicto e De Re: um Experimento Brandomiano sobre Kierkegaard]

Gabriel Ferreira da Silva*

Abstract: The recent historical turn within the analytic tradition


has experienced growing enthusiasm concerning the procedure of
rational reconstruction, whose validity or importance, despite its
paradigmatic examples in Frege and Russell, has not always enjoyed
a consensus. Among the analytic philosophers who are the fron-
trunners of such a movement, Robert Brandom is one of a kind: his
work on Hegel as well as on German Idealism has been increasing
interest in, as well as awareness of, Hegel’s contributions to some
current problems in that tradition. Thus, this work aims to show
Brandom’s methodology of rational reconstruction, based on the
distinction between de dicto and de re inferences. Afterwards, I turn
to Kierkegaard in order to make explicit some of his ontological
commitments by applying Brandom’s approach as a valuable tool for
doing history of philosophy.
Keywords: Kierkegaard, Brandom, Rational Reconstruction, Onto-
logy, Metaphilosophy.

Resumo: A recente virada histórica no interior da filosofia analítica


tem contribuído para o crescimento no interesse acerca do procedi-
mento da reconstrução racional, cuja validade ou importância, a des-
peito de ter exemplos paradigmáticos em Frege e Russell, não foi sem-
pre um consenso. Entre os filósofos analíticos pioneiros nesse movi-
mento, Robert Brandom merece especial destaque: seu trabalho sobre
Hegel e o Idealismo Alemão tem despertado a atenção tanto sobre a
exegese do filósofo de Jena, quanto acerca de suas possíveis contribui-
ções para problemas atuais. Assim, este trabalho tem como objetivo
expor o método de Brandom baseado na distinção entre inferências
de dicto e de re. Num segundo momento, faço um exercício de aplica-
ção de tal método a Kierkegaard, explicitando seus comprometimen-
tos ontológicos evidenciando tal abordagem como uma valiosa ferra-
menta para a história da filosofia.
Palavras-chave: Kierkegaard, Brandom, Reconstrução Racional, On-
tologia, Metafilosofia.

* Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2255-5173. E-mail: gabrielferreira@unisinos.br.

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1 - Introduction problems by philosophers from


the past. Starting with different
Analytic philosophy had a self- modes of engagement with Kan-
image as a trend or philosophi- tian philosophy by analytic philo-
cal perspective that was not only sophers like Sellars, Strawson and
non-historic, but even opposed to Rawls, but also with Descartes,
any interference of a historical ap- Leibniz, Hume, and even ancient
proach to philosophy (see BEA- philosophy, analytic philosophers
NEY, 2016; RECK, 2013). Howe- have been increasing the place
ver, such a view has been chal- and importance for dialogue with
lenged in different ways; among the history of philosophy. It is in
them, I would like to point two this scenario that the “Pittsburgh
that are especially relevant for School,” led by Robert Brandom
my purposes here. Firstly, as it and John McDowell, moves into
is now widely acknowledged, the what Paul Redding calls “Analytic
quarrel between Dummett and Neo-Hegelianism” (2011). Bran-
Sluga on the influences of previ- dom himself presents some as-
ous philosophers –mainly Lotze– pects of his philosophical contri-
on Frege, as well as Soames’s book butions in terms of an approxi-
and the debates after it, revea- mation to Hegel. In fact, quo-
led new facets of the then stan- ting Richard Rorty, Brandom says
dard narratives about analytic that his work, as well as Mc-
philosophers. As Beaney (2016) Dowell’s, helps to push analy-
points out, even the view about tic philosophy from its Kantian
some of the archetypical figures phase into its unavoidable Hege-
of the anti-historical approach, lian phase (BRANDOM, 2011).
like Frege himself, but also Rus- From a historical point of view,
sell and Wittgenstein, have chan- such a move is quite interesting
ged since then. The second aspect if we consider that a major part
where we can see the “historical of contemporary philosophy rai-
turn” in analytic philosophy is not sed upon the explicit and deli-
related to what we could call a his- berate rejection of Hegel’s philo-
torical sensibility when it comes sophy and his epigones. Almost
to interpretation of now canonical every aspect of the philosophy of
analytic philosophers like Frege the second half of 19th century
or Russell—which is a historical and beginning of 20th was direc-
enterprise in itself—but in the tly or indirectly influenced by the
reassessment of possible contri- refusal of Absolute Idealism and
butions to current philosophical its consequences not only for logic

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and natural sciences, but also for ons between the genetic and the
history, sociology and culture. Yet, critical method or the differenti-
despite the specific importance of ation between discovery and jus-
that revival of philosophers from tification. All of them are con-
the past, what is particularly no- ditions of possibility of a “redes-
teworthy is the progressive ack- cription” or “reorganization” of a
nowledgement of the procedure given body or set of claims aiming
of rational reconstruction as a va- to make explicit its sometimes-
lid, justified and profitable way of hidden internal logic. On the
doing philosophy even inside the other hand, the logicist project,
analytic tradition. which assumes the idea that one
Following Beaney’s definition, set of elements can be reconcei-
“A rational reconstruction of a ved in terms of another (numbers
(purported) body of knowledge in terms of extensions of concepts,
or conceptual scheme or set of for example) is also a type of ratio-
events is a redescription and reor- nal reconstruction2 ; Carnap’s Auf-
ganization of that body or scheme bau is another. Frege himself is
or set that exhibits the logical absolutely committed to the prin-
(or rational) relations between ciple, exposed in the Grundlagen,
its elements” (BEANEY, 2013, p. that “There must be a sharp sepa-
253).1 In modern philosophy, its ration of the psychological from
roots can be broadly found in the logical, the subjective from the
Neo-Kantianism and in logicism, objective” (FREGE, 1997, p. 90).
which is itself another interesting However, because rational re-
sign of proximity between the two construction is a philosophical
philosophical trends in the 19th procedure that focuses on the in-
century. On the one hand, the dependence and precedence of
distinction between quid juris and the logical validity and structure
quid facti is crucial to Kant and over the psychological dimension
his followers. Such a differenti- of a set of claims, it is totally justi-
ation was reworked and presen- fied when it comes to taking such
ted under various other terms, a set or body of claims, like the
like Lotze’s distinction between set of claims of a third person
genesis (Genese) and validity (Gel- or even a philosopher from the
tung), or Windelband’s distincti- past. In fact, once again, even

1 The general reconstruction presented in the next paragraphs are drawn from BEANEY, 2013.
2 Like Beaney points out, despite Frege uses the term “reduction”, it is a sort of rational reconstruction (2013,
p. 235).

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inside the analytic tradition, we sistent with his main doc-


have examples of such exercises in trines, before those doctri-
Russell’s book on Leibniz (A Cri- nes themselves are subjec-
tical Exposition of the Philosophy ted to a critical scrutiny.
of Leibniz, 2005) and Dummett’s (RUSSELL, 2005, xx)
work on Frege (Frege: Philosophy
of Language, 1973), not to mention We arrive here at a very inte-
Strawson’s on Kant. In Russell’s resting metaphilosophical point.
own words, in the scope of ratio- In reconstructing an author’s
nal reconstruction thought, we are not simply ex-
tracting ideas from the text but
We may even learn, by ob- doing at least two creative proces-
serving the contradictions ses. Firstly, when we talk about
and inconsistencies from “reconstruction” we should re-
which no system hitherto ally mean it. The interpreter-
propounded is free, what reconstructor is not only unders-
are the fundamental ob- tanding theses or ideas from a
jections to the type in previously given set of claims,
question, and how these but is actively suggesting a dif-
objections are to be avoi- ferent composition or structure
ded. But in such inqui- for that set of claims that could
ries the philosopher is no be, eventually, for the sake of an
longer explained psycho- argument, for instance, even bet-
logically: he is examined ter than the original made by the
as the advocate of what he author himself. Of course, such
holds to be a body of phi- meaning of reconstruction pre-
losophic truth. By what supposes the possibility of deta-
process of development chment of the rationale from the
he came to this opinion, original form and frame. But such
though in itself an impor- presupposition is the very basis
tant and interesting ques- of rational reconstruction and is
tion, is logically irrelevant usually not so hard to defend; suf-
to the inquiry how far fice it to say that the same pre-
the opinion itself is cor- supposition is being held when it
rect; and among his opi- comes to the translation of a sta-
nions, when these have tement or argument to a symbolic
been ascertained, it be- language.
comes desirable to prune The second and, for my purpo-
away such as seem incon- ses here, the most important crea-
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tive aspect of rational reconstruc- tand his project, it is important to


tion is the procedure of ascrip- know that it was designed against
tion. In a rational reconstruction, the Aristotelian model taught at
the interpreter is not being me- La Flèche, which takes us to other
rely prompted by a given work proponents of similar candida-
(cf. BEANEY, 2013, p. 253), but is tes – like Gassendi and Galileo,
actively ascribing inferential pro- as well as to Aristotle himself in
positions to an author. And here order to understand and evalu-
we are at the very tensional point ate how Descartes’ thoughts are
regarding an approach that wants good against their self-imposed
to be both historically informed aim. But, once again, why stop
and coherent and philosophically here? Garber reminds us that Des-
relevant. Like Beaney says, “a ra- cartes project was also designed
tional reconstruction is better the against the whole social, theolo-
more it is historically informed, gical and university system ba-
and vice versa; so that ideal work sed on authority and it is really
in history of philosophy combines helpful to know its elements and
both.” (BEANEY, 1996, p. 3)3 . structures. Well, why, then, stop
Of course, that is a regula- here? It would be really useful
tive ideal which presents many to know about the Church de-
obstacles and can be reached pendence on some views based
only to varying degrees. We can on an Aristotelian metaphysics.
have a glimpse of such difficul- Garber’s example can be puzz-
ties in Daniel Garber’s example ling because it is very justifiable
of reading Descartes’ Meditations and, actually, it is justified for me,
(2005). Everybody knows that even though, as Garber says, “I
its metaphysics is supposed to be can see certain readers becoming
the ground of a broader project more and more impatient: where
for Descartes’ system of sciences. is the philosophical interest in all
Thus, it should be read together of this?” (GARBER, 2005, p. 138)
with his other works having in I certainly don’t intend to pre-
mind his analogy of a tree and its sent any final solution to such a
branches. But, like Garber says, problem. However, I do think
why stop here? To fully unders- that Brandom’s approach to his-

3 Thus, I can see no reason for identifying Rational Reconstruction and Appropriationism as Mercer (2019, p.
30) does. Of course, a deeper engagement with her thesis would demand another paper, but I think it is a defen-
sible position to say that GTRC principle can include what (logically) follows from a statement; in other words, to
understand what a philosopher is saying can include its inferential consistence, even though such inferences were
not fully explicit.

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tory of philosophy can be seen as a how reason works but provides a


good tool to deal with it. To some tool to evaluate philosophical po-
extent, it is what Brandom does sitions and commitments.
when he turns to Kant, Frege, Hei- It is important to see that it is
degger and, mainly, Hegel. But not necessary that one commits
more than that, Brandom’s way himself to Brandom´s inferentia-
of dealing with philosophers from lism from cover to cover. Consi-
the past is also a device to expand dered in itself, inferentialism is
our understanding of them. a view about what language is
and how it works, i. e. through
the process of making inferences
rather than representations (as a
2 - History of Philosophy De
representationalist would argue).
Dicto and De Re
However, it is fundamental to see
the importance of making mate-
In order to fully understand Bran-
rial inferences and what it means
dom´s approach, we need to ex-
concerning philosophical commit-
plore a bit of its background
ments. For the inferential model,
which is rooted on a concept of ra-
“to be rational is to be a producer
tionality which, at the same time,
and consumer of reasons: things
provides the foundations for his
that can play the role of both pre-
inferentialism. In the Introduc-
mises and conclusions of inferen-
tion of TMD, Brandom presents
ces. So long as one can assert and
five models of rationality (logical,
infer, one is rational” (TMD, 6). It
instrumental, translational, infe-
means that to be rational means
rential, and historical). The dis-
to be able to articulate conceptual
tinctive mark of the first two is
contents in material, rather than
that they see rationality “as being
logical, inferences like “If A is at
a matter of the structure of re-
the right of B, B is at the left of
asoning rather than its content”
A”4 .
(TMD, 4). Instead, the last th-
If we accept such a core infe-
ree understand being rational as
rentialist view, we can unders-
a matter of what makes a proposi-
tand how Brandom develops such
tion interpretable or playing a role
a view as a device for rational in-
in a material inference. For Bran-
terpretation. If rationality is inhe-
dom´s purpose -and mine- the in-
rently inferential, conceptual in-
ferential model not only explains

4 As Brandom says, the inferential incorporates the logical and the interpretational models, since logic does not
define what rationality is, but makes it possible for us to express our commitments and its structure.

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terpretation can be seen not only Q Ps


as a matter of making more or less
explicit what is hidden somehow Exs.:
in a concept or a set of concepts,
(a) Gabriel believes that Mario
judgements and arguments, but
considers Brentano a great
also as a matter of drawing infe-
philosopher.
rences from them. In Brandom’s
words, conceptual interpretation (b) Gabriel thinks that Ernesto
under an inferential role is “the agrees with Mario about the
ability to distinguish what follows content of the former exam-
from a claim, and what would be ple.
evidence for or against it, what
Where the main parts are verbs
one would be committing oneself
like believe, hopes, thinks and what
to by asserting it, and what could
literature usually calls the “that
entitle one to such a commitment”
clause,” followed by a proposi-
(TMD, 95).
tion.
Brandom presents, then, both
In order to interpret conceptual
in Making it Explicit and in Ta-
content and ascriptions in this
les of the Mighty Dead, two major
way, Brandom reminds us that we
ways of doing that, namely, what
must always appeal to a context,
he calls de dicto and de re inferen-
“for the inferential significance of
tial interpretations. The distinc-
a claim –what follows from it– de-
tion traces back to Quine (1956)
pends on what other claims one
and his account on propositional
can treat as auxiliary hypotheses
attitudes which is, to some extent,
in extracting those consequences”
what we are dealing with. Under
(TMD, 95). When it comes spe-
such inferentialist point of view,
cifically to such ascriptions rela-
conceptual or textual interpreta-
ted to making conceptual and in-
tion is to be seen as ascription of
ferential interpretations of philo-
propositional attitudes, roughly
sophical texts, which is the goal
understood as an attitude some-
of Brandom’s book, one of the
one has towards a proposition5 .
main sources for such a set of
Its structure can be also roughly
auxiliary or collateral hypotheses
understood like
is provided by other claims that
the author who is being analyzed
S believes (hopes/thinks) that acknowledges as expressing his

5 See Quine, 1956 and Russell, 2010. Russell does not like using the term “attitude” (p. 60) because it points to
a psychological trace, but the expression “propositional attitude” has been used notwithstanding it.

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thoughts or, simply, as true. Such “S co-acknowledge6 that the sum of


claims can be extracted from his the internal angles of every triangle
other writings, historical contexts, equals two right angles”.
letters, disputes, etc., as long as For Brandom, de dicto interpre-
the (interpreter knows that the) tation is a very important and de-
author acknowledges them as sta- manding mode of doing intellec-
ting his own claims. Hence, in tual history (see TMD, 99). In or-
such a way, the textual interpre- der to do so, one has to have a
tation of ascription is a sort of pa- mastery over what a philosopher
raphrase (see TMD, 96) that ta- wrote, said, and read, as well as
kes its premises from the author’s what he, to some extent, lived.
acknowledged or acknowledgea- However, the process of making
ble universe of claims. When it clearer and more explicit what a
follows such a way, we have what philosophical text says, bringing
Brandom calls a de dicto specifi- to the surface its hidden assump-
cation of content or commitment. tions or pretexts, reveals only one
Thus, philosophical dimension of it. By
De dicto =df an inferential con- interpreting a text we want to un-
ceptual interpretation or specifi- derstand
cation of a claim through appe-
aling only to collateral premises
or auxiliary hypotheses that are (. . . ) what speakers
co-acknowledged with that claim think they are committing
(TMD, 97). themselves to by what
In other words, de dicto ascrip- they say, what they in
tions want to determine “what some sense intend to be
the author would in fact have committing themselves
said in response to various questi- to, what they would take
ons of clarification and extension” to be consequences of the
(TMD, 99). The context is sup- claims they made. But be-
plied by the author himself, either sides the question of what
directly (in the text itself or not) one takes to follow from a
or indirectly (via historical con- claim one has made, there
text, connections etc.). For ins- is the issue of what really
tance, if “S believes that the sum of follows from it. (TMD,
the internal angles of every trian- 100).
gle equals 180o ”, we can infer that

6 (TMD, 97).

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Thus, beyond the process of ma- what the analyzed author would
king explicit some claims th- “co-acknowledge” as his own set,
rough paraphrase, substitutions but comes from what the interpre-
and conceptual interpretations, ter takes as being true. Getting
Brandom points out to a diffe- back to the former example:
rent perspective or inferential ap-
proach whose goal is, now, ma- (P1) S believes that the sum of
king explicit what inferentially re- the internal angles of every trian-
ally follows from a claim. Such gle equals 180o .
emphasis in the “really follows” (P2 De Dicto) S believes that the
clause is very important here for sum of the internal angles of every
what it means in interpretational triangle equals two right angles.
terms. It means, above all, that (P3) S is committed to the truth
inferences derived under such of Euclid´s proposition I. 32.(De
perspective are independent of Re).
the author’s acknowledgement or,
in other words, it derives actual Hence, De re =df an inferen-
commitments independently of tial conceptual ascription of what
what the author actually ackno- really follows from the premi-
wledges. For instance, if one be- ses, even against a different back-
lieves that the content of this bot- ground or starting from a dif-
tle is water, and that water quen- ferent set of auxiliary hypothe-
ches thirst, one is committed to ses that is now supplied by what
the fact that H2 O quenches thirst the interpreter, rather than the
whether one realizes or not the author, holds to be true. Thus, “in
chemical formula of water. That de re readings, by drawing conclu-
is what Brandom calls de re infe- sions from the text in the context,
rence. But in order to make such the interpreter is actively media-
kind of inferences, the interpre- ting between two sets of commit-
ter also needs an auxiliary set of ments. Text-and-context on the
claims. However, in de re ascripti- one hand, and interpreter on the
ons, such a set does not come from other, both have their distinctive

7 Brandom points to D. Lewis as a precursor of such way of thinking: “This sort of stripping down and building
back – a process whose moto is “reculer pour mieux sauter” – is a form of understanding. When I was a graduate
student, my teacher, David Lewis advocated a picture of philosophy like this. The way to understand some region
of philosophical terrain is for each investigator to state a set of principles as clearly as she could, and then rigo-
rously to determine what follows from them, what they rule out, and how one might argue for or against them. The
more disparate the starting points, the better sense the crisscrossing derivational paths from them would give us
of the topography of the landscape they were embedded in. What is recommended is hermeneutic triangulation:
achieving a kind of understanding of or grip on an object (a conceptually articulated content) by having many
inferential and constructional routes to and through it. The more paths one knows through the wood, the better

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GABRIEL FERREIRA DA SILVA

roles” (TMD, 109).7 Therefore, as approach to the history of phi-


Brandom sums it up in Making it losophy. Besides the usual De
explicit, Dicto perspective, we should ack-
nowledge the worth of De Re his-
toriography since it aims at the
The ascriber of a doxas-
same kind of universe of infe-
tic commitment has got
rences or ascriptions, namely, the
two different perspecti-
author’s commitments. The only
ves available from which
difference is upon where the set
to draw those auxiliary
of auxiliary claims comes from8 .
hypotheses in specifying
In the end, such type of histori-
the content of the commit-
ography is precisely what Bran-
ment being ascribed: that
dom did in part two of TMD with
of the one to whom it is as-
Leibniz, Hegel, Frege, Heidegger,
cribed and that of the one
and Sellars, through the four fol-
ascribing it. Where the
lowing steps (see TMD, 112-114):
specification of the con-
tent depends only on au-
xiliary premises that, ac-
1. Selecting the texts;
cording to the ascriber,
the target of the ascription
2. Further selection (aiming cen-
acknowledges being com-
tral claims which will be used)
mitted to, it is put in de
and supplementation;
dicto position, within the
’that’ clause. Where the
3. Deriving (from multipremise
specification of the con-
inferences) claims;
tent depends on auxiliary
premises that the ascriber 4. Assessing the adequacy of
endorses, but the target such inferred claims.
of the ascription may not,
it is put in de re position.
(MIE, 506. Cf. 507) Well, that is what I am going to
do, as a little exercise, with a cou-
It is noteworthy that Brandom ad- ple excerpts by Kierkegaard in the
vocates the importance and legi- next section.
timacy of De Re inferences as an

one knows one´s way around in it” (TMD, 114-115).


8 “As was indicated by the discussion of de re readings, there is no reason why the target claims need be restricted
to de dicto characterizations of what appears in the text” (TMD, 112).

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DE DICTO AND DE RE: A BRANDOMIAN EXPERIMENT ON KIERKEGAARD

4 - Kierkegaard De Dicto and De that


Re
(. . . ) speculative thought
For better or for worse, the phi-
repeatedly wants to ar-
losophical network of Kierkega-
rive at actuality and gi-
ard’s relations sometimes seems
ves assurances that what
to be completely done9 . Whether
is thought is the actual,
it be the range of philosophical
that thinking is not only
topics or his relations to the phi-
able to think but also to
losophical context of 19th and 20th
provide actuality, which
century, the interpretative litera-
is just the opposite; and at
ture seems to have little space for
the same time what it me-
improvements. However, a cou-
ans to exist is more and
ple of works have pushed those
more forgotten. (CUP1,
boundaries in recent years, brin-
319 / SKS 7, 291)
ging to the surface hidden the-
mes or connections, like Kierke-
gaard’s reception of and depen- And yet when we read through
dence on Trendelenburg’s logische most of his interpreters, we find
Frage when it comes to his cri- that they focus exclusively on the
ticism on Hegel’s logic, for ins- ethical or religious effects of his
tance10 . Among the unexplored quest for the meaning of existence
topics, Kierkegaard’s ontology is and rarely say a word about the
one of the most interesting. If it is metaphysical ground. Moreover,
true, on the one hand, that Kier- such a perspective also plays a
kegaard’s existential turn became dominant role when it comes to
commonplace in the literature, on evaluating his thematic relations
the other hand, its metaphysical to later philosophy. However, if
roots and unfoldings are still an we agree with Brandom and with
almost untouched topic. Just to the reasons I presented above on
shed some light on what I am tal- the legitimacy of a De Re histori-
king about, consider that one of ographic/philosophic approach, I
Kierkegaard’s philosophical wor- think we can push the boundaries
ries is, in a nutshell, in his claim a lit bit through Kierkegaard’s de

9 I am fully aware of the bundle of aspects and problems one can face when ignoring Kierkegaard’s use of
pseudonyms and ascribe views and statements to Kierkegaard himself. However, what is at stake here are the
philosophical inferences one can derive from his work and, rather than verify if such and such theses belong to his
personal set of beliefs.
10 See FERREIRA, 2013; 2015; 2017. For excellent examples of such “pushing the boundaries” on other topics,
see WEBB, 2017, and THONHAUSER, 2016.

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GABRIEL FERREIRA DA SILVA

re interpretation. In order to illus- Heidegger, but also young Bren-


trate, allow me to carry out a short tano, young Russell and, argua-
experiment along these lines. bly, Frege.11 Nowadays, we are ha-
One of the central problems in ving a revival of this dispute, with
ontology can be stated like this: some new contenders on the side
we surely know that there are dif- of what has been called Ontologi-
ferent kinds of existing things, na- cal Pluralism (OP) (see MILLER,
mely, humans, tables, properties, 2002; TURNER, 2010; CAPLAN,
geometrical relations, numbers, 2011; BERTO, 2013; GABRIEL,
fictional characters, and maybe 2015; MCDANIEL, 2009, 2017).12
even God. But does it mean that One of the strategies of Ontolo-
there are different ways of existing gical Pluralists has been, besides
or being? If it does, are all of such the straightforward argumenta-
ways of being on the same level tion, revisiting old philosophers
or are there degrees of being? Is looking for their arguments for
any of them primitive and, others, OP, as well as their reasons for
derived? On the other hand, if dif- holding such a position. In this
ferent kinds of existing things do sense, it is noteworthy that some
not mean different ways of being, of them call themselves as “Neo-
how can we understand such a Meinongnians”. If “existence” is
difference in a unified (or univo- the central theme of Kierkegaard’s
cal?) way? thought, does he have any side in
In contemporary analytic philo- such a dispute? Let’s briefly con-
sophy, partially inspired by Frege sider some propositions from Ki-
and Russell, and fully by Quine, erkegaard’s work:
the dominant view is that there
are not different ways of being, (P1) God does not exist (existe-
which means that whatever being rer ikke), he is eternal (CUP1, p.
means, it has the same meaning 332 / SKS 7, 303);
for all entities about which we (P2) A human being exists (exis-
could they are. Nevertheless, his- terer) (CUP1, p. 332 / SKS 7, 303);
tory has plenty of examples of (P3) Ideas have a thought-
philosophers who endorse the op- existence (Tanke realitet) which is
posite position. We could men- neither human’s existence (CUP1,
tion Plato, Aristotle, Aquinas, p. 329 / SKS 7, 301);
Meinong, Lotze, Husserl, Moore,
(P4) nor a physical object’s way

11 See Turner (2010) and McDaniel (2017).


12 McDaniel (2017) just won the American Philosophical Association’s 2018 Sanders Book Prize.

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DE DICTO AND DE RE: A BRANDOMIAN EXPERIMENT ON KIERKEGAARD

of being (CUP1, p. 330-331 / SKS ver, Kierkegaard´s claims (P1 to


7, 301); P4) and what de dicto follows from
(P5 De dicto paraphrase) There them (P5), can now be put against
are irreducible different modes of (P6) in order to see what follows.
being; When it comes to (P6), it is worth
noticing that there is a twofold
(P6 – Interpreter´s claim) A
way; on the one hand, we could
philosopher who assumes there
proceed to examine if the author,
are irreducible different modes
Kierkegaard in this case, provides
of being believes that ontological
any arguments supporting it and,
pluralism is true;
on the other hand, we could as-
(P7 De Re) Kierkegaard belie- sume (P6) as true on the interpre-
ves that ontological pluralism is ter’s basis. Therefore, in assuming
true13 . the second way, namely, that (P6)
is true –and that is the interpre-
Concerning the propositions ter´s responsibility, as Brandom
above, some things are no- says–, it is also true that (P7), even
teworthy. As indicated by the re- though the author of (P1) to (P4)
ferences, P1 to P4 are extracted never heard about (P6)14 .
directly from quotations by Kier- If we turn back to Kierkegaard’s
kegaard and have their truth va- main concern – in order to verify
lue drawn from the philosopher´s the adequacy of our conclusion
own statements. P5, on the other – namely, “what does it mean to
hand, is never asserted like that exist?”, one can see that ontolo-
by Kierkegaard, but follows direc- gical pluralism is absolutely cen-
tly from the claims above with no tral to his philosophical endea-
need of any other premise. When vor. Reversely, understanding Ki-
it comes to P7, our De Re con- erkegaard’s ontological commit-
clusion, things are slightly diffe- ments in terms of ontological plu-
rent. The interpreter, in this case, ralism helps us to understand his
is deeply interested in ontologi- own objectives in a better and
cal questions and provides an au- clearer fashion. The main pro-
xiliary claim (P6) which comes blem for which ontological plu-
from a different context. Howe-

13 As McDaniel defines, “So I offer up the following more general sufficient condition: one believes in ways of
being if one believes that there is more than one relatively fundamental meaning for an existential quantifier.”
(2017, 37).
14 It is important to have in mind that the burden of proof regarding the truth-value of auxiliary claims must not
necessarily be on the author, since it can be the case he never explicitly formulated it. The point is that, since such
auxiliary claim is provided, such and such consequences follow from it.

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GABRIEL FERREIRA DA SILVA

ralism is an answer can be stated not enough to deal with different


as: “Do some objects enjoy more modes of being because, using
being or existence than other ob- David Lewis-Plato’s terminology,
jects?” (see MCDANIEL, 2017, 1). they do not “carve nature at the
The way Kierkegaard understands joints.” But another interesting
the mode of existence of human path would be to evaluate how
beings cannot be fully grasped Kierkegaard’s ontological com-
unless we recognize two ontolo- mitments are close to or distant
gical features of reality. Thus, on from, for instance, Meinong’s. Is
one hand, it is true that some en- there for Kierkegaard any space
tities can be said to be univocally and arguments for Außerseiend
actual, like God, human beings, or is he another victim of “the
and a fly, since actuality is not prejudice in favor of the actual”
subject to degrees (see PF, 41- 42 / (MEINONG, 1999, §§2, 11)? Yet
SKS 4, 246). But on the other hand another road would lead us to de
Kierkegaard is ontologically com- re infer Kierkegaard’s positions on
mitted to degrees of being that are central quarrels of 19th century
irreducible to any other, namely, philosophy that are, despite the
the eternal uncreated being (of chronology, inside his scope, like
God), the infinite created being Materialismusstreit and Psicologis-
or subsistence (or what he calls musstreit, for instance. The Da-
“ideas”—i.e., logical and mathe- nish philosopher, we know, was
matical relations and properties), a fierce critic of what we would
the intermediate existential being call “reductionism” or “elimina-
(of human beings) and finite being tivism” concerning consciousness
(of physical objects). today, but he also dealt with the
Now, we have some very in- question of how an actual existent
teresting roads before us. One relates to ideal entities, for ins-
possible next step of our de re tance. It seems to me that we have
inferential exercise would be to promising roads to tread.
keep on this track and try to find
out whether Kierkegaard has any
hints on the primitiveness of a 4 - Conclusion
restricted existential quantifier
(over an unrestricted existential Therefore, as far as I can see, Bran-
quantifier), since contemporary dom’s approach is interesting in
defenders of Ontological Plura- three ways:
lism argue that the Quinean un- 1. By getting back to philo-
restricted existential quantifier is sophers from the past in order
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DE DICTO AND DE RE: A BRANDOMIAN EXPERIMENT ON KIERKEGAARD

to infer De Re commitments, contexts of auxiliary commit-


Brandom does, at the same ments” (TMD, 102)15 ;
time, (a) a rational recons-
truction exposing how Kant, 2. Therefore, de re textual in-
Hegel, Frege, and Heidegger terpretations of philosophers
foresaw some aspects of his from the past are as legiti-
pragmatic semantics and infe- mate as de dicto ones. In
rentialism, but also, how such other words, specifying de
positions help us to unders- re inferences should be seen
tand theirs. Thus, by connec- as a logically justified source
ting a contemporary view to for doing history of philo-
dead philosophers’ positions sophy and, conversely, helps
via inferential commitments, us to deal with Garber’s-style-
we can leave aside Rorty’s and problems. If, like Beaney re-
Beaney’s worries about ana- minds us, a rational recons-
chronism; it is not a mat- truction is better the more
ter of suspiciously and doubt- it is historically informed, in
fully ascribing contemporary the case of de re inferences it
views to a philosopher from is evident that putting such
the past, but, rather, making inferences against a histori-
explicit what is, so to speak, cal background is essential, at
already there. As Brandom re- least to evaluate if, on the
minds us, de dicto and de re one hand, a logically justi-
ascriptions are not two diffe- fied position is not, on the
rent realms of truths or com- other hand, contextually con-
mitments, but “specify the tradictory. However, since in
single conceptual content of this inferential game we are
a single belief in two diffe- not trying to exclusively un-
rent ways, from two different derstand a philosopher’s the-
perspectives, in two different sis, but rather, to expose what
follows (logically) from his

15 The controversy about anachronism is long and it would demand another paper. However, there are good
works reassessing and even defending its importance for doing history of philosophy. See LÆRKE; SMITH; SCH-
LIESSER (2013) and LENZ (. . . ), who makes a very interesting point: “Of course, Descartes did not read Wittgens-
tein. But does that also mean that reading Wittgenstein can tell us nothing about Descartes? Let me consider two
objections to the historian’s answer. Firstly, this answer ignores the fact that philosophers and other authors often
write for future generations. Descartes, Spinoza, but also Kant, Nietzsche and others were clearly writing decidedly
for future audiences. To explain their texts only by reference to their time impoverishes the philosophical potential.
In fact, this point generalizes: any research project is future directed. We would not begin to do research, had we
not the hope that it might lead to more knowledge in the future. If we study the development of ideas, it’s crucial
to look at their potential futures, and this could very well involve Wittgenstein’s reaction to the Cartesian concept
of mind.” (p. 4)

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GABRIEL FERREIRA DA SILVA

positions, it seems, at least, they would before” (TMD,


easier to have a clue about 16). Hence, more specifically
how to answer Garber’s “in- about Kierkegaard and the
convenient” “why stop here” broader scenario of 19th /20th
question, namely, because the century philosophy, such a
contextual-fact x cannot be de way can also make an ap-
re connected to the ascription proximation of Kierkega-
A16 . ard, Lotze, and Meinong less
weird, as well as, for ins-
3. TMD connects a “motley tance, Kierkegaard and Hei-
group” of philosophers (Spi- degger –through the ontolo-
noza, Leibniz, Hegel, Frege, gical commitment to ways of
Heidegger, and Sellars) (TMD, being– less obvious and less
16). However, one of the cliché. As one can see, a desi-
explicit goals of the book is rable outcome, such reassess-
to make such a connection ments provide us tools and ar-
“seem less so after we work guments for rethink the very
through this material than philosophical canon.

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16 Since the approximation between Garber’s example and Brandom’s model of rational reconstruction is being
made by me, Brandom does not offer, as far as I know, such a kind of answer. However, it makes sense to think
that a good reason to stop is the awareness of the distance of a contextual or historical remark H from the de re
ascription A. Let’s consider the Geometry example given above. Let it be the subject S as having the belief expres-
sed in the proposition (P1). We could infer (P3) de re. However, a possible historical fact H1 that S firmly believed
that Euclid was totally wrong (as expressed in one of S letters to Z, for instance) is a very relevant historical fact to
evaluate S positions: in this case, S was either wrong about his belief on Euclid or wrong about square triangles.
The same for the historical fact H2, namely, that S never really read Euclid’s Elements and knew it only by second
hand readings, what we can know reading his autobiography. But when it comes to the historical fact H3, namely,
what are the mathematical textbooks S had in his personal library, we can say that it is not so relevant since, even
though we come to know one of those books had a really good exposition of proposition 32. In this case, H3 is not
relevant for the inference of (P3) from (P1), like H1 is, but, at most, for our knowledge that S maybe never had read
that book.

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Recebido: 04/07/2019
Aprovado: 09/11/2019
Publicado: 17/11/2019

238 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 221-238
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v7i2.25478

Introducción Histórica al Psychologismusstreit


[A Historical Introduction to Psychologismusstreit]

Mario Ariel González Porta*

Resumen: Es una convicción usual, que el Psychologismusstreit fue una


unidad indivisa que tiene como epicentro los “Prolegómenos” husser-
lianos y se concentra en la lógica. Esta convicción es falsa. El Psycho-
logismusstreit fue un proceso en el cual se pueden y deben diferenciar
etapas, tendencias y núcleos temáticos.
Palabras claves: psicologismo, polémica en torno al psicologismo, mé-
todo psicológico, neokantianismo, platonismo

Abstract: It is commonly believed that the Psychologismusstreit was an


indivisible unit that had as its epicenter the husserlian “Prolegome-
na” and focuses on logic. This is a false belief. The Psychologismusstreit
was a process through which stages, tendencies and central themes
can, and must, be differentiated.
Keywords: Psychologism, polemic surrounding psychologism, neo-
kantianism, platonism

1 - Introducción lo que se trata primariamente es


de distinguir aspectos que son de-
El Psychologismusstreit (PS) no es cisivos para constituir el horizonte
un proceso linear y unidimensio- del PS, esto no acontece, sin em-
nal, sino que se caracteriza por bargo, para mantenerlos separa-
poseer diferentes orígenes, moti- dos, sino para interrelacionarlos y
vaciones, vertientes y etapas1 . Es mostrar la complejidad de sus ne-
esta característica peculiar del PS xos. Lo que nos proponemos es al-
que deseamos estudiar en detalle go así como una separación quí-
en el presente trabajo. Mas, si de mica de substancias para, de es-

* Professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail: mariopor@pucsp.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8220-1540.
1 Manifestación de lo anterior es que es un rasgo distintivo de esta polémica el no plantearse entre dos parti-
dos previamente establecidos y claramente diferenciados, sino consistir en buena medida en el trazado de la línea
divisoria entre ambos, de tal manera que lo que se entiende por psicologismo va variando a través del tiempo y au-
tores considerados anti-psicologistas en un momento pasan a ser considerados psicologistas en otro, o autores que
pueden ser considerados anti-psicologistas en una perspectiva, deben ser considerados psicologistas en otras. Por
ejemplo, Stuart Mill es psicologista en lógica, pero no en semántica; Fries es psicologista en epistemología, pero no
en lógica. Herbart, por otra parte, es antipsicologista con respecto a Beneke y Sigwart con respecto a Lipss pues con-
sideran la lógica como ciencia normativa diferente de la psicologia. Ambos, sin embargo, son psicologistas desde el
punto de vista de Frege, pues aceptan el principio de inmanencia (PI). Entenderé por PI la tesis cartesiano-lockeana
de que el único objeto directo e inmediato de mi conocimiento son mis propias representaciones (Vorstellungen) o
ideas (ideas).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 239-269 239
ISSN: 2317-9570
MARIO ARIEL GONZÁLEZ PORTA

ta forma, entender mejor la inter- que haya PS. Si por psicologismo


acción entre las mismas y obtener se entiende una teoría reduccio-
una comprensión más diferencia- nista del tipo que hemos defini-
da del compuesto. do, entonces no hay ninguna ra-
zón para limitar la aplicación de
este concepto al s. XIX. Posturas,
2 - Consideraciones previas
tendencias o deslices psicologistas
se dejan constatar desde los pri-
Aun cuando todo lo que habremos
mordios de la filosofía en Grecia.
de decir colaborará a fijar el pro-
El PS, sin embargo, es un proceso
pio concepto de psicologismo, este
que se concentra entre los comien-
es un presupuesto de nuestro tra-
zos de los siglos XIX y XX, que
bajo y, por tanto, es exigible que
tiene su auge entre los años 1880
ya en el comienzo establezcamos
y 1920 y que posee como epicen-
al menos una primera aproxima-
tro el ámbito lingüístico germáni-
ción al mismo. Conviene distin-
co, aun cuando no se limita a él,
guir entre concepto o definición
extendiéndose a Inglaterra, Fran-
y tesis. Entenderemos por “psi-
cia e Italia. Este proceso es absolu-
cologismo” la reducción de leyes
tamente sui generis y no tiene nin-
y/o entidades de cualquier tipo,
gún paralelo en la historia de la fi-
a leyes y/o entidades psicológicas
losofía anterior o posterior.
(definición). Por tanto, el psicolo-
Existen dos perspectivas bási-
gismo es un tipo peculiar de re-
cas posibles de abordaje del PS,
duccionismo. A partir de Husserl
a saber, la temático-sistemática y
se sobreentiende que tal reduccio-
la histórica2 . El trabajo que sigue
nismo conduce al relativismo (te-
se va a concentrar en la segun-
sis).
da, colocando principalmente el
“Psicologismo” y “PS” son dos
acento en cuestiones referentes al
conceptos categorialmente dife-
orden cronológico e interrelacio-
rentes: el primero se refiere a
nes factuales efectivas. Sin embar-
una teoría filosófica, el segundo, a
go, es justamente sobre la base de
un proceso histórico efectivo. Para
este estudio primariamente his-
que haya un PS es ciertamente una
tórico, que cuestiones temático-
condición necesaria que haya psi-
sistemáticas recibirán una impor-
cologismo, pero la afirmación in-
tante clarificación.
versa es obviamente falsa, o sea,
Del punto de vista histórico
que puede haber psicologismo sin

2 Debido a la distinción categorial que hemos subrayado conviene no confundir el estudio puramente sistemático
del psicologismo con la perspectiva temático – sistemática en el estudio del PS.

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INTRODUCCIÓN HISTÓRICA AL PSYCHOLOGISMUSSTREIT

se debe establecer una distinción específica de fenomenismo, dis-


fundamental entre los orígenes y tinción lógica-epistemológica quid
antecedentes del PS en el proceso facti – quid iuris, intuicionismo
que va del siglo XVII al XVIII, y matemático y colocación de las ba-
el desarrollo de la polémica pro- ses del proceso de la constitución
piamente dicha en el siglo XIX y de la psicología como ciencia au-
comienzos del XX. Con el primer tónoma. Debido a este paralelis-
punto nos ocupamos en el capítu- mo, efectuamos en nuestra exposi-
lo 3, con el segundo en el 4. ción un corte temático transversal
y, partiendo en todos los casos de
Descartes, llegamos en todos los
3 - Orígenes y antecedentes del
casos a Kant.
PS

En los orígenes del PS hay dos 3.1. - PI – Inmanentismo - feno-


nombres se destacan, a saber, Des- menismo
cartes y Kant. Si todos los cami-
nos conducen a Roma y, en el caso La virada moderna a la subjeti-
del PS, conducen a Husserl, todos vidad está íntimamente vincula-
ellos, así mismo, parten de Descar- da al establecimiento del PI co-
tes y pasan por Kant, aun cuando, mo punto de partida o presupues-
no obstante, no parten y no pasan to de toda filosofía. En realidad, él
de la misma forma. es una de sus derivaciones o im-
El PS hunde sus raíces en la plicaciones más fundamentales y,
virada moderna a la subjetividad pese a todas las diferencias entre
con Descartes y en la ulterior empirismo y racionalismo, común
lectura empirista de esta virada, a ambos. Una consecuencia de la
siendo posible distinguir en ella aceptación de este principio, o tal
cinco elementos que de una for- vez simplemente su contracara, es
ma u otra juegan un rol decisi- un cierto tinte idealista que se ha-
vo: el establecimiento del PI, la ce presente tanto en la variante ra-
apertura del way of ideas, la lógi- cionalista, cuanto en la empirista.
ca de Port Royal, el inicio de la Si el PI es un elemento caracte-
oposición entre concepción intui- rístico del pensamiento moderno
cionista y logicista de racionali- como tal, el convive desde Reid y
dad y la central contraposición de la tradición escocesa con una ten-
experiencia interna y extern. Es- dencia minoritaria que mantiene
tos cinco elementos experimentan vivo el realismo directo y se opone
un desarrollo ulterior a través de a todo representacionalismo. Esta
Kant, en quien adquieren la forma tendencia está presente en el siglo
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XIX, vía Hamilton, en Stuart Mill. 3.2. - Del way of ideas al “método
Que el PI se establezca como psicológico” (MP)
principio dominante con la edad
moderna y permanezca en tal fun- 3.2.1. - De la isla al continente
ción hasta fines del siglo XIX, no
implica que estemos en presen- Con Locke se inicia no meramen-
cia de una mera prolongación. En te al empirismo como una posi-
realidad, el PI adquiere en la fi- ción teórico-epistemológica, sino
losofía alemana del siglo XIX al- como una alternativa metódica
gunos acentos específicos, que son al racionalismo. La oposición ra-
decisivos para luego entender su cionalismo – empirismo es vis-
papel en el marco del PS. Al me- ta en Alemania no primariamen-
nos cuatro inflexiones merecen ser te como una oposición epistemo-
subrayadas. Con Kant, el PI se ra- lógica, sino metódica, siendo el
dicaliza en el sentido de un fe- propio Kant pre-crítico un ejem-
nomenismo que se extiende del plo paradigmático de este movi-
mundo externo al interno, culmi- miento. La contraposición método
nando en la tesis de que el suje- matemático- método empírico, o
to sólo se conoce a sí mismo como método sintético – método ana-
fenómeno y no como cosa en sí. lítico, se constituye en una línea
Con posterioridad a Kant, Rein- divisoria fundamental en la filo-
hold, sitúa explícitamente el PI sofía alemana del siglo XVIII. Se-
como fundamental en el horizon- rá justamente Kant, sin embargo,
te de la filosofía alemana, al hacer quien, llevando la discusión del
del mismo la base última de la fi- plano primariamente metódico al
losofía transcendental, correspon- propiamente epistemológico, es-
diendo a Schopenhauer, con su tablecerá claramente, a través de
dualidad del mundo como repre- la distinción quid iuris - quid facti
sentación y como voluntad, popu- la cuestión “transcendental”, es-
larizarlo y a Müller, con su teoría to es, dará un paso decisivo pa-
de la energía especifica de los ór- ra liberar el problema de la ob-
ganos sensoriales, dar pie a que se jetividad de toda interpretación
lo interprete fisiológicamente y se psicológico-genético (KANT: Ak.,
lo considera como científicamente III, 99s.)
fundado.
3.2.2. - El MP en Alemania I: el
surgimiento

No obstante lo anterior, el esta-


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INTRODUCCIÓN HISTÓRICA AL PSYCHOLOGISMUSSTREIT

blecimiento de la idea de una re- ser sino empírica. En consecuen-


flexión transcendental, no pondrá cia, el método de la filosofía como
un punto final a la cuestión en crítica del a priori no puede ser
Alemania. Si no puede caber duda ni transcendental ni especulativo,
qué el MP tiene sus orígenes en la sino “psicológico” (RFS, p. 200ss.;
lectura empirista de la virada car- NKV, I, p. 28ss.).
tesiana a la subjetividad, tampoco El MP friseano no consiste en
puede ser dudado que él adquiere una simple constatación de esta-
un perfil especifico en la filosofía dos internos tendiente a estable-
alemana del siglo XIX. cer sus regularidades legales en el
Con Reinhold se inicia un movi- tiempo, sino que posee un aborda-
miento revisionista del kantismo je estructural del psiquismo que
que transforma la filosofía críti- ofrece cierta similitud con la in-
ca en un racionalismo apriorísti- tuición eidética husserliana. Él no
co en el cual el criticismo devie- procede, asimismo, por inducción
ne saber especulativo. Como reac- (SM, p. 183; PS, p. 347), sino
ción a este desenvolvimiento sur- por “abstracción”, efectuando un
ge con Fries otra tendencia que in- “análisis” del conocimiento dado
tenta rescatar el elemento crítico que explicita y pone en evidencia
frente al especulativo, el empiris- sus presupuestos (NKV § 78, I, p.
ta frente al apriorismo radical, la 38s.; § 97, p. 314s.; SM, §22, p. 99).
autonomía de la ciencia y su ca- Por reflexión a partir de una ley
rácter de Faktum frente a la pre- particular, por ejemplo, se “abs-
tensión de una filosofía como sa- trae” el principio de causalidad.
ber absoluto y, en definitiva, el da- En el argumento que conduce
to y la correlativa reflexión frente a la fundamentación de la filoso-
a toda construcción. fía en la psicología, juega un papel
La tendencia empirista de Fries central la presuposición del PI.
tiene su fundamento en la consi- Sobre este base, Fries asume que,
deración de la triunfante Natur- si todo conocimiento es una acti-
wissenschaft y, por tal razón, con- vidad del espíritu, el estudio del
vive con una aceptación del ele- conocimiento es un estudio de la
mento a priori (SM, p. 183). La ta- experiencia interna (SM, p. 104s).
rea básica de la filosofía crítica es Mas, ¿qué se debe entender aquí
dar cuenta del mismo. Mas, au- por “conocimiento”? ¿No sería po-
ténticos principios no pueden en sible y necesario distinguir entre
modo alguno ser probados, sino el conocer como proceso psicoló-
tan solo constatados. Esta cons- gico real (Erkennen) y el conoci-
tatación, por su vez, no puede miento como su contenido lógico-

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objetivo (Erkenntnis)? Hay pues en b. Vinculado a lo anterior, mien-


Fries una ambigüedad en el pun- tras que Beneke tiene una con-
to de partida que condiciona ulte- cepción esencialmente genéti-
riormente una ambigüedad en el ca de psicología, consistien-
proceso regresivo desarrollado a do su programa en última
partir del mismo, de modo tal que instancia en derivar todo de
la consideración puramente fun- la sensación, Fries resiste ex-
cional de elementos lógicos del co- plícitamente a tal tendencia
nocimiento se hipostasia en una (FRIES: NKV, I, p. 36-37; Be-
teoría de las facultades (Vermö- neke: LPsNW, p. 14ss.).
gen). La crítica del MP y la evolu-
ción posterior del mismo se efec- c. Del empirismo de Beneke y
tuará en la dirección de estas dis- su perspectiva genética se si-
tinciones. gue un reduccionismo radical.
Si tomamos como referencia a La psicología no es en Bene-
Fries, podemos establecer el papel ke simplemente la base de la
de Beneke en la evolución del MP filosofía en el sentido de su
apuntando sus diferencias con és- comienzo metódico, sino que
te: ella es la filosofía (KPhAG, p.
89; SL, I, p. 35-42).

a. Para Fries, el MP es el méto- d. Si desde Fries era esencial al


do de la puesta al descubier- MP su carácter introspecti-
to del a priori; para Beneke, vo, lo que era en este obje-
propiamente de su disolución. to de mención ocasional, se
Beneke es un empirista radi- vuelve tema central en Bene-
cal que, en última instancia, ke (VPsPh, p. 116-130; SM,
intenta derivar lo a priori de la p. 201; SL, II, p. 302). En es-
experiencia. En la base de esta ta radicalización influye deci-
diferencia se encuentra otra, sivamente la situación exter-
mucho más fundamental, re- na. Beneke ya tiene frente a sí
ferente la propia concepción el rápido desenvolvimiento de
del a priori: en tanto Bene- la fisiología e, incluso, los pri-
ke tiende a identificar a priori mordios de su consecuencia
e innato, Fries lo combate de fundamental, a saber, el Mate-
forma explícita en este pun- rialismusstreit. Dado que pre-
to, negando tal identificación tende ser espiritualista, Bene-
y subrayando el carácter pro- ke resiste tenazmente a la di-
piamente lógico de la prece- solución de la psicología en fi-
dencia (GPh, II, p. 514). siología. Esta resistencia dará
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lugar a la idea de una “psi- Nelson. Esta escuela hará pocas


cología pura”, esto es, libre y muy puntuales contribuciones
de elementos fisiológicos y ba- a la doctrina original, motivadas
sada exclusiva y consecuente- por regla general por las diferen-
mente en la percepción inter- cias de contexto científico y filo-
na. sófico. Beneke, por su parte, aun
cuando no forma una escuela en
e. Beneke distingue claramente
sentido estricto, encuentra eco en
entre Naturwissenschaft y psi-
algunas figuras significativas de
cología en lo que dice respecto
la generación siguiente (Überweg,
a su objeto y modo de acceso,
Fortlage) y ejerce una importante,
concentrándose para ello en
aun cuando difusa, influencia.
la oposición experiencia ex-
Una novedad realmente signifi-
terna – experiencia interna;
cativa aparece en las décadas del
no obstante, inequívocamen-
60 y del 70 cuando, desde fuera
te orienta el proceder empíri-
de la tradición generada por Fries
co de la psicología a la Natur-
y Beneke, se comienza a delinear
wissenschaft. La psicología, co-
el fenómeno de una diversifica-
mo la Naturwissenschaft, aspi-
ción de tendencias dentro del MP,
ra al establecimiento de leyes
fenómeno que se prolonga en los
y se sirve para ello de un pro-
años 80. El primer motivo para es-
cedimiento “inductivo”. Es-
ta diversificación será proporcio-
ta inducción parece por mo-
nado por el positivismo, el cual
mentos poseer una cierta es-
incentiva el surgimiento de dos
pecificidad, aun cuando nun-
variantes “externalistas” del MP:
ca queda totalmente claro en
qué consiste positivamente és-
ta (LPsNW, p. 20). a. Si con Beneke comienza a
existir una tensión entre el
MP y la fisiología, esta ten-
3.2.3. - El MP en Alemania II. La sión dará lugar a un desarro-
diversificación llo particularmente importan-
te con Helmholtz, quien man-
De Fries se derivará una escuela tiene los principios de la inter-
que, aun cuando con una signifi- pretación psicológica de Kant,
cativa interrupción, se mantiene por un lado, pero, por otro,
hasta las primeras décadas del si- polemiza con el abordaje in-
glo XX y que, en su primera fa- trospectivo, abriendo el MP a
se, tiene como nombre de refe- una integración de los resulta-
rencia a Apelt, en su segunda, a dos de la fisiología sin por ello
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incurrir en un reduccionismo en la propuesta de una alternativa


fisiologista (ÜSM, p. 34-36, definida. Esta situación muda de
85, 118, 189). La aceptación modo radical con Dilthey (IBZP) y
de procesos psíquicos incons- Brentano (DP), quienes defienden
cientes será elemento esencial la idea de que un procedimien-
para el mantenimiento de ese to auténticamente empírico debe
compromiso. ser adecuado a su objeto y, con-
secuentemente, exigen de la psi-
b. La segunda tendencia que de- cología un proceder descriptivo y
be ser aquí mencionada es la estructural, claramente delimita-
Völkerpsychologie de Lazarus do frente a perspectivas genéticas
e Steintahl, quienes siguien- y explicativo-causales.
do la misma inspiración exter- Como vimos, el MP surgió vin-
nalista de Helmholtz, se pro- culado a una interpretación de
ponen extender el herbartia- Kant y se mantiene, de una for-
nismo al estudio de los fenó- ma u otra, ligado al kantianismo
menos de la cultura (EGV, p. hasta la década del 70 cuando, la
1ss.). aparición del neokantianismo será
decisiva para disputarle al mismo
El surgimiento de tendencias ex- su interpretación de Kant, propo-
ternalistas en el MP no va a signi- niendo una interpretación alter-
ficar el desaparecimiento total de nativa. A partir de ahora, ser kan-
sus variantes internalistas, sino, tiano y ser defensor del MP ya no
muy por el contrario, será acom- son mas sinónimos.
pañada por una renovación de las Pero el neokantianismo no me-
mismas. Para ello juega un pa- ramente contribuye a desligar el
pel decisivo la crítica del modelo MP de la interpretación de Kant,
científico natural. Si el MP comen- sino de toda forma de idealismo,
zó con la intención de una psico- consolidando así, indirectamen-
logía empírica, primero modela- te, una tendencia que ya se venia
da en su idea de experiencia en anunciando desde Beneke, pero
la ciencia natural, su desarrollo que va a culminar en la escuela
termina conduciendo a una revi- de Brentano. Beneke es una figu-
sión del concepto de experiencia ra decisiva no solo para entender
y a la negación de la identifica- el MP, sino para entender el PS y,
ción de método científico y mé- esto, porque al mismo tiempo él
todo de la Naturwissenschaft. Esta es la forma más radical de psico-
revisión ya se anunciaba tímida- logismo, por un lado, y, por otro,
mente en Fries, pero sin fructificar abre el camino para conciliar MP

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y realismo. Como todos los defen- si el MP conducía necesariamente


sores del MP, Beneke presupone la o no al psicologismo. Un aspecto
validad irrestricta del PI, efectúa bien definido pero poco estudiado
sin embargo una importante pre- del Psychologismusstreit giró, no en
cisión pues si bien mantiene el fe- torno a una discusión entre psico-
nomenismo kantiano con respec- logistas y anti-psicologistas, sino
to al mundo externo, afirma que entre anti-psicologistas y defenso-
en el auto-conocimiento el suje- res del MP.
to accede a una realidad en sí. Su En tanto que los auto-
argumento básico, que anticipa el proclamados anti-psicologistas,
del archienemigo del psicologis- tendieron a suponer sin más la
mo Frege, reza: no todo puede ser identidad de psicologismo y MP,
Vorstellung (SM, p. 69; NGM, p. 9). algunas variantes del MP re-
Lo anterior implica replantear la sistieron tal identificación y se
perspectiva eminentemente epis- consideraron a sí mismas anti-
temológica, esencial al MP en su psicologistas, como es el caso de
origen friseana, abriendo la posi- la tendencia realista-metafísica
bilidad de una variante ontológica plasmada en la escuela de Bren-
del mismo. El MP ya no es me- tano. Mas si las variantes rea-
ramente un camino para una re- listas del MP tendieron al anti-
fundamentación de la teoría del psicologismo, las variantes idea-
conocimiento, sino también de la listas tendieron al psicologismo.
metafísica como saber del en-sí. Esta diferencia se va a profundi-
zar con el surgimiento de la logis-
che Frage.
3.2.4. - PS y MP
3.3. - La evolución de la lógica de
Debemos distinguir entre Psicolo- Port Royal a la logische Frage
gismo y MP, entendiendo por el
primero, como ya hemos hecho, Sabidamente, la filosofía moderna
una tesis filosófica, por el segun- se inicia con la crítica del méto-
do, por el contrario, una postura do escolástico y el proceder silo-
puramente metódica, en principio gístico y la correlativa exigencia
neutra con respecto a cualquier de una reorientación metodológi-
tesis o teoría filosófica específica. ca de la ciencia. Por tal razón, aun
La distinción entre psicologismo y cuando de su pluma nunca sur-
MP permite colocar explícitamen- gió un texto que tratase de lógi-
te una cuestión discutida intensa- ca, ni una contribución significa-
mente en el siglo XIX, referente a tiva en este campo, Descartes es
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una figura decisiva en la historia conocen el verdadero objeto de la


de esta disciplina por interrumpir disciplina, de forma tal que más
el desenvolvimiento continuo que la desfiguran que la enriquecen y,
se venía efectuando a partir de la sobre esa base, vuelve a la idea de
lógica aristotélica y establecer las una lógica general (Ak., III, p. 8).
bases de un nuevo rumbo. De la virada kantiana se nutre
Un producto fundamental de directamente el resurgimiento de
este movimiento para el desarro- la lógica formal promovido por
llo posterior fue la lógica de Port Herbart en el comienzo del siglo
Royal3 , la cual presenta tres ele- XIX, el cual, sin embargo, pron-
mentos que merecen especial des- tamente tiene que enfrente ar un
taque en el actual contexto, a sa- nuevo enemigo: la lógica metafísi-
ber, la idea de que la lógica es ca hegeliana.
esencialmente una técnica que se Logische Frage en sentido estric-
propone orientar procesos menta- to denomina la polémica desatada
les y que, por tanto, tiene estos co- por Trendelenburg contra Herbart
mo objeto, idea esta que se concre- y Hegel, esto es, tanto contra la
tiza en dos formas características: determinación de la lógica como
por un lado, en una cierta con- disciplina formal, como contra su
cepción semántica de lo que sea interpretación metafísica en base
la significación de términos y, por a la tesis de la identidad de ser y
otro, en la identificación de leyes pensar. Ahora bien, la discusión
lógicas y leyes del pensamiento. de Trendelenburg con Herbart y
La tradición iniciada por la ló- Hegel es el horizonte de referencia
gica de Port Royal termina por ser de todo lo que se escribe en la ló-
predominante en el siglo XVIII, gica alemana de los años posterio-
desplazando la aristotélica. Ella, res y, en particular, en las décadas
sin embargo, va a tener su deci- del 80 y 90. Las lógicas de este pe-
siva interrupción en Kant, quien, ríodo parten de un similar status
siguiendo el camino iniciado por questionis, procurando distanciar-
Leibniz, critica expresamente la se simultáneamente del formalis-
tendencia moderna en la lógica, mo herbartiano y del metafisicisi-
considerando en una famosa pa- mo hegeliano (Sigwart, Erdmann,
saje que sus contribuciones y en- Wundt y Lipps). Es como reacción
riquecimientos simplemente des- a la identificación hegeliana de ló-

3 Vamos a contar una historia abreviada y en buena medida esquemática, siendo que muchas de nuestras afirma-
ciones no soportarían un análisis histórico más rigoroso. Si la lógica de Port Royal inicia una tradición, no siempre
esta tradición se nutre directamente de ella. Un papel fundamental juega en Alemania la lógica hamburguesa de
Jungius, que es el modelo directo de muchos manuales de lógica del siglo XVIII (BOSCHENSKI, 1976, p. 270)

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gica y metafísica que se desata en to de este último desenvolvimien-


Alemania una marcada tendencia to, primariamente en sus varian-
inmanentista que, potenciando el tes idealistas, con aquel desenca-
rol central del PI mucho más allá denado por la logische Frage.
del seguimiento o no del progra-
ma específico del MP, lleva a una
3.4. - Intuición
restricción de la lógica al ámbito
del pensar (Denken) y que, si en un
Con Leibniz se inicia en el racio-
primero momento, con Lotze, se
nalismo un proceso de diversifi-
limita a negar el carácter objetivo-
cación en dos corrientes con dos
real de categorías lógicas funda-
concepciones eminentemente di-
mentales afirmado por Hegel (co-
ferentes de racionalidad que po-
mo concepto o silogismo), termi-
dríamos llamar de “intuicionista”
na motivando la insistencia en el
y “logicista”4 , o de una concep-
carácter de las leyes lógicas como
ción en la cual racionalidad está
“leyes del pensamiento” (Denkge-
íntimamente vinculada a la idea
setze). Es este acento en la limi-
de evidencia y otra en que la ra-
tación de la lógica al Denken, lo
cionalidad está vinculada a prin-
que provocará, no solo una cierta
cipios objetivos (identidad y no-
tendencia laxa al idealismo, que
contradicción). Estas dos concep-
revierte en buena medida el movi-
ciones de racionalidad se proyec-
miento iniciado por Beneke, sino
tan en dos modos de concebir la
al relativismo.
inferencia como remitiendo, en un
Psicologismusstreit y logische
caso, a una sucesión de intuiciones
Frage no pueden ser identificados,
discontinuas, en el otro, a la idea
mas están en estrechísima rela-
de algoritmo.
ción pues justamente las deriva-
La oposición entre una concep-
ciones de la logische Frage jugaron
ción intuicionista o logicista de
un papel esencial para incentivar
racionalidad está estrechamente
una nueva oleada de psicologis-
vinculada a una diferente concep-
mo. El psicologismo de los lógicos
ción de la relación entre racionali-
en los 80’ y 90’, con su relativismo
dad y subjetividad. En la concep-
antropológico característico, no es
ción intuicionista, el sujeto epis-
primariamente el resultado de la
temológico, a través de la idea de
tradición de Port Royal o del desa-
evidencia, es indisociable de la ra-
rrollo del MP, sino del cruzamien-
cionalidad, en tanto en la otra, se-

4 Nos servimos de una oposición terminológica ya consagrada en el ámbito de la filosofía de las matemáticas y
le damos un sentido más general.

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parable, tendiéndose de una for- formas, se inclina a la postulación


ma u otra a variantes de platonis- de objetos abstractos, va a ser un
mo. fuerte factor para el surgimiento
Con Kant, esta oposición entre de un platonismo con contornos
dos concepciones de racionalidad peculiares en el siglo XIX. El pla-
pasa a replantearse sobre la for- tonismo del siglo XIX en la lógi-
ma de una oposición entre pensa- ca está indisociablemente vincula-
miento y sensibilidad. Si Kant cla- do al logicismo en las matemáti-
ramente toma partido por la con- cas, desde Bolzano, a Frege y Hus-
cepción leibniziana de racionali- serl. Junto con la eliminación de
dad, identificada con la analitici- la intuición, el logicismo elimina
dad, la idea de intuición no pierde la necesidad de una consideración
su importancia, sino que se trasla- esencial de la subjetividad en la
da del plano intelectual al sensi- fundamentación de las matemáti-
ble. cas y tiende a asumir una direc-
Las diferentes concepciones de ción objetivista que lo termina co-
intuición y de la relación de intui- locando en estrecha relación con
ción y racionalidad en Descartes, el platonismo.
Leibniz y Kant, están íntimamente
vinculadas a diferentes concepcio-
nes de matemática. Estas diferen- 3.5. - Psicología después de Kant:
cias desenvuelven todo su poten- de la psicología como ciencia
cial en el s. XIX con la artimetiza- fundamental de la filosofía a la
ción del cálculo y, posteriormen- psicología como ciencia autóno-
te, con el surgimiento de las geo- ma
metrías no-euclideanas y sus deri-
Si el siglo XIX es el siglo de la
vaciones. Si, en Newton, la funda-
constitución de la psicología como
mentación última del cálculo re-
ciencia, esta constitución se da-
mitía a la intuición temporal y
rá en el transfondo de presupues-
Kant, dada su admiración incon-
tos establecidos en los siglos XVII-
dicional por Newton, aceptaba tal
XVIII, a saber:
idea sin cuestionamiento, en el si-
glo XIX se procesa un movimiento a. La virada cartesiana a la sub-
de logización de las matemáticas jetividad en la filosofía moder-
que, volviendo a Leibniz, termina na, la lectura empirista de es-
eliminando cualquier idea de in- ta virada por Locke y la idea
tuición de su fundamentación. de una ciencia de la naturale-
La tendencia logicista, que, en za humana correlata de la Na-
última instancia, sobre diferentes turwissenschaft por Hume.
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INTRODUCCIÓN HISTÓRICA AL PSYCHOLOGISMUSSTREIT

b. La constitución de la ciencia Ciertamente, la constitución de la


natural como ciencia empírica psicología como ciencia autónoma
independiente de la filosofía. es un factor importante para ex-
plicar tanto la prioridad cuanto la
c. La clasificación de las ciencias
intensidad que asume el PS en el s.
de Wolff con su distinción en-
XIX. Sin embargo, el no es el úni-
tre psicología racional como
co factor pues, como ya hemos in-
parte de la metafísica especial
sinuado, la logische Frage y el de-
y psicología empírica5 .
senvolvimiento de las matemáti-
d. La negación de la posibilidad cas no son menos decisivos.
de la metafísica como ciencia No menos importante que dis-
por parte de Kant y, por tanto, tinguir PS y Psychologiestreit, es el
de la psicología racional. distinguir entre dos sentidos de la
expresión MP. La expresión “MP”
e. y su negación de que la psico- tiende a ser usada desde fines del
logía empírica pueda consti- siglo XIX y comienzos del XX en
tuirse como una ciencia equi- el sentido de “método de la psi-
valente a la ciencia natural cología”, o sea, para referirse a la
(Leary, 1978 y 1982). cuestión de cual deba ser el modo
Como en la filosofía de las ma- de proceder de una cierta discipli-
temáticas, el status questionis esta- na para constituirse como ciencia
blecido por Kant en la “Crítica de autónoma. En mediados del siglo
la razón pura” es el punto de par- XIX, sin embargo, dicha expresión
tida de la polémica en torno a la tiene un otro sentido usual refe-
psicología o Psychologiestreit, esto rente a cuál deba ser el método
es, de la discusión que lleva a la de la filosofía, cuestión ésta gene-
constitución de la psicología como ralmente colocada en el horizonte
ciencia autónoma en el siglo XIX. de una caracterización de la filo-
Aun cuando PS y Psychologies- sofía como ciencia que asegure su
treit son procesos que se encuen- derecho a existencia en la llama-
tran interligados y presentan nu- da “crisis de identidad”6 . La idea
merosas interacciones, ellos no básica es qué si toda ciencia de-
pueden ser sin más identificados. be fundarse en la experiencia y la

5 Investigación psicológica ciertamente existió antes de Descartes, pero no es arbitrario establecer un interés es-
pecifico en la subjetividad a partir de él. Investigación psicológica, por su vez, existió obviamente antes de Wolff,
pero es el sistema de clasificación de las ciencias de Wolff, lo que va a dar a la psicología su lugar característico
como disciplina, a partir del cual debe ser entendido el proceso de su constitución como ciencia autónoma.
6 Claro que los proponentes del MP tenían también propuestas con respecto a cuál debía ser el método de la
psicología, pero la inversa no vale: muchos actores decisivos en el debate en torno al método de la psicología no
tuvieron interés en la cuestión del MP.

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Naturwissenschaft trata de la expe- ti - quid iuris y procura mante-


riencia externa, corresponde a la ner separadas cuestiones de géne-
filosofía fundarse en la experien- sis y de validez (Geltung) (Ak, III,
cia interna. En este sentido, la ex- p. 8, 99s.). Ahora bien, en tanto
presión “MP” fue originariamen- que el anti-psicologismo kantiano
te el opuesto, primero, del méto- en la lógica va a ser decisiva pa-
do especulativo propio del idea- ra el platonismo del siglo XIX, el
lismo alemán, después, del méto- anti-psicologismo kantiano en la
do transcendental neokantiano y, epistemología va a ser decisivo pa-
finalmente, del método fenome- ra el neokantianismo7 .
nológico. Mas, si, como vimos, la Con lo dicho llamamos la aten-
idea del MP constituye en la fi- ción sobre un aspecto medular del
losofía alemana como alternativa PS que tiende a ser pasado por
de perfil especifico a partir de la alto, a saber, que se pueden y
obra de Fries y Beneke, la expre- deben diferenciar claramente dos
sión “MP”, sin embargo, fue solo vertientes en el mismo que provie-
introducida décadas después por nen de una diversa raíz histórica
Bona Meyer (KPs, p. 122) y po- que, en última instancia, remite a
pularizada por sus oponentes neo- Kant en dos formas característica-
kantianos. mente diferentes, tienen un relati-
vo grado de autonomía en su desa-
rrollo histórico efectivo y se dis-
4 - El desarrollo del PS tinguen claramente por el acento
temático-sistemático que asume el
Si damos una mirada retrospecti- anti-psicologismo en cada una de
va al conjunto de lo expuesto y ellas.
lo unificamos, tenemos que decir Mas, si bien no cabe duda de
que si Descartes puede ser consi- que Kant está en el origen de las
derado el inicio remoto del psi- dos formas principales del anti-
cologismo, Kant puede ser consi- psicologismo del siglo XIX, so-
derado el inicio próximo del mo- lo pasamos del anti-psicologismo
vimiento anti-psicologista y, esto, kantiano al anti-psicologismo ca-
tanto en el plano de la epistemo- racterístico del siglo XIX a tra-
logía, cuanto en el plano de la ló- vés de mediaciones que, por su
gica, pues en ambos, establece la vez, son diferentes según se tra-
distinción fundamental quid fac-

7 Si en estos dos planos Kant contribuye decisivamente al anti-psicologismo, existe un tercero, a saber, aquel re-
ferente a la intuición, en el cual Kant está en el inicio de una variante psicologista que tiene su base en la discusión
sobre la teoría del espacio (Helmholtz).

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INTRODUCCIÓN HISTÓRICA AL PSYCHOLOGISMUSSTREIT

ta, del tipo de anti-psicologismo como una mera continuación del


kantiano y del tipo de anti- kantiano, pues hay en él elemen-
psicologismo del s. XIX que con tos nuevos que lo van a distinguir
este se relaciona. En tanto que del claramente del kantiano, a saber,
anti-psicologismo kantiano en la su vies platónico. Mas, aun cuan-
lógica se deriva el platonismo pre- do tanto Herbart como Bolzano
sente en el PS, esto no acontece son en cierto sentido “platónicos”,
sino a través de la logische Frage, el tipo de platonismo es diferen-
de la logizicación del cálculo y, en te, no menos que, en definitiva, su
última instancia, de la confluen- propia concepción de lógica.
cia conflictiva de ambos procesos. Si Herbart distingue claramen-
Por su vez, en tanto que del anti- te lógica y psicología, lo hace co-
psicologismo kantiano en la epis- mo una distinción de dos pun-
temología se deriva el neokantia- tos de vista sobre la misma reali-
nismo, esto no acontece sino a tra- dad, en última instancia psicoló-
vés del MP y, en buena medida, gica, no como una distinción en-
del surgimiento de ciertas varian- tre dos esferas de objetos, reales
tes específicas del mismo como la y abstractos (PsW, § 120, p. 160-
psicología fisiológíca y Völkerpsy- 161)9 . Justamente por lo anterior,
chologie. Veamos ahora estos pro- si Herbart afirma aparentemente
cesos en mayor detalle. la identidad del elemento ideal
en la multiplicidad de sus reali-
zaciones subjetivas, ese elemento
4.1. - La vertiente platónica del ideal es concebido como limes de
antipsicologismo aproximación de procesos psíqui-
cos reales, no como objetos en-si
Uno de los primeros capítulos
existentes.
del PS o, tal vez, el primer ca-
Bolzano, entre tanto, es el pri-
pítulo, es el producto de la reto-
mero que introduce claramente la
mada de la idea kantiana de una
idea de que la lógica es el es-
lógica general, libre de elementos
tudio de objetos abstractos10 . Su
psicológicos, a través de Herbart,
diferencia esencial con Kant, pe-
por un lado, y por Bolzano, de
ro también con Herbart, es que
otro8 . Pero, este anti-psicologismo
el portador de verdad deja de ser
no puede ser entendido sin mas

8 Con Herbart se da un paso decisivo a la constitución del PS como polémica (Streit) a través de su discusión con
Beneke y, posteriormente de éste con Drobisch.
9 Vinculada a esto está su idea de la normatividad esencial de la lógica.
10 Con esto, ya en el propio inicio del PS el concepto de psicologismo muda, fenómeno éste que aún habrá de
repetirse varias veces. Véase nota 1.

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el juicio y pasa a ser la proposi- Frege y Husserl critican no tiene


ción, motivo por el cual ésta y no su única, y ni siquiera su más im-
aquel se constituyen en el objeto portante fuente en la tradición de
de la lógica (WL, § 24, 25). Mas Port Royal o del MP, sino en las
aún, con esta mudanza el plato- derivaciones de la logische Frage.
nismo va a introducir una dimen- Mirado retrospectivamente, en
sión propiamente semántica en el el proceso del PS con respecto
anti-psicologismo que no estaba a la lógica se dejan diferenciar
presente en ninguna forma ni en claramente tres momentos, a sa-
Kant ni en Herbart, más que se- ber, la reacción kantiana a la lógi-
rá esencial para el desarrollo pos- ca moderna y su prolongación en
terior el mismo. A partir de aho- Herbart, el platonismo bolzaniano
ra, el anti-psicologismo lógico y reflejo del logicismo matemáti-
el semántico se desenvuelven en co, y el platonismo fregueano-
estrecha unión. El platonismo de husserliano, reflejo de una reac-
Bolzano, a diferencia del de Her- ción ulterior al relativismo antro-
bart, está esencialmente vincula- pológico derivado de la logische
do al programa logicista derivado Frage.
de la nueva situación de las ma-
temáticas y la aritmetización del
4.2. - La vertiente neokantiana
cálculo.
del antipsicologismo
Este platonismo exigido por la
consolidación de una tendencia Si en Kant el problema episte-
logicista derivada de la evolución mológico se anuncia en su especi-
de las propias matemáticas, sin ficidad, es con el neokantianismo
embargo, entra en rota de coli- que esta idea es desenvuelta en
sión con el inmanentismo anti- todas sus consecuencias de modo
metafísico derivado de la logische tal que el criticismo deviene “mé-
Frage y sus apelos francamente re- todo transcendental” (COHEN,
lativistas. Si el primer elemento KTE1, p. 124-127; KTE2, p. 296-
era decisivo en el platonismo de 299, 373-379, 601-602; WINDEL-
Bolzano, el segundo lo será en el BAND: KGM, p. 318ss.; WPh, p.
de Frege y, posteriormente, en el 58-59; RIEHL: ÜBFph, p. 31, 65;
de Husserl. Será primariamente PhK, I, V, p. 8). Este hecho mar-
este relativismo psicologista deri- ca decisivamente la peculiaridad
vado de la logische Frage lo que da- del anti-psicologismo característi-
rá al PS su forma canónica defi- co del neokantianismo. La gran
nitiva o, al menos, mas conocida. diferencia entre la vertiente pla-
El psicologismo en la lógica que tónica y la neokantiana del anti-
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-psicologismo es que si la prime- lógica entre el pensar y la in-


ra se concentra en la lógica y por tuición sensible.
derivación esencial en la semánti- b. La intuición sensible, incluso
ca (aun cuando, segundo los casos, en sus formas puras espacio
no desconoce totalmente la episte- y tiempo, no es para el neo-
mología), la segunda se concentra kantianismo una fuente au-
en la epistemología y desconside- tosuficiente de conocimiento,
ra o ignora la dimensión propia- no pudiendo ser considerada
mente lógica y/o la semántica. de forma desligada del pen-
Existe una extendida concep- sar. Por tal razón, para un neo-
ción de que el PS es un fenómeno kantiano, la epistemología no
que gira primariamente en torno a consiste en dos capítulos auto-
la lógica. Esto es falso y deja fue- suficientes, una estética y una
ra de consideración un capítulo lógica transcendental.
fundamental del mismo protago-
nizado por el neokantianismo. To- c. Pero, si la intuición no puede
das las diferencias decisivas entre ser desligada del pensar, este
la vertiente neokantiana y la pla- pensar, por su vez, no puede
tónica del anti-psicologismo des- ser desligado de su función de
aparecen si decimos sumariamen- estar al servicio de la objetiva-
te que el psicologismo consistió en ción de los fenómenos, esto es,
una psicologización de la lógica y del conocimiento y, por tan-
pasamos por alto el hecho decisivo to, la propia idea de una con-
de que: sideración del pensar en sí o
de una lógica formal separada
a. en un caso, la lógica es lógi- de la lógica transcendental, no
ca general o formal, en el otro, hace sentido.
transcendental y
d. Dicho de otra forma, en el
b. que la lógica transcendental neokantianismo la lógica ge-
neokantiana es sinónimo de neral y la estética transcen-
epistemología. dental, pierden su autonomía
y pasan a estar subordinadas
Para entender lo que realmente y/o esencialmente vinculadas
significa lo anterior, tenemos que a la lógica transcendental, la
tener en cuenta cuatro puntos: cual, por tal razón, termina
a. Para el neokantianismo el siendo identificada con epis-
concepto de “lógica” se defi- temología.
ne en el horizonte de la oposi- Ahora, el hecho de que el anti-
ción primariamente epistemo- psicologismo kantiano no sea un
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anti-psicologismo lógico- formal, un instrumento de objetiva-


sino esencialmente epistemológi- ción de los fenómenos. Justa-
co, está vinculado a tres elementos mente por ello, lo que está en
de extrema importancia para efec- el centro de la atención no es
tuar un estudio diferenciado el PS, el principio de identidad y no
a saber: contradicción sino de causali-
dad.
a. El psicologismo que el neo-
kantianismo combate en pri-
mera instancia no es aquel de- 4.3. - Relaciones entre anti-
rivado de la logische Frage, co- psicologismo platónico y neo-
mo sucedía con el platonismo kantiano
del siglo XIX, sino aquel vin-
culado al MP y sus derivacio- Tan importante como es el distin-
nes. guir claramente las dos vertientes
principales del anti-psicologismo,
b. El antipsicologismo neokan- y los tipos de psicologismo que
tiano, y por dirigirse a la epis- ellas respectivamente combaten,
temología y no a la lógica ge- lo es el estudiar la relación entre
neral, es un anti-psicologismo las mismas. Las diferentes concep-
que tiene esencialmente por ciones de lógica de neokantianis-
objeto las formas puras de mo y realismo lógico están en últi-
intuición, espacio y tiempo, ma instancia vinculadas a diferen-
pues fueron estas las que ju- tes concepciones de la teoría del a
garon un rol decisivo para psi- priori y de las matemáticas.
cologizar a Kant a partir de
Müller y a través de los des- a. Para el neokantianismo exis-
cubrimientos fisiológicos has- te conocimiento a priori, sien-
ta Helmholtz11 . do uno de los objetivos princi-
pales del movimiento el fun-
c. Si el anti-psicologismo neo- damentar el mismo frente a
kantiano se opone caracterís- los ataques empiristas y po-
ticamente al psicologismo de sitivistas. El conocimiento a
las formas pura de la intui- priori de los neokantianos,
ción, no se limita a ellas, sino no obstante, no es, como en
que se extiende al Denken. el platonismo, conocimiento
Lo hará, sin embargo, única- de objetos abstractos o supra-
mente en cuanto el Denken es empíricos, sino conocimiento

11 Frege, por el contrario, nunca estuvo preocupado con el problema del psicologismo en el espacio.

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INTRODUCCIÓN HISTÓRICA AL PSYCHOLOGISMUSSTREIT

de las condiciones de la po- do”. En tanto para los realistas


sibilidad de la experiencia y, lógicos la matemática es una
por tanto, jamás se desliga de teoría que trata de una esfera
ella para adquirir la forma especifica de objetos, los abs-
de una logische Erkenntnisque- tractos, para los neokantiano,
lle autónoma como en Frege. la matemática es método, o
sea, un conjunto de procedi-
b. La diferente concepción del a
mientos y/o instrumentos de
priori entre el platonismo y el
objetivación de los fenómenos
neokantianismo se expresa en
y, en consecuencia, en última
forma paradigmática en sus
instancia, siempre referidos y
diversas concepciones del sa-
nunca separable de los obje-
ber matemático. Dicho de for-
tos empíricos (Cohen: PIM).
ma más general, pero también
La consecuencia de lo ante-
más precisa: el neokantianis-
rior es que para los neokan-
mo tiene un punto de coinci-
tianos el problema de la apli-
dencia y un punto de diferen-
cación de las matemáticas a la
cia esencial con el realismo ló-
física, eventualmente sobre la
gico. La coincidencia radica en
forma de un pasaje de enun-
que, en tanto ambos son re-
ciados analíticos a sintéticos,
ceptivos de la evolución de las
es simplemente un problema
matemáticas, ambos son “lo-
mal planteado.
gicistas’, esto es, niegan cual-
quier papel de las intuiciones Si hasta ahora hemos trabajado
puras de espacio y tiempo en con una oposición entre neokan-
la fundamentación de las ma- tianismo y platonismo, conviene
temáticas y pretenden fundar observar que esta oposición no es
las mismas en el pensar (Den- totalmente exacta y seria mas jus-
ken)12 . Solo que en un caso to decir que la diferencia aquí pre-
se trata de un formales Den- sente es una diferencia entre dos
ken, en el otro de un trans- tipos de platonismo vinculados
zendentales Denken. Esto moti- a dos tomas de posiciones esen-
va una diferencia esencial en cialmente diversas en la cuestión
la concepción de las matemá- del chorismo y que tienen su ex-
ticas que se expresa en el jar- presión paradigmática en las dos
gón neokantiano en la oposi- grandes interpretaciones de Pla-
ción entre “teoría” y “méto- tón del siglo XIX propuestas por

12 Es importante no perder de vista que los neokantianos nunca fueron sin más kantianos, sino que mantuvieron
importantes diferencias con Kant vinculadas siempre a su atención al Faktum de la ciencia.

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Natorp y por Lotze. En tanto que la agenda de la discusión filosófi-


Lotze desontologiza Platón, Na- ca, fue el hecho que la crítica del
torp va más allá y lo transzenden- psicologismo era esencial para el
taliza para legitimar su peculiar triunfo del método transcenden-
lectura platonizada de Kant. tal frente al psicológico, por un la-
En su comentario a los “Pro- do, por otro, que este triunfo dice,
legómenos” husserlianos, Natorp ya no respecto a un problema fi-
no dejaba de manifestar una cier- losófico particular (por ejemplo, a
ta extrañeza frente al impacto de la cuestión referente a una filoso-
estos y, no sin toda razón, afirma- fía de las matemáticas), sino res-
ba que el neokantianismo nada te- pecto del propio destino de la filo-
nia a aprender der Husserl (Na- sofía y su especificidad como dis-
torp: FLM, p. 271). Esta observa- ciplina. Mas, a la fase programá-
ción natorpiana obliga a la pre- tica, sigue en el neokantianismo
gunta del porqué del fulminante una fase institucional que termi-
impacto del primer volumen de na resultando en el casi absoluto
las “Investigaciones lógicas”. No dominio de la universidad alema-
vamos a agotar esta cuestión aquí, na. Cuando se estudia el problema
pero es importante establecer al- del PS, no hay que olvidar nun-
gunas observaciones al respecto. ca que, si del punto de vista de
Desde el punto de vista estric- sus consecuencias y proyecciones
tamente histórico-cronológico, las en el siglo XX, Frege y Husserl son
primeras etapas del PS se concen- figuras decisivas y mucho más im-
tran en la lógica y están vincu- portantes que el Neokantianismo
ladas al anti-psicologismo plató- desde el punto de vista del siglo
nico. Posteriormente, la vertiente XIX, el neokantianismo tiene una
platónica recibe un nuevo impul- total preeminencia, de forma tal,
so con Frege, para alcanzar toda su que solo a través de él, el PS pu-
madurez con Husserl. Entre am- do tomar la dimensión que efecti-
bos momentos, sin embargo, acon- vamente tomó. El impacto de las
tece un fenómeno peculiar que es “Investigaciones lógicas” husser-
la verdadera explosión que se ope- lianas se construye sobre una his-
ra en el PS a partir de la década toria que ya comenzó a ser escri-
del 70. Este fenómeno está esen- ta por el neokantianismo y su no-
cialmente vinculada al neokantia- vedad no consistió en plantear el
nismo y seria incomprensible sin tema, sino en focalizarlo directa-
éste. En efecto, un factor decisi- mente, a la luz de los resultados de
vo para que el PS ocupe duran- la logische Frage, en el relativismo
te tanto tiempo el primer lugar en

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y no ya en el MP13 . esta distinción, el distinguir, ulte-


riormente, entre el problema de la
fundamentación de la objetividad
5 - Más allá de las variantes neo- del valor de verdad y el problema
kantiana y platónica de la fundamentación de la objeti-
vidad del sentido. El pensamiento
Con la distinción entre dos varian- alemán pre-fregueano, sin embar-
tes fundamentales en el antipsi- go, está dominado por el concepto
cologismo presente en el PS, no de validez (Geltung), el cual se re-
hemos agotado en forma alguna fiere primariamente a la cuestión
las distinciones decisivas que de- de la objetividad epistemológica
ben ser hechas, sino dado simple- (resumido a su más simple expre-
mente un primer esquema orde- sión en el neokantianismo en el
nador. Sobre su base, es posible concepto de “ley”) y solo de modo
introducir otras distinciones, que indirecto, secundario e inespecífi-
suponen la anterior más al mismo co a la cuestión de la objetividad
tiempo la refinan y completan. del sentido.
Esta situación comienza a expe-
5.1. - Antipsicologismo semánti- rimentar una mudanza significati-
co y problema del sentido. Las va a partir de los años 90’. En efec-
diferentes formas del problema to, el desarrollo de las Geisteswis-
de la objetividad en el s. XIX senschaften (GW) pone en eviden-
cia que la cuestión del sentido lin-
Ya hemos observado que no hubo güístico es meramente un aspecto
en el neokantianismo un interés de la cuestión mucho mas general
particular en el combate al psico- del sentido en la enorme diversi-
logismo semántico. Esto no es pro- dad de las manifestaciones cultu-
ducto de un cierto descuido, sino rales. De tal forma, el problema
una derivación sistemáticamente colocado primeramente en la ló-
necesaria a partir del modo en que gica a través de la distinción en-
se construye el problema de la ob- tre el juicio, el enunciado y la pro-
jetividad en dicho movimiento. A posición experimente una decisi-
partir de Frege es usual distinguir va ampliación. Con esta surge un
entre el sentido y el valor de ver- nuevo capítulo del PS, que tiene a
dad de un enunciado y, junto con Dilthey y a la escuela de Baden co-

13 Obsérvese la diferencia de perspectiva de Natorp Objektive und subjektive Methode y los Prolegómenos de Hus-
serl. Lo que está en el centro de la atención de Natorp es mostrar la primacía del método transcendental y, en
consecuencia, del proceder objetivo sobre el subjetivo. En Husserl lo que está en el centro de atención son, por un
lado, los presupuestos, por otro, las consecuencias del psicologismo como posición filosófica.

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mo principales protagonistas. Lo 5.2. - Objetivismo y subjetividad


anterior no significa decir, sin em-
bargo, que con esta polémica ya Pese todas las diferencias que exis-
se establezca en el neokantianis- ten entre las dos vertientes del
mo la crítica del psicologismo se- anti-psicologismo mencionadas
mántico como central, sino, úni- hasta ahora, hay algunos rasgos
camente, que se abre un camino comunes que motivan una simi-
que, en figuras como Rickert, ter- lar (aun cuando no absolutamente
mina culminando en una crecien- idéntica) objeción de parte de los
te atención a la cuestión de la ob- psicologistas y que se deja resu-
jetividad del sentido. En los años mir en el título “objetivismo”, con
noventa, la resistencia neokantia- el cual se apunta a subrayar des-
na al psicologismo del MP en las consideración del carácter en últi-
GW diltheano asume aún caracte- ma instancia subjetivo del conoci-
res más “clásicos”, tomando como miento. La línea de confrontación
horizonte una ampliación del con- entre psicologistas y antipsicolo-
cepto de validez (Geltung) que lle- gistas tiene una de sus expresio-
va a introducir como central la no- nes más importantes en la oposi-
ción de valor (Wert). ción “objetivismo”- relativismo.
Pero, si, por un lado, convie- Si comenzamos con el antipsi-
ne percibir la especificidad de un cologismo de cuño platónico, di-
problema del psicologismo con- gamos que ya Exner objetaba a
centrado en las GW, por otro, con- Bolzano, que la admisión de “re-
viene también no perder de vis- presentaciones en sí”, objetivas e
ta los vínculos esenciales que este irreales, nos enfrenta al proble-
psicologismo posee con aquel que ma irresoluble de cómo un suje-
se plantea en la lógica. El recono- to real, como en última instancia
cimiento de la especificidad de las lo es el sujeto del conocimiento,
Geisteswissenschaften es un proce- puede acceder a algo que, de prin-
so que está íntimamente vincula- cipio, no es real, una objeción que,
do a la discusión en torno a los obviamente, tiene su raíz última
fundamentos de la lógica: tanto en en la presuposición incondicional
un caso como en otro, el problema del PI, o sea, en este caso, en que
de la objetividad del sentido tien- solo puedo captar lo que de algún
de a delinearse con contornos pro- modo es real “en mí” (Exner a Bol-
pios frente al problema más clási- zano 10/12/1834, p. 74-75 y 78).
co de la verdad. Bolzano intenta varias respuestas
a esta objeción, pero ninguna es
convincente, en última instancia,
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porque en todas ellas no consigue en una crítica del concepto psi-


evidenciar el supuesto de Exner, cologista de subjetividad (ÜOSM,
concediendo a este sin más los de- p. 285-286; EPs, § 13-15). Su tesis
rechos de una psicología natura- fundamental, que lo opondrá al
lista. La crítica de Exner a Bol- psicologismo no menos que al “lo-
zano se repite en términos prác- gicismo” radical de Cohen, reza:
ticamente idénticos entre Kerry el psicologismo es la consecuencia
(ÜAPsV. IV, p. 305) y Frege, con de una falsa teoría de la subjeti-
la gran diferencia que ella termi- vidad, propia del naturalismo (y,
nará llevando a Frege a una decisi- en última instancia del dualismo)
va profundización de su posición y, por tanto, solo puede ser defi-
(FREGE: L (1897), p. 157; GGA, I, nitivamente superado si se supera
p. XIVss.). esta. Sobre esta base, la salida que
La tendencia objetivista de los Natorp propone es disolver la rígi-
anti-psicologistas se mantiene, da oposición sujeto-objeto, presu-
aun cuando en otra variante, en puesta en toda visión naturalista
la vertiente neokantiana, siendo de la subjetividad, substituyéndo-
decisiva tanto en Cohen cuanto en la por una oposición relativa entre
Windelband (BRELAGE, 1965, p. subjetivación y objetivación como
94-95). Como consecuencia de su diferentes direcciones en que se
tajante distinción de todo lo psico- puede considerar un único pro-
lógico, la así llamada “conciencia ceso fundamental. Si el sujeto no
transcendental” deviene en reali- puede ser simplemente elimina-
dad una mera façon de parler, que do, el sólo puede ser integrado
no expresa otra cosa que el con- coherentemente en el horizonte de
junto sistemático de principios de la reflexión filosófica si no se con-
validez. No obstante, surgirá de tradicen los principios del método
las propias filas neokantianas, y transcendental, o sea, el carácter
por un proceso inmanente, el in- de la filosofía como discurso de
tento de superación de esta ten- segunda orden. Por tanto, la sub-
dencia. Natorp es el primero en jetividad tiene que ser tematizada
comprender que, al fin de cuen- en un procedimiento reconstruc-
tas, una filosofía transcendental tivo a partir de la objetividad y en
sin sujeto es un sin-sentido y que estricta correlación con la misma
toda crítica al psicologismo que (NATORP: AP, p. 213).
no dé cuenta de su justa exigen- Si queremos entender el desen-
cia subjetiva, estará condenada al volvimiento posterior que tomará
fracaso. Por tal razón, Natorp con- la lucha antipsicologista y, en par-
centra su crítica al psicologismo ticular, el papel que Frege y Hus-

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serl habrán de desempeñar en la la fenomenología husserliana. La


misma, tenemos que observar que, crítica husserliana del psicologis-
junto con el mencionado cambio mo en los “Prolegómenos”, no de-
fundamental, existe en Natorp un be ser vista como un todo auto-
otro punto en el cual él conserva el subsistente, sino que se prolonga y
status quo, a saber, en el manteni- completa en el segundo volumen
miento del PI. En tal sentido, sal- de “Investigaciones lógicas” con la
vemos del olvido un hecho impor- propuesta de una elaborada teoría
tante, a saber, que en 1894, cuan- de la subjetividad coherente con
do Twardowsky escribe su históri- las exigencias del platonismo15 .
co texto “Sobre contenido y objeto El movimiento iniciado por Na-
de la representación”, Natorp le torp en el neokantianismo mar-
dedica una reseña en donde del burgués tiene un cierto paralelo,
contexto surge que él considera aun cuando más tardío, en el neo-
que Twardowsky se encuentra en kantianismo de Baden con Rickert
la dirección errada (NATORP, BD- (ZWE) y una interesante radica-
SE, II, p. 198-201), impresión és- lización en Högnigswald (PDPs)
ta que se reafirma si se atiende quien levanta la tesis de la no in-
a la correspondencia con Husserl compatibilidad de principio y he-
de esa época (Hua, Briefwechsel. cho (Prinzip und Tatsache), tanto
Band V, p. 39-58) y se confirma en el caso del yo como del lengua-
definitivamente en textos poste- je.
riores (AP, p. 153).
Pues bien, un año antes, en
1893, en el prefacio de las GGA 5.3. - Fenomenología transcen-
en su crítica de Erdmann, Frege dental – facticidad
es el primero que en el horizonte
de la filosofía alemana del siglo Como debería ser sabido, pero
XIX, abandona el PI14 . Esta de- es generalmente ignorado, la crí-
cisiva virada, claro está, quedará tica husserliana al psicologismo
totalmente opacada a la luz de la ni termina ni culmina en 1900,
centralidad que la cuestión de una sino que acompaña todo el desa-
perspectiva subjetiva adquiere en rrollo de Husserl y experimenta
una novedad decisiva con la des-

14 El papel de Frege en el PS es sistemáticamente mal comprendido: su radical antipsicologismo no excluye, sino


que supone una cierta idea de subjetividad. El centro de su crítica a Husserl en PhA es justamente que este, como la
casi totalidad de los discípulos de Brentano en esta época, mantiene expresamente la afirmación del PI (HUSSERL:
Hua, XII, p. 94).
15 Obviamente que, en este desarrollo, Natorp ha jugado un papel fundamental y, tal vez, Frege ha hecho una
contribución decisiva.

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cubierta de la reducción y la vira- Verzeitlichung y Verräumlichung


da al idealismo fenomenológico- (HUSSERL: Hua, III/1, p. 67; VII,
transcendental (Husserl: Hua, p. 71), pero solo alcanzará todo su
XXIV, p. 209ss.). Con esto apa- desarrollo cuando, a través de la
rece una nueva variante de anti- polémica en torno al artículo de la
psicologismo que tiene un perfil Enciclopedia Británica, Heidegger
especifico distinto de todas aque- introduzca la tesis de que el ver-
llas ya existentes e, incluso, obliga dadero sujeto transcendental es el
a repensar con más exactitud las sujeto fáctico en su facticidad y
distinciones de las cuales partía- comience a desenvolver ésta en el
mos16 . horizonte de un replanteo general
En la variante fenomenológico- de las relaciones entre el ser y el
transcendental del anti-psicologis- tiempo17 .
mo, si bien se da cuenta por ex-
tenso de la relación subjetividad
– objetividad, los problemas del 5.4. - Objetivismo, psicologismo
anti-psicologismo anterior no des- refinado y, nuevamente, MP
aparecen sino que se trasladan de
la relación de un sujeto concebido Si con Natorp, el anti-psicologismo
psicológicamente a un objeto con- marburgués se desenvuelve en la
cebido platónicamente, a la rela- dirección de una consideración
ción entre subjetividad psicológi- subjetiva, existen formas de anti-
ca y transcendental, un problema psicologismo, como las represen-
que ya, como vimos, se anunciaba tadas por Bauch, que se desen-
en Natorp, pero que ahora se radi- vuelven en la dirección exacta-
caliza por la propia reducción. mente contraria. Su idea básica
La búsqueda de una mediación es que la lucha contra el psicolo-
entre ambas subjetividades per- gismo debe ser radicalizada, pues
mea la última etapa del pensa- en todas las formas de pretendido
miento de Husserl con su concep- anti-psicologismo, inclusive pues
ción monádica del sujeto trans- en la escuela de Marburgo, per-
cendental que introduce nocio- manece un “psicologismo refina-
nes tales como Verweltlichung, do” (verfeinerter Psychologismus),
el cual debe ser superado, si la lu-

16 Si sobre el criterio de Frege, quien aceptaba el PI era psicologista, sobre el criterio de Husserl, quien no efectúa
la reducción es psicologista y, por tanto, también Frege. Ver nota 1.
17 Con esto adquiere su última expresión el proceso iniciado por Beneke y desenvuelto por Lotze y la escuela de
Brentano en el siglo XIX.
18 En base a lo dicho podríamos diferenciar en la lucha anti-psicologista del neokantianismo institucional por
lo menos tres etapas, una primera, la de los fundadores del programa, una segunda de los discípulos destacados

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cha debe llegar a su fin (IKPhAG, ya indicamos, también la escuela


p. 141. Compare LASK: LU, p. 171 de Brentano pretende defender.
y MOOG, LPsPs, p. 53, 77)18 . Si efectuamos ahora una visión
Dentro del horizonte descrip- retrospectiva tenemos que obser-
to, otro capítulo importante es var que si cuando se trata el PS
protagonizado en la escuela de la atención tiende a concentrarse
Brentano en la cual el objetivismo en el conflicto entre psicologistas
adquiere una variante realista y y anti-psicologistas, este conflicto,
no-transcendental, sobre la forma es un aspecto particular, cierta-
de la Gegenstandstheorie de Mei- mente central y esencial, de un to-
nong, la cual se propone progra- do más abrangente. Así como exis-
máticamente una “consideración tió una reacción antipsicologista
a-psicológica” (apsychologische Be- al psicologismo reinante, existió,
trachtung) del objeto y de la ver- además de la reacción psicologis-
dad. ta, una reacción al antipsicologis-
Así como Bauch se ve condu- mo, considerado ahora como mero
cido en el neokantianismo a una antipsicologismo u objetivismo.
polémica con Natorp, Höfler, si-
guiendo a Meinong, se ve conduci-
do en la escuela de Brentano a una 6 - Conclusión
polémica con Marty, quien reco-
nociendo la necesidad y legitimi- En las líneas que anteceden hemos
dad de la lucha anti-psicologista, puesto en evidencia que el PS lejos
resiste sin embargo a toda substi- de haber sido, como generalmente
tución del MP por la Gegenstandst- se tiende a creer, una unidad in-
heorie y su propuesta de eliminar divisa concentrada en la lógica y
toda consideración subjetiva (HÖ- con epicentro en los “Prolegóme-
FLER: ÜA, p. 216, 219; MARTY: nos” husserlianos, fue un proceso
UG, p. 304, 307). A esta tendencia en el cual se pueden y deben di-
dirige la acusación de “Apsycho- ferenciar etapas, tendencias, nú-
logismus”, para diferenciarla del cleos temáticos y líneas de evolu-
Anti-psychologismus, que, como ción.

Rickert y Natorp, que integran la perspectiva subjetiva en el horizonte transcendental y aún una tercera, que con
Hönigswald y Bauch van en direcciones no solo diferentes, sino opuestas.

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Recebido: 29/06/2019
Aprovado: 08/08/2019
Publicado: 17/11/2019

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 239-269 269
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v7i2.21193

A Antiguidade, um Erro Profundo?– Foucault, a Filosofia


e suas Atitudes
[Antiquity, a Deep Error? – Foucault, Philosophy and its Attitudes]

Jean Dyêgo Gomes Soares*

Resumo: Esse artigo visa compreender a afirmação de Michel Fou-


cault de que a Antiguidade seria “um erro profundo”. Quando ele fala
de suas relações com a filosofia, ele se desloca da pretensão ontológica
tradicional para uma prática: ao invés de se perguntar “o que” seriam
o poder e a filosofia, ele busca compreender “como” funcionam. Di-
ante desse deslocamento teórico em torno das chamadas “problema-
tizações”, esboça-se uma problematização específica, a do sujeito. Ao
destacar descontinuidades desde a Antiguidade até a Modernidade
entre estilísticas de si e teorias do sujeito, Foucault permite vislum-
brar uma resposta à questão do título. O expediente seria pensar a
Antiguidade como um erro profundo, sem, com isso, desconsiderar a
atitude também errática do homem moderno.
Palavras-chave: Problematização, Sujeito, Atitude, Modernidade,
Baudelaire.
Abstract: This paper aims to comprehend Michel Foucault’s state-
ment that Antiquity would be “a deep error”. When he talks on power
or its relations with philosophy, he displaces himself from a traditi-
onal and ontological pretension to a practical one: instead of asking
“what” would be power and philosophy, he seeks to comprehend
“how” they work. Having in mind this theoretical displacement
on “problematizations”, we take as an example that on the subject.
Foucault shows discontinuities soughed up for him since Antiquity
to Modernity, detailing differences between stylistics of self and
theories of the subject. In such a way, we found and answer to the
title question. The strategy is to think Antiquity as an error, as well
as considering the erratic attitudes of the modern humankind.
Keywords: Problematization, Attitude, Subject, Modernity, Baude-
laire.

Michel Foucault dedicou parte re- tuem uma referência estimulante


levante de sua vida à Antiguidade. sobre a estética da existência e o
Por maiores que sejam as críticas cuidado de si. E, no entanto, em
a suas posições teóricas ou a suas sua última entrevista, lemos o se-
leituras, seus trabalhos consti- guinte juízo: “Toda a Antiguidade

* Professor do Centro Universitário Unihorizontes. Doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro (PUC-RJ). E-mail: jeandyego@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1096-9686.

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ISSN: 2317-9570
JEAN DYÊGO GOMES SOARES

me parece ter sido um ‘erro pro- tido, a analogia procede: ambos


fundo”’. Como entender algo tão fazem convergir um pensamento
assertivo, decidido e direto? Se- inquieto em constante retomada
ria contraditório estudar um de- com a forma de vida em que se
terminado período considerando- encontram (NEHAMAS, 1998), e
o um “erro profundo”? Devemos isso bastaria para dar atenção à
ignorar ou relativizar o que está questão que Michel Foucault fez
dito, ou devemos tomá-lo a sério. despertar em nós.
O enunciado em questão surge Contra ou a favor? Em maio de
para nós hoje em meio a um con- 1981, Foucault concede uma en-
junto de textos que recobrem tra- trevista a Didier Eribon, seu fu-
balhos do autor francês desde turo biógrafo, em que reitera uma
1954 até póstumos publicados em posição. Ali, ele sugere uma no-
1988. Os Dits & Écrits (FOU- tável atitude diante de “um go-
CAULT, 1994), de fato, existe à verno”, ainda que aparentemente
revelia das recomendações testa- favorável, ele não só se dirigia
mentárias de seu autor. Sem nos àquele que acabava de ser eleito,
determos sobre a questão edito- François Mitterand, mas se refe-
rial, pois também é verdade que ria a um tema que à época lhe era
o agora publicado em conjunto bastante caro:
fora antes publicado ou aprovado
separadamente, é preciso dizer
que optamos por trabalhar nossa É preciso sair do dilema:
questão a partir de uma obra in- ou se é a favor, ou con-
completa e não aprovada por seu tra. Depois de tudo, pode-
autor, que se estabelece pelo seu se estar de pé e olhando
fôlego “espontâneo”, em forma- adiante. Trabalhar com
tos diversos, como uma espécie de um governo não implica
ensaios de um montaigne no sé- nem sujeição, nem aceita-
culo XX, se o leitor me permite a ção global. É possível às
expressão. Ali, reunidos eles pro- vezes trabalhar e ser re-
porcionam uma dimensão única belde. Acho mesmo que
das relações possíveis entre as par- as duas coisas vão jun-
tes reunidas. Assumindo tal pers- tas (Foucault, 1994-IV, p.
pectiva, buscaremos compreender 180).
essa afirmação aparentemente ra-
dical em correlação com outros A configuração do dilema é clara.
enunciados que talvez ajudem a Se considerarmos haver um con-
sustentá-la. Ao menos em um sen- flito contínuo em curso, ser a fa-
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vor ou contra de maneira irrefle- dos ao corpo, ciente de que aque-


tida ajuda pouco a sair do dilema. les sobre os quais ele havia se de-
Isso porque suporíamos posições bruçado ao longo de sua trajetória
tão rigidamente encerradas que apresentaram mudanças que “ti-
ou se seria completamente a fa- nham sido profundamente bené-
vor ou completamente contra, ig- ficas”. Fontana emenda: “Então,
norando uma infinita gradação de esses saberes nos ajudam a viver
posições entre os extremos. A dig- melhor...” e ele esclarece:
nidade de olhar adiante passa por
manter uma atitude emancipada,
que sabe simultaneamente traba- Não houve uma simples
lhar e ser rebelde diante de um mudança nas preocupa-
governo. Trata-se de não se sujei- ções, mas no discurso
tar, de não agir contra si mesmo, filosófico, teórico e crí-
tampouco assumir uma posição tico: com efeito, na maior
de aceitação mouca e global. Fou- parte das análises feitas,
cault se propõe a tarefa de con- não se sugere às pessoas
frontar o presente, isso implica o que elas deveriam ser,
em, ao experimentá-lo, aprender o que deveriam fazer, o
a tomar posições, discutir, dialo- que deveriam crer ou pen-
gar sobre o que nos tornamos e sar. Trata-se mais de fazer
seremos. Nessa medida, podería- aparecer como até o pre-
mos ceder a uma sugestão tenta- sente os mecanismos soci-
dora: a de que ele agiria como o ais teriam se colocado em
explorador que vai até uma colô- jogo, como as formas de
nia penal. Ali, ele observaria os repressão e de coerção te-
procedimentos do aparelho, ou riam agido, e assim, a par-
em termos foucaultianos, o fun- tir daí me parece que se
cionamento do dispositivo, tiraria daria às pessoas a possibi-
suas conclusões e esperaria que a lidade de se determinar,
simples discordância performati- de fazer, ciente de tudo
vamente bem cuidada diante do isso, a escolha de sua exis-
oficial fosse suficiente para pôr tência (Foucault, 1994-IV,
termo a uma situação injusta. p. 732).
Em 1984, em conversa com
Alessandro Fontana, ele rechaça Foucault não sugere como jogar o
essa posição, numa clara resposta jogo, ou seja, não manifesta pre-
a essa crítica. Ali, explicita a am- ocupações normativas, e vê isso
biguidade dos saberes relaciona- como uma mudança no discurso
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filosófico. Como no caso de um paração bastante elucidativa sobre


texto de jornal de Kant (2012; as relações entre o poder e os su-
Foucault 1978, 2010), trata-se me- jeitos. Para ela, acostumamo-nos
nos de dizer como o outro deve a pensar no poder como algo que
ou não agir, e mais de sugerir que pressiona o sujeito exteriormente,
ele pode agir diferentemente, que subordinando e relegando-o a or-
pode ousar saber. Em uma for- dens inferiores, o que seria uma
mulação simples, não se trata de descrição justa, mas parcial do
ensinar como o jogo da verdade que faz o poder. A autora, no en-
deve ser jogado, mas de analisar tanto, adverte: “se entendemos
como ele vem sendo jogado para o poder também como algo que
permitir que cada um avance por forma o sujeito, que determina a
si mesmo nas jogadas. Ao fazer própria condição de sua existência
isso, todavia, Foucault não assume e a trajetória de seu desejo, o po-
uma posição de observador exte- der não é apenas aquilo a que nos
rior, cujo objetivo seria o de sem- opomos, mas também, e de modo
pre se posicionar “fora daqui”, bem marcado, aquilo de que de-
quixotescamente sem quaisquer pendemos para existir e que abri-
provisões e disposto a morrer de gamos e preservamos nos seres
fome se as condições forem ad- que somos” (Butler, 2017, p. 9).
versas. Ele faz suas análises para Em outros termos, ela sugere que
permitir que cada um escolha os esses processos não só perpetuam
conflitos, os jogos que deseja en- o jogo tal como foi jogado, e contra
frentar. Com isso, ele não deseja o qual se opõe, como também se
encontrar um lugar de plena auto- o situarmos enquanto problema,
nomia individual, mas sim permi- isso assim o será porque o que
tir que cada um faça as escolhas somos está ligado a ele. Através
de sua existência, um processo deste problema, compreendemos
complexo que depende simulta- como nos tornamos o que somos.
neamente do desenvolvimento de No início do verbete sobre si
capacidades biológicas e sociais, mesmo, Foucault fornece duas de-
capaz de permitir que “os indi- finições negativas de sua histó-
víduos determinem a si mesmos” ria crítica do pensamento, eluci-
sem que isso exija uma recusa dativas nesse ponto, a saber: ela
da liberdade social, muito pelo não constitui uma “história das
contrário, permitindo simultanea- ideias que seria ao mesmo tempo
mente esse exercício por parte de uma análise dos erros que se po-
todos. deria retrospectivamente mensu-
Judith Butler fornece uma com- rar;” tampouco “uma decifração

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dos desconhecimentos pelos quais encobertos, e de verdades últimas


elas estavam ligadas e das quais e universais não-reveladas.
o que pensamos hoje poderia de- Antes de passarmos à definição
pender” (Foucault, 1994-IV, p. positiva, é notável o sintagma su-
631). Essa definição desvia a posi- gerido por ele para definir seu tra-
ção de Foucault de uma história balho de pesquisa, a saber, história
das soluções, que desejasse res- crítica do pensamento. Notável por-
ponder a problemas atuais com que uma “história crítica” por si só
respostas de um ontem. É pre- chama a atenção: remete simulta-
ciso considerar que para aceitar neamente ao legado kantiano da
soluções de outrora para o agora, crítica, enquanto crítica da razão,
pressuporríamos uma medida a- de seus limites, de suas condições
histórica para o que é certo e er- de possibilidade transcendentais;
rado; e a posição de Foucault em e remete também ao trabalho de
seu retorno à antiguidade não é um historiador que nega a ne-
a de decifrar algo que está es- cessidade de transcendentalidade
condido, que supõe agora mos- para se inspirar em um estilo bas-
trar, para solucionar um problema tante nietzschiano de fazer a his-
atual. tória, a ponto de aceitar a sugestão
As duas definições negativas de que o que fazia, no fundo, era
fornecidas colaboram para perce- uma “nova genealogia da moral”
ber como Foucault pretende não (Foucault, 1994-IV, p. 731). En-
ceder à lógica do “contra ou a fa- tão não seria a “história crítica do
vor”. Ao propor uma história crí- pensamento” um sintagma para a
tica, ele não cede à vontade de nor- filosofia de Foucault? Ou ao menos
malizar a história a partir de cri- para sua “história da filosofia”?
térios ahistóricos – não denega o A definição positiva é fornecida
presente em nome de uma nostal- algumas linhas depois, a saber,
gia do passado; tampouco desen- “uma história crítica do pensa-
volve uma necessidade incessante mento seria uma análise das con-
de tornar obsoleto o que passou a dições pelas quais são formadas e
partir da hegemonia dos critérios modificadas certas relações entre
do presente. Nota-se que ele não sujeito e objeto, na medida em que
se arroga a pretensão de falar de ambos são constitutivos de um sa-
algo que ninguém falou, de deci- ber possível” (Foucault, 1994-IV,
frar o desconhecido, passando ao p. 632). Aqui, esbarramos em um
largo de preocupações com o des- deslocamento importante. Menos
velamento de totalidades escondi- do que saber o que é o sujeito ou
das, de sentidos profundamente o objeto, questões características

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da história tradicional da filosofia, da ética. “História crítica do pen-


Foucault fala de condições de for- samento” pode ser um dos sintag-
mação e modificação, em termos mas da filosofia na medida em que
semelhantes às condições de pos- percebemos a filosofia como ativi-
sibilidade da crítica kantiana. Po- dade de compreensão de nossas
rém, nota-se um tom genealógico práticas, como um modo de saber
inconfundível, uma vez que essas o que nos tornamos, bem como
condições parecem remeter às en- tornamos certos objetos possíveis.
fatizadas condições de proveniên- Ela seria uma nova maneira de nu-
cia e emergência de que fala o au- trir essa amizade pelo que ainda
tor em seu ensaio sobre Nietzsche não sabemos, mas que, ao contrá-
(Foucault, 1994-IV, p. 136-57). As rio de dirigir suas dúvidas na di-
questões, portanto, são diferentes. reção do infinito, se pergunta pe-
Menos do que se perguntar pelo las coisas da vida presente, pelo
“o que é?” numa busca que situa modo de vida atual.
seu discurso num espaço radical- Assim ele escapa aos dilemas da
mente a-historicizante, Foucault questão ontologicamente norma-
coloca a pergunta “como se tor- tiva, a saber, de se perguntar “o
nou?”. É por isso que na sequência que é?”. Se aceitarmos que os im-
dessa definição ele precisará o que passes para responder a essa ques-
chama de modos de subjetivação e tão estão ligados a uma demanda
de objetivação: porque seu pen- por ser “a favor ou contra”, a cer-
samento dedica-se a se perguntar tos pressupostos ontológicos in-
sobre como, quais possibilidades, conscientes, percebemos simulta-
quem, porque nos tornamos isso neamente a historicidade da ques-
que somos atualmente. tão, ou seja, como cada época ex-
Nessa medida, seu modo de fa- clui ou aceita respostas específi-
zer filosofia está diretamente li- cas para a questão segundo pres-
gado à história, mas não é uma supostos partilhados. Isso ine-
história estrita da filosofia: por- vitavelmente salienta a normati-
que para perceber como esses vidade implicada por esse tipo
“modos” são constitutivos de um de suposição ontológica. A isso
saber possível, ele não se restringe Foucault denominará atos de pro-
aos “modos” da filosofia tradicio- blematização. Embora só a te-
nal que se põe a pergunta sobre o nha “isolado” suficientemente em
que não pode responder, em busca seus últimos escritos, como ad-
de um saber impossível sobre a mite, “as coisas mais gerais são as
essência atemporal, a origem das que aparecem em último lugar”
coisas ou o fundamento universal (Foucault, 1994-IV, p. 670), ele

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deixa claro que problematização vas; na medida em que situa seu


“é o conjunto das práticas discur- trabalho “entre as pedras de es-
sivas e não-discursivas que faz al- pera e os pontos de suspensão” de
guma coisa entrar no jogo do ver- modo a “abrir um canteiro, ten-
dadeiro e do falso e o constitui tar e falhar, recomeçar outra vez”
como objeto para o pensamento” (Foucault, 1994-IV, p. 20). As me-
(Foucault, 1994-IV, p. 671). táforas arquitetônicas, constantes
Um exemplo pode já ser obser- no trabalho de Foucault (Deleuze,
vado retroativamente. Em As pa- 2006, p. 280) remetem a um pro-
lavras e as coisas, Foucault sugere cesso inacabado e contínuo: as pe-
uma história do mesmo, de como dras de espera são aquelas que,
cada época dentro daquele recorte engastadas em outras peças ou pi-
foi capaz de estabelecer para si sos, permitem o acoplamento pos-
mesmo um modo específico de terior de uma peça exterior (Al-
colocar a questão “o que é?” e bernaz & Lima, 1998-I, p. 235);
respondê-la segundo certas possi- os pontos de suspensão lembram
bilidades, regulando e excluindo os balancins que sobem e descem
respostas. Ao fazer essa história as construções, os guindastes que
do mesmo, ele não está sugerindo elevam caçambas de concreto. Eis
que o que se deu foi mesmo assim, uma obra, a desse francês de Poiti-
mas que esse mesmo alterou-se ers, que não termina porque abre
com a passagem de um conjunto canteiros, porque não se funda em
de saberes formados a partir da profundidades imemoriais, por-
semelhança, para outros forma- que não tem intenções panópti-
dos a partir da representação e da cas, mas se dedica ao presente, a
significação (FOUCAULT, 2007). um solo temporal, sobre o qual ca-
O modo de problematizar se alte- minhar, e questiona construções
rou. Assim, ele encontra uma ma- teóricas demasiado faraônicas.
neira de narrar como nos tornamos Evidentemente, as metáforas
o que somos, e não de responder arquitetônicas já são quase ca-
definitivamente à questão sobre o tacreses na história da filosofia:
que somos. fala-se da busca por “fundamen-
Mas em quê tudo isso encerra tos” com a mesma espontanei-
o dilema de ser contra ou a favor dade de um arquiteto que fala dos
de alguma coisa? Como essa his- “dentes” de uma “coluna”. Ao
tória crítica do pensamento ajuda utilizá-las, Foucault nitidamente
a se situar na luta? Na medida desvia-se de seu uso naturalizado
em que ela desafia o que existe, ao se remeter para um conjunto de
menos do que propõe alternati- elementos errantes e passageiros,

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nada fundacionais, uma vez que mínios do saber (Foucault,


tanto as esperas quanto os pon- 1994-IV, p. 707).
tos de suspensão nos remetem aos
céticos, para quem a busca de um Uma interpretação distorcida do
fundamento não faz qualquer sen- que Foucault gostaria de fazer en-
tido. Em 1984, um entrevistador quanto pensador cético pode ser
lhe pergunta se, na medida em desastrosa. Ele não é contra ou
que não afirma verdade univer- a favor dos domínios do saber –
sais, em que conduz o pensamento não se trata de saber pouco se-
a paradoxos, bem como “faz da fi- guramente, tudo a partir de uma
losofia uma questão permanente”, dúvida radical, ou nada como fi-
Foucault não seria um pensador nalidade ataráxica do cético. Seu
cético, sua resposta foi a seguinte: objetivo claro de “limitar os do-
mínios do saber” é cético na me-
- Completamente [Absolu- dida em que assinala que a apli-
ment]. A única coisa que cação e o uso desses saberes são
não aceitaria no programa válidas para a experiência, porém
cético é a tentativa que devem ser confrontadas com ou-
os céticos fizeram de che- tras práticas que não se consti-
gar a um certo número de tuem como saberes – e o trabalho
resultados em uma dada da filosofia parece ser o de assi-
ordem – pois o ceticismo nalar as possibilidades emergen-
nunca foi um ceticismo to- tes quando nos deparamos com
tal! Tentei levantar os pro- essas experiências-limite. Em ou-
blemas nos campos dados, tros termos, “limitar os domínios
e em seguida, fazer va- do saber” passa por “problemati-
ler no interior de outros zar” as “experiências-limite” que
campos as noções efetiva- funcionam como “pontos de sus-
mente consideradas como pensão” e “esperas” no jogo do
válidas; em segundo lu- verdadeiro e do falso.
gar, me parece que, para Através dessa perspectiva esta-
os céticos, o ideal seria ser mos mais aptos a notar como sua
cético sabendo relativa- maneira de fazer história ajuda a
mente pouca coisa, mas as compreender que “imaginar um
saber de maneira segura outro sistema atualmente ainda
e imprescritível; enquanto faz parte do sistema”. Numa
que o que gostaria de fa- conversa em 1971, Foucault cita
zer é um uso da filosofia exemplos dessa problematização
que permita limitar os do- dos modos de vida: “a sociedade
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A ANTIGUIDADE, UM ERRO PROFUNDO?– FOUCAULT, A FILOSOFIA E SUAS ATITUDES

futura se esboça, talvez, através tas reacionárias. Aferram-


de experiências como a droga, o se às velhas concepções
sexo, a vida comunitária, uma de seus mestres apesar do
outra consciência, um outro tipo desenvolvimento histó-
de individualidade... Se o socia- rico contínuo do proletari-
lismo científico se libera das uto- ado. Procuram, portanto,
pias do século XIX, a socialização e nisto são consequentes,
real liberar-se-á, talvez, no século atenuar a luta de classes
XX, das experiências” (Foucault, e conciliar antagonismos.
1994-II, p. 234). Menos do que Continuam a sonhar com
ser a favor ou contra as drogas, o a realização experimen-
sexo liberal, a vida comunitária, tal de suas utopias sociais:
Foucault assinala a importância instituição de falanstérios
dessas experiências como índices isolados, criação de colô-
dos limites do saber, meios para a nias no interior, fundação
problematização dos modos pelos de uma pequena Icária –
quais vivemos. Para compreender edição em formato redu-
melhor a analogia feita nessa con- zido da nova Jerusalém –
versa pode ser instrutivo retornar e para dar realidade a to-
ao Manifesto Comunista, cito-o: dos esses castelos no ar
veem-se obrigados a ape-
A importância do soci- lar para os bons sentimen-
alismo e do comunismo tos e os cofres dos filan-
crítico-utópicos está na tropos burgueses. Pouco
razão inversa de seu de- a pouco caem na catego-
senvolvimento histórico. ria de socialistas reacioná-
À medida em que a luta rios ou conservadores des-
de classes se acentua e critos anteriormente, e só
toma formas mais defi- se distinguem deles por
nidas, a fantástica oposi- um pedantismo mais sis-
ção que lhe é feita perde temático, uma fé supersti-
qualquer valor prático e ciosa e fanática nos efeitos
qualquer justificativa teó- miraculosos de sua ciên-
rica. Por isso, se em mui- cia social (Marx & Engels
tos aspectos, os fundado- 2010: 67-8).
res desses sistemas eram
revolucionários, as seitas Esse trecho exprime sumaria-
formadas por seus discí- mente a relação dos autores do
pulos formam sempre sei- socialismo científico com as uto-
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pias do século XIX. Eles ressal- tro sistema atualmente faz parte
vam com precisão os riscos que do sistema”. Sem esses bons sen-
a adesão irrefletida a uma posição timentos nutridos por burgueses,
gera, nomeadamente quando ela é seria bastante improvável que a
utópica, ou seja, quando quer de- história do socialismo e do anar-
fender e “dar realidade” a castelos quismo pudesse assinalar o pio-
no ar. Inspirando talvez as céle- nerismo utópico dos falanstérios e
bres comparações de Slavoj Žižek icárias.
(2018) sobre como o uso do po- Com esse exemplo pretende-
liticamente incorreto responde à mos esclarecer melhor a ambi-
exigência normativa do politica- guidade presente no segundo ele-
mente correto como duas faces de mento da comparação anterior-
uma mesma moeda, Karl Marx e mente elaborada por Foucault. Ao
Friedrich Engels sugerem que os sugerir que uma sociedade futura
socialistas utópicos diferenciam- se esboça a partir de certas prá-
se em muito pouco de socialistas ticas marginalizadas, ele assinala
reacionários e conservadores. O como se dá o processo através do
que os separa é somente um pe- qual imaginar outra existência se
dantismo baseado na ciência so- dá dentro dessa existência. A cul-
cial, bastante semelhante àquele tura hippie dos anos 1970 expe-
de quem busca raízes etimológi- rimentou com propriedade essa
cas ou históricas para justificar possibilidade. Uma geração de
interditos politicamente corretos jovens criados em famílias estru-
em torno de palavras já ressignifi- turadas e com condições variadas
cadas pelo uso. Ao criticar uto- sonhou com um futuro de paz e de
pistas tais como Fourier, Cabet amor, em um mundo sem países e
e Owen, Marx e Engels marcam sem religiões, em que todos vive-
uma posição que retoma as práti- riam intensamente o agora. O que
cas reais das classes para alterar está culturalmente manifesto em
a realidade, ao invés de dar reali- filmes como Hair de Milos Forman
dade a um objeto de uma imagi- ou em canções como “Imagine”
nação singular. Eles não são con- de John Lennon soa semelhante
tra ou a favor dos utopistas, mas aos experimentos dos utopistas ao
mostram simultaneamente a im- menos em um aspecto: são sonhos
portância e a posterior decadên- geminados e resultantes dos limi-
cia dessa posição. Além disso, o tes colocados pelos próprios sabe-
recurso “aos bons sentimentos e res vigentes de então. Diante de
aos cofres filantropos burgueses” uma economia baseada na propri-
destaca o quanto “imaginar ou- edade privada, que separa posses-

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sões pessoais da mesma maneira socialismo científico de Marx e


que países inteiros; em um mundo Engels, pois é nesse jogo de rein-
em que as divergências dão azo a venção contínua entre atos de pro-
guerras por territórios sagrados, blematização incessantes, que não
por poços de petróleo ou mesmo se para de imaginar outro sistema,
por condições mínimas de vida; ou outro problema atualmente na-
enfim, diante de tantos conflitos, quele em que se vive.
imaginar outro sistema em que to- A atitude. Com isso em mente,
dos partilham o mesmo mundo é podemos retomar a questão. Se
algo que não deve nos demover de não se trata de ser a favor ou con-
pensar que esses sonhos são pro- tra, mas de problematizar, como
dutos derivados desses conflitos, supor que a Antiguidade é um
como uma reação utópica, é ver- erro? O enunciado surgiu em “O
dade, mas uma reação, um vetor retorno da moral”, última entre-
de força. vista concedida por Foucault:
A socialização real de que fala
Foucault, todavia não corres-
ponde a essa utopia hippie. Sua - Um estilo de existência
sugestão é a de que da mesma é admirável. Você acha os
maneira que o socialismo cientí- gregos admiráveis?
fico precisou criticar o socialismo - Não.
utópico, compreendendo, todavia, - Nem exemplares, nem
sua originalidade; assim também admiráveis?
num futuro próximo um conjunto
de saberes compreenderá a origi- - Não.
nalidade contida nas experiências - O que você acha deles?
dessa geração, todavia criticando- - Não tão excelentes. Eles
a em aspectos considerados utó- toparam imediatamente
picos. A execução de projetos e contra o que me parece
pesquisas científicas através de fi- ser o ponto de contradi-
nanciamento coletivo, a profissio- ção da moral antiga: en-
nalização da prostituição em luga- tre, de um lado, a busca
res como a Holanda ou a legaliza- obstinada por um certo
ção de certas drogas pode ser vista estilo de existência e, de
como a socialização real resul- outro, o esforço por torná-
tante dessas “utopias” do século lo comum a todos, estilo
XX. Manifestações essas, diga-se que os aproximou sem dú-
de passagem, também sujeitas a vida mais ou menos obs-
críticas, bem como foi o caso do curamente de Sêneca e de
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Epiteto, mas que só en- fornecendo uma pista sobre como


controu a possibilidade de compreender esse enunciado ao
se investir no interior de sugerir que “os antigos para Fou-
um estilo religioso. Toda cault perturbam nossas moder-
a Antiguidade me parece nas certezas. E eles estavam ap-
ter sido um “erro pro- tos para tanto, para nos perturbar
fundo” (Foucault, 1994- desse modo, não porque as verda-
IV, p. 698). des deles seriam mais verdadei-
ras do que as nossas, mas porque
Não seria difícil acusar Foucault elas eram outras” (Idem, p. 559).
de generalização apressada ao di- Assim, menos do que adotar uma
zer que “toda a Antiguidade pa- postura nostálgica, o comentário
rece ter sido um ‘erro profundo”’. de Gros sugere que as problema-
Um comentador distraído pode- tizações da Antiguidade feitas por
ria se desviar desse enunciado e Foucault constituem uma alteri-
apresentar as diversas análises do dade relevante para a nossa atu-
autor sobre a estética da existên- alidade, e não simplesmente um
cia, a parresía, o uso dos prazeres, repositório de soluções a serem
o cuidado de si, sobre as tentações novamente traduzidas e cataloga-
da carne, enfim, toda uma histó- das. Com isso em mente, tentare-
ria crítica da sexualidade que en- mos perceber melhor em que me-
contrará na Antiguidade em sen- dida Foucault estaria se referindo
tido amplo do termo, dos gregos à Antiguidade como um erro pro-
do século IV a.C. aos cristãos, um fundo, uma vez cientes de que ele
foco de atenção nos últimos anos retorna a ela despertando um en-
de vida, como assinala Frédéric canto indisfarçável por parte de
Gros, editor dos últimos cursos de muitos leitores.
Foucault (in Lawlor 2014, p. 556). Mais adiante, ainda na mesma
Com isso, essa personagem se des- entrevista, ele continua: “Toda
viaria do problema e não faria a experiência Grega pode ser re-
mais do que parafrasear leituras vista um pouco da mesma ma-
sem exercer uma atitude crítica, neira, tendo em conta, em cada
tanto diante do que sugere Fou- caso, as diferenças de contexto
cault, quanto da própria Antigui- e indicando a parte dessa expe-
dade, sustentando assim uma ade- riência que pode talvez se sal-
são irrefletida aos temas de pes- var e aquela que, pelo contrário,
quisa levantados por Foucault. O se pode abandonar.” (Foucault,
próprio Frédéric Gros não se de- 1994-IV, p. 702). A sugestão é
mite de salientar algo relevante, a de que ao retornar aos antigos

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e problematizar certas experiên- uma experiência que não é


cias, tornamo-nos aptos a perce- aquela do sujeito, mas do
ber o quanto somos diferentes e indivíduo, na medida em
não tanto o quanto podemos ser que ele busca se constituir
semelhantes. Nesse sentido, par- como mestre de si. Faltava
tes da experiência da Antiguidade à Antiguidade Clássica ter
Grega podem ser abandonadas, problematizado a consti-
e evidentemente, outras acabam tuição de si como sujeito;
por ser salvas. Essa sugestão ainda inversamente, a partir do
um tanto vaga não especifica qual cristianismo, houve o con-
seria esse erro profundo, mas per- fisco da moral pela teo-
mite supor que há algo de errado ria do sujeito. Ora uma
a ser abandonado. experiência moral essen-
No final da entrevista, no en- cialmente centrada sobre
tanto, ao ser confrontado com a o sujeito não me parece
questão sobre se haveria ou não mais satisfatória hoje. E
uma teoria do sujeito entre os gre- por isso mesmo um certo
gos, Foucault esclarece que não número de questões se
acredita ser necessário reconsti- colocam a nós nos mes-
tuir “uma experiência do sujeito” mos termos em que elas
na Grécia. Isso porque a experi- se colocaram na Antigui-
ência, ou seja, a maneira de pro- dade. (Foucault, 1994-IV,
blematizar a si mesmos dos gre- p. 706)
gos não exigia uma “definição de
sujeito”. Ele sugere ainda que, ba- Do fato histórico de não haver
seado na literatura, se “nenhum uma noção de sujeito não se se-
pensador grego nunca encontrou gue que não haja algum tipo de
uma definição de sujeito, nem experiência de si na Grécia, ou em
nunca a buscou, diria simples- outros termos, se o sujeito não é
mente que não há um sujeito”, isto problematizado pelos gregos, há,
é, não há uma teoria nesse sen- todavia, uma problematização so-
tido, porque não há problemati- bre si mesmo presente na Antigui-
zação nesse sentido. Todavia, ele dade Clássica, como Foucault vai
ressalva: desenvolver no segundo volume
de sua história da sexualidade, O
O que não quer dizer que uso dos prazeres (1984). A estética
os gregos não se esfor- da existência é vista por Foucault
cem por definir as condi- como um dos modos de sujeição
ções pelas quais se daria pelos quais o indivíduo se encon-
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tra vinculado a um conjunto de tização centrada na noção de su-


regras e de valores, caracterizado jeito. Ela tornou-se uma posição
neste caso pelo ideal de viver be- estratégica dissolvida na prática
lamente, de ser mestre de si, e da linguagem, não estando ela
de deixar uma memória de uma mais submetida necessariamente
existência bela (Foucault, 1994- a uma experiência moral especí-
IV, p. 384; 397; CASTRO, 2009, fica como a do cristianismo (Fou-
p.151). Todavia, o que não há cault, 2007). Como Foucault su-
na problematização grega sobre gere na entrevista a Alessandro
como ser mestre de si é a subor- Fontana: “penso efetivamente que
dinação dessa estética da existên- não há um sujeito soberano, fun-
cia a uma moral, o que será feito dador, uma forma universal de
pelo cristianismo através de uma sujeito que se poderia reencon-
teoria do sujeito, ou seja, da subor- trar em todos os lados. Sou bas-
dinação, da sujeição do indivíduo tante cético e bem hostil para com
a um conjunto de princípios mo- essa concepção de sujeito” (Fou-
rais. Com essa teoria do sujeito, cault, 1994-IV, p. 733). Não se-
o cristianismo proporá uma nova ria a primeira vez que esse ceti-
problematização que “confisca a cismo se manifestaria. A despeito
moral”, restringindo-a a possibi- dos deslocamentos teóricos ofe-
lidades dadas por essa teoria. Já recidos pelos textos em torno da
não se pensa mais em como criar Antiguidade, a problematização
para si uma existência boa e bela, em torno desse sujeito soberano,
numa estética da existência seme- emergente no cristianismo, é re-
lhante à dos gregos, mas a partir corrente (FOUCAULT, 1944-IV, p.
de uma teoria sobre como o indi- 223; 633-4; 657). Com isso em
víduo deve ou não se sujeitar. mente, podemos retomar o trecho
Evidentemente, toda a crítica supracitado de sua última entre-
empreendida em direção à no- vista:
ção de sujeito não está sendo re-
negada por Foucault em nome A busca de estilos de exis-
de uma nova teoria do sujeito, e tência tão diferentes uns
por isso “uma experiência moral” dos outros quanto possí-
centrada sobre tal noção não pa- veis me parece um dos
rece satisfatória para a problema- pontos pelos quais a busca
tização da atualidade. Nos tem- contemporânea de uma
pos em que “Deus morreu”, num forma de moral que se-
mundo desencantado não faz mais ria aceitável para todo
sentido insistir numa problema- mundo – no sentido de
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que todo mundo deveria dade (1984, 1985, 2018) no sen-


a ela se submeter – me pa- tido de mostrar como o sujeito não
rece catastrófica. Mas se- é um problema que desde sem-
ria um contrassenso que- pre existiu para a moral europeia,
rer fundar uma moral mo- ponto de emergência das morais
derna sobre a moral an- ditas ocidentais. Ele emergiu em
tiga passando por cima da determinado momento, criando
moral cristã. Se eu empre- um problema que não existia para
endi um estudo tão longo, os gregos; surgiu a partir dos cris-
seria para tentar eviden- tãos graças ao “confisco da moral”
ciar como o que chama- da Antiguidade; e que, provavel-
mos de moral cristã está mente, com a busca por estilos de
incrustado na moral euro- existência tão diferentes uns dos
peia, não só desde os pri- outros na atualidade, ele deixou
mórdios do mundo cris- de poder ser problematizável tal e
tão, mas desde a moral an- qual. Segundo a sugestão de Be-
tiga (Foucault, 1994-IV, p. atrice Han, “o modelo grego de-
706-7). sempenha o papel de uma matriz
mais simples de avaliar a moder-
Esse comentário colabora para nidade a contrario” (Han, 2012,
elucidar com mais clareza porque p. 10). Em termos simplificado-
ele considera que Antiguidade se- res: por um lado Foucault sugere
ria um erro profundo, sem que que, para os gregos, há estética da
com isso se incorra em algum tipo existência sem uma teoria do su-
de avaliação anacrônica. Foucault jeito, mas com um objetivo deter-
salienta que a busca de uma moral minado – o de ser mestre de si,
para todos seria catastrófica em o de ter, segundo o estilo ideal,
sua atualidade exatamente porque uma existência boa e bela; e por
a problematização atualmente é outro, para boa parte do cristia-
outra. Uma vez que não há mais nismo (Foucault ressalva algumas
o problema do sujeito soberano, seitas ascéticas), essa experiência
a questão deixa de ser aquela re- de busca de um estilo é confiscada
lativa à forma universal para a pela moral, permitindo o surgi-
qual uma estética da existência mento de uma teoria do sujeito, o
ou uma teoria do sujeito morali- que anula a necessidade de se tor-
zadora para todos se remeteriam. nar mestre de si, uma vez que se
Em todo caso, para que isso se está assujeitado. Cito-o:
tornasse claro, Foucault argumen-
tou em sua História da Sexuali- Esta elaboração de sua
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própria vida como uma


obra de arte pessoal, O “erro” aparece aqui de forma
mesmo que ela obedeça mais clara e menos vaga: apesar
a cânones coletivos, es- de terem sabido elaborar uma es-
tava no centro, me parece, tética da existência, ou seja, ape-
da experiência moral, da sar de terem sido capazes de con-
vontade de moral da An- ceber a própria existência, en-
tiguidade; bem como, no quanto indivíduos, como uma
Cristianismo, com a reli- obra de arte pessoal, os antigos o
gião do texto, a ideia de faziam tendo em vista cânones co-
uma vontade de Deus, e o letivos. É por isso que, por mais
princípio de obediência, a intrigante e estimulante que seja
moral ganha muito mais pensar na problemática de uma
a forma de um código de estética da existência a partir dos
regras (somente algumas gregos, ela é completamente dis-
práticas ascéticas estive- tinta da nossa experiência, porque
ram mais ligadas ao exer- ali se tratava de criar uma vida
cício de uma liberdade como obra a partir de uma esti-
pessoal). Da Antiguidade lística pré-concebida, ou se qui-
ao cristianismo, passe-se sermos, de uma retórica do que
de uma moral que era es- seria a boa vida. A Antiguidade
sencialmente uma busca seria um erro para Foucault na
de uma ética pessoal a medida em que então se acredi-
uma moral como obedi- tava ser possível imaginar um es-
ência a um sistema de re- tilo que seria o bom e o belo, es-
gras. E se eu me inte- tabelecendo uma verdade do bem
ressei pela Antiguidade, agir. Essa estilização engessada do
é que, por toda uma sé- bem viver dá lugar com o cristia-
rie de razões, a ideia de nismo a um código de regras fun-
uma moral como obediên- dado presumidamente na vontade
cia a um código de regras de seu Deus e no princípio de obe-
está prestes, agora, a de- diência. Desaparece a experiên-
saparecer, senão já desa- cia da estilização da existência a
pareceu. E a essa ausência partir de modelos pré-concebidos
de moral, deve responder para dar lugar à teoria do sujeito.
uma busca que é aquela Retornar a ambos não seria uma
de uma estética da exis- solução para pensar a moderni-
tência (Foucault, 1994-IV, dade, mas serve para compreen-
p. 731). der à nossa maneira de problema-
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tizar que, conforme a sugestão an- do que querer distinguir o “pe-


terior de Foucault depende desses ríodo moderno” das épocas “pré”
dois elementos, a saber, da reto- e “pós” modernas, creio que seria
mada plural de uma estética da melhor investigar como a atitude
existência de um modo desconhe- da modernidade, desde que ela se
cido até então e de uma dissolução forma, se encontra em luta com
da teoria do sujeito soberano. atitudes de “contramodernidade”
Se os gregos são uma matriz ao (Foucault, 1994-IV, p. 568).
contrário isso se dá porque se in- Nota-se aqui como esse “erro”
vertermos o modo como eles pro- profundo ajuda a pensar. Como
blematizavam a própria existên- sugere Deleuze, “Foucault diz:
cia encontramos algo semelhante os gregos fizeram muito menos
a atitude moderna. Ao retirar- ou muito mais, como quiserem”
mos daquela estética da existên- (1988, p. 121), de modo que não
cia sua finalidade, ou seja, a ne- se trata de reproduzir o éthos ou a
cessidade de fazer coincidir a vida atitude dos gregos. Se éthos é co-
como obra de arte com a vida mumente traduzido por hábito ou
boa e bela segundo um estilo costume, perde-se evidentemente
pré-determinado, estaremos di- a especificidade que essa palavra
ante da atitude moderna que Fou- possui, e mesmo a disputa em
cault exemplifica através de certa torna de seu sentido. Barbara Cas-
leitura de Kant, como vemos em sin sugere em seu verbete “Mo-
“O que são as Luzes?”: rais” do Dicionário dos intraduzí-
Ao me referir ao texto de Kant, veis (2014, p. 691-3) que muitas
me pergunto se não se pode con- das dificuldades e mesmo das con-
siderar a modernidade como uma fusões entre costumes e morais,
atitude mais do que como um pe- entre morais e éticas, derivam de
ríodo histórico. Por atitude, quero uma concepção de éthos. Ela as-
dizer um modo de relação que sinala em sua sumária abordagem
concerne à atualidade; uma esco- desse problema um interessante
lha voluntária que se faz por al- quiasma inicial presente entre os
guns; enfim, uma maneira de pen- sentidos filosóficos do termo atri-
sar e de sentir, uma maneira tam- buídos por Platão e Aristóteles:
bém de agir e de se conduzir que, “onde Platão conforta o natura-
de uma só vez, marca uma perti- lista com o argumento de que o
nência e se apresenta como uma hábito é inato, Aristóteles neutra-
tarefa. Um pouco, sem dúvida, liza o que é dado para nós como
como o que os gregos chamam natural argumentando pela res-
de éthos. Por conseguinte, mais ponsabilidade prática” (2014, p.

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693). Se por um lado haveria uma apesar de possível. O autor, pro-


naturalização do éthos, por outro, vavelmente ciente da disputa em
ele seria da ordem do que é inven- volta do termo, sugere menos do
tado, nutrido, criado. Aristóteles que afirma. Ele diz, “um pouco,
que teria inovado com o título de sem dúvida”. “Um pouco” por-
sua Ética (2014, p. 692) é particu- que evidentemente a problemati-
larmente importante para a com- zação grega não é equivalente à
preensão do sentido de ética como moderna, e por isso éthos e ati-
ação ou ato, como sugere Cassin tude seriam duas coisas distintas
ao recolher passagens da Poética, e intraduzíveis entre si. Sem dú-
da Retórica e da Ética Nicomaqueia. vida guardam alguma coisa em
O que gostaríamos de salientar comum, porque em ambos os ca-
antes de retomar o nosso ponto sos algo da condução de si está
é o elemento ativo destacado pela em questão. Não à toa, atitude
autora em sua leitura de Aristóte- é definida aqui como uma ma-
les. Ao contrário do que as tradu- neira de governar a si mesmo,
ções por hábito ou costume pode- isto é, de agir, de se conduzir
riam levar a supor, a saber, de que perante os outros, todavia ativa,
éthos é algo que passivamente se uma vez resultante de uma es-
forma no indivíduo, Cassin sugere colha e imbuída de uma tarefa.
a ligação fundamental entre éthos A atitude da modernidade, defi-
e a prática ativa de uma virtude nida no texto de Kant como aquela
(2014, p. 692). Por fim, ela su- de sapere aude (KANT, 2012), ou
gere “que a maioria dos filósofos seja, de emancipar-se numa ati-
que buscaram definir os termos tude de maioridade, de ousadia
[gregos ligados ao éthos] em suas e de coragem de buscar a ver-
próprias linguagens, como Cícero dade, será exemplificada por Fou-
ou G.W.F. Hegel, tentaram encon- cault através da figura de Baude-
trar um conjunto de problemáti- laire em uma vontade de “heroi-
cas equivalentes para a Grécia, as- cizar o presente”. Heroicização
sim situando a tarefa da tradução irônica, uma vez que não se trata
no coração de sua reflexão” (2014, da sacralização de um momento
p. 693). ou da tentativa de perpetuá-lo,
O primeiro elemento de con- bem como não se trata de se re-
traste da sugestão de Foucault colher numa curiosidade fugidia,
com uma tradição de interpreta- de uma atitude de flanêrie que se
ção do éthos surge indiciariamente contenta em prestar atenção em
aqui, porque a equivalência en- coisas distraidamente e colecio-
tre éthos e atitude é improvável nar lembranças sem qualquer cri-

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A ANTIGUIDADE, UM ERRO PROFUNDO?– FOUCAULT, A FILOSOFIA E SUAS ATITUDES

tério. A essa atitude, Baudelaire e boa não dependeria desse ca-


opõe aquela do homem da moder- ráter continuamente investigativo
nidade. Cito um trecho de O pin- e imaginativo, típico do homem
tor da vida moderna: moderno. Evidentemente, uma
avaliação justa desse erro só se-
ria possível sob a pecha de ana-
Ele vai, corre, procura. cronismo. Mas o alerta passageiro
Seguramente esse ho- e ocasional de Foucault não me-
mem, esse solitário do- rece desprezo. Ele quer que evite-
tado de uma imaginação mos assumir uma atitude de flanê-
ativa, sempre viajando rie em relação ao modo de proble-
através do grande deserto matizar grego que em muito é dis-
de homens, tem uma ta- tinto do moderno. Somente a par-
refa mais elevada do que tir da modernidade, quando da
aquela de um puro flâ- emergência de fenômenos como a
neur, uma tarefa mais ge- moda, quando se pôde tanto estili-
ral, diferente da do pra- zar os corpos quanto submetê-los
zer fugidio da circunstân- a certos padrões, faz sentido suge-
cia. Ele busca algo que rir que a atitude emancipada é a
nos permitirão chamar de de perceber o que “ela pode conter
modernidade. Trata-se de poético no histórico”, ou seja,
para ele de destacar da o que em meio a tantos padrões
moda o que ela pode con- surge como algo que desafia os
ter de poético no histó- nossos limites, perturba uma ex-
rico (Baudelaire apud Fou- periência que acumula estilos sem
cault, 1994-IV, p. 569-70). pensar na invenção de si mesmo.
A atitude de contramoderni-
Com essa retomada de Baude- dade aparece como aquela que
laire, Foucault enceta uma ma- busca traduzir o éthos para soluci-
neira diferente de encarar a in- onar um problema presente, que é
venção de si mesmo, porque não a favor de uma tendência de cortes
se trata simplesmente de se rela- de roupa contra todas as outras,
cionar com uma interioridade fu- que acumula incessantes citações
gidia, mas de, através do enfren- dos antigos, citando-as como sinal
tamento dessa solidão, encontrar de sabedoria, num gesto tão auto-
algo “poético no histórico”. Se a mático quanto a subida ou descida
Antiguidade é um erro profundo, de um elevador. O modo de viver
assim seria na medida em que dos antigos não só pode ter sido
a tarefa de viver uma vida bela uma maneira de errar, como serve

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de exemplo de errância, de cami- modo que menos do que mais um


nho já percorrido e sobre o qual só quadro na parede, seus gestos sir-
nos cabe perceber as pegadas, en- vam como uma experiência modi-
tender as marcas e investigar seus ficadora de si e de seu entorno, de
problemas. A atitude do filósofo é um jeito tal que ninguém na Anti-
essa de ensaiar afinal, de esboçar guidade pôde experimentar.
algo de poético no histórico de tal

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Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 271-292 291
ISSN: 2317-9570
JEAN DYÊGO GOMES SOARES

Recebido: 29/12/2018
Aprovado: 30/07/2019
Publicado: 17/11/2019

292 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 271-292
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v7i2.23147

Sobre a Centralidade e a Estrutura do Capítulo “Os


Corpos Dóceis” de
[On the Centrality and Structure of the Chapter "The Docile Bodies"
of Discipline and Punish ]

Kleverton Bacelar

Resumo: Esse artigo tem por objetivo expor a centralidade do pri-


meiro capítulo da terceira parte do Vigiar e Punir para a demonstra-
ção de seu argumento principal bem como sua amarração estrutural
no conceito de corpo. O valor posicional central desse capítulo na or-
ganização peculiar da obra só pode ser demonstrado mediante a expo-
sição do conceito de disciplina, de sua diferenciação de outras formas
de dominação (escravidão, da domesticidade, da vassalidade e do as-
cetismo), da especificação do momento histórico em que emerge e do
realce da importância dessa datação para o argumento central de Fou-
cault.
Palavras-chave: corpo, disciplina, época clássica, reforma penal mo-
derna.
Abstract: This paper explores the centrality of the first chapter of the
third part of Discipline and Punish for the demonstration of its main
argument as well as its structural tying in the concept of body. The
central positional value of this chapter in the peculiar organization
of the work can only be demonstrated by exposing the concept of
discipline, its di erentiation from other forms of domination (slavery,
domesticity, vassality and asceticism) and the specification of the
historical moment in which it emerges and the highlight of the
importance of this dating to Foucault’s central argument.
Keywords: body, discipline, classical period, modern penal reform.

Antes e depois da publicação lhe colocava:


do Vigiar e Punir em 9 de feve-
reiro de 1975, Michel Foucault
pronunciou-se sobre o objetivo No fundo, o ponto de par-
dessa obra. No curso A Sociedade tida foi o seguinte: por
Punitiva, ministrado entre o início que essa instituição estra-
de janeiro e o final de março de nha, a prisão? Essa per-
1973, ele explicou dessa maneira gunta se justificava de vá-
o problema teórico que a prisão rias maneiras. Em pri-

Professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre e doutor em filosofia pela Universidade de São
Paulo (USP). E-mail: kbacelar@ufba.br. ORCID:https://orcid.org/0000-0003-3643-5201.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 293-325 293
ISSN: 2317-9570
SOBRE A CENTRALIDADE E A ESTRUTURA DO CAPÍTULO “OS CORPOS DÓCEIS” DE VIGIAR E
PUNIR

gado, segundo relações controle de suas forças


complexas e recíprocas, à que é mais que a capa-
sua utilização econômica; cidade de vencê-las: esse
é, numa boa proporção, saber e esse controle cons-
como força de produção tituem o que se poderia
que o corpo é investido chamar a tecnologia polí-
por relações de poder e tica do corpo. Essa tecno-
de dominação; mas em logia é difusa, claro, rara-
compensação sua consti- mente formulada em dis-
tuição como força de tra- cursos contínuos e siste-
balho só é possível se ele máticos; compõe-se mui-
está preso num sistema tas vezes de peças ou de
de sujeição (onde a ne- pedaços; utiliza um ma-
cessidade é também um terial e processos sem re-
instrumento político cui- lação entre si. O mais
dadosamente organizado, das vezes, apesar da coe-
calculado e utilizado); o rência de seus resultados,
corpo só se torna força ela não passa de uma ins-
útil se é ao mesmo tempo trumentação multiforme.
corpo produtivo e corpo Além disso seria impossí-
submisso. Essa sujeição vel localizá-la, quer num
não é obtida só pelos ins- tipo definido de institui-
trumentos da violência ou ção, quer num aparelho
da ideologia; pode muito do Estado. Estes recor-
bem ser direta, física, usar rem a ela; utilizam-na,
a força contra a força, agir valorizam-na ou impõem
sobre elementos materiais algumas de suas maneiras
sem, no entanto, ser vio- de agir. Mas ela mesma,
lenta; pode ser calculada, em seus mecanismos e
organizada, tecnicamente efeitos, se situa num ní-
pensada, pode ser sutil, vel completamente dife-
não fazer uso de armas rente. Trata-se de alguma
nem do terror, e, no en- maneira de uma micro-
tanto, continuar a ser de física do poder posta em
ordem física. Quer dizer jogo pelos aparelhos e ins-
que pode haver um “sa- tituições, mas cujo campo
ber” do corpo que não é de validade se coloca de
exatamente a ciência de algum modo entre esses
seu funcionamento, e um grandes funcionamentos

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.2, ago. 2019, p. 293-325 305
ISSN: 2317-9570
KLEVERTON BACELAR

e os próprios corpos com uma genealogia da “alma”


sua materialidade e suas moderna. Em vez de ver
forças” (p.28). nessa alma os restos re-
ativados de uma ideolo-
gia, antes reconhecería-
Descrever essa “microfísica do po- mos nela o correlativo
der” que incide sobre o corpo é o atual de uma certa tec-
objetivo da 3ª parte da obra. Re- nologia do poder sobre
velar sua importância na suaviza- o corpo. Não se deveria
ção das penas é um dos objetivos dizer que a alma é uma
a que ela se propõe em sua abor- ilusão, ou um efeito ide-
dagem da criminalidade. ológico, mas afirmar que
Foucault também menciona o ela existe, que tem uma
livro Os dois corpos do rei (1959) realidade, que é produ-
de Ernst Kantorowitz para com- zida permanentemente,
parar a tese do historiador do pen- em tomo, na superfície,
samento político medieval (“o su- no interior do corpo pelo
plemento de poder do lado do funcionamento de um po-
rei provoca o desdobramento de der que se exerce sobre os
seu corpo” na teologia política que se punem —de uma
do medievo que chega até o An- maneira mais geral so-
tigo Regime) com a dele (o po- bre os que são vigiados,
der excedente que se exerce so- treinados e corrigidos, so-
bre o corpo submetido do conde- bre os loucos, as crian-
nado [na modernidade- KB] sus- ças, os escolares, os co-
citou um outo tipo de desdobra- lonizados, sobre os que
mento: o de um incorporal, de são fixados a um apare-
uma alma”(VP, p.31). Aqui Fou- lho de produção e contro-
cault formula a tese que será de- lados durante toda a exis-
monstrada no primeiro capítulo tência. Realidade histó-
da terceira parte: o poder discipli- rica dessa alma, que, di-
nar produz individualidade, uma ferentemente da alma re-
consciência de si, uma alma, uma presentada pela teologia
subjetividade: cristã, não nasce faltosa
e punível, mas nasce an-
A história dessa micro- tes de procedimentos de
física do poder punitivo punição, de vigilância, de
seria então uma genea- castigo e de coação. Esta
logia ou uma peça para alma real e incorpórea não

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é absolutamente substân- alma, efeito e instrumento


cia; é o elemento onde se de uma anatomia política;
articulam os efeitos de um a alma, prisão do corpo
certo tipo de poder e a (p.31).
referência de um saber,
a engrenagem pela qual
as relações de poder dão Como não reconhecer nessa “ge-
lugar a um saber possí- nealogia da alma moderna” a
vel, e o saber reconduz e segunda razão aventada por
reforça os efeitos de po- Foucault em L’Impossible Pri-
der. Sobre essa realidade- son? Como não reconhecer
referência, vários concei- na alma/subjetividade/psique o
tos foram construídos e efeito (positivo) do poder disci-
campos de análise foram plinar sobre o corpo? Como não
demarcados: psique, sub- observar que o poder disciplinar é
jetividade, personalidade, concebido em termos de incitação,
consciência, etc.; sobre ela de produção mais que de repres-
técnicas e discursos cien- são? Como não ver que o efeito, a
tíficos foram edificados; a positividade da disciplina, radica-
partir dela, valorizaram- se na produção de uma individua-
se as reivindicações mo- lidade? Como não reconhecer que
rais do humanismo. Mas a alma moderna é uma outra pri-
não devemos nos enganar: são instalada no corpo cuja certi-
a alma, ilusão dos teólo- dão de nascimento Foucault atesta
gos, não foi substituída no mesmo ato notarial que certi-
por um homem real, ob- fica o nascimento da penitenciária
jeto de saber, de reflexão e da criminologia?
filosófica ou de interven- Veremos no próximo item como
ção técnica. O homem essa alma disciplinada é produ-
de que nos falam e que zida; por ora, cumpre chamar a
nos convidam a liberar já atenção para o fato de que ela é
é nele mesmo o efeito de também a condição de possibili-
um assujeitamento bem dade dos direitos do homem, é o
mais profundo que ele. lado sombrio das luzes, a “dialé-
Uma “alma” o habita e tica” foucaultiana do iluminismo:
o leva à existência, que
é ela mesma uma peça Historicamente, o pro-
no domínio que o poder cesso pelo qual a burgue-
exerce sobre o corpo. A sia se tornou no decorrer
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gulares; 4ª) composição das for- guém ocupa numa classi-


ças – controle da intercorporei- ficação, o ponto em que se
dade ou das relações de mando cruzam uma linha e uma
e obediência nas relações entre coluna, o intervalo numa
corpos sempre mergulhados num série de intervalos que se
campo político. Foucault examina pode percorrer sucessiva-
cada uma dessas técnicas, espe- mente.
cificando seus princípios através O controle da atividade:
de exemplos. Se eliminarmos os 1) horário: velha herança
exemplos, as técnicas foram assim que emprega três grandes
especificadas pelo filósofo. procedimentos — estabe-
lecer as cesuras, obrigar
A arte das localizações: a ocupações determina-
1) Cerca: especificação de das, regulamentar os ci-
um local heterogêneo a to- clos de repetição que pro-
dos os outros e fechado em cura também garantir a
si mesmo. 2) Quadricula- qualidade do tempo em-
mento: cada indivíduo no pregado: controle inin-
seu lugar e em cada lu- terrupto, pressão dos fis-
gar um indivíduo. 3) loca- cais, anulação de tudo o
lizações funcionais: Luga- que possa perturbar e dis-
res determinados se defi- trair mediante a constru-
nem para satisfazer não só ção de um tempo integral-
à necessidade de vigiar, de mente útil. 2) A elaboração
romper as comunicações temporal do ato: define-se
perigosas, mas também de uma espécie de esquema
criar um espaço útil. 4) anátomo-cronológico do
Enfileiramento: Na disci- comportamento. O ato é
plina, os elementos são in- decomposto em seus ele-
tercambiáveis, pois cada mentos; é definida a posi-
um se define pelo lugar ção do corpo, dos mem-
que ocupa na série, e pela bros, das articulações;
distância que o separa dos para cada movimento é
outros. A unidade não é determinada uma dire-
portanto nem o território ção, uma amplitude, uma
(unidade de dominação), duração; é prescrita sua
nem o local (unidade de ordem de sucessão. O
residência), mas a posição tempo penetra o corpo,
na fila: o lugar que al- e com ele todos os con-
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troles minuciosos do po- sempre mais instantes dis-


der. 3) Correlação entre poníveis e de cada ins-
o corpo e o gesto: o con- tante sempre mais forças
trole disciplinar não con- úteis. O que significa que
siste simplesmente em en- se deve procurar intensifi-
sinar ou impor uma série car o uso do mínimo ins-
de gestos definidos; impõe tante, como se o tempo,
a melhor relação entre um em seu próprio fraciona-
gesto e a atitude global do mento, fosse inesgotável;
corpo, que é sua condi- ou como se, pelo menos,
ção de eficácia e de rapi- por uma organização in-
dez. 4) A articulação corpo- terna cada vez mais deta-
objeto: a disciplina de- lhada, se pudesse tender
fine cada uma das relações para um ponto ideal em
que o corpo deve manter que o máximo de rapidez
com o objeto que mani- encontra o máximo de efi-
pula. Ela estabelece cui- ciência”.
dadosa engrenagem entre Organização das gêne-
um e outro. 5) A utili- ses: 1) Especificação de
zação exaustiva: o princí- segmentos da duração: di-
pio que estava subjacente vidir a duração em seg-
ao horário em sua forma mentos, sucessivos ou pa-
tradicional era essencial- ralelos, dos quais cada
mente negativo; princípio um deve chegar a um
da não-ociosidade; é proi- termo específico. 2) Or-
bido perder um tempo ganizar essas sequências
que é contado por Deus e temporais segundo um es-
pago pelos homens; o ho- quema analítico — su-
rário devia conjurar o pe- cessão de elementos tão
rigo de desperdiçar tempo simples quanto possível,
— erro moral e desonesti- combinando-se segundo
dade econômica. Já a dis- uma complexidade cres-
ciplina organiza uma eco- cente. 3) Finalização sele-
nomia positiva; coloca o tiva dos segmentos: esta-
princípio de uma utiliza- belecer um término para
ção teoricamente sempre esses segmentos através
crescente do tempo: mais de uma prova, que tem
exaustão que emprego; a tríplice função de indi-
importa extrair do tempo car se o indivíduo atin-
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ção, coordenação e adaptação às zar numa palavra dizendo


condições ambientais. Individu- que são uma modalidade
alidade genética: a duração do de poder para o qual a di-
corpo, sua radical finitude natu- ferença individual é perti-
ral, está presa à identidade por nente” (VP. p. 171).
uma memória cumulada. Indivi-
dualidade combinatória: nas rela-
ções intercorporais, o indivíduo é Embora Foucault não as formule,
permutável, intercambiável, mo- podemos desdobrar as hipóteses
vível entre os elementos do dis- inversas dos indivíduos discipli-
positivo/aparelho. Essa passagem nados: ao invés da repartição da
precisa ser conjugada e lida com multiplicidade de indivíduos, a
duas outras que a esclarecem e “mobilidade e confusão” das mul-
desdobram colhidas no capítulo tidões; em vez da extração má-
“Os meios do bom adestramento”: xima das forças pela codificação
da atividade, sua “inutilidade”; ao
contrário da acumulação genética
“[A disciplina - kb] «ades- contínua, a ruptura da identidade;
tra» as multidões móveis, por fim, em oposição a composi-
confusas e inúteis de cor- ção ótima das aptidões, sua dis-
pos e forças numa multi- persão.
plicidade de elementos in- Para finalizarmos, dois escla-
dividuais – pequenas cé- recimentos. Agora que sabemos
lulas separadas, autono- qual o conceito de disciplina e
mias orgânicas, identida- como se disciplina um corpo, de-
des e continuidades gené- vemos determinar em qual época
ticas, segmentos combina- emerge o momento histórico das
tórios” (VP. p. 153). E disciplinas e qual a importân-
ainda: “As grandes fun- cia dessa datação (assinalação do
ções disciplinares de re- lugar e tempo de nascimento)
partição (...), de extração para o argumento/tese de Fou-
máxima das forças (...), cault. Também precisamos mos-
de acumulação genética trar como ela se diferencia de ou-
contínua, de composição tras formas de dominação. Em
ótima das aptidões. Por- uma passagem lapidar, o filósofo
tanto, de fabricação da in- esclarece essas questões:
dividualidade celular, or-
gânica, genética e combi-
natória. (...) Disciplinas Muitos processos discipli-
que podemos caracteri- nares existiam há muito
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lei penal suavizada deve se exer- dade subjacente às práticas puni-


cer sobre uma população previ- tivas. Mediante uma breve expo-
amente disciplinada por procedi- sição sobre a peculiar estrutura da
mentos infra-jurídicos que fazem obra, procuramos restituir à ter-
crescer em proporções diretas as ceira parte o valor posicional cen-
capacidades e a docilidade dos in- tral que ela ocupa na economia
divíduos, seu assujeitamento às das teses/posições foucaultianas
normas sociais, razão pela qual sobre a mitigação das penas no di-
também se lhes pode conceder reito penal e mesmo sobre a con-
direitos fundamentais. A disci- cessão das liberdades constitucio-
plina se diferencia dessas outras nais na modernidade que recusa
formas de dominação porque dis- toda explicação enfatizadora do
pensa a violência sobre o corpo; progresso da razão ou do huma-
não o domina pelo capricho de nismo. Em seguida, escolhemos
uma vontade excessiva; não visa analisar o capítulo “Os corpos dó-
apenas os produtos da atividade ceis” que melhor permitiria al-
corporal; não exige renúncias que cançar os objetivos desse trabalho,
implicam em autocontrole, mas não somente pela impossibilidade
executa um controle minucioso de analisar toda a terceira parte
do corpo, faz dele uma aptidão, da obra que excederia tanto nos-
aumenta-lhe as capacidades, in- sos objetivos quanto as dimensões
vertendo o poder que poderia re- de um artigo, mas também por-
sultar disso e lançando-o numa que ele possui uma dupla centrali-
submissão estrita a outrem; por- dade: central para a obra e central
tanto afastando o autodomínio e para a parte em que está inserido.
o empoderamento que poderia re- Destarte, procuramos efetuar uma
sultar desse incremento de utili- leitura imanente do capítulo que
dade. torna possível levantar e respon-
der as seguintes questões: Qual
o conceito de disciplina? Como
4 - Conclusão
as disciplinas acoplam-se ao con-
Nesse artigo procuramos mostrar ceito de corpo? Em qual momento
que existe um duplo sentido da histórico elas emergem? Qual a
prisão indicada no subtítulo do importância dessa datação para o
Vigiar e Punir: nascimento da pri- argumento central de Foucault?
são, cujo desconhecimento impede Como elas se diferenciam de ou-
aos melhores intérpretes do filó- tras formas de dominação? Como
sofo compreender o objetivo prin- essa modalidade de dominação
cipal dessa história da racionali- produz corpos disciplinados? O

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PUNIR

and Discipline". in: WHIMSTER, S./LASH, S. (Hg.) Max Weber,


Rationality and Modernity. London, 1987.
TURNER, B.S. The Body & Society: Explorations in Social Theory. 3rd
Edition. Los Angeles/London/New Delhi/Singapore: Sage, 2008.

21/02/2019
24/06/2019
17/11/2019

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