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HARRIET BEECHER STOWE

A CABANA DO PAI TOMÁS

Tradução
Ana Paula Doherty
Prefácio
Ricardo Alexandre Ferreira
Copyright © Editora Manole Ltda., por meio de contrato com a tradutora.

Amarilys é um selo editorial Manole.

Este livro contempla as regras do Acordo Ortográfico de 1990, que entrou em vigor no Brasil.

Editor-gestor: Walter Luiz Coutinho Editor: Enrico Giglio


Produção editorial: Luiz Pereira Preparação: Renata Mello
Revisão de prova: Mônica Santos, Natália Aguilar Projeto gráfico e editoração eletrônica: Studio DelRey
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Stowe, Harriet Beecher, 1811-1896.
A cabana do Pai Tomás / Harriet Beecher Stowe; tradução Ana Paula Doherty. – Barueri, SP :
Amarilys, 2016.

Título original: Uncle Tom’s cabin.


Título original: Uncle Tom’s cabin.

ISBN 978-85-204-3942-5

1. Romance norte-americano I. Título.


16-05486 CDD-813
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances : Literatura norte-americana 813

Todos os direitos reservados.


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Sumário
PREFÁCIO
Bibliografia
1: NO QUAL O LEITOR É APRESENTADO A UM HOMEM DE
HUMANIDADE
2: A MÃE
3: ESPOSO E PAI
4: UMA NOITE NA CABANA DO PAI TOMÁS
5: O SENTIMENTO DA MERCADORIA VIVA AO TROCAR DE DONO
6: A DESCOBERTA
7: O DESESPERO DA MÃE
8: A FUGA DE ELISA
9: EM QUE SE PERCEBE QUE UM SENADOR NÃO PASSA DE UM
HOMEM COMUM
10: A ENTREGA DA MERCADORIA
11: QUANDO A MERCADORIA ENTRA NUM ESTADO MENTAL
INADEQUADO
12: INCIDENTE PECULIAR DE UM COMÉRCIO LEGAL
13: O ASSENTAMENTO QUACRE
14: EVANGELINE
15: SOBRE O NOVO DONO DE TOMÁS E OUTRAS QUESTÕES
16: A AMA DE TOMÁS E SUAS OPINIÕES
17: EM DEFESA DO HOMEM LIVRE
18: AS EXPERIÊNCIAS E OPINIÕES DA SRTA. OFÉLIA
19: A CONTINUAÇÃO DAS EXPERIÊNCIAS E OPINIÕES DA SRTA.
OFÉLIA
20: TOPSY
21: KENTUCKY
22: “A GRAMA SECA E A FLOR MURCHA”
23: HENRIQUE
24: PRESSÁGIOS
25: A PEQUENA EVANGELISTA
26: A MORTE
27: “ESTE E O FIM TERRENO” — JOHN Q. ADAMS
28: O ENCONTRO
29: OS DESPROTEGIDOS
30: O DEPÓSITO DE ESCRAVOS
31: A ROTA DA ESCRAVIDÃO
32: LUGARES OBSCUROS
33: CASSY
34: A HISTÓRIA DA QUADRARONA
35: LEMBRANÇAS DO TEMPO
36: EMMELINE E CASSY
37: LIBERDADE
38: A VITÓRIA
39: O ESTRATAGEMA
40: O MÁRTIR
41: O JOVEM AMO
42: UMA AUTÊNTICA HISTÓRIA DE FANTASMA
43: RESULTADOS
44: O LIBERTADOR
45: CONSIDERAÇÕES FINAIS
NOTAS
PREFÁCIO
A PARÁBOLA DO BOM SENHOR:
ESCRAVIDÃO, FÉ E MARTÍRIO
Ricardo Alexandre Ferreira
Professor de História Moderna
UNESP/Franca – Departamento de História
“És agora, pois, maldito por sobre a terra, cuja boca se abriu para
receber de tuas mãos o sangue de teu irmão. Quando lavrares o solo, não
te dará ele a sua força; serás fugitivo e errante pela terra. Então, disse
Caim ao SENHOR: É tamanho o meu castigo, que já não posso suportá-lo.
Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua presença hei de
esconder-me; serei fugitivo e errante pela terra; quem comigo se
encontrar me matará. O SENHOR, porém, lhe disse: Assim, qualquer que
matar a Caim será vingado sete vezes. E pôs o SENHOR um sinal em
Caim para que o não ferisse de morte quem quer que o encontrasse.
Retirou-se Caim da presença do SENHOR e habitou na terra de Node, ao
oriente do Éden.” (Gênesis 4:11-16)

“Sendo Noé lavrador, passou a plantar uma vinha. Bebendo do vinho,


embriagou-se e se pôs nu dentro de sua tenda. Cam, pai de Canaã, vendo
a nudez do pai, fê-lo saber, fora, a seus dois irmãos. Então, Sem e Jafé
tomaram uma capa, puseram-na sobre os próprios ombros de ambos e,
andando de costas, rostos desviados, cobriram a nudez do pai, sem que a
vissem. Despertando Noé do seu vinho, soube o que lhe fizera o filho
mais moço e disse: Maldito seja Canaã; seja servo dos servos a seus
irmãos. E ajuntou: Bendito seja o SENHOR, Deus de Sem; E Canaã lhe
seja servo. Engrandeça Deus a Jafé, e habite ele nas tendas de Sem; e
Canaã lhe seja servo.” (Gênesis 9:20-27)

Eis, duas passagens do Livro de Gênesis, propositalmente extraídas de uma


edição da Bíblia protestante, certamente lidas e relidas pelo religioso escravo
Tomás. Duas passagens enfaticamente manejadas por religiosos, historiadores e
outros interessados, num esforço de compreender uma questão bastante
espinhosa – a relação entre o cristianismo e a escravidão africana.Que não se
iluda o leitor, pois é por esse caminho, certamente para alguns pouco
confortável, que a obra em suas mãos irá conduzi-lo.
Desde o século xix, entretanto, tornou-se comum ouvir aqui e ali que a obra
Uncle Tom’s Cabin, or Life among the Lowly, originalmente publicada nos
Estados Unidos na forma de livro em dois volumes no ano de 1852, teria
figurado como um dos estopins da Guerra Civil Norte-Americana – a Guerra de
Secessão (1861-1865) – que culminou com a derrota do Sul escravocrata e a
consequente abolição legal do cativeiro de africanos e descendentes em todo o
território das então já independentes treze colônias. A história do texto inclui um
suposto episódio em que o próprio presidente Abraham Lincoln (1809-1865)
teria se dirigido à autora, a abolicionista norte-americana Harriet Beecher Stowe
(1811-1896), congratulando-a como a pequena mulher que escrevera um livro
capaz de iniciar uma grande guerra. A obra – no Brasil conhecida desde as
tipografias até o teatro e a telenovela como A Cabana do Pai Tomás, mas
também como A vida dos negros na América e A vida entre os humildes –, que
em síntese narra o drama do velho Tomás, escravo humilde e crente, cuja vida
sob cativeiro mudou drasticamente depois de súbitas trocas de senhor, discute,
no entanto, assuntos e problemas bem mais amplos e, digamos, ainda
incômodos. Assuntos capazes de explicar o interesse despertado pelo romance
mais de um século e meio após o seu aparecimento.
A questão mais importante do texto não se restringia, como seria possível
crer, ao cenário político da fraturada nação americana do norte de meados dos
oitocentos, nem mesmo ali teve seu início. Tratava-se de afirmar uma ideia então
relativamente nova no Ocidente e, para muitos, na época, completamente
descabida: a escravidão é em si mesma errada; portanto deve ser extinta. Embora
fosse uma estratégia extremamente eficiente no convencimento de muitos, não
era o caso apenas de, uma vez mais, denunciar o mal senhor ou o cativeiro
desumano, as torturas e a crueldade cometidos por sádicos proprietários de
pessoas transformadas em coisas, mas de colocar em evidência uma prática
naturalizada durante séculos, graças a uma cultura — uma visão de mundo —
que, dos dois lados do Atlântico, acostumou-se a relacionar padecimento, fé e
redenção. Ou, para um cristianismo de viés protestante, fé, trabalho e salvação.

A escravidão legal e o bom cristão


Para nós, hoje, talvez seja bastante difícil compreender algo que até os anos
mil e setecentos– ou seja, meados do século xviii – era uma verdade quase
unânime: a escravidão era uma instituição legal e, portanto, correta. A instituição
escravista sempre foi tema de debates levados a cabo por filósofos e outros
letrados, portanto foi vista recorrentemente como um problema, mas sempre
terminou acomodada no quadro normal mais amplo das sociedades onde existiu.
Portanto, não havia crime e nem pecado no ato de possuir um escravo. Todas as
sociedades do mundo conviveram com a escravidão. Nem mesmo durante a
chamada Idade Média deixaram de existir escravos, ou seja, pessoas legalmente
transformadas em coisas, com uma ressalva aos reinos da França e da Inglaterra,
da qual trataremos adiante.
O escravo era legalmente definido como uma coisa (com status semelhante
ao de um cavalo ou de uma casa) antes mesmo da décima oitava dinastia egípcia,
ocorrida por volta do ano 800 a.C. Idêntica convicção também estava presente
entre os gregos, os romanos, os babilônios, os chineses, os assírios e os indus. O
mesmo ocorria em parte da Europa durante o período medieval, época em que,
até hoje, alguns acreditam ter praticamente desaparecido esse tipo de relação
compulsória. Em outras palavras, quase universalmente, desde as primeiras
civilizações, em cada um dos grandes reinos e Estados, ou seja, em todas as
partes do globo de que se tem registro, havia o reconhecimento de que o escravo
existia e podia ser livremente possuído, negociado (comprado e vendido),
alugado, emprestado, deixado em herança, dado em garantia, oferecido como
presente ou até mesmo confiscado. “Por mais de três mil anos essas
características legais da escravidão mudaram muito pouco; e no mundo ocidental
foi a lei romana que deu uma forma sistemática e duradoura aos direitos dos
senhores e dos escravos (Davis, 2001, p. 50)”.
Tal informação não deve, evidentemente, conduzir o leitor à ideia de que, no
passado, todos os homens e mulheres se entregaram de bom grado ao cativeiro,
por se tratar de uma situação corriqueira. Retirar pela força da guerra e da
conquista uma pessoa do convívio de seus parentes e vizinhos e introduzi-la em
outro modo de vida, contra a sua vontade, não deixava de ser um problema. Para
a maioria dos que a ela foram submetidos, podemos inferir um terrível momento.
Dessa forma, tão antiga quanto a história da escravidão foi também a das fugas,
revoltas e assassinatos cometidos pelos cativos como reposta à imposição da
condição de simples coisa, quase sem direitos e praticamente sem vontades.
Muitos foram os conceitos de liberdade manejados ao longo de milênios:
liberdade de seguir vários deuses, de acreditar em um deus, de ser súdito de um
rei, de contentar-se com a posição herdada no nascimento, de se entregar a um
pacto com toda a sociedade e só fazer o que for da vontade geral, de dispor de si,
dentre outros. Mas todos, genericamente, implicavam não ser escravo.
O leitor atento poderia logo objetar: “Mas o escravo Tomás parece bastante
conformado e até resignado com a condição que lhe fora imposta”. Isso nos leva
a outro problema. Tomás, feito coisa pela escravidão, continuava, em seu íntimo,
agindo guiado pela fé em um plano de Deus para os homens. O velho e
respeitoso escravo nunca foi, em última instância, segundo sua própria fé, servo
de seus proprietários, mas sim do Senhor de seus senhores, do Criador. Tomás se
conformou em viver sob o cativeiro, ser separado de sua esposa (Mãe Cloé) e de
seus três filhos (Mose, Pete e a bebê) e padecer até o fim, pela crença nos
desígnios da Providência, em um bem maior, na promessa de outro começo.
Quando soube que seria vendido, Tomás não quis fugir, encarou seu destino com
coragem e com a certeza de que outra atitude seria pior para todos. Ao longo de
sua terrível jornada, o cativo sempre manifestou o desejo de retornar aos seus,
mas manteve até o fim a fé na vida que realmente importava – a vida eterna –,
reservada ao justo, ao reto, ao bom cristão. Por mais violências que sofresse, o
escravo pintado pelo gênio, a um só tempo, racional e cristão da abolicionista
Harriet Beecher Stowe – professora, poeta, escritora, filha de pai pregador
evangélico e esposa de um teólogo –, jamais permitiria se comparar a um animal
doméstico ou a outro bem material qualquer. Dito de outra forma, o cativo
rejeitava a sua condição legal de coisa, mesmo quando não se revoltava.
Ao longo da obra, Stowe coloca na boca do narrador e de diferentes
personagens testemunhos sobre a reputação de Tomás em assuntos religiosos:

[…] Tomás é religioso de verdade, o máximo que se pode ser —


retrucou o outro. — No último outono deixei que fosse a Cincinnati
sozinho, para fazer negócios para mim e me trazer quinhentos dólares
para casa. “Tomás”, eu lhe disse, “confio em você porque acredito que
seja cristão e sei que não me enganaria” (p. 29).

[…]

O Pai Tomás era uma espécie de patriarca em questões religiosas na


vizinhança. Tendo, naturalmente, uma organização na qual a moral era
fortemente predominante e uma mente mais aberta e cultivada do que
tinham seus companheiros, ele era visto com grande respeito, como se
fosse um pastor entre eles, e o estilo caloroso e sincero de suas
colocações poderia ter edificado até mesmo pessoas mais cultas. Mas,
era nas orações que ele se fazia notável. Nada superava a simplicidade
tocante, a sinceridade infantil de suas preces enriquecidas pela
linguagem das Escrituras, que parecia ter sido inteiramente absorvida
dentro de seu ser, como se tivesse se tornado parte dele, e que escorria
por seus lábios inconscientemente; na linguagem de um Velho Negro
devoto, ele “rezava falando com Deus”. E as preces dele sempre
despertavam um sentimento de devoção tão grande em sua audiência,
que parecia sempre perigoso se perder dentro da abundância de reações
que se manifestavam ao seu redor (p. 67).

Aí chegamos a outra questão relevante. O escravo criado por Stowe não era
uma exceção. Não se tratava de um louco, de um fanático ou de um indivíduo
alienado dos problemas da sociedade que o rodeava, nem mesmo de um ser
infantilizado, como já o tipificaram. Pelo contrário. Tomás encontrava-se em
perfeita sintonia com o mundo que deu sentido ao cativeiro de milhões de
homens e mulheres. Seu drama podia ser claramente lido e compreendido pelos
leitores, igualmente cristãos, que não tinham nenhum interesse em ser
identificados com senhores rudes, cruéis e imprevidentes. Naquele momento,
contar a história de um escravo rebelde, de um Spartacus brandindo a espada em
busca da liberdade, talvez não fosse a estratégia mais inteligente para alguém
que pretendia mudar, junto à opinião pública, uma verdade, até então,
incontestável: o bom senhor como garantia de um cativeiro decente, cristão.
Ensaiemos, em rápidas palavras, o raciocínio possível de uma boa parte do
público leitor imediato do folhetim de Stowe que, entre de junho de 1851 e
de abril de 1852, acompanhou o desenrolar da história dos escravos do
Kentucky – um dos últimos estados escravistas do Sul a integrar a Confederação
separatista, durante a Guerra Civil dos Estados Unidos da América – nas páginas
do jornal antiescravista1 moderado The National Era: ao ter a mim mesmo na
conta de um bom cristão, além de vigiar para que eu leve uma vida condizente
com a minha fé, devo fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que outros
também conheçam a palavra de Deus revelada por Cristo. Isso implica em ter
escravos tão cristãos quanto quaisquer outras pessoas. E assim era feito. Tanto
em localidades escravistas povoadas por católicos quanto naquelas onde
predominavam os protestantes, havia um grande estímulo, e até mesmo a
obrigatoriedade, do ensino dos valores e crenças cristãos aos cativos. Isso, num
primeiro momento seria a garantia da conversão de infiéis, além de ser
igualmente muito útil para o controle da massa de escravos nas plantações de
algodão da América do Norte, nas de açúcar do Caribe ou nos cafezais do Brasil.
Mas, ainda assim, se a escravidão gera indivíduos cristãos sujeitos ao poder de
senhores descrentes e desumanos, continuar a permitir o cativeiro é, de alguma
maneira, condescender com o pecado praticado cotidianamente por esses
senhores infiéis.

Católicos e protestantes
Não há dúvida de que a Inglaterra e, por consequência, os Estados Unidos da
América assumiram a vanguarda do processo de construção do que ficou
conhecido como pensamento e também do ativismo antiescravista e, mais tarde,
abolicionista. Embora as razões para essa afirmação tenham sido analisadas a
partir de diversos prismas (econômico, social, político e cultural), é possível
afirmar que tal raciocínio contra a instituição do cativeiro de africanos chegou
mais cedo aos senhores de escravos adeptos das várias vertentes protestantes do
cristianismo, público mais imediato de A cabana do Pai Tomás, do que aos
batizados na Igreja Católica. Definitivamente, dentre os religiosos, não foram os
seguidores do Papa, de Roma, os primeiros a propor a abolição da escravidão de
africanos e descendentes nos domínios do Cristo.
No Brasil, por exemplo, maior domínio católico onde se praticou a
escravidão de africanos nas Américas, para onde foram conduzidos
aproximadamente quarenta por cento dos cerca de dez milhões de africanos
escravizados ao longo dos séculos xvi, xvii, xviii e xix (FLORENTINO, 1997), as
pregações de jesuítas como Antonio Vieira, Jorge Benci, André João Antonil
(pseudônimo de João Antonio Andreoni), do padre secular Manoel Ribeiro
Rocha, além das prescrições das Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia, nunca condenaram o cativeiro; pelo contrário, sempre se encarregaram de
cuidar para que o senhor não deixasse a sua condição o levar ao inferno.
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707, principal
texto canônico encarregado de regrar as atitudes dos cristãos na colônia,
ameaçavam com a danação eterna o senhor de escravos que, por qualquer
motivo, separasse os escravos legitimamente casados na Igreja.

Conforme o direito divino, e humano, os escravos e escravas podem


casar com outras pessoas cativas, ou livres, e seus senhores lhe não
podem impedir o matrimônio, nem o uso dele em tempo e lugar
conveniente, nem por este respeito os podem tratar pior, nem vender
para outros lugares remotos, para onde o outro, por ser cativo ou por ter
outro justo impedimento, o não possa seguir, e fazendo o contrário
pecam mortalmente e tomam em suas consciências culpas de seus
escravos, que por este temor se deixa muitas vezes de estar, e
permanecer em estado de condenação. (Constituições primeiras do
Arcebispado da Bahia, livro 1, título 71, parágrafo 303).

Em contraposição ao que ocorria no Brasil dos tempos coloniais e mesmo na


jovem nação independente, quando os senhores eram proibidos de separar
famílias escravas formalmente constituídas, no drama dos escravos de A Cabana
do Pai Tomás, a separação de esposas e esposos, mães e filhos e a alegação de
que naquele país os escravos não podiam se casar, funciona como um argumento
poderoso no convencimento do leitor sobre as atrocidades que a escravidão
inseria na vida dos escravos. Entre os católicos do Brasil, a família escrava,
segundo afirmaram já há algum tempo os especialistas, funcionava como um
lugar de negociações e conflitos ocorridos no dia a dia da tensa relação entre
cativos e proprietários, acabando por contribuir com a perpetuação do cativeiro,
na medida em que permitia alguns ganhos aos escravos, como o privilégio de
possuir uma casa e um fogo para si, e tranquilizava os senhores, pois a fuga e a
revolta se tornavam mais difíceis com cônjuges e filhos (SLENES, 1999). Já no
romance maior da América abolicionista, a família escrava separada pela
bancarrota e pela arrogância dos senhores — como nos casos de Pai Tomás e
Mãe Cloé e seus três filhos, bem como nos de Elisa, o pequeno Harry e George
— funcionava como um elemento decisivo a convencer a opinião pública sobre a
necessidade imperiosa de se abolir a escravidão.
De volta ao Brasil colonial e à forma católica de lidar com os assuntos do
cativeiro, flagramos o Padre Antonio Vieira, em um dos sermões mais citados
pelos estudiosos das relações entre Igreja e escravidão, comparando os escravos
ao próprio filho de Deus. Em 27 de dezembro de 1633, dia de São João
Evangelista, assim pregou o célebre inaciano aos escravos de um engenho da
Bahia:

Não há trabalho nem gênero de vida no mundo mais parecido à Cruz e


Paixão de Cristo que o vosso em um destes engenhos. […] Bem-
aventurados vós, se soubéreis conhecer a fortuna do vosso estado, e,
com a conformidade e imitação de tão alta e divina semelhança,
aproveitar e santificar o trabalho! Em um engenho sois imitadores de
Cristo crucificado […] porque padeceis em um modo muito semelhante
o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz e em toda a sua paixão. […]
Cristo despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e vós famintos; Cristo
em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os
açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa
imitação, que, se for acompanhada de paciência, também terá
merecimento de martírio. (Padre Antonio Vieira, Sermão xiv, 1633).

Ao residir no Brasil entre os anos de 1683 e 1700, o inaciano Jorge Benci


escreveu o mais completo receituário para o tratamento cristão dos escravos
pelos seus senhores (VAINFAS, 1996). Sua obra Economia cristã dos senhores no
governo dos escravos, publicada em Roma em 1705, foi um resumo de vários
sermões por ele pregados no Brasil. Numa fórmula extraída do Eclesiástico
combinado com Aristóteles, o jesuíta pregava que o governo dos escravos
deveria nortear-se pela tríade: panis, disciplinae et opus servo – traduzido como
pão, ensino ou castigo e trabalho. De acordo com Benci, os proprietários de
escravos deveriam inicialmente governar seus próprios atos, em acordo com os
preceitos do catolicismo, para, só assim, poderem gozar da delicada condição de
Senhor, nome atribuído ao próprio Criador. Ser Senhor era ser um Senhor
Cristão.
Por sua vez, Antonil, ou melhor, o jesuíta Andreoni, simplificou a
complicada fórmula latina (panis, disciplinae et opus servo), na obra Cultura e
Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas, publicada em 1711. Andreoni
propôs uma tradução mais próxima do universo dos senhores coloniais e acabou
por criar a regra dos três P— “PPP, a saber: pão, pau e pano”. Divergindo de
Benci, em sua pregação, Andreoni permitia que os escravos tivessem seus
folguedos e reinados, em alguns dias do ano, desde que praticados
inocentemente, e depois de terem feito suas festas em homenagem a Nossa
Senhora do Rosário.
Finalmente, o padre secular Manoel Ribeiro Rocha, advogado e domiciliado
na Bahia, no seu Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corregido, instruído
e libertado, de 1758, não destoou muito de seus antecessores e, ao contrário do
que acreditaram alguns de seus intérpretes, não foi, à sua época, um precursor do
abolicionismo. Antes, arrolou uma miríade de renomados juristas e Santos
Doutores da Igreja para reafirmar a possível condição de pecado a que os
cristãos se expunham quando possuíam escravos. Ainda assim, reafirmou que
uma vez sabendo o senhor que o escravo havia sido bem cativado na África, ou o
adquirindo em boa fé, não trazia em sua consciência culpa alguma, ficando livre
para reter o cativo até que o resgate do etíope pudesse ser concluído. Em outras
palavras, adquirindo o escravo de boa fé, oferecendo-lhe o bom exemplo cristão
durante o seu cativeiro e permitindo que ele um dia se tornasse livre mediante o
pagamento do justo valor, ficava o senhor livre das culpas e pecados que, de
outro modo, a escravidão lhe renderia.
Seria injusto, contudo, dizer que os padres do Brasil eram favoráveis à
escravidão enquanto os pastores da América do Norte a condenavam. Quando
foi avisada pelo marido, o Sr. Shelby, de que Tomás seria vendido junto com o
pequeno Harry, filho da escrava Elisa, para saldar dívidas, a Sra. Shelby,
matriarca da casa-grande, indignou-se, bradou contra a escravidão dizendo que
se tratava de uma maldição divina. E prosseguiu: “Maldito seja o senhorio e
maldito seja o escravo [..] Pensei que com bondade, carinho e educação, poderia
dar aos escravos melhores condições do que a liberdade, mas que tolice a
minha!” (p. 73). Após ser chamada pelo marido de abolicionista e lembrada de
que sua opinião contrariava a “de muitos homens sábios e de boa fé”, a Senhora
Shelby censurou veemente o Sr. B, um pastor que no domingo anterior havia
pregado na igreja da fazenda a favor do cativeiro dos negros: “Não quero ouvir
esse tipo de sermões. Nunca mais quero ouvir o Sr. B em nossa igreja de novo.
Talvez os pastores não possam curar o mal da mesma maneira que nós não
podemos, mas defendê-lo? Isso foi sempre contra o meu bom senso” (p. 73).
De mais a mais, a generalização – padres escravistas e pastores
abolicionistas – não ajudaria em nada o entendimento da questão que nos
colocamos a compreender. O fato é que, mais ou menos na mesma época em que
os jesuítas Benci e Andreoni (Antonil) e o Padre Ribeiro Rocha escreveram
sobre o cativeiro dos africanos no Brasil, algumas tradições de negação completa
da escravidão começavam a tomar corpo entre religiosos protestantes na
Inglaterra. Embora devamos lembrar, uma vez mais, que a história da escravidão
sempre foi acompanhada de movimentos que, se nem sempre postulavam a
abolição geral da instituição do cativeiro, pelo menos, reivindicavam a libertação
de alguns escravos, foi em centros urbanos da Europa medieval que tradições
populares antiescravistas manifestaram-se pela primeira vez, quando algumas
leis e a justiça municipal passaram a oferecer proteção a escravos fugitivos e
servos (GRINBERG & PEABODY, 2013). No século xvi, sob a alegação de que não
mais havia escravos em seus reinos, juízes ingleses e franceses declararam que
nenhum habitante nativo ali residente estava submetido àquela condição ou
status (DRESCHER, 2011). Apesar desses eventos localizados e, para alguns,
peculiares, foi apenas entre grupos evangélicos que pregavam um igualitarismo
radical, nomeadamente entre os quacres, que a escravidão passou a ser
denunciada como um gravíssimo pecado no século xviii.
Em 1736, o quacre Benjamim Lay (1681-1759), nascido na Inglaterra e
radicado nos Estados Unidos, autor de centenas de panfletos críticos à diversas
instituições de sua época, tais como a pena de morte e o sistema carcerário, foi
incumbido, em 1736, da missão de provar que o antiescravismo estava no
caminho necessário da pureza religiosa. Dizia ele, segundo nos conta o
historiador norte-americano David Brion Davis: “Nunca li na História dos
valdenses, nossos primeiros reformadores do catolicismo romano, que eles
tivessem algum escravo”. E segue Davis:

Pois, de acordo com esse irrepreensível profeta […] Assim como Deus
deu seu único procriado Filho, que todos que nele acreditassem
poderiam ter Vida eterna, o Diabo dá sua procriada Criança, o comércio
de escravos e de almas dos homens, que todos os que nele acreditam e o
comercializam podem ter a Danação eterna. A escravidão, do ponto de
vista de Lay, não era apenas uma prática infernal, mas um pecado
imundo, o pecado capital, de fato, o maior pecado do mundo, da própria
natureza do inferno mesmo e é o ventre do inferno. Ela era Baal,
Sodoma e o Dragão negro todos enrolados em uma massa pútrida do
mal: A pior parte das velhas prostitutas comercializadas, a prostituta
das prostitutas imundas obscenas, os bastardos da Babilônia (DAVIS,
2001, p. 329).

Tido como radical mesmo entre os seus, Lay acabou por canalizar um
sentimento que, a partir de fins do século xviii, ecoou dos dois lados do
Atlântico, na forma de sociedades que militavam em nome do “antiescravismo
organizado”. Essas sociedades, em geral, de caráter abolicionista, associadas a
uma série de outros fatores que incluíam a própria ação dos escravos e de
diferentes atores da sociedade civil da época, inclusive de iluministas como
Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau que em seu O contrato social de 1762
chama a escravidão de uma convecção insensata, contribuíram com o desmonte,
no Ocidente, de uma instituição antiquíssima. “No curso de pouco menos de um
século, entre as décadas de 1770 e de 1880, foi desmantelada essa vasta extensão
transoceânica da escravidão criada depois de 1450.” Precisamente nos anos
finais da década de oitenta do século xix, a escravidão legal de africanos deixou
de existir em todo o Novo Mundo (DRESCHER, 2011, p. xiv).
A literatura, sobretudo o folhetim disseminado em primeira mão pelos
jornais que abraçavam a causa abolicionista, teve papel fundamental no
convencimento da opinião pública sobre os horrores que a escravidão tornava
possíveis, fazendo perderem-se tanto senhores quanto escravos. Não por acaso,
no caminho da fuga desesperada para salvar seu filho, o pequeno Harry, de um
futuro trágico, a escrava Elisa foi auxiliada exatamente por religiosos muito
austeros, membros de um grupo quacre. As causas que levaram ao fim da
escravidão, como já dissemos, foram múltiplas e desenrolaram-se em um
relativo curto espaço tempo. Sem dúvida, no entanto, A cabana do Pai Tomás
teve, nesse conjunto de fatores, um papel crucial ao falar de uma verdade
incômoda, por meio da língua que, talvez, não fosse tão bem compreendida pelo
mundo dos senhores, certamente mais propensos a proteger seus bens e sua
fortuna, mas perfeitamente interpretada por aqueles que, de maneira geral, se
sentiam cristãos e que, dentro e fora dos Estados Unidos da América, passaram a
se identificar com a indignada Senhora Shelby, com a corajosa, decidida mãe e
escrava Elisa, com as muito sagazes escravas Emmeline e Cassy, que por
desespero, ingenuidade e atrevimento, zombaram das crendices de senhores e
feitores sádicos e ignorantes e, por fim, com o martirizado escravo Tomás que,
sem nunca se rebelar contra o cativeiro, cumpriu toda a sua jornada debaixo de
uma rígida moralidade, munido de uma poderosa e inspiradora fé na liberdade,
que o colocava em posição infinitamente superior à do seu algoz.
De Tio a Pai: a parábola do bom senhor no Brasil
Um ano após a sua publicação em livro, nos Estados Unidos, Uncle Tom’s
Cabin foi traduzido para o português. Edições foram aos prelos em Lisboa e em
Paris, em 1853 e 1856, já com o título de A cabana do Pai Tomás. O livro “foi
também parcialmente publicado em capítulos por A Redempção, jornal
abolicionista de São Paulo. Os capítulos aparecem de 13 de outubro de 1887 até
o último número do jornal em maio de 1888” (AZEVEDO, 2003, p. 144).
Não era, contudo, prioritariamente, pela via do estabelecimento de uma
identidade moral com senhores cristãos que o drama dos escravos do Kentucky
conseguiria comover o público brasileiro do oitocentos. A escravidão, uma
instituição naturalizada mundo afora durante séculos, nunca foi abalada no
território luso do além-mar até o século xix. O cativeiro de africanos existia em
perfeita sintonia com a sociedade católica que aqui se montou. Em cidades como
o Rio de Janeiro, Salvador e Recife, os escravos africanos eram onipresentes.
Para além da típica plantation, à medida que a colonização atingiu o interior do
território, estabelecendo uma infinidade de pequenos núcleos urbanos e extensas
áreas rurais, levou consigo o cativeiro dos negros, suas lógicas e verdades. Uma
sociedade por princípio desigual, que deitava raízes na Europa Medieval,
constituiu a base do que viemos a ser e nela a escravidão e a desigualdade
atingiram um grau de normalidade imenso.
Alguns de nossos literatos abolicionistas, em lugar de investirem no
argumento da igualdade cristã (somos todos filhos de Deus), optaram por alertar
para o vício de portas adentro que representava o escravo. Esse foi o caso tanto
da criança escrava, representada na peça teatral O demônio familiar (1857) de
José de Alencar, quanto dos viciosos escravos Simeão, Pai Raiol e Lucinda,
protagonistas das três novelas reunidas em As vítimas algozes (1869), por
Joaquim Manoel de Macedo.

Seguindo dois caminhos opostos, chega-se ao ponto que temos fitado, à


reprovação profunda que deve inspirar a escravidão. Um desses
caminhos se estende por entre as misérias tristíssimas, e os incalculáveis
sofrimentos do escravo, por essa vida de amarguras sem termo, de árido
deserto sem um oásis, de inferno perpétuo no mundo negro da
escravidão. É o quadro do mal que o senhor, ainda sem querer, faz ao
escravo. O outro mostra a seus lados os vícios ignóbeis, a perversão, os
ódios, os ferozes instintos do escravo, inimigo natural e rancoroso do seu
senhor, os miasmas, deixem-nos dizer assim, a sífilis moral da
escravidão infeccionando a casa, a fazenda, a família dos senhores, e a
sua raiva concentrada, mas sempre em conspiração latente atentando
contra a fortuna, a vida e a honra dos seus incônscios opressores. É o
quadro do mal que o escravo faz de assentado propósito ou às vezes
involuntária e irrefletidamente ao senhor. Preferimos esse segundo
caminho: é o que mais convém ao nosso empenho (MACEDO, 2005, p. iv).

A literatura e, em particular, o romantismo, por aqui, teriam servido a dois


senhores que, ao mesmo tempo, combatiam e legitimavam o cativeiro. “A
justificativa primitivista do antiescravismo anglo-americano aqui pegou torta. A
tradição imperial expurgou dela a identificação entre bom selvagem e africano,
substituído pelo índio” (ALONSO, 2015, p. 94). Entre o apelo humanitário que
expunha os dramas sofridos por homens e mulheres feitos coisas e a denúncia
dos vícios da senzala que inevitavelmente contaminam a casa senhorial, a
escravidão era pintada em cores fortes e, às vezes, por caminhos distintos, como
assevera Macedo, se chegava a um só objetivo: abolir o cativeiro.
Além de inspirar o romance nacional, quando o caso era atacar a instituição
por meio da denúncia do drama sofrido pelo cativo, Pai Tomás aparecia até
mesmo por vias inusitadas. Desde muito cedo, ainda em seu primeiro texto,
nunca concluído e só tardiamente publicado, o então jovem estudante de direito
do Recife, mais tarde célebre abolicionista, Joaquim Nabuco escrevera a história
de outro Tomás tão verdadeiro quanto o de Stowe. Lá, quando inquerida sobre a
veracidade dos fatos narrados, a abolicionista norte-americana dizia ter
encontrado todos em histórias que presenciou ou que lhe foram contadas por
pessoas próximas. Aqui, Nabuco expunha ao público os dramas de um escravo
por ele defendido no tribunal. Para além do nome idêntico, interessava a Nabuco
mirar o que acreditava ser um mito muito caro às sociedades brasileira e norte-
americana: o mito do bom senhor. Como Pai Tomás, o Tomás descrito por
Nabuco em A Escravidão — obra escrita em 1870 — era respeitável e vivia
como se homem livre fosse, até que em um dia a proteção da justa e humana
senhora desapareceu, Tomás foi surrado, preso e acabou condenado à morte por
dois crimes no Recife. “Uma vida quase livre se vertia em tormento e o cativeiro
se apresentava ao escravo com uma de suas faces mais perversas” (FERREIRA,
2011, pp. 20-21). Embora, desde 1879, A cabana já fosse encenada por uma
companhia teatral em várias regiões do país, foi o próprio Nabuco quem teria se
prontificado a fazer, em 1884, no Brasil, a tradução da história do Tio (Uncle),
aqui Pai, Tomás, texto que apareceu nas páginas do jornal A Redempção
(ALONSO, 2015).
Embora lido em sociedades que experimentaram formações históricas muito
específicas, onde a relação entre a escravidão e o cristianismo acabou por
resultar em comportamentos distintos, A cabana do Pai Tomás tornou-se um
testemunho fundamental no convencimento de que a escravidão não era natural.
Enquanto nos Estados Unidos, primeiro a partir da crítica radical quacre e depois
por meio da ramificação em outras igrejas e comunidades protestantes, difundiu-
se um severo discurso de equiparação entre escravidão e pecado, no Brasil,
durante muito tempo, o catolicismo produziu considerações mais disciplinadoras
do que propriamente combativas da escravidão, mesmo considerando-se que
muitos católicos se engajaram na luta abolicionista, mas isso, sobretudo, na
segunda metade do século xix.
Nos dois hemisférios escravistas da América, entretanto, a ideia de que um
senhor cristão e humano seria a garantia de uma escravidão aceitável caiu por
terra. Sem dúvida, a parábola do bom senhor em que se transformou A cabana
do Pai Tomás, narrada a milhares de discípulos pela notável Harriet Beecher
Stowe, acabou por oferecer ao mundo uma lição que poderia ecoar até os dias
atuais, com grande utilidade para tirar de uma posição confortável, novas e
velhas gerações que, por vezes, aparentam estar muito cônscias de seu papel
irreparável – à direita e, sobretudo, à esquerda – no enfrentamento das mazelas
que ainda assolam a sociedade contemporânea.

1 Ao longo deste texto, o leitor se deparará com duas expressões (antiescravismo e abolicionismo) para a
quais cabem algum esclarecimento e diferenciação, que, por afinidade e concordância, tomo por
empréstimo da historiadora Célia Maria Marinho Azevedo: “Por ‘abolicionismo’ entendo o modo de
pensamento cujo foco central é a crítica à escravidão, defendendo a necessidade de acabar com ela, fosse de
forma gradual ou imediata. Por ‘antiescravismo’, entendo uma postura mais generalizada de oposição à
escravidão que não necessariamente defende a abolição ou engaja-se na luta abolicionista”. (AZEVEDO,
2003, p. 34)
Bibliografia

ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro


(1868-1888). 1a Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil,
uma história comparada (século xix). São Paulo: Annablume, 2003.
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e
minas. (1711). Introdução e Vocabulário por A. P. Canabrava. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1967.
BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos.
(1705). São Paulo, Grijalbo, 1977.
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal,
Conselho Editorial, 2007.
DAVIS, David Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
DRESCHER, Seymour. Abolição: uma história da escravidão e do
antiescravismo. Tradução de Antônio Penalves Rocha. (1a edição – 2009) São
Paulo: Editora UNESP, 2011.
FERREIRA, Ricardo Alexandre. Crimes em comum: escravidão e liberdade
sob a pena do Estado imperial brasileiro (1830-1888). São Paulo: Editora
Unesp, 2011.
GRINBERG, Keila & PEABODY, Sue. Escravidão e Liberdade nas Américas.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos
entre a África e o Rio de Janeiro (séculos xviii e xix). São Paulo: Companhia das
Letras, 1997.
ROCHA, Manuel Ribeiro. Etíope resgatado, sustentado, corrigido, instruído e
libertado. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1758.
ROSSEAU, Jean-Jacques (1712-1778). O contrato social: princípios do direito
político. 4a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Originalmente publicado em
1762.) SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na
formação da família escrava, Brasil Sudeste, século xix. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999.
MACEDO, Joaquim Manoel de. As vítimas-algozes: quadros da escravidão. 4a
ed. Porto Alegre: Zouk, 2005. (Originalmente publicado em 1869.) VAINFAS,
Ronaldo. “Deus contra Palmares: representações senhoriais e idéias jesuíticas”.
In: Reis, João José & Gomes, Flávio dos Santos (orgs). Liberdade por um fio:
história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
A CABANA DO PAI TOMÁS
1
NO QUAL O LEITOR É
APRESENTADO A UM HOMEM DE
HUMANIDADE

No fim da tarde de um dia frio de fevereiro, dois cavalheiros sentavam-se


sozinhos com seus copos de vinho, em uma sala de jantar bem decorada, na
cidade de P———, no Kentucky. Não havia serviçais presentes, e os
cavalheiros, com as cadeiras bem próximas, pareciam discutir algum assunto de
suma importância.
Por conveniência, os declaramos, até o presente momento, dois cavalheiros.
Uma das partes, no entanto, quando analisada com minúcia, não parecia,
estritamente falando, pertencer a essa espécie. Ele era um homem baixo,
atarracado, com feições comuns e rudes, e tinha aquele ar pretensioso e
arrogante presente em homens de classe baixa forçando sua ascensão no mundo.
Estava vestido com demasiado apuro para a ocasião, com um traje multicolorido
e um lenço azul salpicado de bolinhas amarelas no pescoço, amarrado como uma
gravata, muito de acordo com sua figura. Suas mãos, grandes e ásperas, estavam
cobertas de anéis e ele usava um pesado relógio de bolso dourado, do qual
pendiam vários pingentes exagerados e coloridos, os quais, no afã da conversa, o
homem tinha o hábito de ostentar e sacudir com evidente satisfação. A fala se
dava em livre e aberta afronta à gramática de Murray,1 e de tempos em tempos
era permeada de várias expressões profanas, as quais nem mesmo o desejo de
sermos explícitos em nossa narrativa há de nos induzir a transcrevê-las.
Seu companheiro, o Sr. Shelby, tinha a aparência de um cavalheiro, e o
aspecto geral da casa, assim como sua arrumação, indicava uma condição de
conforto e até mesmo de opulência. Como dissemos anteriormente, os dois
estavam no meio de uma conversa importante.
— É assim que eu deveria resolver a questão. — disse o Sr. Shelby.
— Não posso fazer negócio assim não; assim, não dá mesmo, seu Shelby —
falou o outro segurando um copo de vinho entre os olhos e a luz.
— Bem, Haley, o fato é que Tomás é um sujeito incomum; ele certamente
vale esse montante em qualquer lugar: pau para toda obra, honesto, capaz, ele
administra toda minha propriedade com a precisão de um relógio.
— Honesto pra um crioulo, você quer dizer — afirmou Haley, servindo-se
de um copo de conhaque.
— Não. Estou dizendo que Tomás é de fato um sujeito bom, honesto,
sensato e piedoso. Ele se converteu à religião em culto aberto há quatro anos; e
acredito que tenha se convertido de verdade. Desde então, tenho lhe confiado
tudo o que tenho — dinheiro, casa, cavalos — e deixo que vá a todo lugar, e
sempre o considerei sincero e honesto com relação a tudo.
— Tem gente que não acredita que existe crioulo carola, Shelby — disse
Haley com um movimento afetado da mão. — Mas, eu acredito. Tive um assim,
agorinha, no último lote que levei para Orleans esse ano — ouvir a criatura rezar
era que nem ir a um culto; e ele era do tipo obediente e quieto. Também me
rendeu um bom dinheiro, porque comprei ele de um homem que foi obrigado a
vendê-lo, por isso consegui seiscentos nele. Sim, considero a religião uma coisa
de grande valia em um preto, mas quando é pra valer e não uma enganação.
— Bem, Tomás é religioso de verdade, o máximo que se pode ser —
retrucou o outro. — No último outono, deixei que fosse a Cincinnati sozinho,
para fazer negócios para mim e me trazer quinhentos dólares para casa.
“Tomás”, eu lhe disse, “confio em você porque acredito que seja cristão e sei que
não me enganaria”. Tomás voltou, é claro. Sabia que ele voltaria. Disseram que
uma gentalha lhe perguntou: “Tomás, por que não foge para o Canadá?”, e ele
respondeu: “Meu amo confiou em mim e eu não poderia fazer isso”. Foi o que
me contaram. Devo dizer que sinto muito em me separar do Tomás. Precisa
deixar que ele seja o suficiente para cobrir o valor total da dívida; e realmente
deveria, Haley, se tivesse algum bom senso.
— Bem, tenho tanto bom senso quanto qualquer homem nesse ramo de
negócio pode se dar ao luxo de ter, o suficiente pra poder dar minha palavra —
replicou jocosamente o mercador de escravos. — E estou pronto pra fazer
qualquer coisa pra agradar aos amigos; mas este ano, veja bem, está muito
difícil, difícil demais — o mercador de escravos suspirou contemplativamente e
serviu-se de mais um pouco de conhaque.
— Mas, então, Haley, como faremos negócio? — perguntou o Sr. Shelby
depois de um período de silêncio incômodo.
— Bem, será que não tem um garoto ou garota que possa pôr junto com o
Tomás?
— Hum! Ninguém de quem pudesse abrir mão. Para dizer a verdade, é
apenas a pura necessidade que me obriga a vendê-lo. Não gosto de me desfazer
de meus escravos, isso é fato.
Nesse momento uma porta se abriu, e um garotinho quadrarão,2 entre quatro
e cinco anos de idade, entrou na sala. Havia algo absolutamente belo e atraente
em sua aparência. Seu cabelo negro, fino como um fio de seda, caía em cachos
brilhantes ao redor de seu rosto redondo, com covinhas, enquanto um par de
grandes olhos escuros, repletos de fogo e bondade, olhavam por debaixo dos
cílios longos e cheios espiando o ambiente com curiosidade. Um traje chamativo
de pregas vermelhas e amarelas, feito com apuro e caimento impecável,
valorizava o estilo rico e escuro de sua beleza; e um certo ar cômico de
confiança, mesclado à timidez, indicava que ele estava acostumado a ser
mimado e notado por seu senhor.
— Olá, Jim Crow!3 — cumprimentou o Sr. Shelby, assoviando e jogando um
punhado de uvas secas na direção dele. — Isso é para você!
Com todo seu vigor infantil, a criança se jogou ao chão atrás do prêmio,
enquanto o senhor ria.
— Venha aqui, Jim Crow — ele pediu. A criança foi, e o senhor lhe
acariciou a cabeça cacheada e lhe fez cócegas embaixo do queixo.
— Agora, Jim, mostre a este cavalheiro como sabe dançar e cantar.
O garoto começou uma de suas canções selvagens e grotescas, comuns entre
os negros, com uma voz bela e nítida, acompanhando o canto com muitas
evoluções engraçadas das mãos, pés, e de todo o corpo, tudo em perfeita
sincronia com a música.
— Bravo! — disse Haley, jogando um quarto de laranja para ele.
—Jim, agora caminhe como o velho tio Cudjoe quando ele tem crise de
reumatismo — ordenou o senhor.
Imediatamente os membros flexíveis da criança assumiram a aparência de
deformidade e distorção quando, com as costas corcundas e a bengala do senhor
na mão, ele mancava pela sala, o rostinho infantil transformado em um uma
careta enrugada, cuspindo de um lado para o outro, imitando um velho.
Os dois cavalheiros gargalharam estrondosamente.
—Jim — disse o senhor —, agora nos mostre como o velho Robbins recita
os salmos.
O garotinho esticou o mais que pôde o rosto gorducho e começou a recitar o
salmo com um tom nasalado, dotado de uma sonoridade imperturbável.
— Viva! Bravo! Mas que garotinho danado! — disse Haley. — Esse guri é
dos diabos, vou te contar. Vamos fazer uma coisa — ele falou, subitamente
colocando a mão sobre o ombro do Sr. Shelby —, me dê esse moleque e
fechamos negócio. Vamos lá, ninguém ia fazer um negócio mais camarada!
Nesse momento, a porta se abriu suavemente e uma jovem quadrarona, de
aproximadamente vinte e cinco anos, entrou na sala.
Bastou apenas um olhar da criança para saber que ela era a mãe do garoto.
Tinham os mesmos olhos escuros, ricos e profundos, com os mesmos cílios
longos; as mesmas madeixas de cabelos negros sedosos. O marrom de sua pele
deu lugar a um leve rubor nas bochechas, que se acentuou ao perceber o olhar
atrevido e admirador do forasteiro cair sobre ela. O vestido dela era bem
ajustado, evidenciando seu corpo finamente esculpido; as mãos delicadas, os pés
e tornozelos finos foram itens da aparência que não escaparam aos olhos rápidos
do mercador de escravos, acostumados a avaliar, de um só relance, os pontos
fortes de um artigo feminino.
— O que foi, Elisa? — perguntou o amo quando ela parou e olhou hesitante
para ele.
— Estava procurando Harry, por favor, senhor — e o garotinho se precipitou
na direção dela, mostrando as guloseimas que tinha escondido entre as pregas da
roupa.
— Bem, então leve-o daqui — disse o Sr. Shelby e ela apressadamente saiu
da sala, carregando a criança nos braços.
— Por Júpiter — disse o mercador de escravos, virando-se para ele
admirado. — Aí está um tesouro! Podia fazer uma fortuna com essa garota em
Orleans, quando quisesse. No meu tempo, já vi darem mais de mil por garotas
que não chegam nem aos pés dessa aí.
— Não quero fazer uma fortuna com ela — retrucou o Sr. Shelby secamente.
E, tentando mudar o rumo da conversa, ele tirou a rolha de outra garrafa de
vinho fresco, e perguntou a opinião de seu companheiro.
— Maravilhoso, senhor, de primeira! — elogiou o mercador de escravos.
Em seguida, e como havia feito antes, virou-se e colocou a mão sobre o ombro
de Shelby, acrescentando: — Vamos lá, como podemos fazer negócio com a
garota? Quanto devo-lhe pagar? Quanto quer por ela?
— Sr. Haley, ela não está à venda — respondeu Shelby. — Minha esposa
nunca abriria mão dela, nem por seu peso em ouro.
— Ai, ai! As mulheres dizem essas coisas porque não sabem fazer conta.
Mostra pra elas quantos relógios, plumas e enfeites o peso de alguém em ouro
pode comprar e tudo muda de figura, isso eu te garanto.
— Estou lhe dizendo, Haley, não devemos nem falar disso. É não e não —
retrucou Shelby, decididamente.
— Bem, então deixa eu ficar com o garoto — pediu o mercador de escravos.
— Deve ter notado que fiquei muito bem impressionado com ele.
— E o que poderia querer com uma criança? — perguntou Shelby.
— Bem, tenho um amigo que este ano está entrando nesse ramo de negócio;
quer comprar garotos atraentes para criá-los para o mercado. Artigos de luxo:
servirão como criados e outras coisas em casa de gente rica, que tem dinheiro
para pagar por garotos bonitos. Causa uma boa impressão: um belo garoto para
abrir a porta, servir e cuidar da casa. Eles dão um bom dinheiro; e esse diabinho
com esse talento cômico e musical é exatamente esse tipo de mercadoria!
— Preferiria não vendê-lo — continuou o Sr. Shelby, contemplativo. — O
fato é, senhor, que sou humano e odiaria tirar o garoto da mãe.
— Ah, é mesmo? É normal. Compreendo perfeitamente. Às vezes é
desagradável demais lidar com as mulheres. Detesto os chororôs e as gritarias.
Elas são desagradáveis demais. Porém, nos negócios, eu costumo evitar elas,
senhor. E que tal se mandar a garota embora por um dia, ou uma semana? Aí as
coisas são feitas tranquilamente e tudo vai estar acabado quando ela voltar pra
casa. Sua esposa poderá lhe dar uns brincos ou um vestido novo ou alguma outra
coisa pra consolar ela.
— Receio que não.
— Deus o abençoe! Essas criaturas não são como os brancos, o senhor sabe.
Dependendo do que se faz, elas passam por cima de tudo. Dizem — continuou
Haley, assumindo um ar cândido e confidente — que esse tipo de comércio
endurece os sentimentos, mas eu nunca concordei com isso. A verdade é que
nunca fui capaz de fazer as coisas que nem outros camaradas por aí. Já vi eles
tirarem uma criança dos braços de uma mulher e o colocarem à venda, e ela
gritando feito louca o tempo todo; uma política muito ruim; estraga a
mercadoria, às vezes torna ela muito inadequada para o trabalho. Uma vez
conheci uma garota muito bonita em Orleans que foi completamente arruinada
por esse tipo de situação. O sujeito que estava comprando não queria o bebê
dela; e ela era uma daqueles tipos que faz escândalo quando o sangue sobe à
cabeça. Vou te contar, ela apertou a criança nos braços e reclamou, e a coisa
ficou feia. Meu sangue congela só de me lembrar daquilo; e quando eles
arrancaram o filho dela e prenderam ela, ela simplesmente enlouqueceu e morreu
em uma semana. Um desperdício total, senhor, de mil dólares, só por falta de
jeito, isso mesmo. É sempre melhor agir com humanidade, senhor; pelo menos
essa é a minha experiência.
Então o mercador de escravos se recostou de volta na cadeira, e cruzou os
braços com um ar de confiança virtuosa, aparentemente se considerando um
segundo Wilberforce.4
O assunto parecia ser de profundo interesse do cavalheiro; pois, enquanto o
Sr. Shelby descascava uma laranja pensativamente, Haley voltou a falar,
deixando de lado a timidez, como se a força da verdade o impelisse a dizer mais
algumas palavras.
— Não é de bom tom um sujeito ficar se gabando. Mas, eu faço isso só
porque sei que é verdade. Acredito ser reconhecido por trazer os melhores lotes
de pretos que se pode ter, pelo menos é isso o que me dizem. Calculo ter feito
isso pelo menos umas cem vezes, todos gordos e saudáveis, e perco alguns
poucos assim como outros nesse ramo de negócio. E devo tudo isso ao meu
sistema, senhor. Minha humanidade, senhor, é o grande pilar do meu sistema.
O Sr. Shelby não sabia o que falar, então apenas disse:
— Sem dúvida!
— Há quem ria e quem troce de minhas ideias, senhor. Elas não são nada
populares nem são nada comuns; mas continuo fiel a elas, senhor. Sempre fui
fiel a elas e lucrei muito com isso. Sim, senhor, devo dizer que elas sempre
valeram a pena — e o mercador de escravos riu de sua própria piada.
Havia algo tão picante e original nessas elucidações sobre humanidade que o
Sr. Shelby não teve alternativa senão rir com ele. Talvez você também ria, caro
leitor. Mas saiba que hoje em dia a humanidade se apresenta em uma estranha
variedade de formas, e não têm fim as coisas estranhas que os seres humanos
serão capazes de dizer ou fazer.
O riso do Sr. Shelby encorajou o mercador de escravos a prosseguir.
— É estranho, mas nunca fui capaz de meter isso na cabeça das pessoas. Por
exemplo, o Tom Loker, meu antigo sócio em Natchez; era um sujeito inteligente,
o velho Tom, mas o diabo em pessoa com os pretos! Em princípio, veja bem, um
camarada de bom coração nunca deveria judiar de ninguém; mas era o sistema
dele, senhor. Eu costumava conversar com o Tom. “Tom”, eu costumava dizer,
“quando as negrinhas começam a chorar, de que adianta dar murros na cabeça
delas e descer o sarrafo nelas? É ridículo”, eu dizia. “E não adianta nada. Não
vejo problema nenhum no choro delas”, eu falava, “é natural. E se a natureza
não age de um jeito, acaba agindo de outro. Além disso, Tom”, eu continuava,
“só piora o estado das negrinhas. Elas ficam doentes, amargas; e às vezes ficam
feias, principalmente as mulatas, e é um sacrifício para deixá-las obedientes. Por
que não persuadi-las e tratá-las melhor? Acredite, Tom, um pouco de
humanidade adianta muito mais do que seus tapas e bofetões. E dá mais lucro”,
eu falava. “Pode apostar”. Mas Tom não conseguia se controlar, e estragou tantas
negrinhas que, apesar de ser um homem de bom coração e um bom mercador de
escravos, tive que me apartar dele.
— E o senhor acredita que o seu sistema seja melhor do que o de Tom? —
perguntou o Sr. Shelby.
— Sim, claro, senhor, tenho certeza que sim. Veja, toda vez que posso, tomo
providências com as partes mais incômodas; como quando quero vender
crianças, tiro as mães de perto — “o que os olhos não vêem o coração não sente”
— e como o que não tem remédio, remediado está, elas acabam se acostumando.
Sabe como é, senhor, os brancos são criados com a ideia de ficar com seus filhos
e esposas e tudo mais. Os pretos, se educados do jeito certo, não têm nenhum
tipo de expectativa; aí as coisas ficam mais fáceis.
— Bem, receio lhe dizer que os meus não são educados do jeito certo, então
— retrucou o Sr. Shelby.
— Acho que não. Vocês do Kentucky estragam os seus escravos. Têm boas
intenções, mas não há bondade verdadeira, no final das contas. Mas, para um
preto, veja bem, que foi feito para passar de mão em mão pelo mundo, para ser
vendido pra Tom, e Dick e sabe Deus quem, a bondade lhe dará ideias e
esperanças, e tratar ele bem demais só fará ele sofrer mais ainda quando tiver
que passar por tudo de novo. Ouso dizer que os seus pretos ficariam muito
amargurados enquanto os pretos da minha fazenda estariam cantando e dançando
como se estivessem possuídos. Todo homem, Sr. Shelby, naturalmente acredita
em seu próprio sistema; e eu acho que trato os pretos tão bem quanto merecem
ser tratados.
— Que bom que está satisfeito consigo mesmo — comentou o Sr. Shelby,
dando levemente de ombros e demonstrando um sutil sentimento de desacordo.
— Bem — disse Haley, depois de ambos refletirem por um momento —, o
que me diz então?
— Pensarei sobre o assunto e conversarei com minha esposa — disse o Sr.
Shelby. — Enquanto isso, Haley, se quiser continuar a conversa na mais absoluta
discrição, é melhor que não saibam de nossos negócios na vizinhança. Isso pode
se espalhar entre minha gente, e não será um negócio particularmente discreto
entrar em acordo com esses sujeitos se eles ficarem sabendo, eu lhe garanto.
— Ah! Com certeza! Claro que sim. Mas, devo lhe dizer que estou com uma
pressa danada e precisarei saber o mais rápido possível com o que poderei contar
— disse ele, levantando-se e vestindo sua casaca.
— Bem, passe mais à noitinha, entre seis e sete, e deverá ter minha resposta
— falou o Sr. Shelby. O mercador fez uma mesura, e em seguida saiu da sala.
“Gostaria de poder chutar aquele sujeito escada abaixo”, disse a si mesmo
enquanto via a porta prestes a se fechar, “com aquela confiança insolente. No
entanto, ele sabe que estou em desvantagem. Se algum dia me dissessem que eu
deveria vender Tomás para um daqueles perversos mercadores de escravos do
Sul, eu diria: 'Por acaso seu servo é um cão para que tenha que fazer uma coisa
dessas?’. E agora chego a esse ponto. Tenho que passar por isso. E o filho de
Elisa também! Sei que minha esposa fará um escândalo por causa dele e,
verdade seja dita, pelo Tomás também. Isso é o que dá estar mergulhado em
dívidas! Arre! O sujeito sabe que está em vantagem e certamente se valerá
disso.”
Talvez a forma mais branda do sistema de escravidão esteja no estado do
Kentucky. O predomínio generalizado dos objetivos agrícolas de natureza calma
e gradual, que não exigem períodos de trabalho intenso e atividades sob pressão,
necessários aos negócios dos distritos mais ao sul, torna a tarefa do negro mais
saudável e menos pesada. Enquanto isso, o senhorio, satisfeito com um estilo
mais gradativo de ganhos, desconhece as tentações de crueldade que sempre se
sobrepõem à frágil natureza humana diante da perspectiva de um rápido e súbito
ganho pesado na balança, sem contrapeso maior do que os interesses dos menos
favorecidos e menos protegidos.
Quem quer que visite as propriedades de lá, e testemunhe a indulgência
bondosa de alguns senhores e senhoras de escravos e a lealdade afetuosa de
alguns destes, poderá ficar tentado a sonhar com a eternamente contada lenda
poética da instituição patriarcal e tudo mais. No entanto, por cima desse cenário
há uma enorme sombra — a sombra da lei. Enquanto a lei considerar todos estes
seres humanos com corações palpitantes e afeições legítimas apenas como coisas
pertencentes a um amo, enquanto a decadência, ou o azar ou a imprudência, ou a
morte do mais bondoso dos proprietários puder obrigá-los, a qualquer momento,
a trocar uma vida de proteção e indulgência por uma de miséria e trabalho sem
fim, será impossível criar qualquer coisa bela ou desejável em qualquer
organização escravocrata, por mais bem administrada e regulada que seja.
O Sr. Shelby era um homem dentro da média, gentil e de bom coração,
disposto a agradar a todos ao seu redor, e nunca deixou faltar nada que pudesse
contribuir para o conforto físico dos negros de sua propriedade. Todavia, ele
especulara frequente e desregradamente, atolando-se em dívidas, e grande parte
de seus títulos foram parar nas mãos de Haley; e esse pequeno apanhado de
informações é fundamental para a discussão anterior.
Sucedeu-se que, ao se aproximar da porta, Elisa ouvira o suficiente da
conversa para saber que um mercador de escravos estava fazendo ofertas a seu
amo.
Ao sair, ela teria ficado ouvindo atrás da porta de bom grado, mas sua ama a
chamou e ela foi obrigada a se afastar depressa.
Ainda assim, pensou ter ouvido o mercador de escravos fazer uma oferta por
seu garotinho. Será que estava enganada? Seu coração inchou e disparou e ela,
involuntariamente, apertou o pequenino com tanta força que ele levantou os
olhos para ela, com espanto.
— Elisa, minha filha, o que deu em você hoje? — perguntou a senhora
quando a escrava derrubou a jarra do lavatório, tropeçou na mesinha de costura e
por fim, distraída, ofereceu à senhora uma camisola longa no lugar de um
vestido de seda que ela lhe pedira para trazer do guarda-roupa.
Elisa começou.
— Ah, minha senhora! — disse ela erguendo os olhos e, debulhada em
lágrimas, desabou na cadeira e começou a soluçar.
— O que aconteceu, criança? O que a aflige? — perguntou a senhora.
— Ah, senhora, senhora! — Elisa falou. — Havia um mercador de escravos
conversando com o amo na sala de visitas. Eu o ouvi.
— Ah, sua tolinha, e o que é que tem isso?
— Ah, senhora, acha que o amo poderia vender o meu Harry? — e a pobre
criatura se jogou na cadeira e soluçou convulsivamente.
— Vendê-lo? Não, menina tola! Sabe muito bem que seu amo nunca faz
negócios com esses mercadores de escravos sulistas, e nunca quis vender
nenhum de seus servos, desde que se comportem bem. Por que, sua bobinha,
acha que ele iria querer vender o seu Harry? Acha que o mundo todo gira ao
redor dele feito você, sua babona? Vamos lá, alegre-se e abotoe o meu vestido.
Agora arrume meu cabelo para cima com aquela trança linda que aprendeu a
fazer outro dia, e pare de escutar por trás das portas.
— Bem, mas, senhora, a senhora nunca lhe daria seu consentimento para,
para…
— Que bobagem, menina! Teria antes que vender um de meus próprios
filhos. Mas, sinceramente, Elisa, você está ficando orgulhosa demais daquele
rapazinho. Um homem mal pode colocar o nariz na porta que já acha que ele
veio comprar seu filho.
Tranquilizada por aquele tom de confiança, Elisa prosseguiu graciosa e
habilidosamente com a toalete de sua senhora, rindo de seus próprios medos
enquanto continuava suas tarefas.
A Sra. Shelby era uma mulher superior, tanto intelectual quanto moralmente.
Aliava-se a essa atitude magnânima e generosa, geralmente uma marca
característica das mulheres do Kentucky, altos padrões morais, sensibilidade e
princípios religiosos, colocados em prática com grande energia e habilidade. O
marido dela, que não tinha fé em nenhuma religião em particular, reverenciava e
respeitava a consistência do credo religioso da esposa, e, talvez, chegasse a
temer a opinião dela. O fato é que ele sempre lhe dera completa liberdade para
envidar esforços benevolentes para o conforto, instrução e aprimoramento dos
escravos, ainda que ele próprio nunca tomasse parte em nenhum deles. De fato,
posto que não acreditava muito na doutrina da eficiência dos bons trabalhos dos
santos, o Sr. Shelby parecia verdadeiramente acreditar, de algum modo, que a
esposa tinha piedade e benevolência suficiente para ambos, e gabava-se com a
remota expectativa de alcançar o paraíso por meio do excesso de virtudes dela,
às quais ele não tinha nenhuma pretensão em particular.
O que mais lhe pesava no espírito, após a conversa com o mercador de
escravos, era a necessidade premente de contar à esposa sobre os arranjos
realizados, tendo que encarar as intempéries e a oposição que certamente iria
encontrar.
A Sra. Shelby, inteiramente alheia às dificuldades financeiras do marido, e
conhecendo apenas sua personalidade bondosa, sinceramente encarou com total
incredulidade as suspeitas de Elisa. Na verdade, tirou o problema de sua cabeça
sem pensar duas vezes; e, estando ocupada com os preparativos para uma visita
naquela noite, esqueceu-se por completo do assunto.
2
A MÃE

Elisa fora criada por sua senhora, desde pequena, como uma favorita cheia
de vontades e com direito a mimos.
O viajante no Sul há de ter notado o ar peculiar de refinamento, a suavidade
da voz e dos modos, que, em muitos casos, parece sempre um dom particular das
mulheres quadraronas e mulatas. Esses dotes naturais nas quadraronas são
unidos à beleza estonteante e quase sempre a uma aparência pessoal atraente e
afável. Elisa, como a descrevemos, não é um tipo imaginário, mas tirado de
nossa memória como a vimos anos atrás em Kentucky. Segura sob o cuidado
protetor de sua senhora, Elisa alcançara a maturidade sem aquelas tentações que
tornam a beleza uma herança tão fatal para um escravo. Ela se casara com um
jovem mulato inteligente e talentoso, que era escravo na propriedade vizinha,
chamado George Harris.
Esse jovem fora alugado por seu amo para trabalhar em uma fábrica de
sacos, onde suas habilidades e inteligência o fizeram se destacar no local. Ele
tinha inventado uma máquina para limpar o cânhamo, a qual, levando-se em
consideração o nível de instrução e a situação do inventor, demonstrava tanta
genialidade mecânica quanto o descaroçador de algodão de Whitney.1
George era bem apessoado, tinhas boas maneiras e era o preferido na fábrica.
Todavia, posto que aos olhos da lei esse não era um homem, mas uma coisa,
todas essas qualidades superiores estavam sujeitas ao controle de um senhor
vulgar, ignorante e tirânico. Esse mesmo homem, tendo ouvido falar da fama da
invenção de George, foi até a fábrica para ver do que se tratava a tal engenhoca.
Fora recebido com grande entusiasmo pelo dono da fábrica, que o parabenizou
por possuir um escravo tão valioso.
O senhor visitou a fábrica e a máquina lhe foi mostrada por George que,
animado, falou de forma tão eloquente, posicionou-se tão orgulhoso e parecia tão
belo e másculo, que seu senhor começou a sentir uma desconfortável sensação
de inferioridade. Quem seu escravo pensava que era, andando para lá e para cá,
inventando máquinas e sobressaindo-se entre os cavalheiros? Ele logo poria fim
àquilo. Ele o levaria de volta, o colocaria para capinar e cavar, e “então veremos
se ele vai se achar tão esperto”. Assim, o dono da fábrica e todos os outros
trabalhadores ficaram chocados quando ele repentinamente exigiu os
pagamentos de George e anunciou sua intenção de levá-lo de volta para casa.
— Mas, Sr. Harris — protestou o dono da fábrica — isso não é repentino
demais?
— E se for? O homem não é meu?
— Senhor, estamos dispostos a aumentar o valor dos pagamentos.
— Sem acordo, senhor. Não preciso alugar nenhum dos meus escravos, a
não ser que eu queira.
— Mas, senhor, ele parece muito apto para esse trabalho.
— Pode até ser. Mas, ele nunca se mostrou muito apto para qualquer
trabalho que lhe confiei, posso lhe garantir.
— Mas então pense apenas na máquina que ele inventou! — advertiu um
dos trabalhadores, para mal dos pecados.
— Ah, claro! Uma máquina para poupar trabalho, não é? Ele inventaria isso,
com certeza; deixe um preto sozinho fazendo isso, a qualquer hora. Eles próprios
são todos máquinas de poupar trabalho, cada um deles. Não, ele vem comigo!
George permaneceu ali, transfigurado ao ouvir o pronunciamento de sua
sentença ser feito por uma força que sabia ser intransponível. Cruzou os braços,
cerrou os lábios com força, mas um vulcão de sentimentos amargos lhe
queimava dentro do peito e labaredas de fogo circulavam por suas veias. Ele
respirava ofegante, e seus grandes olhos escuros faiscavam como carvão aceso;
poderia ter dado início a uma perigosa ebulição se não fosse pelo toque do
bondoso dono da fábrica em seu braço, que disse baixinho:
— Não resista, George; vá com ele por enquanto. Tentaremos ajudá-lo
depois.
O tirano percebeu a conversa e tirou conclusões de seu conteúdo, apesar de
não conseguir ouvir o que foi dito; e, internamente, fortaleceu sua determinação
em manter o poder que possuía sobre a vítima.
George foi levado para casa e colocado no trabalho mais penoso da fazenda.
Fora capaz de reprimir cada palavra desrespeitosa, mas os olhos coléricos, as
feições sombrias e preocupadas, faziam parte de uma linguagem natural que não
podia ser reprimida — sinais indubitáveis que mostravam muito claramente que
o homem não poderia se tornar uma coisa.
Foi durante o feliz período de trabalho na fábrica que George conhecera
Elisa e se casara com ela. Durante aquele tempo, sendo o favorito e tendo a
confiança do patrão, ele tinha a liberdade de ir e vir quando quisesse. O
casamento foi aprovado pela Sra. Shelby que, com um pouco de complacência
feminina no jogo do amor, agradou-se por unir sua linda favorita com um de sua
própria classe que lhe parecia, de todas as maneiras, o par perfeito para ela.
Assim, casaram-se na grande sala de estar, e a própria senhora enfeitou o lindo
cabelo da noiva com flores de laranjeira e os cobriu com o véu que certamente
era digno de cabelos mais claros. E não houve falta de luvas brancas, bolo e
vinho, e de convidados admirados celebrando a beleza da noiva, a indulgência e
liberalidade de sua senhora. Durante um ou dois anos Elisa viu o marido
frequentemente e não houve nada que interrompesse a felicidade além da perda
de dois filhos pequenos, aos quais ela era muito apegada, e por quem se enlutou
de tal forma que foi necessária uma reprimenda gentil de sua senhora, que
buscava, com ansiedade maternal, direcionar seus sentimentos naturalmente
passionais para dentro das fronteiras da razão e da religião.
Após o nascimento do pequeno Harry, no entanto, Elisa aos poucos foi
ficando tranquila e acomodada, e com cada fibra de seu ser cada vez mais
interligada àquela pequena vida, parecia trazer–lhe felicidade e saúde. Elisa fora
uma mulher feliz até o dia em que seu marido foi violentamente tirado das mãos
de seu bondoso empregador e posto de volta sob o domínio das mãos de ferro de
seu proprietário legal.
O dono da fábrica, fiel às suas palavras, visitou o Sr. Harris uma ou duas
semanas depois de George ter sido levado embora, quando, assim esperava, o
calor da situação já tivesse passado, e tentou todo tipo de argumento possível no
sentido de persuadi-lo a recolocar George em sua antiga função.
— Não se dê mais ao trabalho de falar nesse assunto — disse o Sr. Harris
esquivando-se. — Sei o que estou fazendo, senhor.
— Não tenho a intenção de me intrometer em seus negócios, senhor. Apenas
acho que deveria pensar que é de seu interesse ceder seu homem a nós dentro
dos termos propostos.
— Ah, mas eu entendo muito bem. Vi o senhor piscando e cochichando no
dia em que o tirei da fábrica; mas não venha me dizer o que fazer. Este é um país
livre, senhor; o homem é meu e eu faço com ele o que bem entender. E tenho
dito!
E assim caiu por terra a última esperança de George: nada diante dele além
de uma vida de sofrimento e trabalho pesado, uma vida mais amarga a cada
pequena aflição lancinante e indignidade que a mente tirânica pudesse inventar.
Um jurista muito humano uma vez disse: “O pior uso que se pode fazer de
um homem é enforcá-lo”. Mas, não; há, sim, maneiras PIORES de se fazer uso de
um homem!
3
ESPOSO E PAI

A Sra. Shelby saíra para uma visita e Elisa estava em pé na varanda, bem
desanimada, olhando para a carruagem que saía, quando sentiu uma mão pousar
em seu ombro. Ela se virou, e um sorriso luminoso iluminou seus belos olhos.
— George, é você? Como me assustou! Veja só, que bom que veio! A
senhora saiu para passar a tarde fora, então venha para o meu quartinho e
teremos todo o tempo do mundo para nós.
Ao dizer isso, ela o puxou para dentro de um gracioso cómodo que dava para
a varanda, onde ela geralmente se sentava para costurar, ao alcance dos
chamados da senhora.
— Estou tão feliz! Por que não sorri? E olhe só para o Harry, como ele
cresceu. — O garoto, em pé, olhava timidamente para o pai através dos cachos
de cabelo, segurando firme nas saias do vestido de sua mãe. — Ele não é lindo?
— perguntou Elisa, levantando os longos cachos e o beijando.
— Oxalá ele nunca tivesse nascido! — disse George com amargura. —
Oxalá eu mesmo nunca tivesse nascido!
Surpresa e assustada, Elisa sentou-se, recostou a cabeça no ombro do esposo
e sucumbiu às lágrimas.
— Não faça assim, Elisa, sinto-me muito mal por deixá-la tão triste! — ele
disse carinhosamente. — É muito ruim. Ah, como eu gostaria que você nunca
tivesse me conhecido; talvez assim pudesse ser feliz!
— George! George! Como pode falar assim? O que de tão terrível aconteceu
ou acontecerá? Tenho certeza de que temos sido muito felizes até agora.
— É verdade, querida — respondeu George. Então, levantando seu filho até
o colo, olhou intensamente dentro daqueles gloriosos olhos escuros e passou a
mão pelos longos cachos.
— Como ele se parece com você, Elisa. E você é a mulher mais linda que eu
já vi, e tudo que sempre desejei conhecer; mas, ah, como eu gostaria que nunca
tivesse lhe conhecido; nem você a mim!
— Ah, George, como ousa!
— Sim, Elisa, é tudo sofrimento, sofrimento, sofrimento. Minha vida é tão
amarga quanto a losna; a própria vida está se esvaindo de mim. Sou um escravo
miserável e desprezado. Tudo o que conseguirei fazer é levá-la ao fundo do poço
comigo. Para que serve tentarmos fazer qualquer coisa, tentarmos conhecer
qualquer coisa, tentarmos ser qualquer coisa? Para que serve a vida? Eu queria
estar morto!
— Ah, meu querido George, isso é realmente assustador! Sei como se sente
por ter perdido seu posto na fábrica, e ter um senhor terrível, mas reze para ser
paciente e talvez algo…
— Paciente! — disse ele interrompendo-a. — E não tenho sido paciente? E
eu lá disse alguma palavra quando ele veio e me tirou, sem nenhum motivo, do
lugar onde todos eram bondosos comigo? Eu com certeza já lhe paguei cada
centavo de meus ganhos, e todos diziam que eu trabalhava bem.
— Bem, isso é mesmo terrível — disse Elisa. — Mas, no final das contas,
ele é o seu senhor, você sabe disso.
— Meu senhor! E quem fez dele o meu senhor? Sou tão homem quanto ele.
Sou um homem melhor do que ele. Sei mais sobre negócios do que ele; sou
melhor administrador do que ele; sei ler melhor do que ele; sei escrever melhor
do que ele, e aprendi tudo sozinho e não graças a ele. Aprendi tudo, apesar dele.
E agora, que direito ele tem de me tratar como um burro de carga? De me tirar
das coisas que eu posso fazer, e fazer melhor do que ele, e me colocar para fazer
um trabalho que qualquer cavalo consegue realizar? Ele tenta fazer isso; diz que
acabará comigo e me humilhará, e me coloca nos trabalhos mais pesados,
terríveis e sujos, de propósito!
— Ah, George! George! Você está me assustando! Nunca o ouvi falar assim;
estou com medo de que faça algo terrível. Não posso questionar seus
sentimentos, longe disso, mas, ah, por favor, tenha cuidado, muito, muito
cuidado, pelo meu bem e pelo de Harry!
— Tenho sido prudente e paciente, mas cada dia fica pior; a carne e o sangue
não aguentarão muito mais. Toda chance que tem de me insultar ou de me
atormentar, ele aproveita. Achei que pudesse fazer bem o meu trabalho, e ficar
quieto, e ter algum tempo para ler e estudar fora do horário de trabalho; mas
quanto mais ele vê que eu consigo fazer, mais carga de trabalho me dá. Ele diz
que, apesar de eu não dizer nada, consegue ver que estou possuído pelo demônio
e que o expurgará de mim. Mas deixe estar que qualquer dia desses o demônio
sairá de uma maneira que não lhe agradará nem um pouco. Ah, se não!
— Ah, querido! O que faremos? — perguntou Elisa pesarosamente.
— Ontem mesmo — disse George —, enquanto estava ocupado enchendo a
carroça de pedras, o sinhozinho Tom estava lá em pé, batendo o chicote tão perto
do cavalo que a criatura ficou assustada. Pedi a ele para parar, o mais
gentilmente que pude, mas ele continuou. Implorei novamente, e então ele se
virou para mim e começou a me chicotear. Segurei a mão dele, e então ele gritou
e chutou e correu até o pai e lhe disse que eu estava brigando com ele. O homem
veio furioso e disse que me ensinaria quem era meu senhor; e então me amarrou
em uma árvore, cortou as chibatas para o garoto e disse a ele que poderia me
açoitar até cansar. E ele realmente o fez! Ah, mas tenha certeza de que um dia o
farei se arrepender de ter feito isso! — e o semblante do rapaz ficou carregado e
aquilo fez a esposa tremer. — Quem fez desse homem o meu senhor? É isso que
quero saber! — ele perguntou.
— Bem, disse Elisa pesarosamente. — Sempre pensei que devesse obedecer
ao meu senhor e minha senhora, ou não seria cristã.
— Isso faz algum sentido no seu caso. Eles a criaram como uma filha, a
alimentaram, vestiram, mimaram e ensinaram, para que pudesse ter uma boa
educação, e essa é uma boa razão para serem seus senhores. Mas eu fui chutado,
algemado, xingado e, na melhor das hipóteses, abandonado. E o que eu lhes
devo? Já paguei pelos meus pecados mais de cem vezes. Não suportarei isso.
Não, não o farei! — ele afirmou, fechando os punhos com uma expressão feroz.
Elisa tremou e ficou em silêncio. Ela nunca vira o marido nesse estado antes;
e seu gentil sistema de ética parecia se curvar feito junco diante desses
rompantes.
— Sabe o pobre do Carlo, que você me deu — acrescentou George —, a
criatura tem sido meu único consolo. Ele dorme comigo à noite e me segue
durante o dia, e meio que cuidava de mim como se compreendesse como eu
estava me sentindo. Bem, outro dia eu o estava alimentado com algumas sobras
que tinha pegado à porta da cozinha, e o senhor veio atrás e me disse que eu o
estava alimentando às custas dele e que ele não iria pagar para que todo preto
mantivesse um cachorro; então me ordenou que amarrasse uma pedra no
pescoço do bicho e o jogasse no riacho.
— Ah, George, você não fez isso!
— Se fiz? Eu não, mas ele sim! O senhor Harris e Tom alvejaram a pobre
criatura com pedras enquanto ele se afogava. Pobrezinho! Ele olhava para mim
com tanta tristeza, como se perguntasse por que eu não o salvava. E ainda fui
açoitado por ser desobediente. Mas não me importo. Um dia o senhor entenderá
que não sou do tipo amansado na chibata. E se não tomarem cuidado, um dia
ainda me vingarei deles.
— O que irá fazer? Ah, George, por favor, não faça nada ruim! Se apenas
confiar em Deus e tentar fazer o bem, ele o salvará.
— Não sou um cristão como você, Elisa. Meu coração está cheio de ódio.
Não posso confiar em Deus. Por que ele deixa que as coisas sejam assim?
— Ah, George, devemos ter fé. A senhora diz que quando todas as coisas
dão errado para nós, devemos acreditar que Deus está fazendo o melhor.
— Isso é muito fácil de dizer para pessoas que estão sentadas em seus sofás
ou viajando em suas carruagens, mas, se estivessem na minha situação, acho que
ficaria um pouco mais difícil. Gostaria de poder ser bom, mas meu coração
queima e não pode ser acalmado de forma alguma. Você não conseguiria, se
estivesse em meu lugar… e não vai conseguir, se eu lhe disser tudo o que tenho a
dizer. Você não sabe da missa a metade.
— E o que pode vir agora?
— Bem, ultimamente o sinhô Harris tem dito que foi um tolo ao me deixar
casar fora da propriedade; que ele odeia o Sr. Shelby e toda sua corja por serem
orgulhosos e soberbos, e que meu orgulho vem de você, e diz que não me
deixará mais vir aqui e que deverei desposar e me acomodar na propriedade dele.
No início, ele só ameaçava e resmungava sobre essas coisas, mas ontem ele me
disse que eu deveria tomar Mina por minha esposa, e ir morar em uma cabana
com ela, do contrário me venderia a algum mercador, mais para baixo do rio.
— Mas você é casado comigo, por um pastor, como se fosse um homem
branco! — disse Elisa objetivamente.
— Você não sabe que um escravo não pode se casar? Não há lei neste país
para isso. Não posso tê-la como minha esposa se ele escolher nos separar. E é
por isso que gostaria de nunca tê-la conhecido, é só por isso que gostaria de
nunca ter nascido. Seria melhor para nós dois. Seria melhor para essa pobre
criança se ela nunca tivesse nascido. Tudo isso pode acontecer com ele também!
— Ah, mas meu senhor é tão bom!
— Sim, mas quem sabe? Ele pode morrer e então Harry poderá ser vendido
para sei lá quem. De que vale ele ser belo, inteligente e esperto? Escute o que lhe
digo, Elisa, essa é uma espada que lhe atravessará o peito por tudo de bom e
gentil que seu filho é ou tem; essas coisas o farão valioso demais para que
consiga mantê-lo!
As palavras caíram pesadas no coração de Elisa. A visão do mercador de
escravos apareceu diante dela e, como se alguém tivesse lhe atingido com um
golpe mortal, ela ficou pálida e perdeu o fôlego. Olhou nervosamente para fora
da varanda, para onde o garoto, cansado da conversa maçante, tinha se retirado,
e onde cavalgava, triunfante, a bengala do Sr. Shelby. Ela quis contar seus medos
ao marido, mas se conteve. “Não, não, ele já está sofrendo demais, o pobre
coitado!”, pensou ela. “Não, não lhe direi nada. Além do mais, isso não é
verdade; a sinhá nunca nos traiu.”
— Então agora, Elisa, minha querida — disse o esposo com tristeza —,
aguente firme. Adeus, pois estou de partida.
— De partida, George! Para onde?
— Para o Canadá — ele anunciou, ficando em pé. — E quando estiver lá, eu
a comprarei; é a única esperança que nos resta. Você tem um senhor bondoso,
que não se recusará a vendê-la. Comprarei você e o garoto, com a ajuda de Deus,
eu vou!
— Ai, que desespero! E se for pego?
— Não serei pego, Elisa. Morrerei antes! Ou fico livre ou morro!
— Não irá se matar!
— Não será necessário. Eles me matarão; nunca me deixarão chegar vivo até
o rio!
— Ah, George, pelo amor que tem por mim, tenha cuidado! Não faça nada
de ruim; não se machuque, nem a ninguém mais! Está muito tentado, tentado
demais, mas não faça nada. Deve ir, mas vá com cuidado, com prudência. Reze
para que Deus o ajude.
— Bem, Elisa, então ouça meu plano. O Sr. Harris achou por bem que eu
passasse por aqui, com um recado para o Sr. Symmes, que mora uns dois
quilômetros mais adiante. Acredito que ele esperava que eu viesse aqui lhe
contar minhas mazelas. Isso lhe agradaria, já que pensa que isso aborreceria os
“senhores Shelbys”, como ele os chama. Voltarei para casa resignado, como se
tudo tivesse acabado. Já tenho tudo preparado e algumas pessoas me ajudarão; e
daqui a uma ou duas semanas entrarei na contagem dos desaparecidos. Reze por
mim, Elisa, talvez o bom Deus te escutará.
— Ah, reze você mesmo, George, e confie n’Ele, assim não fará nada de
mal.
— Bem, adeus — disse George, segurando as mãos de Elisa e fitando-a
profundamente nos olhos, sem se mexer. Ficaram em silêncio, e em seguida
vieram as últimas palavras, os soluços e o choro sentido, uma despedida como a
daqueles cuja esperança de reencontro é tão intrincada como uma teia de aranha.
E marido e mulher se separaram.
4
UMA NOITE NA CABANA DO PAI
TOMÁS

A cabana do Pai Tomás era uma pequena construção de madeira, contígua à


“casa-grande”, como o preto por excelência chama a residência de seu senhor.
Em frente a ela havia um pequeno jardim bem cuidado onde, a cada verão,
morangos, framboesas e uma variedade de frutas e legumes floresciam sob seu
trato cuidadoso. Toda a fachada era coberta por grandes begônias vermelhas e
vários tipos de rosas nativas, as quais, enroscadas e entrelaçadas, mal permitiam
que se visse os pedaços toscos de madeira. Aqui também, no verão, várias flores
que florescem o ano todo, como calêndulas, petúnias e maravilhas, encontram
um lugar onde podem desabrochar seu esplendor, e eram motivos de prazer e
orgulho no coração da Mãe Cloé.
Entremos na cabana. O jantar na casa-grande já terminou, e Mãe Cloé, que
comandou a preparação como cozinheira principal, deixara para os trabalhadores
de menor calão na cozinha a função de limpar e lavar as louças, e se recolheu
para seu próprio território aconchegante, para “servir a janta pro seu homem, pro
seu velho”; assim, não tenha dúvidas de que é ela que vê ao lado do fogo,
tomando conta de alguns itens borbulhantes na frigideira e, vez ou outra,
concentrada levantando a tampa de uma panela, cuja fumaça exalava
indubitavelmente “algo bom”. O rosto dela, redondo, negro, brilhante, era tão
reluzente que dava a impressão de ter sido besuntado por claras de ovo, assim
como suas rosquinhas para o chá. Toda sua aparência robusta brilha de satisfação
e contentamento sob seu turbante xadrez bem engomado, mostrando, no entanto,
se é que podemos dizer assim, um pouco daquela prepotência que ocorre à
melhor cozinheira da região, como Mãe Cloé era universalmente conhecida e
reconhecida.
Ela certamente era uma cozinheira, até o fundo da alma. Nenhum bicho —
galinha, peru ou pato — no quintal ficava feliz quando ela se aproximava, e
todos pareciam, ao final, refletir sobre a proximidade de seu fim. E com certeza
era porque ela estava sempre pensando em como amarrá-los, recheá-los e assá-
los. Seu bolo de milho, e todos os tipos de pãezinhos, biscoitos e bolinhos assim
como outras variedades numerosas demais para serem mencionadas, era um
mistério sublime para outros cozinheiros com menos prática. Ela chacoalhava
suas ancas gordas com orgulho e satisfação sinceros, ao gargalhar dos esforços
improdutivos que um ou outro de seus colegas desempenhara para chegar ao seu
nível.
A chegada de visitantes à casa, a organização de jantares e ceias “de alto
estilo” traziam à tona toda a energia de sua alma; e não havia visão mais bem-
vinda do que uma pilha de baús colocados na varanda, pois isso significava
novos esforços e novos triunfos.
Neste momento, no entanto, Mãe Cloé está olhando para o interior da
assadeira, um processo agradável no qual a deixaremos até terminarmos nossa
descrição da cabana.
Em um canto ficava uma cama, coberta impecavelmente por uma colcha
branca, e, ao lado dela, havia um tapete de tamanho considerável. Sobre esse
pedaço de tapete, Mãe Cloé tinha uma mesinha — como seguramente as pessoas
de alta classe possuíam; o móvel e a cama ao lado da qual se situava, e todo
aquele canto, na verdade, era tratado com especial devoção, considerado
sagrado, e mantido, tanto quanto possível, proibido para idas e vindas e bagunça
dos pequenos. De fato, aquele canto era a sala de estar do aposento. No outro
canto, havia outra cama mais modesta, evidentemente mais usada no cotidiano.
A parede em cima da lareira era adornada com algumas gravuras bem brilhantes,
e uma foto do general Washington, desenhada e colorida de um modo que
certamente deixaria o herói espantado, se ele algum dia chegasse a vê-la.
Sobre um banco grosseiro no canto, dois garotos de cabelos encarapinhados,
com olhos pretos vivos e bochechas gorduchas brilhantes, estavam ocupados
supervisionando os primeiros passos do bebê, que, como costuma ser o caso,
consistia em ficar de pé, equilibrar-se por um momento e depois cair. Cada
queda sucessiva era comemorada com abrupto entusiasmo, como se fosse algo
definitivamente inteligente.
Uma mesa de pernas um tanto reumáticas foi arrastada para diante da lareira
e coberta com uma toalha, exibindo xícaras e pires com estampas decididamente
brilhantes, com outros aspectos de uma refeição iminente. A essa mesa sentava-
se o Pai Tomás, o braço direito do Sr. Shelby, e o qual, sendo herói de nossa
história, devemos retratar aos nossos leitores.
Ele era um homem grande, de peito largo, figura imponente, de pele negra
bem escura e brilhante e um rosto cujos traços tipicamente africanos eram
caracterizados por uma expressão de profundo e constante bom senso, unidos a
uma grande bondade e benevolência. Havia algo especial nesse ar de respeito e
dignidade a si próprio, mas que, ao mesmo tempo, guardava uma simplicidade
confiante e humilde.
Neste momento, Pai Tomás estava extremamente ocupado atentando-se para
uma lousa em frente de si, na qual acompanhava cuidadosa e vagarosamente
algumas letras, diante da supervisão do sinhozinho George, um esperto, brilhante
garoto de treze anos que parecia perceber completamente a dignidade de sua
posição de professor.
— Desse jeito não, Pai Tomás, assim não — ele disse rispidamente quando
Pai Tomás, com muito esforço, traçou o rabo do “g” para o lado errado. — Isso é
um “q”, veja.
— Santo Deus, agora eu entendi! — disse o Pai Tomás, olhando com um ar
de respeito e admiração enquanto seu jovem professor rabiscava inúmeros “q’s”
e “g’s” prosperamente, para que ele exercitasse; então, pegando o lápis com seus
dedos grandes e pesados, ele recomeçou pacientemente.
— Mas com que facilidade os branco faz essas coisa! — disse a Mãe Cloé,
parando enquanto untava uma frigideira com um pedaço de toucinho no garfo,
olhando para o sinhozinho George com orgulho. — Ah, como ele escreve! E
como ele lê, também! E vem aqui todas as noite pra ler suas lição pra gente, é
bonito por demais!
— Mas, Mãe Cloé, estou ficando com muita fome! — disse George. —
Aquele pãozinho na frigideira não está quase pronto?
— Tá quase, sinhozinho George — respondeu Mãe Cloé, levantando a
tampa e espiando. — Tá dourando bem, um dourado lindo. Ah! Deixa eu fazer
isso sozinha! A sinhá deixou Sally tentar fazer um bolo dia desses, só pra
aprender, ela contou. “Ah, sai daqui, sinhá”, eu disse. “Me parte o coração ver
coisa gostosa ser jogada fora desse jeito! O bolo ficou de um lado só, sem forma
nenhuma; mais duro do que a sola do meu sapato; vá embora!”
E com aquela expressão definitiva de desprezo pela falta de experiência de
Sally, Mãe Cloé, com uma batida, virou a assadeira deixando à mostra um bolo
de libra impecavelmente assado, do qual nenhum confeiteiro da cidade se
envergonharia. Esse sendo evidentemente o ápice do espetáculo, agora Mãe Cloé
começou a apressar-se seriamente com as questões do jantar.
— Ei, você dois, Mose e Pete! Sai do caminho, seus negrinho! Sai daí, Polly,
querida, a mamãe vai dá alguma coisa pro bebê daqui a pouco. Agora,
sinhozinho George, só pegue seus livro e senta aqui com meu velho, que eu vou
pegar as salsicha e rapidinho coloco a assadeira cheia de pãozinho nos seus
prato.
— Eles queriam que eu fosse jantar na casa-grande — disse George. — Mas
eu sabia o que me aguardava, Mãe Cloé!
— É claro que sabia, sabia mesmo, querido — disse Mãe Cloé, colocando os
pedaços de bolo quente no prato dele. — Sabia que sua velha mãe ia ter o
melhor pra você. Ah, não vou mais amolar você! Vá em frente!
E com isso, Mãe Cloé deu uma cutucada em George, com a intenção de ser
uma grande brincadeira, e voltou-se bruscamente para seu fogão.
— E agora, ataquemos o bolo! — disse o sinhozinho George, quando as
questões relacionadas ao forno pareceram estar finalizadas; e com isso, o jovem
colocou uma faca enorme sobre o artigo em questão.
— Deus proteja, sinhozinho George! — disse a Mãe Cloé, agarrando o braço
dele com força. — Não vai cortar com essa faca pesada! Vai esmagar e estragar
tudo! Aqui, tenho uma faca velha fininha que deixo sempre afiada de propósito.
Veja! Corta tão leve quanto uma pena. Agora coma, não vai comer nada melhor
que isso.
— Tom Lincon diz — George falou com a boca cheia — que a Jinny deles é
melhor cozinheira que você.
— Aqueles Lincon, coitados, não sabem de nada — retrucou Mãe Cloé com
desdém. — Quero dizer, se comparado com os nosso senhorio. Eles é boa gente,
mas, quando o negócio é estilo, eles não chegam nem aos pé. Colocar a Sra.
Lincon junto com a Sra. Shelby? Meu bom Deus! E a Sra. Lincon acha que pode
causar tanta impressão quando entra numa sala quanto a minha sinhá, sempre tão
formosa demais, sabe como é. Ah, para com isso! Nem me fala desses Lincon —
e Mãe Cloé jogou a cabeça para trás como alguém que sabia alguma coisa do
mundo.
— Bem, eu já a ouvi dizer — continuou George — que Jinny era uma boa
cozinheira.
— E disse mesmo — confirmou Mãe Cloé. — Posso até dizer isso também.
Jinny sabe fazer os prato simples e o comum variado. Faz um bom pão, amarga
demais as batata; o bolo de milho dela não é lá aquelas coisa; mas, Deus do céu,
quando falamos de coisas mais difícil, o que ela consegue fazer? Ela faz torta,
alguns tipo, isso lá ela faz, mas com que tipo de massa? Será que ela consegue
fazer uma massa bem macia, dessas que derrete na boca e parece levinha como
um sopro? Uma vez fui lá quando a sinhazinha Mary ia se ajeitando pra casar, e
a Jinny, ela quis me mostrar os doce do casório. Jinny e eu somos boas amiga,
sabe. E eu nunca falei nada; mas, vou confessar pra você, sinhozinho George! Eu
não ia conseguir pregar os olho por uma semana se tivesse feito uma fornada de
doce feito aqueles.
— Mas suponho que Jinny os tenha achado maravilhosos! — George disse.
— É claro que sim, né? Lá estava ela, mostrando tudo pra eles, toda
inocente. Veja bem, o caso é que Jinny não sabe. Meu bom Deus, a família não é
nada! Como ela vai saber? Isso não é culpa dela. Ah, sinhozinho George, não faz
ideia das vantagem de sua família e educação! — Aqui Mãe Cloé suspirou
profundamente, e rolou os olhos com emoção.
— Tenho certeza, Mãe Cloé, que compreendo todos os meus privilégios de
pudins e tortas — George disse. — Pergunte ao Tom Lincon se eu não zombo
dele toda vez que o encontro.
Mãe Cloé recostou-se na cadeira, e caiu na gargalhada diante do gracejo do
sinhozinho, rindo até as lágrimas escorrerem por seu rosto negro e brilhante, e
variando o exercício dando tapinhas e cutucando o sinhozinho George, pedindo-
lhe que parasse e dizendo-lhe o quanto era engraçado, e que, um dia desses, iria
matá-la de tanto rir; e entre uma premonição e outra permeada por mais risadas,
cada uma mais longa e mais estrondosa do que a outra, George começou a
pensar com seriedade que ele era um rapazinho perigosamente jocoso, e se não
seria melhor ter mais cautela em seu modo espirituoso de se expressar.
— Quer dizer que disse isso tudo pro Tom? Ah, Deus! Que criançada
danada! Fez pirraça com o Tom? Ah, meu Pai! Sinhozinho George, o sinhô
podia fazer um morto rir.
— Sim — disse George. — Eu digo a ele: “Tom, você precisa ver as tortas
da Mãe Cloé; aquilo sim é que são tortas”.
— Pobrezinho, aquele Tom — comentou a Mãe Cloé, em cujo coração
benevolente a ideia da condição inferior de Tom parecia causar uma forte
impressão. — Precisa convidar ele pra jantar um dia desses, sinhozinho George
— ela acrescentou. — Seria muito bonito de sua parte. Veja bem, sinhozinho
George, você não deve se sentir superior a ninguém, ou se aproveitar de seus
privilégio, porque os privilégio são dado pra gente; temos sempre que lembrar
disso.
— Bem, quero convidar Tom para vir aqui algum dia da semana que vem —
disse George. — E a senhora faça do bom e do melhor, Mãe Cloé, e vamos
deixá-lo de queixo caído. Vamos fazê-lo comer tanto que ele não comerá por
duas semanas!
— Sim, sim, com certeza — respondeu Mãe Cloé, encantada. Vai ver só,
sinhozinho! E pensar nos jantares que já fizemos! Se lembra daquela torta de
frango enorme que preparei quando fizemos o jantar pro General Knox? Eu mais
a sinhá quase chegamos a brigar por causa daquela massa folhada. Algumas vez
eu não sei o que se passa com as mulher; mas, quando alguém tem a maior carga
de responsabilidade, como vocês mesmo diz, e é tudo muito “sério” e
atabalhoado, elas resolve ficar pra lá e pra cá importunando. A sinhá ora queria
que eu fizesse de um jeito, ora de outro, e finalmente, eu perdi a paciência e
falei: “Sinhá, olha só pra suas linda mão branca, com dedos comprido, tudo
enfeitado de anel, como meus lírio branco coberto de orvalho; e olha só pra
minha mão preta grande e grosseira. Não acha que Deus me criou pra fazer as
torta folhada e a senhora pra enfeitar a sala de estar?” Que inferno! Perdi a
paciência, sinhozinho George.
— E o que a mamãe disse? — perguntou George.
— Disse? Bem, ela sorriu com os olho, aqueles olho lindo dela e disse “É
verdade, Mãe Cloé, acho que tem razão”, ela disse. E então saiu e foi até a sala.
Ela poderia ter me rachado a cabeça por ter sido tão insolente, mas é assim que
as coisa é; não consigo fazer nada com as sinhá na cozinha.
— Bem, você se saiu muito bem naquele jantar. Lembro que todos elogiaram
— George contou.
— Não foi? E acha que não fiquei atrás da porta da sala de jantar naquele
dia? E acha que não vi o General repetir três vezes aquela torta de frutas
vermelha? E ele falou: “Deve ter uma cozinheira extraordinária, Sra. Shelby”.
Meu Deus! Quase rachei no meio de alegria!
— E o General entende de cozinha! — continuou a Mãe Cloé, levantando-se
de repente. — Homem muito gentil, o General. Ele vem de uma das melhor
família da velha Virgínia! Veja, sinhozinho George, tem um ponto especial em
todas as torta, mas não é todo mundo que sabe qual é ou como deve ser. Mas o
general sabe. Eu percebi pelos comentário que ele fez. Sim, ele sabe qual é o
ponto certo.
A esta altura, o sinhozinho George já tinha se empanturrado a tal ponto que
não conseguia comer nem mais um bocado, e, assim, divertiu-se ao notar a pilha
de cabeças encarapinhadas e olhos brilhantes que, famintos, observavam as
atividades do outro lado da sala.
— Ei, Mose, Pete. — ele disse cortando pedacinhos e jogando para eles. —
Querem um pouco, não querem? Vamos lá, Mãe Cloé, faça uma panqueca para
eles.
Então George e Tomás foram sentar-se confortavelmente no canto da
chaminé, enquanto Mãe Cloé, depois de assar uma razoável pilha de panquecas,
colocou a bebê no colo e começou, alternadamente, a encher sua boca e a da
criança, e a dividir com Mose e Pete, que pareciam preferir mais comer o seu
próprio enquanto rolavam no chão embaixo da mesa, fazendo cócegas um no
outro e, de vez em quando, puxando os dedos do bebê.
— Ei! Vocês quer ficar quieto? — disse a mãe, dando pontapés embaixo da
mesa, a esmo, quando a bagunça tornou-se estrepitosa demais. — Dá para se
comportar quando tem branco visitando nós? Para com isso, agora. É melhor se
comportar ou vou esquentar o traseiro dos dois depois que o sinhozinho for
embora!
Que tipo de significado se escondia sob aquela ameaça terrível, era difícil
saber; mas certamente seu sentido vago pareceu não impressionar nem um pouco
os traquinas a quem ela se destinava.
— Olha só pra eles! — disse o Pai Tomás. — Estão fazendo tanta cócega
que não conseguem se comportar.
Neste momento os garotos saíram de baixo da mesa, e, com as mãos e os
rostos cobertos de melaço, começaram a beijar vigorosamente o bebê.
— Saiam daqui! — ordenou a mãe, afastando as cabeças encarapinhadas. —
Vocês vão ficar grudento e nunca vão se limpar se continuar com isso. Vão até o
riacho e se lavem! — ela disse, seguindo suas exclamações com uma palmada
que ressoou formidavelmente, mas que pareceu apenas instigar mais risadas dos
pequenos travessos, enquanto os dois tropeçavam apressados um sobre o outro
para fora da porta, de onde gritavam com alegria.
— Algum dia já viu garotos tão encapetado? — perguntou Mãe Cloé, cheia
de confiança enquanto pegava uma velha toalha guardada para emergências
desse tipo e derramava um pouco de água da chaleira rachada para limpar o
melaço do rosto e das mãos do bebê; e, tendo-a limpado até ficar brilhando,
colocou-a no colo de Tomás, enquanto se ocupava em limpar os restos do jantar.
O bebê começou a puxar o nariz de Tomás, arranhar seu rosto e enfiar as
mãozinhas gorduchas em seu cabelo encarapinhado, e isso parecia lhe dar um
prazer especial.
— Ela não é uma garotinha perfeita? — disse Tomás, erguendo-a para
admirá-la por inteiro; então, ficando em pé, colocou-a sobre seu ombro largo e
começou a pular e a dançar com ela enquanto o sinhozinho George lhe cutucava
com golpes suaves de seu lenço de bolso, e Mose e Pete, agora de volta, rugiam
atrás dela como se fossem ursos até que a Mãe Cloé declarou que eles “quase
tinham lhe arrancado a cabeça” com o barulho que faziam. Mas, de acordo com
o próprio, uma vez que esse tipo de operação ocorria diariamente na cabana, a
declaração não abateu a alegria até que todos tivessem rugido e dado
cambalhotas e dançado chegando a um estado de exaustão.
— Bem, espero que agora vocês fique quieto! — disse Mãe Cloé, que
estivera ocupada puxando uma tosca cama de rodinhas. — E agora, você Mose e
você Pete, deita aí porque nós vai ter a reunião.
— Ah, mãe, nós não quer. Nós quer ficar pra reunião, a reunião é tão legal.
Nós gosta.
— Ah, Mãe Cloé, guarde tudo e deixe-os ficar — disse o sinhozinho George,
dando um empurrão violento no equipamento grosseiro.
Mãe Cloé, apesar das aparências, parecia totalmente satisfeita ao esconder a
cama, empurrando-a para baixo e dizendo como sempre dizia:
— Talvez a reunião faça algum bem pra eles.
A casa então se transformou em um comitê a cuidar das acomodações e dos
arranjos para a reunião.
— O que vamos usar como cadeira, isso eu não sei. — disse Mãe Cloé. Uma
vez que a reunião vinha sendo sido feita na casa do Pai Tomás semanalmente,
por um tempo longo e indefinido, sem nenhuma cadeira a mais, parecia haver
esperança de que tudo se arranjaria a seu tempo.
— O velho tio Peter quebrou as duas pernas daquela velha cadeira enquanto
cantava na semana passada — sugeriu Mose.
— Não diga isso! Aposto que foi você que arrancou elas; uma de suas
estrepolia — afirmou Mãe Cloé.
— Bem, ela fica de pé, se ficar encostada na parede — disse Mose.
— Mas então o tio Peter não pode se sentar nela, porque ele sempre balança
quando começa a cantar. Ele se chacoalhou muito pela sala toda na outra noite
— Pete continuou.
— Pelo amor de Deus! Então faz ele sentar aí — disse Mose, e então ele
começou — “Venham todos os santos e pecadores, ouçam” —, e então Mose se
jogou no chão imitando precisamente os tons nasais do velho, revirando-se no
chão para ilustrar a suposta catástrofe.
— Vamos lá, seja decente — ralhou Mãe Cloé. — Não tem vergonha, não?
O sinhozinho George, no entanto, se juntou à risada do ofensor e declarou
que Mose era definitivamente um galhofeiro, fazendo com que a admoestação
maternal não surtisse nenhum efeito.
— Bem, meu velho — disse Mãe Cloé —, terá que carregar os tonel.
— Os tonel da mãe é como esse ou até mais largo que os que o sinhozinho
George leu no bom livro; eles nunca falha — disse Mose, ao lado de Pete.
— Tenho certeza de que um deles desmoronou na semana passada —
informou Pete —, e deixe que todos desmorone no meio da cantoria! Ia ser
engraçado, não ia?
Durante esse aparte entre Mose e Pete, dois tonéis vazios foram rolados para
dentro da cabana, e depois de serem presos com pedras nas laterais, para que não
rolassem, pranchas de madeira foram colocadas sobre eles, cuja arrumação,
juntamente com algumas bacias e baldes de cabeça para baixo, e a colocação de
cadeiras bambas, finalmente completavam os preparativos.
— Sinhozinho George lê que é uma beleza. Sei que ficará pra ler pra nós —
disse Mãe Cloé. — Vai ser muito mais interessante.
George consentiu prontamente, pois um garoto está sempre pronto para
qualquer coisa que o torne importante.
Logo a sala estava cheia com um grupo variado, desde um velho patriarca de
cabeça branca de oitenta anos, até uma garota e um jovem de quinze. Um pouco
de fofoca inofensiva pairava sobre vários assuntos, tal como onde a velha tia
Sally conseguira um novo turbante vermelho, e como a “sinhá iria dar a Lizzy
aquela camisola de musselina usada quando mandasse fazer uma nova
combinação”; e como o senhor Shelby estava pensando em comprar um novo
alazão castanho, que se provaria uma adição às glorias do lugar. Alguns dos fiéis
pertenciam às fazendas vizinhas e tinham permissão para vir, e traziam vários
apanhados de informação sobre os ditos e feitos da casa e do lugar, os quais
circulavam livremente assim como se faz com o dinheiro trocado nas classes
mais altas.
Após um tempo os cânticos começaram, para o nítido prazer de todos os
presentes. Nem mesmo as desvantagens da entonação nasal poderiam evitar o
efeito das vozes naturalmente agradáveis, em ares antes desordenados e
animados. As palavras às vezes eram os hinos bem conhecidos e comuns
cantados nas igrejas das redondezas; e às vezes com um caráter mais forte, mais
indefinido, aprendido nos cultos ao ar livre.
O estribilho de um deles, que seguia assim, era cantado com grande energia
e unção:

Morra no campo de batalha


Morra no campo de batalha
Glória em minha alma.

Outro favorito sempre repetia as palavras:

Ah, irei para a glória, não virás comigo?


Não vês os anjos me acompanhando e me chamando?
Não vês a cidade dourada e o dia eterno?

Havia outros hinos que faziam menção incessante às margens do “rio


Jordão”, e aos “campos de Cannaã” e à “Nova Jerusalém”, pois a mentalidade do
negro, passional e imaginativa, sempre se fia a hinos e expressões de natureza
vívida e pictória; e, ao cantarem, alguns riam, outros choravam, e alguns batiam
palmas, ou se cumprimentavam se regozijando uns nos outros, como se tivessem
atravessado para o outro lado do rio.
Seguiram-se várias exortações ou relatos de experiência, misturados à
cantoria. Uma velha de cabelos grisalhos, há muito sem trabalhar, mas
reverenciada como uma crônica do passado, levantou-se, e apoiando-se em seu
cajado, disse:
— Meus filho! Estou muito feliz por ouvir e ver vocês outra vez, pois não
sei quando vou ser chamada pra glória de Deus. Estou pronta, meus filho; já
arrumei minha trouxa e coloquei meu chapéu, como um viajante esperando ser
levado pra casa. Às vezes, à noite, imagino ouvir o barulho das roda e fico
esperando o tempo todo. Fiquem prontos também, meus filho, pois eu digo pra
vocês — ela falou batendo o cajado com força no chão — que a glória é uma
coisa poderosa! É tremenda, meus filho. Não se pode fazer nada; ela é
maravilhosa. — E a velha criatura sentou-se, com lágrimas escorrendo,
totalmente arrebatada, enquanto o grupo cantava:

Ó Canaã, linda Canaã


Estou indo para a terra de Canaã.

O sinhozinho George, a pedidos, leu os últimos capítulos do Livro das


Revelações, frequentemente interrompido por exclamações do tipo “O fim é
agora!”, “Escutem isso!”, “Imaginem só!”, “Será que tudo isso acontecerá?”
George, que era um garoto inteligente e bem treinado por sua mãe nos
assuntos religiosos, percebendo-se como um objeto de admiração generalizada,
vez ou outra fazia observações próprias com uma seriedade e gravidade tão
impressionantes que era admirado pelos jovens e abençoado pelos velhos. E
todos chegaram à conclusão de que “um pastor não poderia ter feito um trabalho
melhor que o dele”. Aquilo era “incrível mesmo!”.
O Pai Tomás era uma espécie de patriarca em questões religiosas na
vizinhança. Tendo, naturalmente, uma organização na qual a moral era
fortemente predominante e uma mente mais aberta e cultivada do que tinham
seus companheiros, ele era visto com grande respeito, como se fosse um pastor
entre eles, e o estilo caloroso e sincero de suas colocações poderia ter edificado
até mesmo pessoas mais cultas. Mas, era nas orações que ele se fazia notável.
Nada superava a simplicidade tocante, a sinceridade infantil de suas preces
enriquecidas pela linguagem das Escrituras, que parecia ter sido inteiramente
absorvida dentro de seu ser, como se tivesse se tornado parte dele, e que escorria
por seus lábios inconscientemente; na linguagem de um velho Negro devoto, ele
“rezava falando com Deus”. E as preces dele sempre despertavam um
sentimento de devoção tão grande em sua audiência, que parecia sempre
perigoso se perder dentro da abundância de reações que se manifestavam ao seu
redor.

Enquanto essa cena se passava na cabana do homem, outra oposta acontecia


na casa do senhorio.
O mercador de escravos e o Sr. Shelby estavam sentados juntos à mesa
coberta com papéis e utensílios de escrita, na sala de visitas mencionada
anteriormente.
O Sr. Shelby estava ocupado contando alguns maços de notas, as quais, ao
serem contadas, eram passadas para o mercador, que as contava novamente.
— Tudo certo — disse o mercador de escravos. — E agora é só assinar bem
aqui.
O Sr. Shelby puxou apressadamente os documentos de venda em sua direção
e os assinou, como um homem que se apressa para resolver uma questão
desagradável, e então os empurrou juntamente com o dinheiro. De uma valise
surrada, Haley tirou um pergaminho que, depois de fitar por um momento,
entregou ao Sr. Shelby, que o pegou com um gesto de impetuosidade reprimida.
— Então é isso, a coisa tá feita! — disse o mercador, levantando-se.
— Feito! — falou o Sr. Shelby em um tom pensativo, e, respirando bem
fundo, repetiu — Feito!
— O senhor não parece estar muito feliz com isso — notou o mercador.
— Haley — disse o Sr. Shelby —, espero que lembre que prometeu, com sua
própria honra, que não venderia Tomás sem saber para que tipo de mãos ele irá.
— Mas acabou de fazer isso, senhor! — retrucou o mercador.
— As circunstâncias me obrigaram a fazê-lo, você sabe muito bem disso —
disse Sr. Shelby com arrogância.
— Bem, as circunstâncias podem me forçar a isso também — falou o
mercador. — De qualquer forma, farei o melhor possível pra encontrar um bom
senhorio pro Tomás; e quanto a tratar ele mal, não precisa ter um pingo de medo.
Se tem uma coisa que agradeço a Deus é por nunca ter sido cruel.
Depois da explanação sobre os princípios de humanidade que o mercador de
escravos tinha feito antes, o Sr. Shelby não se sentiu particularmente
tranquilizado por aquela declaração. No entanto, como não havia mais nada a
fazer a não ser se conformar, ele deixou que o mercador de escravos fosse
embora em silêncio e buscou conforto num charuto solitário.
5
O SENTIMENTO DA MERCADORIA
VIVA AO TROCAR DE DONO

O senhor e a senhora Shelby tinham se recolhido aos seus aposentos pela


noite. Ele descansava em uma grande espreguiçadeira, verificando algumas
cartas que haviam chegado pelo correio vespertino, e ela estava em pé diante do
espelho, penteando as complicadas tranças e cachos com os quais Elisa tinha lhe
arrumado o cabelo, pois, notando seu rosto pálido e os olhos cansados, tinha
dispensado os serviços dela naquela noite, e a mandara ir para a cama. O
trabalho, naturalmente a fez se lembrar da conversa dessa manhã com a escrava
e, virando-se para o marido, ela disse despretensiosamente:
— A propósito, Arthur, quem era aquele sujeito mal educado que trouxe para
jantar esta noite?
— O nome dele é Haley — respondeu Shelby, remexendo-se com incômodo
na cadeira, sem tirar os olhos fixos da carta.
— Haley? Quem é ele, e que tipo de negócios o trouxe aqui, pelo amor de
Deus?
— Bem, é um homem com quem fiz algumas transações da última vez que
estive em Natchez — disse o Sr. Shelby.
— E imagino que tenha se fiado nisso para se sentir tão à vontade, e aparecer
e ficar para o jantar, não?
— Bem, eu o convidei. Tinha que acertar algumas contas com ele — Shelby
explicou.
— Ele é um mercador de escravos? — perguntou a Sra. Shelby, percebendo
certo embaraço nos modos do esposo.
— Minha querida, o que a faz pensar assim? — perguntou Shelby
levantando os olhos.
— Nada. É só que Elisa veio aqui depois do jantar, muito preocupada,
chorosa e nervosa, e disse que você estava conversando com um mercador, e que
o ouvira fazendo uma oferta pelo garotinho dela, aquele fedelho tolinho.
— Ela disse isso? — indagou o Sr. Shelby, voltando a atenção aos seus
papéis, nos quais pareceu muito interessado durante alguns minutos, sem
perceber que os segurava de cabeça para baixo. “Terei que contar”, ele disse
mentalmente. “Melhor que seja agora”.
— Eu disse a Elisa — continuou a Sra. Shelby ainda penteando o cabelo —
que era bobagem se preocupar tanto, e que você nunca se envolveria com esse
tipo de gente. E claro que eu sabia que você nunca venderia qualquer um de
nossa gente, muito menos para um sujeito como aquele.
— Bem, Emily — continuou o esposo —, sabe bem o que sempre senti e
falei com relação a isso, mas o fato é que meus negócios estão de uma forma que
não posso me dar a esse luxo. Terei que vender alguns dos nossos.
— Para aquela criatura? Impossível, Sr. Shelby! Não pode estar falando
sério.
— Sinto dizer que estou — respondeu o Sr. Shelby. — Concordei em vender
Tomás.
— O quê! Nosso Tomás? Aquela criatura bondosa e fiel? Que sempre foi um
servo fiel desde criança? Ah, Sr. Shelby! E já tinha lhe prometido a liberdade!
Você e eu já tínhamos conversado centenas de vezes com ele sobre isso. Vejo
que agora posso acreditar em qualquer coisa! Posso até mesmo acreditar que
seria capaz de vender o pequeno Harry, o pobre filho de Elisa! — falou a Sra.
Shelby num misto de tristeza e indignação.
— Bem, já que tem de saber de qualquer forma, é isso mesmo. Concordei
em vender tanto Tomás quanto Harry e não sei por que estou sendo julgado
como se fosse um monstro, por fazer o que todos fazem todos os dias.
— Mas, de todos, por que esses dois? — perguntou a Sra. Shelby. — Por
que vendê-los, de todos os que estão aqui, se é que precisa realmente vender
algum?
— Porque os dois me trarão uma quantia maior do que qualquer outro, por
isso. Poderia ter escolhido outro, se você concordasse. O sujeito me ofereceu
muito dinheiro por Elisa, se é que isso lhe agradaria mais — explicou o Sr.
Shelby.
— Desprezível! — a Sra. Shelby disse com veemência.
— Bem, eu não lhe dei ouvidos nem por um momento. Em respeito aos seus
sentimentos, eu nunca faria isso, portanto, dê-me algum crédito.
— Meu querido — continuou a Sra. Shelby, recompondo-se. — Perdoe-me.
Fui impetuosa. Fui pega inteiramente de supresa e não estava preparada para
isso. Mas certamente me permitirá interceder por essas criaturas. Tomás é um
sujeito de coração nobre e leal, e nem sei se pode ser considerado um negro.
Acredito, Sr. Shelby, que se fosse necessário, ele arriscaria a própria vida por
você.
— Sei disso, ouso dizer, mas de que adianta tudo isso? Não posso fazer
nada.
— Por que não fazemos um sacrifício pecuniário? Estou disposta a fazer
minha parte da inconveniência. Ah, Sr. Shelby, eu tentei, tentei fervorosamente,
tanto quanto uma mulher cristã é capaz, cumprir meu dever com essas criaturas
miseráveis, simples e dependentes. Cuidei deles, os eduquei, os protegi e tenho
partilhado todas suas pequenas dores e alegrias, durante anos. Como poderia
manter a cabeça erguida entre eles novamente, se, por causa de um lucro
insignificante, vendemos uma criatura tão boa, fiel e de confiança como o pobre
Tomás, e em um momento lhe tiramos tudo o que o ensinamos a amar e
valorizar? Eu lhes ensinei as obrigações da família, de pai e filho, de marido e
mulher. E como poderei suportar esse reconhecimento escancarado de que não
nos importamos com os laços familiares, com as obrigações, com os
relacionamentos, por mais sagrados que eles sejam, quando comparadas ao
dinheiro? Ensinei Elisa a cuidar do filho, a responsabilidade dela para com ele
como uma mãe cristã, de cuidar dele, de rezar por ele, e criá-lo como um cristão.
E agora, o que posso dizer, se o manda embora, se o vende de corpo e alma a um
homem profano e sem princípios, simplesmente para ganhar um pouco de
dinheiro? Ensinei a ela que uma alma vale mais do que todo o dinheiro no
mundo! E como ela acreditará em mim quando nos vir dando as costas e
vendendo seu filho? Vendê-lo, talvez, para que arruíne seu corpo e sua alma!
— Sinto muito que se sinta assim, Emily. Sinto muito mesmo — disse o Sr.
Shelby. — E também respeito seus sentimentos, apesar de não compartilhar
totalmente deles. Mas posso lhe dizer, muito seriamente, que isso não adianta,
não há nada que se possa fazer. Não queria lhe dizer isso, Emily, mas, colocando
em palavras simples, não há escolha entre vender esses dois e vender tudo. Ou
eles vão ou tudo se vai. Haley tomou posse dos títulos hipotecários, os quais, se
não acertasse com ele, seriam executados. Eu raspei o tacho, juntei todas as
economias, fiz empréstimos, tudo, exceto pedir esmolas, e ainda me faltava o
preço desses dois para poder quitar a dívida, e tive que me dispor deles. Haley
gostou do garoto; ele só concordou em fechar o negócio dessa forma. Estava nas
mãos dele e eu tinha que fazê-lo. Se sente-se assim por termos vendido os dois,
se sentiria melhor se tivéssemos que vender tudo?
A Sra. Shelby parecia ter levado uma surra. Finalmente, virando-se para sua
penteadeira, descansou o rosto entre as mãos e soltou um tipo de grunhido.
— Isso é a maldição de Deus sobre a escravidão! Essa coisa maldita e cruel!
— Maldito seja o senhorio e maldito seja o escravo! Fui tola ao imaginar que
poderia tirar algo de bom de uma situação tão abominável! É um pecado manter
um escravo sob leis como as suas, sempre acreditei nisso, sempre acreditei desde
pequena, e passei a acreditar ainda mais depois de me juntar à igreja, mas pensei
que pudesse dourar a pílula. Pensei que com bondade, carinho e educação,
poderia dar aos escravos melhores condições do que a liberdade, mas que tolice
a minha!
— Ora, ora, minha querida esposa, está me saindo uma abolicionista e tanto!
— Abolicionista? Se soubessem tudo o que sei sobre a escravidão, eles
poderiam dizer algo! Não precisamos que eles nos digam; sabe muito bem que
eu nunca fui a favor da escravidão, nunca quis ser dona de escravos!
— Bem, nesse ponto você difere de muitos homens sábios e de boa fé —
disse o Sr. Shelby. — Lembra-se do sermão do Sr. B no outro domingo?
— Não quero ouvir esses tipos de sermões. Nunca mais quero ouvir o Sr. B
em nossa igreja de novo. Talvez os pastores não possam curar o mal, da mesma
maneira que nós não podemos, mas defendê-lo? Isso sempre foi contra o meu
bom senso. E acho que você também não apreciou muito aquele sermão.
— Bem — disse Shelby. — Devo-lhe dizer que esses pastores às vezes vão
mais a fundo nos problemas do que nós, pobres mortais, ousaríamos fazer. Nós,
homens do mundo, devemos analisar muito bem os problemas e depois nos
contentarmos com uma situação que não é exatamente a ideal. Mas, verdade seja
dita, não gostamos quando mulheres e pastores saem em alto e bom som nos
dando sermões em questões de moral ou modéstia. Contudo, minha querida,
acredito que você possa entender a necessidade da situação, e que veja que fiz
apenas o melhor de acordo com o que as circunstâncias permitiam.
— Ah, mas claro! — concordou a Sra. Shebly, apressada e distraidamente,
passando os dedos em seu relógio de ouro. — Não tenho nenhuma joia de
grande valor — ela acrescentou pensativamente —, mas será que este relógio
seria de alguma valia? Se pudesse pelo menos salvar o filhinho de Elisa, eu
sacrificaria qualquer pertence que tenho.
— Sinto muito, sinto muito mesmo, Emily — replicou o Sr. Shelby. — Sinto
muito que isso a faça sofrer tanto, mas o relógio não servirá para nada. Na
verdade, Emily, o negócio já está fechado; os títulos de venda já estão assinados
e nas mãos de Haley; e deve ficar agradecida por não ter sido pior. O homem
tinha em suas mãos o poder de nos destruir, e agora estamos livres dele. Se
conhecesse o homem como eu o conheço, saberia que escapamos por pouco.
— Então ele é muito cruel, não é?
— Bem, não exatamente um homem cruel, mas um homem ganancioso, só
pensa em dinheiro. Um homem alheio a tudo, exceto comércio e lucro, frio,
firme e incansável, assim como a Morte. Não que queira mal à própria mãe, mas
seria capaz de vendê-la, se isso lhe rendesse uma boa porcentagem.
— E esse desgraçado agora é dono do bondoso e fiel Tomás, e do filhinho de
Elisa!
— Querida, para dizer a verdade, isso é uma coisa que me abala demais; e
odeio pensar nisso. Haley quer resolver as questões e tomar posse do que é seu
amanhã. Vou sair à cavalo bem cedo. Não consigo encarar Tomás, isso é fato. E
é melhor você se organizar para ir a algum lugar, e carregar Elisa junto. Deixe
que a coisa seja feita quando ela não estiver por perto.
— Não, não! — disse a Sra. Shelby. — De jeito nenhum servirei de
cúmplice ou ajudarei nesse negócio cruel. Irei ter com o velho e bom Tomás, que
Deus o proteja, em sua agonia. Eles verão, de qualquer maneira, que a senhora
deles se importa com eles e os ampara. Quanto a Elisa, nem ouso pensar nisso.
Que Deus nos perdoe! O que fizemos para que necessidade tão cruel recaísse
sobre nós?
Havia um ouvinte a toda essa conversa, de quem o senhor e a senhora
Shelby pouco suspeitavam.
Comunicando com os aposentos, havia uma saleta cuja porta dava acesso
para um corredor externo. Quando a Sra. Shelby dispensara Elisa pela noite, sua
mente fervorosa e agitada lhe sugerira a ideia desta saleta; ela se escondera ali e,
com os ouvidos grudados no vão da porta, não perdeu uma só palavra da
conversa.
Quando as vozes silenciaram, ela se levantou e saiu com passos leves.
Pálida, tremendo, com as feições rígidas e os lábios cerrados, ela parecia uma
figura absolutamente diferente da criatura doce e tímida que fora até aquele
momento. Passou cuidadosamente pela entrada, parou por um momento à porta
da senhora e ergueu as mãos em um apelo mudo aos céus, então se virou e
deslizou para dentro de seu próprio quarto. Era um aposento organizado e
silencioso, no mesmo andar da senhora. Havia uma janela bem iluminada pelo
sol, onde geralmente sentava-se cantando enquanto cosia, uma pequena fileira de
livros, e vários pequenos artigos decorativos em cima deles, presentes das festas
de Natal; havia roupas simples no guarda-roupa e nas gavetas: aqui era, em
suma, a casa dela, e, no geral, tinha sido muito feliz aqui. Todavia, ali na cama,
dormia seu garoto traquino, os cachos longos caindo displicentemente ao redor
de seu rostinho inconsciente, sua boca rosada semiaberta, suas mãozinhas
rechonchudas jogadas por cima das roupas de cama e um sorriso espalhado por
todo o rosto, como um raio de sol.
— Meu filhinho! Meu pobre garoto! — disse Elisa — Eles o venderam! Mas
a mamãe há de salvá-lo!
Não derramou uma lágrima sobre o travesseiro, pois, em momentos tão
difíceis quanto este, o coração não tem lágrimas para derramar; derrama apenas
sangue, e sangra em silêncio. Ela pegou um pedaço de papel e um lápis e
escreveu com pressa:
“Ah, sinhá! Minha cara sinhá! Não pense que sou ingrata, não pense mal de
mim, nunca. Ouvi tudo o que vosmecê e o amo disseram esta noite. Tentarei
salvar meu filho e tenho certeza de que não me culpará por isso! Deus a abençoe
e a recompense por toda sua bondade.”
Dobrando e endereçando com pressa o bilhete, ela foi até a cômoda e
preparou uma pequena trouxa de roupas para o filho, a qual amarrou com
firmeza ao redor da cintura, e, sendo exemplo de uma mãe sempre tão carinhosa,
mesmo no terror daquele momento, ela não se esqueceu de colocar no pacote um
ou dois dos brinquedos favoritos dele, reservando um alegre papagaio pintado
para distraí-lo quando chegasse a hora de acordá-lo. Teve um pouco de trabalho
para acordar o dorminhoco, mas, depois de um pouco de esforço, ele se sentou e
ficou brincando com seu pássaro, enquanto a mãe colocava o chapéu e vestia o
xale.
— Onde está indo, mãe? — ele perguntou quando Elisa chegou mais perto
da cama, com seu casaquinho e o gorro.
A mãe chegou mais perto e olhou com tanta firmeza dentro dos olhos dele
que o garoto, imediatamente, adivinhou que algo atípico estava acontecendo.
— Depressa, Harry! — ela disse. — Não fale alto ou eles nos ouvirão. Um
homem malvado estava vindo para levar o Harry da mamãe, e o carregar para
longe no escuro, mas a mamãe não vai deixar. Ela vai colocar o casaco e o gorro
em seu filhinho e fugir com ele, assim o homem feio não vai conseguir pegá-lo.
Dizendo essas palavras, Elisa colocou e abotoou o traje simples da criança,
e, tomando-a nos braços, ordenou para que ficasse bem quieta. Abrindo a porta
do quarto que dava para a varanda de fora, ela saiu sorrateiramente.
Era uma noite gélida, brilhante e repleta de estrelas, e a mãe enrolou o xale
em volta de seu filho que, absolutamente quieto e levemente aterrorizado, se
agarrava no pescoço dela.
O velho Bruno, um enorme Terra-Nova que dormia no fundo da varanda,
levantou-se e rosnou baixinho quando ela se aproximou. Ela falou o nome dele
suavemente e o animal, um velho bicho de estimação e amigo de brincadeiras
dela, de pronto balançando o rabo, se preparou para segui-la, apesar de
aparentemente estar remoendo, em sua cabecinha de cachorro, qual o significado
daquela indiscreta caminhada noturna. Algumas vagas ideias de imprudência e
impropriedade pareciam incomodá-lo consideravelmente, pois ele parava
constantemente enquanto Elisa continuava em frente, e olhava ansiosamente,
primeiro para ela, em seguida para a casa até que, como se fosse tranquilizado
por reflexo, ele resolveu acompanhá-la de novo. Alguns minutos depois,
chegaram à janela da cabana do Pai Tomás, e Elisa, parando, bateu levemente na
janela.
Por ocasião da cantoria do hino, o culto na cabana tinha ido até altas horas e
o Pai Tomás ainda se refestelara com alguns solos e, como resultado, apesar de
agora ser entre onze e meia-noite, nem ele nem a família tinham dormido ainda.
— Meu bom Deus, o que é isso? — perguntou a Mãe Cloé, ficando em pé e
abrindo a cortina com pressa. — Misericórdia! É Lizzy! Põe roupa, meu velho,
rápido! E o velho Bruno também está aqui arranhando a porta. O que está
acontecendo? Está doente? O que deu em você?
E, conforme anunciado, a porta se abriu, e a luz da vela sebenta, que Tomás
acendera com pressa, caiu sobre o rosto cansado e os olhos escuros e
desesperados da fugitiva.
— Deus te abençoe! — Fico assustada só de olhar pra você, Lizzy! Está
doente? O que deu em você?
— Estou fugindo, Pai Tomás e Mãe Cloé, fugindo com meu filho. O senhor
o vendeu!
— Vendeu? — ambos falaram juntos erguendo as mãos, consternados.
— Sim, ele o vendeu! — Elisa repetiu com firmeza. — Eu me escondi na
saleta perto da porta da senhora, e ouvi o senhor dizer a ela que tinha vendido
meu Harry e o senhor também, Pai Tomás, os dois, para um mercador de
escravos. E que ele iria sair a cavalo logo cedo e que o homem viria tomar posse
hoje.
Durante o discurso, Tomás tinha ficado com as mãos para cima e os olhos
dilatados, como se estivesse sonhando. Lenta e gradualmente, à medida que as
palavras foram tomando significado, ele caiu, em vez de sentar-se, em sua velha
cadeira, e enfiou a cabeça entre os joelhos.
— O bom Deus tenha piedade de nós! — disse Mãe Cloé. — Ah, mais não
pode ser verdade! O que aconteceu pro nosso senhor querer vender ele?
— Ele não fez nada, não é por causa disso. O senhor não queria vender; e a
sinhá, ela é sempre boa. Eu a ouvi pedir e implorar por nós, mas ele disse a ela
que não adiantava nada, que ele estava endividado e que esse homem tinha
poderes sobre ele, e que se não o pagasse, acabaria tendo que vender a fazenda e
todas as pessoas, e se mudarem. É isso mesmo, eu o ouvi dizer que não havia
opção entre vender esse dois e vender tudo; mas, ah, a sinhá… Deveria tê–la
ouvido falar! Se ela não for um anjo cristão, não sei quem é. Sou uma
desgraçada por deixá-la, mas, não há o que fazer. Ela mesma disse que uma alma
valia mais do que o mundo todo; e esse garoto tem uma alma, e se eu deixar que
o levem, quem sabe o que será dele? Deve ser a coisa certa a fazer, mas, caso
não seja, Deus há de me perdoar, pois não posso deixar de fazê-la.
— Bem, meu velho! — disse Mãe Cloé. — Por que você não vai também?
Vai esperar pra eles carregar você rio abaixo, pra onde matam os crioulo de fome
e de tanto trabalhar? Eu preferia cair morta do que ir pra lá, sem a menor dúvida!
Ainda dá tempo pra você; vá embora com Lizzy, você tem autorização para ir e
vir a qualquer momento. Vá, se mexe e eu vou arrumar suas coisa!
Tomás levantou a cabeça devagar, olhando pesarosa, porém, silenciosamente
ao redor e disse:
— Não, não, eu não vou. Deixe Elisa ir, é um direito dela. Não seria eu a
dizer não, seria contra a lei da natureza; mas você ouviu o que ela disse! Se foi
preciso me vender, ou todas as pessoas da fazenda e tudo aqui viria por água
abaixo, então, que me vendam. Acho que consigo aguentar tão bem quanto
qualquer outro — ele acrescentou enquanto algo parecido com um soluço e um
suspiro chacoalhavam convulsivamente seu peito largo e rijo. — O senhor
sempre me encontrou a postos e assim será. Eu nunca quebrei a confiança nem
nunca usei minha permissão para ir e vir contrário às minhas palavras, e nunca
vou fazer isso. É melhor que só eu seja sacrificado, em vez destruir o lugar e
vender tudo. O senhor não deve ser culpado, Cloé, e ele vai cuidar de você e das
pobres…
Neste ponto ele se virou para a cama cheia de cabecinhas encarapinhadas, e
caiu em prantos. Inclinou-se sobre as costas da cadeira e cobriu o rosto com as
grandes mãos. Soluços pesados, roucos e altos, chacoalhavam a cadeira e
lágrimas pesadas escapavam por entre os dedos, pingando no chão. Eram
lágrimas, caro leitor, como aquelas derramadas sobre o caixão de seu filho
primogênito; lágrimas, cara leitora, como aquelas derramadas ao ouvir o último
suspiro de seu bebê. Pois, sim, leitor, ele era um homem, assim como você é um
homem. E, apesar das sedas e das joias, cara leitora, você não passa de uma
mulher, e nas horas difíceis e nos momentos de dor, o sofrimento é o mesmo
para todos!
— Vi meu marido esta tarde — disse Elisa —, mas nem imaginava o que
estava por vir. Eles o levaram até o limite do desespero e ele me disse, hoje, que
fugiria. Se puderem, tentem avisá-lo de como parti e por que parti. E digam a ele
que tentarei ir para os lados do Canadá. Digam a ele que o amo e que se nunca
mais o vir… — ela se virou e deu as costas para eles por um momento, e então
continuou com uma voz rouca — diga a ele para ser o melhor homem que puder
e que tente me encontrar no Reino do Céu. Chame Bruno aqui para dentro — ela
acrescentou. — Tranque a pobre criatura! Ele não pode me seguir!
Algumas últimas palavras e lágrimas, alguns simples adeus e bênçãos e
Elisa, pegando o filho curioso e assustado nos braços, afastou-se silenciosamente
da cabana.
6
A DESCOBERTA

O Sr. e a Sra. Shelby, depois da discussão acalorada da noite anterior, não


pegaram no sono imediatamente, e, como consequência, na manhã seguinte
dormiram até mais tarde do que de costume.
— Por que será que Elisa não vem? — disse a Sra. Shelby, depois de bater
na campainha várias vezes, inutilmente.
O Sr. Shelby estava em pé em frente ao espelho, afiando a navalha de barba;
neste momento a porta se abriu e um garoto preto entrou com a água de barbear.
— Andy — disse a senhora —, vá até a porta de Elisa e diga que já a chamei
três vezes. Coitadinha! — ela disse a si mesma com um suspiro.
Andy voltou logo, com os olhos arregalados de espanto.
— Meu Deus, sinhá! As gaveta de Lizzy está tudo aberta, e as coisa está
tudo espalhada; acho que ela acabou de fugir.
A verdade ficou clara para o Sr. Shelby e a esposa, ao mesmo tempo. Ele
exclamou:
— Então ela suspeitou e fugiu!
— Deus seja louvado! — disse a Sra. Shelby. — Ainda bem.
— Não diga bobagem, mulher! Na verdade, será uma situação muito
constrangedora para mim se ela realmente tiver fugido. Haley viu que eu hesitei
em vender o filho dela e pensará que fui conivente com isso, para tirá-lo do
caminho. Isso afetará a minha honra! — E então o Sr. Shelby saiu do quarto a
passos largos.
Houve muita correria e confusão, e um abre e fecha de portas, e rostos de
todos os tons de cores em lugares diferentes, por aproximadamente quinze
minutos. Apenas uma pessoa, que talvez pudesse esclarecer a questão, mantinha-
se em absoluto silêncio, e essa era a cozinheira, a Mãe Cloé. Silenciosa, e com
uma nuvem pesada pairando sobre seu rosto geralmente alegre, ela continuou a
fazer seus biscoitos matutinos, como se não estivesse ouvindo ou vendo a
confusão ao seu redor.
Em pouco tempo, aproximadamente uma dúzia de pretinhos estavam
ciscando, feito corvos, nos corrimões da varanda, cada um determinado a ser o
primeiro a comunicar a notícia ao forasteiro senhor.
— Ele vai ficar louco, tenho certeza! — disse Andy.
— Vai xingar muito! — exclamou o pretinho Jake.
— Sim, porque ele xinga demais! — comentou Mandy, com seu cabelo
encarapinhado. — Eu ouvi ele ontem no jantar. Entrei no armário onde a sinhá
guarda as jarra grande e escutei cada palavra. — E Mandy, que nunca na vida
dera a mínima para o significado de nenhuma palavra que ouvira, agora tinha
ares de superioridade e empertigamento, se esquecendo de esclarecer que, apesar
de ter, de fato, se escondido entre as louças durante o tempo mencionado, tinha
rapidamente pegado no sono.
Finalmente, quando Haley apareceu, de botas e esporas, foi recebido com
más notícias por todos os lados. Os pretinhos na varanda não ficaram
decepcionados em sua esperança de vê-lo praguejar, o que ele fez com fluência e
fervor, deleitando a todos imensamente, enquanto eles se abaixavam e
desviavam, para lá e para cá, fugindo do alcance da chibata do homem.
— Ah, se esses demoniozinhos fossem meus! — rosnou Haley entredentes.
— Mas não são! — retrucou Andy com um sorriso triunfante, fazendo uma
sequência de caretas indescritíveis nas costas do azarado mercador de escravos,
quando esse não podia mais ouvi-lo.
— Vou te contar uma coisa, Shelby, isso é uma coisa extraordinária! —
exclamou Haley ao entrar abruptamente na sala. — Parece que a garota fugiu
com o molequinho dela!
— Sr. Haley, a Sra. Shelby está presente — informou o Sr. Shelby.
— Peço perdão, madame — desculpou-se Haley, fazendo uma leve mesura
com as sobrancelhas ainda franzidas. — Mas, como estava dizendo, esta é uma
notícia sem par. É verdade, senhor?
— Senhor — respondeu o Sr. Shelby —, se deseja conversar comigo, deve
manter o decoro de um cavalheiro. Andy, pegue o chapéu e o chicote do Sr.
Haley. Sente-se, por favor. Sim, senhor. Lamento dizer que a jovem, agitada pelo
que ouviu ou pelo que lhe contaram da negociação, pegou o filho durante a noite
e fugiu.
— Eu esperava um acordo justo com relação a esse assunto, devo confessar
— retrucou Haley.
— Bem, senhor — continuou o Sr. Shelby, virando-se para encará-lo com
firmeza. — Que conclusões eu devo tirar desse comentário? Se um homem
questiona minha honra, tenho apenas uma resposta para lhe dar.
O mercador de escravos sentiu-se intimidado, e, em um tom levemente mais
baixo disse:
— É duro pra um sujeito fazer um negócio limpo e depois ser passado pra
trás.
— Sr. Haley — continou o Sr. Shelby —, se não acreditasse que o senhor
tivesse razões para estar desapontado, não teria permitido que entrasse com tanta
rispidez e falta de cerimônia dentro de minha casa esta manhã. No entanto,
apesar do que possa parecer, digo que não tolerarei nenhuma insinuação de que
eu tenha tomado parte de qualquer tipo de injustiça no ocorrido. Além disso,
sinto-me na obrigação de lhe dar toda a assistência, com o uso de cavalos,
escravos, etc., para ajudá-lo a recuperar sua propriedade. Assim, em resumo,
Haley — disse Shelby, repentinamente deixando de lado o tom de frieza digna e
voltando a falar com sua franqueza de costume —, o melhor a fazer é manter a
calma, tomar o café da manhã, e então veremos o que será feito.
A Sra. Shelby então se levantou e disse que seus compromissos a
impossibilitariam de estar presente à mesa do café naquela manhã, e incumbindo
a uma mulata muito respeitável a tarefa de servir o café no bufete aos
cavalheiros, ela se retirou da sala.
— Parece que a patroa não vai com a cara desse seu humilde criado —
comentou Haley em uma tentativa forçada de parecer íntimo da casa.
— Não estou acostumado a falarem com tanta liberdade de minha esposa —
comentou secamente o Sr. Shelby.
— Peço perdão. Foi só uma brincadeira, você sabe —, disse Haley, forçando
uma risada.
— Algumas brincadeiras podem ser muito desagradáveis — continuou
Shelby.
“O diabo do homem está livre agora que já assinei aqueles papéis, maldito
seja, todo orgulhoso, desde ontem”. Haley resmungou para si mesmo.
Nem mesmo a queda de um primeiro-ministro na corte causou mais furor do
que a notícia do destino de Tomás entre seus companheiros da fazenda. Era o
assunto de todas as bocas, em todos os lugares; e nada foi feito na casa ou no
campo, exceto discutir as prováveis consequências. A fuga de Elisa, um evento
sem precedentes no local, também era um grande agravante ao estímulo da
agitação generalizada.
O Nego Sam, como era geralmente chamado por ser pelo menos três tons de
preto mais escuro do que qualquer outro filho do ébano naquele lugar, analisava
o assunto profundamente, em todas suas fases e detalhes, com uma percepção
tão extensa e uma perspectiva tão rígida com relação ao seu próprio bem-estar,
que seria digno de crédito a qualquer patriota branco em Washington.
— Ventos ruim estão soprando, isso é fato — disse Sam laconicamente,
puxando as calças um pouco mais para cima e substituindo habilidosamente um
prego comprido no lugar de um botão do suspensório, com cujo esforço de
genialidade mental ele parecia se deliciar. — Sim, ventos ruim estão soprando —
ele repetiu. — Mas agora que Tomás perdeu o posto, bom, claro que há de ter
espaço pra um nego tomar o lugar dele. E por que não esse nego aqui? A ideia é
essa. Tomás, cavalgando pelo campo, as bota lustrada, salvo conduto no gibão,
tão imponente quanto o Cuffee. Quem, que não ele? E por que não o Sam aqui?
É isso que quero saber.
— Olá, Sam! Ei, Sam! O senhor quer que você sele Bill e Jerry — disse
Andy, interrompendo o monólogo do negro.
— Pra quê? O que tá acontecendo, moleque?
— Então você não sabe que Elisa soltou as amarra e fugiu com o
molequinho dela?
— Vá contar isso pra sua vó! — disse Sam, com uma satisfação infinita. —
Eu sabia muito antes de você! Está pensando que esse preto aqui não sabe de
nada?
— Bom, de qualquer jeito, o senhor quer Bill e Jerry selado agora, e eu e
você vamos junto com o senhor Haley atrás dela.
— Que beleza! É uma boa hora! — disse Sam. — É o Sam que é chamado
nessas hora. Ele é o negão! Quero só ver se não descubro onde ela está! O
senhor vai ver do que o Sam é capaz!
— Ah, mas Sam — continuou Andy —, é melhor você pensar duas vezes,
porque a sinhá não quer que ela seja pega, e ela vai ficar no seu pé.
— É mesmo? — perguntou Sam arregalando os olhos. — E como sabe
disso?
— Ouvi ela mesmo dizer, com meus próprio ouvido, nessa manhã abençoada
quando trazia a água de barbear pro senhor. Ela me mandou ver por que Lizzy
não tinha ido vestir ela, e quando eu disse que Elisa tinha fugido, ela
simplesmente se levantou e disse “Deus seja louvado”. E o senhor parecia estar
muito zangado, daí ele disse: “Mulher, não fale bobagem!”. Mas, por Deus! Ela
vai convencer ele, já sei no que isso vai dar; e vou te dizer, é sempre mais
melhor ficar do lado dela da cerca!
O Nego Sam, diante disso, coçou a cabeça encarapinhada que, embora não
contivesse uma profunda sabedoria, ainda assim continha uma grande dose de
ideias particulares, muito em voga entre os políticos de todas as raças e países,
vulgarmente conhecida por “saber para que lado o vento sopra”; assim, parando
para ponderar com seriedade, ele de novo puxou as calças, que era seu famoso
método para ajudar a organizar suas perplexidades mentais.
— Nunca vi uma coisa dessas, nunca — ele finalmente disse.
Sam falava como um filósofo, enfatizando o dessas, como se já tivesse tido
uma grande experiência em diferentes tipos de mundos, e, assim, chegara às suas
conclusões com cautela.
— Eu tinha certeza de que a sinhá ia procurar a Lizzy pelo mundo inteiro —
acrescentou Sam, pensativo.
— Também acho — comentou Andy. — Mas você não vê o que tá bem na
frente do seu nariz, negão? — A sinhá não quer que o senhor Haley ponha as
mão no menino da Elisa, entendeu?
— É isso! — exclamou Sam com uma entonação indescritível, conhecida
somente por aqueles que já a escutaram entre os pretos.
— E vou te dizer mais — continuou Andy. — É melhor você andar logo
com esses alazão, bem depressinha, porque estou ouvindo a sinhá chamando e
você já jogou bastante conversa fora.
Sam, diante disso, começou a se apressar para cumprir as ordens que
recebera, e momentos depois, cavalgou gloriosamente concentrado em direção à
casa, com Bill e Jerry a meio galope, e desmontando habilidosamente antes que
pudessem pensar em parar, trouxe os animais para perto em um cabresto, como
um tornado. O cavalo de Haley, um potro arisco, escoiceava, relinchava e
puxava o cabresto com força.
— Ho, Ho! — disse Sam. — Está assustado, não é? — e seu semblante preto
se iluminou com um brilho curioso e travesso. — Vou te dar um jeito agora
mesmo! — ele falou.
Havia uma grande faia sombreando o lugar, e algumas castanhas
triangulares, pequenas e pontudas, formavam uma grossa camada pelo chão.
Com um dos dedos, Sam se aproximou do potro, passou a mão e o acalmou, e
parecia aparentemente ocupado em deixá-lo menos agitado. Com o pretexto de
ajustar a sela, ele rapidamente colocou sob ela a pequena castanha pontuda, de
tal modo que o menor peso colocado sobre a sela irritaria os nervos sensíveis do
animal, sem deixar qualquer arranhão ou cicatriz à vista.
— Mas que tinhoso! — ele falou, rolando os olhos com um sorriso de
aprovação. — Eu ajeitei você!
Neste momento, a Sra. Shelby apareceu na varanda procurando por ele. Sam
aproximou-se tão determinado a adular a senhora quanto qualquer pretendente a
uma vaga no St. James ou a um ministério em Washington.
— Por que demorou tanto, Sam? Mandei Andy lhe dizer para se apressar.
— Deus a abençoe, sinhá! — disse Sam. — Não tinha como pegar os cavalo
em um minuto; eles estava lá no final do pasto, e Deus é testemunha de que não
estou mentindo!
— Sam, quantas vezes devo lhe lembrar que não deve dizer “Deus abençoe”
e “Deus é testemunha” e coisas do gênero? É pecado.
— Ah, Deus abençoe minha alma! Me esqueci, sinhá! Não vou dizer mais
nada disso.
— Mas, Sam, você acabou de dizer de novo.
— É? Oh, Deus! Quer dizer, não queria dizer isso.
— Você deve ser cuidadoso, Sam.
— Só deixa eu tomar fôlego, sinhá que daí começo tudo de novo. Vou ser
muito cuidadoso.
— Bem, Sam, você irá com o Sr. Haley, para lhe mostrar o caminho e ajudá-
lo. Tenha cuidado com os cavalos, Sam; sabe como Jerry estava mancando um
pouco na semana passada; não cavalgue muito depressa!
A Sra. Shelby falou essas últimas palavras com voz baixa e grande ênfase.
— Fique sossegada! — Sam garantiu, com um olhar de quem entendeu o
recado. — Juro por Deus! Ai! Não quis dizer isso! — ele continuou, subitamente
recuperando o fôlego com um ar de apreensão engraçado, e a senhora não pôde
deixar de rir. — Sim, sinhá, eu cuido dos cavalo!
— Veja bem, Andy — disse Sam voltando ao seu lugar sob a faia —, eu não
ia ficar surpreso se o animal daquele cavalheiro desse um coice, de repente,
quando ele for tentar montar. Sabe como é, Andy, as criatura faz esses tipo de
coisa. — E com isso, Sam cutucou Andy de lado, de uma maneira altamente
sugestiva.
— É mesmo! — falou Andy, com um ar de apreciação instantânea.
— Sim, veja bem, Andy, a sinhá quer ganhar tempo; isso é muito claro pra
qualquer um que quer ver. Então vamos dar uma ajudinha. Solta os cavalo e
deixa eles pastar por aí, e tenho certeza que o senhor não vai sair tão depressa.
Andy abriu um sorriso.
— Veja — disse Sam —, veja, Andy, se por acaso o cavalo do senhor Haley
começar a agir estranho e fazer travessuras, você e eu vamos socorrer eles com
os nossos cavalo, e vamos ajudar ele – Ah, se vamos! — E Sam e Andy,
cúmplices, começaram a rir baixo e exageradamente, estalando os dedos e
batendo os calcanhares com uma alegria ímpar.
Neste momento Haley aparece na varanda. De algum modo, algumas xícaras
de excelente café o acalmaram, e ele saiu sorrindo e falando, com o humor
toleravelmente restaurado. Sam e Andy, agarrando suas folhas de palmeiras
trançadas, as quais tinham o hábito de usar como se fossem chapéus, correram
até onde estavam os cavalos, prontos para “ajudarem ao senhor”.
O trançado da folha de palmeira de Sam tinha se desmanchado, e as pontas
da aba, soltas e espetadas, conferiam-lhe um ar de liberdade e desafio, bem
parecido com qualquer chefe Fejee. A aba do chapéu de Andy se soltara
completamente da copa, mas, apesar disso, ele enfiou a copa na cabeça com um
golpe ágil e pareceu satisfeito, como se dissesse “Quem disse que eu não tenho
um chapéu?”.
— Bem, garotos — disse Haley. — Animem-se, não temos tempo a perder!
— Nem um minuto, senhor! — concordou Sam, colocando as rédeas nas
mãos de Haley e segurando o estribo, enquanto Andy desamarrava os outros dois
cavalos.
No instante em que Haley tocou na sela, o animal fogoso deu um pinote
súbito que jogou seu senhor de bruços no chão macio e seco, a alguns metros de
distância. Sam, gesticulando freneticamente, foi atrás das rédeas, mas apenas
conseguiu enfiar a ponta da palmeira, comentada anteriormente, dentro dos olhos
do cavalo. Assim, o animal virou-se com veemência e, passando por Sam,
relinchou insolente duas ou três vezes, jogou as patas vigorosamente para o ar, e
logo saiu a galope em direção à parte mais baixa do terreiro, seguido por Bill e
Jerry, que Andy soltara conforme combinado, espantando-os com vários gritos
horrorosos.
E agora a confusão estava instalada: Sam e Andy corriam e gritavam;
cachorros latiam aqui e acolá, e Mike, Mose, Mandy, Fanny e todos os pequenos
do lugar, tanto meninos como meninas, corriam, batiam palmas, berravam e
gritavam com ultrajante impertinência e incansável entusiasmo.
O cavalo de Haley, que era branco, muito ligeiro e fogoso, parecia ter
entrado no espírito da cena com muito gosto: e tendo como pista de corrida um
terreno de quase um quilômetro de extensão, com uma leve queda em todos os
lados para dentro da floresta sem fim, o animal parecia estar tomado pelo prazer
infinito de ver o quão perto seus perseguidores podiam se aproximar, e então,
quase ao alcance das mãos, fugia com um arranque e um relincho, como criatura
travessa que era, e se abalava para dentro de alguma viela em meio às árvores.
Nada estava mais distante da mente de Sam do que capturar logo qualquer um da
tropa; e os esforços que ele envergou para tanto foram certamente heroicos.
Assim como a espada de Ricardo, Coeur de Lion, que sempre brandia à frente do
ponto mais crítico da batalha, o chapéu de folha de palmeira de Sam podia ser
visto em todo lugar em que pudesse correr o menor perigo de a besta-fera ser
pega. No entanto, isso não o impedia de gritar com toda a força: “Pega eles!
Segura! Segura!” de uma maneira que, em minutos, afugentava os animais, que
corriam por caminhos indiscriminados.
Haley corria para cima e para baixo, bradava, praguejava e batia o pé sem
parar. O Sr. Shelby, em vão, tentava gritar instruções a partir da varanda, e a Sra.
Shelby, da janela de seu aposento, às vezes ria e se perguntava o que estava
acontecendo, não sem ter uma vaga ideia do que estava por trás daquela
confusão.
Ao final, quase ao meio dia, Sam apareceu triunfante, montado em Jerry,
com o cavalo de Haley ao seu lado, suando em bicas, mas com olhos brilhantes e
narinas dilatadas, demonstrando que o espírito de liberdade ainda não tinha
sucumbido totalmente.
— Aqui está ele! — Sam exclamou em triunfo. — Se não fosse por mim,
eles teria se matado de tanto correr. Mas eu peguei ele!
— Você! — resmungou Haley com um humor não muito amigável. — Se
não fosse por sua causa, nada disso tinha acontecido!
— Deus abençoe, senhor! — disse Sam, em tom de profunda consternação.
— E vem falar de eu, que fiquei correndo atrás deles até ficar com a língua de
fora?
— Ora bolas! — falou Haley. — Você me fez perder quase três horas com
sua maldita confusão! Agora vamos e chega de conversa fiada!
— Mas, senhor — perguntou Sam, em tom de protesto —, será que quer
matar nós tudo, escravo, cavalo e tudo mais? Aqui estamos nós quase a ponto de
morrer e as criatura ensopada de suor! Não acho que o senhor ia conseguir sair
antes do jantar. Seu cavalo precisa ser limpo, olhe só como ele está suado; e o
Jerry também está mancando; não acho que a sinhá vai deixar nós sair assim, de
jeito maneira. Deus te abençoe, senhor, se nós parar agora, vamos poder
recuperar mais tarde. A Lizzy nunca prestou muito para andar.
A Sra. Shelby, que, para seu grande divertimento, escutara a conversa da
varanda, resolveu então fazer seu papel. Ela se aproximou e, expressando
educadamente sua preocupação com o acidente de Haley, pressionou-o a ficar
para o jantar, dizendo que a cozinheira o serviria à mesa imediatamente.
Assim, ponderando toda a situação, Haley, de mau grado, prosseguiu até a
sala de jantar, enquanto Sam, tendo o seguido com os olhos com um brilho
inexprimível, conduziu solenemente os cavalos até a cavalariça.
— Viu só, Andy? Viu o homem? — perguntou Sam depois de chegar ao
estábulo e amarrar o cavalo em uma viga. — Ah, Deus, isso foi tão bom quanto
um culto, ver o homem rolando e chutando e praguejando! Acha que não ouvi?
“Xingue, meu camarada”, eu digo para mim mesmo, “vai montar no seu cavalo
agora ou vai esperar até eu pegar ele?”, eu digo. Meu Deus, Andy, parece que
ainda vejo ele! — E Sam e Andy se recostaram na cavalariça, e riram até cansar.
— Precisava ver como ele estava fulo da vida quando eu trouxe o cavalo.
Meu Deus, se ele pudesse, teria me matado; e lá estava eu todo inocente e
humilde na frente dele!
— Por Deus, eu te vi! — disse Andy. — Sam, você é um velhaco mesmo,
hein?
— Acho que sim — respondeu Sam. — Viu a sinhá na janela? Vi ela rindo.
— Tenho certeza, eu estava correndo feito um louco e não vi nada — disse
Andy.
— Veja só — disse Sam, preparando-se seriamente para lavar o potro de
Haley. — Eu descobri o que eles chama de hábito de “pretobservação”, Andy. É
um hábito muito importante, Andy, e recomendo que você cultive ele enquanto
ainda é moço. Levante essa pata traseira, Andy. Veja, Andy, essa
“pretobservação” faz toda a diferença para os preto. Eu não adivinhei para onde
o vento estava soprando esta manhã? Não adivinhei o que a sinhá queria, mesmo
sem ela nunca ter dito? Isso é “pretobservação”, Andy. Acho que é isso que eles
chama de faculdade. As faculdade são diferente pra cada pessoa, mas se cultivar
elas, você pode chegar longe.
— Mas se eu não tivesse ajudado você em sua “pretobservação” hoje de
manhã, não estaria se sentindo tão esperto assim — disse Andy.
— Andy — continuou Sam —, você é uma criança de futuro, não tenho a
menor dúvida. Te considero por demais, Andy. E não tenho vergonha de
aproveitar suas ideia! Nós não deve desprezar ninguém, Andy, porque nossa
esperteza às vezes pode pregar umas peça na gente. Agora vamos até a casa-
grande. Aposto que dessa vez a sinhá vai oferecer pra nós comida da boa!
7
O DESESPERO DA MÃE

É impossível conceber uma criatura humana mais desolada e perdida do que


Elisa ao sair da cabana do Pai Tomás.
Os sofrimentos e os perigos que o esposo, e agora também seu próprio filho,
corriam, tudo misturado em sua cabeça, com uma sensação de confusão e medo
do próprio risco que corria ao deixar a única casa que já conhecera e se afastar
da proteção de um amigo a quem amava e reverenciava. E havia também a
separação de todas as coisas que lhe eram familiares — o lugar onde ela
crescera, as árvores sob as quais brincara, os bosques pelos quais caminhara
muitas noites em dias mais felizes, ao lado de seu jovem marido — sob a luz
clara e gélida, tudo parecia lhe repreender e lhe perguntar como era capaz de
fugir de um lar como aquele.
Todavia, o amor maternal suplantava tudo, e se transformava em uma súbita
agonia ao imaginar o medo com a aproximação do temido perigo. Seu filho já
era grande o bastante para caminhar ao seu lado, e, se a situação fosse outra, ela
o teria levado pela mão. Mas agora, a simples ideia de tirá-lo de seus braços a
fazia estremecer, assim, ela o apertava com força no colo, enquanto seguia
rapidamente seu caminho.
O chão congelado trepidava sob seus pés, e ela tremia cada vez que ouvia
um barulho; cada folha que estalava e cada sombra que se movia lhe congelava o
coração e a fazia caminhar ainda mais ligeiro. Ela se perguntava de onde vinha
sua força, pois carregava o filho como se fosse uma pena, e cada espasmo de
medo parecia aumentar a força sobrenatural que tomava conta dela, enquanto
seus lábios pálidos invocavam, sem parar, uma oração para o Poderoso lá de
cima: “Senhor, ajude-me! Senhor, salve-me!”
E se fosse o seu Harry, mãe, ou o seu Willie a ser tirado de seus braços por
um mercador brutal amanhã de manhã, e se tivesse visto o homem, e ouvido que
os papéis já tinham sido assinados e entregues, e se tivesse de meia-noite até a
manhã seguinte para conseguir fugir, quão rápido você conseguiria caminhar?
Quantos quilômetros conseguiria percorrer nessas poucas horas, com a criança
querida em seu peito, a cabecinha sonolenta em seu ombro, os bracinhos
pequenos e macios segurando confiantemente ao redor de seu pescoço?
Pois a criança dormia. A princípio, a novidade e o medo o mantiveram
acordado, mas a mãe o repreendia tão rapidamente a cada fôlego ou a cada som,
e lhe garantiu que só conseguiria salvá-lo se ele ficasse quieto, que Harry se
pendurou silenciosamente ao redor do pescoço dela, apenas perguntando, quando
estava quase pegando no sono:
— Mãe, eu não tenho que ficar acordado, tenho?
— Não, meu querido. Se quiser, pode dormir.
— Mas, mãe. Se eu dormir, não vai deixar que ele me pegue, vai?
— Não! Deus me livre e guarde! — disse a mãe com o rosto ainda mais
pálido e um brilho ainda mais forte nos grandes olhos escuros.
— Tem certeza, não é, mãe?
— Sim. Tenho certeza — respondeu a mãe com uma voz que a surpreendeu,
pois ela parecia vir de um espírito interior, que não fazia parte dela; então o
garotinho soltou a cabecinha cansada sobre o ombro dela e logo pegou no sono.
Como aqueles braços quentes e a respiração suave que sentia no pescoço
pareciam dar força e alma a seus movimentos. Parecia que a força chegava até
ela por ondas de eletricidade, a cada toque e a cada movimento suave daquela
criança adormecida e confiante. Como é sublime o domínio da mente sobre o
corpo, que, por um tempo, consegue tornar a carne e os nervos impenetráveis,
entrelaçando-os como aço, transformando a fraqueza em poder.
As divisas da fazenda, o bosque, o campo, tudo passava por ela
vertiginosamente à medida que continuava a andar; e ela prosseguiu em silêncio,
deixando para trás as coisas conhecidas, uma após a outra, sem esmorecer, sem
parar, até que a vermelhidão da primeira luz do dia encontrou-a na estrada, bem
distante de todos os traços familiares.
Ela já viera várias vezes, com sua senhora, visitar alguns conhecidos no
vilarejo de T———, não muito longe do rio Ohio, e conhecia muito bem a
estrada. Chegar ali, fugir pelo rio Ohio, foi o primeiro esboço do apressado plano
de fuga; dali em diante ela teria que entregar nas mãos de Deus.
Quando cavalos e carruagens começaram a passar pela estrada, Elisa, em
alerta peculiar ao seu estado de agitação, e que parecia ser algum tipo de
inspiração, percebeu que seu passo apressado e ar distraído poderia causar
suspeitas. Assim, ela colocou o garoto no chão e, arrumando o vestido e a boina,
caminhou em uma velocidade condizente com a preservação das aparências. Em
sua trouxinha ela tinha trazido alguns pedaços de bolo e maçãs, que usava para
apressar o passo do filho, jogando a maçã alguns metros à frente deles, enquanto
o garoto corria com toda vontade atrás dela; esse estratagema, repetido várias
vezes, os levou pelo menos mais um quilômetro adiante.
Depois de um tempo chegaram a um pedaço de mata fechada, por onde
murmurava um riacho de águas claras. Como a criança reclamava de fome e
sede, Elisa passou por cima de uma cerca com o filho e, sentando-se atrás de
uma grande pedra que os escondia da estrada, ofereceu-lhe o café da manhã que
trouxera em sua pequena bagagem. O garoto admirou-se por ela não estar
comendo, e enlaçando-a pelo pescoço, tentou enfiar uma parte do bolo na boca
da mãe, que sentiu como se fosse engasgar.
— Não, não, Harry querido! A mamãe não conseguirá comer até que você
esteja a salvo! Temos que continuar até alcançarmos o rio! — E ela apressou-se
novamente em direção à estrada, e de novo pôs-se a caminhar regular e
tranquilamente adiante.
Ela estava a muitos quilômetros de distância de qualquer vizinhança onde
pudesse ser reconhecida. Se, por acaso, viesse a encontrar algum conhecido,
chegara à conclusão de que a famosa bondade da família seria, ela própria, um
disfarce contra a suspeita, tornando muito improvável que achassem que ela
fosse uma fugitiva. Além disso, por ter a pele tão clara a ponto de, sem uma
análise crítica, não ser considerada de uma linhagem negra, e do filho dela
também ser branco, era muito mais fácil passar despercebida.
Acreditando nisso, ao meio dia Elisa parou em uma casa de fazenda bem
cuidada, para descansar e comprar alguma comida para ela e o filho, pois, à
medida que o perigo diminuía com a distância, a tensão sobrenatural dos nervos
relaxava e ela deu-se conta de que estava tão cansada quanto faminta.
A boa senhora, gentil e falante, parecia satisfeita por ter alguém com quem
conversar e aceitou, sem questionamentos, a explicação de Elisa, de que “estava
fazendo uma pequena viagem para passar uma semana com amigos”, o que, em
seu coração, esperava que se provasse absolutamente verdadeiro.
Uma hora antes do pôr-do-sol ela entrou no vilarejo de T———, às margens
do rio Ohio, cansada e com os pés doloridos, mas ainda determinada. Deu um
olhar de relance para o rio, assim como o rio Jordão, encontrava-se entre ela a
liberdade da terra de Canaã do lado oposto.
A primavera já chegara e agora o rio estava cheio e turbulento; grandes
pedaços de gelo flutuante balançavam de um lado para o outro nas águas
agitadas. Em virtude da forma peculiar da margem do lado que ficava no
Kentucky, com a terra se estendendo bem para dentro da água, o gelo tinha se
acumulado, ficando preso em grandes quantidades, e o estreito canal que
circundava o flanco de terra estava cheio de gelo, uma camada empilhada sobre
a outra, formando, assim, uma barragem temporária para o gelo que caía, o qual
se prendia e formava uma barreira grande e ondulante, enchendo todo o rio e se
estendendo quase até a margem do Kentucky.
Por um momento Elisa ficou em pé contemplando o aspecto desfavorável da
situação que ela, de pronto, viu que não permitiria que a balsa navegasse, e então
entrou em uma estalagem à beira do rio para fazer algumas perguntas.
A dona da estalagem, ocupada ao fogão com as frituras e cozidos,
preparando a refeição da noite, parou com um garfo na mão, enquanto a voz
doce e angustiada de Elisa lhe chamou a atenção:
— O que foi? — ela disse.
— Será que existe alguma balsa ou algum barco que leve as pessoas para B
——— agora? — Elisa perguntou.
— Não, de jeito de nenhum! — respondeu a mulher. — Os barcos pararam
de navegar.
O olhar de desespero e decepção de Elisa sensibilizou a mulher, que então
disse inquisitivamente:
— Tem muita precisão de atravessar? Alguém doente? Parece um pouco
ansiosa.
— Tenho um filho que está correndo perigo. Não sabia disso até a noite
passada, e caminhei muito hoje, na esperança de pegar a balsa.
— Bem, isso é uma pena — comentou a mulher, cujos instintos maternais
despertaram. — Estou muito preocupada com você. Salomon! — ela gritou da
janela em direção a um quartinho nos fundos. Um homem, com um avental de
couro e mãos muito sujas, apareceu à porta.
— Então, Sal — perguntou a mulher —, aquele homem vai levar seus barris
esta noite?
— Ele disse que ia tentar, se não fosse muito perigoso — explicou ele.
— Tem um homem que atravessará o rio esta noite com algumas
mercadorias, se é que tem coragem. Ele virá aqui para jantar, então é melhor se
sentar e esperar. Esse sujeitinho é um doce — acrescentou a mulher, oferecendo
um pedaço de bolo a Harry.
Mas a criança, absolutamente exausta, chorou de cansaço.
— Pobrezinho! Ele não está acostumado a andar e eu o obriguei a caminhar
tanto hoje — explicou Elisa.
— Bem, então é melhor levá-lo para o quarto — disse a mulher, abrindo a
porta de um quartinho onde havia uma cama. Elisa colocou o garoto cansado no
leito, e lhe segurou as mãos até ele pegar no sono. Para ela não houve descanso.
Como se seu sangue estivesse pegando fogo, a ideia do perseguidor a fazia
seguir em frente; e ela observava com olhos tristes as águas revoltas que se
punham entre ela e a liberdade.
Aqui devemos deixá-la por um momento e seguir o curso de seus
perseguidores.

Apesar de a Sra. Shelby ter prometido que o jantar logo seria servido, o
mesmo ainda não fora posto à mesa, e, como já vimos anteriormente, vários
imprevistos tiveram que ser superados até que a promessa fosse cumprida. Dessa
forma, apesar de a ordem ter sido dada na frente de Haley e repassada à Mãe
Cloé por pelo menos meia dúzia de jovens mensageiros, a dignitária apenas deu
algumas bufadas grosseiras, mexeu a cabeça e continuou com suas atividades
com uma lerdeza e descaso fora do comum.
Por alguma razão particular, entre os escravos, parecia reinar a impressão de
que a senhora não estava particularmente zangada pelo atraso, e foi
impressionante toda a sorte de incidentes ocorridos ao mesmo tempo, e que
retardaram o andar das coisas. Um ajudante azarado fingiu derrubar o molho, o
qual então teve que ser feito novamente; com todo cuidado e formalidade, Mãe
Cloé olhava e mexia de um lado para o outro com precisão, dizendo sem
pestanejar a todos os que reclamavam do atraso, que ela não serviria molho mal
feito à mesa só para ajudar alguém a prender os outros. Um tropeçou com a água
e teve que voltar até a fonte para pegar mais; e, nesse meio tempo, alguém
derrubou a manteiga. E, de tempos em tempos chegavam notícias à cozinha,
entre gargalhadas, de que “O Sr. Haley estava muito agitado e que não conseguia
ficar parado na cadeira de jeito maneira, então fica andando e olhando pela
janela e pela varanda”.
— Bem feito pra ele! — disse a Mãe Cloé com indignação. — Qualquer dia
desses ele vai ficar ainda pior, se não se emendar. O senhor dele vai mandar
chamar ele um dia, aí quero ver como ele vai ficar!
— Ele vai pra o inferno, não tenho dúvida — disse o pequeno Jake.
— Ele merece! — retrucou a Mãe Cloé sombriamente. — Ele já partiu
tantos, tantos corações, vou contar pra vocês! — disse levando um garfo nas
mãos. — É como aquelas coisa que o sinhozinho George lê nos Livro das
Revelações — as alma chamando debaixo do altar e um a um o Senhor vai ouvir
eles e a vingança do Senhor vai cair sobre eles! Com certeza!
Mãe Cloé, sempre muito discreta na cozinha, foi ouvida por todos,
boquiabertos, e, com o jantar agora já servido, toda a cozinha estava livre para
conversar e ouvir os comentários dela.
— Vai arder no fogo do inferno pra sempre, com certeza, não vai? —
perguntou Andy.
— Ficaria feliz em ver isso, de verdade — disse o pequeno Jake.
— Meus filho! — disse uma voz que os fez sobressaltarem. Era o Pai
Tomás, que tinha entrado e ficara ouvindo a conversa da porta.
— Meus filho! — ele repetiu. — Receio que não saibam o que estão
dizendo. Pra sempre é algo terrível de dizer, meus filho. É horrível pensar assim.
Não devem desejar isso para nenhuma criatura humana!
— Não desejamos para ninguém além dos mercador de escravos — disse
Andy. — Ninguém pode não desejar isso pra eles; são muito malvado!
— Mas a própria natureza não clama por eles? — questiona a Mãe Cloé. —
Eles não tiram o bebê do peito da mãe e vende, e as criancinha quando estão
chorando e agarrada às roupa da mãe, eles não vêm e vende elas? Eles não
separam as mulher dos marido? — disse Mãe Cloé começando a chorar. — Por
que simplesmente tira a vida deles? E enquanto isso eles goza a vida. Eles bebe e
fuma e se diverte! Bom Deus, se o diabo não carregar eles, qual sua serventia?
— E a Mãe Cloé cobriu o rosto com seu avental xadrez e começou a soluçar
convulsivamente.
— Reze pra aqueles que o perseguem, diz o Santo Livro — Pai Tomás falou.
— Rezar por eles? — bradou a Mãe Cloé. — Meu Deus, é difícil demais!
Não posso rezar por eles.
— É natural, Cloé, e a natureza é forte — concordou Tomás. — Mas a graça
do Senhor é mais forte; além disso, pense no estado de alma medonho que é o da
pobre criatura fazendo todas as coisa que faz; deve agradecer a Deus por não ser
que nem ele, Cloé. Tenho certeza de que prefiro ser vendido dez mil vezes a ter
que prestar contas por tudo o que aquela criatura prestará.
— Eu também, muito — disse Jake. — Deus me livre, não é, Andy?
Andy balançou os ombros e deu um assovio aquiescente.
— Fico feliz pelo senhor não ter saído esta manhã, como planejava —
afirmou Tomás. — Isso teria me magoado mais do que ter me vendido, de
verdade. Talvez fosse natural para ele, mas teria sido muito difícil para mim, já
que conheço ele desde que era um bebê. Mas conheço o meu senhor muito bem,
e já estou começando a me resignar à vontade de Deus. O senhor não teve
alternativa; ele agiu certo, mas tenho medo de que as coisas não corram tão bem
durante a minha ausência. Não se pode esperar que o senhor fique de um lado
para o outro cuidando de tudo como eu faço. Os garoto tem boa intenção, mas
são muito desregrado. É isso o que me preocupa.
A sineta tocou e Tomás foi chamado até a sala.
— Tomás — disse o amo com gentileza —, quero que saiba que dei a este
cavalheiro títulos no valor de mil dólares para serem sacados se você não estiver
no lugar marcado; hoje ele irá cuidar de outros negócios e você terá o dia livre.
Vá aonde bem entender, homem.
— Obrigado, senhor — agradeceu Tom.
— E tome cuidado! — avisou o mercador de escravos. — Não me venha
com algum desses truques típicos de pretos; ou eu vou tirar cada centavo dele, se
você não estiver lá. Se ele escutasse o que eu digo, não dava confiança pra
nenhum de vocês, suas cobras escorregadias.
— Senhor — falou Tomás ficando bem ereto —, eu tinha apenas oito anos
de idade quando a velha senhora colocou ele em meus braços, e o senhor não
tinha nem um ano. “Aqui está”, ela disse, “Tomás, este aqui será o seu
sinhozinho; tome conta dele”, ela falou. E agora eu só quero perguntar pro
senhor: senhor, algum dia eu não cumpri minha palavra com o senhor, ou o
contrariei, especialmente desde que me tornei um cristão?
O Sr. Shelby estava levemente emocionado, e as lágrimas lhe encheram os
olhos.
— Meu bom homem — ele falou —, Deus sabe que está dizendo a verdade
e, se eu pudesse, não o venderia a ninguém neste mundo.
— E juro pela minha alma cristã — enfatizou a Sra. Shelby — que será
resgatado assim que, de alguma forma, eu arrumar o dinheiro. Senhor — ela se
dirigiu a Haley —, faça a gentileza de manter o registro de a quem o vender e me
avise.
— Sim, mas é claro — concordou o mercador de escravos. — Posso trazer
ele de volta daqui um ano se quiser, não há razão para se preocupar.
— Eu o comprarei, então, e pagarei a diferença — afirmou a Sra. Shelby.
— É claro — concordou o mercador de escravos. — Pra mim dá no mesmo.
Tanto faz comprar ou vender, desde que eu faça um bom negócio. Tudo o que
quero é viver, sabe como é, madame; penso eu que isso é o que todo mundo
quer.
O Sr. e a Sra. Shelby se sentiram incomodados e humilhados pela intimidade
atrevida do mercador de escravos, contudo ambos viam a absoluta necessidade
de não demonstrarem seus sentimentos. Quanto mais absurdamente sórdido e
insensível ele parecia, maior se tornava o pavor da Sra. Shelby ao pensar que ele
poderia conseguir capturar Elisa e o filho, e, obviamente, maior era a razão para
que o detivesse com todos os artifícios femininos possíveis. Assim, ela sorriu
graciosamente, assentiu, conversou de maneira amigável, e fez tudo o que podia
para fazer o tempo passar de modo imperceptível.
Às duas horas Sam e Andy trouxeram os cavalos até os postes,
aparentemente bem descansados e revigorados da corrida daquela manhã.
Sam estava lá, refeito e satisfeito depois de ter jantado, com uma abundância
de zelo e presteza oficiosa. Quando Haley se aproximou, ele estava se
vangloriando, todo garboso, a Andy sobre o sucesso evidente e eminente da
operação, agora que ele estava a ponto de “tomar conta de tudo”.
— Creio eu que seu senhor não tenha cachorros — disse Haley
pensativamente enquanto se preparava para montar.
— Tem um monte! — afirmou Sam triunfante. — Esse é o Bruno; ele é uma
fera! E, além disso, não existe um preto que não tenha um cachorro em casa.
— Mas será possível? — retrucou Haley, que disse algo mais também, com
relação aos cachorros, ao que Sam resmungou:
— Não tem precisão de xingar eles, de jeito maneira.
— Mas seu senhor não tem cachorros para caçar pretos! Sei muito bem que
ele não tem.
Sam sabia exatamente o que ele queria dizer, mas manteve uma cara de
humildade e simplicidade desesperada.
— Nossos cachorros farejam muito bem. Acho que eles seriam cachorro
desse tipo, mas nunca foram treinado. Mas eles corre muito atrás de qualquer
coisa, é só começar. Aqui, Bruno — ele chamou, assoviando para o pesado Terra
Nova, que veio correndo atrás deles desajeitadamente.
— Vá pro inferno! — disse Haley se levantando. — Vamos, monte no
cavalo!
Sam obedeceu e montou no cavalo e, enquanto montava, conseguiu
habilidosamente fazer cócegas em Andy, que caiu na gargalhada, para grande
indignação de Haley, que o cortou com golpe de seu chicote.
— Estou surpreso com você, Andy — Sam falou com uma terrível voz
grave. — Isso é negócio sério, Andy. Não pode ficar de brincadeira. Isso não é
jeito de ajudar o senhor.
— Vamos pegar o caminho que vai dar direto no rio — disse Haley
confiante, depois que chegaram às divisas da propriedade. — Conheço como
eles faz; aposto que pegaram o caminho pra ferrovia subterrânea.1
— Com certeza — concordou Sam. — A ideia é essa. O senhor Haley
acertou bem na mosca. Mas, tem dois caminho pro rio, a estrada velha e a
estrada nova. Qual das duas o senhor quer pegar?
Andy olhou inocentemente para Sam, surpreso por ouvir sobre esse novo
fato geográfico, mas instantaneamente confirmou o que ele dissera com uma
veemente reiteração.
— Porque — disse Sam — estou quase achando que Lizzy ia seguir pela
estrada velha, que é bem menos movimentada.
Haley, apesar de ser uma velha raposa e naturalmente propenso a desconfiar
de chacotas, achou muito legítimo o ponto de vista do escravo.
— Se vocês não fosse uns mentirosos dos infernos! — ele disse
contemplativamente enquanto ponderava os fatos por um momento.
O tom pensativo e reflexivo com que falavam sobre o assunto pareceu
encantar Andy profundamente, e ele ficou um pouco atrás, e ria tanto que quase
caiu do cavalo, enquanto o rosto de Sam assumia uma expressão imóvel da mais
profunda seriedade.
— Mas é claro — continuou Sam —, que o senhor pode fazer como bem
entender; vai pelo caminho direto, se o senhor acha melhor, pra nós tanto faz.
Pensando bem, acho que o caminho direto é mesmo o melhor, sem dúvida.
— Ela naturalmente ia preferir viajar sozinha — disse Haley pensando alto,
sem se importar com a observação de Sam.
— Não dá pra saber — disse Sam. — As mulher é caprichosa, nunca faz o
que nós acha que elas vai fazer; geralmente, elas faz o contrário. As mulher
sempre faz o contrário; e quando nós pensa que elas vai por um caminho, é
melhor ir pelo outro, e então com certeza nós encontra elas. Minha opinião é que
Lizzy pegou a estrada velha, então acho que nós deve ir pela estrada nova, a que
vai reto.
Essa visão genérica profunda do sexo feminino não pareceu fazer Haley se
dispor a tomar a estrada nova; e ele anunciou confiantemente que iria pela outra
estrada, e perguntou a Sam quanto tempo demorariam para chegar.
— Só um pouco mais pra frente — explicou Sam, dando uma piscadela para
Andy, e então acrescentou seriamente —, mas, pensando no assunto, acho
melhor nós ir pro outro lado. Nunca passei por esse caminho antes. É muito
ermo e nós pode se perder, ou sabe Deus o que nós pode encontrar.
— Não importa — disse Haley. — Vamos por esse caminho!
— Agora que estou pensando, acho que ouvi dizer que esse caminho estava
todo coberto pelo riacho, não é mesmo, Andy?
Andy não tinha certeza; ele apenas tinha “ouvido falar” a respeito, mas
nunca tinha passado por lá. Em resumo, ele não sabia de nada.
Haley, acostumado a equilibrar as probabilidades entre as mentiras de maior
ou menor magnitude, achou que o impasse era a favor da estrada velha antes
mencionada. A menção do que ele, a princípio, pensou ter sido involuntário da
parte de Sam, e suas tentativas confusas de dissuadi-lo a mudar de ideia,
mentindo desesperadamente ao pensar duas vezes, tinham o objetivo de ajudar
Elisa.
Assim, quando Sam indicou o caminho, Haley tomou-o prontamente,
seguido por Sam e Andy.
O caminho, de fato, era velho, uma antiga passagem para o rio, mas
abandonado há muitos anos depois da construção do novo pedágio. Era aberto
durante aproximadamente uma hora de viagem, e depois disso, cortado por
várias fazendas e cercas. Sam sabia disso perfeitamente, é claro, e a estrada
estivera fechada há tanto tempo que Andy nunca ouvira falar dela. Assim, ele
cavalgou junto com eles com um ar de humilde submissão, apenas resmungando
e vociferando ocasionalmente, que aquilo era “muito duro e ruim para os cascos
de Jerry”.
— Vou avisando — disse Haley. — Conheço vocês e não vão me fazer dar
meia volta e pegar a outra estrada com toda essa reclamação; então bico calado!
— O senhor faz como bem entender! — disse Sam, com submissão
deplorável, ao mesmo tempo piscando às escondidas para Andy, cujo prazer
agora estava a ponto de explodir.
Sam estava de bom humor, fingindo estar vigilante, às vezes dizendo ter
visto “o chapéu de uma mulher” no topo de algum lugar distante, ou chamando
Andy para perguntar “se aquela não era Lizzy, lá embaixo”, sempre fazendo
esses comentários em alguma parte pedregosa e inóspita da estrada, onde o
aumento súbito do passo era uma inconveniência especial para todas as partes
envolvidas, e, assim, mantendo Haley em um estado de agitação permanente.
Depois de cavalgar quase uma hora por esse caminho, o grupo fez uma
descida impetuosa e tumultuada até um curral pertencente a uma grande
propriedade. Não se via viva alma no lugar, todas as pessoas trabalhavam no
campo; no entanto, como o curral ficava nítido e claramente no meio da estrada,
era evidente que a jornada naquela direção tinha alcançado o seu destino final.
— O que eu disse pro senhor? — perguntou Sam, com um magoado ar de
inocência. — Como acha que um forasteiro pode saber mais sobre um lugar do
que os nativo que nasceu e cresceu aqui?
— Seus patifes! — gritou Haley. — Vocês sabiam disso tudo!
— E eu não disse que sabia e o senhor não acreditou em mim? Eu disse pro
senhor que estava tudo coberto e cercado, e achei que não conseguiríamos
passar. Andy me ouviu.
Era tudo inquestionavelmente verdadeiro para ser discutido, e o pobre
homem teve de engolir a raiva, disfarçando o máximo que podia, e os três deram
meia volta e continuaram a marcha até a estrada principal.
Como consequência desses vários atrasos, três quartos de hora tinham se
passado desde que Elisa colocara o filho para dormir na estalagem do vilarejo
quando o grupo entrou a cavalo no mesmo local. Elisa estava em pé na janela,
olhando para outra direção, quando o olho rápido de Sam a viu de relance. Haley
e Andy estavam alguns metros atrás. Diante da crise, Sam fingiu deixar seu
chapéu voar da cabeça, e soltou um grito alto e característico, que chamou a
atenção da fugitiva. Ela recuou de pronto; o grupo passou pela janela e deu a
volta até a porta da frente.
Para Elisa, mil vidas pareceram se concentrar naquele momento. O quarto
dela tinha uma porta lateral que dava para o rio. Ela pegou o filho, e desceu
correndo os degraus em direção à porta. O mercador de escravos avistou-a assim
que ela estava prestes a desaparecer na ribanceira do rio e, atirando-se do cavalo,
e gritando por Sam e Andy, foi atrás dela como um cão de caça atrás de um
cervo. Naquele momento de aflição, os pés dela mal pareciam tocar o chão, e
alcançou a beira da água em um minuto. Eles vinham bem no encalço dela, e,
tomada pela força que Deus concede apenas aos desesperados, com um grito
selvagem, deu um enorme salto, impossível exceto em uma situação insana e
desesperadora; e Haley, Sam e Andy gritaram instintivamente, e ergueram as
mãos enquanto ela saltava.
O enorme fragmento de gelo verde sobre o qual ela caíra virou e se quebrou
sob o peso dela, mas Elisa não ficou ali nem por um momento. Aos gritos e com
desesperada energia ela pulou até outro bloco de gelo, e então outro, tropeçando,
saltando, escorregando e ficando em pé novamente! Os sapatos se foram, as
meias se perderam dos pés, e o sangue marcava cada passo. Porém, ela nada via,
nada sentia, até que, vagamente, como um sonho, vislumbrou a margem de Ohio,
e um homem ajudando-a a subir a ribanceira.
— É uma garota corajosa, seja lá quem for! — exclamou o homem com um
cumprimento.
Elisa reconheceu a voz e o rosto do homem que era dono de uma fazenda
não muito distante da antiga casa dela.
— Ah, Sr. Symmes! Salve-me, por favor, salve-me, esconda-me —
implorava Elisa.
— Mas o que é isso? — perguntou o homem. — E você não é a criada dos
Shelby?
— Meu filho! Este garoto! Ele o vendeu. Lá está o dono dele agora — ela
disse apontando para a margem do Kentucky. — Ah, Sr. Symmes, o senhor
também tem um filho!
— É. Eu tenho mesmo — concordou o homem enquanto a puxava com força
e gentileza ribanceira acima. — Além disso, você tem coragem, e eu gosto disso.
Ao alcançarem o topo da ribanceira, o homem fez uma pausa.
— Ficarei feliz em fazer alguma coisa por você — ele disse. — Mas, não há
para onde possa levá-la. O melhor que posso fazer é dizer pra você ir pra lá —
ele falou apontando para uma enorme casa branca solitária, no final da rua
principal do vilarejo. — Vá até lá. Eles são pessoas bondosas. Se estiver em
perigo, eles vão ajudar. Eles fazem todo tipo de coisa.
— Deus o abençoe! — Elisa disse com fervor.
— Não tem precisão de agradecer, não mesmo — disse o homem. O que eu
fiz não é nada.
— Ah, e tenho certeza de que o senhor não contará a ninguém!
— Vá depressa, garota! Quem acha que sou? Claro que não contarei —
afirmou o homem. — Agora vá, vá como a garota ajuizada e boa que é. Você
merece sua liberdade e haverá de tê-la, no que depender de mim.
A mulher pegou a criança no colo e se afastou com passos suaves e firmes. O
homem ficou para trás, observando-a.
— Shelby talvez não ache que eu seja o melhor vizinho do mundo, mas o
que posso fazer? Se ele pegar uma das minhas escravas na mesma situação,
poderá me pagar na mesma moeda. Por alguma razão, nunca poderia desamparar
uma criatura sendo perseguida, sem fôlego e lutando para sobreviver, com
cachorros atrás dela. De mais a mais, não vejo motivo para ser um caçador e
ficar atrás dos escravos dos outros.
E assim falou esse pobre homem pagão do Kentucky, que nunca fora
instruído sobre as relações constitucionais e, consequentemente, fora obrigado a
agir de maneira cristianizada, que, tivesse ele estado mais bem situado e mais
bem informado, não o teria feito.
Haley permaceu como um espectador atordoado diante da cena, até que Elisa
desapareceu na ribanceira, quando ele virou-se com um olhar indiferente e
inquisidor para Sam e Andy.
— Aquele salto foi muito bom — disse Sam.
— Aquela garota tem o diabo no corpo! — exclamou Haley. — Saltava
como um gato selvagem!
— Bem — disse Sam coçando a cabeça —, espero que o senhor nos perdoe
por nós não ter ido atrás dela. Não estou preparado pra saltar assim, ah, não
mesmo! — E Sam deu uma risada rouca.
— Você ri! — disse o mercador de escravos com um grunhido.
— Deus o abençoe, senhor, mas não me aguentei — disse Sam, dando
espaço para o prazer até então guardado em sua alma. — Ela estava engraçada
pulando e caindo, o gelo quebrando. E ouvir o “pum”, “poft”, “splash”. E
levantando de novo! Meu Deus, e não é que conseguiu? — E Sam e Andy riram
até as lágrimas rolarem por seus rostos.
— Vou tirar esse sorrisinho das boca de vocês! — ameaçou o mercador de
escravos mirando o chicote por cima de suas cabeças.
Ambos se abaixaram, correram gritando até a ribanceira, e montaram nos
cavalos antes que Haley pudesse cumprir a promessa.
— Boa noite, senhor! — disse Sam com toda seriedade. — Acho que a sinhá
deve estar preocupada com o Jerry. O Sr. Haley não vai mais precisar de nós. A
sinhá não ia gostar que as criatura passasse a noite procurando Lizzy. — E com
uma cutucada brincalhona nas costelas de Andy, ele foi na frente, seguido pelo
último, a toda velocidade, o som das risadas de ambos levados vagamente pelo
vento.
8
A FUGA DE ELISA

Elisa fez sua fuga desesperada pelo rio ao cair do crepúsculo. A bruma cinza
da noite pairando lentamente sobre o rio a envolveu quando ela desapareceu na
ribanceira; a forte correnteza e as placas de gelo flutuantes se apresentaram
como uma barreira intransponível entre a fugitiva e o seu perseguidor. Haley,
dessa forma, voltou vagarosa e descontentemente para a pequena estalagem a
fim de pensar quais seriam os próximos passos. A mulher abriu a porta de uma
salinha coberta com um tapete puído, onde havia uma mesa com um oleado
preto e brilhante, variadas cadeiras de madeiras de espaldar alto, e algumas
imagens de gesso em cores resplandecentes sobre a prateleira acima de uma
lareira onde ardia um fogo fraco; um banco de madeira comprido estendia-se
desajeitadamente ao lado da chaminé, e ali Haley sentou-se para meditar sobre a
instabilidade das esperanças humanas e a felicidade em geral.
— Por que fui ter a ideia de comprar aquele garoto? — ele disse para si
mesmo. — Por isso estou aqui, nessa situação lamentável, como um preto — e
Haley aliviava-se repetindo para si mesmo uma litania de maledicências não
muito seletas, as quais, apesar de termos os melhores motivos para considerá-las
verdadeiras, iremos, por um questão de bom gosto, omitir.
Ele foi tirado de seu estado meditativo pela voz alta e dissonante de um
homem que aparentemente estava apeando do cavalo, à porta. Correu até a
janela.
— Pelos céus! Se isso não for o que as pessoas chamam de providência
divina, não sei o que é! — disse Haley. — Acho que é Tom Loker.
Haley saiu correndo. Ao lado do bar, no canto da sala, encontrava-se um
homem troncudo e musculoso, um metro e oitenta de altura, e de proporção
larga. Vestia um casaco de pele de búfalo costurado com o pelo para fora, o que
lhe dava uma aparência desgrenhada e assustadora, combinando perfeitamente
com sua fisionomia. Na cabeça e no rosto cada traço e cada linha de expressão
de brutalidade e violência resoluta davam sinais de estar prestes a se manifestar.
De fato, se nossos leitores pudessem vislumbrar um buldogue em estado
humano, de casaco e chapéu, teriam uma ideia exata do estilo e do efeito geral
de sua psique. Vinha acompanhado de um viajante que, em muitos aspectos, era
o oposto dele. O homem era baixo e esguio, flexível e astuto como um gatuno, e
tinha um ar observador e curioso em seus olhos negros e penetrantes, que, em
conjunto com todos os outros traços de seu rosto, pareciam evidenciar certa
simpatia; seu nariz comprido e fino alongava-se como se quisesse se meter na
natureza das coisas em geral; seu cabelo negro, liso e ralo estava grudado na
testa, e todos seus movimentos e gestos indicavam uma acuidade seca e
cautelosa. O homenzarrão serviu-se de um grande copo de aguardente pura, e
tomou-o sem dizer palavra. O homenzinho, em alerta, colocando a cabeça
primeiro de um lado, depois do outro, e fungando consideravelmente na direção
das várias garrafas de bebidas, finalmente, com uma voz fina e trêmula e com ar
de grande circunspecção, pediu um julepo de menta. Depois de servido, ele
pegou o copo e olhou-o com ar astuto e complacente, como um homem que
pensa ter feito a coisa certa e, resoluto, sorveu a bebida com goles curtos e bem
pensados.
— Ora, ora, quem diria que a boa sorte o traria até mim? Como vai, Loker?
— disse Haley adiantando-se e estendendo a mão para cumprimentar o
homenzarrão.
— Que diabos! — foi a resposta civilizada. — O que traz você aqui, Haley?
O homem rato, que tinha o nome de Marks, parou de beber no mesmo
instante e, colocando a cabeça um pouco para a frente, olhou astutamente para a
nova companhia, como um gato às vezes espreita uma folha seca se mexendo, ou
algum outro objeto que esteja perseguindo.
— Vou te contar, Tom, encontrar você foi a maior sorte do mundo. Estou
numa encrenca e preciso de sua ajuda.
— Hein? Ah, é claro — o complacente conhecido grunhiu. — Quando você
diz estar feliz em ver outra pessoa, pode ter certeza de que alguma coisa vem por
aí. Qual a encrenca?
— Você fez um amigo aqui? — perguntou Haley olhando desconfiado para
Marks. — Um parceiro, talvez?
— Fiz, sim. Aqui está, Marks! Este é o camarada que estava comigo em
Natchez.
— É um prazer te conhecer — disse Marks levantando uma mão magra e
longa, como a garra de um corvo. — Sr. Haley, não é?
— O próprio, senhor — respondeu Haley. — Bom, cavalheiros, já que
ficamos tão feliz em encontrar um com o outro, vou direto ao assunto que me
trouxe até aqui. E, agora, estalajadeiro — ele disse ao homem do bar — traga
água quente, açúcar e charutos, e muita aguardente da boa e vamos ter uma
conversa!
Então as velas foram acesas, o fogo atiçado a queimar na lareira e nossas três
personalidades sentadas ao redor de uma mesa redonda, bem à vontade com
todos os acessórios dignos de uma boa amizade, mencionados anteriormente.
Haley começou com um recital patético de seus infortúnios pessoais. Loker
calou-se e, grosseiro e irritado, ouviu-o com atenção. Marks, que preparava uma
bebida de acordo com seu gosto particular, agitado e ansioso, às vezes levantava
os olhos de seu trabalho e, colocando para a frente o nariz pontiagudo e o queixo
quase dentro do rosto de Haley, prestava muita atenção em toda a narrativa. A
conclusão do acontecimento parecia diverti-lo ao extremo, pois ele chacoalhava
os ombros e a barriga em silêncio, e contraía os lábios finos em sinal de grande
alegria interior.
— Então quer dizer que você está praticamente de mãos atadas? — ele
perguntou. — He! He! He! Isso foi muito engraçado.
— Esse comércio de crianças dá muita dor de cabeça — Haley lamentou-se.
— Se a gente pudesse conseguir um tipo de garota que não ligasse para as
cria — disse Marks —, vou te dizer, acho que seria a melhor coisa do mundo —
e Marks ilustrou a própria piada com o início de uma risadinha irônica.
— Pois é — continuou Haley. — Nunca consegui entender isso: as cria só dá
trabalho pra elas; era pra pensar que elas ia ficar feliz em se livrar deles, mas
não. Quanto mais trabalho os peste dá, mais elas se agarra neles.
— Bem, Sr. Haley — disse Marks —, passe a água quente, por favor. Sim,
senhor, o senhor acabou de dizer o que eu sempre digo. Uma vez comprei uma
garota, quando estava nesse negócio, uma rapariga bem feita e sem vergonha, e
bem esperta, que tinha um filho muito doente; tinha as costas tortas, ou alguma
coisa do tipo; e eu dei o moleque pra um homem que quis correr o risco de criar
ele, já que não lhe custou nada, mas, Deus do céu, deveria ter visto como a preta
ficou. E ela parecia querer ainda mais a criança por ela ser inválida, e aquilo
metia muito medo nela. Ela chorava, de verdade, e se arrastava, como se tivesse
perdido todo os amigo que tinha. Era ridículo de se ver. Meu Deus, é impossível
entender as mulher!
— A mesma coisa aconteceu comigo — contou Haley. — No verão passado,
no Rio Vermelho, negociei uma garota com uma criança aparentemente normal,
e os olho do filho era tão brilhante quanto os dela; mas, quando fui olhar de
perto, descobri que ele era cego. De fato, completamente cego. Então, vejam
bem, achei que não tinha nenhum problema em simplesmente passar o pretinho
pra frente sem dizer nada, e troquei ele por um barril de uísque; e quando fui
tirar ele da mãe, a preta virou um bicho. Foi bem no começo e eu ainda não tinha
acorrentado os preto. Então ela subiu em um fardo de algodão como uma gata,
arrancou uma faca da mão de um dos homens e, vou te contar, fez tudo voar
durante um minuto, até que viu que não ia adiantar nada; então ela simplesmente
se virou, mergulhou de cabeça dentro do rio, com o filho e tudo, um barulhão. E
nunca mais apareceu.
— Que balela! — retrucou Tom Locker, que ouvia aquelas histórias com
desdém reprimido. — Não passam de inúteis, os dois! Minhas preta não faz
esses tipo de coisa.
— É mesmo? E qual o segredo? — perguntou Marks, secamente.
— Segredo? — Ora bolas, compro uma preta, e se ela tem um filho pra ser
vendido, eu simplesmente vou até ela, coloco o punho na frente dela e digo
“Olha aqui, se dizer só uma palavra, arrebento a sua cara. Não quero ouvir uma
palavra, nem o começo de uma palavra”. Eu aviso elas: “Esse seu filho é meu,
não seu e você não tem nada a ver com ele. Vou vender ele na primeira
oportunidade, e não quero saber de escândalo, ou vou te fazer querer nunca ter
nascido”. Vou te contar, elas sabe que não estou pra brincadeira. Elas fica de
bico calado; e se alguma delas começa a gritar, aí… — e o Sr. Loker esmurra a
mesa com um barulho que explicou claramente o hiato.
— Isso é o que chamamos de ênfase — falou Marks, dando uma cotovelada
em Haley e caindo na risada novamente. — O Tom não é peculiar? He! He! He!
Apesar dos preto terem cabeça dura, o Tom sempre se faz entender. Eles nunca
têm dúvida do que ele quer dizer. Tom, se você não é o próprio demônio, é irmão
gêmeo dele, com certeza.
Tom recebeu o elogio com a devida modéstia, e sua expressão aos poucos
começou a parecer tão afável e consistente quanto sua natureza canina, como
diria John Bunyan.1
Haley, que estivera absorvendo à vontade o principal artigo da noite,
começou a sentir uma sensível elevação e alargamento de suas faculdades
morais, um fenômeno não muito incomum em cavalheiros de aspecto sério e
meditativo nas mesmas circunstâncias.
— Pois bem, Tom. — ele continuou. — Você realmente é muito ruim, e já
conversamos sobre isso em Natchez, e já provei a você que isso é tolice, e que
nesse mundo é melhor tratar bem os preto pra gente ter uma chance maior de ir
pro reino dos céus quando o pior chegar e quando não tiver mais nada pra fazer,
sabe como é.
— Conversa fiada! — retrucou Tom. — E e eu não sei!.? Não me faça ficar
enjoado com essa baboseira; meu estômago já está revirando — E Tom bebeu
metade de um copo de conhaque puro.
— Como sempre digo — falou Haley recostando-se na cadeira e
gesticulando enfaticamente —, sempre quis fazer negócio pra ganhar dinheiro,
acima de tudo, e dinheiro não é tudo porque todos têm uma alma. Não me
importo, agora, que me escutem dizer isso, e eu finalmente me dei conta disso,
então é melhor colocar pra fora. Eu acredito na religião, e qualquer dia desses,
quando as coisa estiver no lugar, tenho planos de cuidar da minha alma e de
todas essas questões eterna. Assim, qual a razão pra se fazer mais crueldade do
que o necessário? Não acho que seja prudente.
— Cuidar da alma? — Tom repetiu com desdém. — Olhe bem e veja se acha
alguma alma em você; poupe seu tempo desse tipo de trabalho. Se o diabo passar
o pente fino em você, não vai achar coisa alguma.
— Ah, Tom, não fique chateado — disse Haley. — Por que não aceita com
prazer quando estou falando pro seu próprio bem?
— Para com essa conversa — Tom respondeu com irritação. — Não suporto
esse falatório carola, isso me mata. Afinal de contas, qual é a diferença entre
você e eu? Que você tem um pouco mais de consideração, ou tem um pouco
mais de sentimento? Acha que não vejo a coisa toda? Que está tentando dar um
golpe no diabo e depois salvar a própria pele? E essa história de virar religioso,
depois de tudo, me irrita muito. A vida inteira fez pacto com o diabo e agora
quer se safar na hora de acertar as contas com Deus! Arre!
— Tenham calma, cavalheiros; não estamos aqui para falar disso —
interrompeu Marks. — Há muitas forma de se olhar para as coisa. O Sr. Haley é
um homem muito bom, sem dúvida, e tem sua própria consciência; e Tom, você
tem seu jeito, que também é bom. Mas discutir não vai levar a lugar nenhum.
Vamos ao que interessa. Agora, Sr. Haley, como será? O senhor quer que a gente
pegue essa preta?
— A garota pouco me importa; ela pertence ao Shelby. Quero o filho dela.
Fui um tolo de ter comprado o macaquinho!
— Você é sempre dado a fazer besteira — comentou Tom, irritado.
— Vamos lá, Loker, sem ofensa — conciliou Marks, lambendo os lábios. —
Será que não enxerga que o Sr. Haley está nos colocando diante de um bom
trabalho? Fica quieto; esse assunto é o meu forte. Essa garota, Sr. Haley, como
ela é? O que ela é?
— Clara e bonita, bem educada. Seria capaz de oferecer oitocentos ou até
mil dólares por ela e ainda sairia ganhando.
— Clara, bonita e bem educada! — exclamou Marks, seus olhos aguçados,
nariz e boca completamente envolvidos no assunto. — Olhe só, Loker, um
excelente começo. Vamos fazer o negócio aqui por nossa própria conta; pegamos
o moleque, claro, e entregamos ele para o Sr. Haley, depois levamos a garota pra
Orleans pra ser negociada. Não é uma beleza?
Tom, cuja bocarra pesada ficara aberta durante essa comunicação, agora a
fechara repentinamente, como um cão ao abocanhar um naco de carne, e parecia
digerir a ideia com prazer.
— Olha — Marks disse a Haley, mexendo na bebida como antes —, temos
muitos juízes ao longo de toda a costa, que atrapalham um pouco nossa linha de
negócio. O Tom faz a parte de bater e tudo isso, enquanto eu me apresento todo
bem vestido, bota brilhante, tudo em grande estilo quando o negócio é fazer o
juramento. Precisa ver — conta Marks, com um brilho de orgulho profissional
— como eu consigo me sair bem. Um dia sou o Sr. Twickem, de Nova Orleans;
noutro dia, acabo de chegar da minha fazenda no rio Pérola, onde tenho
setecentos pretos; ou então surjo como algum parente distante de Henry Clay ou
de algum outro figurão do Kentucky. Os talento varia, sabe como é. Agora, Tom
é excelente quando a gente precisa de bofetes e brigas; mas é terrível pra mentir,
Tom não consegue; não é da natureza dele. Mas, Deus, se existe alguém no país
que pode jurar sobre qualquer coisa e sobre tudo, e se encaixar em qualquer
situação e se sair bem com uma cara triste melhor do que eu, então gostaria de
conhecer esse sujeito, ah, como gostaria. Acredito, de coração, que podia me dar
bem e passar despercebido, mesmo se os juízes fosse mais severo do que o de
costume. Às vezes eu gostaria que eles fosse mesmo mais severo; seria muito
mais divertido se eles fosse, mais engraçado, sabe como é?
Tom Loker, que, como fizemos aparentar, era um homem de pensamentos e
movimentos lentos, aqui interrompeu Marks batendo com a mão sobre a mesa,
fazendo tudo ressoar novamente.
— Negócio fechado! — falou o grande homem.
— Deus o abençoe, Tom. Mas não precisava quebrar os copo por causa
disso! — disse Marks. — Guarde seus punho pra quando precisar deles.
— Senhores, eu também vou levar uma parte dos lucros? — perguntou
Haley.
— Pegar o garoto não é suficiente pra você? — perguntou Loker. — O que
você quer?
— Bem — disse Haley —, se eu der o negócio pra vocês, mereço uma
recompensa, digamos, dez por cento sobre o lucro, com toda as despesa paga.
— Não me venha com essa — disse Loker em voz alta, batendo na mesa
com seu punho pesado. — E eu não te conheço, Dan Haley? Nem pense em vir
pra cima de mim! Vamos supor que Marks e eu faça o negócio, apenas para
acomodar cavalheiros do seu tipo, e saímos sem nada? Nem pensar. Vamos ficar
com a mulher e você não abre o bico, senão ficamos com os dois, qual o
problema? Não mostrou o jogo pra nós? O negócio é tão livre pra nós quanto pra
você, assim espero. Se você ou o Shelby quiserem vir atrás da gente, olhe onde
os perdiz estava no ano passado; se encontrar eles ou a gente, serão muito bem-
vindos.
— Ah, bem, por favor, vamos deixar disso — disse Haley alarmado. — O
serviço é pegar o garoto; sempre fez negócio justo comigo, Tom, e sempre
manteve sua palavra.
— Sabe bem disso — retrucou Tom. — Eu não pretendo usar nenhum dos
seus pretexto, mas não vou mentir no meu acerto de contas com o próprio diabo.
O que eu digo que faço, eu faço, e sabe muito bem disso, Dan Haley.
— Deus do céu! Acabei de dizer isso, Tom — refutou Haley. — Só me
prometa trazer o garoto em uma semana, em qualquer lugar que escolher, isso é
tudo o que quero.
— Mas eu não quero só isso, nem de longe — esbravejou Tom. — Acha que
não aprendi nada fazendo negócio com você em Natchez, acha Haley? Aprendi a
segurar uma enguia quando a tenho na mão. Vai ter que adiantar cinquenta
dólares, pra começar, ou essa criança não será capturada. Conheço você.
— Tem um trabalho na mão que vai lhe trazer um lucro limpo em torno de
mil ou mil e seiscentos dólares. Não está sendo razoável! — contestou Haley.
— Sim, e quanto aos serviços que temos nas próximas cinco semanas, o que
a gente faz? E supondo que a gente deixe tudo pra abrir caminho na floresta e ir
atrás do garoto, e no final não pegamos a mulher, as mulher são sempre um
inferno pra ser pega, a gente faz o quê? Vai nos pagar alguma coisa? Não
consigo ver você fazendo isso, arre! Não, não; pode passar os cinquenta. Se a
gente fizer o trabalho, devolvo o dinheiro; se não, fica pelo trabalho que
tivemos; é justo, não é, Marks?
— Certamente, certamente — concordou Marks com um tom conciliatório.
— Isso é só um adiantamento, veja bem. He! He! He! Nós advogado, sabe como
é. Bem, a gente deve manter tudo tranquilo, fácil, entende? Tom vai trazer o
garoto pra você, em qualquer lugar que quiser, não vai, Tom?
— Se eu encontrar o fedelho, levo ele até Cincinnati e deixo ele no Granny
Belcher’s, no ancoradouro — afirmou Loker.
Marks sacou do bolso uma carteira ensebada, tirou uma folha comprida de
dentro, sentou-se e, com seus olhos astutos, começou resmungar sobre seu
conteúdo:
— Barnes, Condado de Shelby, jovem Jim, trezentos dólares por ele, vivo ou
morto. Edwards, Dick e Lucy, esposo e esposa, seiscentos dólares; a nega Polly e
duas crianças, seiscentos dólares por ela ou por sua cabeça.
— Só estou repassando os negócios, para ver se podemos assumir mais esse
compromisso. Loker — ele disse depois de uma pausa —, precisamos colocar
Adams e Spinger pra seguir todos esses aqui. Já faz tempo que estão na lista.
— Eles cobram muito caro — disse Tom.
— Eu cuido disso; são novatos no negócio e precisam trabalhar barato —
comentou Marks enquanto continuava a ler. — Três desses casos são fáceis, pois
tudo o que se precisa fazer é matar eles ou jurar que foram mortos; por isso eles
não deveriam cobrar muito caro. Os outros casos pode esperar um pouco — ele
disse dobrando o papel. — Vamos aos detalhes. E então, Sr. Haley, viu a garota
quando ela chegou do outro lado?
— Com certeza, tão claro quanto estou te vendo.
— E um homem ajudando ela a subir a ribanceira? — perguntou Loker.
— Vi com certeza.
— Provavelmente — disse Marks —, ela está escondida em algum lugar,
mas a questão é onde. Tom, o que me diz?
— Precisamos atravessar o rio esta noite, sem dúvida — disse Tom.
— Mas não há nenhum barco navegando — disse Marks. — O gelo está
terrível, Tom. Não é perigoso?
— Não sei de nada disso, só sei que precisa ser feito — Tom afirmou
decidido.
— Minha nossa — refutou Marks, inquieto —, será, como direi… — disse
ele, andando até a janela — está escuro como o breu, e Tom…
— A verdade é que você está com medo, Marks; mas não posso fazer nada
quanto a isso; você tem que ir. Se ficar aqui por um ou dois dias, a garota vai ser
levada pela ferrovia subterrânea até Sandusky ou arredores, antes de você ver.
— Ah, não; não estou com medo coisa nenhuma — refutou Marks. — É
que…
— O quê? — perguntou Tom.
— Bem, com relação ao barco. Não há nenhum barco.
— Ouvi a mulher dizer que tinha um vindo esta noite e que um homem iria
cruzar nele. É tudo ou nada; precisamos ir com ele — afirmou Tom.
— Imagino que têm bons cachorro — disse Haley.
— De primeira categoria — confirmou Marks. Mas, pra quê? Você não tem
nada com o cheiro dela.
— Sim, tenho — comentou Haley, triunfante. — Aqui está o xale que ela
deixou em cima da cama na hora da pressa; também largou seu chapéu.
— Isso é muita sorte — disse Loker. — Passa pra cá.
— Mas os cachorros podem machucar a garota, se encontrarem ela? —
perguntou Haley.
— Existe essa possibilidade — respondeu Marks. — Uma vez nossos
cachorros partiram um sujeito em pedacinhos, em Mobile, antes que a gente
fizesse eles parar.
— Vejam bem, neste caso a venda será feita com base na aparência, então
não convém usar eles — disse Haley.
— Entendo — disse Marks. — Além disso, se ela estiver escondida em
alguma casa, não vai adiantar nada. Os cachorros não serve pra nada quando as
criaturas são levadas pra essas propriedades. Eles só serve pras plantações,
quando os preto corre sozinho e não têm ajuda de ninguém.
— Bem — disse Loker que acabara de sair do bar pra fazer algumas
perguntas. — Eles estão dizendo que o homem está vindo com o barco; então,
Marks…
Aquele sujeito deu um olhar doloroso para os aposentos confortáveis do qual
estava saindo, mas levantou-se lentamente e obedeceu. Depois de trocar algumas
palavras de acordo, Haley, com relutância visível, passou os cinquenta dólares
para Tom, e o trio distinto se separou.
Se qualquer um de nossos leitores refinados e cristãos tem alguma objeção à
sociedade na qual esta cena se insere, imploremos para que comecem a rever
seus preconceitos a tempo. O negócio de caça a escravos, pedimos que se
lembrem, está elevado à categoria de profissão patriótica e legítima. Se toda a
extensão de terra entre o Mississipi e o Pacífico passa a ser um grande mercado
de corpos e almas, e a propriedade humana é uma tendência crescente neste
século xix, o mercador e o caçador de escravos podem vir a se tornar membros
de nossa aristocracia.

Enquanto essa cena se desenrolava na estalagem, Sam e Andy, em estado de


grande felicidade, continuavam o caminho de volta para a casa.
Sam sentia-se tão leve quanto uma pluma, e expressava sua exultação
através de todos os tipos de comemoração e comentários, com movimentos e
contorções estranhas de todo seu corpo. Às vezes ele se sentava de costas, com o
rosto virado para o rabo e a anca do cavalo, e então, com uma cambalhota e um
berro, virava-se de volta para o seu lugar, e fingindo uma cara triste, começava a
passar um sermão em Andy falando bem alto, fingindo-se de tolo e provocando
risadas. Imediatamente, estapeando-se com os próprios braços, ele caía na risada,
fazendo a velha floresta tremer enquanto eles passavam. No entanto, apesar de
todas essas evoluções, ele conseguiu manter os cavalos a toda velocidade até
que, entre dez e onze horas, seus cascos ressoaram nas pedras ao final da
varanda. A Sra. Shelby voou até a grade.
— É você, Sam? Onde eles estão?
— O Sr. Haley ficou descansando na estalagem; ele está exausto, sinhá.
— E Elisa, Sam?
— Bem, ela atravessou o Jordão. E, como diria, alcançou a terra de Canaã.
— Sam, o que quer dizer com isso? — perguntou a Sra. Shelby sem fôlego e
quase a ponto de desmaiar, quando se deu conta do possível significado dessas
palavras.
— Bem, sinhá, o Senhor protege seus filho. Lizzy atravessou o rio Ohio
como se o Senhor tivesse carregado ela numa carruagem de fogo e dois cavalo.
A veia religiosa de Sam era sempre incomumente intensa diante da presença
de sua senhora; e ele fazia grande uso das palavras e das imagens das Sagradas
Escrituras.
— Venha aqui, Sam — ordenou o Sr. Shelby, que também viera até a
varanda —, e conte à sua senhora tudo o que ela deseja saber. Venha, venha,
Emily — ele disse passando o braço em volta dela. — Está fria e trêmula; você
se envolve demais.
— Me envolvo demais? Sou mulher, e mãe! Não somos os dois responsáveis
diante de Deus por essa pobre garota? Meu Deus! Que esse pecado não recaia
sobre nós!
— Que pecado, Emily? Não fizemos mais do que fomos obrigados a fazer.
— Sinto uma enorme sensação de culpa com relação a isso — declarou a
Sra. Shelby. — Não consigo pensar racionalmente.
— Andy, negro, se mexe! — gritou Sam da varanda. — Leva esses cavalo
pra cavalariça; não está escutando o sinhô chamar? — e Sam logo apareceu, com
o chapéu de folha de palmeira na mão, em frente à porta da sala.
— Sam, agora nos conte exatamente o que aconteceu. — ordenou o Sr.
Shelby. — Se é que você sabe, onde está Elisa?
— Bem, senhor, eu vi ela com meus próprios olho, atravessando por cima do
gelo. Ela atravessou de um jeito difícil de acreditar; só pode ter sido um milagre.
E vi um homem ajudando ela a subir do lado de Ohio, e daí ela desapareceu na
escuridão.
— Sam, acho que isso está um pouco apocalíptico demais; esse milagre.
Atravessar por cima do gelo não é uma coisa muito fácil de se fazer —
comentou o Sr. Shelby.
— Fácil? Ninguém ia conseguir fazer isso sem a ajuda de Deus! Com
certeza — disse Sam. — É a pura verdade! O Sr. Haley, eu e Andy, chegamos à
estalagem perto do rio e eu estava um pouco na frente. Eu estava tão preocupado
em pegar Lizzy que não conseguia me controlar de jeito nenhum. Então cheguei
perto da janela da estalagem e lá estava ela, bem à vista, e eles estava vindo logo
atrás. Bom, deixei meu chapéu cair e gritei tão alto que até os morto escutou.
Claro que Lizzy ouviu e se escondeu quando o Sr. Haley passou pela porta.
Depois, vou contar, ela saiu pela porta do lado e escorregou pela ribanceira do
rio. O Sr. Haley viu ela e gritou, e aí ele, eu e Andy fomos atrás dela. Ela chegou
até o rio, e lá estava a correnteza passando com três metro de largura, e do outro
lado o gelo pra cima e pra baixo, como se fosse uma grande ilha. Nós chegou
bem perto dela e podia jurar que ele ia conseguir pegar ela, mas então ela deu
um grito e pulou, e o gelo fez “crack”, “blurp”, “crack”, “poft” e ela continuou
pulando igual uma cabrita. O pulo que ela deu foi coisa de Deus, essa é minha
opinião.
A Sra. Shelby, pálida de ansiedade, sentava-se em perfeito silêncio enquanto
Sam contava a história.
— Deus seja louvado, Elisa não está morta! — ela disse. — Mas onde está a
pobre criatura?
— O Senhor vai proteger ela — disse Sam, erguendo os olhos piedosamente.
— Como disse, isso é uma providência divina, como a sinhá sempre ensinou.
Todas as coisa é instrumento da vontade de Deus. Mas, hoje, se não fosse por
mim, ela já teria sido pega umas dúzia de vez. Não fui eu que soltei os cavalo
hoje de manhã, e fiquei correndo atrás deles até a hora do jantar? E não fui eu
que levei o Sr. Haley dez quilômetros pra fora da estrada, se não ele tinha
pegado Lizzy tão fácil, igual um cachorro pega um escravo? Isso tudo é
providência divina.
— Há alguns tipos de providências que você poderia deixar de lado, senhor
Sam. Não admito esse tipo de prática com os cavalheiros em minha casa —
ralhou o Sr. Shelby com o máximo de firmeza que conseguiu diante das
circunstâncias.
É tão inútil fingir estar zangado com um negro quanto com uma criança;
ambos, instintivamente, percebem o verdadeiro estado das coisas, apesar de
todas as tentativas de se provar o oposto. E Sam era esperto o bastante para isso,
ainda que tenha assumido um ar de tristeza sofrida, e abaixado os cantos dos
lábios em sinal de arrependimento.
— O senhor está certo; tem razão, foi muito feio o que fiz, não tem o que
discutir. E, claro que o senhor e a sinhá nunca iam apoiar esse tipo de coisa. Sei
disso, mas um preto maldito como eu fica muito tentado a agir mal de vez em
quando, principalmente com sujeitos metidos como aquele tal do Sr. Haley. Ele
nem de longe é um cavalheiro; qualquer um que foi criado como eu fui consegue
ver isso.
— Bem, Sam — disse a Sra. Shelby. — Como você aparentemente tem
noção de seus erros, pode ir agora e diga à Mãe Cloé que pode lhe dar um pouco
daquele presunto frio que sobrou do jantar de hoje. Você e Andy devem estar
com fome.
— A sinhá é boa por demais pra gente — disse Sam, fazendo uma mesura
exagerada.
Pode-se perceber, como já fora antes descrito, que o senhor Sam tinha um
talento nato, o qual sem dúvida o teria levado a uma posição eminente na vida
política — um talento para tirar vantagem de tudo e aproveitar tudo em benefício
de sua própria glória e enaltecimento. E, acreditando ter demonstrado piedade e
humildade, para satisfação de todos na sala, ele enfiou seu chapéu de folha de
palmeira na cabeça, com um ar um tanto libertino e independente, e seguiu até os
domínios da Mãe Cloé, com a intenção de se refestelar na cozinha.
— Agora que tenho a chance — Sam disse a si mesmo —, vou contar tudo
pra essa negaiada! Vão ficar de boca aberta!
Vale notar que um dos maiores divertimentos de Sam era acompanhar seu
senhor a todos os tipos de reuniões políticas onde, empoleirado em alguma
cerca, ou encarapitado no alto de alguma árvore, ele sentava-se observando os
oradores, aparentemente com grande deleite, e depois, indo ter com os vários
irmãos de sua própria cor reunidos no local, ele os instruía e os entretinha com as
paródias e imitações mais engraçadas, todas reproduzidas com seriedade e
solenidade imperturbáveis. E, apesar de sua plateia ser geralmente daqueles de
sua própria cor, não era raro que outros de pele mais clara se juntassem em volta
dele para ouvir, rir e aplaudir, para grande orgulho de Sam. De fato, Sam
considerava a oratória sua vocação e nunca deixava escapar uma oportunidade
de exibir seu talento.
Entre a Mãe Cloé e Sam houve, desde sempre, um tipo de animosidade
crônica, ou, talvez, uma indiferença natural. No entanto, enquanto pensava na
comida, como a base necessária e óbvia de suas operações, Sam resolveu,
naquela ocasião, mostrar-se eminentemente conciliatório. Ele sabia muito bem
que as “Ordens da sinhá” seriam seguidas à risca, mas levaria uma vantagem
considerável se também conseguisse conquistar o espírito da cozinheira. Assim,
ele apareceu diante da Mãe Cloé com uma expressão um tanto quanto humilde e
resignada, como alguém que passou por dificuldades imensuráveis em nome de
um companheiro perseguido. A isso se acrescentava o fato de que a sinhá o
mandara vir diretamente até a Mãe Cloé lhe pedir qualquer coisa que quisesse
para equilibrar os sólidos com os líquidos, e assim, reconhecer
inequivocadamente o mérito e a supremacia da cozinheira e tudo o que se
relacionava à cozinha.
A tática funcionou de acordo. Nenhuma outra pessoa mais pobre, simples e
virtuosa jamais fora tão bajulada pelas atenções de um político prestes a ser
eleito do que a Mãe Cloé foi capturada pelos modos suaves de Sam; e se ele
próprio fosse o filho pródigo, não teria encontrado maior generosidade maternal;
assim, logo se encontrou feliz e glorioso, diante de uma grande panela de ferro
contendo todo tipo de olla podrida de tudo o que tinha aparecido na mesa nos
últimos dois ou três dias. Bocados saborosos de presunto, pedaços dourados de
pão de milho, fragmentos de tortas de todas as formas geométricas possíveis,
asas, moelas e coxas de frango, tudo misturado numa confusão pitoresca; e Sam,
como monarca de todas as iguarias diante de si, sentou-se com seu chapéu de
folha de palmeira do lado esquerdo, e Andy, a quem falava arrogantemente, do
lado direito.
A cozinha estava repleta de escravos de várias barracas, que vieram correndo
e se amontoaram para ouvir como terminaram as peripécias do dia. Aquele era o
momento de glória para Sam. A história do dia foi contada e recontada com
todos os tipos de adornos e polimentos necessários para aumentar o efeito; pois
Sam, assim como alguns de nossos famosos diletantes, nunca deixava uma
história perder seu brilho ao passar por suas mãos. Gargalhadas estrondosas
pontuavam a narrativa, e eram imitadas e prolongadas pelas muitas crianças
pequenas que se espalhavam pelo chão ou se enfiavam pelos cantos. No auge da
agitação e das gargalhadas, Sam, no entanto, manteve uma gravidade imutável, e
só de vez em quando erguia os olhos, dando à distinta plateia olhares
absolutamente engraçados, sem perder a elevação sentenciosa de sua oratória.
— Sim, senhores, meus companheiro — disse Sam erguendo uma perna de
peru com veemência. — Vejam bem, o que eu acabei de fazer lá foi defender
nós, todo mundo, sim, vocês tudo. Pois tentar pegar um de nós é como tentar
pegar todos; o princípio é o mesmo, isso é muito claro. E qualquer um desses
sujeito que vier meter o nariz entre nós, bem, vai ter que se ver comigo; eu sou o
sujeito com quem ele vai ter que lidar, eu sou o sujeito que todos vocês deve vir,
meus irmão. Eu vou defender seus direito até o último suspiro!
— Mas, Sam, você me disse esta manhã que ia ajudar o senhor a capturar a
Lizzy; pra mim sua conversa não está fazendo sentido nenhum — disse Andy.
— Estou te avisando, Andy — disse Sam com terrível superioridade —, não
fale do que você não sabe. Garotos como você, Andy, têm boas intenção, mas
não conseguem cogitar os grandes princípio da ação.
Andy pareceu confuso, particularmente com a complicada palavra cogitar, e
a maioria dos membros mais jovens da companhia pareceu dar o caso por
encerrado, quando Sam prosseguiu:
— Aquilo foi consciência, Andy. Quando pensei em ir atrás de Lizzy, achei
mesmo que fosse isso que o senhor queria. Quando descobri que a sinhá queria o
contrário, tive mais consciência ainda, porque é mais vantajoso os escravo ficar
do lado da sinhá. Então, veja só, fui persistente dos dois lado, e me fiei na
consciência e mantive meus princípio. Sim, princípio — explicou Sam, atirando
um pescoço de frango com força. — De que vale os princípio se a gente não se
prender neles, isso é o que queria saber. Vá lá, Andy, pode ficar com aquele
osso. Ainda tem um pouco de carne sobrando.
Com a plateia boquiaberta diante de suas palavras, Sam não podia fazer
outra coisa senão continuar falando.
— Pois a questão da perseverança, meus irmão preto — disse Sam com um
ar de quem estava entrando em um assunto de difícil compreensão —, é que a
perseverança não é uma coisa muito clara pra maioria das pessoa. Vejam só,
quando uma pessoa sustenta uma coisa por um dia e uma noite, e faz o contrário
depois, as pessoa vê, e com razão, que aquela não é uma pessoa perseverante.
Andy, me passa aquele pedaço de pão de milho. Mas, vamos olhar pra isso.
Espero que os cavalheiro e os ser do sexo frágil me desculpe por usar um tipo de
comparação tão ordinária. Por exemplo, estou tentando subir no alto do monte de
feno. Bem, coloco minha escada deste lado, e não consigo; mas, porque não
tento ir lá de novo, mas coloco minha escada do lado contrário, isso quer dizer
que não sou perseverante? Sou perseverante em querer subir por qualquer um
dos lado da minha escada; vocês tudo não consegue ver isso?
— É a única coisa na qual você foi perseverante, Deus sabe disso —
murmurou a Mãe Cloé, que estava ficando bem irrequieta; a alegria da noite
sendo, para ela, como dizia a Bíblia, como “sal sobre a ferida”.
— É claro que sim! — disse Sam levantando-se cheio de comida e glória,
tentando fechar o discurso. — Sim, meus caro senhor e senhora do outro sexo
em geral, eu tenho princípios, tenho orgulho deles; estão comigo, agora e pra
sempre. Tenho princípios, e defendo eles como defendo um forte. Não me
importava se me queimasse vivo, eu me entregava e ia dizer: “Aqui venho pra
derramar minha última gota de sangue pelos meus princípio, pelo meu país,
pelos interesse geral da sociedade!”.
— Pois bem — retrucou a Mãe Cloé — um de seus princípio vai ter que ser
ir pra cama esta noite, e não ficar deixando toda essa gente acordada até de
manhã. Toda as criança que não quer levar uma palmada, some daqui agora
mesmo!
— Negaiada! Todos vocês! — Sam chamou, abanando seu chapéu de palha
caridosamente. — Eu abençoo vocês; vão pra cama e sejam bonzinho.
E, com essa benção patética, a reunião se dispersou.
9
EM QUE SE PERCEBE QUE UM
SENADOR NÃO PASSA DE UM
HOMEM COMUM

A claridade do fogo ardente reluzia sobre o tapete e o chão da sala


aconchegante, e refletia nas bordas das xícaras de chá e do bule bem lustrado,
enquanto o senador Bird tirava as botas e se preparava para enfiar os pés dentro
de um novo e lindo par de chinelas nos quais a esposa trabalhara durante o
período em que ele estivera fazendo a excursão senatorial. A Sra. Bird, imagem
perfeita da satisfação, supervisionava a arrumação da mesa e, de quando em
quando, ralhava com as peraltices das crianças que se agitavam com todos
aqueles modos de saltos e brincadeiras indizíveis que sempre surpreenderam as
mães desde o grande dilúvio.
— Tom, não mexa na tranca da porta; já é um homenzinho! Mary, Mary!
Não puxe o rabo do gato; coitadinho! Jim, desça já da mesa! Não, não! Ah, você
não sabe que agradável surpresa é vê-lo esta noite, meu querido! — ela
finalmente falou quando teve espaço para dizer algo ao marido.
— Claro, claro, achei que pudesse dar um pulo até aqui, passar a noite e
gozar de um pouco do conforto do lar. Estou exausto e minha cabeça está
doendo!
A Sra. Bird deu uma olhadela para a garrafa de cânfora que estava no
armário semiaberto, e pareceu refletir sobre uma maneira de acessá-la, mas o
marido se interpôs.
— Não, não, Mary, sem remédio! Uma xícara de seu chá quente e gostoso, e
um pouco do carinho da família é tudo do que preciso. Que negócio cansativo
que é o legislar!
E o senador sorriu, como se gostasse da ideia de considerar-se fazendo um
sacrifício pelo seu país.
— Bem — disse a esposa, depois de o serviço de chá estar se tornando um
tanto maçante —, e o que eles têm feito no Senado?
Era muito incomum que a Sra. Bird se preocupasse com o que estava
acontecendo na Assembleia Legislativa, considerando-se sabiamente que ela
própria tinha muito a fazer. Assim, o Sr. Bird abriu os olhos em surpresa e
respondeu:
— Nada de grande importância.
— Bem, mas é verdade que passaram uma lei proibindo as pessoas de dar
comida e bebida para aqueles miseráveis de cor que aparecem por aqui? Ouvi
dizer que estavam falando sobre uma lei desse tipo, mas não achei que nenhum
legislador cristão pudesse aprová-la!
— Ah, Mary! E não é que de repente você resolveu ser uma política?
— Que bobagem! Geralmente eu não daria um figo podre pela politicagem
de vocês, mas acho isso muito cruel e anticristão. Espero, meu querido, que uma
lei desse tipo não tenha sido aprovada.
— Foi aprovada uma lei que proíbe as pessoas de ajudarem os escravos
fugidos do Kentucky, minha querida; tantas coisas têm sido feitas por esses
abolicionistas irresponsáveis que nossos companheiros em Kentucky estão um
pouco sobressaltados, e parece necessário, além de ser cristão, que algo seja feito
pelo nosso Estado para que os ânimos se acalmem.
— E qual é a lei.? Ela não nos proíbe de dar abrigo a essas pobres criaturas
por uma noite, ou de lhes dar um pouco de comida e algumas roupas velhas, e de
deixá-las irem sossegadas cuidarem de suas vidas, não é?
— Bem, é isso mesmo, querida; isso seria considerado ajudar e ser cúmplice
de um crime.
A Sra. Bird era uma mulherzinha tímida e frágil, de mais ou menos um
metro e meio de altura, olhos azuis tranquilos e pele de pêssego, com a voz mais
macia e doce do mundo; no que tange à coragem, é sabido que um galo da índia
a deixava assustada ao primeiro cacarejo, e o cão de guarda da casa, não muito
bravo, a fazia submissa só de mostrar-lhe os dentes. O esposo e os filhos eram
seu mundo, e nesse mundo ela reinava mais com súplicas e persuasão do que
com ordens e argumentação. Apenas uma coisa era capaz de tirá-la do sério, e
aquela provocação aguçava seu lado não tão gentil e simpático; qualquer coisa
em forma de crueldade a enfurecia, o que era ainda mais alarmante e
inexplicável, em contraste com sua natureza tipicamente mansa. Em geral, era a
mãe mais indulgente e tranquila que havia no mundo, mas seus filhos ainda
guardavam na memória o castigo veemente que ela lhes impusera ao encontrá-
los mancomunados com alguns garotos mal educados da vizinhança,
apedrejando um gatinho indefeso.
— Vou lhe contar uma coisa — o sinhozinho Bill costumava dizer —, aquela
vez eu fiquei com medo. A mamãe veio até mim de um jeito que pensei que ela
estivesse louca; levei uma surra de chicote e fui para a cama, sem jantar, antes
mesmo de saber o que estava acontecendo. Depois disso ouvi a mamãe chorando
do lado de fora da porta, o que me fez sentir ainda pior. Vou lhe contar — ele
dizia —, nós nunca mais jogamos pedra em outro gato!
Na presente ocasião, a Sra. Bird levantou-se rapidamente, com as bochechas
bem ruborizadas, o que tornava sua aparência geral mais bonita, e caminhou até
o marido com um ar resoluto e perguntou com um tom determinado:
— Muito bem, John. Quero saber se você acha que uma lei dessas é correta e
cristã.
— Não vai atirar em mim agora se eu disser que sim, não é, Mary?
— Nunca imaginei que seria capaz de fazer isso, John. Você votou a favor?
— Receio que sim, minha adorável política.
— Devia sentir vergonha, John! Pobres dessas criaturas sem-teto e
miseráveis! É uma lei vergonhosa, cruel e abominável, e irei desobedecê-la à
primeira oportunidade; e espero tê-la, realmente espero! O mundo está mesmo
perdido se uma mulher não puder oferecer um prato de comida e uma cama a
pobres criaturas famintas, só por que são escravas, e têm sido abusadas e
oprimidas a vida inteira, as coitadas!
— Mas, Mary, por favor, me ouça. Seus sentimentos são válidos, querida, e
interessantes e eu a amo por ser assim; todavia, minha cara, não devemos
permitir que nossos sentimentos se sobreponham à nossa razão; deve levar em
conta que esta não é uma questão de sentimentos pessoais; há um grande
interesse público envolvido; há um certo estado de agitação pública crescendo, e
devemos colocar nossos sentimentos pessoais de lado.
—John, eu não sei nada sobre política. Mas sei ler a Bíblia; e lá está escrito
que devo dar de comer a que tem fome, vestir os que estão nus e confortar os
aflitos. E tenho toda intenção de seguir a Bíblia.
— Mas e se isso gerar grandes prejuízos à sociedade…
— Obedecer a Deus nunca trará prejuízos à sociedade. Tenho certeza de que
isso não é possível. É mais seguro, sempre, agir conforme as leis de Deus.
— Ouça-me, Mary, e lhe darei um argumento irrefutável para mostrar…
— Ah, que bobagem, John! Pode falar a noite toda e não me convencerá! Eu
é que vou lhe dar um exemplo, John: você seria capaz de virar as costas a um
pobre coitado, com fome e com frio, que aparecesse em sua porta, simplesmente
porque é um foragido? Seria?
Verdade seja dita que nosso senador era um homem de natureza
particularmente humana e acessível, e dar as costas a alguém que estava em
apuros nunca fora o seu forte; e o pior de tudo neste argumento é que sua esposa
sabia disso e, claro, estava atacando um ponto indefensável. Assim, ele precisou
recorrer aos métodos costumeiros de ganho de tempo que os casos desse tipo
exigiam. Ele disse “ahã” e tossiu várias vezes, tirou um lenço do bolso e
começou a limpar os óculos. A Sra. Bird, percebendo a condição indefesa do
território inimigo, não tinha outra escolha a não ser tirar vantagem da situação.
— Eu gostaria de vê-lo fazendo isso, John. Gostaria mesmo! Dar as costas
para uma mulher ao relento em uma tempestade de neve, por exemplo; ou talvez
mandá-la entrar e depois prendê-la; seria capaz? E ainda pensaria estar sendo de
grande ajuda!
— É óbvio que isso seria um dever penosíssimo — começou o Sr. Bird em
um tom moderado.
— Dever, John.? Não use essa palavra! Sabe muito bem que não é um dever;
não pode ser uma tarefa! Se as pessoas querem evitar que seus escravos fujam,
que os tratem bem, essa é minha doutrina. Se eu tivesse escravos (e espero nunca
tê-los), duvido que eles iriam querer fugir de mim, ou de você, John. Acredite, as
pessoas não fogem quando estão felizes; e quando elas fogem, as pobres
criaturas já sofrem o suficiente com o frio, a fome e o medo, sem que ninguém
se vire contra eles. E com lei ou sem lei, eu nunca farei isso, que Deus me ajude!
— Mary, Mary! Minha querida, vamos raciocinar juntos.
— Eu odeio raciocinar, John, principalmente sobre assuntos desse tipo.
Vocês políticos têm uma maneira de complicar as coisas mais simples; e, na
prática, nem vocês mesmos acreditam no que dizem. Eu o conheço bem o
suficiente, John. Não acredita que isso seja correto mais do que eu; e não faria
nada diferente de mim.
Nessa encruzilhada crítica, o velho Cudjoe, o negro faz-tudo, colocou a
cabeça na porta e pediu que a sinhá fosse até a cozinha, enquanto nosso senador,
visivelmente aliviado, olhava para sua esposa delicada com um estranho misto
de surpresa e humilhação, e sentando-se na poltrona, começou a ler o periódico.
Um momento depois, ouvia-se a voz da esposa na porta, em um tom ligeiro e
determinado:
—John, John, preciso que venha aqui um momento.
Ele colocou o periódico de lado e foi até a cozinha, e olhou absolutamente
estupefato para a visão que se apresentava diante dele: uma mulher jovem e
esguia, com roupas rasgadas e congeladas, sem um pé de sapato, e com uma
meia rota e ensanguentada, encontrava-se deitada em cima de duas cadeiras,
inconsciente. Havia traços da raça desprezada no rosto dela, todavia ninguém
podia deixar de notar sua beleza triste e tocante, ainda que sua aparência
petrificada, gélida, imóvel e mortificada causasse arrepios ao senador. Ele
segurou o fôlego e permaneceu em silêncio. Sua esposa e sua única doméstica
negra, a velha Mãe Dinah, tentaram aplicar medidas que restaurassem a vida da
jovem, enquanto o velho Cudjoe colocara o garotinho em cima de seus joelhos e
se ocupava de lhe tirar os sapatos e as meias e de esfregar seus pezinhos gelados.
— Ela é uma visão! — disse a velha Dinah misericordiosamente. — Acho
que foi o calor que fez ela desmaiar. Ela estava totalmente boa quando entrou, e
perguntou se podia se aquecer um pouquinho; e eu estava perguntando de onde
ela vinha e então ela caiu desmaiada. Acho que nunca fez trabalho pesado, pelo
jeito das mão dela.
— Pobre criatura! — disse a Sra. Bird, piedosamente, enquanto a mulher
abria lentamente os olhos grandes e escuros e olhava vagamente para ela. De
repente, uma expressão de agonia lhe atravessou o rosto e ela levantou de súbito,
dizendo:
— Ah, meu Harry! Eles o pegaram?
O garoto, neste momento, pulou do joelho de Cudjoe, correu para o lado dela
e levantou os braços.
— Ah, ele está aqui! Ele está aqui! — ela exclamou.
— Ah, madame! — ela se dirigiu a Sra. Bird com desespero na voz. — Por
favor, nos proteja! Não deixe que eles o levem!
— Ninguém a machucará aqui, minha filha — a Sra. Bird assegurou-a. —
Você está a salvo; não tenha medo.
— Deus a abençoe! — disse a mulher, cobrindo o rosto e soluçando,
enquanto o garotinho, vendo-a chorar, tentava subir em seu colo.
Com artimanhas gentis e femininas que ninguém melhor do que a Sra. Bird
conhecia, a pobre mulher logo acalmou-se. Providenciaram uma cama
temporária no cômodo, perto do fogo e, pouco tempo depois, ela caiu no sono
pesado, com a criança, que parecia tão cansada quanto ela, dormindo
profundamente em seu braço, pois a mãe resistira, com uma ansiedade nervosa,
às tentativas mais gentis de tirá-lo dela e, mesmo dormindo, seu braço
circundava o filho com um laço apertado, como se, mesmo assim, não pudesse
ser persuadida de seu abraço vigilante.
O Sr. e a Sra. Bird voltaram à sala, onde, por mais estranho que possa
parecer, não se referiram, nem um, nem o outro, à conversa anterior. A Sra. Bird
ocupou-se com seu trabalho manual e o Sr. Bird fingiu ler o periódico.
— Gostaria de saber quem e o que ela é! — disse o Sr. Bird, finalmente, ao
abaixar o periódico.
— Quando ela acordar e se sentir mais descansada, veremos — respondeu a
Sra. Bird.
— Estive pensando, mulher! — disse o Sr. Bird depois de refletir em
silêncio sobre o periódico.
— Sim, querido.
— Ela poderia vestir um de seus vestidos, não poderia, se abaixar um pouco
a barra? Ela parece um pouco maior do que você.
Um sorrisinho perceptível brilhou no rosto da Sra. Bird quando ela
respondeu:
— Veremos.
Outra pausa, e o Sr. Bird quebrou o silêncio novamente:
— Mulher?
— O que é agora?
— Tem aquela velha capa de lã e seda que você guarda de propósito para me
cobrir quando tiro minhas sonecas à tarde. Poderia muito bem dar aquilo a ela;
precisa de roupas.
Neste momento, Dinah deu uma olhada para dentro a fim de dizer que a
mulher estava acordada e queria ver a sinhá.
O Sr. e a Sra. Bird foram até a cozinha, seguidos pelos dois garotos mais
velhos, o mais novo, a esta altura, já tendo sido colocado em segurança na cama.
A mulher agora estava sentada ereta no banco de madeira perto da lareira.
Olhava firmemente para o fogo, com uma expressão tranquila de coração
partido, muito diferente de sua agitação anterior.
— Quer falar comigo? — perguntou a Sra. Bird com um tom suave. —
Espero que esteja se sentindo melhor agora, minha filha.
Um suspiro trêmulo e prolongado foi a única resposta; mas ela ergueu os
olhos escuros e os fixou na mulher com uma expressão de abandono e súplica
tão grandes, que encheram de lágrimas os olhos da delicada senhora.
— Não precisa ter medo de nada; aqui somos amigos, minha filha! Diga-me
de onde veio e o que você quer — ela disse.
— Vim do Kentucky — disse a mulher.
— Quando? — perguntou o Sr. Bird, assumindo o interrogatório.
— Esta noite.
— Como chegou até aqui?
— Atravessei por cima do gelo.
— Atravessou por cima do gelo? — disseram todos os presentes.
— Sim — a mulher respondeu vagarosamente. — Atravessei. Com a ajuda
de Deus, atravessei por cima do gelo; pois eles estavam atrás de mim, bem atrás,
e não tinha outro jeito!
— Meu Deus, sinhá! — disse Cudjoe — O gelo está todo quebrado, boiando
de um lado para ao outro na água.
— Eu sei que estava, eu sei disso! — ela disse desesperadamente. — Mas eu
atravessei! Nunca imaginei que pudesse, não achei que fosse conseguir chegar
do outro lado, mas não me importei! Morreria de qualquer jeito, se não tentasse.
Deus me ajudou; ninguém sabe o quanto Deus pode ajudá-lo até tentar —
afirmou a mulher com olhos flamejantes.
— Você era uma escrava? — perguntou o Sr. Bird.
— Sim, senhor. Pertencia a um homem do Kentucky.
— Ele a tratava mal?
— Não, senhor. Ele era um senhor muito bom.
— E sua senhora a tratava mal?
— Não, senhor! Não! Minha senhora sempre foi muito boa para mim.
— E então o que a faria abandonar um bom lar e fugir, e enfrentar todos
esses perigos?
A mulher olhou para a Sra. Bird com um olhar escrutinador e profundo, e
não lhe passou despercebido que ela vestia trajes de luto.
— Madame — ela perguntou bruscamente —, a senhora já perdeu um filho?
A pergunta foi inesperada e foi como mexer em uma ferida ainda aberta;
pois fazia apenas um mês desde que uma querida criança da família tinha sido
enterrada.
O Sr. Bird virou-se e caminhou em direção à janela, e a Sra. Bird rompeu em
lágrimas, mas, recobrando a voz, ela respondeu:
— Por que pergunta isso? Eu perdi um filho.
— Então saberá da minha dor. Eu perdi dois, um depois do outro, deixei-os
enterrados lá de onde fugi; e me restou só este aqui. Nunca dormi uma noite sem
ele; ele era tudo o que eu tinha. Ele era meu conforto e meu orgulho, dia e noite,
e, madame, eles iam tirá-lo de mim, vendê-lo, vendê-lo no Sul, madame,
completamente sozinho, um bebê que nunca ficou nenhum dia da vida longe da
mãe! Eu não aguentaria, madame. Sabia que não serviria para mais nada se isso
acontecesse. E quando soube que os papéis tinham sido assinados, e que ele
tinha sido vendido, eu o peguei e fugi noite adentro; e eles vieram atrás de mim,
o homem que o comprou e alguns dos negros do meu senhor, e estavam bem no
meu encalço e eu os ouvi. Pulei em cima do gelo e, como eu atravessei, não sei;
a primeira coisa que vi foi um homem me ajudando a subir a ribanceira.
A mulher não soluçou nem derramou uma lágrima. Ela chegara a um lugar
onde as lágrimas eram secas; mas todos ao redor dela, cada um à sua maneira,
mostravam sinais de profunda simpatia.
Os dois garotinhos, depois de uma busca desesperada dentro dos bolsos, à
procura daqueles lenços que as mães sabem que nunca serão encontrados ali, se
jogaram inconsolavelmente nas saias do vestido da mãe, onde soluçavam,
limpavam os olhos e o nariz à vontade. A Sra. Bird tinha o rosto levemente
escondido pelo lenço de bolso; e a velha Dinah, com lágrimas rolando por seu
rosto preto e honesto, dizia “Deus tenha piedade de nós!” com o mesmo fervor
de um culto, enquanto o velho Cudjoe, esfregando os olhos fortemente com os
pulsos, e fazendo uma variedade incomum de caretas, de vez em quando
respondia no mesmo tema, com grande fervor. Nosso senador era um estadista,
e, como tal, não poderia se esperar que chorasse, como todos os outros mortais.
Assim, ele virou as costas para o grupo, e olhou pela janela para fora, e parecia
particularmente ocupado em limpar a garganta e lustrar as lentes dos óculos, vez
ou outra assoando o nariz de uma maneira que evocava suspeita, caso se
observasse com atenção.
— E como pode dizer que tinha um bom senhor? — ele exclamou de
repente, engolindo resolutamente algo que lhe subia à garganta, e virando-se
subitamente para a mulher.
— Por que ele era mesmo um bom senhor; direi isso dele de qualquer forma;
e minha senhora era bondosa, mas não tinham outra alternativa. Eles deviam
dinheiro e, de alguma forma, não sei dizer qual, aquele homem os tinha nas
mãos, e eles foram obrigados a atender aos desejos dele. Eu escutei, e ouvi o
senhor conversando com a senhora, e ela implorando e pedindo por mim, e ele
lhe disse que não havia o que fazer, e que o acordo já estava feito; e foi então
que eu peguei meu filho e saí da casa, e fugi. Sabia que não adiantaria tentar
viver se eles fizessem isso, pois meu filho é tudo o que eu tenho.
— Não tem marido?
— Tenho, mas ele pertence a outro proprietário. O senhor dele é muito
rígido, e não o deixa me ver, quase nunca. E cada dia está ficando mais difícil
para nós, e o homem ameaçou vendê-lo no Sul, então eu nunca mais o verei!
O tom resignado que a mulher pronunciou aquelas palavras poderia levar um
observador superficial a pensar que ela era absolutamente indiferente. No
entanto, havia uma agonia tranquila e profunda em seus olhos grandes e escuros
que denunciava exatamente o contrário.
— E para onde pretende ir, minha minha filha? — perguntou a Sra. Bird.
— Para o Canadá, se soubesse onde fica. É muito longe, esse tal Canadá? —
ela perguntou erguendo os olhos com um ar humilde e confiante para o rosto da
Sra. Bird.
— Pobrezinha! — comentou a Sra. Bird involuntariamente.
— Acha que é mesmo muito longe? — perguntou a mulher resoluta.
— Muito mais longe do que possa imaginar, pobre menina! — respondeu a
Sra. Bird. — Mas vamos pensar no que pode ser feito por você. Dinah, por favor,
arrume a cama dela no seu quarto, perto da cozinha, e pensarei no que faremos
por ela de manhã. Por hora, minha filha, nada tema. Confie em Deus, ele o
protegerá.
A Sra. Bird e o marido voltaram para a sala. Ela sentou-se em sua cadeirinha
de balanço em frente à lareia, balançando para a frente e para trás. O Sr. Bird
andava de um lado para o outro na sala, resmungando consigo mesmo “Pish!
Pshwaw! Que situação complicada!”. Momentos depois, aproximando-se da
mulher, ele disse:
— Tenho que lhe dizer, esposa, é melhor ela ir embora daqui esta noite.
Aquele sujeito estará aqui assim que amanhecer. Se fosse só a mulher, ela
poderia se esconder em silêncio até tudo terminar, mas nem uma tropa de
cavalos e homens seria capaz de manter o garotinho quieto, tenho certeza disso.
Ele acabaria enfiando a cabeça por uma porta ou janela e seria descoberto! E
para mim também seria muito constrangedor, ser pego com eles aqui, justamente
agora! Não, eles têm que ir embora esta noite.
— Esta noite? Como isso seria possível? Para onde?
— Bem, sei muito bem para onde — respondeu o senador começando a
colocar as botas com um ar pensativo; e, parando no meio, quando a perna ainda
estava pela metade, ele agarrou o joelho com as duas mãos e pareceu entrar em
estado de meditação profunda.
— É um negócio complicado e muito perigoso! — ele disse, finalmente,
voltando a puxar as tiras das botas. — E isso é fato! — Quando uma das botas
estava quase calçada, o senador sentou–se com a outra na mão, estudando
cuidadosamente o desenho do chão. — Mas tem que ser feito, até onde posso
ver. E que se danem! — Então calçou a outra bota rapidamente e olhou pela
janela.
A Sra. Bird era uma mulher discreta, uma mulher que nunca na vida dissera
“Eu lhe disse”, e na presente ocasião, apesar de ter plena consciência do rumo
das meditações do esposo, ela, muito prudentemente, preferiu não emitir opinião,
apenas sentou-se bem quieta em sua cadeira e a postos para ouvir as intenções de
seu senhor soberano, assim que ele estivesse pronto para expressá-las. — Tem
esse camarada, o Van Trompe, um velho cliente que veio do Kentucky e libertou
todos os seus escravos. Ele comprou um lugar a uns onze quilômetros do riacho,
lá para dentro da floresta, onde ninguém vai, a não ser que queira ir de propósito.
É um lugar que não se encontra com tanta facilidade. Lá ela estaria em relativa
segurança. Mas, o problema é que ninguém, senão eu, conseguiria conduzir uma
carruagem até lá esta noite.
— Por que não? Cudjoe é um excelente cocheiro.
— Eu sei, eu sei, mas a situação é a seguinte. O riacho tem que ser
atravessado duas vezes; a segunda travessa é bem perigosa, a não ser que se
conheça o lugar, como eu conheço. Já o atravessei centenas de vezes no lombo
do cavalo, e sei exatamente quais são as curvas a serem feitas. Assim, não há o
que fazer. Cudjoe deve encilhar os cavalos, por volta da meia-noite, o mais
silenciosamente possível, e eu a levarei até lá. E então, para disfarçar um pouco,
ele deve me levar até a próxima estalagem, para esperar a diligência para
Columbus, que passa por volta das três ou quatro horas, e assim dará a impressão
de que usei a carruagem apenas para esse propósito. Começarei a trabalhar logo
cedo. Mas, começo a pensar que me sentirei muito mal depois de tudo o que foi
dito e feito. Mas, fazer o quê? Não há outra opção.
— Neste caso, seu coração vale mais do que sua cabeça, John — comentou a
esposa, colocando sua mão branca e delicada sobre a dele. — Acha que algum
dia poderia amá-lo se não o conhecesse melhor do que você mesmo se conhece?
E a doce senhora estava tão bela com as lágrimas brilhando em seus olhos
que o senador pensou ser, definitivamente, um sujeito sábio, para ser digno da
admiração apaixonada de uma criatura tão linda como ela. Assim, não havia
outra coisa a fazer senão afastar–se sobriamente e tomar as providências da
carruagem. À porta, no entanto, ele parou por um momento e então, voltando,
disse um pouco hesitante:
— Mary, não sei como se sente em relação a isso, mas há uma gaveta cheia
de coisas do… pobrezinho do Henry. — Dizendo isso, se virou sobre os
calcanhares rapidamente e fechou a porta atrás de si.
A esposa abriu a porta do quartinho adjacente ao dela e, pegando a vela,
colocou-a em cima de uma cômoda. Em seguida, de dentro de um pequeno
compartimento, tirou uma chave e colocou-a de maneira ponderada na fechadura
da gaveta, fazendo uma pausa repentina enquanto os dois garotos, como era
típico das crianças, no encalço dela, olhavam para mãe com olhares curiosos e
silenciosos. Ah, mãe que estiver lendo essas linhas, nunca houve em sua casa
uma gaveta ou um armário que, ao abri-los, a fizesse sentir como se estivesse
reabrindo um pequeno túmulo? Ah, que mãe feliz que é se essa situação nunca
se passou!
A Sra. Bird abriu a gaveta lentamente. Havia casaquinhos de muitas formas e
estilos, pilhas de aventais e fileiras de meinhas; e até mesmo um par de
sapatinhos, usados e esfolados nas pontas, apontava pelas dobras de um papel.
Havia um cavalo e uma carruagem de brinquedo, um peão, uma bola —
lembranças guardadas com muitas lágrimas e muito sofrimento. Ela sentou-se ao
lado da gaveta e chorou até que as lágrimas que escorriam entre os dedos
caíssem dentro da gaveta. Então, erguendo a cabeça subitamente, ela começou,
com uma determinação nervosa, a selecionar os artigos mais básicos e mais
importantes, juntando-os em uma pilha.
— Mamãe — perguntou um dos garotos tocando o braço dela suavemente
—, a senhora vai dar essas coisas?
— Meus queridos — ela explicou suave e resolutamente —, se nosso
querido e amado Henry olhar lá do céu, ficará feliz em nos ver fazendo isso. Em
meu coração, não fui capaz de dá-las a uma pessoa comum, a alguém que fosse
feliz, mas as darei para uma mãe com o coração mais sofrido e partido do que o
meu e espero que, com elas, Deus mande suas bençãos!
Há neste mundo almas abençoadas, cujo sofrimento se transforma em alegria
para os outros, cujas esperanças terrenas depositadas em um túmulo sob muitas
lágrimas são a semente da qual brotam flores de cura e bálsamo para os
desolados e aflitos. Entre essas estava a doce senhora sentada ao lado da
lamparina, derramando lágrimas lentas enquanto preparava a trouxa de
lembranças de seu próprio filho perdido para um pária fugitivo.
Um tempo depois, a Sra. Bird abriu um armário e, tirando dele um ou dois
vestidos simples para o dia a dia, sentou-se à sua mesinha de costura e, com
agulha, tesouras e dedal à mão, começou, em silêncio, o processo de “descer a
barra” que o marido tinha lhe sugerido, e continuou laboriosamente até que o
antigo relógio de canto marcou meia-noite, e ela ouviu o estalido baixo das rodas
em frente à porta.
— Mary — pediu o marido ao entrar com sua casaca na mão —, deve
acordá-la agora. Temos de partir.
A Sra. Bird, apressadamente, depositou dentro de um pequeno baú simples
os vários artigos que coletara e, trancando-o, pediu ao marido que o colocasse na
carruagem, e então foi acordar a mulher. Pouco depois, vestida com uma capa,
chapéu e um xale que pertenciam à sua benfeitora, ela apareceu na porta com o
filho nos braços. O Sr. Bird, com pressa, pediu a ela que entrasse na carruagem,
e a Sra. Bird acompanhou-a até os degraus. Elisa inclinou-se para fora da
carruagem e esticou a mão — uma mão tão macia e bela quanto a que lhe foi
oferecida de volta. Ela fixou os olhos grandes e escuros, cheios de
agradecimento, no rosto da Sra. Bird e pareceu querer falar. Os lábios dela se
moveram — ela tentou uma, duas vezes, mas não emitiu nenhum som — e,
apontando para cima, com um olhar que jamais será esquecido, ela se encostou
no assento e cobriu o rosto. A porta foi fechada e a carruagem partiu.
Que situação constrangedora para um senador da pátria, que passara toda a
semana anterior apoiando a Assembleia Legislativa do Estado a aprovar leis
mais rígidas contras fugitivos, cúmplices e acobertadores!
O nosso bondoso senador, no estado de Ohio, não ficava aquém de nenhum
de seus companheiros em Washington, os quais eram reconhecidos pela
eloquência de fama imortal! Sentado com as mãos nos bolsos, ele fora sublime
ao anular os sentimentos de fraqueza daqueles que colocavam o bem-estar de
alguns míseros fugitivos antes dos grandes interesses da pátria!
Ele fora corajoso como um leão e convenceu não só a si mesmo, mas
também a todos que o ouviam; no entanto, a ideia que fazia de um fugitivo não
passava de letras que formavam palavras, ou, no pior dos casos, de uma pequena
foto de um jornal, de um homem com trouxa amarrada a uma vara, com o
subtítulo “Fugiu do proprietário” embaixo. A magia da presença real do
sofrimento, do olho humano implorando, da mão humana frágil e trêmula, da
súplica desesperada de agonia, isso ele nunca havia presenciado. O senador
nunca imaginara que um fugitivo pudesse ser uma mãe desgraçada, uma criança
indefesa como aquela que agora usava o conhecido chapéu de seu filho morto.
Assim, como nosso senador não era de pedra nem de aço, mas sim um homem
comum e de coração nobre, ele estava, como podemos notar, em conflito com
seu patriotismo. E não devem execrá-lo, meus bons irmãos sulistas, pois temos
uma leve impressão de que, em circunstâncias parecidas, muitos de vocês
agiriam da mesma forma. Temos razões para acreditar que, no Kentucky, assim
como no Mississipi, existam corações nobres e generosos, e que as lendas de
sofrimento nunca foram contadas em vão. Ah, meu bom irmão! É justo esperar
tomar atitudes que seu próprio coração honrado e corajoso não lhe permitiria
tomar, se você estivesse em nosso lugar?
Seja como for, nosso bom senador cometera um pecado político, e estava a
caminho de expiar de seu pecado com a penitência daquela noite. Houvera um
longo e contínuo período de chuva, e o solo macio e rico de Ohio, como todos
sabem, é admiravelmente propício à formação de lama, e a estrada era uma
antiga estrada de madeira dos velhos e bons tempos.
“E que tipo de estrada seria esta?”, diria algum viajante do leste americano,
acostumado a pensar em caminhos lisos e velozes, não em estradas de madeira.
Mas, saiba, meu inocente amigo do leste, que em algumas regiões obscuras
do oeste, onde a lama é impenetrável e profunda, as estradas são feitas de toras
de madeira colocadas transversalmente lado a lado, e cobertas em sua frescura
pristina com terra, relva e qualquer outra coisa que esteja à mão, e assim, os
felizes habitantes do lugar a chamam de estrada e prontamente a utilizam. Com o
passar do tempo, as chuvas enxaguam toda a terra e a relva mencionada
anteriormente, move os troncos aqui e acolá em posições pitorescas, para cima,
para baixo, e atravessado, formando crateras profundas e buracos cheios de lama
preta.
E era sobre esse tipo de estrada que nosso senador chacoalhava, fazendo
reflexões morais tão ininterruptamente quanto as circunstâncias lhe permitiam; a
carruagem, seguindo mais ou menos assim, “bump! bump! bump! slush!”,
atolava na lama! O senador, a mulher e a criança, mudando de posição tão
repentinamente, sem nunca chegarem a se ajudar de forma adequada, eram
jogados contra a janela durante a descida. A carruagem atola rapidamente,
enquanto Cudjoe, do lado de fora, é ouvido fazendo grande arruaça entre os
cavalos. Após várias puxadas e contorções ineficazes, no momento em que o
senador estava perdendo a paciência, a carruagem repentinamente se equilibra
com um solavanco, as duas rodas da frente caem em outro buraco, e o senador, a
mulher e a criança rolam uns sobre os outros até o assento da frente. O chapéu
do senador está amassado sobre os olhos e o nariz, sem nenhuma cerimônia e ele
se considera quase acabado; a criança chora e Cudjoe, do lado de fora, fala
energeticamente com os cavalos, que relincham, debatem-se e contorcem-se sob
os repetidos golpes do chicote. Com outro solavanco, a carruagem sobe, e lá se
vão as rodas traseiras; o senador, a mulher e a criança voam para o banco de trás,
os cotovelos dele encostando no chapéu dela, e os dois pés da fugitiva
enroscados no chapéu dele, que cai com a batida. Momentos depois, o atoleiro
fica para trás, e os cavalos param, arfando. O senador encontra seu chapéu, a
mulher arruma o seu próprio e acalma a criança, e mãe e filho se abraçam com
força esperando o que ainda está por vir.
Por um tempo, apenas o “bump! bump!” contínuo se mistura, para variar,
aos mergulhos abruptos nos buracos e aos inúmeros solavancos; e eles começam
a se vangloriar por não estarem tão mal, apesar de tudo. Finalmente, com uma
queda vertiginosa, que coloca tudo aos pés deles e, em seguida, com uma rapidez
incrível, tudo de volta aos assentos, a carruagem para e, depois de muita
comoção, Cudjoe aparece na portinhola.
— Pelo céus, senhor, este lugar é muito ruim. Não sei como faremos para
sair daqui. Acho que vamos ter que arrancar umas cercas.
Em desespero, o senador põe os pés para fora, procurando com cuidado
algum ponto de terra firme; e então atola profundamente um dos pés. Ele tenta
puxá-lo para cima, perde o equilíbrio e cai na lama, e é resgatado em condições
lastimáveis por Cudjoe.
Mas, por simpatia aos nossos leitores, iremos nos abster dos detalhes.
Viajantes do oeste, que se embrenharam, na décima segunda hora, no
interessante processo de arrancar cercas para tirar carruagens de buracos de
lama, mostrarão profunda e respeitosa simpatia por nosso herói desafortunado.
Rogamos-lhes que derramem uma lágrima silenciosa e sigam em frente.
Já era tarde da noite quando a carruagem, ensopada e enlameada, emergiu do
riacho e parou à porta de uma grande casa da fazenda.
Foi preciso considerável perseverança para acordar os moradores, mas,
enfim, o respeitável proprietário apareceu e abriu a porta. Ele era grande, alto,
cujo porte assemelhava-se ao de um urso, dois metros e pouco, de meias
compridas e vestido com uma camisa estilo caçador, de flanela vermelha. Um
tufo pesado de cabelo amarelado, em condições definitivamente desgrenhadas, e
a barba de alguns dias por fazer, conferia ao honrado homem uma aparência,
para dizer o mínimo, não muito impressionante. Ele ficou segurando a vela no
alto por alguns minutos, piscando para nossos viajantes com uma expressão
intrigada e lúgubre que era absolutamente engraçada. Foi necessário um pouco
de esforço por parte do senador, para induzi-lo a compreender completamente a
situação e, enquanto estava fazendo o melhor que podia com relação a isso,
faremos uma breve apresentação a nossos leitores.
O velho e bom John Van Trompe fora, outrora, um importante dono de terras
e escravos no estado de Kentucky. Não tendo nada de “semelhante a um urso,
senão a pele”, e tendo sido abençoado pela natureza com um coração grande,
honesto e justo, bem equiparado ao seu porte gigantesco, testemunhou, durante
alguns anos e com incômodo reprimido, os trabalhos de um sistema tão ruim
para o oprimido quanto para o opressor. Até que, um dia, o grande coração de
John ficou grande demais para caber dentro dele. Então, simplesmente pegou a
carteira de sua escrivaninha e foi até o estado de Ohio, comprou um quarto de
terra boa e fértil, preparou as cartas de alforria para todos os seus escravos —
homens, mulheres e crianças — colocou-os em vagões e os enviou para
colonizarem a terra. Depois disso, o honrado John virou-se em direção ao riacho
e acomodou-se em uma fazenda isolada e agradável, onde podia se entregar aos
pensamentos e às reflexões.
— É você o homem que daria abrigo a uma pobre mulher e seu filho fugindo
de caçadores de escravos? — perguntou explicitamente o senador.
— Acho que sim — respondeu o honrado John, com ênfase considerável.
— Era o que eu imaginava — comentou o senador.
— Se alguém vier — falou o grande homem, estirando seu corpo alto e
musculoso para cima —, estou pronto para enfrentá-lo, e tenho sete filhos, cada
um de um metro e oitenta de altura, que também estarão prontos. Envie a eles
nosso respeito — continuou John —, e diga-lhes que a hora que for, estaremos
prontos para eles — afirmou ele, passando os dedos pelo tufo de cabelo
desgrenhado que lhe cobria a cabeça feito palha e caindo na gargalhada.
Exausta, esgotada e desanimada, Elisa se arrastou até a porta, com o filho
dormindo profundamente em seu braço. O homenzarrão segurou a vela perto do
rosto dela, e soltando um tipo de gemido piedoso, abriu a porta de um quartinho
adjacente à grande cozinha onde se encontravam em pé, e fez um movimento
para que ela entrasse. Ele pegou uma vela e, acendendo-a, colocou-a sobre a
mesa e então dirigiu a palavra à Elisa.
— Veja bem, moça, não precisa ter medo nenhum de ninguém que vier aqui.
Estou preparado para esse tipo de coisa — ele informou apontando para dois ou
três belos rifles em cima do mantel. — E a maioria das pessoas que me conhece
sabe que não seria muito saudável tentar tirar alguém da minha casa quando eu
estou dentro dela. Pode ir dormir agora, tão tranquilamente quanto se sua mãe
estivesse lhe embalando — ele disse e então fechou a porta.
— Ah! Essa aqui é uma escrava bem incomum — ele disse ao senador. —
Bem, as escravas mais belas às vezes têm as melhores razões para fugir, se
tiverem algum tipo de vergonha, como as mulheres decentes deveriam ter. Sei
muito bem disso.
O senador, em poucas palavras, explicou rapidamente a situação de Elisa.
— Ah! Meu Deus! Pobre criatura! — disse o homem. Shh! Shh! Isso é
natural, coitada! Ser caçada como um cervo, caçada apenas por ter sentimentos
naturais e fazer o que qualquer outra mulher teria feito! Ah, vou lhe dizer, esse
tipo de coisa me faz blasfemar sobre quase tudo — disse o honrado John,
enquanto limpava os olhos com as costas de sua enorme mão sardenta e
amarelada. — Vou lhe dizer uma coisa, forasteiro, há muitos anos que não vou à
igreja, porque os pastores por essas bandas costumavam dizer que a Bíblia era a
favor desses absurdos, e eu não entendia grego nem hebreu, então acabei
deixando de lado a Bíblia e tudo mais. Nunca mais frequentei a igreja até
encontrar um pastor que falava tudo em grego e tudo mais, mas dizia exatamente
o contrário; então eu me encontrei e me juntei à igreja de novo. Eu realmente fiz
isso, de verdade — relatou John, que durante todo esse tempo estivera tentando
tirar a rolha de uma garrafa de boa cidra espumante, a qual, a esta altura, ele
pegara.
— É melhor o senhor ficar aqui até amanhecer — ele disse bondosamente.
— Vou chamar minha velha e pedir que lhe prepare uma cama num instante.
— Obrigado, meu bom amigo — agradeceu o senador. — Preciso seguir
viagem, para pegar a diligência noturna até Columbus.
— Ah! Bem, se precisa mesmo ir, vou acompanhar vocês e mostrar um
atalho que o levará até lá, melhor do que a estrada pela qual vieram. Aquela
estrada é horrível!
John se equipou, e com a lamparina na mão, logo estava guiando a
carruagem do senador em direção à estrada do vale que passava por trás de sua
casa. Ao se despedirem, o senador colocou uma nota de dez dólares na mão de
John.
— É para ela — ele explicou rapidamente.
— Ei, ei — disse John, também conciso.
Eles apertaram as mãos e cada qual foi para o seu lado.
10
A ENTREGA DA MERCADORIA

A manhã de fevereiro tinha um aspecto cinzento e chuvoso pela janela da


cabana do Pai Tomás. Refletia os rostos abatidos, imagens de corações
entristecidos. A mesinha estava em frente ao fogo, coberta com o pano de passar
roupa; uma ou duas camisas surradas, porém limpas, recém-passadas a ferro,
penduradas nas costas de uma cadeira ao lado do fogo, e Mãe Cloé tinha mais
uma espalhada em frente a ela sobre a mesa. Cuidadosamente, ela esfregava e
passava cada dobra e cada barra, com a exatidão mais escrupulosa, de quando
em quando erguendo a mão até o rosto para limpar as lágrimas que escorriam.
Tomás sentava-se ao lado, com seu Testamento aberto em cima do joelho e a
cabeça escorada na mão, mas nenhum dos dois falava. Ainda era muito cedo, e
as crianças dormiam juntas na tosca caminha de puxar.
Tomás, que tinha um coração grande, bondoso e cheio de amor pela família,
uma característica peculiar de sua raça infeliz, levantou-se e caminhou
silenciosamente para olhar os filhos.
— É a última vez — ele disse.
A Mãe Cloé não respondeu, apenas esfregou vez após outra a camisa
amassada, já tão lisa quanto possível, e finalmente colocando de lado o ferro
com um golpe desesperado, ela sentou-se à mesa, “ergueu sua voz e chorou”.
— Sei que a gente deve ficar resignado, mas, ah, Senhor, como posso? Se ao
menos soubesse pra onde vai, ou como eles vão te tratar. A sinhá diz que vai
tentar buscar você de volta em um ou dois anos, mas, meu Deus, ninguém que
vai pro Sul sai de lá vivo! Eles matam os negro! Já ouvi dizer que eles matam
eles de tanto trabalhar nas fazenda.
— O Deus de lá será o mesmo daqui, Cloé.
— Bom — disse Mãe Cloé —, pode até ser, mas Deus às vezes deixa
algumas coisa terrível acontecer. Não consigo me conformar com isso.
— Estou nas mãos de Deus — afirmou Tomás. — Nada pode acontecer se
ele não permitir; e há uma coisa pela qual posso agradecer a Ele. Fui eu quem foi
vendido, e não você nem as criança. Aqui você está a salvo; o que está por vir
recairá apenas sobre mim. E Deus há de me ajudar, sei disso.
Ah, que coração corajoso e benevolente! Aliviando o próprio sofrimento
para confortar aqueles a quem ama! Tomás falava com a voz embargada e por
vezes entrecortada, mas com coragem e força.
— Vamos pensar nas nossas bênçãos! — ele acrescentou, trêmulo, como se
tivesse certeza de que precisava pensar muito sobre elas.
— Bençãos?! — indagou a Mãe Cloé. — Não vejo benção nenhuma nisso!
Não é justo! Não é justo acontecer isso! O senhor não podia nunca ter permitido
que você fosse usado pra pagar as dívida dele. Você já ganhou pra ele muito
mais do que o preço que foi comprado, duas vezes mais. Ele te prometeu a
liberdade e deveria ter te dado há muito tempo. Talvez ele não tem outra opção,
mas acho isso errado. Nada vai me fazer mudar de ideia. Uma criatura tão fiel
como você sempre foi, que sempre considerou os negócio dele como se fosse
seu, que tinha mais consideração por ele do que por sua própria mulher e seus
filho! Aqueles que vende o amor e o sangue do coração pra escapar de um
imbróglio hão de prestar contas pro Senhor!
— Cloé! Vamos, se me ama, não fala desse jeito, quando talvez seja a última
vez que vamos estar junto! E vou te dizer, Cloé, fico muito aborrecido de ouvir
uma palavra contra o senhor. Ele não foi colocado em meus braços ainda bebê?
É natural que eu considere ele. Os senhor estão acostumado a ter tudo feito pra
eles, e naturalmente não dão valor a essas coisa. Não se pode esperar isso deles,
de jeito maneira. Não posso comparar ele com outros senhor, depois do
tratamento e da vida que tive. E ele nunca teria deixado isso acontecer se tivesse
previsto a situação. Tenho certeza disso.
— Bem, de qualquer maneira, tem coisa errada aí — disse a Mãe Cloé, cujo
teimoso senso de justiça era uma característica predominante. — Só não sei o
que é, mas está errado, isso tá claro pra mim.
— Você precisa levantar os olho pro Senhor lá de cima; ele está acima de
tudo, e nem um pardal morre sem o consentimento d’Ele.
— Isso não me serve de consolo, mas acho que devia — retrucou a Mãe
Cloé. — Mas chega de conversa. Vou untar o pão de milho, e você vai ter um
bom café da manhã, porque sabe lá quando vai ter outro de novo.
Para que se compreenda o sofrimento dos negros vendidos no Sul, é
importante lembrar que todas as afeições instintivas da raça são particularmente
fortes. Apegam-se muito ao local onde vivem. Não são naturalmente
aventureiros ou ousados, mas carinhosos e devotados. Acrescente a isso todos os
terrores que a ignorância impõe ao desconhecido e, além disso, considere que ser
vendido para o Sul é considerado pelo negro, desde a infância, como a mais
severa das punições. A ameaça que aterroriza mais do que a chibata ou qualquer
tipo de tortura, é a ameaça de ser enviado rio abaixo. Já ouvimos esse sentimento
expressado por eles mesmos, e vimos o verdadeiro terror com o qual se sentam
em suas horas de descanso, contando histórias assustadoras “do outro lado do
rio”, que para eles é “aquela terra desconhecida de cujas paragens os viajantes
não voltam”.
Um missionário entre os fugitivos do Canadá nos disse que muitos dos
fugitivos confessavam ter fugido de senhores consideravelmente bons, e que
foram induzidos a encarar os perigos da fuga, em quase todos os casos, pelo
horror desesperado que sentiam com relação a serem vendidos para o Sul, uma
maldição sempre pairando sobre si mesmos, sobre os esposos, esposas ou filhos.
Isso inquietava os africanos, naturalmente pacientes, tímidos e indolentes, e lhes
dava uma coragem heroica, levando-os a enfrentar a fome, o frio, a dor e os
perigos da selva, e as punições ainda mais severas, caso fossem recapturados.
A refeição matinal agora fumegava sobre a mesa, pois a Sra. Shelby
dispensara a presença da Mãe Cloé na casa-grande naquela manhã. A pobre alma
dispendera toda sua energia neste banquete de despedida — matara seu melhor
frango e preparara o pão de milho com exatidão escrupulosa, exatamente como o
marido gostava, e colocou alguns jarros misteriosos sobe o mantel, algumas
compotas que só eram servidas em ocasiões muito especiais.
— Por Deus, Pete! Temos um café da manhã daqueles! — disse Mose
triunfante, pegando um pedaço de frango enquanto falava.
A Mãe Cloé de pronto lhe deu um tapa na orelha.
— Pare com isso! Ficar em cima do último café da manhã que seu pobre pai
vai ter em casa!
— Ah, Cloé! — Tomás disse docemente.
— Bem, não posso fazer nada! — refutou a Mãe Cloé, escondendo o rosto
no avental. — Estou tão nervosa que chego a fazer coisa errada.
Os garotos ficaram bem quietos, olhando primeiro para o pai, depois para a
mãe, enquanto o bebê, tentando subir pelas roupas da mãe, deu início a um choro
estrondoso e exigente.
— Venha aqui! — disse a Mãe Cloé, limpando os olhos e pegando o bebê no
colo. — Já passou, assim espero. Agora coma alguma coisa. Fiz o meu melhor
frango. Venham, garotos, podem comer um pouco, pobrezinhos. A mãe foi muito
brava com vocês!
Os garotos não precisaram ser convidados duas vezes, e mergulharam com
grande entusiasmo na comida; e foi bom assim, pois, de outra forma, não teria
servido para outro propósito na festa.
— Agora preciso arrumar suas roupa — disse a Mãe Cloé, indo de um lado
para o outro depois do café da manhã. — Acho que vão tirar elas de você.
Conheço muito bem o jeito deles; a maldade em pessoa, é isso que são! Suas
flanela pra reumatismo estão neste canto; seja cuidadoso, porque não vai ter
mais ninguém pra coser elas. E tem essas camisa velha, e estas são as nova. Eu
cerzi a ponta das meia ontem à noite, com a bola e tudo, pra arrumar elas. Ah,
Senhor! Quem vai consertar elas pra você de agora em diante? — e Mãe Cloé,
de novo descontrolada, encostou a cabeça ao lado da caixa e caiu aos prantos. —
Só de pensar nisso, só de pensar que nenhuma criatura vai fazer nada pra você,
doente ou são!! Não acho que preciso ser boa agora.
Os garotos, depois de terem comido tudo o que havia sobre a mesa do café
da manhã, agora começaram a refletir sobre o caso; e vendo a mãe chorar, e o pai
parecendo tão triste, começaram a choramingar e a colocar a mão sobre os olhos.
Pai Tomás tinha o bebê no joelho, deixando que se divertisse até o último
momento, arranhando-lhe o rosto e puxando-lhe o cabelo e, ocasionalmente,
soltando algumas explosões de alegria, evidentemente originárias das próprias
reflexões internas da garotinha.
— Ah, se divirta, pobrezinha! — falou a Mãe Cloé. — Um dia também vai
passar por isso! Vai viver pra ver seu marido ser vendido, ou talvez você mesma
ser vendida; ou esses menino, eles também vai ser vendido, acho eu, quando
prestarem pra alguma coisa. Preto que não sabe fazer nada não presta!
Neste momento um dos garotos gritou:
— A sinhá está vindo!
— Ela não pode fazer nada. Pra que ela está vindo aqui? — retrucou a Mãe
Cloé.
A Sra. Shelby entrou. A Mãe Cloé arrumou uma cadeira para ela com modos
definitivamente ríspidos e grosseiros. A senhora não pareceu notar nem o ato
nem os modos. Parecia pálida e ansiosa.
— Tomás — ela disse —, vim para… — e parando de repente, olhando para
o grupo silencioso, sentando-se na cadeira e cobrindo o rosto com um lenço, ela
se debulhou em lágrimas.
— Ah, meu Deus, por favor, senhora, não, não! — disse a Mãe Cloé,
também chorando; e, por alguns momentos, todos prantearam juntos. E naquelas
lágrimas que todos vertiam juntos, a alta classe e a ralé, escorriam todos os
ressentimentos e o ódio dos oprimidos. Ah, você que já visitou os aflitos deve
saber que tudo o que o dinheiro pode comprar, quando feito com aversão e
frieza, não vale uma lágrima honesta derramada com verdadeira compaixão.
— Meu bom Tomás — disse a Sra. Shelby —, não posso lhe ajudar de
nenhuma maneira. Se lhe der dinheiro, eles o tomarão de você. Mas, digo-lhe
solenemente, e diante de Deus, que acompanharei seu paradeiro e o trarei de
volta assim que conseguir o dinheiro. Até lá, confie em Deus!
Foi neste momento que os garotos disseram que o Sr. Haley estava vindo, e
então um chute, sem cerimônias, abriu a porta. Haley ficou parado ali, muito mal
humorado, tendo cavalgado muito na noite passada, e ainda nervoso pela falta de
sucesso na recaptura de sua presa.
— Vamos lá, crioulo — ele disse. — Está pronto? A seu dispor, madame —
disse tirando o chapéu assim que viu a Sra. Shelby.
A Mãe Cloé fechou e amarrou o baú, e levantando-se, deu um olhar raivoso
para o mercador de escravos, as lágrimas dela parecendo ter se transformado
subitamente em labaredas de fogo.
Tomás levantou-se obedientemente para seguir seu novo dono, e ergueu o
pesado baú sobre os ombros. A esposa tomou o bebê nos braços para ir com ele
até a carroça, e as crianças, ainda chorando, o seguiram.
A Sra. Shelby, caminhando até o mercador de escravos, deteve–o por alguns
momentos, falando com ele de uma maneira muito séria; e, enquanto os dois
conversavam, a família inteira foi até a carroça que estava pronta e amarrada à
porta. Um grupo de mãos, velhas e jovens, rodearam o local, para se despedirem
do seu companheiro mais antigo. Tomás fora sempre um modelo para todos,
tanto como servo principal quanto como professor cristão, e havia autêntica
simpatia e tristeza com relação a ele, principalmente entre as mulheres.
— Ah, Cloé, tá se saindo melhor do que nós! — disse uma das mulheres que
estava aos prantos, notando a calma melancólica com que Mãe Cloé se
posicionava ao lado da carroça.
— Não aguento mais tanto chorar! — ela retrucou, olhando com raiva para o
mercador de escravos que estava chegando. Não quero chorar na frente daquele
demônio.
— Entra! — Haley ordenou a Tomás enquanto andava por entre os escravos
que olhavam para ele de sobrancelhas baixas.
Tomás entrou e Haley, tirando de debaixo do assento da carroça um par de
grilhões, mandou o escravo colocá-lo nos tornozelos.
Um grunhido velado de indignação percorreu o grupo, e a Sra. Shelby falou
da varanda:
— Sr. Haley, eu lhe asseguro de que essa precaução é totalmente
desnecessária.
— Nunca se sabe, madame. Já perdi quinhentos dólares neste lugar, não
posso correr mais riscos.
— Que mais ela espera dele? — disse a Mãe Cloé, indignada, enquanto os
dois garotos que agora, de repente, pareciam compreender o destino do pai,
penduravam-se em seu vestido, soluçando e lamentando veementemente.
— É uma pena — disse Tomás —, que o sinhozinho George esteja viajando.
George tinha ido passar dois ou três dias com um amigo, em uma fazenda
vizinha, e, tendo partido de manhã bem cedo, antes que a desgraça de Tomás
tivesse vindo a público, fora sem saber de nada.
— Mande minhas lembranças ao sinhozinho George — ele disse
melancolicamente.
Haley chicoteou o cavalo e, com uma última olhada, resoluta e triste, pelo
lugar, Tomás foi levado embora.
O Sr. Shelby, neste momento, não se encontrava em casa. Ele vendera Tomás
no calor da necessidade, para fugir das garras de um homem a quem odiava, e a
primeira sensação, após a barganha ter se consumado, fora de alívio. Mas, as
admoestações da esposa trouxeram à tona seu arrependimento parcialmente
dormente; e a abnegação honrada de Tomás aumentara ainda mais o desconforto
de seus sentimentos. Em vão, dissera a si mesmo que tinha o direito de fazer
aquilo — que todos o faziam — e que alguns o faziam sem nem mesmo terem a
desculpa da necessidade. Não era capaz de se reconciliar com seus próprios
sentimentos e, julgando-se incapaz de testemunhar as cenas desagradáveis da
consumação do negócio, resolvera fazer uma viagem curta pelo campo,
esperando que tudo estivesse terminando antes de ele retornar.
Tomás e Haley seguiram fazendo barulho pela estrada poeirenta, passando
pelos velhos lugares conhecidos, até atravessarem a fronteira da fazenda e se
encontrarem na estrada principal. Depois de terem percorrido aproximadamente
dois quilômetros, Haley, de repente, parou à porta de um ferreiro, e, levando com
ele um par de algemas, entrou no estabelecimento para lhes fazer uma pequena
alteração.
— Essas daqui é muito pequena pra um homem do tamanho dele — disse
Haley, mostrando as algemas e apontando para Tomás.
— Meu Deus, mas esse não é o Tomás do Shelby? Quer dizer que ele o
vendeu? — perguntou o ferreiro.
— Sim, vendeu — respondeu Haley.
— Não é possível! Verdade? — exclamou o ferreiro. — Quem diria! Não
precisa se preocupar em algemar o homem desse jeito. Ele é o melhor e mais
fiel…
— Claro, claro — retrucou Haley. — Mas os melhores escravos são
exatamente as criaturas que mais querem fugir. — Os idiota, que não se
importam pra onde vão, e os bêbado e preguiçoso, que não ligam para nada,
esses ficam e até gostam de serem levados de um lado pro outro; mas esses
escravo de primeira linha, eles odeiam a escravidão mais do que tudo. O melhor
é algemar eles; eles têm pernas, e é certeza que uma hora vão usar elas.
— Bem — comentou o ferreiro tateando as ferramentas —, as fazendas lá de
baixo, forasteiro, não são exatamente o lugar para onde um preto do Kentucky
gostaria de ir. Eles morrem como moscas, não morrem?
— Bem, sim, eles morre bem rápido; tem a questão do clima e uma coisa e
outra; eles morre, assim o mercado de escravos continua aquecido — explicou
Haley.
— Impossível não pensar que é uma judiação um sujeito tão bom, tranquilo
e agradável como é o escravo Tomás ser levado para o Sul pra trabalhar numa
fazenda de açúcar.
— Bom, ele tem sorte. Prometi encontrar um bom lugar pra ele. Vou colocar
ele como serviçal de casa pra alguma família boa e tradicional e daí, se ele
sobreviver à febre e ao clima, terá um lugar tão bom quanto qualquer preto
poderia desejar.
— Está deixando a mulher e os filho aqui, suponho eu?
— Sim, mas acha outra por lá. Meu Deus, mulher é o que não falta por aí —
disse Haley.
Tomás estava sentado muito triste do lado de fora do estabelecimento
enquanto essa conversa acontecia. De repente, ouviu o tilintar rápido e curto do
casco de um cavalo atrás dele e antes que pudesse se recuperar da surpresa, o
sinhozinho George subiu na carroça, jogou os braços efusivamente ao redor do
pescoço dele e começou a soluçar e ralhar com toda energia.
— Isso é odioso! Não me importo com o que dizem, nenhum deles. Isso é
uma infâmia horrenda! Se eu já fosse homem, isso não aconteceria! Eles não
deveriam ter feito isso! — exclamou George com gemido subjugado.
— Ah, sinhozinho George! Como é bom ver o sinhô! — disse Tomás — Não
aguentaria ir embora sem te ver! Não sabe como isso me faz bem! — neste
momento fez um movimento com os pés e os olhos de George recaíram sobre os
grilhões.
— Que vergonha! — ele gritou levantando as mãos — Vou acabar com
aquele velhaco, ah, se não vou!
— Não, não vai fazer isso, sinhozinho George. E não deve falar tão alto
desse jeito. Não vai me ajudar assim, deixando o homem zangado.
— Não o farei, então, para o seu próprio bem. Mas só de pensar nisso, não é
uma vergonha? Eles nem mandaram me buscar, nem me falaram nada, e se não
fosse por Tom Lincon, eu nunca saberia. Vou lhe dizer uma coisa, fiz um
escândalo lá em casa.
— Mas não devia ter feito isso, sinhozinho George.
— Não pude me conter! Acho isso uma vergonha! Olhe aqui, Pai Tomás —
ele disse dando as costas para o estabelecimento e falando em tom misterioso —,
eu lhe trouxe meu dinheiro!
— Ah, sinhozinho George, não poderia aceitar ele por nada nesse mundo —
disse Tomás, bem emocionado.
— Mas precisa aceitá-lo! — suplicou George. — Olhe aqui, eu contei à Mãe
Cloé que eu faria isso, e ela me aconselhou a fazer um buraco no meio, e passar
um fio, assim você poderia pendurá-lo no pescoço e não deixar o dinheiro à
vista. Caso contrário, esse patife sem escrúpulos irá roubá-lo. Vou lhe contar
uma coisa, Pai Tomás. Quero mandá-lo pelos ares! Isso me faria um bem
danado!
— Não, sinhozinho George. Isso não ia fazer nenhum bem a mim.
— Bem, então não o farei, pelo seu bem — respondeu George, amarrando
apressadamente o cordão com o dinheiro ao redor do pescoço de Tomás. —
Pronto. Agora abotoe o casaco bem apertado em cima dele, e toda vez que olhar
para ele, lembre-se de que eu irei atrás de você e o trarei de volta. A Mãe Cloé e
eu falamos sobre isso. Disse a ela para não ter medo; eu cuidarei de tudo e
atormentarei a vida de meu pai até que ele o faça!
— Ah, sinhozinho George, não deve falar assim do seu pai.
— Meu Deus, Pai Tomás, não quis dizer nada de mal.
— E agora, sinhozinho — continuou Tomás —, deve ser um bom menino.
Lembre-se de quantos corações te amam. Fique sempre perto de sua mãe. E não
se torne um desses tipo de garoto tolo que não escuta as mãe depois que cresce.
E lhe digo, sinhozinho George, o Senhor dá muitas coisas boa duas vez na vida;
mas a mãe, só lhe dá uma vez. Você nunca vai ver outra mulher como ela,
sinhozinho, nem que viva até cem anos. Então, fica sempre com ela, e quando
crescer, seja o conforto dela, meu bom garoto. Promete que vai fazer isso?
— Sim, eu farei, Pai Tomás — George concordou seriamente.
— E tome cuidado com suas palavra, sinhozinho George. Garotos jovens,
quando chegam na sua idade, às vezes ficam voluntariosos, é natural que seja
assim. Mas o verdadeiro cavalheiro, como eu espero que você seja, nunca diz
palavras desrespeitosa pros pais. Não está ofendido, não é, sinhozinho?
— É claro que não, Pai Tomás. Você sempre me deu bons conselhos.
— Sou mais velho — disse Tomás, acariciando os cabelos finos e anelados
do garoto com a mão grande e forte, mas falando com a voz tão suave quanto a
de uma mulher. — E vejo as coisa que ainda tem pela frente. Ah, sinhozinho
George, você tem tudo, educação, privilégio, leitura, escrita, e vai crescer pra ser
um grande homem, bondoso e culto, e todas as pessoa, sua mãe e seu pai vai se
orgulhar de você! Seja um bom senhor, assim como o seu pai; e seja um bom
cristão, como sua mãe. Lembre-se do Criador durante sua juventude, sinhozinho
George.
— Eu serei bom de verdade, Pai Tomás, prometo-lhe! — disse George. —
Vou ser o melhor, e não desanime! Eu o trarei de volta para casa, como prometi
para a Mãe Cloé esta manhã: quando eu for homem, eu lhes construirei uma
casa, e terão uma sala de jantar com um tapete. Ah, ainda teremos muitos dias
felizes!
Haley agora chega à porta com as algemas nas mãos.
— Agora preste atenção, senhor — disse George com um ar de grande
superioridade, ao sair da carroça. — Contarei ao meu pai e minha mãe como
trata o Pai Tomás.
— Fique à vontade! — retrucou o mercador de escravos.
— Não tem vergonha de passar a vida comprando homens e mulheres,
acorrentando-os feito gado? Imagino que se sinta péssimo — comentou George.
— Até quando pessoas do seu tipo quiser comprar homens e mulheres, sou
tão bom quanto eles — refutou Haley. — Vender eles não é pior do que comprar.
— Quando eu for um homem, não farei nem uma coisa nem outra — disse
George. — Já tive orgulho de ser do Kentucky, mas hoje tenho vergonha — e
então o garoto sentou-se bem ereto em seu cavalo, com ar imponente, como se
esperasse que o Estado pudesse se impressionar com sua opinião. — Adeus, Pai
Tomás. Tenha coragem! — falou George.
— Adeus, sinhozinho George — respondeu Tomás olhando para o garoto
com carinho e admiração. — Que o Senhor Todo–Poderoso te abençoe! O
Kentucky não tem muitos menino como você! — ele declarou, com todo seu
coração, quando o rosto sincero e infantil do garoto já se perdera de vista. Ele se
foi, e Tomás olhou até que o trote do cavalo dele desapareceu, o derradeiro som
e a derradeira visão de casa. No entanto, em seu coração parecia haver um lugar
morno, onde aquelas mãos jovens tinham colocado o precioso dinheiro. Tomás
levantou a mão e apertou-a no peito.
— Vou lhe dizer uma coisa, Tomás — declarou Haley ao subir na carroça e
colocar as algemas no escravo. — Quero ser justo com você, como costumo ser
com os meus preto; e te digo, pra começar, se me tratar bem, eu te trato bem.
Nunca sou duro com os meus preto. Tento fazer o melhor que posso por eles.
Então é melhor você se acomodar confortavelmente e não tentar nenhum truque.
Já estou acostumado com os truque dos negro, e não adiantam nada. Se os preto
fica tranquilo e não tenta fugir, não têm problema comigo; mas se eles tentam,
isso é problema deles, não meu.
Tomás assegurou a Haley que ele não tinha intenções de fugir. De fato, a
conversa parecia completamente supérflua para um homem com grilhões de
ferro nos pés. Mas, o Sr. Haley tinha o hábito de iniciar seus relacionamentos
com um estoque de pequenos sermões dessa natureza, com a intenção de, pelo
menos assim ele imaginava, inspirar alegria e confiança, e evitar a necessidade
de quaisquer cenas desagradáveis.
E aqui, por hora, deixaremos Tomás e buscaremos o destino de outros
personagens de nossa história.
11
QUANDO A MERCADORIA ENTRA
NUM ESTADO MENTAL
INADEQUADO

A hora já se adiantava em uma tarde chuvosa quando um viajante apareceu à


porta de um hotelzinho, no vilarejo de N——, no Kentucky. No bar, encontrou a
companhia de vários tipos, pessoas a quem a inclemência do tempo obrigou a
procurar abrigo, e o lugar apresentava o cenário típico desse tipo de reuniões.
Cidadãos do Kentucky, grandes, altos, grosseiros, vestidos em camisas de
caçador, ocupando uma grande área com seus corpos largados com a
tranquilidade peculiar à raça — rifles, polvorinhos, bolsa de caçador, cães de
caça e negrinhos, tudo junto pelos cantos — eram as principais características do
cenário. Em cada ponta da lareira sentava-se um cavalheiro de pernas longas,
com a cadeira inclinada para trás, o chapéu na cabeça e os saltos das botas
enlameadas repousando sublimemente sobre o mantel. Uma posição, caros
leitores, comum às estalagens do oeste, onde os viajantes demonstravam uma
nítida preferência por essa posição para elevar seus pensamentos.
O estalajadeiro, atrás do balcão, assim como a maioria de seus conterrâneos,
era alto, de bom temperamento, tranquilo e usava uma cartola que cobria sua
enorme cabeleira.
De fato, todos no ambiente usavam na cabeça esse emblema característico da
soberania masculina; fosse de feltro, de palha, de pele de castor ou outro mais
elegante, lá repousava o chapéu com verdadeira independência republicana. Na
verdade, essa parecia ser a marca característica de cada indivíduo. Alguns o
usavam caído displicentemente de um lado — esses eram homens bem-
humorados, engraçados, aventureiros. Outros o enterravam até o nariz; esses
eram homens de caráter mais duro, firmes, que, quando usavam seus chapéus,
queriam realmente usá-los do jeito que bem entendessem. Havia aqueles que os
deixavam bem para trás, homens de olhos bem abertos, que queriam ter uma
perspectiva mais ampla. Homens indiferentes, que uma vez que não se
importavam com o modo que os chapéus caíam, os abanavam em todas as
direções. A variedade de chapéus era, de fato, um bom estudo shakespeariano.
Os negros, usando pantalonas soltas e camisas simples, sem redundância de
colarinhos circulavam por todo lado, para cima e para baixo, sem trazer nenhum
resultado muito particular, senão expressar um desejo genérico de fazer todo o
possível para o benefício do amo e de seus convidados. Acrescente-se a este
cenário o crepitar alegre e agitado do fogo aceso, subindo exultante pela larga
chaminé — a porta dos fundos assim como todas as janelas bem abertas, e a
cortina de chita balançando com a brisa espessa de ar ùmido — e terá uma ideia
das delícias de uma taverna no Kentucky.
O cidadão do Kentucky dos dias de hoje é uma boa ilustração da doutrina da
hereditariedade dos instintos e peculiaridades. Seus ancestrais eram grandes
caçadores, homens que viviam nas florestas e dormiam sob o céu aberto, tendo
as estrelas para lhes guiar o caminho; e os descendentes deles, até hoje, sempre
agem como se a casa fosse um campo aberto; usam chapéu o tempo todo, fazem
baderna e colocam os pés em cima das cadeiras ou sobre os mantéis — assim
como o pai que andava pelas campinas e colocava os pés dele sobre as árvores e
troncos — abrem todas as janelas e portas, no inverno ou no verão, para que
possa entrar ar nos seus grandes pulmões, chamam a todos de “forasteiro”, com
cordial bonhomie, e são, em geral, as criaturas mais sinceras, agradáveis e joviais
deste mundo.
E é nessa reunião de homens livres e agradáveis que adentra nosso viajante.
Ele era um homem baixo e parrudo, vestido asseadamente, com um semblante
arredondado e bem apessoado e algo bem presunçoso e particular em sua
aparência. Tomava muito cuidado com sua valise e seu guarda-chuva, trazendo-
os em suas próprias mãos e resistindo, teimosamente, a todas as ofertas que os
vários escravos lhe fizeram para se livrar dos pertences. Ele passou os olhos pelo
recinto com ar deveras ansioso, acomodando-se com seus objetos no canto mais
quente e colocando-os debaixo da cadeira; sentou-se e olhou muito apreensivo
para o dignitário cujos saltos enfeitavam a ponta do mantel, que cuspia a torto e
a direito, com coragem e energia demasiado alarmantes para cavalheiros de
nervos fracos e hábitos peculiares.
— Ei, forasteiro, como vai? — perguntou o cavalheiro mencionado
anteriormente, escarrando uma saudação de saliva e tabaco na direção do recém-
chegado.
— Bem, acho eu — foi a resposta do outro, que desviara um pouco
assustado, da honra ameaçadora.
— Alguma novidade? — perguntou o primeiro, sacando uma tira de tabaco e
uma grande faca de caça de dentro do bolso.
— Nenhuma, que eu saiba — disse o homem.
— Quer mascar.? — perguntou o primeiro interlocutor, oferecendo um
pouco de tabaco ao velho cavalheiro, com um ar absolutamente amigável.
— Não, obrigado. Não me faz muito bem — respondeu o homenzinho,
esquivando-se.
— É mesmo? — perguntou o outro displicentemente, enfiando o pedaço em
sua própria boca, a fim de manter o estoque de saliva e tabaco, para o benefício
geral da sociedade.
O velho senhor recuava toda vez que seu irmão de pernas longas cuspia na
direção dele; e tendo o companheiro observado esse fato, ele, de muito bom
grado, direcionou a artilharia para outro canto, e continuou a atingir um dos
ferros da lareira com um grau de talento militar absolutamente suficiente para
tomar uma cidade.
— O que é isso? — perguntou o velho cavalheiro, observando o grupo que
se formou ao redor de um grande anùncio.
— Um anúncio de um preto! — respondeu um dos homens brevemente.
O Sr. Wilson, pois este era o nome do velho cavalheiro, levantou-se e, depois
de arrumar com cuidado sua valise e seu guarda–chuva, tirou deliberadamente os
óculos e os fixou sobre o nariz; e, após a realização dessa operação, leu
conforme segue:

Fugiu do proprietário, meu escravo mulato, George. O referido


George tem um metro e oitenta de altura, mulato bem claro, cabelo
castanho enrolado; muito inteligente, fala muito bem, sabe ler e
escrever; provavelmente tentará se passar por um homem branco; com
muitas cicatrizes nas costas e nos ombros; marcado em brasa na mão
direita com a letra H. Darei quatrocentos dólares por ele vivo, e a mesma
quantia por prova satisfatória de que ele foi morto.

O velho cavalheiro leu o anúncio de cima a baixo, em voz baixa, como se o


estivesse estudando.
O veterano de pernas longas, concentrado nos apetrechos da lareira
conforme relatado anteriormente, arqueou-se e, levantando o corpo alto,
caminhou até o anúncio, e propositalmente, deu uma grande escarrada de tabaco
em cima dele.
— Isso é o que eu penso disso! — ele disse, secamente, e sentou–se
novamente.
— Para que isso, forasteiro? — disse o estalajadeiro.
— Faria a mesma coisa com quem escreveu aquele papel, se ele estivesse
aqui — retrucou o homem alto, voltando tranquilamente ao seu trabalho de
cortar tabaco. — Qualquer homem que é dono de um garoto como esse e não
consegue encontrar uma maneira de tratá-lo melhor, merece perdê-lo. Anúncios
como esses são a vergonha do Kentucky; é isso o que eu penso, se alguém está
interessado em saber.
— Bem, isso lá é verdade — disse o estalajadeiro ao fazer uma marcação no
livro.
— Tenho um bando de garotos, senhor — informou o homem alto, voltando
a atacar os apetrechos de ferro da lareira —, e simplesmente digo a eles
“Garotos, corram! Façam um buraco! Fiquem quietos! Façam o que bem
quiserem! Eu nunca irei atrás de vocês!”. É assim que mantenho os meus. Deixe
que saibam que são livres para ir embora a qualquer momento, e isso
simplesmente lhes tira a vontade de ir. Além disso, tenho os papéis de alforria já
escritos, para todos eles, caso eu morra qualquer hora, e eles sabem disso. E vou
lhe contar, forasteiro, não existe nenhum sujeito nessas bandas que consegue
tirar mais dos pretos do que eu. Meus garotos já foram para o Cincinnati com
quinhentos dólares em potros, e me trouxeram o dinheiro de volta, tudo
direitinho, mais de uma vez. É normal que façam isso. Trate-os como cães e terá
trabalho e comportamento de cão. Trate-os como homens e terá homens a seu
serviço — e este vaqueiro honesto, em toda sua cordialidade, endossou seu
sentimento moral cuspindo um feu de joie perfeito na lareira.
— Acho que está totalmente certo, meu amigo — concordou o Sr. Wilson.
— E esse rapaz descrito aqui é um bom sujeito, não tenho dúvida disso. Ele
trabalhou para mim durante uns seis anos, em minha fábrica de sacos, e era meu
braço direito, senhor. Ele também é um sujeito muito engenhoso: inventou uma
máquina para separar o cânhamo, uma coisa realmente valiosa; já foi parar em
diversas fábricas. E o dono dele tem a patente da máquina.
— E tenho certeza — continuou o vaqueiro — que ele tem a patente e ganha
dinheiro com isso, e aí dá meia volta e marca a brasa na mão direita do rapaz. Se
eu tivesse a chance, eu o marcaria também, para que a carregasse pelo resto da
vida.
— Esses pretos inteligentes são sempre problemáticos e petulantes —
comentou um sujeito de aparência rude, do outro lado do recinto. — É por isso
que apanham e são marcados à brasa. Se eles se comportassem, isso não
aconteceria.
— Isso quer dizer que Deus os fez homens, e é difícil reduzi-los a condições
de bestas — retrucou secamente o vaqueiro.
— Crioulos inteligentes não trazem vantagem nenhuma a seus senhores —
continuou o outro, entrincheirado em uma obtusidade grosseira e inconsciente,
gerada pelo desdém de seu oponente. — Para que ter talentos e coisa e tal, se não
se pode fazer uso deles? Todo o uso que fazem deles é para nos enganar! Já tive
um ou dois desse tipo, e acabei de vendê-los rio abaixo. Sabia que mais cedo ou
mais tarde acabaria perdendo eles se não fizesse isso.
— É melhor você fazer um acordo com Deus e deixar as almas deles de lado
— disse o vaqueiro.
Neste ponto a conversa foi interrompida pela chegada de uma carroça de um
só cavalo perto do hotel. No assento havia um homem de aparência elegante,
bem vestido e educado e um serviçal de cor dirigia a carroça.
Todo mundo parou para examinar o recém-chegado com o interesse com o
qual um bando de desocupados em um dia chuvoso geralmente examina um
recém-chegado. Ele era bem alto, com a tez escura e de traços espanhóis, olhos
pretos expressivos e belos, e cabelos anelados, também de um preto lustroso.
Seu nariz aquilino bem desenhado, lábios finos retos e o contorno admirável de
seus membros bem delineados impressionaram o grupo de imediato, com a ideia
de algo distinto. Ele caminhou com desenvoltura por entre o grupo e, com um
movimento de cabeça indicou ao seu servo onde colocar o baú; fez uma mesura
para os presentes e, com o chapéu na mão, caminhou tranquilamente até o bar, e
deu o nome de Henry Butler, de Oaklands, Condado de Shelby. Virando-se com
ar indiferente, deu uma olhada no anúncio e o leu por inteiro.
—Jim — ele disse a seu serviçal —, parece que vimos um garoto parecido
com esse em Bernan, não foi?
— Sim, senhor — disse Jim —, mas não tenho certeza sobre a mão.
— Bem, eu não olhei, é claro — disse o forasteiro com um bocejo
displicente. Então, caminhando até o proprietário, pediu que esse lhe
providenciasse um apartamento, já que precisava escrever imediatamente.
O proprietário foi muito obsequioso, e um bando de mais ou menos sete
negros, velhos e jovens, homens e mulheres, pequenos e grandes, logo estava
rodeando-o como uma revoada de perdizes, debatendo-se, correndo, enroscando-
se e tropeçando nos pés uns dos outros, no afã de preparar o quarto do senhor,
enquanto esse se sentava relaxadamente em uma cadeira no meio da sala e
engatava uma conversa com o homem sentado ao lado dele.
O manufator, Sr. Wilson, desde o momento em que o forasteiro entrara,
pusera os olhos nele com um ar de curiosidade incômoda e perturbadora. Ele
parecia já tê-lo conhecido e o encontrado em algum lugar, mas não conseguia se
lembrar. O tempo todo, quando o homem falava, ou se mexia ou sorria, o Sr.
Wilson fixava os olhos nele e, de repente, os tirava assim que os olhos escuros
do homem se encontravam com os seus com uma frieza despreocupada.
Finalmente, uma lembrança repentina pareceu lhe vir à cabeça, e ele olhou para
o estranho com ar de tamanha surpresa e alarme tão evidente que o homem
caminhou até ele.
— Sr. Wilson, se não me engano — ele disse, em tom de reconhecimento e
estendendo a mão. — Peço perdão, não o reconheci antes. Vejo que o senhor se
lembra de mim. Sr. Butler, de Oaklands, Condado de Shelby.
— Sim, sim, sim, senhor — concordou o Sr. Wilson como se estivesse
falando em um sonho.
Neste exato momento um garoto negro entrou, e anunciou que o quarto do
senhor estava pronto.
—Jim, tome conta dos baús — disse o cavalheiro, sem lhe dar muita
atenção. Então, dirigindo-se ao Sr. Wilson, ele acrescentou: — Gostaria de ter
alguns minutos para falar de negócios, no meu aposento, por favor.
O Sr. Wilson o seguiu, como um sonâmbulo, e eles se dirigiram até um
grande quarto no andar superior, no qual um fogo recém–aceso trepidava, e
vários serviçais passavam de um lado para o outro, dando os toques finais na
arrumação.
Quando tudo estava feito, e os serviçais partiram, o jovem trancou a porta
deliberadamente, e colocando a chave no bolso, virou–se, cruzou os braços no
peito e encarou o Sr. Wilson.
— George! — disse o Sr. Wilson.
— Sim, George — concordou o jovem.
— Nunca poderia imaginar uma coisa dessas!
— Estou bem disfarçado, acho eu — disse o jovem com um sorriso. — Um
pouco de casca de castanheira deixou minha pele amarela um pouco mais
amarronzada, e pintei meu cabelo de preto, assim não correspondo nem um
pouco às características do anúncio.
— Ah, George! Mas esse joguete é muito perigoso. Eu nunca lhe
aconselharia a fazer uma coisa dessas.
— A responsabilidade é toda minha — disse George com o sorriso
orgulhoso de sempre.
Devemos notar, en passant, que George, pelo lado do pai, era descendente de
brancos. A mãe fora uma das infelizes de sua raça, marcada pela beleza pessoal
para ser uma escrava das paixões de seu proprietário, e a mãe de filhos que
talvez nunca soubessem quem eram seu pai. De uma das famílias mais distintas
do Kentucky, ele tinha herdado um conjunto de traços europeus, e um espírito
elevado e indomável. Da mão, ele recebera apenas uma leve tintura mulata,
amplamente compensada por seus belos olhos escuros. Uma leve mudança no
tom da pele e na cor de seu cabelo o metamorfoseara em um sujeito de traços
hispânicos com quem ele se parecia agora; e uma vez que a graciosidade dos
movimentos e os modos cavalheirescos sempre lhe foram perfeitamente naturais,
George não via dificuldade em se colocar no papel que tinha adotado, de um
cavalheiro viajando com seu escravo doméstico.
O Sr. Wilson, um cavalheiro bondoso, mas extremamente cauteloso e
nervoso, andava pelo quarto de um lado para o outro, parecendo como diria John
Bunyan, “com os pensamentos de cabeça para baixo”, dividido entre a vontade
de ajudar George e uma certa noção confusa de manter a lei e a ordem; assim,
enquanto caminhava nervosamente para lá e para cá, falou o seguinte:
— Bem, George, eu imagino que tenha fugido, abandonado seu senhor. E eu
não lhe tiro a razão, mas, ao mesmo tempo, desculpe–me, George, sim,
definitivamente, acho que devo dizer, George, é minha obrigação dizê-lo.
— Por que se desculpa, senhor? — peguntou George calmamente.
— Ver você assim, desobedecendo às leis de seu país.
— Meu país? — refutou George com ênfase forte e amarga. — Que país
tenho eu senão o túmulo? E juro por Deus que gostaria de estar lá!
— Não, George, não, isso não adiantaria nada; esse jeito de falar é terrível e
contra as Escrituras Sagradas. George, você tem um senhor rígido; de fato ele
é… bem ele se comporta de forma repreensível, não posso fingir defendê-lo.
Mas você sabe muito bem como o Anjo mandou Hagar voltar para sua ama, e
submeter-se aos desejos dela; e o apóstolo mandou Onésimo de volta ao seu
senhor.
— Não venha me citar a Bíblia desse jeito, Sr. Wilson — George retrucou
com olhos de fogo. — Não! Minha esposa é cristã e eu pretendo sê-lo se algum
dia conseguir chegar aonde pretendo, mas falar da Bíblia para um sujeito na
minha situação é suficiente para fazê-lo desistir de uma vez por todas. Eu apelo
ao Deus Todo-Poderoso, eu gostaria de levar meu caso até ele e lhe perguntar se
estou errado em buscar minha liberdade.
— Esses sentimentos são naturais, George — disse o homem bondoso,
assoando o nariz. — Sim, eles são naturais, mas é minha obrigação não encorajá-
los em você. Sim, meu rapaz, tenho pena de você e o seu é um caso muito, muito
difícil. Mas o apóstolo diz que “Devemos todos obedecer nas condições nas
quais fomos chamados”. Todos devemos nos submeter aos mandados da
Providência, George, não compreende?
George continuou com a cabeça jogada para trás, os braços cruzados com
força sobre o peito largo, e um sorriso amargo curvando seus lábios.
— Gostaria de saber, Sr. Wilson, se os índios viessem e o tomassem como
prisioneiro, afastando-o de sua esposa e filhos, e quisessem mantê-lo durante
toda a vida colhendo milho para eles, se o senhor pensaria em sua obrigação de
obedecer às condições na qual foi chamado. Na verdade acho que, ao primeiro
cavalo que lhe passasse à frente, você pensaria ser uma indicação da Providência
Divina, não pensaria?
O velho cavalheiro ficou impressionado com a ilustração do caso dele. No
entanto, apesar de não raciocinar muito, tinha o bom senso no qual alguns
lógicos desse assunto específico não se sobressaíam: de se calar quando não
havia nada a ser dito. Assim, enquanto continuava passando a mão
cuidadosamente sobre o guarda-chuva, dobrando e assentando todas as pregas,
ele prosseguiu com suas considerações mais generalizadas.
— Veja bem, George, você sabe, sempre fui seu amigo, e tudo o que disse,
sempre disse para o seu próprio bem. Parece-me agora que você está correndo
um risco terrível. Não pode continuar com isso. Se lhe pegarem, será muito pior
do que antes; eles o maltratarão até quase matá-lo e depois o venderão rio
abaixo.
— Sr. Wilson, sei de tudo isso — explicou George. — Eu estou correndo o
risco, mas — ele abriu sua casaca e mostrou duas pistolas e um facão —, veja
só! — ele disse. — Estou pronto para eles! Para o Sul não irei jamais! Não! Se
chegar a esse ponto, pelo menos vou ganhar um pedaço de terra de um metro e
oitenta, o primeiro e último que um dia terei no Kentucky!
— Meu caro George, essa maneira de pensar é terrível; está chegando ao
ponto do desespero, George. Estou preocupado. Desobedecer às leis do seu país!
— Não me venha com essa história de meu país de novo! Sr. Wilson, o
senhor tem um país; mas que país tenho eu, ou qualquer outro como eu, nascidos
de mães escravas? Que leis existem para nós? Nós não a fazemos, nós não
concordamos com elas; não temos qualquer relação com elas; tudo o que as leis
fazem é nos oprimir e nos humilhar. E quantas vezes já ouvi os discursos de
Quatro de Julho? Não venha me dizer, uma vez por ano, que os governos provêm
do poder que lhes conferem os governados. Será que o sujeito não consegue
refletir, ao ouvir uma coisa dessas? Será que não consegue juntar dois pontos e
ver o que dá?
A cabeça do Sr. Wilson era do tipo que não seria mal representada por um
fardo de algodão — felpuda, macia, benevolentemente confusa e vaga. Ele
realmente, com todo o coração, sentia-se tocado pela situação de George, e
possuía um tipo de percepção turva e anuviada com relação ao tipo de
sentimento que poderia animar o escravo; no entanto, continuava firme no
propósito de lhe falar coisas boas, com infinita pertinência.
— George, isso é ruim. Devo lhe dizer, sabe, como um amigo, é melhor tirar
esses pensamentos da cabeça; eles são ruins, George, muito ruins para rapazes na
sua condição, muito… — e o Sr. Wilson sentou-se à mesa e pôs-se a mascar o
cabo de seu guarda-chuva.
— Veja isso, Sr. Wilson — disse George, vindo sentar-se com determinação
bem em frente ao velho. — Olhe para mim. Não estou sentado na sua frente, um
homem como o senhor? Olhe para o meu rosto, olhe para minhas mãos, olhe
para o meu corpo — e o jovem ergueu-se com orgulho. — Por que eu não sou
tão homem quanto qualquer outro? Bem, Sr. Wilson, ouça o que vou lhe dizer.
Eu tive um pai — um de seus cavalheiros do Kentucky — que, antes de morrer,
não se dignou a fazer algo para que eu não fosse vendido com os cães e os
cavalos, como parte da propriedade. Vi minha mãe ser colocada à venda com
seus sete filhos, por execução judicial. Eles foram vendidos diante dos olhos
dela, cada um para um senhor diferente. E eu era o mais novo. Ela foi e se
ajoelhou aos pés do velho senhor, e implorou para que fosse comprada junto
comigo, para que pudesse pelo menos ficar com um de seus filhos; e ele lhe deu
um chute com sua bota pesada. Eu o vi fazendo isso; e a última coisa que ouvi
foram os gemidos e os gritos dela, enquanto eu era amarrado ao pescoço do
cavalo para ser levado à propriedade dele.
— E depois?
— Meu senhor negociou com um dos homens e comprou minha irmã mais
velha. Ela era uma garota boa e devota, membro da Igreja Batista, e tão linda
quanto minha pobre mão fora um dia. Ela foi bem educada e tinha bons modos.
No começo, fiquei feliz por ela ter sido comprada, pois teria uma amiga perto de
mim. Mas logo me arrependi. Senhor, eu ficava na porta e a ouvia ser açoitada, e
parecia que cada chibatada cortava meu coração indefeso, e eu não podia fazer
nada para ajudá-la; e ela era açoitada, senhor, por querer viver uma vida cristã
decente, o que suas leis não permitem a uma garota escrava; e por fim eu a vi
acorrentada a um grupo de escravos, para ser vendida no mercado em Orleans,
mandada para lá por causa disso e mais nada, e foi a última vez que soube dela.
Bem, eu cresci, por muitos e muitos anos, sem pai, sem mãe, sem irmã, sem uma
viva alma que me amasse mais do que a um cão; nada além de chibatas,
humilhação e fome. Já estive tão faminto, senhor, a ponto de me contentar com
os ossos que jogavam para seus cães; mas, mesmo assim, quando era pequeno, e
passava noites em claro chorando, não era pela fome, nem pelas chibatadas que
eu chorava. Não, senhor, era pela falta de minha mãe e de minhas irmãs; era por
não ter nenhum amigo neste mundo. Nunca conheci paz ou conforto. Nunca me
fizeram um elogio até eu ir trabalhar em sua fábrica. Sr. Wilson, o senhor me
tratou bem, me encorajou a fazer o bem, a aprender a ler e a escrever e a tentar
ser alguém na vida, e Deus sabe o quanto lhe sou grato por isso. Depois, senhor,
eu conheci minha esposa. O senhor a conhece, sabe o quanto ela é linda. Quando
soube que ela me amava, quando me casei com ela, eu mal podia acreditar que
estava vivo, de tanta felicidade; e ela é tão bondosa quanto é bela, senhor. Mas, e
agora? Agora vem meu senhorio, me arranca do meu trabalho, dos meus amigos
e de tudo o que gosto e me mói até me transformar no próprio pó! Por quê?
Porque, segundo ele, eu me esqueci de quem eu era; para me ensinar que não
passo de um crioulo! E para terminar, ele se coloca entre mim e minha esposa, e
diz que tenho que abrir mão dela e viver com outra mulher. E suas leis lhe
conferem poder para agir assim, independentemente da vontade de Deus ou dos
homens. Sr. Wilson, olhe bem para isso! Não há sequer uma de todas essas
coisas que partiram os corações de minha mãe e minha irmã, meu e de minha
esposa, que não seja autorizada por suas leis, que dão poder a todo homem em
Kentucky; e ninguém pode dizer “não”! O senhor acha que essas são as leis do
meu país? Senhor, eu não tenho país, assim como não tenho um pai. Mas terei
um. Não quero nada do seu país, a não ser que me deixem em paz, que me
deixem ir embora tranquilamente; e quando eu chegar ao Canadá, onde as leis
me pertencerão e me protegerão, aquele sim será o meu país, a cujas leis eu
obedecerei. Mas, se algum homem tentar me impedir, ele que se cuide, pois
estou desesperado. Lutarei por minha liberdade até a última gota de sangue.
Vocês sempre dizem que seus pais o fizeram; se funcionou para eles, funcionará
para mim.
Esse discurso, feito parte sentado à mesa e parte andando de um lado para o
outro no quarto, feito com lágrimas e fogo nos olhos, e gestos desesperados, foi
demais para o velho corpo bondoso a quem fora endereçado, que tirou um
grande lenço de bolso amarelo e limpou o rosto com grande energia.
— Malditos sejam! — ele soltou repentinamente. — Eu sempre disse isso;
que o diabo os carregue! Espero não estar blasfemando agora. Bem, siga em
frente, George, siga em frente! Mas seja cuidadoso, meu rapaz; não atire em
ninguém, George, a não ser que, bem, é melhor não atirar, eu acho; pelo menos,
eu não atingiria ninguém, sabe como é. Onde está sua esposa, George? —
continuou ele, levantando-se nervosamente e começando a caminhar pelo quarto.
— Desapareceu, senhor, desapareceu com o filho nos braços, Deus sabe
onde; foi atrás da estrela do norte, e quando nos encontraremos, ou se algum dia
nos encontraremos de novo neste mundo, nenhuma criatura sabe.
— Como é possível? Surpreendente! De uma família tão bondosa?
— Famílias bondosas contraem dívidas, e as leis do nosso país permitem que
arranquem o filho do seio da mãe para quitar as dívidas do proprietário —
George explicou com amargura.
— Ora, ora — falou o bom homem, remexendo nos bolsos. — Suponho que,
talvez, não esteja seguindo meu juízo; chega; não seguirei meu juízo! — ele
acrescentou bruscamente. — Aqui está, George — e tirando um maço de notas
de sua carteira, ofereceu-o a George.
— Não, por favor, meu bondoso senhor! — recusou George. — O senhor já
fez muito por mim, e isso poderá colocá-lo em apuros. Tenho dinheiro suficiente,
espero, para me levar até onde preciso ir. — Não, mas tem que aceitar, George.
O dinheiro é de grande ajuda em qualquer lugar. Nunca é demais quando se
consegue honestamente. Pegue-o, aceite agora, por favor, meu rapaz!
— Com uma condição, senhor. Que eu o pague de volta no futuro; eu o
pagarei — disse George, pegando o dinheiro.
— George, quanto tempo pretende viajar desse jeito? Não muito longe nem
por muito tempo, espero. Está muito bem feito, mas muito arriscado. E esse
sujeito negro, quem é?
— Um verdadeiro companheiro que foi para o Canadá mais de um ano atrás.
Ele tomou conhecimento, depois que chegou lá, que seu senhor ficou tão furioso
por ele ter fugido que açoitou sua velha mãe; e então veio de volta para confortá-
la e ter a chance de levá-la embora.
— Ele já esteve com ela?
— Ainda não. Já esteve sondando o lugar, mas ainda não surgiu uma
oportunidade. Enquanto isso irá comigo até Ohio, para me colocar entre os
amigos que o ajudaram, e então voltará para buscar a mãe.
— É perigoso, muito perigoso! — falou o homem.
George levantou-se e sorriu com desdém.
O velho cavalheiro olhou-o de cima a baixo, com um ar de inocente
questionamento.
— George, alguma coisa mudou maravilhosamente dentro de você. Agora
está de cabeça erguida, fala e anda como se fosse outro homem — comentou o
Sr. Wilson.
— Porque sou um homem livre! — explicou George com orgulho — Sim,
senhor. Foi a última vez que chamei a alguém de sinhô. Sou livre!
— Tome cuidado! Você não tem certeza, pode ser capturado.
— Todos os homens são igualmente livres no túmulo, se chegar a esse ponto,
Sr. Wilson — contestou George.
— Estou absolutamente embasbacado com sua audácia! — disse o Sr.
Wilson. — Vir até aqui na taverna mais próxima!
— Sr. Wilson, é tão ousado, e essa taverna é tão próxima que ninguém
imaginará isso; procurarão por mim mais para a frente e até mesmo o senhor não
me reconheceu. O amo de Jim não vive neste condado; ele não é conhecido por
esses lados. Além disso, já desistiram; ninguém está procurando por ele, e
ninguém me reconhecerá a partir do anúncio, eu acho.
— Mas e a marca em sua mão?
George tirou a luva e mostrou uma cicatriz recém-curada em sua mão.
— Essa foi a última prova da atenção do Sr. Harris — ele disse cinicamente.
— Alguns dias atrás, ele teve a ideia de me marcar à brasa, dizendo acreditar que
eu fosse tentar fugir qualquer dia desses. Parece interessante, não? — ele contou,
puxando a luva para cima novamente.
— Vou ser sincero, meu próprio sangue congela quando penso nisso; em sua
condição e nos seus riscos! — confessou o Sr. Wilson.
— O meu já congelou há muitos anos, Sr. Wilson; no momento, está no
ponto de fervura — disse George.
Depois de alguns momentos de silêncio, George continuou:
— Bem, meu bom senhor. Vi que o senhor me reconheceu. Achei melhor
termos essa conversa antes que seu olhar desconfiado me denunciasse. Sairei
bem cedo amanhã, antes de o sol nascer; amanhã à noite espero dormir a salvo
em Ohio. Devo viajar durante o dia, parar nos melhores hotéis, me juntar à mesa
de jantar dos proprietários de terra. Sendo assim, adeus, senhor; se ouvir dizer
que fui capturado, pode ter certeza de que estou morto!
George levantou-se feito uma rocha, e estendeu a mão com o ar de um
príncipe. O bondoso velhinho apertou-a cordialmente e, após algumas
recomendações de cuidado, pegou o guarda-chuva e saiu apressadamente do
quarto.
George ficou parado pensativo olhando para a porta, quando o velho a
fechou. Um pensamento lhe atravessou a mente. Com o passo apressado, foi até
a porta, abriu-a e disse:
— Sr. Wilson, só mais uma coisa.
O velho cavalheiro entrou novamente, e George, como antes, trancou a porta
e então ficou alguns minutos olhando para o chão, indeciso. Finalmente,
levantando a cabeça com um esforço súbito, ele falou:
— Sr. Wilson, o senhor se mostrou um cristão no seu modo de me tratar. E
quero lhe pedir um último ato de caridade cristã.
— Muito bem, George.
— Bem, senhor, o que o senhor disse foi verdadeiro. De fato corro um risco
terrível. Não há na terra viva alma que sofra com a minha morte — ele
acrescentou, suspirando profundamente e falando com grande esforço. Serei
chutado e enterrado feito um cão, e ninguém pensará nisso no dia seguinte,
apenas minha pobre esposa! Coitada! Ela chorará e se enlutará por mim; e se o
senhor puder, Sr. Wilson, lhe entregar este alfinete. Ela me deu como presente de
Natal, pobrezinha! Devolva-o a ela e diga-lhe que eu a amei até o final. Faria
isso por mim? Faria? — ele perguntou com veemência.
— Sim, é claro, meu amigo! — respondeu o velho cavalheiro, pegando o
alfinete com os olhos molhados e uma melancolia trêmula na voz.
— Diga-lhe uma coisa — continuou George. — É o meu último desejo; se
ela puder chegar ao Canadá, ela deve ir até lá. Independentemente do quanto sua
senhora seja bondosa, não importa o quanto ame seu lar, implore para que não
volte, pois a escravidão sempre termina em sofrimento. Diga-lhe para criar nosso
filho como um homem livre, assim ele não sofrerá como eu sofri. Pode dizer isso
a ela, Sr. Wilson?
— Sim, George, eu direi a ela, mas tenho certeza de que você não morrerá.
Tenha esperança, você é um homem corajoso! Confie em Deus, George. Do
fundo do meu coração, desejo que chegue são e salvo ao seu destino, é o que
posso fazer.
— Existe um Deus em quem se possa confiar? — perguntou George, em um
tom de desespero tão amargo quando as palavras cadenciadas do velho
cavalheiro. — Ah, já vi tantas coisas na vida que me fizeram sentir que não é
possível haver um Deus. Vocês cristãos não fazem ideia de como essas coisas
são para nós. Há um Deus para você, mas será que há um para nós também?
— Ah, não comece, meu rapaz! — retrucou o velho, quase soluçando ao
falar. — Não fale assim! Deus existe; as nuvens e a escuridão o encobrem, mas a
justiça e a verdade são a morada de seu trono. Existe um Deus, George, acredite.
Confie nele, e tenho certeza de que Ele o ajudará. Tudo ficará em ordem; senão
nessa, na outra vida.
Enquanto falava, a piedade e benevolência sincera daquele velho humilde o
investiram de uma dignidade e autoridade temporária. George parou sua andança
distraída pelo quarto, parou pensativamente por um momento e então disse
baixinho:
— Obrigado por essas palavras, meu bom amigo. Hei de pensar nelas.
12
INCIDENTE PECULIAR DE UM
COMÉRCIO LEGAL

“Ouviu-se uma voz em Ramá, lamentação e amargo choro; é Raquel que


chora por seus filhos e recusa ser consolada.”1

O Sr. Haley e Tomás seguiam adiante balançando na carroça, cada qual, por
um tempo, absorvido em suas próprias reflexões. As reflexões dos dois homens
sentados um ao lado do outro são uma coisa curiosa: sentados no mesmo
assento, tendo, os dois, olhos, ouvidos, mãos e órgãos de todos os tipos, e os
mesmos objetos lhes passando à frente, é impressionante o quanto os
pensamentos são diferentes!
Como o Sr. Haley, por exemplo: ele primeiro pensou na largura e na altura
de Tomás e a quanto ele venderia o escravo se o mantivesse gordo e em boas
condições até chegar ao mercado. Pensou em como comporia o lote dele; pensou
no respectivo valor de mercado de certos homens, mulheres e crianças que
fariam parte do grupo e outros detalhes do negócio; em seguida pensou em si
mesmo, e no quão humano era, pois enquanto outros homens acorrentavam as
mãos e os pés de seus crioulos, ele colocara algemas apenas nos pés, e deixou
que Tomás usasse as mãos, desde que se comportasse bem; e pensou no quanto a
natureza humana era ingrata, o que talvez deixasse espaço para Tomás duvidar
das bondades dele. Já tinha sido enganado tantas vezes por crioulos a quem tinha
favorecido; mas, mesmo assim, se surpreendia ao pensar no quanto ainda fora
capaz de manter sua generosidade.
Quanto a Tomás, este estava remoendo algumas palavras de um velho livro
fora de moda, que não lhe saíam da cabeça, que diziam assim: “Porque não
temos aqui cidade permanente, mas buscamos a que está por vir; onde não
tenhamos vergonha de chamar Deus de nosso Deus, pois ele nos dará uma nova
cidade”. Essas palavras do antigo livro impressionavam principalmente “homens
ignorantes e sem instrução” que, através do tempo, de algum modo, mantinham
um estranho poder sobre as mentes de pessoas pobres e simples como Tomás.
Elas tocavam o fundo da alma, e traziam à tona, como o chamado da trombeta,
coragem, energia e entusiasmo, onde antes só havia a escuridão do desespero.
O Sr. Haley tirou do bolso vários jornais e começou a olhar os anúncios,
muito interessado. Ele não era um leitor muito fluente e tinha o hábito de ler em
voz alta, meio recitativo, como se pedisse aos ouvidos para verificar as deduções
de seus olhos. Nesse tom, ele recitou vagarosamente o seguinte parágrafo:

VENDA POR AçãO JUDICIAL — NEGROS — De acordo com ordem judicial,


serão vendidos, na terça-feira, 20 de fevereiro, em frente à porta do Tribunal,
na cidade de Washington, Kentucky, os seguintes negros: Hagar, 60 anos;
John, 30 anos; Ben, 21 anos; Saul, 25 anos; Albert, 14 anos. Vendidos em
benefício dos credores e herdeiros da propriedade do falecido Jesse
Blutchford.
SAMUEL MORRIS E THOMAS FLINT, Oficiais de Justiça.

— Tenho que dar uma olhada nisso aqui — ele disse para Tomás, pela
necessidade de ter alguém com quem conversar. — Vou juntar um grupo de
primeira linha pra levar com você, Tomás. Vai dar uma impressão agradável e
sociável, vão lhe fazer boa companhia, sabe como é. Precisamos ir direto para
Washington, e vou lhe deixar trancado enquanto termino meus negócios.
Tomás recebeu essa informação com obediência, simplesmente pensando,
em seu coração, quantos desses homens desgraçados teriam esposas e filhos, e se
eles se sentiam como ele ao abandoná–los. É mister confessar também que a
informação ingênua e imediata de que seria colocado na jaula de maneira
nenhuma produziu uma reação favorável em um pobre sujeito que sempre se
orgulhou de uma vida absolutamente honesta e idônea. Sim, Tomás, devemos
dizer, tinha muito orgulho de sua honestidade, coitado, sem ter muito mais do
que se orgulhar. Se tivesse pertencido a patamares mais altos da sociedade,
talvez nunca teria sido reduzido a tais tipos de infâmias. No entanto, o dia passou
e, à noite, Haley e Tomás encontravam-se acomodados em Washington: um em
uma taverna, o outro, em uma jaula.
Por volta das onze horas do dia seguinte, juntou-se uma multidão confusa
nos degraus do Tribunal — fumando, mascando, cuspindo, praguejando e
conversando, de acordo com seus respectivos gostos e vezes — esperando pelo
leilão começar. Os homens e as mulheres a serem vendidos sentavam-se em um
grupo separado, conversando em voz baixa entre si. A mulher, que fora
anunciada com o nome de Hagar, era um exemplar tipicamente africano. Ela
poderia até ter sessenta anos, mas parecia mais velha do que isso, pelo trabalho e
pela doença; era parcialmente cega e debilitada pelo reumatismo. Ao lado dela,
estava o único filho que lhe restara, Albert, um belo rapazola de quatorze anos.
O garoto era o único que restara de vários irmãos, que foram tirados dela
sucessivamente e vendidos no mercado do Sul. A mãe segurava o garoto com as
duas mãos trêmulas, e olhava com medo cada um que chegava perto para
analisá-lo.
— Não tenha medo, Mãe Hagar — disse o mais velho dos homens. — Falei
com o senhor Thomas e ele acha que consegue vender vocês dois juntos.
— Eles não precisam considerar eu uma inválida ainda — ela disse,
erguendo as mãos trêmulas. — Ainda posso cozinhar, esfregar e lavar. — Vale a
pena me comprar, se for um preço barato. Diz isso pra eles. Diz — ela
acrescentou com veemência.
Haley forçou o caminho até o grupo, caminhou até o velho, abriu-lhe a boca
e olhou dentro, tocou-lhe os dentes, fez o homem ficar em pé e se endireitar,
dobrar as costas e fazer vários movimentos para mostrar os músculos, então
passou para o próximo, fazendo-o passar pelo mesmo julgamento. Caminhando
por último até o rapazola, o mercador de escravos sentiu-lhe os braços, esticou
as mãos, olhou os dedos e fez o garoto saltar para mostrar sua agilidade.
— Ele não vai ser vendido sem eu! — disse a velha senhora, com ansiedade
passional. — Ele e eu vamos num lote junto. Eu ainda sou forte, sinhô, e posso
fazer muito trabalho, muito, sinhô.
— Na fazenda? — perguntou Haley com um desdenhoso olhar de relance.
— Que balela! — e, como se tivesse ficado satisfeito com seu exame, ele se
afastou e olhou de longe, ficando em pé com as mãos no bolso, o charuto na
boca, e o chapéu caído de um lado, pronto para a ação.
— O que acha? — perguntou o homem que acompanhara o exame de Haley,
como se ele mesmo quisesse chegar a uma decisão.
— Bem — disse Haley, cuspindo —, acho que compraria os mais jovens e o
rapazinho.
— Eles querem vender o rapaz e a velha juntos — informou o homem.
— Acho difícil. Ela é um velho saco de ossos, não vale um tostão furado.
— Então não ficaria com ela? — perguntou o homem.
— Qualquer um seria um tolo se ficasse. Ela é quase cega, deformada com
reumatismo e idiota.
— Alguns compram essas criaturas velhas e acabam descobrindo que são
mais úteis do que se pensa — rebateu o homem.
— De jeito nenhum — disse Haley. — Eu não quero ela nem de graça. Na
verdade, já está resolvido.
— Seria uma pena não comprá-la com o filho. Ela parece gostar muito dele,
e acho que a venderiam bem barato.
— Se tem dinheiro pra jogar fora, tudo bem. Vou vender o rapaz pra
trabalhar na lavoura, mas não quero nem saber dela, de jeito nenhum, nem
ganhando de presente — retrucou Haley.
— Ela vai ficar desesperada — contou o homem.
— Com certeza — concordou o mercador de escravos friamente. A conversa
foi interrompida por um murmurinho na plateia.
E o leiloeiro, um sujeito baixinho, alvoroçado e arrogante, abriu a
cotoveladas o caminho pela multidão. A velha segurou o fôlego e puxou
instintivamente o filho.
— Fique perto da mamãe, Albert, bem perto, eles vão colocar nós junto —
ela afirmou.
— Ah, mamãe, estou com medo de eles não colocar a gente junto — disse o
garoto.
— Eles têm que colocar, filho. Não vou conseguir viver de jeito nenhum se
eles não fizer isso! — falou com veemência a velha criatura.
A voz retumbante do leiloeiro, gritando para abrirem caminho, agora
anunciava que as vendas estavam prestes a começar. O lugar foi aberto e as
ofertas começaram. Os muitos homens da lista foram rapidamente comprados
por preços que mostravam uma boa subida no mercado; dois deles ficaram com
Haley.
— Venha, garoto — ordenou o leiloeiro, tocando o garoto com seu martelo.
— Levante-se e nos mostre seus movimentos, agora.
— Põe nós dois junto, junto, por favor, sinhô — implorou a velha, segurando
seu filho com força.
— Saia daqui —retrucou o homem grosseiramente, empurrando as mãos
dela. — Você vai ser por último. Agora, neguinho, pule! — e com a palavra, ele
empurrou o garoto em direção ao grupo, e um grunhido pesado e profundo se
instalou atrás dele. O garoto parou e olhou para trás, mas não havia tempo para
ficar e, limpando as lágrimas de seus grandes e brilhantes olhos negros, ele se
levantou depressa.
Sua bela figura, membros ágeis e rosto vivo foram motivo de uma
competição instantânea, e meia dúzia de ofertas foi parar simultaneamente no
ouvido do leiloeiro. Ansioso, meio assustado, o garoto olhava de um lado para
outro ao ouvir o tumulto das ofertas se cruzando — agora aqui, agora lá — até
que o martelo bateu. Haley ficara com ele. Ele foi tirado do grupo em direção a
seu proprietário, mas parou por um momento, e olhou para trás, vendo sua pobre
mãe, tremendo dos pés a cabeça, esticando as mãos em direção a ele.
— Compre eu também, sinhô, pelo amor de Deus! — Compre eu, vou
morrer se não me comprar!
— Vai morrer também se eu te comprar. Assunto encerrado — disse Haley.
— Não! — e virou-se nos calcanhares.
As pobres vítimas da venda, que viveram juntos no mesmo lugar durante
anos, juntaram-se em volta da velha mãe, cuja agonia dava dó de se ver.
— Será que eles não podia me deixar pelo menos um? O sinhô sempre dizia
que eu deveria ter pelo menos um, ele sempre dizia — ela repetia vez após outra,
com uma voz de cortar o coração.
— Confie em Deus, Mãe Hagar — disse o mais velho dos homens,
piedosamente.
— E que bem isso vai me fazer? — ela perguntou, soluçando
desesperadamente.
— Mãe, mãe, não, não! — gritou o rapaz. — Disseram que você terá um
bom senhor.
— Não me importo, não me importo. Ah, Albert! Ah, meu garotinho, você é
meu último bebê. Senhor, como posso viver?
— Andem logo, será que algum de vocês pode tirar ela daqui? — ordenou
Haley secamente. — Não faz bem pra ela continuar desse jeito.
Os homens mais velhos do grupo, ora por persuasão e ora pela força, fizeram
a mulher se soltar do último abraço desesperado no filho, e a acompanharam até
a carroça de seu novo dono, tentando confortá-la.
— Vamos lá! — disse Haley empurrando suas três aquisições, e tirando
várias algemas que colocou nos pulsos deles; e, prendendo cada algema em uma
longa corrente, ele os puxou até a jaula.
Alguns dias depois, Haley embarcou com suas posses depositadas a salvo
em um dos barcos do Ohio. Era o começo de seu grupo, ainda a ser formado por
várias outras mercadorias do mesmo tipo que ele ou seu agente haviam
reservado em vários pontos ao longo da margem.
La Belle Rivière, o barco mais lindo e notável que já se viu navegar sobre as
águas do Ohio, flutuava tranquilamente correnteza abaixo, sob um céu brilhante,
as Listras e Estrelas da América livre baloiçando e flutuando acima. Os guardas
se misturavam às senhoras bem vestidas e aos cavalheiros caminhando e
apreciando o dia agradável. Tudo estava cheio de vida, alegre e animado; tudo
exceto o bando de Haley que fora guardado com outras mercadorias, no convés
inferior e que, por alguma razão, parecia não apreciar seus vários privilégios
enquanto sentavam-se em grupo, falando entre si em voz baixa.
— Rapazes — gritou Haley rispidamente, — espero que se mantenham
felizes e animados. E não me venham com mau humor; mantenham os lábios
para cima, rapazes; sejam bons comigo e eu serei bom com vocês.
Os rapazes a quem aquela fala se dirigia responderam com o invariável
“Sim, sinhô”, durante anos a senha dos pobres africanos; no entanto, não era por
pertencerem a alguém que não se sentiam particularmente felizes; ainda
pensavam nas esposas, mães, irmãs e nos filhos, vistos pela última vez; e,
embora “aqueles que nos mantinham cativos nos pediam uma canção”, aquela
mensagem não fora instantaneamente bem-vinda.
— Tenho uma esposa — disse a mercadoria marcada como “John, trinta
anos”, e ele colocou sua mão algemada sobre o joelho de Tomás —, e ela não faz
a menor ideia de que fui vendido, a pobre coitada!
— Onde ela mora? — perguntou Tomás.
— Em uma estalagem perto daqui — disse John. — Gostaria de poder ver
ela mais uma vez nesse mundo — ele continou.
Pobre John! Aquilo era mesmo muito natural; e as lágrimas que escorriam
enquanto ele falava, caíam tão naturalmente como se fossem as de um homem
branco. Tomás exalou um longo suspiro de seu coração ferido e tentou, com seu
jeito simples, confortar o rapaz.
E, no andar de cima, no convés superior, sentavam-se pais e mães, esposos e
esposas; e crianças brincavam e dançavam ao redor deles, assim como
borboletinhas, e tudo corria tranquila e confortavelmente.
— Mamãe! — chamou um garotinho que acabara de voltar do andar de
baixo. — Tem um mercador de escravos a bordo, e ele trouxe quatro ou cinco
escravos lá pra baixo.
— Pobres criaturas! — disse a mãe em um tom entre indignação e
sofrimento.
— Como é? — perguntou outra mulher.
— Alguns pobres escravos lá embaixo — informou a mãe.
— E eles estão acorrentados — o garotinho falou.
— Que vergonha para o nosso país permitir que cenas desse tipo sejam
vistas! — disse outra mulher.
— Ah, mas há muito a ser discutido, tanto a favor como contra — disse uma
mulher da alta sociedade, cosindo sentada à porta de sua cabina, enquanto seu
filhinho e filhinha brincavam em volta dela. — Já estive no Sul e devo dizer que
os negros estão melhor lá do que estariam se fossem livres.
— Em alguns aspectos alguns deles estão muito bem, posso imaginar —
disse a mulher a cujo comentário ela respondera. — A parte mais horrível da
escravidão, para mim, é que ela ultraja os sentimentos e as afeições; a separação
das famílias, por exemplo.
— Isso é mesmo uma coisa ruim, com certeza — disse a outra mulher,
segurando o vestidinho de um bebê que acabara de coser, e verificando
cuidadosamente os acabamentos. — Mas, imagino que isso não aconteça
sempre.
— Ah, acontece sim — disse a primeira mulher, com veemência. — Já vivi
muitos anos tanto na Virginia quanto no Kentucky e já vi o suficiente para deixar
o coração de qualquer um em frangalhos. Vamos supor, madame, que seus dois
filhos, ali, fossem tirados da senhora e vendidos?
— Não podemos comparar os nossos sentimentos com os desse tipo de gente
— disse a outra mulher, tirando alguns fiapos de lã do colo.
— Se diz isso, madame, é por que não os conhece — respondeu a primeira
dama, acaloradamente. — Nasci e fui criada entre eles. Sei que têm sentimentos,
tão ou até mais fortes do que os nossos; talvez, como nós.
— Certamente — disse a madame, que bocejou, olhou pela janela da cabina
e finalmente terminou fazendo a mesma declaração com a qual iniciara a
conversa. — Continuo achando que os negros são mais felizes assim do que se
fossem livres.
— É, indubitavelmente, intenção da Providência que a raça africana seja
escrava, mantida em condições mais baixas — comentou um cavalheiro de
feições graves e traje escuro, um clérigo, sentado ao lado da porta da cabina. —
“Maldito seja Canaã! Escravo dos escravos será para os seus irmãos”, as
Escrituras dizem.
— E eu lhe pergunto, forasteiro, será que é esse mesmo o significado do
texto? — disse um homem alto que estava ao lado.
— Indubitavelmente. Quis a Providência, por alguma razão inescrutável,
condenar a raça à escravidão, muitos anos atrás; e não devemos nos opor a isso.
— Bem, se é assim, vamos todos comprar crioulo, se esse é o desejo da
Providência, não é mesmo Escudeiro? — ele disse, virando-se para Haley, que
estivera em pé com as mãos nos bolsos, ao lado da fornalha, ouvindo
atentamente à conversa.
— Isso mesmo — continuou o homem alto. — Vamos todos ficar resignados
aos preceitos da Providência. Os crioulo deve ser vendido e carregado de um
lado para o outro; é para isso que eles serve. Está aí um ponto de vista bem novo,
não é mesmo, forasteiro? — ele se dirigiu a Haley.
— Nunca pensei muito nisso — respondeu Haley. — Não posso falar muita
coisa. Nunca tive instrução na vida. Entrei no negócio pra ganhar a vida; se não
for certo, pretendo me penitenciar a tempo, sabe como é.
— Enquanto isso, não vai se dar a esse trabalho, não é mesmo? — disse o
homem alto. — Veja como é bom conhecer as Escrituras. Se tivesse estudado a
Bíblia, assim como esse bom homem, saberia disso antes, e isso lhe pouparia
muito trabalho. Poderia simplesmente ter dito “Maldito seja — como se chama,
mesmo?” e tudo estaria resolvido.
E o estranho, que era nada mais nada menos que o vaqueiro mais bondoso
que apresentamos aos nossos leitores na estalagem em Kentucky, sentou-se e
começou a fumar, com um sorriso curioso em seu rosto alongado e inexpressivo.
Um jovem alto e esguio, com o rosto demonstrando grande sensibilidade e
inteligência, entrou, e disse as seguintes palavras:
— Em tudo, façam aos outros o que querem que façam a si mesmos.
Acredito — acrescentou ele — que isso faça parte da Escritura, tanto como
“Maldito seja Canaã!”.
— Bem, isso é o que os pobre coitado como a gente pensa — disse John, o
vaqueiro, fumando como um vulcão.
O jovem fez uma pausa e ia falar algo mais, quando o barco parou de
repente, e os passageiros fizeram o costumeiro alvoroço para ver onde haviam
aportado.
— Os dois são camaradas? — perguntou John para um dos homens quando
eles iam saindo.
O homem assentiu.
Quando o barco parou, uma mulher negra veio correndo desesperadamente
pela prancha, passou por entre a multidão e desceu correndo até onde o grupo de
escravos estava. Jogou os braços ao redor daquela infeliz mercadoria antes
marcada “John, trinta anos” e, entre soluços e lágrimas, lamentou a situação do
marido.
Mas que diferença faz contar a história, a qual se repete todos os dias, de
laços afetivos dilacerados e quebrados, dos fracos sendo destruídos e oprimidos
pelo lucro e conveniência dos mais fortes! É mister que seja dito todos os dias,
que se conte dia após dia nos ouvidos do Único, que não é surdo, apesar de estar
em silêncio há muito tempo.
O jovem que defendera a causa da humanidade e a de Deus postou-se com
os braços cruzados olhando para a cena. Ele virou-se, e Haley estava ao seu lado.
— Meu amigo — ele disse com a expressão pesarosa —, como pode, como
ousa fazer esse tipo de comércio? Olhe para essas pobres criaturas! Aqui estou
eu, com alegria em meu coração por estar indo para casa, para minha esposa e
filho, e o mesmo sino que anuncia meu caminho em direção a eles separará este
pobre homem de sua esposa para sempre. Marque minhas palavras: Deus o
julgará por isso.
O mercador de escravos se afastou em silêncio.
— Quer dizer que as pessoa são diferente, não é? — disse o vaqueiro,
tocando seu ombro. — “Maldito seja Canaã” parece não descer pela goela desse
aí, hein?
Haley deu um grunhido incômodo.
— E isso talvez não seja o pior de tudo — disse John. — Talvez Deus
também não compartilhe dessa ideia, quando um dia for prestar contas a Ele,
assim como todos nós, eu acho.
Haley caminhou pensativamente até a outra ponta do barco.
“Se me der bem com mais uma ou duas gangues”, ele pensou consigo
mesmo, “acho que vou parar este ano; a situação está realmente ficando
perigosa.” E então tirou sua carteira e começou a contar o dinheiro, um processo
que muitos cavalheiros, além do Sr. Haley, achavam ser eficaz contra a
consciência pesada.
O barco deslizou majestosamente para longe da costa, e tudo voltou ao
mesmo estado de alegria de antes. Os homens conversavam, e vadiavam, e liam
e fumavam. As mulheres cosiam, as crianças brincavam e o barco seguia seu
caminho.
Um dia, quando o barco parou por pouco tempo em uma cidadezinha do
Kentucky, Haley desembarcou para tratar de negócios.
Tomás, cujos grilhões não o impediam de fazer uma pequena caminhada, foi
até perto da lateral do barco, e ficou olhando com indiferença pela janela. Depois
de um tempo, viu o mercador de escravos voltando, com um passo rápido, em
companhia de uma mulher de cor que trazia nos braços um filho pequeno. Ela
estava decentemente vestida, e um homem de cor a seguia atrás trazendo um
pequeno baú. A mulher vinha alegremente conversando com o homem que
carregava seu baú; passou pela prancha e subiu no barco. O sino tocou e o barco
deslizou rio abaixo.
A mulher caminhou até a frente entre as caixas e os barris no convés de
baixo, e sentando-se, ocupou-se de brincar com o bebê.
Haley deu uma ou duas voltas pelo barco, e então, indo até lá, sentou-se ao
lado dela, e começou a lhe dizer algo com um tom indiferente.
Tomás logo notou uma nuvem pesada passando pela sobrancelha da mulher,
e que ela respondeu rapidamente e com grande veemência.
— Não acredito! Não posso acreditar! — ele a ouviu dizer. — Está só
brincando comigo.
— Se não acredita, olhe aqui! — disse o homem, pegando um papel. — Este
é o contrato de venda, e tem o nome do seu senhor aqui; e eu paguei um bom
dinheiro a ele, posso te garantir.
— Não acredito! Meu senhor nunca me enganaria assim; não pode ser
verdade — refutou a mulher cada vez mais agitada.
— Pode perguntar pra qualquer um desses homens aqui que sabe ler. Aqui!
— ele disse para um homem que estava passando. — Faz um favor, lê isso aqui?
Essa garota não acredita em mim quando digo o que é este papel.
— Bem, isso é um contrato de venda, assinado por John Fosdick —
informou o homem —, vendendo para você a garota Lucy e o filho. Está tudo
explicado, até onde posso ver.
As exclamações passionais da mulher atraíram uma multidão ao seu redor e
o mercador de escravos lhes explicou a causa da agitação.
— Ele me disse que eu estaria indo para Louisville, contratada como
cozinheira na mesma estalagem onde meu esposo trabalha; foi isso que o meu
senhor me disse, ele próprio. Não acredito que tenha mentido pra mim! —
exclamou a mulher.
— Mas ele lhe vendeu, minha pobre mulher, não há dúvida — informou um
homem bondoso que estivera analisando os papéis. — Ele realmente o fez, pode
acreditar.
— Então não adianta nada ficar falando — falou a mulher, ficando
repentinamente mais tranquila; e, apertando mais forte o filho nos braços, ela
sentou-se em cima do baú, virou-se de costas e olhou indiferente para o rio.
— Finalmente se acalmou! — disse o mercador de escravos. — Dá pra ver
que a garota tem coragem.
A mulher parecia tranquila à medida que o barco continuava a viagem, e
uma brisa agradável e suave passou como um espírito misericordioso sobre a
cabeça dela. A brisa suave, que, ao soprar, nunca questiona se a tez é escura ou
clara. E ela viu o brilho do sol refletir sobre a água, em ondas douradas, e ouviu
vozes alegres, cheias de felicidade e prazer, conversando ao redor dela; mas seu
coração estava tão pesado como se tivesse caído uma pedra sobre ele. O bebê
ficou em pé encostado nela e lhe afagava o rosto com as mãozinhas pequenas; e
subindo e descendo, balbuciando e emitindo sons de prazer, parecia determinado
a chamar a atenção dela. Subitamente, ela o abraçou e o apertou nos braços e,
lentamente, uma lágrima após a outra escorreu em seu rostinho espantado e
inocente; e ela aos poucos pareceu ficar mais calma, e se ocupou de lhe dar
atenção e amamentá-lo.
A criança, um menino de dez meses, era incomumente grande e forte para a
idade, e muito vivaz. Nunca ficava quieto, nem por um minuto, de forma que
mantinha a mãe constantemente ocupada segurando-o e observando suas
atividades cheias de energia.
— Este é um garotão! — disse um homem, parando de repente do outro lado
da criança, com as mãos enfiadas nos bolsos. — Qual a idade dele?
— Dez meses e meio — informou a mãe.
O homem assoviou para o garoto e lhe ofereceu parte de um pedaço de doce,
que ele agarrou com vontade e, logo o tinha dentro do depósito geral dos bebês,
também conhecido como boca.
— Que espertinho! — comentou o homem. Já sabe o que quer! — então
assoviou e continuou andando. Ao chegar ao outro lado do barco, ele se
encontrou com Haley, que estava fumando em cima de uma pilha de caixas.
O estranho pegou um fósforo e acendeu um charuto, dizendo:
— É um tipo bem decente essa aí que tem para vender, forasteiro.
— Bem, tenho que reconhecer que ela é mesmo uma boa aquisição —
concordou Haley soprando a fumaça para fora da boca.
— Vai levá-la para o Sul? — perguntou o homem.
Haley assentiu e continuou fumando.
— Para a lavoura? — disse o homem.
— Bem, estou fechando um pedido para uma fazenda e acho que vou
colocar ela no meio. Me disseram que ela era uma boa cozinheira, e vão poder
usar ela pra isso, ou colocar ela pra colher algodão. Ela tem os dedo certo pra
isso; olhei bem. Vou fazer uma boa venda, de um jeito ou de outro — e Haley
voltou para seu charuto.
— Não vão querer o pequeno na fazenda — disse o homem.
— Vou vender ele na primeira oportunidade que tiver — explicou Haley,
acendendo outro charuto.
— Suponho que irá vendê-lo bem barato — inferiu o estranho, colocando
uma caixa em cima da outra e sentando-se confortavelmente.
— Não sei — disse Haley. — Ele é bem espertinho; ereto, robusto, forte; a
carne tão rija quanto tijolo!
— Isso lá é verdade, mas tem toda a questão da preocupação e despesa pra
criar.
— Bobagem! — retrucou Haley — Eles cresce como qualquer outra criatura
que existe; não dão mais trabalho do que bichos de estimação. Esse sujeitinho
vai estar correndo pra lá e pra cá daqui um mês.
— Tenho um bom lugar pra criá-lo e pensei em inclui-lo ao meu gado —
disse o homem. — Nossa cozinheira perdeu um filho na semana passada; ele se
afogou na banheira enquanto ela estava pendurando as roupas, e acho que seria
bom se ela criasse esse aí.
Haley e o estranho fumaram em silêncio durante um tempo, nenhum dos
dois parecendo disposto a trazer o assunto à baila. Finalmente, o homem voltou a
falar:
— Não estaria pensando em mais de dez dólares pra esse garoto, já que vai
se dispor dele de qualquer maneira, não é?
— Isso não é suficiente, de jeito nenhum — ele disse, e começou a fumar
novamente.
— Pois então, forasteiro, quanto quer por ele?
— Veja bem — respondeu Haley. — Eu podia criar ele eu mesmo, ou
mandar alguém criar. O neguinho é incomumente belo e saudável, e poderia
valer cem dólares daqui a seis meses; e, em um ou dois anos, ele valeria uns
duzentos, se eu tivesse ele no lugar certo. Então agora não vou aceitar nem um
centavo menos do que cinquenta dólares por ele.
— Ora, forasteiro! Isso é ridículo! — disse o homem.
— Nem um centavo a menos — retrucou Haley com um balanço de cabeça
decisivo.
— Eu darei trinta por ele — propôs o estranho. — Nem um centavo a mais.
— Eu te direi o que vou fazer — disse Haley, cuspindo de novo, com a
decisão renovada. — Vou dividir a diferença e fecho em quarenta e cinco; e esse
é o máximo que posso fazer.
— Bem, estou de acordo! — disse o homem depois de um intervalo.
— Feito! — disse Haley. — Onde você desembarca?
— Em Louisville — respondeu o homem.
— Louisville — repetiu Haley. — Muito bem, vamos chegar lá quase de
madrugada. O garoto vai estar dormindo, tudo bem; eu pego ele em silêncio, sem
choro. Tudo vai correr bem, gosto de fazer tudo com cuidado, odeio todo tipo de
agitação e escândalos.
E assim, depois que houve a transferência de algumas notas da carteira do
homem para a do mercador de escravos, ele voltou a fumar.
Fazia uma noite clara e tranquila quando o barco parou no cais de Louisville.
A mulher estivera sentada com o bebê nos braços, e agora dormia bem pesado.
Quando ouviu o nome do lugar ser dito, ela rapidamente colocou o bebê em um
pequeno berço formado pelo buraco entre dois caixotes, antes cobrindo o fundo
cuidadosamente com sua capa. Então correu até a beirada do barco, na esperança
de que, entre os vários atendentes dos hotéis que lotavam o cais, ela conseguisse
ver o marido. Com essa esperança, ela pressionou-se para a frente nas grades e,
esticando-se sobre elas, semicerrou os olhos intensamente sobre as cabeças que
se mexiam na encosta até que a multidão se colocou entre ela e o filho.
— Agora é a hora — disse Haley, pegando a criança dormente e entregando-
a ao estranho. — Não acorde ele e tente não fazer ele chorar. Seria um Deus nos
acuda com a garota. — O homem pegou o pacotinho com cuidado, e logo
desapareceu em meio à multidão que desembarcava no porto.
Quando o barco, estalando, grunhindo e soltando fumaça, se afastou do cais
e começava lentamente a seguir seu curso, a mulher voltou ao seu assento. O
mercador de escravos estava sentado lá e a criança havia desaparecido!
— Onde está meu filho? — ela começou, com uma surpresa desnorteada.
— Lucy — disse o mercador de escravos —, seu filho se foi. É melhor saber
agora do que depois. Veja bem, eu sabia que você não ia poder levar ele pro Sul,
e tive a chance de vender ele pra uma família de primeira linha que vai criar ele
melhor do que você pode.
O mercador de escravos tinha chegado àquele nível da perfeição cristã e
política, tão recomendada ultimamente por alguns pastores e políticos do Norte,
que passa completamente por cima de todas as fraquezas e preconceitos
humanos. O coração dele estava exatamente no lugar para o qual o seu, senhor, e
o meu também podem ser levados com o esforço e cultivo adequados. O olhar de
angústia e profundo desespero que a mulher deu para ele poderia ter perturbado
alguém menos experiente; mas Haley estava acostumado àquilo. Ele já vira
aquele mesmo olhar centenas de vezes. Você também pode acostumar-se com
coisas assim, meu amigo; e esse é o objetivo dos recentes esforços para tornarem
toda nossa comunidade do Norte acostumada a elas, para a glória da União.
Assim, o mercador de escravos apenas observou a angústia mortal que via
presente naquelas feições escuras, nas mãos crispadas e na respiração ofegante, e
simplesmente tentou adivinhar se ela gritaria e causaria uma comoção no barco,
pois, assim como outros que apoiavam aquele tipo de situação, ele
definitivamente não gostava de escândalos.
Mas a mulher não gritou. O golpe acertara em cheio e fundo demais em seu
coração para que pudesse chorar ou gritar.
Sentindo vertigem, ela sentou-se. As mãos soltas caíam sem vida ao lado do
corpo. Seus olhos estavam fixos à frente, mas ela não enxergava nada. Todo o
barulho e o burburinho do barco, o rugir do motor, se confundia em seus
ouvidos; e o coração partido e petrificado não tinha gritos nem lágrimas para
demonstrar seu sofrimento abissal. Ela estava absolutamente calma.
O mercador de escravos, que, considerando suas vantagens, era quase tão
humano quanto alguns de nossos políticos, parecia se sentir na obrigação de
consolar a mulher.
— Sei que, a princípio, essa situação é muito difícil, Lucy — disse ele —,
mas uma garota esperta e sensível como você não deve se deixar vencer por isso.
Veja bem, é necessário e não há o que fazer!
— Ah, não, senhor, não! — refutou a mulher com uma voz sufocada de
ódio.
— Você é uma negra esperta, Lucy! — ele insistiu. — Vou cuidar bem de
você e encontrar um bom lugar pra você lá no Sul; e logo, logo vai achar outro
marido. Uma garota tão bonita como você.
— Ah, senhor, por favor, não fale comigo agora — disse a mulher com uma
voz angustiada tão viva e tão forte que o mercador de escravos percebeu que
havia algo mais naquele caso que ia além de seu estilo de operação. Ele se
levantou e a mulher se virou, enfiando a cabeça dentro de sua capa.
O mercador de escravos andou de um lado para o outro durante um tempo,
então parou e olhou para ela.
“Pode sofrer o quanto quiser”, ele disse para si mesmo, “mas que fique
quieta. Deixe que ela chore um pouco e depois, aos poucos, se conformará.”
Tomás assistira a toda a transação, do começo ao fim, e tinha um perfeito
entendimento de seus resultados. Para ele, lhe pareceu algo absolutamente
terrível e cruel, pois sua pobre alma ignorante nunca aprendera a generalizar e a
ampliar as ideias. Se ele tivesse sido instruído por certos ministros do
cristianismo, poderia ter uma opinião melhor sobre o assunto e ter visto aquilo
como um incidente diário de um comércio legal; um comércio que é o apoio
vital de uma instituição que alguns clérigos americanos não creem ter mal
algum, mas que são inseparáveis de quaisquer outras relações da vida social e
doméstica. Tomás, no entanto, sendo um sujeito pobre e ignorante, cujas leituras
se confinavam inteiramente ao Novo Testamento, não podia se confortar e se
consolar com situações desse tipo. Sua própria alma sangrava por dentro, pela
injustiça com a pobre criatura sofredora, encurvada como junco em cima dos
caixotes. O sentimento, a vida, o sofrimento, a coisa imortal cujas leis
americanas tratavam friamente como se fossem os pacotes, fardos e caixas entre
os quais ela se recostava.
Tomás chegou mais perto e tentou dizer algo, mas ela apenas gemeu.
Sinceramente, e com lágrimas escorrendo pelo próprio rosto, ele falou de um
coração de amor nos céus, de um Jesus piedoso e da morada eterna; mas o
ouvido dela fora ensurdecido pela angústia, e o coração paralisado nada mais
sentia.
A noite chegou — calma, imóvel e gloriosa — brilhando com seus inúmeros
e solenes olhos de anjo, reluzentes e lindos, porém silenciosos. Não havia
conversa nem língua, nenhuma voz piedosa nem mão estendida vindo daquele
céu. Uma após a outra, as vozes dos negócios ou de prazeres se calavam, tudo no
barco dormia e as ondas na proa mal podiam ser ouvidas. Tomás se esticou em
cima de uma caixa e lá, deitado, ouvia, de quando em quando, um soluço ou um
grito abafado da criatura prostrada.
— Ah, Deus, o que farei? Ó, Senhor! Meu bom Deus, me ajude! — e assim
continuou, vez atrás da outra, até que o murmúrio se silenciou.
À meia-noite, Tomás acordou sobressaltado. Algo negro passara
rapidamente por ele até a lateral do barco, e então ele ouviu um barulho na água
e ergueu a cabeça; o lugar da mulher estava vazio! Ele se levantou, e procurou-a
ao seu redor, em vão. O pobre coração dilacerado finalmente parara de sangrar, e
o rio ondulava e corria tão crespo e reluzente como se não tivesse acabado de
engoli-la.
Paciência! Paciência! Vocês cujos corações se incham de indignação diante
de infâmias como essa. Nem um sopro de angústia, nem uma lágrima de
opressão é esquecida pelo Divino Consolador, o Deus da Glória. Em Seu seio
paciente e generoso, Ele aguenta a angústia do mundo; pois tão certo quanto ele
é Deus, “o dia da redenção chegará”.
O mercador de escravos acordou logo ao amanhecer e veio checar sua carga
viva. Agora era a vez dele de ficar perplexo.
— Onde se meteu aquela garota? — ele perguntou a Tomás.
Tomás, que aprendera a sabedoria do silêncio, não se sentiu disposto a contar
suas observações e suspeitas, e então disse que não sabia de nada.
— Ela com certeza não pode ter fugido à noite, por terra, pois eu estava
acordado e alerta, toda vez que o barco parava. Nunca confio essas coisa a outras
pessoa!
O discurso era cegamente endereçado a Tomás, como se isso fosse algo
especialmente interessante a ele. Tomás não disse palavra.
O mercador de escravos vasculhou o barco de uma ponta a outra, entre os
caixotes, fardos, barris, em volta do motor, nas chaminés, tudo em vão.
— Vamos lá, Tomás, seja honesto comigo — ele disse depois de uma busca
infrutífera quando veio até onde Tomás estava em pé. — Você sabe de alguma
coisa. Não precisa me dizer, sei que sabe. Vi a garota deitada aqui por volta das
dez horas, e de novo, à meia–noite, e de novo, entre uma e duas horas; e então,
às quatro horas ela tinha desaparecido, e você estava dormindo ali o tempo todo.
Você sabe de alguma coisa, não tem como.
— Bem, senhor — explicou Tomás —, perto de amanhecer, alguma coisa se
encostou em mim, e eu fiquei meio acordado; então ouvi um barulho na água,
daí acordei de vez, e a garota tinha sumido. Isso é tudo o que eu sei.
O mercador não estava chocado nem surpreso, pois, como dissemos antes,
ele estava acostumado a muitas coisas às quais você não está. Nem mesmo a
presença da Morte causa um arrepio solene nele. Ele já vira a Morte várias vezes
— ele a encontrou quando entrou no ramo, e se tornaram conhecidos —, e
apenas a considerava uma cliente difícil, que atrapalhava suas operações muito
injustamente; assim, ele apenas declarou que a garota era uma mercadoria e que
ele era um sujeito muito azarado e que, se as coisas continuassem como estavam,
ele não ganharia um centavo nessa viagem. Em resumo, Haley pareceu se
considerar definitivamente um homem infeliz. No entanto, não havia nada a ser
feito, já que a mulher tinha escapado para um lugar que nunca devolve um
fugitivo, nem mesmo diante da demanda de toda a gloriosa União. Haley, então,
sentou-se descontente com seu livro de contabilidade e colocou o corpo e a alma
que se foi sob a coluna das perdas!
— Ele é uma criatura terrível, este mercador, não é? Tão insensível! Chega a
dar medo, de verdade!
— Ah, mas ninguém dá nada por esses mercadores de escravos! Eles são
universalmente desprezados, nunca serão aceitos em nenhuma sociedade
decente.
Mas quem, senhor, faz o mercador? Quem deve ser o culpado? O homem
sábio, culto e inteligente que apoia o sistema do qual o mercador de escravos é
um resultado inevitável, ou o pobre do mercador em si? Você gera sentimento
público que pede pelo comércio dele, que o corrompe e o deprava até o ponto de
ele não se envergonhar mais disso; e em que é melhor do que ele?
Você não é educado e ele o ignorante? Não é da alta sociedade e ele da
baixa? Você não é refinado e ele grosseiro? Você não é engenhoso e ele inepto?
Ao concluir esses pequenos incidentes de um comércio legal, devemos
implorar para que o mundo não pense que os legisladores americanos sejam
completamente destituídos de humanidade, como, talvez, seja injustamente
inferido diante dos grandes esforços feitos pela nossa nação para proteger e
perpetuar essa espécie de tráfico.
Quem não reconhece que nossos grandes homens estão se superando, ao se
declararem contra o comércio escravo estrangeiro? Existem exemplares
perfeitos de Clarksons e Wilberforces, entre nós, a favor desse assunto, muito
edificante para ser ouvido e pensado. Comercializar negros da África, caro leitor,
é horrendo. É impensável! Mas comercializar os do Kentucky — ah, isso é algo
completamente diferente!
13
O ASSENTAMENTO QUACRE

Uma cena tranquila se coloca diante de nós. Uma cozinha grande, espaçosa e
impecavelmente pintada, o chão amarelo brilhante e liso, sem um grão de poeira;
um belo fogão a lenha lustrado; fileiras de panelas de estanho sugerindo coisas
inimagináveis ao apetite; cadeiras de madeira verdes e brilhantes, antigas e
maciças; uma cadeira de balanço com o assento de palha e uma almofada de
retalhos em cima, cuidadosamente feita de pequenos pedaços diferentes de
tecido de lã colorido; e outra um pouco maior, maternal e antiga, cujos braços
largos emanavam um convite à hospitalidade, bem como a sedução de seus
assentos de pena — uma cadeira antiga muito confortável, tentadora e, de acordo
com a apreciação doméstica e sincera, digna de uma muitas salas de visitas da
alta classe cobertas de veludo ou brocado; e nesta cadeira, balançando
suavemente para a frente e para trás, os olhos repousados sobre uma costura fina,
está nossa velha amiga Elisa. Sim, lá está ela, mais pálida e mais magra do que
em sua casa no Kentucky, com um mundo de sofrimento silencioso escondendo-
se sob a sombra de seus longos cílios, e marcando o contorno de seus lábios
macios. Era nítido como aquele coração um dia jovem agora tinha se tornado
duro e velho, sob a disciplina do pesado infortúnio. E ao levantar os grandes
olhos escuros para acompanhar as peraltices do pequeno Harry, que brincava de
um lado para o outro no chão como uma borboleta tropical, Elisa demonstrava
uma firmeza profunda e uma robusta determinação que não se percebia em seus
dias anteriores e mais felizes.
Ao lado dela sentava-se uma mulher com uma grande panela de estanho no
colo, na qual separava com cuidado alguns pêssegos secos. Devia ter cinquenta e
cinco ou sessenta anos, mas o rosto dela era daqueles que pareciam ser tocados
apenas pelo brilho e pela beleza. A touca branca lisa de tecido fino, feita
exatamente de acordo com o rígido padrão quacre, o lenço de musselina branco e
simples caído em pregas imaculadas sobre o seio, o xale e o vestido simplório,
demonstravam imediatamente a qual comunidade ela pertencia. Seu rosto era
redondo e rosado, coberto com uma penugem suave que lembrava a um pêssego
maduro. O cabelo, parcialmente grisalho pela idade, estava repartido
impecavelmente para trás, a partir da testa alta e relaxada, na qual o tempo ainda
não marcava nenhuma inscrição, exceto paz na terra e boa vontade aos homens;
e mais para baixo, brilhava um grande par de olhos castanhos claros, honestos e
carinhosos; era só olhar diretamente para eles para sentir que via o fundo do
coração mais bondoso e verdadeiro que jamais bateu no peito de uma mulher.
Tanto já foi dito e cantado sobre belas jovens; por que não despertam para a
beleza de uma mulher madura? Se alguém quiser se inspirar neste exemplo,
indicamos Rachel Halliday, sentada ali em sua pequena cadeira de balanço. O
objeto estalava e rangia, ou por ter passado muito frio no início da vida, ou por
algum tipo de efeito asmático, ou, talvez, por algum tipo de transtorno dos
nervos; todavia, à medida que a mulher se balançava gentilmente para a frente e
para trás, a cadeira mantinha um estalido suave, que teria sido intolerável em
qualquer outra cadeira. Mas o velho Simeon Halliday sempre dizia que, para ele,
aquilo era tão bom quanto qualquer música, e os filhos juravam que nunca
trocariam o barulho da cadeira de balanço da mãe por nada neste mundo. Por
quê? Porque, por mais de vinte anos, nada senão palavras de carinho,
admoestações gentis e bondade amorosa de mãe saíram daquela cadeira.
Inumeráveis dores da cabeça e do coração foram curadas ali, dificuldades
espirituais e terrenas foram resolvidas ali, todas por uma única mulher bondosa e
amável, que Deus a abençoe!
— E então, Elisa, ainda pensa em ir para o Canadá? — ela disse enquanto
olhava tranquilamente para os pêssegos.
— Sim, senhora — disse Elisa com firmeza. — Preciso seguir em frente.
Não ouso ficar por aqui.
— E o que fará quando chegar lá? Precisa pensar sobre isso, minha filha.
“Minha filha” saía naturalmente dos lábios de Rachel Halliday, pois seu
rosto e seu corpo faziam de “mãe” a palavra mais natural do mundo.
As mãos de Elisa tremeram, e algumas lágrimas caíram sobre o trabalho
elegante, mas ela respondeu decidida:
— Farei… qualquer coisa que conseguir encontrar. Espero encontrar algum
trabalho.
— Sabe que pode ficar aqui até quando quiser — disse Rachel.
— Ah, muito obrigada — agradeceu Elisa. — Mas — ela apontou para
Harry — eu não consigo dormir à noite; não consigo descansar. Na noite passada
sonhei que tinha visto o homem entrar pelo quintal — ela disse estremecida.
— Minha pobre criança! — comentou Rachel, secando os olhos. — Mas não
deve se sentir assim. O Senhor quis assim, e nenhum fugitivo jamais foi tirado
de nosso vilarejo. Confio que você não será a primeira.
Neste momento a porta se abriu e uma mulherzinha rosada, baixa e gorda
parou à porta, com um rosto alegre e feliz, como uma maçã madura. Assim
como Rachel, ela vestia-se de cinza sóbrio, com a musselina pregueada
impecavelmente sobre seu peito arredondado e robusto.
— Ruth Stedman — disse Rachel vindo alegremente para a frente. — Como
vai você, Ruth? — ela disse carinhosamente tomando–lhe ambas as mãos.
— Muito bem — respondeu Ruth, tirando sua touca de tecido e limpando o
pó com o lenço, deixando à mostra uma cabeça arredondada sobre a qual a touca
quacre assentava-se com um ar garboso, apesar das batidas e toques de suas
mãozinhas gorduchas, muito ocupadas em tentar arrumá-la. Alguns cachos de
cabelos encaracolados escaparam aqui e ali, e precisaram ser amansados e
ajeitados de volta ao seu lugar novamente; e então a visita que devia ter uns
vinte e cinco anos, afastou-se do espelho diante do qual estivera fazendo essas
arrumações e pareceu satisfeita — assim como todas as pessoas que olhassem
para ela estariam —, pois ela era, definitivamente, uma mulher saudável, de
coração bom e radiante, que alegrava o coração dos homens.
— Ruth, essa é minha amiga Elisa Harris; e esse é o garoto de quem lhe
falhei.
— Prazer em conhecê-la, Elisa — disse Ruth, apertando-lhe a mão, como se
Elisa fosse uma velha amiga por quem estivera esperando há tempos. — E este é
o seu garotinho; eu trouxe um doce para ele — ela disse, segurando um pequeno
coração para o garoto, que veio até ela olhando por entre os cachos, e,
timidamente, aceitou a guloseima.
— Onde está seu bebê, Ruth? — perguntou Rachel.
— Ah, já está vindo; mas Mary o pegou no colo assim que chegou e sumiu
com ele para o celeiro, para mostrá-lo às crianças.
Neste momento a porta se abriu e Mary, uma bela garota de rosto rosado e
grandes olhos castanhos como os da mãe, entrou com o bebê.
— Ah! Ha! — exclamou Rachel, vindo tomar a criança grande, branca e
gorda nos braços. — Ele está tão lindo, e como cresceu!
— Para ser sincera, cresceu mesmo! — disse a radiante Ruth ao pegar a
criança, arrancar-lhe o gorrinho de seda azul e várias outras camadas de roupas
extras; e, dando um puxãozinho aqui e uma ajeitadinha ali, arrumando-o,
aconchegando-o e beijando-o com carinho, ela colocou o bebê no chão para
recompor-se. A criança parecia bem acostumada a esse procedimento, pois
colocou o dedão na boca (como se aquilo fosse uma coisa muito especial) e logo
pareceu absorta em suas reflexões, enquanto a mãe se sentou e, pegando um par
de meias compridas de lã branca e azul, começou a tricotá-las com entusiasmo.
— Mary, é melhor encher a chaleira, não é? — a mãe sugeriu gentilmente.
Mary levou a chaleira até o poço e, voltando rápido, colocou-a sobre o
fogão, onde logo ela estava fervendo e soltando fumaça, um tipo de sinal de
hospitalidade e boa companhia. Os pêssegos também em obediência a alguns
sussurros gentis de Rachel, logo foram colocados, pelas mesmas mãos, em um
caldeirão sobre o fogo.
Rachel pegou uma tábua de cozinha limpíssima e, amarrando um avental,
prosseguiu tranquilamente a fazer biscoitos, antes dizendo a Mary:
— Mary, não acha melhor dizer ao John para pegar um frango? — e Mary
desapareceu conforme esperado.
— E como está Abigail Peters? — perguntou Rachel, enquanto amassava os
biscoitos.
— Ah, está melhor — respondeu Ruth. — Fui lá hoje de manhã, fiz a cama e
arrumei a casa. Leah Hills foi esta tarde, e assou pão e tortas suficientes para
durar alguns dias. E eu combinei de voltar para tirá-la da cama à noitinha.
— Eu irei amanhã e farei a limpeza que precisar, e darei uma olhada nas
costuras — disse Rachel.
— Ah! Isso será ótimo! — exclamou Ruth. — Ouvi dizer que Hannah
Stanwood está doente. John foi até lá na noite passada. Preciso ir até lá amanhã.
— John pode vir aqui para as refeições, se você precisar ficar o dia todo —
Rachel sugeriu.
— Obrigada, Rachel. Amanhã veremos. Aí vem o Simeon.
Simeon Halliday, um homem alto, ereto e musculoso, de calças e casaco
simplórios e um chapéu de abas largas, entrou na casa.
— Como vai, Ruth? — ele disse carinhosamente ao espalhar a palma da mão
larga para apertar a mãozinha gorda dela. — E como vai o John?
— Ah, John está bem, e todo o restante de nós também — informou Ruth
alegremente.
— Alguma notícia, pai? — perguntou Rachel, enquanto colocava os
biscoitos no forno.
— Peter Stebbins me disse que deveriam passar por aqui esta noite, com
amigos — disse Simeon, enfaticamente, enquanto lavava as mãos na pia de um
pequeno cômodo.
— Sim! — exclamou Rachel, parecendo pensativa e olhando de relance para
Elisa.
— Você disse que o nome dele era Harris? — Simeon perguntou a Elisa
quando voltou.
Rachel olhou rapidamente para o marido, quando Elisa respondeu
tremulamente:
— Sim — os medos mais terríveis dela eram que possivelmente tivessem
colocado anúncios sobre sua fuga.
— Mãe! — chamou Simeon, em pé na varanda, pedindo para Rachel ir até
lá.
— O que foi, pai? — disse Rachel, esfregando as mãos sujas de farinha
enquanto ia até a varanda.
— O marido dessa menina está no vilarejo e virá aqui esta noite — informou
Simeon.
— Não me diga isso, pai — exclamou Rachel com o rosto radiante de
alegria.
— É verdade. Peter desceu com a carroça ontem, até o último assentamento,
e encontrou uma velha e dois homens; um deles disse que seu nome era George
Harris e, pela história que contou, tenho certeza de que é ele. Ele é um sujeito
agradável e inteligente.
— Devemos contar a ela agora? — perguntou Simeon.
— Contemos a Ruth — disse Rachel. — Ruth, venha cá. — Simeon está me
dizendo que o esposo de Elisa está junto com o último grupo e virá aqui esta
noite.
A explosão de alegria da pequena quacre interrompeu a conversa. Ela deu
um pulo tão grande do chão, enquanto batia palmas com suas mãozinhas, que
uma mecha de cabelos encaracolados escapou de sua touca e pousou, brilhante,
sobre seu colarinho branco.
— Fique quieta, querida! — disse Rachel carinhosamente. Fique quieta
Ruth! Diga, acha que devemos contar a ela agora?
— Agora! Com certeza, neste exato momento. Se fosse o meu John, como
acha que me sentiria? Contem logo a ela.
— Você sempre dando demonstrações de amor ao próximo, Ruth! — disse
Simeon olhando para Ruth com o rosto iluminado.
— Com certeza. E não é para isso que fomos feitos? Se eu não amasse John
e o bebê, não poderia me colocar no lugar dela. Vamos, conte a ela, conte! — e
ela pousou as mãos persuasivamente no braço de Rachel. — Leve-a até o seu
quarto e me deixe fritar o frango enquanto lhe dá a notícia.
Rachel entrou na cozinha, onde Elisa estava cosendo, e abrindo a porta para
um quartinho pediu com gentileza:
— Venha aqui comigo, minha filha, tenho novidades para lhe contar.
O sangue inundou o rosto pálido de Elisa; ela levantou, tremendo de
ansiedade nervosa, e olhou na direção do filho.
— Não, não — disse Ruth, levantando-se suavemente e pegando as mãos
dela. — Não tenha medo; são boas notícias, Elisa. Vá, vá — e ela empurrou a
escrava gentilmente até a porta, fechando-a atrás dela, e, em seguida, virando-se,
pegou o pequeno Harry no colo e começou a beijá-lo.
— Você verá seu pai, meu pequeno. Sabia? Seu pai está vindo — ela disse,
vez após outra, enquanto o garotinho a olhava com curiosidade.
Enquanto isso, entre quatro paredes, outra cena acontecia. Rachel Halliday
puxou Elisa na direção dela e disse:
— O Senhor teve piedade de você, minha filha. Seu marido escapou da
morada da escravidão.
O sangue encheu de brilho o rosto de Elisa e lhe inundou o coração com um
jato súbito. Ela sentou-se, pálida e zonza.
— Tenha coragem, criança — disse Rachel, colocando a mão sobre a cabeça
de Elisa. — Ele está entre amigos que o trarão aqui esta noite.
— Esta noite! — Elisa repetiu. — Esta noite! — As palavras perderam o
sentido para ela, sua cabeça estava aérea e confusa. Por um momento, tudo ficou
embaçado.

Ao acordar, Elisa viu-se acomodada confortavelmente sobre a cama, coberta


com um cobertor, e a pequena Ruth lhe esfregando as mãos com cânfora. Ela
abriu os olhos em um estado de deliciosa e sonhadora languidez, como alguém
que carregou um fardo durante muito tempo e agora o tirou dos ombros e pode
descansar. A tensão dos nervos, que nunca relaxaram nem por um momento
desde a primeira hora de sua fuga, tinha sucumbido e uma estranha sensação de
segurança e calma tomou conta dela. Ela viu a porta aberta para o outro cômodo;
viu a mesa do jantar, com sua toalha alvíssima; ouviu o murmurinho nebuloso da
música da chaleira; viu Ruth andando de um lado para outro com pratos de bolo
e potes de geleias, parando aqui e ali para colocar um pedaço de bolo nas mãos
de Harry, ou para lhe fazer um carinho na cabeça, ou para enroscar os cachos de
cabelo dele nos dedos brancos dela. Viu a figura grande e maternal de Rachel,
vindo de quando em quando ao lado da cama, esticar e arrumar alguma coisa nos
lençóis, ajeitando aqui e ali, como forma de expressar sua boa vontade; e
percebia um tipo de brilho do sol refletindo de seus grandes e claros olhos
castanhos. Ela viu o esposo de Ruth entrar, viu-a voar até ele e começarem a
sussurrar muito seriamente e, de vez em quando, com gestos firmes, apontar os
dedinhos em direção ao quarto. Elisa a viu com o bebê nos braços, sentando-se
para tomar chá; viu-os à mesa, e o pequeno Harry em uma cadeira de criança sob
a sombra das grandes asas de Rachel. Havia murmúrios de conversa, estalidos
suaves de colheres de chá e a batida musical de xícaras e pires, e tudo misturado
em um maravilhoso sonho de tranquilidade; e Elisa dormiu, como ainda não
tinha dormido desde aquela meia-noite pavorosa quando tinha pegado seu filho e
fugido noite estrelada adentro.
Ela sonhou com uma terra linda – uma terra, parecia a ela, de paz –, prados
verdejantes, ilhas maravilhosas e águas brilhantes; e lá, em uma casa onde vozes
lhe diziam ser sua, ela viu seu filho brincando, uma criança livre e feliz. Ouviu
os passos do marido; sentiu-o chegar mais perto; os braços dele ao redor dela, as
lágrimas escorrendo pelo seu rosto, e então acordou! Não era um sonho. A luz do
dia havia muito que se pusera; o filho dormia tranquilamente ao seu lado; uma
vela queimava fracamente sobre a mesinha de cabeceira e seu marido soluçava
ao lado de seu travesseiro.

A manhã seguinte foi de muita alegria na casa dos quacre. A “Mãe”, Rachel,
acordou bem cedo e cercada por garotas e garotos, os quais mal tivemos tempo
de apresentar aos nossos leitores ontem, e que obedeciam, todos, aos comandos
gentis de Rachel no trabalho de fazer o café da manhã — como “É melhor
você…”, ou ainda mais gentis, como “ Não acha melhor…” —; pois o café da
manhã nos exuberantes vales de Indiana é uma coisa complicada e multiforme,
como colher folhas de rosas e podar os arbustos no Paraíso, demandando outras
mãos além das da mãe original. Assim, enquanto John corria até a fonte para
buscar água fresca, e Simeon II peneirava a farinha para os pães de milho, e
Mary moía o café, Rachel ia de um lado para outro, com gentileza e
tranquilidade, fazendo biscoitos, cortando frango e espalhando um tipo de brilho
radiante por toda a casa. Se houvesse qualquer perigo de fricção ou colisão
proveniente do entusiasmo de tantos jovens ajudantes, o comentário carinhoso
dela, “Vamos! Vamos!” ou “Eu não faria isso”, era o suficiente para amainar as
dificuldades. Os bardos escreveram sobre o cinto de Vênus, que fez cabeças
enlouquecerem por todo o mundo, geração após geração. De nossa parte,
preferimos ter o cinto de Rachel Halliday, que impedia que as cabeças saíssem
do lugar e fazia tudo fluir com harmonia. Achamos que é, definitivamente, mais
adequado aos nossos tempos mais modernos.
Enquanto aconteciam todos os preparativos, Simeon, o pai, estava em
mangas de camisa diante de um espelhinho no canto, envolvido na atividade
antipatriarcal de se barbear. Tudo acontecia tão social, tranquila e
harmoniosamente na grande cozinha — parecia que todos sentiam prazer no que
estavam fazendo, havia uma atmosfera de confiança mútua e camaradagem por
todo lado —, até mesmo as facas e garfos tinham um estalido sociável quando
colocados à mesa; e o frango e o presunto chiavam com alegria e animação na
panela, como se estivessem gostando de ser cozidos; e quando George e Elisa e o
pequeno Harry saíram do quarto, depararam-se com boas-vindas tão calorosas e
felizes que não era à toa que para eles tudo lhes parecia um sonho.
Finalmente, estavam todos sentados para o café da manhã, enquanto Mary
estava diante do fogão assando panquecas, as quais, à medida que adquiriam o
verdadeiro tom marrom-dourado perfeito, eram transferidas com muita destreza
à mesa.
Rachel nunca parecera tão verdadeira e completamente feliz à cabeceira da
mesa. Havia tanto carinho maternal até mesmo na maneira como ela passava o
prato de bolos ou servia o café, que ela parecia dar vida à comida e à bebida que
oferecia.
Era a primeira vez que George sentava-se à mesa de um branco de igual para
igual; e ele sentou-se, a princípio, com um pouco de vergonha e estranheza, mas
tudo se dissipou e desapareceu como uma nuvem, sob o agradável raio de sol da
manhã dessa bondade abundante e simples.
Este era, de fato, um lar — lar — uma palavra cujo significado George
nunca conhecera; e a crença em Deus, a confiança na providência divina
começou a circundar seu o coração, à medida que, com uma nuvem dourada de
proteção e confiança, as dúvidas ateístas, sombrias, misantropas e pungentes, e o
desespero profundo se esvaíam diante da luz do Evangelho vivo, estampado em
rostos alegres, pregado através de milhares de atos inconscientes de amor e boa
vontade, que, assim como o copo de água fria dado em nome de um discípulo,
nunca deixará de ser recompensado.
— Pai, e se for descoberto de novo? — perguntou Simeon II enquanto
passava manteiga no pão.
— Pagarei minha pena — respondeu Simeon em voz baixa.
— Mas e se o colocarem na prisão?
— Você e a mãe não conseguem cuidar da fazenda? — perguntou Simeon,
sorrindo.
— A mamãe consegue fazer quase tudo — respondeu o garoto. — Mas não é
uma vergonha fazer leis como essas?
— Não deve falar mal das leis, Simeon — disse o pai com ar de gravidade.
— O Senhor apenas nos dá nossos bens terrenos para que possamos praticar a
justiça e a misericórdia; se nossos governantes querem que paguemos por isso,
assim seja.
— Bem, eu odeio todos esses donos de escravos! — declarou o garoto, que
se sentia tão anticristão quanto qualquer outro reformista moderno.
— Estou surpreso com você, meu filho — replicou Simeon. — Sua mãe
nunca lhe ensinou essas coisas. Eu faria o mesmo tanto pelo dono de escravo
quanto pelo escravo, se o Senhor os mandasse à minha porta em aflição.
Simeon II enrubesceu, no entanto a mãe apenas sorriu e disse:
— Simeon é o meu bom menino; ele ficará mais velho e, com o tempo, será
igualzinho ao pai.
— Espero, meu bom senhor, que não seja exposto a nenhuma dificuldade
por nossa causa — George disse ansiosamente.
— Não se preocupe, George. É para isso que viemos ao mundo. Se não nos
depararmos com problemas por uma boa causa, não somos dignos de nosso
nome.
— Mas, por mim — exclamou George. — Não poderia admitir.
— Então não tenha medo, amigo George, não é por você. Fazemos por Deus
e pelos homens — explicou Simeon. — E hoje podem passar o dia
tranquilamente, e esta noite, às dez horas, Phineas Fletcher os levará até o
próximo assentamento, vocês e os seus. Os perseguidores estão bem atrás de
vocês; não podemos esperar.
— Se este é o caso, por que esperar até de noite? — perguntou George.
— Estão a salvo aqui durante o dia, pois todos na colônia são amigos e estão
vigiando. Achamos mais seguro viajar à noite.
14
EVANGELINE

“Uma nova estrela


Brilhou em nossa vida!
O reflexo doce demais para este espelho!
Um lindo ser, ainda não formado ou moldado;
Uma rosa com suas doces pétalas ainda por abrir.”1

Ó, Mississipi! Como suas paisagens mudaram, como se pelo toque de uma


varinha mágica, desde que Chateaubriand descreveu-o em prosa poética; um rio
de solidão profunda e inquebrável, correndo por entre as maravilhas
inimagináveis da existência animal e vegetal.
No entanto, em questão de horas este rio de sonhos e romance selvagem
sucumbiu a uma realidade pouco menos visionária e esplêndida. Que outro rio
no mundo carrega em seu leito, até o oceano, a riqueza e o comércio de outro
país? Um país cujos produtos abrangem tudo entre os trópicos e os pólos! Essas
águas turvas, velozes e espumosas, cortando o caminho são a imagem do
comércio efervescente carregado por suas ondas, pela raça mais ativa e enérgica
que o mundo já viu! Ah, mas essas águas também carregam uma carga mais
sombria — as lágrimas dos oprimidos, os suspiros dos aflitos, as orações
sofridas dos pobres, os corações ignorantes a um Deus — indiferente, invisível,
silencioso, mas que ainda “haverá de chegar para para salvar todos os pobres da
Terra!”.
A oblíqua luz do pôr do sol tremula sobre o rio de dimensões oceânicas; o
canavial balouçante, e os ciprestes altos e escuros cobertos de tufos de musgos
sombrios e funéreos reluzem sob o raio dourado, enquanto o barco a vapor, com
sua carga pesada, arrasta-se adiante.
Atulhado de fardos de algodão de muitas fazendas, do deque às laterais, até
parecer, à distância, um enorme bloco quadrado, maciço e cinzento, o barco
segue seu caminho pesadamente até o mercado mais próximo. Precisamos
procurar por entre o convés abarrotado antes de encontrarmos novamente nosso
humilde amigo Tomás. Lá em cima, no convés superior, em um cantinho entre os
fardos de algodão por todo lado, finalmente conseguimos encontrá-lo.
Em parte pela confiança inspirada pelas recomendações do Sr. Shelby, e em
parte pelo caráter absolutamente inofensivo e tranquilo do homem, Tomás
ganhara a total confiança de Haley.
No início, Haley o vigiava bem de perto durante o dia todo, e nunca o
deixava dormir sem ser algemado; mas a paciência irreprimível e o aparente
contentamento do comportamento de Tomás, fizeram com que Haley, aos
poucos, desse fim a esses rigores. Assim, durante um tempo, Tomás desfrutou da
“palavra de honra”, e pôde ir e vir livremente onde bem entendesse no barco.
Sempre quieto e obediente, e mais do que pronto para oferecer ajuda em toda
emergência que acontecesse entre os trabalhadores do convés inferior, Tomás era
tido em boa conta por todos os marinheiros, e gastava muitas horas ajudando-os
com o mesmo afinco e boa vontade dos tempos da fazenda do Kentucky.
Quando parecia não haver nada a fazer, ele subia até um canto entre os
fardos de algodão no convés superior e ocupava-se em estudar a Bíblia, e é ali
que o encontramos agora.
Por aproximadamente cento e cinquenta quilômetros acima de Nova
Orleans, o rio é mais alto do que a terra que o cerca, e seu volume gigantesco
flui entre enormes paredões de seis metros de altura. O viajante no convés do
barco a vapor, como se estivesse no topo de um castelo flutuante, tem a visão de
toda a terra por quilômetros e quilômetros. Tomás, assim, tinha diante de si,
fazenda após fazenda, um mapa da vida que o esperava.
Viu os escravos à distância em sua dura labuta; viu ao longe os vilarejos de
choupanas reluzindo em longas filas em várias fazendas, distantes das mansões
fabulosas e dos belos jardins dos senhorios; e à medida que o cenário móvel
passava, seu pobre e tolo coração voltava à fazenda do Kentucky, com suas
velhas faias cheias de sombra; à casa-grande, com seus corredores largos e
frescos, e ali perto, uma pequena cabana, coberta de multiflora e begônias. Lá
ele parecia ver rostos familiares de camaradas que cresceram com ele desde a
infância; via sua esposa ocupada, de um lado para o outro preparando seu jantar;
ouvia o riso alegre de seus filhos brincando, e o balbucio do bebê em seu joelho;
e então, com um sobressalto, tudo desaparece, e ele vê novamente os canaviais e
os ciprestes e as plantações deslizantes, e, de novo ouve o estalido e rugido do
motor, tudo lhe dizendo claramente que aquela fase da vida se fora para sempre.
Em casos como esse, escreve-se para a esposa e se manda recados para os
filhos; mas Tomás não sabia escrever, a correspondência não existia para ele, e
nem uma palavra ou sinal amigável poderia transpor o abismo que os separava.
Portanto, não é de se estranhar que algumas lágrimas caiam sobre as páginas
enquanto ele apoia a Bíblia sobre o fardo de algodão e, com dedos pacientes,
costura seu caminho vagarosamente, de palavra em palavra, a fim de decifrar
suas promessas. Tendo aprendido a ler já adulto, Tomás era um leitor lento, e
avançava laboriosamente de verso em verso. Sorte a dele que aquele é um livro
cuja leitura lenta não causava prejuízos; ao contrário, cada palavra, como
lingotes de ouro, sempre demanda ser pesada em separado para que a mente
possa absorver seu valor imensurável. Vamos acompanhá-lo por um momento,
enquanto, seguindo cada palavra com a ponta dos dedos, e pronunciando cada
uma a meia voz, ele lê:
“Não… deixe… que… seu… coração… se… aflija. Na… casa… do…
Pai… há… muitas… moradas. Eu… hei… de… lhe… preparar… um… lugar”.
Cícero ao enterrar sua querida e única filha, tinha o coração cheio de uma
dor tão sincera quanto a dor de Tomás; nem mais nem menos, visto que os dois
eram apenas homens. Todavia, Cícero não podia refletir sobre aquelas palavras
de esperança tão sublimes, nem esperar uma reunião futura; e, mesmo que ele as
tivesse visto, certamente não haveria de acreditar nelas; antes, teria se
preocupado com milhares de questões relativas à autenticidade do manuscrito e à
precisão da tradução. No entanto, para o desgraçado Tomás, lá estava ela,
exatamente aquilo de que ele precisava, tão absolutamente verdadeira e divina
que a possibilidade de questionamento nunca lhe passou pela cabeça simplória.
Há de ser verdade, pois, se não fosse verdade, como ele poderia viver?
A Bíblia de Tomás, apesar de não ter anotações e ajuda de sábios
comentadores, ainda assim tinha sido enfeitada com certas marcações e guias
inventados pelo próprio Tomás, e que ajudavam mais do que a maioria das
explanações cultas poderiam tê-lo ajudado. Ele fora acostumado a ouvir a Bíblia
sendo lida para ele pelos filhos de seu dono, em particular o sinhozinho George;
e, enquanto liam, ele marcava, com traços e riscos, a lápis ou à tinta, as
passagens que particularmente lhe agradavam aos ouvidos ou lhe afetavam o
coração. A Bíblia dele era, por conseguinte, toda marcada, de uma ponta à outra,
com uma variedade de estilos e nomes, assim ele poderia, em um momento,
buscar suas passagens prediletas sem o trabalho de soletrar o que estava entre
elas – e enquanto ela estivesse ali diante dele, cada passagem exalando alguma
antiga cena doméstica e relembrando alguma alegria passada, sua Bíblia parecia
ser toda a vida que lhe restara, bem como a promessa de uma vida futura.
Entre os passageiros do barco havia um jovem cavalheiro de fortuna e boa
família, residente em Nova Orleans, cujo nome era St. Clare. Ele trazia uma filha
entre cinco e seis anos de idade, juntamente com uma dama que parecia ser
aparentada com os dois e ter a pequena sob seus cuidados.
Tomás já tinha dado umas olhadelas para a garotinha, pois ela era uma
dessas criaturas agitadas e traquinas que, como um raio de sol ou uma brisa de
verão, não poderia ser contida, nem era do tipo que, uma vez vista, poderia ser
facilmente esquecida.
Ela era a forma perfeita da beleza infantil, sem o habitual traço de robustez
ou magreza. Havia nela uma graça fluida e etérea, tal como se pode imaginar em
algum ser mítico ou alegórico. Seu rosto marcante, menos pelos traços de beleza
perfeita do que pela expressão séria, singular e sonhadora, era o ponto ideal
quando olhavam para ela e, pela qual o mais tolo ou o mais sábio se
impressionava sem saber exatamente o motivo. O formato da cabeça e a volta de
seu pescoço e busto eram peculiarmente nobres, e o longo cabelo castanho-
dourado flutuava ao redor do rosto como uma nuvem, a profunda seriedade dos
olhos azuis-violetas sombreados por pesados cílios castanho-dourados, tudo a
diferenciava das outras crianças, e fazia todos se virarem e olharem, enquanto a
menina ia de um lado para o outro no barco. Todavia, a pequena não era o que se
poderia chamar de criança tristonha ou séria. Ao contrário, uma graça inocente e
aérea parecia reluzir como a sombra das folhas de verão sobre seu rosto infantil e
sua silhueta alegre. Ela estava sempre em movimento, sempre com um meio
sorriso em seus lábios rosados, indo de lá para cá, como se estivesse em um fio
flexível e etéreo, cantando para si mesma enquanto se mexia, como em um
sonho feliz. O pai e a guardiã estavam sempre atrás dela, mas, quando pega, ela
se desvencilhava deles de novo como uma nuvem de verão; e como nenhuma
palavra de desacordo ou reprovação jamais lhe chegara aos ouvidos por
quaisquer de suas atitudes, ela fazia o que bem entendia pelo barco. Sempre
vestida de branco, a garota parecia se mover como uma sombra por todos os
tipos de lugares, sem sujar nem manchar o vestido; e não havia canto nem
buraco, em cima ou embaixo, onde aqueles pezinhos de fada não tivessem
tocado, nem que aquela cabecinha dourada e visionária, com seus profundos
olhos azuis, não tivessem passado.
O foguista, ao levantar os olhos molhados de suor, às vezes encontrava
aqueles olhos mirando inquisitivamente para dentro das profundezas da fornalha
flamejante, e, medrosa e penosamente para ele, como se achasse que o homem se
encontrava em algum tipo de perigo terrível. Às vezes o timoneiro parava e
sorria quando a linda cabecinha reluzia pela janela da escotilha e, momentos
depois, desaparecia. Milhares de vezes por dia, vozes grosseiras a abençoavam e
sorrisos de rara candura se abriam em rostos rudes quando a garotinha passava; e
quando ela se aventurava sem medo por lugares perigosos, mãos calosas e
cobertas de fuligem se esticavam involuntariamente para protegê-la e tirá-la das
dificuldades.
Tomás, que tinha a natureza mansa e facilmente influenciável de sua raça
bondosa, com uma queda pelo simples e infantil, observava a criatura com um
interesse que crescia diariamente. Para ele, a garotinha parecia algo quase
divino; de onde quer que sua cabecinha dourada e seus profundos olhos azuis
pairassem sobre ele, vindos de trás de algum fardo de algodão poeirento ou do
topo de algumas caixas, ele quase acreditava que um dos anjos tinha saído do
Novo Testamento.
Várias vezes ela caminhava tristemente ao redor do lugar onde o grupo de
homens e mulheres de Haley estava acorrentado. Ela se enfiava entre eles e os
olhava com um ar sério de perplexidade e pena; e às vezes, levantava as
correntes com suas mãozinhas delicadas e suspirava cheia de pesar enquanto se
afastava. Muitas vezes aparecia entre eles de repente, com as mãos cheias de
doce, castanhas e laranjas, que distribuía alegremente entre eles e, depois, ia
embora.
Tomás observou a garotinha com grande afinco antes de arriscar alguma
proposta de amizade. Ele conhecia uma abundância de atos simples que
propiciavam e convidavam a aproximação dos pequenos, e resolveu fazer sua
parte com toda habilidade. Sabia esculpir cestinhas de caroços de cereja, fazer
caretas grotescas com castanhas americanas, ou estátuas com sementes de
sabugueiro e, como Pan, o deus grego protetor dos pastores e dos rebanhos, era
exímio confeccionador de apitos, de todos os tipos e tamanhos. Seus bolsos
estavam cheios de vários artigos atraentes, acumulados da época em que os
fizera para os filhos de seu antigo amo, e que agora ele produzira, com prudência
e economia admirável, um por um, como preliminares para o entendimento e a
amizade.
A pequenina era tímida, apesar de seu grande interesse em tudo o que
acontecia ao redor, e não era fácil aquietá-la. Durante um tempo, a garotinha
empoleirava-se feito um canarinho em alguma caixa ou pacote perto de Tomás,
que se ocupava das artes mencionadas anteriormente, e aceitava, com uma
timidez séria, os artigos que ele lhe oferecia. Por fim, acabaram ficando amigos.
— Qual o nome da sinhazinha? — perguntou Tomás, finalmente, quando
achou que fosse apropriado fazer tal questionamento.
— Evangeline St. Clare — respondeu a pequena. — Mas o papai e todo o
restante me chamam de Eva. E qual é o seu nome?
— Meu nome é Tomás; as criancinhas costumavam me chamar de Pai
Tomás, lá longe no Kentucky.
— Também vou te chamar assim, porque, sabe, eu gosto de você — disse
Eva. — Para onde está indo, Pai Tomás?
— Não sei, Srta. Eva.
— Não sabe? — perguntou Eva.
— Não. Vou ser vendido pra alguém, não sei pra quem.
— Meu pai pode te comprar — comentou Eva rapidamente. — E se isso
acontecer, vamos nos divertir muito. Vou pedir pra ele hoje mesmo.
— Obrigado, mocinha — disse Tomás.
Neste momento o barco parou em um ancoradouro para embarcar madeira e,
Eva, ouvindo a voz do pai, pulou agilmente. Tomás se levantou e ofereceu para
ajudar a embarcar a madeira, e logo estava ocupado entre os trabalhadores.
Eva e o pai estavam juntos, em pé, ao lado da grade, para ver o barco se
afastar do ancoradouro. O leme tinha feito dois ou três movimentos na água
quando, por um movimento brusco, a garotinha de repente perdeu o equilíbrio e
caiu abruptamente do barco para dentro do rio. O pai, desatinado, estava prestes
a se jogar atrás dela, mas foi segurado por alguém atrás dele, que viu que a
criança teria ajuda mais eficiente de outra pessoa.
Quando a garotinha caiu, Tomás estava bem embaixo dela, no deque inferior.
Ele a viu bater na água e afundar, e foi atrás dela imediatamente. Sendo um
sujeito de peito largo e braços fortes, não foi difícil se manter boiando na água.
Assim, rapidamente, a criança subiu à superfície e ele a tomou nos braços,
nadando com ela até a lateral do barco, levantando-a, completamente ensopada,
ao alcance de centenas de mãos que, como se pertencessem todas a um só
homem, se esticavam avidamente para recebê-la. Alguns minutos mais e o pai a
carregou, ensopada e desmaiada, até a cabina das mulheres, onde, como é
comum em casos desse tipo, houve uma rixa bem intencionada e bondosa entre
as ocupantes, que faziam de tudo pelo escarcéu e para estorvar a recuperação da
garota, de todas as maneiras possíveis.

O dia seguinte estava abafado e fechado quando o barco a vapor se


aproximou de Nova Orleans. Um vaivém de expectativa e preparação se
espalhou pelo barco; na cabina, um e outro juntavam as coisas, arrumando-se e
preparando-se para desembarcar. O serviçal e as criadas das cabinas estavam
ocupados limpando, lustrando e arrumando o esplêndio barco, preparando-se
para uma grande entrée.
No andar inferior sentava-se nosso amigo Tomás, com braços cruzados e,
ansioso, de vez em quando olhando de soslaio em direção a um grupo do outro
lado do barco.
Lá estavam Evangeline, um pouco mais pálida do que no dia anterior, mas,
de resto, sem nenhum traço do acidente que lhe sucedera. Um homem belo e
elegante estava ao lado dela, encostando o cotovelo descuidadamente sobre um
fardo de algodão, com uma grande carteira aberta diante de si. Era muito
evidente, numa primeira olhada, que o cavalheiro era o pai de Eva. Havia o
mesmo feitio nobre da cabeça, os mesmos olhos azuis, o mesmo cabelo
castanho-dourado; no entanto, a expressão era totalmente diferente. Nos grandes
olhos claros e azuis, apesar da forma e da cor exatamente iguais, havia uma
expressão nebulosa e distante; tudo era claro, arrojado e brilhante, mas com uma
luz completamente desse mundo: a boca lindamente cortada possuía uma
expressão um tanto orgulhosa e sarcástica, ao mesmo tempo em que um ar de
superioridade natural se impunha, não sem certa graça, em todos os movimentos
de sua figura elegante. Com um ar bem-humorado, negligente, meio cômico,
meio indiferente, ele ouvia a Haley, que, de modo loquaz, discorria
detalhadamente sobre a qualidade do artigo pelo qual estavam barganhando.
— Toda a moral e as virtudes cristãs em um só marroquim negro, completo!
— ele comentou quando Haley terminara. — Bem, meu bom amigo, qual é o
estrago, como eles dizem no Kentucky; em resumo, quanto devo pagar por este
negócio? Quanto vai me explorar? Diga logo!
— Bem — disse Haley —, deveria cobrar mil e trezentos dólares por um
sujeito como aquele. E não estaria ganhando nada com isso. Não estaria mesmo,
de verdade.
— Coitado! — refutou o jovem cavalheiro, fixando seus olhos azuis
penetrantes e desdenhosos em Haley. — Suponho que o venderia para mim por
esse valor pela alta consideração que tem por mim.
— Bem, a garotinha aqui parece gostar muito dele, o que é natural.
— Ah, claro, há uma razão para sua benevolência, meu amigo. Por uma
questão de caridade cristã, qual o menor preço que poderia vendê-lo, para
agradar a uma garotinha que está particularmente interessada por ele?
— Ah, veja bem — disse o mercador de escravos. — Olhe bem pra ele:
peito largo, forte como um cavalo. Olhe pra cabeça; a testa alta é sempre um
sinal de pretos inteligentes, capazes de fazer qualquer coisa. Sei disso. Um preto
dessa qualidade e porte tem um valor considerável. Valeria um bom dinheiro
apenas pelo corpo, supondo que seja estúpido; mas, se juntarmos a capacidade
de cálculo, que tenho certeza que é excelente, o preço aumenta ainda mais. Esse
sujeito tomava conta da propriedade inteira de seu amo. Tem um talento
extraordinário pra negócios.
— Mal, mal, muito mal; sabe demais! — disse o jovem cavalheiro, com o
mesmo sorriso irônico nos lábios. — Nunca se sairá bem no mundo. Esses
sujeitos espertos estão sempre fugindo, roubando cavalos, fazendo o diabo a
quatro. Acho que terá que dar um desconto de uns duzentos dólares por toda a
inteligência dele.
— Bem, pode até haver alguma verdade nisso, se não fosse pelo caráter de
Tomás; mas posso mostrar recomendações do amo dele e de outros, pra provar
que ele é religioso de verdade, a criatura mais humilde, devota e piedosa que
jamais viu. Ele era chamado de “pregador” lá de onde veio.
— E eu poderia usá-lo como capelão, possivelmente — acrescentou o jovem
cavalheiro secamente. — Essa é uma boa ideia. Religião é um artigo muito
escasso em nossa casa.
— Agora está fazendo piada.
— Como sabe se estou? Você não acabou de me garantir que ele é um
pregador? Ele já foi examinado por um sínodo ou algum conselho? Vamos lá,
deixe-me ver os papéis.
Se o mercador de escravos não soubesse, pelo brilho bem-humorado
naqueles grandes olhos azuis, de que toda essa conversa fiada com certeza
terminaria em algum tipo de lucro, poderia ter ficado impaciente; no entanto, da
forma como se apresentava, Haley colocou uma carteira ensebada sobre os
fardos de algodão e começou a estudar cuidadosamente certos papéis dentro
dela, o jovem senhor o tempo todo ao lado, olhando para ele com um ar
indiferente e irônico.
— Papa, compre ele! Não interessa o preço! — sussurrou Eva suavemente,
subindo em um caixote e enlaçando o pescoço do pai. — Tem bastante dinheiro,
sei disso. Quero ele para mim!
— Para quê, querida? Vai usá-lo como um chocalho ou um cavalinho de
balanço, ou o quê?
— Quero fazer ele feliz!
— Este é um motivo original, com certeza.
Neste momento o mercador apresentou um certificado, assinado pelo Sr.
Shelby, o qual o jovem senhor pegou com as pontas de seus longos dedos, e
passou os olhos com indiferença.
— Letra de cavalheiro — ele disse —, e bem redigido também. Mas, estou
em dúvida quanto à religião dele — ele disse, a velha expressão brincalhona
retornado a seus olhos. — O país está quase arruinado com tantos brancos
religiosos: políticos religiosos assim como temos antes das eleições, tanta
devoção acontecendo em tantos departamentos da igreja e do Estado que é
impossível para um camarada saber quem será o próximo a enganá-lo. Também
não tenho certeza sobre a religião estar à venda no mercado, como agora. Não
tenho lido os periódicos ultimamente para ver como a venda acontece. Quantas
centenas de dólares se paga por essa religião?
— O senhor gosta de fazer piadas — retrucou o mercador de escravos. No
entanto, há lógica para tudo isso. Sei que há diferença nas religiões. Algumas
são horríveis: há aquelas que têm cultos; há outras cheias de cantos e clamores; e
isso acontece tanto com os preto quanto com os branco, é isso mesmo. Já cansei
de ver preto tão bom, tranquilo, correto, honesto e devoto que nada no mundo ia
tentar eles a fazer nada que achassem errado. E pode ver nesta carta o que o
velho amo de Tomás diz sobre ele.
— Veja bem — disse o jovem cavalheiro, inclinando-se solenemente sobre a
carteira —, se puder me garantir que eu realmente possa comprar esse tipo de
religião, e que ela será usada para minha contabilidade no céu, como algo que
pertence a mim, eu não me importaria em pagar um pouco a mais por ela. O que
me diz?
— Bem, eu não posso fazer isso — retrucou o mercador de escravos. —
Acho que todo homem tem que se enforcar na própria corda, quando chegar a
sua hora.
— Muito ruim para alguém que paga a mais pela religião e não pode usá-la
na hora em que mais precisa dela, não é mesmo? — perguntou o jovem senhor,
que fazia um rolo de notas enquanto falava. — Aí está, conte seu dinheiro, meu
caro — ele acrescentou enquanto passava a quantia ao mercador de escravos.
— Tudo certo — disse Haley, o rosto resplandecente de satisfação. E tirando
um velho tinteiro, ele procedeu ao preenchimento de um certificado de vendas
que, em poucos momentos, passou para o jovem cavalheiro.
— Gostaria de saber quanto dariam por mim se eu fosse dividido e
inventariado — disse St. Clare ao passar os olhos pelo papel —, quanto eu
valeria. Por exemplo, tanto pelo formato da cabeça, tanto pela testa alta, tanto
pelos braços, e mãos e pernas e, então tanto pela instrução, sabedoria, talento,
honestidade, religião! Deus abençoe! Acho que pagariam muito pouco por essa
última. Venha, Eva! — ele disse; e pegando a mão da filha, atravessou o barco e,
colocando displicentemente a ponta do dedo embaixo do queixo de Tomás, falou
bem-humorado:
— Levante a cabeça, Tomás, e veja se gosta de seu novo senhor.
Tomás levantou os olhos. Era impossível olhar para aquele rosto jovem,
alegre e belo sem um sentimento de prazer; e Tomás sentiu as lágrimas lhe
encherem os olhos quando disse, do fundo do coração:
— Deus te abençoe, senhor!
— Bem, espero que Ele o faça. Qual o seu nome? Tomás? Seria muito bom
se também perguntasse o meu, por falar nisso. Sabe guiar cavalos, Tomás?
— Estou muito acostumado a lidar com cavalos — confirmou Tomás. — O
Sr. Shelby tinha muitos.
— Bem, acho que vou colocá-lo como cocheiro, sob a condição de que não
poderá se embebedar mais do que uma vez por semana, a não ser em casos de
emergência, Tomás.
Tomás, surpreso e muito ofendido, respondeu:
— Eu nunca bebo, senhor.
— Já ouvi essa história antes, Tomás; mas veremos. Para todos os efeitos,
será uma acomodação especial, caso não cumpra sua parte. Não se preocupe,
meu bom homem — ele continuou bem–humorado, vendo que Tomás ainda
parecia sério. — Não tenho dúvidas de que fará o melhor que puder.
— Com certeza, senhor.
— E seremos muito felizes — disse Eva. — Papa é muito bom com todos,
só que sempre ri deles.
— O Papa agradece o elogio — comentou St. Clare. E rindo, virou-se sobre
os calcanhares e afastou-se.
15
SOBRE O NOVO DONO DE TOMÁS
E OUTRAS QUESTÕES

Uma vez que a trama da vida de nosso humilde herói se entrelaçou agora à
dos de classe mais alta, é mister uma breve introdução a eles.
Augustine St. Clare era filho de um abastado fazendeiro da Louisiana. A
família tinha origem no Canadá. Dos dois irmãos, muito parecidos em
temperamento e caráter, um tinha se fixado em uma próspera propriedade em
Vermont, e o outro se tornou um rico agricultor na Louisiana. A mãe de
Augustine era uma francesa de origem huguenote, cuja família emigrara para a
Louisiana na época dos primeiros colonizadores. Augustine e o outro irmão eram
os únicos filhos de seus pais. Tendo herdado da mãe um porte extremamente
delicado, durante muitos anos da infância ele foi, mediante recomendação
médica, enviado para os cuidados do tio em Vermont, a fim de que sua
constituição pudesse ser fortalecida pelo frio de um clima mais revigorante.
Na infância, era notado por um caráter extremamente sensível, mais afeito à
suavidade das mulheres do que à rudeza comum do seu próprio sexo. O tempo
tratou de revestir essa suavidade com o rosnado bruto da virilidade; no entanto,
apenas alguns poucos sabiam o quanto ela continuava viva e fresca em sua
essência. Seus talentos eram sempre superiores, ainda que sua mente sempre
mostrasse uma preferência pelo ideal e pela estética, e havia nele a repugnância
pela vida material do dia a dia, consequência natural do equilíbrio de suas ideias.
Logo após completar seu ensino superior, todo seu corpo foi tomado pela
efervescência intensa e passional da paixão romântica. A hora dele chegara — a
hora que chega só uma vez na vida; a estrela dele surgiu no horizonte, aquela
estrela que geralmente surge do nada, para ser lembrada como uma coisa dos
sonhos; e surgiu, para ele, em vão. Para mudarmos de assunto, ele viu e
conquistou o amor de uma mulher linda e inteligente, em um dos estados do
Norte, e os dois ficaram noivos. Ele voltou para o Sul a fim de tomar as
providências para o casamento quando, inesperadamente, o correio devolveu-lhe
suas cartas pelo correio com um pequeno bilhete do tutor da noiva,
comunicando–lhe que a moça se casaria com outro. Ensandecido, ele esperou,
em vão, assim como muitos outros fizeram, arrancar tudo aquilo de seu coração
com um esforço desesperado. Orgulhoso demais para suplicar ou buscar
explicação, ele atirou-se de uma vez no turbilhão da sociedade da moda, e, num
período de quinze dias, desde o recebimento da carta fatídica, foi aceito como
noivo da rainha da estação. Então, assim que as providências foram tomadas, ele
se tornou o esposo de uma figura elegante, com belos olhos brilhantes e escuros
e cem mil dólares; e, obviamente, todos o consideravam um sujeito feliz.
O casal apreciava a lua de mel e recebia convidados num refulgente círculo
de amigos em sua maravilhosa propriedade à beira do Lago Pontchartrain
quando, certo dia, trouxeram uma carta a ele, naquela letra inesquecível. A carta
lhe foi entregue durante uma onda de conversa alegre e festiva em uma sala
repleta de convidados. Ele ficou mortalmente pálido ao ver a letra, mas ainda
assim manteve a compostura e terminou o jogo de pândega que, naquele
momento, fazia com uma parceira a sua frente. Pouco depois, retirou-se do
círculo. Em seu quarto, sozinho, ele abriu e leu a carta, agora totalmente inútil e
desnecessária. Era dela, contando uma longa história da perseguição à qual fora
exposta pelo tutor da família para que se casasse com o filho dele; e relatou
como as cartas deles, durante muito tempo, pararam de chegar; como ela
escrevera sem parar, até ficar cansada e insegura; como a saúde dela se debilitara
diante de tanta ansiedade, e como, finalmente, ela descobrira toda a fraude que
se praticara sobre ambos. A carta terminava com palavras de esperança e
agradecimento, e promessas de afeição eterna, para o jovem cavalheiro infeliz,
mais amargas do que a própria morte. Ele lhe escreveu de volta imediatamente:
“Recebi sua carta, mas é tarde demais. Acreditei em tudo o que ouvi. Fiquei
desesperado. Estou casado e tudo acabou. Apenas esqueça; é tudo o que nos
resta.”
E assim terminou toda a vida romântica e ideal de Augustine St. Clare. Mas,
a realidade continou – a realidade, assim como a onda lamacenta, insossa e
vazia, quando parte a onda azul e brilhante, na companhia dos barcos deslizantes
e navios de bandeiras brancas, da música dos remos e das águas farfalhantes,
deixando apenas ela, tediosa, lodosa, incipiente – excessivamente real.
É óbvio que nos romances as pessoas têm os corações partidos e morrem de
amor, e isso é o fim de tudo; e, em uma história, isso é muito conveniente. Mas,
na vida real, não morremos quando se acaba tudo o que nos traz alegria na vida.
Sempre há por vir o comer, o beber, o vestir, o caminhar, o visitar, o comprar, o
vender, o conversar, o ler e tudo o que forma aquilo que normalmente chamamos
de vida; e foi isso o que restou a Augustine. Se sua esposa fosse uma mulher
plena, ela teria tomado uma atitude – como as mulheres fazem – para remendar
as fibras rotas de sua existência, entrelaçando-as novamente num tecido alegre e
viçoso. No entanto, Marie St. Clare nem ao menos percebia que as tramas foram
desfeitas. Como dissemos antes, ela era uma figura elegante, um par de olhos
esplêndidos e cem mil dólares; e nenhum desses atributos serviriam, em
absoluto, para curar uma alma enferma.
Quando Augustine, pálido como a morte, foi encontrado deitado no sofá e
usou uma súbita dor de cabeça como pretexto de seu desânimo, a esposa lhe
recomendou que cheirasse raspas de chifres de veado; e quando a palidez e a dor
de cabeça retornaram semana após semana, ela disse apenas que nunca imaginou
que o Sr. St. Clare fosse doente; mas parecia que o esposo era muito suscetível a
enxaquecas e isso era uma coisa muito desagradável para ela, pois ele não
gostava de sair em sua companhia, e era muito estranho sair tanto sozinha,
quando tinham acabado de se casar. Em seu coração, Augustine estava feliz por
ter se casado com uma mulher tão insensível; mas, à medida que os brilhos e as
civilidades da lua-de-mel se foram, ele descobriu que uma jovem linda, que
viveu a vida toda paparicada e servida, revelava-se uma senhora intragável na
vida doméstica. Marie nunca tivera muita capacidade de afeição ou muita
sensibilidade, e o pouco que tinha se perdia em seu egoísmo intenso e
inconsciente, um egoísmo ainda mais desolador pela obtusidade e profunda
ignorância às necessidades alheias. Desde pequena, ela fora cercada de serviçais
que viviam apenas para atender aos seus caprichos; a ideia de que eles tinham
sentimentos e direitos nunca lhe passou pela cabeça, nem mesmo de longe. Filha
única, o pai nunca lhe negara nada que estivesse ao alcance da possibilidade
humana; e quando fora apresentada à sociedade, linda, instruída e herdeira de
uma fortuna, obviamente tinha todos os homens, elegíveis ou não, suspirando a
seus pés, e ela não tinha dúvidas de que Augustine era um homem de muita sorte
por ter conseguido se casar com ela. É um grande erro supor que uma mulher
sem coração será credora na troca de afeição. Não há sobre a terra criatura mais
extorsiva e cruel do que uma mulher absolutamente egoísta; e quanto menos ela
ama, mais exige amor, ciumenta e meticulosamente, até a última gota. Assim,
quando St. Clare deixou de lado as galanterias e pequenas atenções que fluíram
no início da corte, descobriu que a sultana não estava pronta para abrir mão de
seu escravo. Houve abundância de lágrimas, zangas e pequenas tormentas;
houve desagrados, sofrimento e acusações. St. Clare era bondoso e amável, e
tentou amenizar tudo com presentes e galanteios; e quando Marie deu à luz uma
linda filha, ele sentiu-se, por algum tempo, genuinamente despertado para algo
parecido com ternura.
A mãe de St. Clare fora uma mulher de notável elevação espiritual e
honestidade de caráter, e ele deu à filha o nome de sua mãe, esperando, de
coração, que ela se tornasse uma réplica da avó. O evento foi marcado com o
ciúme petulante da esposa, e ela via a profunda devoção do marido à criança
com suspeita e desgosto; tudo o que era dado à filha parecia estar sendo tirado
dela. Após o nascimento da criança, a saúde de Marie piorou gradualmente. Uma
vida de inatividade constante, tanto do corpo quanto da mente, a fricção entre o
tédio e o descontentamento eternos, unidos à fraqueza comum que se impõe à
maternidade, ao longo de alguns anos transformou a bela florescente em uma
mulher amarelada, pálida e doente, cujo tempo era dividido entre a variedade de
doenças imaginárias de quem se considerava, em todos os sentidos, a criatura
mais adoentada e sofredora deste mundo.
Não havia fim para as inúmeras reclamações dela; mas sua preferida parecia
ser a enxaqueca, a qual, às vezes, a confinava no quarto durante três dos seis
dias. E, obviamente, como toda a organização da casa ficava a cargo dos
serviçais, St. Clare achava seu lar qualquer coisa exceto confortável. Sua única
filha era excessivamente delicada, e ele temia que, sem ninguém para cuidá-la e
protegê-la, a vida e a saúde da garota poderiam se sacrificar à ineficiência da
mãe. Ele a levara para uma viagem a Vermont, e convencera sua prima, a Srta.
Ofélia St. Clare, a voltar com ele para sua residência no Sul; e agora estão
voltando no barco, onde os apresentamos aos nossos leitores.
E enquanto os domos e as torres distantes de Nova Orleans se erguem à
distância, ainda temos tempo de apresentar a Srta. Ofélia.
Qualquer um que já tenha viajado pelos estados da Nova Inglaterra irá
lembrar, em algum vilarejo fresco, do grande casarão da fazenda, com seus
jardins verdejantes e limpos, sombreados pela folhagem densa e maciça dos
plátanos; e também se lembrará da sensação de ordem e tranquilidade, da
perpetuação e do repouso imutável que parece pairar sobre todo o lugar. Nada
perdido ou fora do lugar; nem uma madeira solta na grade, nem um pedacinho
de lixo no jardim relvado, com seus maços de lilases crescendo debaixo das
janelas. Do lado de dentro, os cômodos são amplos e limpos, onde nada parece
feito ou à espera de ser feito, onde tudo está, hoje e sempre, rigidamente no
lugar, e onde todos os afazeres domésticos acontecem com a pontualidade exata
de um relógio antigo no canto da parede. No “Canto da Família”, como é
chamado, o viajante se lembrará da solene e respeitável estante de livros, com
suas portas de vidro, onde a História Antiga de Rollin, O paraíso perdido de
Milton, O peregrino, de Bunyan e a Bíblia da Família, de Scott ficavam lado a
lado em uma ordem decorosa, juntamente com uma variedade de outros livros,
igualmente solenes e respeitáveis. Não há serviçais na casa, mas a senhora de
óculos, com a touca alvíssima, que se senta para coser todas as tardes entre as
filhas, como se nada tivesse feito ou não tivesse nada a fazer – ela e as garotas,
em alguma hora do dia há tempos esquecida, já haviam “terminado o trabalho”,
e durante o restante do tempo, provavelmente em todas as horas em que você as
visse, o trabalho estaria “pronto”. O velho chão da cozinha nunca parece sujo ou
manchado; as mesas, as cadeiras e os diversos utensílios de cozinha nunca
parecem desarrumados ou desorganizados, apesar de três ou, às vezes, quatro
refeições serem servidas ali, apesar de as roupas serem lavadas e passadas ali, e
apesar de quilos de manteiga e queijo, de algum modo misterioso e silencioso,
serem feitos ali.
Foi nesse tipo de fazenda, nesse tipo de casa e de família que a Srta. Ofélia
viveu tranquilamente durante quarenta e cinco anos, até que o primo a convidou
para visitar sua mansão sulista. A mais velha de uma grande família, ela ainda
era considerada por seu pai e sua mãe como uma das “crianças”, e o convite para
ir a Orleans foi dos eventos mais importantes no círculo familiar. O velho pai de
cabeça grisalha tirou o Atlas de Morse da estante e calculou a latitude e
longitude exatas; em seguida, leu Viagens ao Sul e ao Oeste, de Flint, para ter
uma ideia das características da região.
A mãe bondosa perguntava, ansiosamente, “se Orleans não era um lugar
amaldiçoado”, dizendo que “era como se ela estivesse indo para as Ilhas
Sanduíche”, ou “para algum lugar selvagem”.
Era sabido pelo pastor, pelo médico e pela chapelaria da Srta. Peabody que
Ofélia St. Clare estava “falando sobre” ir para Orleans com o primo e,
obviamente, o vilarejo inteiro não podia fazer outra coisa senão ajudar nesse
processo de falar sobre o assunto. O pastor, com fortes inclinações
abolicionistas, estava em dúvida se um passo como esse não encorajaria, de
alguma forma, os sulistas a manterem seus escravos; já o médico, um
colonialista ferrenho, era da opinião que a Srta. Ofélia tinha de ir, para mostrar
às pessoas de Orleans que não temos desavenças com eles, apesar de tudo. De
fato, ele era da opinião que os sulistas precisavam de apoio. Quando, no entanto,
o fato de que ela decidira chegou ao conhecimento público, Ofélia fora
solenemente convidada para o chá por todos os amigos e vizinhos num espaço
de duas semanas, e suas perspectivas e seus planos devidamente questionados e
debatidos. A Srta. Moseley, que vinha até a casa para ajudar a preparar o guarda-
roupa, tinha acesso a informações diárias de suma importância relacionadas ao
progresso do guarda-roupa da Srta. Ofélia, que ficara a cargo dela fazer.
Acreditava-se que o Escudeiro St. Clare, como era normalmente chamado na
vizinhança, contara cinquenta dólares e os dera a Srta. Ofélia, e lhe disse para
comprar qualquer roupa que quisesse; e que os dois novos vestidos de seda e o
chapéu tinham vindo de Boston. Com relação à propriedade desse gasto
extraordinário, a opinião pública se dividia; alguns afirmavam que era
apropriado, considerando-se toda a situação, pois era uma vez na vida, enquanto
outros afirmavam resolutamente que o dinheiro seria mais bem gasto se tivesse
sido enviado aos missionários; mas todos concordavam que nunca tinham visto
uma sombrinha tão linda como aquela que chegara de Nova York, e que ela tinha
um vestido de seda que poderia andar sozinho, a despeito do que dissessem de
sua dona. Também se falava de um lenço de bolso bordado; e os falatórios
chegavam ao ponto de dizer que a Srta. Ofélia tinha um lenço de bolso com
rendas em toda a volta; dizia-se até que era trabalhado nas pontas, contudo esse
último ponto nunca foi comprovado satisfatoriamente, e permanece, até hoje, um
mistério.
A Srta. Ofélia, como foi descrita, está ali adiante em um vestido de viagem
de linho marrom bem brilhante, alta, de porte quadrado e angular. Seu rosto é
fino e de traços bem angulosos; os lábios comprimidos, como os de alguém
habituado a tomar decisões por si só no que diz respeito a todos os assuntos, ao
mesmo tempo em que os olhos escuros e perspicazes têm um movimento
particularmente curioso e alerta e vagam por tudo, como se procurassem algo
para tomar conta.
Todos os movimentos dela eram precisos, firmes e enérgicos; e, apesar de
ela não ser muito falante, quando falava suas palavras eram notavelmente
objetivas e diretas ao ponto.
Quanto aos hábitos, Ofélia era a personificação da ordem, do método e da
exatidão. Na pontualidade, ela era tão inevitável quanto um relógio, e tão
inexorável quanto um motor de locomotiva, e tinha o mais completo desprezo e
abominação por qualquer coisa contrária ao seu caráter.
O grande pecado dos pecados, aos olhos dela – a soma de todos os males –
era expressado por uma palavra muito comum e importante em seu vocabulário:
“ociosidade”. Seu desprezo final e último consistia em uma pronúncia muito
enfática da palavra “ociosidade”; e isso era caracterizado por todas as maneiras
de procedimentos que não tinham uma relação direta e inevitável com a
realização de algum propósito previamente estabelecido. Pessoas que não faziam
nada ou que não sabiam exatamente o que iriam fazer, ou aqueles que não
usavam o caminho mais curto para realizar a tarefa colocada em suas mãos, eram
objetos de seu completo desprezo, um sentimento demonstrado menos
frequentemente por qualquer palavra dita do que por um tipo de amargura fria,
como se ela desprezasse comentar qualquer coisa com relação ao assunto.
Quanto aos dotes intelectuais, ela tinha uma mente clara, forte e ativa,
conhecia profundamente história e os antigos clássicos ingleses, e raciocinava
com veemência, dentro de algumas limitações. Seus dogmas religiosos estavam
formados, inventariados de forma mais positiva e distinta possível, e tão
organizados quanto os pacotes de sua bagagem; já havia o suficiente e nunca
haveria outros. Assim também eram as ideias dela com relação à maioria dos
aspectos práticos da vida, tais como os cuidados domésticos em todas as suas
ramificações e as várias relações religiosas de seu vilarejo de origem. E, como
raiz de tudo, mais profunda, mais alta e mais ampla do que qualquer coisa,
estava o princípio mais forte de todo seu ser: a consciência. Em nenhum outro
lugar a consciência é tão dominante e tão intrínseca quanto nas mulheres da
Nova Inglaterra. É a pedra da fundação, que repousa mais fundo e se levanta até
o topo das montanhas mais altas.
A Srta. Ofélia era a escrava absoluta do “dever”. Uma vez em seu “caminho
do dever”, como ela sempre o descrevia, qualquer que fosse a direção, nem o
fogo nem a água a impediriam de realizá-lo. Ela pularia dentro de um poço ou se
colocaria diante da boca de um canhão carregado se tivesse certeza de estar
cumprindo seu dever. Seu padrão de retidão era tão alto, tão abrangente, tão
preciso, e oferecia tão poucas concessões à fragilidade humana que, ainda que
tentasse alcançá-lo com determinação heroica, ela, na verdade, nunca o atingia,
e, obviamente, era sempre atormentada pela sensação de deficiência constante e,
muitas vezes, perturbadora; isso imprimia um ar um tanto quanto sombrio e
severo a sua personalidade religiosa.
E como neste mundo a Srta. Ofélia haveria de se dar bem com Augustine St.
Clare – alegre, brincalhão, impontual, inútil e cético, em suma, alguém que
caminha com liberdade insolente e despreocupada sobre cada um de seus hábitos
e opiniões mais caros?
Para dizer a verdade, a srta Ofélia o adorava. Quando garotinho, fora ela que
lhe ensinara o catecismo, remendara suas roupas, penteara seus cabelos e o criara
à maneira que ele deveria crescer; e tendo o coração dela um lado carinhoso,
Augustine, assim como geralmente fazia com a maioria das pessoas,
monopolizara grande parte só para ele, e foi assim que ele conseguiu convencê-
la muito facilmente de que o “caminho do dever” ficava na direção de Nova
Orleans, e que ela precisava vir com ele para tomar conta de Eva e evitar que
tudo se desmantelasse e fosse às ruínas diante das doenças frequentes de sua
esposa. A ideia de um lar sem ninguém para cuidar dele tocou o coração da
prima; além disso, ela amava a adorável pequenina como poucos ousavam não
fazê-lo. E, apesar de ver Augustine como um pecador, mesmo assim ela o
amava, ria das piadas dele e era tão indulgente com suas faltas que aqueles que a
conheciam achavam absolutamente incrível. No entanto, nosso leitor deverá
descobrir outras características da Srta. Ofélia por meio de suas próprias
impressões.
Lá está ela, agora sentada em seu aposento, cercada por uma variedade de
pequenas e grandes sacolas de tecido, caixas, cestas, cada uma contendo alguma
responsabilidade única, que ela está arrumando, organizando, empacotando ou
amarrando com uma expressão de grande seriedade.
— Eva, você cuidou das suas coisas.? Claro que não; as crianças nunca
cuidam: lá está a sacola de tecido de bolinhas e a caixinha de papelão azul com
seu melhor chapéu; com essa são duas; e a sacolinha de borracha indiana, três; e
minha caixa de linha e agulha, são quatro; e minha chapeleira, cinco; e minha
caixa de colarinhos, seis; e aquele baú de pele, sete. O que fez com a sua
sombrinha? Vá pegá-la e deixe-me colocar um papel em volta dela, e amarrá-la
ao meu guarda-chuva, com a minha sombrinha; isso mesmo.
— Mas, titia, nós só estamos indo para casa. Por que tudo isso?
— Para deixar tudo arrumado, minha pequena. As pessoas devem cuidar de
seus pertences, se quiserem ter as coisas; e agora, Eva, já guardou seu dedal?
— Sinceramente, não sei, titia.
— Bem, não se preocupe. Olharei dentro de sua caixa – dedal, cera, dois
carretéis, tesouras, faca, estilete; tudo bem, coloque-o aqui. Minha pequena,
como fez quando veio apenas com seu Papa? Imagino que tenha perdido todas as
suas coisas.
— Bem, titia, eu perdi muitas coisas; e então, quando parávamos em algum
lugar, o papai comprava outra, seja lá o que fosse.
— Que Deus tenha piedade de nós, criança! Que modo de resolver as coisas!
— Era uma maneira muito fácil, titia — explicou Eva.
— É de uma ociosidade terrível — disse a titia.
— Titia, o que faremos agora? — perguntou Eva. — Aquele baú está cheio
demais para fechar.
— Pois deve fechar — disse a titia com um ar de general, enquanto apertava
as coisas dentro e subia em cima da tampa; mesmo assim, ainda sobrava um
pequeno espaço na boca do baú.
— Suba aqui, Eva! — disse a Srta. Ofélia cheia de coragem. — O que foi
feito pode ser refeito. Este baú tem de ser fechado e trancado; não temos
alternativa.
E o baú, intimidado e duvidoso após essa colocação resoluta, desistiu. O
fecho encaixou precisamente no buraco e a Srta. Ofélia virou a chave e guardou-
a triunfante.
— Agora estamos prontas. Onde está seu Papa.? Acho que está na hora
dessa bagagem ser despachada. Dê uma olhada lá fora, Eva, e veja se encontra
seu Papa.
— Ah, sim, ele está lá do outro lado da cabina dos cavalheiros comendo uma
laranja.
— Não é possível que saiba o quanto estamos perto — comentou a titia. —
Não é melhor você correr e contar a ele?
— Papa nunca está com pressa para nada — Eva falou. — E ainda não
chegamos ao desembarcadouro. Venha até as grades, titia! Olhe! Lá está nossa
casa, lá no final da rua!
O barco prepara-se agora, com rugidos pesados, como um enorme monstro
cansado, para se colocar entre os vários barcos a vapor no porto. Eva apontava
alegremente para as várias torres, os domos e marcos através dos quais
reconhecia sua cidade natal.
— Sim, sim, querida; muito linda! — disse a Srta. Ofélia. — Mas,
misericórdia! O barco já parou! Onde está seu pai?
E agora começa o costumeiro turbilhão do desembarque – serviçais correndo
para vinte lugares de uma vez só, homens puxando baús, sacolas, caixas,
mulheres chamando ansiosamente por seus filhos, e todos se juntando em uma
massa densa até a prancha em direção ao desembarcadouro.
A Srta. Ofélia sentou-se resoluta sobre o último baú conquistado e,
organizando todos seus pertences e posses em boa ordem militar, parecia
decidida a defendê-los até o final.
Choviam sobre ela pedidos de “Posso carregar o seu baú, madame?”, “Posso
levar sua bagagem?”, “Deixe-me cuidar de sua bagagem, sinhá”, “Devo carregar
essas aqui, sinhá?”, que continuava, inabalada. Sentou-se com determinação
absoluta, ereta como uma agulha enfiada em uma parede, agarrada a seu pacote
de guarda–chuvas e sombrinhas, e respondendo com determinação suficiente
para causar consternação até mesmo a um perseguidor, perguntando a Eva a cada
intervalo, “onde seu Papa estaria com a cabeça; ele não poderia ter caído, mas
alguma coisa com certeza acontecera” – e quando ela começou a ficar realmente
preocupada, ele apareceu com seu passo indiferente, como de costume, dando a
Eva um quarto da laranja que estava comendo e disse:
— Bem, prima Vermont, imagino que esteja pronta.
— Estou pronta, esperando, há quase uma hora — retrucou a Srta. Ofélia. —
Estava ficando seriamente preocupada com você.
— Aqui está um sujeito esperto — ele disse. — Bem, a carruagem está
esperando e a multidão agora já saiu, assim poderemos sair de uma maneira
decente e cristã, sem sermos empurrados ou apertados. Aqui — ele acrescentou
para um cocheiro atrás dele. — Leve essas coisas.
— Irei junto para verificar como ele as coloca na carruagem — informou a
srta Ofélia.
— Ah, prima, para quê? — perguntou St.Clare.
— Bem, de qualquer modo, eu mesma carrego isto, e isto e isto aqui — disse
Ofélia escolhendo três caixas e uma sacola.
— Minha querida Srta. Vermont, francamente, não deve atravessar as
Montanhas Verdes e chegar até nós dessa maneira. Deve se adaptar pelo menos
um pouco ao princípio sulista, e não sair por aí carregando tudo isso. Vão pensar
que é uma criada; dê tudo ao cocheiro; ele as carregará como se fossem ovos.
A Srta. Ofélia olhou desesperadamente quando o primo lhe tirou todos os
tesouros, e regozijou de alegria ao se encontrar mais uma vez entre eles na
carruagem, sãos e salvos.
— Onde está Tomás? — perguntou Eva.
— Ah, ele está lá fora, minha querida. Vou levar Tomás para sua mãe como
oferta de paz, para compensar por aquele sujeito bêbado que virou a carruagem.
— Ah, Tomás será um cocheiro esplêndido, tenho certeza — disse Eva. —
Ele nunca ficará bêbado.
A carruagem parou em frente a uma mansão antiga, construída naquela
estranha mistura de estilo francês e espanhol, cujos exemplares encontramos em
algumas partes de Nova Orleans. Ela fora construída ao estilo mouro — uma
construção quadrada com um átrio no meio, dentro do qual a carruagem passava
por um portal arqueado. O átrio, do lado de dentro, fora evidentemente decorado
para agradar um ideal pitoresco e voluptuoso. Galerias largas percorriam todos
os quatro lados, cujos arcos mouriscos, pilares estreitos e ornamentos em
arabescos levavam o pensamento para longe, como num sonho, para o reino de
romance oriental na Espanha. No meio do átrio, uma fonte alta espirrava água
prateada, o jato interminável caindo em uma bacia de mármore emoldurada por
uma densa borda de violetas perfumadas. A água na fonte, clara como cristal,
estava repleta de vida com uma miríade de peixes dourados e prateados,
reluzindo de um lado para o outro como se fossem joias vivas. Ao redor da fonte
havia uma passarela pavimentada com pedaços de mosaico assentados em vários
padrões fantásticos; e isso, também, era cercado por grama, tão macia quanto um
veludo verde, enquanto uma alameda para a carruagem circundava tudo. Duas
grandes laranjeiras, agora perfumadas pelas flores, faziam uma sombra deliciosa
e, colocados em círculo sobre a grama, havia vasos de mármore de escultura
arabesca contendo as mais variadas plantas floridas dos trópicos. Romãzeiras
enormes, com suas folhas brilhantes e flores cor de fogo, jasmins-da-Arábia de
folhas escuras e formato de estrelas, gerânios, rosas luxuriantes penduradas sob a
abundância de flores, jasmins dourados, verbenas com aroma de limão, todas
entrelaçavam seus buquês e fragrâncias, enquanto aqui e ali a mística aloé, com
suas folhas estranhas e grossas, como um velho feiticeiro, sentava-se com
inexplicável grandeza entre as flores mais perecíveis e o perfume à sua volta.
As galerias que circundavam o átrio estavam cobertas por uma cortina de
algum tipo de tecido mourisco, e podia ser puxada para tampar os raios de sol.
No geral, a aparência do lugar era luxuosa e romântica.
À medida que a carruagem entrava, Eva parecia um passarinho pronto para
sair da gaiola, com um entusiasmo quase selvagem.
— Ah, não é linda, maravilhosa? Minha queria e amada casa! — ela disse à
Srta. Ofélia. — Ela não é linda?
— É um lugar muito bonito — disse a Srta. Ofélia ao descer da carruagem.
— Apesar de me parecer um pouco velha e pagã.
Tomás desceu da carruagem e olhou ao redor com um ar de admiração
calmo e tranquilo. O negro, devemos lembrar, é um exemplar exótico de um dos
lugares mais lindos e magnificentes do mundo, e guarda, no fundo de seu
coração, uma paixão por tudo o que é esplêndido, rico e belo; paixão esta que,
grosseiramente estimulada pelo gosto inculto, faz com que os brancos, mais frios
e mais corretos, o ridicularize.
St. Clare, que, em seu coração, era um amante da poesia, sorriu diante do
comentário que a Srta. Ofélia fizera sobre sua propriedade, e virando-se para
Tomás, que estava em pé olhando tudo ao redor, o rosto preto brilhante reluzindo
com perfeita admiração, ele disse:
— Tomás, meu rapaz, isso parece lhe agradar!
— Sim, senhor, tudo parece perfeito! — comentou Tomás.
Tudo isso aconteceu em um minuto, enquanto baús eram arrastados, os
carregadores pagos e uma multidão de todas as idades e tamanhos – homens,
mulheres e crianças – vinha correndo pelas galerias, tanto de baixo quanto de
cima, para ver o amo entrar. Diante deles destacava-se um jovem mulato bem
vestido, evidentemente um personagem muito distingué, trajando uma roupa de
última moda e acenando graciosamente um lenço de cambraia perfumado na
mão.
Esse personagem empenhava-se, com grande jovialidade, em dispersar o
bando de domésticos para o outro lado da varanda.
— Para trás! Todos vocês. Que vergonha! — ele bradou com tom autoritário.
— Como ousam se meter nos assuntos domésticos do amo na primeira hora de
seu retorno?
Todos pareceram intimidados pelo discurso elegante, falado com tanta
pompa, e permaneceram agrupados a uma distância respeitável, exceto por dois
carregadores robustos que vieram e começaram a carregar a bagagem.
Graças à arrumação sistemática do Sr. Adolfo, quando St. Clare virou-se
após ter pagado o carregador, não havia ninguém à vista, exceto o próprio
Adolfo, atraente em seu colete de cetim, corrente de ouro e calças brancas, e
fazendo uma mesura com graça e suavidade inexpressáveis.
— Ah, Adolfo, é você? — perguntou o mestre, oferecendo-lhe a mão. —
Como vai, meu rapaz? — e Adolfo se inclinou para a frente, fazendo um
discurso improvisado e fluente que elaborara com o máximo de cuidado nos
últimos quinze dias.
— Muito bem, muito bem — disse St. Clare, continuando com seu
costumeiro ar de zombaria negligente. — Isso foi muito bom, Adolfo. Cuide
bem da bagagem. Irei ver minha gente daqui a pouco — e, dizendo isso, ele
acompanhou a Srta. Ofélia até uma sala grande que dava para a varanda.
Enquanto tudo isso acontecia, Eva tinha voado como um pássaro,
atravessando o pórtico e a sala, entrando em um pequeno gabinete que também
dava para a varanda.
Uma mulher alta, pálida e de olhos escuros levantou-se parcialmente do sofá
onde estava repousando.
— Mamãe! — exclamou Eva, em um tipo de explosão, jogando–se no
pescoço da mulher, abraçando-a sem parar.
— Está bem, já chega. Tome cuidado, minha fiha, não faça minha cabeça
começar a doer de novo — disse a mãe depois de lhe dar um beijo lânguido.
St. Clare entrou, abraçou a esposa ao verdadeiro estilo conjugal ortodoxo, e
em seguida lhe apresentou a prima. Marie pousou os olhos grandes sobre a prima
com um ar de curiosidade, e a recebeu com polidez apática. Uma multidão de
criados se empurrava à porta de entrada, e, entre eles, uma mulher mulata de
meia idade, de aparência muito respeitável, estava à frente, tremendo de
expectativa e alegria.
— Ah, lá está Mammy! — disse Eva e atravessou o gabinete correndo,
atirando-se nos braços dela e beijando-a repetidamente.
Esta mulher não dizia que ela lhe fazia a cabeça doer, mas, ao contrário, ela
a abraçava, e ria e chorava, até o ponto de sua sanidade ser colocada em cheque.
E, ao se desvencilhar dela, Eva ia de um para o outro, cumprimentando e
beijando, de uma maneira que a Srta. Ofélia, mais tarde, declarou quase lhe
embrulhar o estômago.
— Veja só! — declarou a Srta. Ofélia. — Vocês, crianças do Sul, podem
fazer algo que eu não podia.
— O quê, rezar? — perguntou St. Clare.
— Bem, eu sempre quis ser gentil com as pessoas, e não faria nada para
magoá-las, mas, beijar…
— Pretos — continou St. Clare. — Não os beijaria, não é?
— Sim, isso mesmo. Como ela consegue?
St. Clare riu ao entrar no corredor.
— Olá, o que está acontecendo aqui? Ei, vocês todos, Mammy, Jimmy,
Polly, Sukey, estão felizes em ver o amo novamente? — ele perguntou enquanto
cumprimentava a todos com apertos de mão. — Cuidado com os bebês! — ele
acrescentou ao tropeçar em um bebezinho todo sujo que engatinhava. — Se pisar
em alguém, me avisem.
Houve uma abundância de risadas e muitas bênçãos ao amo enquanto St.
Clare distribuía alguns trocados entre eles.
— Agora sejam bons garotos e garotas e saiam daqui! — ele ordenou; e todo
o grupo, claros e escuros, atravessou a porta e desapareceu pela grande varanda,
seguido por Eva, que carregava uma grande bolsa no ombro, que ela estivera
enchendo com maçãs, nozes, doces, laços, rendas e brinquedos de todos os tipos
durante toda sua viagem de volta para casa.
Quando St. Clare virou-se para sair, seus olhos pousaram em Tomás, que
estava em pé incomodado, de um pé ao outro, enquanto Adolfo se recostava
indiferentemente sobre o corrimão, estudando Tomás com uma luneta de ópera,
com uma pose digna de qualquer dândi.
— Ei, seu patife! — exclamou o amo, derrubando a luneta de ópera. — É
assim que se trata um acompanhante? Parece-me, Dolf — ele continuou,
colocando o dedo sobre o elegante colete de cetim que Adolfo estava vestindo
—, parece-me que isso aqui é meu colete.
— Ah, amo, este colete está todo manchado de vinho; e claro que um
cavalheiro de seu gabarito nunca veste um colete assim. Entendi que podia pegá-
lo. Ele serve para um sujeito preto miserável como eu.
E Adolfo jogou a cabeça para trás e, graciosamente, passou os dedos pelos
cabelos perfumados.
— Então é assim, não é? — perguntou St. Clare, indiferente. — Bem, vou
apresentar o Tomás à senhora, e depois você o leva até a cozinha; e nem venha
colocar seus trejeitos nele. Ele vale mais do que dois patifes como você.
— O senhor é sempre muito brincalhão — disse Adolfo, rindo. — Fico feliz
em vê-lo de tão bom humor.
— Venha, Tomás — disse St. Clare.
Tomás entrou no quarto. Olhou encantado para os tapetes de veludo, e
depois para os antes inimagináveis esplendores dos espelhos, pinturas, estátuas e
cortinas e, assim como a Rainha de Sabá diante de Salomão, não tinha mais
forças. Parecia ter medo até mesmo de colocar os pés no chão.
— Veja só, Marie — disse St. Clare à esposa. — Comprei-lhe um cocheiro,
finalmente, conforme me pediu. Ele é preto como um ataúde, e muito sóbrio, e
lhe conduzirá como em um funeral, se quiser. Abra os olhos e dê uma espiada
nele. E não diga que nunca penso em você quando estou viajando.
Marie abriu os olhos e fixou-os em Tomás, sem se levantar.
— Tenho certeza de que ele ficará bêbado — ela declarou.
— Não. Tenho por escrito que ele é bondoso e sóbrio.
— Espero que tudo corra bem — disse a mulher. — É mais do que eu
esperava.
— Dolfo — chamou St. Clare —, leve Tomás até o andar de baixo; e se
comporte — ele acrescentou. — Lembre-se do que eu lhe disse.
Adolfo seguiu graciosamente na frente, e Tomás, com passos pesados,
seguiu logo atrás.
— Ele é um perfeito hipopótamo — Marie comentou.
— Ah, por favor, Marie — retrucou St. Clare, sentando-se em um banquinho
ao lado do sofá. — Seja elegante e diga algo agradável ao seu esposo.
— Você ficou quinze dias a mais do que o previsto — reclamou a mulher,
fazendo beicinho.
— Bem, eu lhe escrevi dizendo o porquê.
— Uma carta tão curta e fria! — disse a esposa.
— Meu Deus! A correspondência estava saindo e tinha que ser aquilo ou
nada.
— É sempre assim — lamentou a mulher. — Sempre alguma coisa para
tornar suas viagens longas e as cartas, curtas.
— Olhe isso — ele continuou, tirando uma elegante caixa de veludo do
bolso e abrindo-a. — Aqui está um presente que lhe comprei em Nova York.
Era um daguerreótipo, nítido e macio como uma gravura, representando Eva
e o pai sentados de mãos dadas.
Marie olhou para ele com ar insatisfeito.
— O que os fez sentar em uma posição tão estranha? — ela perguntou.
— Ora, a posição não tem importância; mas o que você acha da semelhança?
— Se não quer saber minha opinião em um caso, suponho que não a daria no
outro — disse a mulher, fechando o daguerreótipo.
Em sua cabeça, St. Clare pensou “vá para o inferno”, no entanto, em voz
alta, ele acrescentou:
— Vamos lá, Marie, o que achou da semelhança? Não seja ridícula.
— É muita falta de consideração de sua parte, St. Clare — falou a esposa —,
insistir que eu fale e olhe para as coisas. Sabe que estive deitada o dia todo com
enxaqueca; e, desde que chegaram, tem havido tanto tumulto que estou quase
morta.
— É vítima de enxaqueca, madame? — perguntou a Srta. Ofélia,
repentinamente surgindo das profundezas de uma grande poltrona, onde ela
sentava-se em silêncio, fazendo um inventário da mobília e calculando o preço.
— Sim, sou uma mártir dela — declarou a senhora.
— Chá de zimbro é bom para enxaqueca — informou a Srta. Ofélia. — Pelo
menos é o que Augusta, a esposa do diácono Abraham Perry, costumava dizer; e
ela era uma excelente enfermeira.
— Mandarei trazer os primeiros zimbros maduros de nosso jardim perto do
lago especialmente para este propósito — declarou St. Clare, tocando a sineta
seriamente enquanto o fazia.
— Enquanto isso, prima, deve estar querendo se retirar ao seu aposento e se
refrescar um pouco, depois de nossa jornada. Dolf — ele chamou —, diga a
Mammy para vir aqui.
A mulher veneranda a quem Eva tinha abraçado tão fervorosamente logo
entrou; estava impecavelmente vestida, com um turbante vermelho e amarelo na
cabeça, um novo presente de Eva, o qual a criança estivera arrumando na cabeça
dela.
— Mammy, deixo esta senhora sob seus cuidados; ela está exausta e precisa
descansar; acompanhe-a até seu quarto e cuide para que ela esteja confortável.
E a Srta. Ofélia desapareceu no rastro de Mammy.
16
A AMA DE TOMÁS E SUAS
OPINIÕES

— E agora, Marie — disse St. Clare — seus dias de ouro estão de volta. Está
aqui nossa prima pragmática e objetiva da Nova Inglaterra, que tirará todo o
peso de responsabilidade dos seus ombros, assim você terá tempo para se
refazer, para rejuvenescer e ficar mais bonita. É melhor que a cerimônia de
entrega das chaves aconteça nas próximas duas semanas.
Essa constatação fora feita à mesa do café da manhã, alguns dias depois da
Srta. Ofélia ter chegado.
— Tenho certeza de que ela é bem-vinda — comentou Marie, encostando a
cabeça languidamente sobre uma das mãos. — Acredito que ela descobrirá, se é
que vai descobrir, que nós, as senhoras, é que somos as escravas por aqui.
— Ah, com certeza ela chegará a essa conclusão, e um mundo de outras
verdades absolutas além dessa, sem dúvida — afirmou St. Clare.
— E não venha falar sobre o fato de mantermos escravos, como se o
fizéssemos por conveniência — disse Marie. — Tenho certeza de que, se
pensássemos sobre isso, poderíamos dispensá-los de vez.
Evangeline fixou seus olhos grandes e sérios no rosto da mãe, com uma
expressão preocupada e perplexa e apenas perguntou:
— Para que os mantém aqui, mamãe?
— Além de eles serem uma praga, não sei muito bem; eles são a praga da
minha vida. Acredito que grande parte da minha saúde frágil é mais causada por
eles do que por qualquer outa coisa; e os nossos, tenho certeza, são as piores
pragas que qualquer um já recebeu.
— Ah, por favor, Marie, você está muito desanimada nesta manhã — refutou
St. Clare. — Sabe que não é bem assim. Lá está Mammy, a criatura mais
bondosa que já se viu na terra; o que faria sem ela?
— Mammy é a melhor que já conheci na vida — concordou Marie. — No
entanto, agora Mammy é egoísta, muito egoísta; é uma característica de toda sua
raça.
— Egoísmo é realmente uma falta terrível — concordou St. Clare com
gravidade.
— Lá está Mammy — continuou Marie. — Acho muito egoísta da parte dela
dormir tão pesado à noite; ela sabe que eu preciso de pequenos cuidados quase a
cada hora, quando tenho os piores momentos, e, mesmo assim, é tão difícil
acordá-la. Estou muito pior agora de manhã de tanto esforço que tive que fazer
para acordá-la a noite passada.
— Ela não se sentou com a senhora muitas noites ultimamente, mamãe? —
perguntou Eva.
— E como você sabe disso? — retrucou Marie secamente. — Ela tem
reclamado, hei de supor.
— Ela não reclamou; ela apenas me contou o quanto suas noites têm sido
ruins, sucessivamente.
— Por que não deixa Jane ou Rosa substituí-la por uma ou duas noites —
sugeriu St. Clare —, e a deixa descansar?
— Como pode propor uma coisa dessas? — indignou-se Marie. — St. Clare,
você realmente não tem nenhuma consideração. Estou tão nervosa que a melhor
respiração me perturba; e a ajuda de uma estranha me deixaria absolutamente
ensandecida. Se Mammy se interessasse por mim do jeito que deveria, ela
conseguiria acordar com mais facilidade, é claro que sim. Já ouvi falar de
pessoas com servos muito dedicados, mas eu nunca tive essa sorte — e Marie
suspirou fundo.
A Srta. Ofélia ouvira à conversa com gravidade astuta e observadora; ainda
assim mantivera os lábios cerrados, como se estivesse completamente
determinada a delimitar sua posição e seu território de atuação antes de se
comprometer.
— Veja bem, Mammy tem uma espécie de bondade — explicou Marie. —
Ela é delicada e respeitosa, mas tem o coração egoísta. E nunca vai parar de se
preocupar e de se inquietar por aquele marido dela. Quando me casei e,
obviamente vim viver aqui, tive que trazê-la comigo, e meu pai não podia se
desfazer do marido dela. Ele era um ferreiro e, claro, muito necessário; e eu
pensei e disse, na época, que Mammy e ele deviam se separar, já que seria muito
improvável que eles vivessem juntos de novo. Gostaria de ter insistido mais e ter
casado Mammy com outra pessoa; mas fui tola e indulgente, e não quis insistir.
Eu disse a Mammy, na época, que ela não deveria ter esperanças de vê-lo de
novo mais do que uma ou duas vezes na vida, pois os ares da propriedade do
papai não combinam com a minha saúde, e a aconselhei a se casar com outro;
mas não, ela não quis. Mammy às vezes é muito teimosa e ninguém vê isso tanto
quanto eu!
— Ela tem filhos? — perguntou a Srta. Ofélia.
— Sim, ela tem dois.
— Imagino que ela sinta falta deles.
— Claro que sim, mas eu não podia trazê-los. Eles eram duas coisinhas
imundas; não podia tê-los por aí; além do mais, tomavam muito o tempo dela;
mas acredito que Mammy sempre guardou rancor por isso. Ela não se casará
com mais ninguém; e acredito que, apesar de saber o quanto preciso dela e o
quanto minha saúde é frágil, ela voltaria para o marido amanhã, se pudesse.
Acredito nisso sinceramente — continuou Marie. — São tão egoístas, até mesmo
os melhores.
— É muito triste pensar nisso! — admitiu St. Clare secamente.
A Srta. Ofélia olhou atentamente para o primo e notou o rubor de
mortificação e vergonha reprimida e a curva sarcástica de sua boca enquanto
falava.
— Mammy sempre foi minha favorita — declarou Marie. — Gostaria que
alguns de seus serviçais lá do Norte pudessem ver os vestidos de seda,
musselina, de cambraia de linho, que ela tem pendurados no guarda-roupa. Eu já
cheguei a trabalhar tardes inteiras ajeitando os chapéus e deixando-a toda
arrumada para ir à festa. E ela não faz ideia do que sejam abusos. Ela nunca foi
açoitada mais do que uma ou duas vezes na vida. Toma seu café forte ou seu chá
todos os dias, com açúcar branco. É abominável, para falar a verdade; mas St.
Clare permite a vida boa nos andares de baixo, e todos eles vivem como bem
entendem. O fato é que nossos escravos são muito bem tratados. Suponho que
tenhamos um pouco de culpa por eles serem tão egoístas e agirem como crianças
paparicadas; mas já cansei de falar com St. Clare sobre isso.
— E eu também — disse St. Clare pegando o jornal.
Eva, a linda Eva, ficou escutando a mãe com aquela expressão de
preocupação profunda e mística que lhe era tão peculiar. Ela deu a volta
suavemente na cadeira da mãe e enlaçou as mãos em seu pescoço.
— O que foi agora, Eva? — perguntou Marie.
— Mamãe, será que eu poderia tomar conta da senhora por uma noite, só
uma? Sei que não devo lhe deixar nervosa e que não posso dormir. Mas, eu
sempre passo as noites acordada, pensando…
— Ah, mas que bobagem, menina! — Que tolice! — refutou Marie. — Você
é uma criança muito esquisita.
— Mas posso, mamãe? Acho — ela disse timidamente — que Mammy não
está muito bem. Ela me disse que a cabeça dela tem doído o tempo todo
ultimamente.
— Ah, só mais um dos truques de Mammy! Ela é igual a todos eles, faz um
escândalo só por causa de uma dor de cabeça de nada ou um corte no dedo; é
melhor não dar ouvidos, nunca! — ela disse virando–se para a Srta. Ofélia. —
Entenderá a necessidade disso! Se encorajar os criados a dar vazão a qualquer
opinião desfavorável ou a reclamar de qualquer pequeno incômodo, não fará
outra coisa na vida. Ninguém nunca sabe dos meus dissabores, pois eu nunca
reclamo. Acho que é meu dever suportar tudo em silêncio, e é isso o que faço.
Os olhos arredondados da Srta. Ofélia expressaram uma surpresa tão
desvelada diante dessa retórica, à qual St. Clare considerou tão absurda, que ele
caiu na gargalhada.
— St. Clare sempre ri quando eu faço a menor alusão à fragilidade da minha
saúde — disse Marie, com a voz de um mártir sofrido. — Espero que um dia ele
se lembre disso! — e Marie levou o lenço até os olhos.
E, obviamente, houve um momento de silêncio incômodo. Finalmente St.
Clare se levantou, olhou para o relógio e disse que tinha um compromisso na
rua. Eva saiu correndo atrás dele e a Srta. Ofélia e Marie ficaram sozinhas à
mesa.
— Bem típico de St. Clare! — disse a última retirando o lenço dos olhos
com um ar mais alegre, quando o criminoso a ser afetado já não podia mais ser
visto. — Ele nunca percebe, nunca percebeu nem nunca perceberá o que eu
sofro, o que tenho sofrido durante anos. Se eu fosse do tipo que reclamasse de
tudo, ou fizesse qualquer alarde sobre minhas doenças, haveria razão para tal. Os
homens se cansam, naturalmente, de uma esposa que só reclama. Mas eu tenho
guardado tudo para mim mesma, e aguentado, e aguentado, até chegar ao ponto
de St. Clare achar que eu posso aguentar qualquer coisa.
A Srta. Ofélia não sabia exatamente o que se esperava que ela respondesse.
Enquanto pensava no que dizer, Marie limpou as lágrimas aos poucos, e
ajeitou a plumagem em geral, como uma andorinha que espera fazer sua toillete
depois do banho, e começou uma conversa doméstica com a Srta. Ofélia, falando
de guarda-louças, guarda–roupas, tábuas de passar, despensas e outras questões,
as quais a última deveria, por comum acordo, assumir o controle, dando a ela
tantos direcionamentos cautelosos e tantas responsabilidades que uma cabeça
menos sistemática e focada do que a da Srta. Ofélia poderia ter ficado
profundamente tonta e confusa.
— Acho que lhe disse tudo — constatou Marie. — Assim, na minha
próxima crise de saúde, você deverá ser capaz de seguir em frente sozinha, sem
me consultar; apenas no que se refere a Eva; ela requer cuidados.
— Ela parece ser uma boa garota! — comentou a Srta. Ofélia. — Nunca vi
uma criança melhor.
— Eva é muito peculiar — disse a mãe. — Muito. Há coisas muito
singulares sobre ela; ela não é como eu, nem um pouco — e Marie suspirou
profundamente, como se essa fosse uma constatação profundamente
melancólica.
A Srta. Ofélia disse para si mesma, em seu próprio coração: “Espero que ela
não seja”, mas teve a prudência de se manter calada.
— Eva sempre foi afeita a ficar com os criados; e acredito que não seja um
problema para algumas crianças. Eu sempre brinquei com os pretinhos do meu
pai, nunca me fez mal nenhum. Mas Eva, de algum modo, sempre se coloca no
mesmo nível de igualdade de qualquer criatura da qual se aproxima. É uma
característica estranha da garota. E eu nunca fui capaz de mudá-la. E St. Clare,
eu acredito, a estimula. O fato é que St. Clare faz as vontades de todas as
criaturas sob seu teto, exceto as de sua própria esposa.
Mais uma vez, a Srta. Ofélia permaneceu em silêncio profundo.
— Não há outra maneira com os criados — explicou Marie — que não seja
colocá-los em seu devido lugar e mantê-los lá. Sempre foi natural para mim,
desde pequena. Eva sozinha consegue estragar todos os criados da casa! O que
ela fará quando tiver que cuidar da própria casa, eu não sei muito bem. Eu
sempre digo para ser bondosa com os criados; eu sempre sou; mas deve-se fazê-
los reconhecer o próprio lugar. Eva nunca o faz; não há meio de colocar na
cabeça da criança nem o princípio da ideia de qual seja o lugar de um criado!
Você a ouviu se oferecendo para tomar conta de mim à noite, para que Mammy
possa dormir! Esse é o típico exemplo de como Eva agiria o tempo todo, se fosse
deixada sozinha.
— Bem — retrucou a Srta. Ofélia com ar indiferente —, imagino que
considere seus criados como criaturas humanas e que lhes permita descansar
quando estão exaustos.
— É claro que sim. Faço questão de lhes dar tudo o que lhes convêm, desde
que não deixem de fazer suas obrigações, entende? Mammy poderá recuperar o
sono, uma hora ou outra; não vejo dificuldade com relação a isso. Ela é a
criatura mais sonolenta que eu já vi: à costura, em pé ou sentada, a criatura
dorme, em qualquer lugar, a toda hora. Não tem problema, mas Mammy dorme o
suficiente. Esse negócio de tratar os criados como se fossem flores exóticas ou
vasos de porcelana é absolutamente ridículo — relatou Marie enquanto
mergulhava languidamente para dentro das profundezas de um sofá macio e
volumoso, e puxou um vidrinho de cheiros elegantemente lapidado em sua
direção.
— Veja bem — ela continuou com uma voz fraca e feminina, como o último
suspiro de morte de um jasmim da Arábia ou algo igualmente etéreo. — Veja
bem, prima Ofélia, não costumo falar de mim. Não tenho esse hábito; não é do
meu feitio. Na verdade, não tenho forças para fazê-lo. Mas há pontos sobre os
quais eu e St. Clare discordamos. St. Clare nunca me compreendeu, nunca me
deu valor. Acho que esse é o cerne de minha saúde tão frágil. St. Clare tem boas
intenções, quero acreditar, mas os homens são geralmente egoístas e não têm
consideração pelas mulheres. Pelo menos é essa a minha impressão.
A Srta. Ofélia, provida de muita precaução, típica daqueles da Nova
Inglaterra, e com verdadeiro horror de se meter em imbróglios de família,
começava agora a prever coisas desse tipo acontecendo; assim, revestiu o rosto
de profunda imperturbabilidade e, tirando do bolso um novelo e parte de uma
meia já tricotada, que mantinha especificamente de acordo com as asserções do
Dr. Watts, quem dizia que as pessoas de mãos vazias eram o trabalho pessoal de
Satã, ela começou a tricotar energeticamente, cerrando os lábios de uma maneira
que diziam, tão claro quanto as palavras “Nem tente me fazer falar. Não quero
me envolver nos seus problemas”. De fato a Srta. Ofélia parecia tão simpática
quanto um leão de pedra. No entanto, Marie não se importava com aquilo. Ela
tinha alguém com quem conversar e sentia que era seu dever conversar, e aquilo
era suficiente; e, recobrando as forças ao cheirar de novo seu vidrinho de sais,
continuou.
— Eu trouxe minha propriedade e meus criados quando me casei com St.
Clare, e tenho o direito legal de administrá-la do jeito que bem entender. St.
Clare tinha a fortuna e os criados dele, e fico satisfeita que ele possa administrá-
la do jeito dele; mas, St. Clare interfere. Ele tem noções tresloucadas e
extravagantes sobre as coisas, particularmente com relação ao tratamento dos
escravos. Ele realmente age como se colocasse os escravos em primeiro lugar,
antes de mim e até dele próprio; ele os deixa causarem todo tipo de problema e
não levanta um dedo sequer. Com relação a outras coisas, St. Clare é realmente
assustador; ele me espanta, apesar de sua aparência bondosa em geral. Ele bate o
pé e insiste que, seja lá o que aconteça, não haverá uma só chibatada nesta casa,
exceto se eu ou ele o fizermos com as próprias mãos; e ele fala isso de tal
maneira que não ouso enfrentá-lo. E pode-se ver onde isso vai dar, pois St. Clare
não seria capaz de levantar um dedo, nem que todos passassem por cima dele; e
quanto a mim, seria muito cruel me pedir para que aplicasse um castigo. Esses
escravos não passam de crianças crescidas.
— Não sei nada sobre isso e agradeço a Deus por não saber! — refutou a
Srta. Ofélia rapidamente.
— Bem, mas deve saber de uma coisa, para o seu bem, se é que vai ficar
aqui. Não faz ideia do quanto essas criaturas são provocadoras, estúpidas,
indiferentes, irracionais, infantis e ingratas.
Toda vez que falava sobre esse tópico, Marie parecia recuperar
maravilhosamente as forças; e agora abria os olhos e parecia se esquecer de seu
torpor.
— Não imagina, e não tem como imaginar, as provações diárias, a cada hora,
os incômodos vindos deles, em todo lugar e de todas as formas, que recaem
sobre uma dona de casa. Mas não adianta nada reclamar com St. Clare. Ele fala
as coisas mais estranhas. Ele diz que fomos nós que fizemos deles o que eles
são, e que temos que aguentá-los. Diz que as faltas deles são culpa nossa, e que
seria cruel punir um erro do qual somos nós os verdadeiros culpados. Diz que
nós, no lugar deles, não seríamos melhores; como se pudesse haver termo de
comparação entre eles e nós, sabe.
— Então não acredita que Deus os fez com o mesmo sangue que nós? —
perguntou a Srta. Ofélia enfaticamente.
— Não, claro que não! Uma linda história, de fato! Eles pertencem a uma
raça degradada.
— Não acha que eles tenham alma imortal? — indagou a Srta. Ofélia com
uma indignação crescente.
— Ah, bem — respondeu Marie bocejando —, isso, claro que sim, não há
dúvidas. Mas colocá-los em quaisquer termos de igualdade conosco, como se
pudéssemos ser comparados, isso é impossível! St. Clare conversou comigo
sobre Mammy, dizendo que mantê-la afastada do marido era como me afastar do
meu próprio marido. Não existe tal comparação. Mammy não poderia ter os
mesmos sentimentos que eu. É uma coisa totalmente diferente, claro que é, mas,
ainda assim, St. Clare finge não enxergar. Como se Mammy pudesse amar seus
bebês sujinhos da mesma maneira que eu amo Eva! Ainda assim, St. Clare uma
vez, sincera e seriamente tentou me persuadir dizendo que era meu dever, com
minha saúde tão frágil e tudo o que eu sofro, deixar Mammy voltar e substituí–la
por outra pessoa. Isso foi demais, até mesmo para mim. Não costumo
demonstrar meus sentimentos. Tenho como princípio aguentar tudo em silêncio;
é o duro fardo de uma esposa, mas eu o carrego. Contudo, naquela ocasião, tive
um ataque de nervos; e, desde então, ele nunca mais tocou neste assunto. Mas sei
pelo jeito dele olhar, ou pelo jeito de falar, que continua pensando da mesma
forma; e é tão irritante, tão provocador!
A Srta. Ofélia parecia estar com medo de que fosse fazer algum comentário.
No entanto, batia uma agulha na outra de uma forma que dizia muita coisa, mas
Marie não podia compreender.
— Assim, veja bem o que precisa administrar — Marie continuou. — Uma
casa sem nenhuma regra, onde os criados fazem tudo do jeito que querem, como
lhes agrada, e têm o que querem, exceto por mim, com minha saúde tão precária,
que tento manter o controle. Mantenho meu chicote de couro por perto, e à vezes
desço a mão; mas a tarefa é muito árdua para mim. Se St. Clare fizesse as coisas,
a exemplo dos outros…
— E como é isso?
— Bem, eles os mandam para o calabouço, ou para algum outro lugar para
serem açoitados. É o único jeito. Se eu não fosse uma criatura tão doente e
miserável, acredito que poderia administrar tudo com duas vezes mais energia do
que St. Clare o faz.
— E como St. Clare consegue admistrá-los? — pergunta a Srta. Ofélia. —
Você disse que ele nunca bate neles.
— Bem, os homens têm um jeito mais incisivo, sabe como é; é mais fácil
para eles; além disso, se algum dia olhar bem fundo nos olhos de St. Clares, ele
tem um olhar muito peculiar, e quando ele fala em tom enérgico, os olhos
chegam a pegar fogo. Eu mesma tenho medo; e os criados certamente sabem que
devem obedecer. Eu não poderia, com um ataque de nervos ou com reprimendas,
fazer o mesmo que St. Clare faz apenas com o virar dos olhos, quando está
determinado. Ah, não há dúvidas com relação a St. Clare; essa é a razão por ele
não sentir mais nada por mim. Mas você verá, quando tiver que comandá-los,
que não se pode domá-los sem severidade. Eles são maus, traiçoeiros e
preguiçosos!
— A velha ladainha — disse St. Clare, entrando de repente. — Que conta
terrível essas criaturas malditas terão que prestar no juízo final, especialmente
por serem tão preguiçosas! Veja bem, prima — ele disse enquanto se esticava
confortavelmente em um sofá oposto ao de Marie —, é absolutamente
inadmissível que, à luz do exemplo que Marie e eu lhes damos, eles sejam
preguiçosos.
— Não seja tão mau assim, St. Clare! — refutou Marie.
— Eu, mau? Achei que estivesse falando bem, o que, vindo de mim, é
admirável. Tento reforçar suas considerações, Marie, sempre.
— Sabe muito bem que não quis dizer isso, St. Clare — retrucou Marie.
— Ah, então devo ter cometido um erro. Obrigado, minha cara, por me
corrigir.
— Você está mesmo tentando me provocar — disse Marie.
— Ora, ora, Marie, o dia está ficando quente e acabei de ter uma longa
conversa com Dolfo, que me deixou extremamente cansado; assim, por favor,
tenha piedade e permita que um sujeito repouse à luz do seu sorriso.
— Qual o problema com Dolfo? — perguntou Marie. — A insolência
daquele mulato tem aumentado tanto que já se tornou absolutamente intolerável
para mim. Só gostaria de tê-lo sob as minhas ordens indiscutíveis durante um
tempo. Eu o colocaria no lugar certo!
— O que está dizendo, querida, está marcado com sua acuidade e bom senso
de sempre — declarou St. Clare. — Com relação ao Dolfo, o caso é o seguinte:
ele passou tanto tempo tentando imitar meus trejeitos e perfeições, que, ao final,
acabou se confundindo com o próprio amo; e fui obrigado a esclarecer o erro que
cometeu.
— Como?
— Bem, fui obrigado a fazê-lo compreender explicitamente que eu preferia
manter algumas das minhas roupas para meu próprio uso; também coloquei um
limite para o uso de minha água de colônia, e, na verdade, fui cruel a ponto de
restringi-lo a usar apenas uma dúzia de meus lenços de cambraia. Dolfo ficou
particularmente chateado com isso, e tive que conversar com ele como um pai,
para fazê-lo entender.
— Ah, St. Clare, quando irá aprender a tratar seus criados? É abominável a
maneira como você os agrada — protestou Marie.
— Mas, afinal, qual o problema do pobre cão querer se parecer com seu
amo? Se eu não lhe ensinei nada melhor do que querer boa colônia e lenços de
cambraia, por que não deveria dá-los a ele?
— E por que não lhe ensinou nada melhor? — disse a Srta. Ofélia com
franca determinação.
— Muito complicado. Preguiça, minha prima, preguiça; ela que corrói mais
almas do que se pode contar. Se não fosse pela preguiça, eu mesmo teria sido um
anjo perfeito. Fico inclinado a pensar que a preguiça é o que o velho dr.
Botherem, lá em Vermont, costumava chamar de “essência do mal moral”. É
uma consideração terrível, em absoluto.
— Penso que vocês, senhores de escravos, tenham uma responsabilidade
enorme em seus ombros — disse Ofélia. — Eu não a aceitaria por nada neste
mundo. Precisam educar seus escravos, e tratá-los como criaturas inteligentes,
como criaturas imortais, junto com as quais vocês prestarão conta a Deus. Isso é
o que eu penso — explicou a bondosa senhora, falando de repente com uma
onda de ânimo que fora ganhando força em sua mente durante toda a manhã.
— Ah, por favor — disse St. Clare, levantando-se rapidamente. — E o que
sabe sobre nós? Então ele sentou-se ao piano e tocou uma peça de música
animada. St. Clare tinha o dom para a música. Seu toque era genial e firme, e
seus dedos corriam sobre as teclas com a agilidade e rapidez de um pássaro,
leve, porém, decisivo. Tocou uma peça depois da outra, como um homem que
tenta ficar de bom humor. Depois de deixar a música de lado, ele se levantou e
disse alegremente: — Bem, prima, você nos deu bons conselhos e cumpriu sua
função; e eu a estimo ainda mais por isso. Sem sombra de dúvida atirou um
verdadeiro diamante em mim, mas que, a princípio, me atingiu tão diretamente
na face que não foi valorizado como deveria.
— De minha parte, não vejo serventia nenhuma nesse tipo de conversa —
afirmou Marie. — Tenho certeza de que, se alguém faz mais pelos criados do
que nós, gostaria de conhecê-los; e isso não é vantagem nenhuma, nem um
pouco, pois eles ficam cada vez piores. Quanto a conversar com eles, ou fazer
qualquer coisa do gênero, tenho certeza de que já conversei com eles até ficar
cansada e rouca, explicando-lhes as obrigações e tudo o mais; e tenho certeza de
que podem ir à igreja quando desejarem, apesar de não entenderem uma palavra
do sermão mais do que um porco entenderia, assim não faz diferença nenhuma
para eles ir ou não, sob o meu ponto de vista. Mas, de qualquer forma, eles vão,
e assim têm todas as oportunidades; mas, como eu disse antes, são uma raça
degradada e sempre serão, e não há como ajudá-los nem há nada que se possa
fazer por eles, mesmo que se quisesse. Pois, veja bem, prima Ofélia, eu já tentei
e você, nunca. Eu nasci e fui criada entre eles, e sei do que estou falando.
A Srta. Ofélia achou que já dissera o suficiente e, assim, sentou–se em
silêncio. St. Clare assobiava uma música.
— St. Clare, gostaria que você não assobiasse — disse Marie. — Faz minha
cabeça piorar.
— Não assobiarei — concordou St. Clare. — Há mais alguma coisa que
você gostaria que eu não fizesse?
— Gostaria que você pudesse ter um pouco mais de simpatia pelos meus
aborrecimentos; nunca tem nenhum sentimento por mim.
— Meu querido anjo acusador! — exclamou St. Clare.
— Irrita-me muito que fale comigo dessa forma.
— Então de que maneira falarei com você? Falarei do jeito que você desejar,
de qualquer jeito, apenas para lhe satisfazer.
Uma risada alegre vinda do pátio atravessou as cortinas de seda da varanda.
St. Clare saiu e, levantando a cortina, riu também.
— O que é? — perguntou a Srta. Ofélia, vindo até a grade.
Lá estava Tomás, sobre um pequeno banco mofado do pátio, todos os botões
da camisa cheios de gardênias e Eva, rindo alegremente, estava pendurando uma
guirlanda de rosas ao redor do pescoço dele; em seguida, ela sentou-se nos
joelhos do negro, como um pardal, ainda gargalhando.
— Ah, Tomás! Está tão engraçado!
Tomás trazia um sorriso benevolente e sóbrio, e parecia, a seu jeito tímido,
estar gostando da diversão tanto quanto sua sinhazinha. Ao ver seu amo, ergueu
os olhos com um ar apologético e depreciativo.
— Como pode deixá-la fazer isso? — perguntou a Srta. Ofélia.
— E por que não? — disse St. Clare.
— Bem, sei lá, é que parece tão horrível!
— Você não veria mal algum se a criança estivesse acariciando um cão,
mesmo que ele fosse preto; mas para uma criatura capaz de pensar e raciocinar e
sentir, e que é imortal, dá de ombros; confesse, prima. Conheço muito bem o
sentimento entre alguns dos nortistas. Não que haja alguma virtude em não tê-lo;
mas costumamos fazer o que o cristianismo deve fazer: obliterar o sentimento de
preconceito pessoal. Já notei em várias de minhas viagens ao Norte, o quanto
isso é mais forte em vocês do que em nós. Vocês os desprezam como fariam com
uma cobra ou um sapo, no entanto ficam indignados diante dos erros deles.
Vocês não os maltratariam, no entanto não querem se envolver com eles. Vocês
os mandariam de volta à África, fora de suas vistas e dos seus narizes, e então
enviariam um ou dois missionários encarregados de fazer todo sacrifício de
educá-los rapidamente. Não é isso?
— Bem, primo — prosseguiu a Srta. Ofélia pensativamente. — Pode haver
alguma verdade nisso.
— E o que seria dos pobres e de baixa classe sem as crianças? — perguntou
St. Clare, escorando-se na grade e observando Eva, que corria levando Tomás
consigo. — Os pequenos são os únicos verdadeiros democratas. Tomás, agora, é
um herói para Eva; as histórias deles são sonhos aos olhos dela; as músicas e
hinos Metodistas dele são melhores do que uma ópera, e os brinquedos e
pedacinhos de lixo que traz no bolso são uma mina de pedras preciosas, e ele,
Tomás, é a pessoa mais maravilhosa do mundo que já teve uma pele negra. Esta
é uma das rosas do Éden que Deus deixou cair expressamente para os pobres e
oprimidos, que têm muito pouco de qualquer outra espécie.
— É estranho, primo — disse a Srta. Ofélia. — Poderia se pensar que você é
um professor, se o ouvirem falando.
— Um professor? — exclamou St. Clare.
— Sim; um professor de religião.
— De jeito nenhum; não um professor como vocês da cidade têm, e, o que é
pior, infelizmente tampouco um praticante.
— Então o que o faz falar assim?
— Nada é mais fácil do que falar — explicou St. Clare. — Acho que
Shakespeare fez alguém dizer um dia “Prefiro ensinar a vinte outras pessoas
como fazer o bem a ser um dos vinte a seguir meus próprios ensinamentos”.1
Nada como a divisão do trabalho. Meu forte está no falar e o seu, prima, no
fazer.
Na atual situação de Tomás não havia, como se diz por aí, nada do que
reclamar. O carinho de Eva por ele – a gratidão instintiva e o carinho de natureza
nobre – levaram-na a pedir ao pai que o negro pudesse ser seu escravo especial,
toda vez que ela precisasse da companhia de um criado, em suas caminhadas ou
cavalgadas. E Tomás tinha ordens gerais para deixar tudo de lado e servir a Srta.
Eva toda vez que ela pedisse, ordens essas que nossos leitores podem imaginar
muito distantes do desagrado de Tomás. Ele estava sempre bem vestido, pois St.
Clare era particularmente exigente quanto a isso. Seus serviços na cavalariça
eram meramente de sinecura, consistindo apenas em fazer serviços e inspeções
diárias, e comandar um criado sob seus cuidados. Marie St. Clare declarara que
ela não poderia sentir qualquer odor dos cavalos nele quando esse chegasse perto
dela, e que ele não fosse, definitivamente, colocado para fazer qualquer serviço
que o deixasse desagradável a ela, uma vez que o sistema nervoso dela estava
completamente inadequado a qualquer armadilha daquela natureza; uma
cheirada de qualquer coisa desagradável, de acordo com ela, seria o suficiente
para fechar a cortina e colocar um fim a todos seus tormentos terrenos de uma
vez por todas. Tomás, dessa forma, em seu traje de lã limpíssimo, botas de castor
lisas e brilhantes, colarinhos e punhos impecáveis, com seu rosto negro sério e
bondoso, parecia respeitável o bastante para ser o Bispo de Cartago, assim como
foram os homens de cor em outras épocas.
Além disso, estava em um lugar lindo, uma consideração à qual sua raça
sensível nunca foi indiferente: e ele apreciava, sinceramente, a alegria quieta, os
pássaros, as flores, as fontes, o perfume, a luminosidade e a beleza do pátio, as
cortinas de seda penduradas, os quadros, e lustres e estatuetas e os adornos
dourados que faziam as salas lá dentro lhe parecerem com o palácio de Aladim.
Se a África algum dia vier a exibir uma raça elevada e instruída – e um dia
certamente terá a sua vez de decifrar o grande dilema do aprimoramento do ser
humano – a vida acordará lá com esplendor e exuberância tamanhos que nossas
frias tribos do ocidente mal podem conceber. Naquela terra distante de ouro, e
pedras preciosas e especiarias e palmeiras tremulantes, e flores divinas e
fertilidade miraculosa, hão de se revelar novas formas de arte, novos estilos de
beleza; e a raça negra não será mais desprezada e humilhada e irá, talvez, exibir
algumas das revelações mais recentes e magníficas da vida humana. Certamente
a demonstrarão em sua gentileza, na docilidade do coração, na aptidão da
inteligência e da força superior, na simplicidade do afeto e na facilidade do
perdão. Em tudo isso eles hão de exibir a superioridade da tradicional vida
cristã, e, talvez, como Deus faz sofrer aqueles a quem ama, Ele escolheu a
miserável África para ser a terra da aflição, de forma a transformá–la no reino
mais nobre e superior que ainda há de surgir, quando todos os outros reinos já
tiverem sido julgados e condenados, pois os primeiros serão os últimos e os
últimos, os primeiros.
Será que era isso que Marie St. Clare estava pensando enquanto estava em
pé na varanda, maravilhosamente vestida em uma manhã de domingo, abotoando
um bracelete de diamantes em seu pulso fino? Com certeza era. Ou, caso não
fosse, pensava em algo diferente, pois Marie era a entusiasta de coisas belas e,
naquele momento, deleitava-se com a formação completa – diamantes, sedas,
rendas, joias e tudo mais – para ir a uma igreja bem frequentada cumprir com
seus deveres religiosos. Marie sempre fez questão de se mostrar muito devota
aos domingos. Lá estava ela, tão magra, tão elegante, tão leve e fluida em seus
movimentos, o xale de renda envelopando-a como uma bruma. Ela estava
graciosíssima, e realmente se sentia muito bem e muito elegante. A Srta. Ofélia,
ao lado dela, era o contraste perfeito. Não que ela não tivesse um vestido de seda
e um xale tão belo, nem um lenço de bolso tão fino; mas a rigidez, a retidão e a
integridade a envolviam com uma presença indefinida, porém, tão apreciável
quanto a graça o fazia com sua elegante companheira; todavia, não a graça de
Deus, visto que isso é uma coisa completamente diferente!
— Onde está Eva? — perguntou Marie.
— A garota parou na escadaria para dizer algo à Mammy.
E o que Eva estava dizendo à Mammy na escadaria? Preste atenção, leitor, e
ouvirá, ainda que Marie não consiga fazê-lo.
— Mammy, querida, sei que sua cabeça está doendo muito.
— Deus lhe abençoe, Srta. Eva! Minha cabeça está sempre doendo
ultimamente. Não precisa se preocupar.
— Bem, estou feliz que você vá passear; aqui — e a garotinha atirou os
braços em volta dela —, Mammy, por favor, leve meus sais.
— O quê? Essa coisa linda, com diamantes? Deus seja louvado, sinhazinha.
Isso não seria apropriado, de jeito nenhum.
— Por que não? Você precisa dele e eu não. A mamãe sempre o usa para as
dores de cabeça, e fará você se sentir melhor. Não, tem que levá-lo, para me
agradar.
— Ouça a conversa dessa criatura querida! — disse Mammy quando Eva
enfiou o frasco no decote da mulher e, beijando-a, desceu os degraus correndo
em direção à mãe.
— Por que parou?
— Só parei para dar meu frasco de sais para Mammy, para ela poder levá-lo
à igreja.
— Eva! — exclamou Marie, andando de um lado para o outro com
impaciência. — O seu frasco de sais, de ouro, para Mammy! Quando aprenderá o
que é apropriado? Vá lá e pegue-o de volta, agora!
Eva ficou triste e ofendida, e virou-se lentamente.
— Marie, por favor, deixe a garota em paz; ela fará o que quer — disse St.
Clare.
— St. Clare, o que será dessa criatura neste mundo? — perguntou Marie.
— Deus é quem sabe — disse St. Clare. — Mas ela com certeza há de se dar
bem no Paraíso, melhor do que você e eu.
— Ah, papai, não — pediu Eva baixinho, tocando o cotovelo do pai. — A
mamãe fica irritada.
— Bem, primo, está pronto para ir à missa? — perguntou a Srta. Ofélia,
fixando os olhos em St. Clare.
— Eu não vou, obrigado.
— Eu gostaria muito que St. Clare fosse à igreja — confessou Marie. —
Mas ele não tem o mínimo de religião em si. Isso é realmente um desrespeito.
— Eu sei — admitiu St. Clare. — Vocês, mulheres, vão à igreja para
aprender a viver neste mundo, eu suponho, e a devoção de vocês se espalha
respeitavelmente sobre nós. Se eu fosse, iria aonde Mammy vai; ao menos lá
fazem alguma coisa para manter o sujeito acordado!
— O quê? Aqueles metodistas barulhentos? Horrível! — exclamou Marie.
— Qualquer coisa que não seja o mar morto de suas respeitáveis igrejas,
Marie. Definitivamente, é pedir demais a um homem. Eva, você gostaria de ir?
Por favor, fique em casa e brinque comigo.
— Obrigada, papai, mas prefiro ir à igreja.
— Mas lá não é muito maçante? — perguntou St. Claire.
— Acho que é um pouco maçante — disse Eva —, e fico com sono também,
mas tento ficar acordada.
— Então por que vai?
— Bem, papai — ela respondeu em um sussurro —, a prima me disse que
Deus nos quer e Ele nos dá tudo o que queremos; e não é muito a fazer, se Ele
nos pede. Não é tão exaustivo assim, afinal.
— Que alma boa e meiga! — disse St. Clare, beijando-a. — Vá, minha filha
adorada, e reze por mim.
— Com certeza, eu sempre rezo — disse a garota ao correr atrás da mãe para
dentro da carruagem.
St. Clare ficou nos degraus e mandou um beijo para a filha quando a
carruagem saiu; lágrimas enormes lhe encobriam os olhos.
— Ah, Evangeline! Tem o nome certo! — ele disse. — E não foi Deus que
fez de você um anjo para mim?
Deixou-se envolver pelo momento; em seguida, fumou um charuto, leu o
Picayune e se esqueceu de seu anjinho. Será que ele era tão diferente de outras
pessoas?
— Veja bem, Evangeline — explicou a mãe —, é sempre certo e apropriado
ser gentil com os criados, mas não é apropriado tratá-los como se fosse uma
pessoa de nosso círculo de relações, ou pessoas de nossa própria classe social. Se
Mammy estava doente, não deve achar que poderia colocá-la em sua própria
cama.
— É exatamente o que acho, mamãe — respondeu Eva —, porque assim
seria mais fácil cuidar dela, e por que, a senhora sabe, a minha cama é melhor do
que a dela.
Marie ficou absolutamente desesperada ao perceber a falta de noção de
moralidade contida naquela resposta.
— O que preciso fazer para que essa criança me compreenda? — ela
perguntou.
— Nada — disse Ofélia com sinceridade.
Eva pareceu sentida e desconcertada por um momento; mas por sorte, as
crianças não mantêm uma impressão por muito tempo e, em poucos minutos a
garotinha ria alegremente das coisas que via pela janela enquanto a carruagem
prosseguia.

— Bem, senhoras — disse St. Clare enquanto se sentavam confortavelmente


à mesa do jantar —, e qual foi o tema de hoje na igreja?
— Ah, o dr. G… pregou um lindo sermão — respondeu Marie. — Era um
daqueles sermões que você precisava ouvir; expressou exatamente todos os meus
pontos de vista.
— Deve ter sido de grande aprimoramento! — ironizou St. Clare. — O
assunto deve ter sido muito longo.
— Bem, quis dizer todos os meus pontos de vista com relação à sociedade, e
coisas desse tipo — retrucou Marie. — O sermão dizia “Ele fez todas as coisas
belas nesta estação” e mostrou como toda a ordem e as distinções da sociedade
vêm de Deus, e isso foi tão apropriado e lindo, veja bem, que alguns devem ser
superiores e outros, inferiores, e que alguns foram feitos para governar e outros
para servir, e tudo isso. E aplicou tudo tão bem a essa baderna ridícula que é feita
sobre a escravidão, e provou distintamente que a Bíblia estava do nosso lado e
que apoiava todas as nossas instituições de forma muito convincente. Gostaria
que você o tivesse escutado.
— Ah, mas eu não precisava disso — disse St. Clare. — Posso aprender
exatamente a mesma coisa no Picayune, a qualquer hora, e, além disso, fumar
charutos, o que, obviamente, não posso fazer na igreja.
— Mas você não acredita nesses pontos de vista? — perguntou a Srta.
Ofélia.
— Quem, eu? Sabe muito bem que sou um cão tão sem graça que os
aspectos religiosos desses assuntos não me edificam muito. Se pudesse dizer
qualquer coisa sobre essa questão da escravidão, diria em alto e bom som
“Somos a favor da escravidão; temos escravos e temos intenção de mantê-los; é
de nosso interesse e conveniência”, pois isso é tudo o que há para ser dito, e é a
isso que se resume todo esse entulho religioso, no final das contas; e acho que
isso é compreensível para todos, em qualquer lugar.
— Augustine, você e sua irreverência! — retrucou Marie. — Acho chocante
ouvi-lo falar assim!
— Chocante? Mas é a verdade! Essa conversa religiosa sobre essa questão,
por que não se aprofundam e mostram toda a beleza, em todo seu esplendor, de
um sujeito bebendo demais, e jogando cartas demais, e vários arranjos
providenciais do tipo, muito comuns entre nós, os homens. Também gostaríamos
de ouvir que isso é justificável e digno de Deus.
— Bem — perguntou a Srta. Ofélia —, é contra ou a favor da escravidão?
— Não responderei com a terrível sinceridade dos cidadãos da Nova
Inglaterra, prima — St. Clare respondeu brincando. — Se eu responder a essa
questão, sei que voltará para cima de mim com mais uma dúzia de perguntas,
cada uma mais difícil do que a última; e não vou definir minha posição. Eu sou
do tipo que vive jogando pedra no telhado de vidro dos outros, mas nunca
deixarei o meu próprio telhado à mostra para jogarem pedras.
— É desse jeito que ele sempre fala — disse Marie. — Nunca se consegue
qualquer satisfação dele. Acho que é só porque não gosta de religião que sempre
foge da maneira que está fazendo agora.
— Religião! — bradou St. Clare em um tom que fez as duas mulheres
olharem para ele. — Religião! É essa a religião da qual falam na igreja? A
religião que pode virar e desvirar, subir e descer para acomodar cada fase de uma
sociedade egoísta e materialista? A religião que é menos escrupulosa, menos
generosa, menos justa e mais indiferente a um homem do que minha própria
natureza pagã, mundana e sem consideração? Não, quando procuro uma religião,
devo procurar alguma coisa acima de mim, não abaixo.
— Então não acredita que a Bíblia justifique a escravidão — declarou a Srta.
Ofélia.
— A Bíblia era o livro de minha mãe — disse St. Clare. — Ela viveu e
morreu de acordo com os seus preceitos, e eu ficaria muito decepcionado se a
Bíblia a justificasse. Eu sinceramente gostaria que ela provasse que minha mãe
poderia beber conhaque, mascar fumo e blasfemar, de forma a justificar meus
próprios atos, achando que agi corretamente fazendo o mesmo. Isso não me
deixaria mais satisfeito e me tiraria o conforto de respeitá-la; e, neste mundo, é
verdadeiramente um conforto ter algo que se possa respeitar. Em resumo, veja
bem — ele disse, repentinamente voltando ao tom de brincadeira —, tudo o que
eu quero é que coisas diferentes sejam tratadas de formas diferentes. O cenário
geral da sociedade, tanto na Europa quanto na América, é composto de várias
coisas que não suportaria o escrutínio de qualquer padrão ideal de moralidade. A
maioria das pessoas aceita que os homens não aspirem à justiça absoluta, mas
fazem apenas como o restante do mundo. Agora, quando alguém resolve falar
como um homem e diz que a escravidão é necessária, que não podemos viver
sem ela, que empobreceríamos se desistíssemos dela, então queremos mantê-la.
Essa é uma linguagem forte, clara e bem definida; ela guarda em si a
respeitabilidade da verdade, e se nós a julgarmos na prática, a maioria do mundo
nos apoiaria nisso. Mas, quando ele começa a fazer uma cara pesarosa e citar as
Escrituras, fico inclinado a pensar que ele não é muito melhor do que deveria ser.
— Você não é nem um pouco caridoso — disse Marie.
— Bem — disse St. Clare —, vamos supor que aconteça algo que derrube
definitivamente o preço do algodão e torne os escravos um fardo para os
negócios; não acha que nós logo encontraríamos outra versão da doutrina das
Escrituras? Que enxurrada de luz não inundaria a Igreja, de uma só vez, e como
se descobriria, imediatamente, que tudo na Bíblia e na razão era o contrário ao
que se dizia antes!
— Seja lá como for — refutou Marie enquanto se reclinava no sofá —, sou
grata por ter nascido em um lugar onde exista a escravidão; e acredito que ela
seja justa, com certeza, sinto que deve ser; de qualquer modo, tenho certeza de
que não conseguiria viver sem ela.
— O que você acha, minha pequena? — perguntou o pai para Eva, que
entrou neste momento com uma flor na mão.
— Sobre o que, papai?
— Do que você gosta mais, viver como vivem na casa de seu tio, em
Vermont, ou ter uma casa cheia de criados, como nós temos?
— Ah, nosso jeito é muito mais agradável, é claro — Eva respondeu.
— E por quê? — St. Clare perguntou, acariciando a cabeça da filha.
— Porque há muito mais gente para amar — explicou Eva, erguendo os
olhos preocupados.
— Isso é típico da Eva — comentou Marie. — Mais um dos comentários
estranhos dela.
— É um comentário estranho, papai? — perguntou Eva, sussurrando,
quando se sentou no joelho dele.
— No mundo de hoje, muito, minha pequena — explicou St. Clare. — Mas
onde a minha Evinha esteve durante todo o jantar?
— Ah, estive no quarto do Tomás, ouvindo-o cantar, e a Mãe Diná me serviu
o jantar.
— Ouvindo Tomás cantar?
— Ah, sim! Ele canta tantas coisas sobre a Nova Jerusalém, e anjos
brilhantes, e a terra de Canaã.
— Aposto que é muito melhor do que ópera, não é?
— É, e ele vai me ensinar as canções.
— Lições de canto, hein? Veja só!
— Sim, ele canta para mim e eu leio a Bíblia para ele; e ele me explica o que
significa.
— Palavra de honra — Marie comentou rindo —, essa é a mais nova piada
da estação.
— Tomás não é de todo ruim para explicar as Escrituras, posso apostar —
disse St. Clare. — Ele tem um dom natural para a religião. Precisava dos cavalos
mais cedo hoje de manhã e fui até o cubículo de Tomás lá em cima da cavalariça
e o ouvi rezando sozinho; e, para ser honesto, há muito tempo não ouvia nada
tão agradável quanto a oração de Tomás. Rezou por mim com um zelo
tipicamente apostólico.
— Talvez ele soubesse que você estava ouvindo. Já ouvi falar desses truques
antes.
— Se sabia, não foi muito político, pois contou a Deus sua opinião sobre
mim, muito à vontade. Tomás pareceu achar que, definitivamente, havia espaço
para eu me aprimorar e parecia querer muito que me convertesse.
— Espero que guarde isso em seu coração! — comentou a Srta. Ofélia.
— Suponho que a prima tenha a mesma opinião — declarou St. Clare. —
Bem, isso nós veremos, não veremos, Eva?
17
EM DEFESA DO HOMEM LIVRE

Havia uma pequena agitação na casa dos quacres à medida que a noite
chegava. Rachel Halliday andava silenciosamente de lá para cá, coletando alguns
itens dos armários da casa que pudessem ser arrumados rapidamente para os
viajantes que sairiam mais tarde naquela noite. As sombras da tarde se esticavam
do lado leste, e o sol redondo e vermelho pairava pensativamente sobre o
horizonte, enquanto seus raios amarelos e calmos iluminavam o interior do
quartinho onde George e sua esposa estavam sentados. Ele tinha o filho em cima
dos joelhos, e a mão da esposa sobre as dele. Ambos pareciam preocupados e
sérios, e havia vestigios de lágrimas em seus rostos.
— Sim, Elisa — disse George. — Sei que tudo o que diz é verdade. Você é
uma boa garota, muito melhor do que eu. E tentarei fazer conforme está me
pedindo. Tentarei agir como um homem digno de sua liberdade. Tentarei me
sentir como um cristão. Deus Todo-Poderoso sabe que eu tive boas intenções,
tentei muito fazer o bem, apesar de tudo que se colocou contra mim. E agora eu
esquecerei todo o passado e deixarei de lado qualquer rancor ou amargura, e
lerei a Bíblia e aprenderei a ser um bom homem.
— E quando chegarmos ao Canadá — declarou Elisa —, posso ajudá-lo. Sei
costurar muito bem; e tenho excelente conhecimento da arte de lavar e passar
roupas finas; e juntos podemos encontrar algo que nos sustente.
— Claro, Elisa, desde que tenhamos um ao outro e ao nosso filho. Ah, Elisa,
se essas pessoas soubessem que benção é para um homem sentir que sua esposa
e seu filho lhe pertencem! Cansei de ver homens que podiam chamar suas
mulheres e filhos de seus reclamando e se preocupando com outras coisas. Eu
me sinto tão rico e tão forte, apesar de não termos nada exceto mãos vazias. É
isso mesmo. Apesar de ter trabalhado muito cada dia da minha vida, até os meus
vinte e cinco anos, e não ter um centavo de dinheiro nem um teto sobre minha
cabeça, nem um pedaço de terra para chamar de meu, ainda assim, se me
deixarem em paz agora, estarei satisfeito, agradecido. Eu trabalharei e mandarei
de volta o dinheiro para você e meu filho. Quanto ao meu antigo senhor, ele já
recebeu cinco vezes mais do que tudo que pagou por mim. Não devo nada a ele.
— Mas ainda não estamos totalmente fora de perigo — refutou Elisa. —
Ainda não estamos no Canadá.
— Verdade — concordou George. — Mas me parece como se tivéssemos
sentido o cheiro da liberdade, e isso me deixa forte.
Neste momento, vozes soaram do lado de fora do quarto, numa conversa
séria, e logo se ouviu uma batida na porta. Elisa levantou–se e a abriu.
Simeon Halliday estava lá, e, com ele um irmão quacre, a quem ele
apresentou como Phineas Fletcher. Phineas era alto e magricelo, ruivo, com uma
expressão de grande astúcia e sagacidade no rosto. Ele não tinha o ar plácido,
tranquilo e simplório de Simeon Halliday; ao contrário, tinha uma aparência de
particular esperteza e confiança, como um homem que reconhece e gosta de se
vangloriar de seus conhecimentos; peculiaridades as quais não combinavam
muito bem com o seu chapéu de abas largas e o discurso formal.
— Nosso amigo Phineas descobriu algo de grande importância a você e aos
seus, George — informou Simeon. — É melhor ouvi-lo.
— Isso mesmo — confirmou Phineas —, e como sempre digo, isso mostra a
grande utilidade de um homem que sempre dorme com um olho aberto em certos
lugares. Na noite passada, parei em uma pequena taverna isolada na estrada.
Deve se lembrar do lugar, Simeon, onde vendemos algumas maçãs no ano
passado, para aquela mulher gorda de brincos enormes. Bem, eu estava cansado
da viagem e, depois do jantar, me estiquei sobre uns sacos empilhados em um
canto, e puxei uma pele de búfalo para me cobrir, para esperar até minha cama
ficar pronta; e o que faço, senão pegar rápido no sono?
— Com um olho aberto, Phineas? — disse Simeon baixinho.
— Não; dormi mesmo, olhos e ouvidos fechados e tudo mais, por uma ou
duas horas, pois estava muito cansado; mas quando despertei um pouquinho,
descobri que havia alguns homens no recinto, sentados em volta de uma mesa,
conversando e bebendo; e eu pensei, antes de fazer algum barulho, que era
melhor ver o que estavam planejando, especialmente porque estavam falando
alguma coisa sobre os quacres. “Pois é”, um deles disse, “não tenho dúvidas de
que eles estão no assentamento quacre.” Então fiquei com as duas orelhas em pé,
e descobri que estavam falando exatamente sobre esse grupo aqui. Daí fiquei
deitado, ouvindo-os revelarem seus planos. Este jovem aqui, eles disseram, é
para ser mandado de volta para o Kentucky, para seu senhor, que fará dele um
exemplo para evitar que outros pretos fujam; e esposa, dois deles descerão até
Nova Orleans para vendê-la, por conta própria, e calculavam pegar mil e
seiscentos ou mil e oitocentos dólares por ela; e a criança, disseram que irá para
um mercador de escravos que o comprara; e também tem esse garoto, Jim, e a
mãe dele, serão devolvidos para seus donos no Kentucky. Eles disseram haver
dois juízes de paz em uma cidadezinha um pouco mais para a frente, que irá com
eles para pegá-los, e a jovem mulher será levada diante de um juiz, e um dos
sujeitos, que é pequeno e de fala mansa, fará o juramento declarando-a
propriedade dele e a entregará ao homem para que a leve para o Sul. Eles têm
uma boa noção da estrada que vamos percorrer hoje à noite; e estarão atrás de
nós, seis ou oito, com certeza. E agora, o que faremos?
O grupo, que depois da comunicação de Phineas, tomou várias atitudes
diferentes, era digno de ser retratado em uma pintura. Rachel Halliday, que tirara
as mãos de uma fornada de biscoito para ouvir as notícias, ficou em pé ao lado
deles, ereta e coberta de farinha, com uma fisionomia muito preocupada. Simeon
parecia profundamente pensativo; Elisa se atirou nos braços do marido e
esperava seus comentários; George estava em pé com os punhos cerrados e os
olhos faiscantes, com a expressão semelhante a qualquer outro homem cuja
esposa seria vendida em leilão e o filho enviado a um mercador de escravos,
tudo sob a tutela das leis de uma nação cristã!
— O que devemos fazer, George? — Elisa perguntou sussurrando.
— Eu sei o que eu vou fazer — respondeu George ao entrar no quarto e
começar a examinar suas pistolas.
— Ei, ei — disse Phineas, balançando a cabeça para Simeon —, podemos
ver como isso acabará, Simeon!
— Posso ver — disse Simeon, suspirando fundo. — Rezo para que não
chegue a tal ponto.
— Não quero envolver ninguém comigo ou por mim — declarou George. —
Se me emprestar sua carroça e me mostrar a direção, irei sozinho até o próximo
assentamento. Jim tem a força de um gigante e é corajoso como a morte e o
desespero; e eu também.
— Ah, muito bem, meu amigo — disse Phineas. — Mas precisará de um
guia para tudo isso. É muito bom que se disponha a lutar e tudo mais; mas sei de
uma ou outra coisinha sobre a estrada que você não sabe.
— Mas não quero comprometê-lo — retrucou George.
— Comprometer-me? — perguntou Phineas com uma expressão curiosa e
astuta no rosto — Quando você me comprometer, por favor, me avise.
— Phineas é um homem sábio e habilidoso — explicou Simeon. — Fará
bem em confiar no julgamento dele, George, e — acrescentou colocando
gentilmente a mão sobre o ombro de George, e apontando para as pistolas —,
tome cuidado com essas coisas; os jovens costumam ter sangue quente.
— Não atacarei ninguém — prometeu George. — Tudo o que quero deste
país é que me deixem em paz, e eu irei embora em paz, mas — ele fez uma
pausa, e a sua expressão tensa escureceu e seu rosto franziu — tenho uma irmã
que foi vendida naquele mercado de Nova Orleans e sei para que elas são
vendidas; e acham que vou ficar olhando levarem e venderem minha esposa,
quando Deus me deu um par de braços fortes para defendê-la? Não! Deus me
ajude! Lutarei até o último suspiro antes de deixá-los levar minha esposa e meu
filho. E alguém pode me condenar por isso?
— Nenhum mortal pode condená-lo, George. Assim são a carne e o sangue
— disse Simeon. “Ai do mundo pelas ofensas, mas ai daquele homem por quem
as ofensas vêm.”
— O senhor não faria o mesmo em meu lugar?
— Rezo para nunca cair na tentação — respondeu Simeon. — A carne é
fraca.
— Acho que nesse caso, minha carne seria bem forte — disse Phineas,
esticando os braços tão longos quanto as pás de um moinho de vento. — Não
tenho certeza, amigo George, se não seguraria um sujeito para você, se não
tivesse condições de acertar as contas sozinho.
— Caso o homem venha algum dia resistir ao mal — explicou Simeon —,
esse é o momento de George se sentir livre para fazê-lo: mas os líderes de nosso
povo nos ensinaram uma forma melhor; pois o ódio do homem não trabalha a
favor da justiça divina, mas sim contra a vontade corrupta do homem, e ninguém
pode ser digno dela exceto aqueles que a recebem. Rezemos ao Senhor para não
cairmos em tentação.
— Sendo assim, eu sou digno — disse Phineas. — Mas, se formos tentados
demais; bem, espero que eles tomem cuidado, isso é tudo.
— Dá para perceber que você não é um Irmão de nascença — Simeon
comentou sorrindo. — Sua antiga natureza ainda exerce grande força sobre você.
Para dizer a verdade, Phineas era um homem das florestas, briguento e
truculento, vigoroso caçador e exímio atirador; mas, tendo se casado com uma
linda quacre, fora convencido pelo poder de seus encantos a se juntar à
sociedade ao seu redor e, apesar de ser um membro honesto, sóbrio e eficiente, e
não ter nada em particular que o desabonasse, os mais espiritualizados entre eles
não conseguiam fazer outra coisa a não ser notar uma grande falta de fervor em
seu desenvolvimento religioso.
— O amigo Phineas sempre terá seu próprio jeito de resolver as coisas —
disse Rachel Halliday, sorrindo. — Mas todos achamos que seu coração,
finalmente, está no lugar certo.
— Bem — perguntou George —, não é melhor apressarmos nossa saída?
— Acordei às quatro da manhã, e vim a toda velocidade, umas boas duas ou
três horas à frente deles, se começarem no horário que planejaram. De qualquer
forma, não é seguro sairmos antes do anoitecer, pois há algumas pessoas muito
más nos vilarejos à frente, que podem estar dispostas a se meterem conosco, se
virem nossa carroça, e isso nos atrasaria mais do que esperar para sair daqui;
mas acho que podemos nos aventurar daqui a duas horas. Irei até a casa de
Michael Cross e pedirei a ele para vir atrás, em seu garrano, para manter os
olhos bem abertos na estrada e nos avisar caso tenhamos a companhia dos
homens. Michael tem um cavalo capaz de ultrapassar a maioria dos cavalos, e
poderia correr na frente para nos avisar caso surja algum perigo. Vou sair agora
para dizer a Jim e à velha mulher para ficarem prontos, e dar uma olhada nos
cavalos. Temos uma vantagem razoável, e uma boa chance de chegarmos até o
próximo assentamento antes que eles nos alcancem. Tenha coragem, George!
Essa não é a primeira vez que tenho complicações com o seu povo — Phineas
disse enquanto fechava a porta.
— Phineas é muito astuto — disse Simeon. — Ele fará de tudo por vocês,
George.
— E sinto muito pelo risco que estão correndo! — desculpou-se George.
— Por favor, não fale mais sobre isso, meu amigo George. Fazemos o que
manda nossa consciência; não poderia ser de outra forma. E agora, mãe — ele
disse virando-se para Rachel —, apresse os preparativos para nossos amigos,
pois não podemos deixá-los ir embora com fome.
E enquanto Rachel e os filhos se ocupavam em fazer os bolinhos de milho,
cozinhar o presunto e o frango, e se apressavam com os et ceteras da refeição
noturna, George e a esposa sentaram–se no quartinho, abraçados, num tipo de
conversar que só esposo e esposa têm quando sabem que algumas poucas horas
podem separá-los para sempre.
— Elisa — disse George —, as pessoas que têm amigos, e casas, e terras e
dinheiro, e todas essas coisas, não conseguem amar como nós, que não temos
nada senão um ao outro. Até lhe conhecer, Elisa, nenhuma criatura jamais me
amou, exceto minha mãe e minha irmã, pobres criaturas miseráveis. Eu vi a
pobre Emily na manhã em que o mercador de escravos a levou. Ela veio até o
canto onde eu estava dormindo e disse: “Pobre George, sua última amiga está
partindo. O que será de você, coitadinho?”. E eu me levantei e joguei os braços
em volta dela e chorei e solucei, e ela também chorou; e essas foram as últimas
palavras de carinho que recebi durante dez longos anos; e meu coração estava
murcho, seco como cinzas, até eu encontrar você. E o seu amor! Foi quase como
ressuscitar um morto! Desde então, tornei-me um novo homem! E agora, Elisa,
sou capaz de dar até minha última gota de sangue, mas eles não a tirarão de
mim. Seja lá quem for que lhe pegue, terá que passar por cima do meu cadáver.
— Ah, Senhor, tenha piedade! — disse Elisa soluçando. — Permita que
saiamos deste país todos juntos, isso é tudo o que lhe peço.
— Deus está do lado deles? — perguntou George, falando mais com seus
próprios pensamentos amargos do que com sua esposa. — Será que Ele vê tudo
o que fazem? Por que deixa coisas assim acontecerem? E eles nos dizem que a
Bíblia está do lado deles; o poder, isso sim está com certeza. Eles são ricos,
saudáveis e felizes; são membros das igrejas, com expectativa de ir para o céu; e
se dão tão bem na vida, e fazem tudo do jeito que querem; e os cristãos, pobres,
honestos e crentes – cristãos tão bons ou até melhores do que eles – são
humilhados sob a poeira de seus pés. Eles os compram e os vendem, ganham
dinheiro com o sangue de seus corações, seus gemidos e suas lágrimas; e a eles
Deus permite tudo.
— Amigo George — disse Simeon da cozinha. — Ouça a este Salmo; acho
que lhe fará bem.
George puxou a cadeira para perto da porta e Elisa, enxugando as lágrimas,
também se aproximou para ouvir, enquanto Simeon lia o seguinte:
— “Quanto a mim, por pouco não escorreguei; mas meus passos não
sucumbiram. Tive inveja dos tolos quando vi a prosperidade dos ímpios. Eles
não passam por sofrimentos nem são amaldiçoados como outros homens. Assim,
o orgulho lhes serve de colar; a violência os encobre como um manto. Seus olhos
são cheios de fartura; possuem mais do que o coração pode desejar. São
corruptos e falam com malícia sobre a opressão; falam com soberba. E o povo de
Deus se volta para eles, e as águas da abundância lhes são confiscadas, e então
perguntam Como Deus pode saber disso? Será que o Altíssimo sabe de todas as
coisas?” Não é assim que se sente, George?
— É exatamente assim — respondeu George. — Eu mesmo poderia ter
escrito essas palavras.
— Então, ouça — pediu Simeon. — “Quando imaginei entender tudo isso,
foi muito doloroso, até que entrei no santuário de Deus. E então compreendi o
destino dos ímpios. Certamente os porá em lugares escorregadios, os fará
mergulhar na destruição. Como um sonho do qual se acorda, Ó Deus, quando
levantares, irá desprezá–los. Todavia, hei de permanecer ao seu lado; pois
segurará minha mão direita e me guiará com seus conselhos, e depois, me
receberá com glórias. Faz-me bem ficar perto de Deus, e deposito minha
confiança no Senhor, Deus Todo-Poderoso.”
As palavras de confiança divina, ditas pelo amigável senhor, tocaram como
uma música sagrada sobre o espírito perturbado e cansado de George; e depois
que as ouviu, ele sentou-se com uma expressão suave e tranquila em seu rosto de
traços delicados.
— Se o mundo fosse só isso, George — disse Simeon —, poderia se
perguntar onde está Deus? Mas geralmente são aqueles que têm menos na vida
os escolhidos para o reino Dele. Deposite sua confiança Nele,
independentemente do que acontecer, pois, no final, a justiça será feita.
Se essas palavras tivessem vindo de um pregador hedonista, de cujos lábios
tivessem saído apenas como floreados retóricos e devotos, feitas para se dirigir a
pessoas desesperadas, talvez não tivessem surtido tanto efeito; mas vindas de
alguém que tranquila e diariamente arriscava-se a ser multado e aprisionado pela
causa de Deus e dos homens, tiveram um peso inestimável, e os dois fugitivos,
desolados e aflitos, encontraram calma e força emanando delas.
E então Rachel pegou carinhosamente a mão de Elisa e levou a jovem até a
mesa do jantar. No momento em que estavam se sentando, ouviram uma batida
suave à porta, e Ruth entrou.
— Vim correndo — ela disse — com essas meinhas para o garoto, três pares
de meias de lã quentinhas e gostosas. Sabem que faz muito frio no Canadá.
Continue com coragem, Elisa! — ela acrescentou, dando a volta até o lado da
mesa onde Elisa estava, apertando-lhe a mão com força e colocando um bolo de
cominho na mão do garoto. — Trouxe uns pedaços de bolo para ele — ela
explicou, enfiando a mão no bolso para tirar o pacote. — As crianças estão
sempre comendo, não é?
— Ah, muito obrigada. Você é muito bondosa — agradeceu Elisa.
— Venha, Ruth, sente-se para jantar conosco — convidou Rachel.
— Não posso, infelizmente. Deixei John com o bebê e alguns biscoitos no
forno; não posso ficar nenhum minuto, caso contrário John queimará os biscoitos
e dará o açúcar do pote ao bebê. É assim que ele faz — disse a pequena quacre,
rindo. — Bem, adeus Elisa, adeus George. Que Deus lhes abençoe a jornada — e
com alguns passinhos curtos, Ruth saiu da casa.
Um pouco depois do jantar, uma grande carroça coberta parou em frente à
porta; a noite estava clara e estrelada, e Phineas saltou abruptamente de seu
assento para ajudar seus passageiros. George saiu à porta, carregando o filho e de
braços dados com a esposa. O passo dele estava firme, seu rosto calmo e
resoluto. Rachel e Simeon os seguiram.
— Saiam daí por um momento — disse Phineas para os que já estavam lá
dentro da carroça. —, e me deixem arrumar ao fundo da carroça, para as
mulheres e o garoto.
— Aqui estão duas peles de búfalo — disse Rachel. — Deixe os assentos o
mais confortável que puder; a viagem será dura a noite toda.
Jim saiu primeiro e ajudou com cuidado a velha mãe, que se agarrava ao
braço dele e olhava ansiosamente por todo lado, como se estivesse esperando um
perseguidor a qualquer momento.
— Jim, suas pistolas estão em ordem? — perguntou George com uma voz
baixa e firme.
— Sim, estão — Jim respondeu.
— E não tem dúvidas sobre o que fazer, caso eles apareçam?
— Melhor pensar que não — disse Jim, abrindo o peito largo e respirando
fundo. — Acha que vou deixá-los pegarem minha mãe de novo?
Durante essa breve conversa, Elisa esteve se despedindo de sua bondosa
amiga Rachel, e Simeon a ajudou a subir na carroça; e, espremendo-se no fundo
com o garoto, sentou-se entre as peles de búfalo. A velha senhora foi ajudada
pela mão e sentou-se, e George e Jim colocaram um banco duro em frente a elas,
e Phineas sentou–se na frente.
— Adeus, meus amigos! — Simeon despediu-se do lado de fora.
— Deus lhes abençoe! — responderam todos do lado de dentro.
E a carroça saiu, estalando e sacudindo pela estrada congelada.
Não havia como conversar, por conta da estrada precária e do barulho das
rodas. O veículo, assim, seguia ruidosamente por extensos pedaços de florestas
escuras, por planícies amplas e ressequidas, por montanhas e vales, sem parar,
hora após hora. O garoto logo pegou no sono e deitou-se pesadamente sobre o
colo da mãe. A velha senhora, assustada e aflita, finalmente se esqueceu de seus
medos; e à medida que a noite se aprofundava, a ansiedade de Elisa foi
insuficiente para evitar que ela fechasse os olhos. Phineas parecia, no geral, o
mais alerta do grupo e se entretinha assobiando certas canções não muito
religiosas para um quacre, à medida que prosseguiam pelo caminho.
Contudo, por volta das três da manhã, o ouvido de George capitou o galope
apressado e firme de cascos de cavalo vindo atrás deles à distância e puxou
Phineas pelo cotovelo. Phineas parou os cavalos e ouviu.
— Deve ser Michael — ele disse. — Acho que conheço o som do galope
dele — e então se levantou e esticou a cabeça ansiosamente para olhar a parte de
trás da estrada.
Na penumbra, no topo de uma montanha distante, podia-se ver um homem
vindo a galope.
— Lá está ele, eu acho! — disse Phineas. George e Jim saíram da carroça
antes de pensar no que estavam fazendo. Todos ficaram em silêncio profundo,
com seus rostos virados na direção do esperado mensageiro. E ele vinha. Agora
descia por um vale, onde não podiam vê-lo, mas ouviam o trote apressado e
agudo, chegando cada vez mais perto; finalmente o viram emergir no cume de
uma protuberância, ao alcance de um grito.
— Sim, é o Michael! — disse Phineas e, erguendo a voz: — Ei, olá,
Michael!
— Phineas! É você?
— Sim. Quais são as novidades? Eles estão vindo?
— Logo atrás, oito ou dez, a cara cheia de conhaque, praguejando e
espumando como uma matilha de lobos.
E, assim que ele falou, uma brisa trouxe o som longínquo de cavaleiros
galopando em direção a eles.
— Entrem! Rápido! Entrem, rapazes! — ordenou Phineas. — Se forem lutar,
esperem até chegarmos um pouco mais à frente — E ouvindo isso, os dois
entraram e Phineas chicoteou os cavalos para correrem, o cavaleiro bem ao lado
deles. A carroça rangia, pulava, quase voava sobre a estrada congelada; no
entanto, cada vez mais claro ficava o barulho dos cavaleiros que os perseguiam.
As mulheres ouviram e, olhando ansiosamente para fora, bem para trás, viram,
na ponta da montanha distante, a figura de homens delineados contra o céu
avermelhado da madrugada. Outra montanha e os perseguidores obviamente
localizaram a carroça, cuja cobertura de tecido branco a tornava visível à
distância, e um grito brutal de triunfo chegou com o vento. Elisa ficou tonta e
apertou o filho ainda mais perto do peito; a velha senhora rezava e gemia,
enquanto George e Jim empunhavam suas pistolas com a mão do desespero. Os
perseguidores chegavam perto deles rapidamente; a carroça virou subitamente e
os levou para perto dos pés de uma rocha íngreme e inclinada, que se erguia em
meio a um rochedo isolado e cheio de árvores em uma área aberta. Essa
montanha isolada, ou cadeia de rochas, erguia-se escura e pesada contra o céu
brilhante, e parecia promessa de abrigo e esconderijo. Era um ponto bem
conhecido de Phineas, familiarizado com o lugar da sua época de caça, e fora
para chegar até aqui que apressara tanto os cavalos.
— Vamos! — ele disse, parando repentinamente os cavalos e saltando
rapidamente de seu assento até o chão. — Saiam todos, rápido, e subam essas
rochas comigo. Michael, amarre os cavalos na carroça e leve-os até a casa de
Amariah e peça a ele e aos garotos que venham até aqui conversar com esses
sujeitos.
Num piscar de olhos, todos estavam fora da carroça.
— Pronto! — disse Phineas pegando Harry no colo. — Vocês, os dois,
protejam as mulheres; e corram, agora, como se nunca tivessem corrido na vida!
Não foi necessária nenhuma reprimenda. Mais rápido do que se pode
imaginar, o grupo inteiro bateu em retirada, correndo a toda velocidade em
direção ao rochedo, enquanto Michael, apeando do cavalo e amarrando a rédea à
carroça, começou a levá-la apressadamente para longe.
— Sigam em frente! — gritou Phineas quando eles chegaram ao rochedo e
viram, em meio à luz das estrelas e a madrugada, os traços mal feitos, mas bem
marcados de uma trilha que ia até o cume. — Este é um de nossos antigos
esconderijos de caça. Subam!
Phineas foi primeiro, subindo rapidamente pelo rochedo como uma cabra,
com o garoto em seus braços. Jim veio depois, carregando sua velha e trêmula
mãe sobre os ombros, e George e Elisa vieram por último. O grupo de cavaleiros
chegou até o pé do rochedo e, entre gritos e juramentos, iam desmontando dos
cavalos, preparando-se para seguir os fugitivos. Alguns minutos de esforço
trouxeram os homens ao topo da montanha; o caminho em seguida passava por
entre um desfiladeiro estreito, onde se podia passar apenas um de cada vez, até
que, de repente, chegaram a uma fissura ou abismo com mais de um metro de
largura, acima do qual ficava uma cadeia de rochas, separada do restante da
montanha, com nove metros de altura, com as laterais tão íngremes e
perpendiculares quanto as de um castelo. Phineas saltou facilmente pelo abismo,
colocando o garoto sobre uma plataforma lisa e reta de um musgo crespo e
esbranquiçado que cobria o cume da rocha.
— Vocês aí, andem logo! — ele gritou. — Saltem agora, de uma vez, por
suas vidas! — ele dizia enquanto os fugitivos saltavam um após o outro. Vários
fragmentos de pedras soltas formavam um tipo de barricada, a qual escondia a
posição deles da observação de quem estava embaixo.
— Bem, aqui estamos — disse Phineas, olhando por cima da barricada de
pedra para observar os agressores, que subiam tumultuosamente pelas rochas. —
Que nos peguem, se puderem. Seja lá quem venha aqui, terá que caminhar em
fila por entre aquelas duas rochas, na mira exata de nossas pistolas, percebem,
garotos?
— Sim, percebo — disse George —, e agora, como este problema é nosso,
que tomemos todo o risco e travemos toda a luta.
— Fiquem à vontade para lutar o quanto quiserem, George — disse Phineas,
mascando algumas folhas de gualtérias enquanto falava. — Mas acho que prefiro
me divertir e ficar só olhando. Vejam, esses sujeitos estão discutindo lá embaixo
e olhando pra cima, como galinhas se preparando para voar até o poleiro. Não é
melhor lhes dar uma palavra de conselho, antes que eles subam, só para lhes
dizer, gentilmente, que, se vierem, levarão chumbo?
O grupo lá embaixo, agora mais visível à luz matinal, era composto de
nossos velhos conhecidos, Tom Loker e Marks, com dois juízes de paz, e um
bando de vagabundos da taverna que, seduzidos por um pouco de conhaque,
resolveram ajudar na diversão de caçar um bando de pretos.
— Tom, veja como seus guaxinins se escondem rápido — disse um.
— É mesmo. Vi que foram por aqui — refutou Tom. — E aqui está uma
trilha. Vou atrás deles. Não podem pular lá para baixo com pressa, e não vai
demorar muito para eu descobrir onde estão.
— Mas, Tom, eles podem atirar em nós por trás das rochas — disse Marks.
— Isso seria terrível, sabe?
— Argh! — retrucou Tom com um sorriso de desdém. — Sempre tentando
salvar a pele, Marks! Não tem perigo! Os pretos são covardes demais!
— Não sei por que não deveria salvar minha própria pele — disse Marks. —
É tudo o que tenho; e às vezes os pretos lutam, sim, como o demônio.
Neste momento, George apareceu na ponta da rocha acima deles e, falando
com uma voz calma e clara, disse:
— Cavalheiros, quem são vocês aí embaixo, e o que procuram?
— Estamos atrás de um bando de pretos fujões — respondeu Tom Loker. —
Um tal de George Harris e Elisa Harris, e o filho deles, e Jim Selden e uma
velha. Temos os oficiais aqui e um mandado para levá-los; e vamos pegá-los,
pode ter certeza. Está ouvindo? Você não é George Harris, que pertence ao Sr.
Harris, do Condado de Shelby, Kentucky?
— Sou George Harris. Um Sr. Harris, de Kentucky, me considerava sua
propriedade. Mas agora sou um homem livre, pisando sobre a terra livre de
Deus; e minha esposa e meu filho pertencem a mim. Jim e sua mãe estão aqui.
Temos braços para nos defender e pretendemos usá-los. Podem subir, se
quiserem; mas o primeiro que ficar na mira de nossa bala é um homem morto, e
o próximo e o seguinte; e assim será até o último.
— Ah, vamos, vamos! Disse um homem baixo e gordo, dando um passo à
frente e assoando o nariz enquanto o fazia. — Meu jovem, esse não é o tipo de
conversa para você. Veja bem, somos oficiais de justiça. Temos a lei ao nosso
lado, e o poder, e tudo mais; então é melhor se entregarem em paz, pois
certamente terão que se entregar, mais cedo ou mais tarde.
— Sei muito bem que têm a lei e o poder do seu lado — disse George com
amargura. — Quer vender minha esposa em Nova Orleans, e colocar meu filho,
como um bezerro, nas mãos de um mercador de escravos e mandar a mim e à
mãe de Jim de volta para sermos açoitados e torturados, e esmagados sob os
saldos daqueles que chamam de amos; e suas leis os apoiam nisso, uma
vergonha para vocês e para as leis! Mas ainda não nos pegaram. Não somos
donos das suas leis; não somos donos do seu país. Estamos aqui como homens
livres sob o céu de Deus, assim como vocês; e, pelo poderoso Deus que nos
criou, lutaremos pela nossa liberdade até a morte.
George estava completamente visível no topo da rocha enquanto fazia sua
declaração de independência; o brilho do amanhecer dava um rubor a seu rosto
escuro, e o desespero e a profunda indignação lhe afogueavam os olhos negros; e
como se apelasse pela justiça de Deus aos homens, erguia as mãos para o céu
enquanto falava.
Se fosse um jovem húngaro bravamente defendendo, em alguma fortaleza
montanhosa, o esconderijo de fugitivos escapando da Áustria para a América,
isso teria sido um ato de sublime heroísmo; no entanto, como era um jovem de
descendência africana, defendendo o esconderijo de fugitivos da América para o
Canadá, obviamente que somos muito bem instruídos e patrióticos para não ver
qualquer heroísmo nisso; e se algum de nossos leitores considerar isso irônico,
devem fazê-lo por sua própria conta e risco. Quando fugitivos húngaros
desesperados vêm, contra todos os mandados de busca e autoridades do seu
legítimo governo, para a América, o gabinete político e da imprensa vibram de
aplausos e boas vindas. Quando fugitivos africanos desesperados fazem a mesma
coisa, isso é… O que é isso mesmo?
Seja lá como for, é certo que a atitude, o olhar, a voz e a maneira do
interlocutor por um momento fizeram o grupo embaixo ficar em silêncio. Há
algo na coragem e na determinação que, durante um tempo, toma conta até
mesmo da natureza mais primitiva. Marks foi o único que permaneceu
totalmente insensível. Segurando sua pistola deliberadamente, e, no silêncio
momentâneo que se seguiu ao discurso de George, Marks atirou nele.
— O dinheiro é o mesmo, trazendo ele para o Kentucky morto ou vivo —
disse friamente enquanto limpava a pistola na manga do casaco.
George deu um pulo para trás, Elisa deu um grito; a bala passou perto do
cabelo dele, quase raspou no rosto da esposa, e atingiu uma árvore acima.
— Não foi nada, Elisa — George disse rapidamente.
— É melhor ficar fora do campo de visão deles enquanto estiver falando —
aconselhou Phineas. — Esses sujeitos são inescrupulosos.
— Jim — chamou George —, veja se suas pistolas estão funcionando e fique
de olho naquela passagem comigo. O primeiro homem que aparecer, eu atiro;
você atira no segundo, e assim vai. Não serve para nada desperdiçar dois tiros
em um só.
— Mas e se você não acertar?
— Vou acertar — afirmou George com frieza.
— Muito bem! Aquele sujeito é atrevido — murmurou Phineas entredentes.
O grupo lá embaixo, depois que Marks atirou, ficou muito indeciso por um
momento.
— Acho que acertou alguém — disse um dos homens. — Ouvi um grito!
— Vou atrás de alguém lá em cima! — disse Tom. — Nunca tive medo de
preto, e não será agora. Quem vai depois? — ele perguntou subindo pelas
rochas.
George ouviu claramente as palavras. Pegou a pistola, olhou-a, apontou-a
em direção àquele ponto do desfiladeiro onde o primeiro homem apareceria.
Um dos mais corajosos do grupo seguiu Tom e, tendo feito o caminho, o
grupo todo começou a subir pelo rochedo; os de trás empurrando os da frente
mais rápido do que eles teriam subido sozinhos. Seguiram e em um minuto a
forma troncuda de Tom apareceu à vista, quase à beira do abismo.
George atirou, o tiro pegou de lado, mas apesar de ferido, o homem não
desistiu e, gritando como um touro enlouquecido, começou a pular pelo abismo
em direção ao grupo.
— Amigo — disse Phineas repentinamente se colocando à frente e lhe
empurrando com seus braços longos — Você não é bem–vindo aqui.
Tom rolou pelo abismo, enroscando-se nas árvores, arbustos, troncos, pedras
soltas até parar, machucado e gemendo, nove metros abaixo. A queda poderia tê-
lo matado se não tivesse sido amenizada e suavizada por suas roupas que se
enroscaram nos galhos de uma grande árvore; ainda assim ele caiu com força,
muito mais do que era aceitável ou conveniente.
— Deus nos ajude; eles são uns demônios! — disse Marks, descendo pelo
refúgio das rochas com muito mais vontade do que tinha subido, enquanto todo o
grupo seguia cambaleante atrás dele, o juiz de paz gordo, particularmente,
arfando e resfolegando de uma maneira enérgica.
— Companheiros — disse Marks — deem a volta e peguem o Tom, lá,
enquanto eu pego meu cavalo e volto correndo para pedir ajuda — e sem se
importar com as vaias e as zombarias do bando, Marks manteve a palavra e logo
se afastou a galope.
— Já viram um patife mais ordinário? — perguntou um dos homens. —
Viemos fazer o negócio para ele e ele vai embora desse jeito!
— Bem, precisamos pegar aquele sujeito! — disse outro. A mim não faz
diferença encontrá-lo vivo ou morto.
Os homens, guiados pelos gemidos de Tom, embrenharam-se e abriram
caminho pelas sobras de árvores cortadas, troncos e arbustos, até onde aquele
herói gemia e praguejava com veemência alternada.
— Sabe gritar bem, Tom — notou um dos homens. — Está muito
machucado?
— Não sei. Podem me levantar? Maldito seja aquele quacre dos infernos! Se
não fosse por ele, já teria derrubado um deles bem aqui, para ver o quanto é
bom.
Com muito trabalho e gemidos, o herói abatido foi ajudado a se levantar; e
tendo cada um segurando-o embaixo do braço, levaram-no até os cavalos.
— Se pelo menos conseguissem me levar de volta meio quilômetro até
aquela taverna. Me dá um lenço ou alguma coisa para enfiar neste lugar e
estancar esse sangramento infernal.
George olhou por sobre as rochas, e os viu tentando colocar a forma
troncuda de Tom na sela do cavalo. Depois de duas ou três tentativas frustradas,
ele cambaleou e caiu pesadamente no chão.
— Ah, espero que ele não tenha morrido! — disse Elisa, quem, juntamente
com todo o grupo, ficou assistindo ao procedimento.
— Por que não? — perguntou Phineas. — É isso o que merecia.
— Porque, depois da morte vem o julgamento — explicou Elisa.
— Isso mesmo — concordou a mulher idosa, que esteve gemendo e rezando,
à moda metodista, durante todo o ocorrido. — É terrível para a alma da pobre
criatura.
— Escutem o que estou dizendo: eles o deixarão aí, aposto — disse Phineas.
E foi verdade; depois de um pouco de dúvida e breve consulta, o grupo
montou nos cavalos e seguiu a galope. Quando estavam fora de vista, Phineas
começou a se apressar.
— Temos que ir e caminhar um pouco — ele explicou. — Eu disse a
Michael para ir na frente e trazer ajuda, e estar de volta aqui com a carroça; mas
teremos que caminhar um pouco pela estrada, creio eu, para encontrá-los. Deus
permita que logo ele esteja aqui! Ainda é cedo; não haverá muitos viajantes à pé
por um tempo; não estamos a muito mais do que a dois quilômetros de nossa
parada. Se a estrada não estivesse tão ruim a noite passada, nós teríamos
escapado deles sem problemas.
Quando o grupo chegou ao pé do rochedo percebeu, à distância, vindo pela
estrada, a própria carroça deles voltando, acompanhada por alguns homens a
cavalo.
— Lá estão Michael, Stephen e Amariah! — exclamou Phineas cheio de
alegria. — Agora estamos feitos, tão seguros como se tivéssemos chegado ao
nosso destino.
— Bem, então pare — disse Elisa —, e faça alguma coisa por aquele pobre
homem; ele está gemendo de dar dó.
— Não passaria de um dever cristão — disse George. — Vamos pegá-lo e
carregá-lo.
— E cuidar dele entre os quacres? — disse Phineas. — Muito bem! Não me
importo se o fizermos. Vamos dar uma olhada nele — e Phineas, que, ao longo
de sua vida de caça e floresta, adquirira alguma experiência cirúrgica, ajoelhou-
se perto do homem ferido e deu início a um exame cuidadoso na condição dele.
— Marks? — perguntou Tom bem baixinho. — É você, Marks?
— Não. Sinto dizer que não, meu amigo — disse Phineas. — Marks não está
nem aí para você, só se importa em salvar o próprio pescoço. Ele já fugiu faz
tempo.
— Acho que vou morrer — disse Tom. — Aquele maldito cão ordinário me
deixou para morrer sozinho! Minha velha mãe sempre me disse que isso
aconteceria.
— Pelo amor de Deus! Ouçam o pobre. Agora ele lembrou que tem mãe —
disse a velha negra. — Não consigo deixar de ter pena dele.
— Devagar, devagar. Pare de se debater e ranger os dentes — disse Phineas
enquanto Tom fechava os olhos e empurrava a mão dele. — Você não tem
chance a não ser que estanquemos o sangramento — e Phineas começou a
trabalhar em alguns procedimentos cirúrgicos provisórios com seu próprio lenço
de bolso, do jeito que podia ser feito.
— Você me empurrou — Tom disse fracamente.
— Bem, se não o tivesse feito, você teria nos empurrado para baixo —
explicou Phineas enquanto se inclinava para aplicar a bandagem. — Vamos lá,
deixe-me arrumar essa bandagem. Vamos levar você a uma casa onde lhe
cuidarão como se fossem sua própria mãe.
Tom gemeu e fechou os olhos. Em homens de sua classe, vigor e
determinação são uma questão inteiramente física e se esvaem com o fluxo de
sangue; e o sujeito gigantesco realmente era digno de pena.
Os outros então chegaram. Os assentos foram retirados da carroça. As peles
de búfalo, dobradas em quatro, foram espalhadas de um lado e quatro homens,
com grande dificuldade, ergueram o corpo pesado de Tom e o colocaram entre
elas. A velha negra, na abundância de sua compaixão, sentou-se na ponta e
colocou a cabeça dele sobre o colo. Elisa, George e Jim se ajeitaram o melhor
que puderam no espaço que sobrou e o grupo seguiu caminho.
— O que acha do estado dele? — perguntou George, sentado ao lado de
Phineas na frente.
— Bem, é só um ferimento bem fundo na carne; mas os machucados feitos
na queda não o ajudaram. Sangrou muito, tirou todas as forças dele, coragem e
tudo mais, mas ele vai se recuperar e talvez tire uma ou duas lições disso.
— Folgo em ouvi-lo dizer isso — disse George. — Seria sempre um fardo
pesado para mim se eu tivesse lhe causado a morte, mesmo que por uma justa
causa.
— Sim — concordou Phineas. — Matar é um ato horrendo, de qualquer jeito
que se coloque, homem ou fera. Fui um grande caçador em meus dias, e lhe digo
que já vi um gamo ser abatido e dava aquele olhar moribundo que realmente
fazia o sujeito se sentir culpado por tê-lo matado; e para criaturas humanas a
consideração é ainda mais séria, já que, como sua esposa diz, o julgamento vem
depois da morte. Então, não sei, já que as ideias do meu povo sobre essa questão
são bem rígidas; e, considerando a forma como fui criado, acho que concordo
perfeitamente com eles.
— O que vai fazer com esse pobre sujeito? — perguntou George.
— Vou levá-lo até a casa do Amariah. Lá mora a velha Vovó Stephens; eles
a chamam de Dorcas, e ela é uma enfermeira maravilhosa. Ela nasceu para fazer
isso e está sempre bem servida quando tem um enfermo para cuidar. Nós o
deixaremos sob os cuidados dela durante uns quinze dias.
Uma viagem de mais ou menos uma hora levou o grupo até uma impecável
casa de fazenda, na qual os viajantes cansados foram recebidos para um farto
café da manhã. Tom Loker logo foi cuidadosamente colocado em uma cama
muito mais macia e limpa do que ele jamais teve o hábito de ocupar. Seu
ferimento foi gentilmente limpo e coberto e ele, como uma criança cansada,
deitou-se languidamente, abrindo e fechando os olhos, olhando as cortinas
brancas e as figuras silenciosas entrando e saindo do seu leito. E aqui, por hora,
o deixamos.
18
AS EXPERIÊNCIAS E OPINIÕES DA
SRTA. OFÉLIA

Nosso amigo Tomás, em seus devaneios simplórios, sempre comparava sua


situação mais afortunada, com relação aos vínculos criados, com a de José do
Egito; e, de fato, com o passar do tempo e à medida que ele crescia mais e mais
aos olhos do seu amo, a força desse paralelo aumentava.
St. Clare era displicente e descuidado com o dinheiro. Até aquele momento,
toda a provisão e todas as compras eram feitas principalmente por Adolfo, que
era, no geral, tão descuidado e extravagante quanto o próprio amo; e, entre um e
outro, desperdiçavam tudo com grande diligência. Acostumado por muitos anos
a cuidar da propriedade de seu amo como se fosse sua, Tomás via, com um
incômodo que mal podia reprimir, o gasto esbanjador do estabelecimento e, à
maneira quieta e indireta que sua classe sempre requeria, às vezes fazia algumas
sugestões.
St. Clare primeiramente deu-lhe trabalhos ocasionais; no entanto, surpreso
pelo seu bom senso e tino para negócios, contava cada vez mais com ele, até
que, aos poucos, todas as compras e as provisões da família lhe foram confiadas.
— Não, não, Adolfo — ele disse um dia quando Adolfo estava
menosprezando a retirada do poder de suas mãos. — Deixe Tomás em paz. Você
só compreende aquilo que quer; Tomás entende de custos e os controla; e um dia
o dinheiro acabará se não deixarmos que alguém tome conta dele.
Tendo conquistado a confiança ilimitada de seu amo displicente, que lhe
dava o dinheiro sem olhar e colocava o troco no bolso sem contá-lo, Tomás tinha
toda a facilidade e a tentação para ser desonesto, e nada, exceto a simplicidade
de caráter impenetrável, reforçado pela fé cristã, poderia afastá-lo desse
comportamento. No entanto, com relação a essa questão, a confiança ilimitada
depositada nele era retribuída e selada pela mais escrupulosa exatidão.
Com Adolfo o caso fora bem diferente. Desmiolado e aproveitador, e nunca
reprimido por um amo mais afeito a agradar que controlar, o negro fazia muita
confusão entre o meum e o tuum com relação a si mesmo e ao amo, o que às
vezes, preocupava até mesmo St. Clare. O próprio bom senso lhe ensinara que
tal comportamento de seus escravos era injusto e perigoso. Um tipo de remorso
crônico lhe acompanhava por todo lado, apesar de não ser forte o bastante para
decidir alguma mudança de curso; e esse próprio remorso transformava-se
novamente em indulgência. Ele fazia vistas grossas para as faltas mais sérias,
pois dizia a si mesmo que, se tivesse feito o que lhe cabia, seus dependentes não
teriam cometido esses erros.
Tomás via seu amo jovem, belo, alegre e despreocupado com uma estranha
mistura de fidelidade, reverência e atitude paternal. O fato de ele nunca ler a
Bíblia, nunca ir à igreja, de ele zombar e brincar com qualquer coisa ou qualquer
pessoa que passava do jeito que bem entendia; de ele passar suas tardes de
domingo na ópera ou no teatro; de ele ir a festas regadas a vinho, clubes e
jantares com mais frequência do que se esperava, eram todos fatos que Tomás
via tão claro quanto qualquer outra pessoa, e nos quais baseava sua convicção de
que “o amo não era um cristão”; uma convicção, no entanto, que ele não
expressava a ninguém, e para a qual fazia muitas preces, a seu modo simples,
quando estava sozinho em seu dormitório. Não que Tomás não tivesse seu
próprio jeito de falar o que pensava de vez em quando, com algo do tato sempre
observado nos de sua classe; como, por exemplo, o próprio dia depois do
Sabbath ao qual descrevemos, St. Clare foi convidado para uma festa social com
bebidas à vontade, e foi levado para casa, entre uma e duas horas da manhã,
numa condição na qual o físico tinha, decididamente, levado vantagem sobre o
intelecto. Tomás e Adolfo o ajudaram a se vestir para dormir, o último bem-
humorado, evidentemente tratando a questão como uma piada e rindo muito da
rusticidade do horror de Tomás, o qual, sinceramente, era humilde o bastante a
ponto de ficar acordado o resto da noite rezando pelo jovem amo.
— E então, Tomás, o que está esperando? — perguntou St. Clare no dia
seguinte ao sentar-se na biblioteca vestido com um robe e chinelos. St. Clare
acabara de confiar algum dinheiro e várias tarefas a Tomás. — Não está tudo em
ordem, Tomás? — ele acrescentou enquanto Tomás ainda esperava em pé.
— Infelizmente não, meu senhor — respondeu Tomás com o rosto sério.
St. Clare colocou o jornal e a xícara de café de lado e olhou para Tomás.
— Qual é o problema, Tomás? Você parece tão solene quanto um caixão.
— Estou muito triste, senhor. Sempre achei que o senhor fosse bom com
todos.
— E não tenho sido, Tomás? Diga lá, o que quer? Há algo que não
conseguiu, suponho, e isso é o prefácio.
— O senhor tem sido muito bom comigo. Não posso reclamar de nada. Mas
há alguém para quem o senhor não é bom.
— Tomás, o que deu em você? Fale logo, o que quer dizer?
— A noite passada, entre uma e duas horas da manhã, refleti sobre isso. Fiz
uma análise do problema. O senhor não é bom consigo mesmo.
Tomás disse isso com as costas viradas para o amo, e a mão na maçaneta da
porta. O rosto de St. Clare ficou vermelho, todavia ele riu.
— Ah, é só isso? — ele comentou bem-humorado.
— Só? — perguntou Tomás, virando-se repentinamente e se ajoelhando. —
Ah, meu caro e jovem amo! Receio que isso será a perda de tudo, tudo, corpo e
alma. O bom Livro diz “ele morde como uma serpente e fere como uma víbora”,
meu bom senhor.
A voz de Tomás embargou e as lágrimas escorreram pelo rosto dele.
— Não seja tolo! — disse St. Clare com lágrimas em seus próprios olhos. —
Levante-se, Tomás. Não vale a pena chorar por mim.
Mas Tomás não se levantou e parecia implorar.
— Está bem, Tomás, não cometerei mais essas malditas loucuras —
prometeu St. Clare. — Pela minha honra, eu juro. Não sei por que não parei
muito tempo atrás. Sempre desprezei tudo isso, e a mim mesmo, então, enxugue
os olhos, Tomás, e vá fazer o que tem que ser feito. Vamos, vamos — ele disse
enquanto empurrava Tomás gentilmente até a porta. — Juro pela minha honra,
Tomás, que nunca mais me verá assim — ele prometeu; e Tomás saiu enxugando
os olhos com grande satisfação.
— E também manterei minha fé nela — disse St. Clare ao fechar a porta.
E St. Clare assim o fez, pois a pura sedução, em qualquer forma, não era
uma tentação peculiar à natureza dele.
Durante todo esse tempo, porém, quem dará detalhes das atribulações
caseiras de nossa amiga, a Srta. Ofélia, que começara os trabalhos de sua função
como dona de casa sulista?
Os serviçais nos estabelecimentos do Sul variam de acordo com o caráter e a
capacidade da senhora que os ensinou.
Tanto no Sul como no Norte, há mulheres com extraordinário talento para
comandar e tato para educar. Elas são capazes, com aparente facilidade e sem
rigor, de terem seus desejos atendidos e trazerem a harmonia e a ordem sistêmica
aos vários membros de sua pequena propriedade, regulando suas peculiaridades,
equilibrando e compensando as deficiências de um pelos excessos do outro, de
forma a produzir um sistema organizado e harmonioso.
Tal dona de casa era a Sra. Shelby, a quem já descrevemos antes e nossos
leitores devem se lembrar de tê-la conhecido. Se não são comuns no Sul, então é
porque não são comuns no mundo. São facilmente encontradas aqui assim como
em todo lugar; e, quando encontradas, utilizam esse tipo peculiar de sociedade
como uma brilhante oportunidade para exibir seus talentos domésticos.
Marie St. Clare não era esse tipo de dona de casa, assim como sua mãe não
fora antes dela. Indolente e infantil, indisciplinada e imprudente, não podia se
esperar que os criados treinados sobre os cuidados dela fossem diferentes; e ela
tinha descrito à Srta. Ofélia, de forma muito apropriada, o estado de confusão
que ela encontraria na família, apesar de não ter atribuído à situação a devida
causa.
Em seu primeiro dia de comando, a Srta.Ofélia acordou às quatro horas da
manhã, e tendo feito toda a arrumação de seu próprio quarto, como sempre fez
desde que chegara aqui, para grande surpresa da camareira, preparou-se para
uma vigorosa supervisão nas prateleiras e armários da casa, dos quais tinha as
chaves.
A despensa, rouparia, guarda-louças, cozinha e adega, naquele dia tudo
passou por uma terrível supervisão. Coisas escondidas na escuridão foram
trazidas à luz em um nível que alarmou todos os principados e poderes da
cozinha e dos quartos, e causou muitos questionamentos e murmúrios sobre
“essas mulheres do Norte” por parte do gabinete doméstico.
A velha Dinah, cozinheira-chefe e responsável por todas as regras e
autoridade no departamento da cozinha, ficou tomada de ódio diante do que ela
considerava uma invasão de seu privilégio. Nenhum barão feudal na época da
Magna Carta poderia ter ficado mais descontente com uma incursão da coroa.
Dinah tinha uma figura ímpar, e seria injusto à sua memória não apresentá-la
ao leitor. Ela era fundamentalmente uma cozinheira inata, tanto quanto a Mãe
Cloé, sendo a culinária um talento natural aos da raça africana; no entanto, Cloé
era treinada e meticulosa, alguém que se movimentava de forma ordeira em
meio ao caos doméstico, ao passo que Dinah era um gênio autodidata e, assim
como os gênios em geral, era confiante, teimosa e errática ao extremo.
Assim como certa classe de filósofos modernos, Dinah sempre desdenhava
da lógica e da razão, de todo tipo, e sempre se refugiava na certeza intuitiva; e
aqui estava ela perfeitamente impenetrável. Nenhum talento, autoridade ou
explicação possível poderia, um dia, fazê-la acreditar que qualquer outra forma
era melhor do que a dela ou que o rumo que tomara com relação ao menor
problema pudesse ser minimamente modificado. Esse fora um ponto concedido
por sua antiga senhora, a mãe de Marie; e a “Srta. Marie”, como Dinah sempre
chamava sua jovem senhora, mesmo depois do casamento, achou melhor se
submeter do que discutir; e assim Dinah reinava suprema. Essa era a atitude mais
fácil a ser tomada, já que ela era a combinação perfeita da arte da diplomacia,
que une o mais alto nível de subserviência dos modos à suprema inflexibilidade
das ações.
Dinah era mestra na arte e no mistério de dar desculpas, em todas as suas
formas. Na verdade, era um axioma dela que a cozinheira nunca errava; e uma
cozinheira em uma cozinha sulista encontra abundância de cabeças e ombros
sobre os quais pode colocar cada pecado e fragilidade, de forma a manter-se
imaculada. Se alguma parte do jantar não ficava bom, havia indiscutivelmente
cinquenta razões para aquilo; e era inegavelmente a culpa de outras cinquenta
pessoas, a quem Dinah repreendia com grande entusiasmo.
Mas era raro acontecer qualquer falha nos resultados finais de Dinah.
Embora seu modo de fazer tudo ser tipicamente tortuoso e circular, sem qualquer
tipo de cálculo de tempo ou espaço, embora sua cozinha geralmente parecer ter
sido devastada por um furacão, como se tivesse tantos lugares para os utensílios
de cozinha quanto havia dias no ano, mesmo assim, se houvesse paciência para
esperar, o jantar dela seria servido em perfeita ordem e com um estilo de
preparação digno de epicurista nenhum colocar defeito.
Agora era a hora de começar os preparativos para o jantar. Dinah, que
precisava de longos intervalos de reflexão e repouso, e refletia sobre a facilidade
de suas arrumações, sentava-se no chão da cozinha, fumando um cachimbo curto
e grosso, no qual era viciada, e que sempre estava aceso, como um tipo de
incensório toda vez que sentia necessidade de inspiração. Era a maneira de
Dinah de invocar as musas domésticas.
Sentados ao redor dela estavam vários membros daquela raça em
desenvolvimento, abundantes em uma casa sulista, ocupados em descascar
batatas e ervilhas, depenar galinhas e realizar outras medidas preparatórias;
Dinah vez ou outra interrompia suas meditações para dar um tapa ou um
empurrão na cabeça de alguns de seus jovens ajudantes, com uma colher de
madeira que deixava ao seu lado. De fato, Dinah reinava sobre as cabeças
encarapinhadas dos membros mais jovens com pulso de ferro, e parecia
considerá–los nascidos com o único objetivo na vida de “salvar seus passos”,
como ela dizia. Era o espírito do sistema no qual ela fora criada e ela o dominava
por completo.
A Srta. Ofélia, depois de ter passado sua vistoria reformatória por todas as
outras partes da casa, agora entrara na cozinha. Dinah ouvira de várias fontes o
que estava acontecendo e resolveu permanecer em termos defensivos e
conservadores, mentalmente determinada a se opor e a ignorar todo novo
procedimento, sem discutir nem fazer qualquer observação.
A cozinha era um cômodo grande de chão de tijolo, com uma antiga lareira
imensa se estendendo por um lado, um arranjo que St. Clare tentara, em vão,
persuadir Dinah a trocar pela conveniência de um fogão moderno. Ela não.
Nenhum puseísta ou conservador de qualquer escola seria mais inflexivelmente
apegado às inconveniências das coisas consagradas pelo tempo do que Dinah.
Quando St. Clare voltou do Norte, impressionado como sistema e a ordem
dos arranjos da cozinha da tia, ele providenciara para a sua própria cozinha
várias prateleiras, gavetas e outros aparatos, para induzir a organização
sistemática, sob a otimista ilusão de que eles seriam de grande ajuda à Dinah.
Ele poderia ter comprado tudo para um esquilo ou uma pega. Quanto mais
gavetas e armários havia, mais buracos Dinah fazia para acomodar os velhos
trapos, pentes de cabelo, sapatos velhos, fitas, flores secas inutilizadas e outros
artigos de vertu, com os quais sua alma se deleitava.
Quando a Srta. Ofélia adentrou à cozinha, Dinah não se levantou, mas
continuou a fumar com uma tranquilidade sublime, observando os movimentos
dela obliquamente pelo canto dos olhos, mas aparentemente prestando atenção
apenas nas operações ao seu redor.
A Srta. Ofélia começou abrindo algumas gavetas.
— Para que serve essa gaveta, Dinah? — ela perguntou.
— É útil para qualquer coisa, sinhá — respondeu Dinah. Ao menos é o que
parecia, pela variedade do conteúdo. A Srta. Ofélia primeiro puxou uma toalha
adamascada suja de sangue, tendo sido evidentemente usada para enrolar algum
tipo de carne crua.
— O que é isso, Dinah? Você não embrulha carne nas melhores toalhas de
mesa de sua senhora, não é?
— Ah, meu Deus, sinhá, não; não tinha pano de prato, então eu usei ela.
Deixei aí pra lavar depois, é por isso que coloquei ela aí.
“Preguiçosa!”, disse a Srta. Ofélia para si mesma e, em seguida, virando a
gaveta, onde encontrou um ralador de noz-moscada, duas ou três nozes-
moscada, um hinário metodista, dois lenços de algodão sujos, linhas e um
pedaço de bordado, um pedaço de tabaco e um cachimbo, alguns biscoitos, um
ou dois pires de porcelana dourada com algum tipo de pomada dentro deles, um
ou dois sapatos velhos e ralos, um pedaço de flanela cuidadosamente amarrado
contendo alguns pequenos pedaços de cebolas brancas, guardanapos de mesa
adamascados, agulhas de tricô, guardanapos ásperos, e vários papéis amassados,
dos quais saíam várias ervas adocicadas, espalhando-se pelo fundo da gaveta.
— Onde guarda a noz-moscada, Dinah? — perguntou a Srta. Ofélia com ar
de alguém que implorava por paciência.
— Em qualquer lugar, sinhá. Tem um pouco naquela chaleira trincada lá em
cima, e um pouco naquela prateleira.
— E temos aqui no ralador também — disse a Srta. Ofélia, segurando-o.
— Deus, é mesmo, coloquei aí hoje de manhã; gosto de ter minhas coisas à
mão — disse Dinah. — Ei, Jake! Por que parou? Vai ver só! Fique quieto aí! —
ela acrescentou com um mergulho de sua colher no criminoso.
— O que é isso? — perguntou a Srta. Ofélia segurando o pires de pomada.
— Meu Deus, é o sebo para meu cabelo. Deixei aí para ficar à mão.
— Usa os melhores pires de sua senhora para isso?
— Ah, Senhor, é por que eu estava com muita pressa. Ia tirar daí hoje
mesmo.
— E aqui estão dois guardanapos de mesa adamascados.
— Os guardanapo de mesa eu ponho aí pra lavar qualquer dia.
— Não tem um lugar onde as coisas sejam colocadas para serem lavadas?
— Bem, o amo St. Clare comprou o baú pra isso, ele disse; mas eu gosto de
misturar a massa dos biscoito e colocar minhas coisa em cima dele de vez em
quando, além do que não é fácil de levantar a tampa.
— Porque não mistura a massa dos biscoitos ali, na mesa de bolos?
— Ah, sinhá, é que fica tão cheia de louça e com uma coisa e outra, que não
tem espaço, não tem jeito.
— Mas tem que lavar e guardar as louças!
— Lavar minhas louça! — repetiu Dinah em voz alta, à medida que a raiva
começava a se sobrepor à sua compostura habitual. — E o que as madame
entende desse trabalho, isso é o que quero saber! Quando ia conseguir servir o
jantar ao meu amo se tivesse que gastar meu tempo lavando e guardando louça?
A Srta. Marie nunca me disse pra fazer isso, nem como.
— Bem, aqui estão as cebolas.
— Sim! — disse Dinah. — É aí que eu coloco elas agora. Não conseguia
lembrar. Essas cebola em particular eu estava guardando pra colocar nesse
guisado. Esqueci completamente que elas estava embrulhada nessa flanela velha.
A Srta. Ofélia levantou os papéis rasgados com as ervas aromáticas.
— Gostaria que a sinhá não pusesse a mão aí. Gosto de ter minhas coisa
onde sei que elas tá — Dinah falou incisivamente.
— Mas o papel está todo furado!
— São prático na hora de pegar as erva — retrucou Dinah.
— Mas as ervas se espalham por toda a gaveta.
— Ah, meu Deus! Se a sinhá continuar fuçando nas coisa, vai espalhar
mesmo. Já espalhou um bom tanto — disse Dinah aproximando-se da gaveta,
contrariada. — Se a sinhá só fosse lá para cima e me deixasse aqui limpando
tudo, ia ter tudo no lugar; mas não consigo fazer nada quando tem madames em
volta, fico muito incomodada. Ei, Sam, não dê o açucareiro pro bebê! Se não se
comportar, eu te arrebento!
— Vou fazer uma revista na cozinha e colocarei tudo no lugar de uma vez
por todas, Dinah; e então espero que mantenha tudo em ordem.
— Ah, meu Senhor! Srta Ofélia, isso não é trabalho pra madame. Nunca vi
madame fazer essas coisa; nem minha antiga senhora nem a sinhá Marie nunca
fizeram e não vejo necessidade de fazer nada — e Dinah seguia, indignada,
enquanto a Srta. Ofélia empilhava e separava as louças, esvaziava dúzias de
açucareiros variados dentro de um mesmo recipiente, organizava os
guardanapos, toalhas de mesa e panos de prato para serem lavados; lavando,
secando e arrumando tudo com as próprias mãos, com uma velocidade e
eficiência que deixou Dinah absolutamente boquiaberta.
— Senhor Deus! Se é assim que as senhora do Norte faz, elas não é senhora
de verdade — ela disse para alguns dos criados ao seu redor, quando estava
longe o bastante para não ser ouvida. — Tenho sempre minhas coisa no lugar
quando chega a hora da limpeza; mas não quero nenhuma senhora por aqui,
incomodando e colocando as coisa onde não consigo achar.
Para sermos justos com Dinah, ela tinha, em períodos irregulares, surtos de
arrumação e organização, aos quais chamava de “hora da limpeza”, quando
começava, com grande entusiasmo, a virar cada gaveta e cada armário de cabeça
para baixo, no chão e em cima das mesas, aumentando ainda mais a confusão de
sempre. Em seguida, ela acendia o cachimbo e ficava pensando, sem pressa,
sobre suas arrumações, analisando e confabulando sobre as coisas, fazendo os
mais jovens lustrarem vigorosamente os utensílios de estanho e mantendo tudo,
durante horas, em um profundo estado de confusão, o qual ela explicava àqueles
que lhe questionavam, com a observação de que era “hora da limpeza” e que ela
não podia deixar as coisas como estavam e que iria fazer esses jovens serem
mais organizados; pois a própria Dinah, de algum modo, alimentava a própria
ilusão de que ela mesma era a organização em pessoa e que eram os escravos
mais jovens, e todos na casa, a causa de qualquer coisa imperfeita nesse quesito.
Quando todas as panelas estavam areadas, e as mesas limpas como a neve
branca, e tudo o que poderia causar ofensa fora tirado da vista e enfiado nos
buracos e cantinhos, Dinah vestia um vestido bonito, um avental limpo e
colocava um turbante de algodão bem alto e brilhante, e dizia a todos os “jovens
escravos” gatunos para saírem da cozinha, pois ela manteria as coisas em ordem.
Na verdade, esses surtos sazonais eram geralmente um inconveniente para toda a
casa, pois Dinah desenvolvia um apego tão desproporcional aos seus utensílios
areados que não queria usá-los novamente para nada, pelo menos não até que o
ardor do período de “limpeza” passasse.
A Srta. Ofélia, em poucos dias, arrumou meticulosamente todos os cômodos
da casa em um padrão sistemático; mas os trabalhos dela, que dependiam da
cooperação dos criados em todos os cômodos, eram como os de Sísifo ou
Danaídes. Em desespero, ela um dia apelou para St. Clare.
— Não é possível estabelecer qualquer tipo de ordem nesta família!
— Certamente que não — disse St. Clare.
— Nunca vi tamanha falta de controle, desperdício e confusão!
— Posso imaginar.
— Não encararia tudo com tanta frieza se fosse o responsável pelos cuidados
da casa.
— Minha querida prima, poderia compreender, de uma vez por todas, que os
donos de escravos são divididos em duas classes: opressores e oprimidos. Nós,
que somos bons e odiamos punições, nos prestamos a passar por muitos
inconvenientes. Se vamos manter um ambiente capenga, frouxo e sem instrução,
para nossa própria conveniência, então nós devemos arcar com as
consequências. Vi raros casos de pessoas que, com tato peculiar, conseguem
estabelecer a ordem e a disciplina sem severidade; mas eu não sou um deles;
assim, há tempos me resignei a deixar as coisas serem da maneira que são. Não
judiarei nem mandarei açoitar os pobres coitados, e eles sabem disso, e,
obviamente, eles sabem que os criados estão em suas próprias mãos.
— Mas não ter hora, nem lugar, nem ordem para nada; tudo desse jeito
indolente!
— Minha querida prima de Vermont, vocês nativos do Norte dão um valor
demasiado ao tempo! Qual a serventia do tempo para um sujeito que o tem muito
mais do que sabe o que fazer com ele? Quanto à ordem e à disciplina, quando
não se tem mais nada a fazer além de deitar-se no sofá e ler, uma hora mais cedo
ou mais tarde para o café da manhã ou o jantar não é tão importante assim. E
Dinah prepara um jantar de primeira – sopa, ragu, carne assada, sobremesa,
sorvetes e tudo mais – e sei que tira tudo isso do caos e da escuridão daquela
cozinha. E o que ela faz é realmente admirável. Mas, Deus nos abençoe! Se
descermos lá para olhar toda a fumaça, a discussão e a desordem do processo de
preparação, nunca mais comeríamos na vida! Minha boa prima, não se culpe por
isso! É mais um martírio e não serve para nada. Acabará perdendo a paciência e
perturbando muito Dinah. Deixe que ela faça à sua própria maneira!
— Mas, Augustine, não faz ideia de como encontrei as coisas!
— Acha que não? Acha que não faço ideia de que o rolo de massas está
embaixo da cama e o ralador de noz-moscada está junto com o tabaco em seu
bolso, que há sessenta e cinco açucareiros diferentes, um em cada buraco da
casa, que um dia ela limpa a louça com um guardanapo do jantar e no outro com
um pedaço de anágua velha? Mas o bom de tudo é que ela faz jantares gloriosos
e um café delicioso; e devemos julgá-la como julgamos os guerreiros ou os
homens do governo, pelo seu sucesso!
— Mas o desperdício! E o gasto!
— Ah, bem. Tranque tudo o que puder e esconda a chave. Dê aos poucos e
não pergunte sobre as sobras. É o melhor a fazer.
— Isso me preocupa muito, Augustine. Não consigo deixar de pensar que
seus escravos não são devidamente honestos. Tem certeza de que pode confiar
neles?
Augustine caiu na gargalhada diante da expressão séria e ansiosa com a qual
a Srta. Ofélia levantou a questão.
— Ah, prima, isso é bom demais. Honestos? Como se isso fosse algo a se
esperar deles. Honestos, ora, claro que não são honestos. E por que deveriam
ser? E, por que, nesse mundo fazê-los honestos?
— Por que não os ensina?
— Ensinar? Ah, que bobagem! E que tipo de instrução eu deveria lhes dar?
Por acaso pareço um professor? Quanto à Marie, ela certamente teria coragem de
matar todos os escravos da fazenda se eu lhe deixasse cuidar da propriedade.
Mas nem assim conseguiria lhes tirar a desonestidade.
— E não há nenhum honesto?
— Bem, de vez em quando aparece um que a mãe Natureza faz tão simples,
honesto e leal que nem a pior das influências pode destruí-lo. No entanto, veja
bem, desde o peito da mãe a criança de cor já sente e vê que não há de conseguir
nada na vida a não ser por meios clandestinos. Não há outra forma de se
relacionar com os pais, as amas e os amos e os companheiros de brincadeiras.
Esperteza e engodo tornam-se hábitos necessários e inevitáveis. Não é justo se
esperar nada dela. Não deve ser punida por isso. Quanto à honestidade, o escravo
é mantido naquele estado de dependência semi-infantil que não o deixa se dar
conta dos direitos de propriedade, nem sentir que os bens de seu amo não lhe
pertencem, caso tenha acesso a eles. De minha parte, não vejo como eles
poderiam ser honestos. Um sujeito como Tomás é… é um milagre moral!
— E que fim terão suas almas? — perguntou a Srta. Ofélia.
— Isso não é problema meu, até onde sei — respondeu St. Clare. — Estou
apenas lidando com fatos desse mundo. A questão é que achamos que, para
nosso próprio benefício, toda a raça está relacionada ao demônio, seja lá o que
aconteça no outro mundo!
— Isso é absolutamente horrível! — disse a Srta. Ofélia. — Deviam sentir
vergonha de si mesmos.
— Não sei como me sentir. E estamos em muito boa companhia em tudo
isso — declarou St. Clare. — Assim como as pessoas que caminham por essa via
larga geralmente também estão. Olhe para os de classe alta e o de classe baixa,
pelo mundo todo, e verá que história é a mesma: a classe mais baixa abusada,
corpo, mente e espírito, em benefício da classe mais alta. É assim na Inglaterra, é
assim em todo lugar; no entanto, todo o cristianismo fica embasbacado, com
uma indignação virtuosa, por fazermos o que fazem de um modo um pouco
diferente.
— Não é assim em Vermont.
— Ah, veja bem, a Nova Inglaterra e os estados livres têm o melhor de nós,
posso lhe garantir. Ouço a sineta! Por favor, prima, deixe nossos preconceitos de
lado por um momento e venha jantar.
No final da tarde, quando a Srta. Ofélia estava na cozinha, uma das crianças
escravas gritou:
— Meu Deus! Lá vem a Prue, resmungando como sempre.
Uma mulher de cor alta e ossuda entrou na cozinha, equilibrando na cabeça
um cesto cheio de sequilhos e pãezinhos quentes.
— Ei, Prue! Você veio — disse Dinah.
Prue tinha uma expressão tristonha no rosto e uma voz rouca e profunda. Ela
colocou o cesto no chão, sentou-se sobre os calcanhares e, descansando os
cotovelos nos joelhos, disse:
— Ah, Deus. Quem me dera estar morta!
— Por que gostaria de estar morta? — perguntou a Srta. Ofélia.
— Assim estaria longe desse sofrimento — explicou a mulher, rispidamente,
sem tirar os olhos do chão.
— E de que adianta se embebedar para depois ser açoitada, Prue? — disse
uma bela serviçal quadrarona balançando brincos de coral enquanto falava.
A mulher olhou-a com amargura e irritação.
— Talvez um dia você chegue nesse ponto. E vou ficar feliz em ver você
assim, ah se vou; um dia ficará feliz em ter um trago, como eu, para se esquecer
das lamúrias.
— Venha, Prue — disse Dinah. — Vamos dar uma olhada nos seus
sequilhos. Aqui está a sinhá que irá pagar por eles.
A Srta. Ofélia escolheu duas dúzias.
— Tem alguns vales naquela caneca trincada em cima da prateleira — Dinah
falou. Ei, Jake, suba lá e traz ela até aqui.
— Vales? E para que servem? — perguntou a Srta. Ofélia.
— Nós compra vales do dono dela e, em troca, ela dá os pão.
— E eles conta meu dinheiro e os vale quando eu volto pra casa, pra ver se
estou com o troco; se não estiver, quase me matam.
— E isso é bem feito para você — refutou Jane, a lacaia arrogante —, se
pega o dinheiro deles pra ficar bêbada. É isso o que ela faz, senhorita.
— E é isso o que vou fazer, não consigo viver de outro jeito; bebo e esqueço
meu sofrimento.
— Está sendo muito má e muito tola ao roubar o dinheiro de seu senhor para
se embrutecer — retrucou a Srta. Ofélia.
— Provavelmente sim, sinhá; mas vou fazer de novo, ah, se vou! Ah,
Senhor! Como gostaria de estar morta! Morta e longe do meu sofrimento! — e
firme e vagarosamente, a velha criatura se levantou e colocou o cesto sobre a
cabeça de novo; no entanto, antes de sair, ela olhou para a garota quadrarona,
que continuava em pé mexendo nos brincos.
— Você acha que está bonita com esses brinco, balançando a cabeça pra lá e
pra cá, e olhando com desprezo pra todo mundo. Deixe estar, vai chegar um dia
que vai ser uma criatura miserável e açoitada feito eu. Rezo pra Deus que esse
dia chegue, rezo mesmo; quero ver, então, se não vai beber, beber, beber até cair;
e daí vai ser bem feito pra você também, arre! — e, com um grunhido maligno, a
mulher saiu da cozinha.
— Velha besta nojenta! — disse Adolfo, que pegava a água de barbear do
seu amo. — Se fosse o amo dela, açoitava-a ainda mais.
— Não faria isso de jeito nenhum — disse Dinah. — As costa dela estão em
carne viva; ela mal consegue colocar um vestido.
— Acho que esse tipo de criatura tão baixa não deveria ter permissão para ir
às casas de família da alta sociedade — falou a Srta. Jane. — O que acha disso,
Sr. St. Clare? — ela perguntou, jogando a cabeça de lado coquetemente para
Adolfo.
Devemos notar que, entre outras apropriações do inventário de seu amo,
Adolfo também tinha o hábito de adotar seu nome e endereço; e o estilo que
mostrava nos círculos das pessoas de cor que frequentava em Nova Orleans, era
o de Sr. St. Clare.
— Concordo com sua opinião, Srta. Benoir — respondeu Adolfo.
Benoir era o nome da família de Marie St. Clare, e Jane era uma das servas
dela.
— Diga-me, Srta. Benoir, será que posso perguntar se esses brincos são para
o baile de amanhã à noite? São absolutamente encantadores.
— Eu me pergunto, Sr. St. Clare, até que ponto chegará a ousadia dos
homens! — respondeu Jane, virando a linda cabeça até os brincos brilharem
novamente. — Não dançarei com você nenhuma vez se não parar de fazer
perguntas.
— Ah, não seja tão cruel! Estava só morrendo de curiosidade para saber se
aparecerá em sua tarlatana cor-de-rosa! — comentou Adolfo.
— O que foi? — perguntou Rosa, uma pequena quadrarona esperta e
maliciosa que vinha descendo as escadas neste momento.
— Ah, o Sr. St. Clare é tão insolente!
— Pela minha honra — replicou Adolfo —, deixarei isso por conta da Srta.
Rosa agora.
— Sempre soube que ele é uma criatura impertinente! — disse Rosa,
fazendo pose sobre um dos pés e olhando maliciosamente para Adolfo. — Ele
sempre me deixa muito zangada com ele por isso.
— Ah, senhoras, senhoras, assim, entre uma e outra, irão me partir o coração
— disse Adolfo. — Qualquer dia me encontrarão morto em minha cama e terão
que responder por isso.
— Ouça a maldita criatura falar! — as duas senhoritas falaram ao mesmo
tempo, gargalhando sem moderação.
— Vamos lá, sai daqui! Não posso deixar vocês ficar entulhando minha
cozinha! No meu caminho, jogando conversa fora — bradou Dinah.
— A Mãe Dinah está brava porque não pode ir ao baile — disse Rosa.
— Não quero ir a nenhum dos seus baile de gente branca — retrucou Dinah
—, fazendo corte, fingindo que são branco. Afinal, são tão negros tanto quanto
eu.
— A Mãe Dinah enseba o cabelo encarapinhado todo dia para que fique liso
— contou Jane.
— E mesmo assim, continua encarapinhado — disse Rosa, balançando
maliciosamente seus cachos longos e sedosos.
— Mas, aos olhos de Deus, o cabelo crespo não é tão bom quanto qualquer
outro? — perguntou Dinah. — Queria que a sinhá dissesse qual dos dois vale
mais, uma dupla como vocês, ou alguém como eu. Sai daqui, suas inútil! Não
quero vocês por aqui!
Neste ponto a conversa foi interrompida de duas maneiras. Ouviu-se a voz
de St. Clare no topo da escada, perguntando a Adolfo se ele demoraria a noite
toda para lhe trazer a água para barbear; e a voz da Srta. Ofélia que, saindo da
sala de jantar, disse:
— Jane e Rosa, o que estão fazendo aqui desperdiçando tempo? Vão e
cuidem das roupas.
Nosso amigo Tomás, que estivera na cozinha durante a conversa com a velha
senhora rouca, seguiu-a até a estrada. Ele a viu seguir seu caminho, de vez em
quando soltando um gemido contido. Finalmente ela colocou o cesto no chão em
frente a uma porta e começou a arrumar o xale velho e desbotado que lhe cobria
os ombros.
— Pode deixar que eu carrego um pouco o cesto — disse Tomás com
compaixão.
— E por que faria isso? — perguntou a mulher. — Não preciso de ajuda.
— Parece estar doente, ou com algum problema ou alguma coisa —
explicou Tomás.
— Não estou doente — retrucou a mulher rapidamente.
— Eu queria… — disse Tomás, olhando para ela seriamente. — Fazia gosto
de poder convencer você a largar da bebida. Não sabe que isso será sua ruína,
corpo e alma?
— Sei que vou para o inferno! — respondeu a mulher com amargura. —
Não precisa me dizer isso. É feio, é terrível, mas vou direto pro inferno. Ah,
Deus! Como ia gostar disso!
Tomás tremeu com aquelas palavras, ditas com profunda seriedade e frieza.
— Que o Senhor tenha piedade de você, pobre criatura! Nunca ouviu falar
de Jesus Cristo?
— Jesus Cristo? Quem é ele?
— Oras, Ele é o Senhor — explicou Tomás.
— Já ouvi falar do Senhor, do julgamento e do inferno. Já ouvi falar disso.
— Mas ninguém nunca falou do Senhor Jesus, que nos amou e morreu por
nós, pecadores?
— Nunca ouvi falar nada disso — explicou a mulher; ninguém nunca me
amou desde que meu velho morreu.
— Onde foi criada? — Tomás perguntou.
— No Kentucky. Um homem me tinha pra criar criança pra vender no
mercado, e vendia eles assim que eles crescia o suficiente; depois de tudo, ele
me vendeu pra um negociante e meu amo me comprou dele.
— O que fez você começar a beber desse jeito?
— Pra me esquecer do sofrimento. Tive um filho depois de vir pra cá; e
achei que podia ter um meu pra criar, porque meu amo não era um negociante.
Ele era a coisa mais linda do mundo! E a sinhá, ela parecia gostar muito dele, no
começo. Ele nunca chorava, era bonzinho e gordinho. Mas a sinhá ficou doente e
fui cuidar dela; e peguei a febre e meu leite secou e a criança ficou só pele e osso
e a sinhá não queria comprar leite. Ela não acreditava quando eu dizia que não
tinha leite. Ela dizia que sabia que eu podia dar de comer pra ele com o que os
outro comia; e a criança se consumia, e chorava, chorava e chorava, dia e noite,
e ficou só pele e osso, e a sinhá ficou cansada dele e disse que aquilo não
passava de maldade. Ela queria que ele morresse, ela disse; e não me deixava
ficar com ele durante as noites, porque dizia que ele me fazia ficar acordada e eu
não servia mais pra nada. Ela me fazia dormir no quarto dela; e eu tive que
deixar ele num pequeno sótão e uma noite ele chorou até morrer. Ele morreu. E
então comecei a beber pra tirar o choro dele dos meus ouvido! Bebi e vou
continuar bebendo! Mesmo que for parar no inferno por causa disso! Meu amo
diz que eu vou pro inferno, e eu falo pra ele que já estou no inferno agora!
— Ah, minha pobre criatura! — disse Tomás. — Ninguém nunca te disse
que o Senhor Jesus te amava e que morreu por você? Ninguém contou que ele
vai te ajudar, e que você vai poder ir para o paraíso e finalmente descansar?
— E eu lá tenho jeito de quem vai pro céu? — perguntou a mulher. — Não é
para lá que os branco vão? Acha que eles vai me aceitar lá? Prefiro ir pro inferno
e me livrar do amo e da sinhá. Ah, como eu ia gostar disso! — ela disse com seu
resmungo costumeiro, colocando o cesto sobre a cabeça e se afastando
morosamente.
Tomás virou-se e caminhou com tristeza de volta à casa. No pátio, ele
encontrou a pequena Eva, com uma coroa de tuberosas na cabeça e os olhos
radiantes de alegria.
— Ah, Tomás! Aqui está você. Estou feliz por encontrá-lo. O papai me disse
que você poderia pegar os pôneis e me levar em minha pequena carruagem —
ela disse pegando na mão dele. — O que aconteceu, Tomás? Parece tão sério.
— Não estou me sentindo bem, Srta. Eva — respondeu Tomás, com
amargura. — Mas vou pegar os cavalos para você.
— Mas conte-me, Tomás, qual é o problema? Vi você conversando com a
Prue, a velha reclamona.
Tomás, com palavras simples e sérias, contou a Eva a história de Prue.
Evangeline não se assustou, nem questionou nem chorou como outras crianças
fazem. O rosto dela ficou lívido e uma sombra séria e profunda lhe encobriu os
olhos. Em seguida ela colocou as duas mãos sobre o peito e deu um suspiro
profundo.
19
A CONTINUAÇÃO DAS
EXPERIÊNCIAS E OPINIÕES DA
SRTA. OFÉLIA

— Tomás, não precisa pegar os cavalos. Não quero mais ir — ela declarou.
— Por que não, Srta. Eva?
— Essas coisas me tocam fundo no coração, Tomás — explicou Eva —, me
tocam fundo no coração — ela repetiu seriamente. — Não quero ir — e em
seguida ela se afastou de Tomás e entrou na casa.
Dias depois, outra mulher veio no lugar da velha Prue para trazer os
sequilhos; a Srta. Ofélia estava na casa.
— Meu Deus! — exclamou Dinah. — O que aconteceu com a Prue?
— A tia Prue não virá mais — explicou misteriosamente a mulher.
— Por que não? — indagou Dinah. — Ela não está morta, está?
— Não sabemos ao certo. Ela ficou no porão — disse a mulher, olhando de
soslaio para a Srta. Ofélia.
Depois que a Srta. Ofélia tinha pegado os sequilhos, Dinah seguiu a mulher
até a porta.
— O que realmente aconteceu com Prue? — ela perguntou.
A mulher, embora relutante, parecia querer falar, e respondeu em tom baixo
e misterioso:
— Bem, você não deve contar pra ninguém. A Prue, ela ficou bêbada de
novo, e colocaram ela no porão e deixaram ela lá o dia inteiro, e ouvi eles
dizendo que as mosca está em cima dela, e ela está morta!
Dinah ergueu as mãos para o ar e, virando-se, viu bem perto dela a forma
quase espiritual de Evangeline, seus olhos grandes e místicos dilatados de horror,
cada gota de sangue ausente de seus lábios e rosto.
— Deus nos acuda! A Srta. Eva vai desmaiar! O que deu na nossa cabeça pra
deixar ela ouvir uma conversa dessa? O pai dela vai ficar uma fera!
— Não vou desmaiar, Dinah — a criança disse com firmeza. — E por que
não deveria ouvir essas coisas? É mais fácil para mim ouvi–las do que é para
Prue sofrê-las.
— Pelo amor de Deus! Essas história não é pra sinhazinhas meiga e delicada
como você. Como se matar ela não fosse o suficiente!
Eva suspirou novamente e subiu as escadas com um passo lento e
melancólico.
A Srta. Ofélia perguntou ansiosamente pela história da mulher. Dinah deu
uma versão loquaz, à qual Tomás acrescentou os detalhes que tinha ouvido da
mulher naquela manhã.
— Uma coisa abominável, absolutamente horrível! — ela exclamou
enquanto entrava na sala onde St. Clare se encontrava deitado lendo seu
periódico.
— Diga-me, qual a nova iniquidade? — perguntou ele.
— Nova? Bem, aquelas pessoas mataram Prue a chicotadas — disse a Srta.
Ofélia, continuando a contar a história com grande eloquência, aumentando os
detalhes mais sórdidos.
— Sempre achei que um dia chegaria a isso — declarou St. Clare,
continuando a ler as notícias.
— Achou? Quer dizer que não fará nada a respeito? — perguntou a Srta.
Ofélia. — Não conhece nenhum político ou qualquer outra pessoa que possa
interferir e tomar conta desse tipo de problema?
— É geralmente aceito que o interesse do proprietário seja suficiente nesses
casos. Se as pessoas optam por arruinar suas próprias posses, não sei o que há a
ser feito. Parece-me que a pobre criatura era ladra e bêbada, e desse modo não
haverá muita esperança de simpatia por ela.
— É absolutamente ultrajante, horrível, Augustine! A vingança certamente
recairá sobre você!
— Minha cara prima, eu não fiz nada e não posso fazer nada. Teria feito, se
pudesse. Se pessoas brutais e de mente baixa agem por conta própria, o que
posso fazer? Eles têm controle absoluto; são déspotas irresponsáveis. Seria inútil
interferir. Para casos como esse praticamente não há lei. O melhor que podemos
fazer é fechar nossos olhos e ouvidos e relevar os fatos. É o único recurso que
nos resta.
— Como pode fechar seus olhos e ouvidos? Como pode relevar coisas desse
tipo?
— Minha querida prima, o que espera? Aqui se encontra uma classe inteira
humilhada, sem instrução, indolente, provocadora, colocada inteiramente nas
mãos de pessoas como é a maioria das pessoas em nosso mundo, sem nenhum
tipo de acordos ou condições; pessoas que não têm nem consideração nem
autocontrole, nem reconhecem seus próprios interesses; e este é o caso de mais
da metade da humanidade. Obviamente que, em uma comunidade tão
organizada, o que pode um homem de sentimentos nobres e humanos fazer,
senão fechar bem os olhos e endurecer seu coração? Não tenho condições de
comprar cada pobre coitado que vejo. Não posso me transformar em cavaleiro
errante e querer reverter cada caso errado em uma cidade como esta. O máximo
que posso fazer é tentar me manter fora do caminho.
O rosto elegante de St. Clare ficou transtornado por um momento; ele
parecia incomodado, mas, repentinamente colocou um sorriso alegre no rosto e
disse:
— Por favor, prima, não fique aí olhando como uma das Fúrias; essa é só a
ponta do iceberg, apenas um vislumbre do que está acontecendo no mundo, de
uma forma ou de outra. Se vamos ficar discutindo e analisando todas as mazelas
da vida, não nos sobrará mais coragem para fazer nada. Isso é como olhar muito
de perto os detalhes da cozinha de Dinah — e então St. Clare deitou-se de volta
no sofá, ocupando-se novamente de seu jornal.
A Srta. Ofélia pegou seu trabalho de tricô e sentou-se tomada de indignação.
Ela tricotava sem parar e, enquanto refletia, o fogo queimava; até que ela falou:
— Vou lhe dizer uma coisa, Augustine, não sou capaz de passar pelas coisas
da maneira como você passa. É absolutamente abominável que defenda um
sistema como esse, pelo menos é o que eu penso!
— O que mais agora? — perguntou St. Clare levantando os olhos. — Este
assunto de novo?
— Digo que é absolutamente abominável que defenda um sistema como
esse! — repetiu a Srta. Ofélia, abrandando mais a voz.
— Que eu o defenda, minha cara Srta.? E quem foi que disse que eu o
defendo? — perguntou St. Clare.
— É claro que defende, vocês todos o fazem, todos os sulistas. Se não
defendessem o sistema, para que teriam escravos?
— Será que é tão inocente a ponto de supor que ninguém no mundo jamais
faça o que não acha certo? Será que você, um dia, já fez qualquer coisa que não
julgasse ser absolutamente correto?
— Se faço, me arrependo, assim espero — explicou a Srta. Ofélia, batendo
as agulhas energeticamente.
— Eu também me arrependo — disse St. Clare descascando sua laranja. —
Estou me arrependendo o tempo todo.
— E por que continua fazendo?
— Nunca continuou a fazer algo errado, mesmo depois de ter se arrendido,
minha bondosa prima?
— Bem, só quando fico muito tentada — admitiu a Srta. Ofélia.
— Bem, sou sempre muito tentado — disse St. Clare. — Essa é minha
dificuldade.
— Mas sempre decido que não farei as mesmas faltas novamente e tento
manter a promessa.
— Bom, há dez anos vivo dizendo a mim mesmo que não cometerei mais
faltas — disse St. Clare. — Mas, de algum modo, não consegui me livrar delas.
Você conseguiu se livrar de todos os seus pecados, prima?
— Primo Augustine! — exclamou a Srta. Ofélia seriamente e deixando de
lado seu trabalho de tricô. — Penso merecer a reprovação de meus defeitos. Sei
que tudo o que diz é verdadeiro o bastante e ninguém o sente mais do que eu;
mas, depois de tudo, me parece que há algumas diferenças entre você e eu. A
mim me parece que eu preferiria ter a mão cortada a continuar fazendo, dia após
dia, algo que julgasse ser errado. No entanto, minha conduta é tão inconsistente
com minha profissão que não é surpresa nenhuma que me reprove.
— Por favor, prima — disse Augustine, sentando-se no chão e colocando a
cabeça de volta no colo dela —, não leve tudo tão a sério! Sabe muito bem o tipo
de garoto inútil e insolente que sempre fui. Adoro lhe provocar, isso é tudo, só
para vê-la ficar nervosa. Considero-a desesperadamente, absolutamente boa;
cansa-me até a morte só de pensar nisso.
— Mas esse é um assunto sério, meu pequeno Augustine — disse a Srta.
Ofélia colocando a mão na testa dele.
— Infelizmente sim — ele disse. — E eu, bem, eu nunca gostei de falar de
assuntos sérios no tempo quente. Com os mosquitos e tudo mais, um sujeito é
incapaz de chegar a conclusões morais muito sublimes, e eu acredito —
continuou St. Clare levantando-se repentinamente — que há uma teoria agora!
Entendo agora por que as nações do Norte são sempre mais virtuosas do que as
do Sul; consigo entender a razão disso.
— Ah, Auguste, você é tão leviano!
— Sou mesmo? Bem, então sou, suponho; mas serei sério ao menos uma vez
na vida, porém, precisa me passar aquela cesta de laranjas; veja bem, terá que
“me fortalecer com vinho e me confortar com maçãs”, já que farei todo esse
esforço. Começarei da seguinte maneira —Augustine disse levantando a cesta.
— Quando, no decorrer dos eventos da raça humana, faz-se necessário um
sujeito manter duas ou três dúzias de seus parasitas em cativeiro, um olhar
decente às opiniões da sociedade requer…
— Não vejo como pode estar falando sério… — comentou a Srta. Ofélia.
— Espere, vou chegar lá, escute. Prima — ele explicou, seu belo rosto
repentinamente assumindo uma expressão preocupada e séria —, o cerne do
problema neste assunto abstrato da escravidão é, a meu ver, uma questão de
opinião. Os agricultores, que ganham dinheiro com ela, os clérigos, que
precisam agradar aos agricultores, os políticos, que fazem uso dela para
governar, podem distorcer e deformar as palavras e a ética a ponto de
surpreender o mundo em toda sua ingenuidade; podem pressionar a natureza e a
Bíblia e sabe-se lá mais o quê, a serviço deles; mas, ao final, nem eles nem
ninguém acredita em uma só palavra do que dizem. A escravidão é coisa do
demônio, essa é a questão. E, na minha opinião, é um exemplo respeitável do
que ele é capaz de fazer.
A Srta. Ofélia parou de tricotar e pareceu surpresa; e St. Clare,
aparentemente se divertindo com a surpresa dela, continuou.
— Parece ter dúvidas, mas se acompanhar minha linha de raciocínio,
deixarei minha opinião bem clara. O que é esse negócio maldito entre Deus e o
homem? Arranque-lhe todos os ornamentos, vá até a raiz e o cerne de tudo, e o
que se tem? Por quê? Porque meu irmão Quashy é ignorante e fraco, e eu sou
inteligente e forte? Porque sei como fazer as coisas e posso fazê-las? Essas
razões me dão o direito de roubá-lo e tomar posse de tudo o que ele tem e dar–
lhe apenas o que e quando me agrada? O que quer que seja muito difícil, muito
sujo, ou muito desagradável para mim, coloco um Quashy para fazê-lo. Porque
eu não gosto de trabalhar, o Quashy deverá trabalhar. Porque o sol me queima, o
Quashy ficará no sol. O Quashy ganhará o dinheiro e eu o gastarei. O Quashy
deverá deitar-se sobre todas as poças para que eu possa pisar em chão seco. O
Quashy deverá realizar o meu desejo, não o dele, todos os dias de sua vida, e ter
a chance de finalmente ir para o céu, de acordo com a minha conveniência. É
isso o que eu penso ser a escravidão. Desafio qualquer um neste mundo a ler
nosso código de escravidão como está escrito em nossas escrituras jurídicas e
chegar a outra conclusão. E vêm me falar de abusos da escravidão! Que grande
trapaça! A coisa toda em si mesma é a essência de todo abuso! E a única razão
para que tudo não desmorone como em Sodoma e Gomorra é porque a
escravidão é usada de um modo infinitamente melhor do que era lá. Por piedade,
por vergonha, por sermos homens nascidos de mulheres e não bestas selvagens,
grande parte de nós não abusa nem ousaria abusar do uso de todo o poder que
essas leis selvagens colocam em nossas mãos. E aquele que vai mais longe e faz
o pior, só o faz dentro dos limites do poder que a lei lhe dá.
St. Clare levantou-se e, como fazia quando ficava agitado, começou a
caminhar com passos apressados para cima e para baixo. Seu rosto fino e
clássico, como o de uma estátua grega, parecia realmente estar queimando com o
fervor de seus sentimentos. Os grandes olhos azuis chispavam e ele gesticulava
com uma agitação inconsciente. A Srta. Ofélia nunca o vira antes nesse estado de
humor e permaneceu sentada em absoluto silêncio.
— Confesso-lhe — ele disse parando subitamente em frente à prima — que
é completamente inútil falar ou sentir qualquer coisa com relação a esse assunto,
mas admito que já houve vezes quando pensei que se o país inteiro afundasse e
escondesse toda a injustiça e a miséria da luz, eu me afundaria com ele de bom
grado. Quando estive viajando de um lado para o outro em nossos barcos, ou
durante minhas viagens para coletar impostos, e observei que a todo sujeito
bruto, horrendo, mau e baixo era permitido, pelas nossas leis, se tornar uma
déspota absoluto de quantos homens, mulheres e crianças ele pudesse trapacear,
roubar ou comprar, quando vi homens desse tipo donos de crianças
desamparadas, raparigas e mulheres, estive a ponto de maldizer meu país e
amaldiçoar toda a raça humana!
— Ah, Augustine! Augustine! — disse a Srta. Ofélia. — Estou certa de que
já disse o suficiente. Nunca, em minha vida, ouvi nada parecido, nem no Norte!
— No Norte! — exclamou St. Clare, com uma súbita mudança de expressão,
voltando ao seu tom desdenhado de sempre. — Ora, ora! Vocês do Norte têm
sangue frio; são frios com tudo! Não saberiam blasfemar a torto e a direito como
nós, quando resolvemos fazê-lo!
— Bem, mas a questão é… — disse a Srta. Ofélia.
— Ah, sim, já sei o que vai dizer, a questão, e que questão dos infernos é
essa, é a seguinte! Como você chegou a este estado de pecado e miséria? Bem,
devo responder usando as velhas palavras que costumava me ensinar aos
domingos. Cheguei aqui por herança comum. Meus criados pertenciam ao meu
pai e também à minha mãe; e agora são meus, eles e tudo o que vem deles, o que
pode ser visto como um patrimônio considerável. Meu pai, como sabe, foi
primeiro para a Nova Inglaterra e era um homem como seu pai, um bom e velho
romano, animado, enérgico, de mente nobre e vontade de ferro. Seu pai se
estabeleceu na Nova Inglaterra, para reinar sobre pedras e rochas e viver da
terra; e o meu se estabeleceu na Louisiana, para reinar sobre homens e mulheres
e viver do trabalho deles. Minha mãe — disse St. Clare, levantando-se e
caminhando até um quadro no final da sala, os olhos para cima e o rosto
fervendo de veneração —, ela era divina! Não me olhe assim! Sabe o que quero
dizer! Ela provavelmente era mortal de nascimento, mas, até onde consegui
observar, não havia nenhum traço de qualquer fraqueza ou desvio humano nela;
e aqueles que são vivos e se lembram dela, sejam escravos ou homens livres,
criados, conhecidos, parentes, todos dizem a mesma coisa. Minha mãe, prima,
foi durante anos tudo o que se entrepôs entre mim e minha profunda descrença.
Ela era a perfeita encarnação e personificação do Novo Testamento – uma
história viva, para ser contada e valorizada pela sua verdade, e de nenhuma outra
forma. Ah, mãe, mãe! — disse St. Claire, juntando as mãos em um tipo de
transporte; e então, retomando o controle repentinamente, voltou e sentando-se
em uma poltrona, continuou:
“Meu irmão e eu éramos gêmeos, e dizem que gêmeos devem se parecer um
com o outro. No entanto, somos o oposto em todos os sentidos. Ele tinha olhos
escuros e ardentes, cabelos negros como o carvão, uma silhueta romana forte e
esguia e a pele morena. Eu tinha olhos azuis, cabelos louros, perfil grego e pele
clara. Ele era ativo e observador. Eu, sonhador e preguiçoso. Ele era generoso
com os amigos e iguais, mas orgulhoso, dominante e abusivo com seus
inferiores, e profundamente impiedoso com seja lá o que fosse que se colocasse
contra ele. Éramos os dois autênticos, ele pelo orgulho e coragem, eu por algum
tipo de idealização abstrata. Nós nos amávamos como garotos geralmente o
fazem — de vez em quando e como um todo. Ele era o favorito do meu pai e eu,
de minha mãe. Havia uma sensibilidade mórbida e aguda de sentimentos em
mim com relação a todos os assuntos, os quais ele e meu pai não compreendiam
e pelos quais não poderiam ter a menor simpatia. Mas minha mãe tinha; assim,
quando brigava com Alfred, e o papai me olhava zangado, eu costumava ir até o
quarto de minha mãe e me sentar ao lado dela. Lembro-me exatamente de como
ela era, com o rosto pálido, os olhos profundos, carinhosos e sérios, seu vestido
branco; ela sempre usava branco; e eu costumava pensar nela toda vez que lia,
no Livro das Revelações, sobre os santos que apareciam vestidos em linho
delicado, límpido e branco. Ela tinha muitos talentos diferentes, de um tipo ou de
outro, particularmente para a música; e costumava sentar-se ao órgão, tocando
músicas lindas e majestosas da Igreja Católica, e cantando com uma voz mais
angelical do que humana; e eu colocava a cabeça no colo dela e chorava, e
sonhava e sentia — ah, sentia imensuravelmente! — coisas que nem tenho
palavras para descrever!
“Naquele tempo essa questão da escravatura nunca era discutida como
agora; ninguém via nada de mal nisso.
“Meu pai nasceu um aristocrata. Imagino que, em outra vida, ele deva ter
pertencido aos círculos mais elevados dos espíritos, e trouxera toda a velha e
nobre arrogância consigo; pois ela lhe era intrínseca, cravada nos ossos, embora
sua origem fosse pobre e, de maneira alguma, ele viesse de família nobre. Meu
irmão era a imagem e semelhança dele.
“Mas sabe-se muito bem que os aristocratas só têm simpatias humanas
acima de certo nível da sociedade. Na Inglaterra o nível é em um lugar, em
Burma em outro, e na América, em outro; mas os aristocratas de todos esses
países nunca transpõem esse nível. O que representasse dificuldade, incòmodo e
injustiça em sua própria classe, seria um problema menor em outra. A linha
divisória de meu pai era a cor. Entre seus iguais, nunca houve um homem mais
justo e generoso, mas ele considerava o negro, incluindo todas as possíveis
gradações de cor, como um elo intermediário entre o homem e os animais, e
balizava todas as suas ideias de justiça ou generosidade nesta hipótese. Imagino
que se um dia alguém lhe perguntasse, ríspida e objetivamente, se os negros
tinham almas imortais, ele poderia ter tentado se esquivar da resposta, mas
respondido que sim. No entanto, meu pai não era um homem muito preocupado
com o espiritualismo; não possuía nenhum sentimento religioso além de ver a
Deus como o chefe das classes superiores.
“Bem, meu pai tinha aproximadamente quinhentos negros; ele era um
homem de negócios inflexível, objetivo e meticuloso; tudo tinha que funcionar
com método, ser feito com eficácia e precisão infalível. Agora, se levar em
consideração que tudo isso deveria ser feito por um bando de trabalhadores
preguiçosos, tagarelas e indolentes, que cresceram a vida toda sem nenhuma
razão possível para aprender como fazer qualquer coisa exceto “esquivar-se da
responsabilidade”, como diriam vocês de Vermont, pode-se imaginar que
aconteceram muitas coisas na fazenda dele que pareciam terríveis e assustadoras
para uma criança sensível como eu.
“Além disso, ele tinha um feitor, um filho renegado de Vermont, com todo o
respeito, grande, alto, largo, violento, que passou por um aprendizado em dureza
e brutalidade, e colocava todos seus conhecimentos em prática. Minha mãe
nunca o suportou, nem eu, mas ele ganhou ascendência sobre meu pai; e esse
homem era um déspota absoluto da fazenda.
“Eu era pequeno na época, mas tinha o mesmo amor que tenho agora por
todo tipo de coisas humanas, um tipo de paixão pelo estudo da humanidade, não
importava a forma que viesse. Sempre me encontravam nas cabanas e entre os
trabalhadores do campo, e, obviamente, eu era amado pelos escravos, e todos os
tipos de reclamações e sofrimentos eram soprados em meus ouvidos; e eu os
contava à minha mãe e, nós dois, entre nós, formávamos um comitê para
remediar os sofrimentos. Nós coibimos e reprimimos muita crueldade, e nos
parabenizamos por fazer muita bondade até que, como sempre acontece, meu
entusiasmo exagerou. Stubbs reclamou a meu pai que não conseguia controlar os
escravos, e que deveria pedir demissão de seu cargo. Meu pai era um marido
amável e indulgente, mas um homem que nunca se esquivava do que julgava
necessário; então bateu o pé, como uma rocha, entre nós e os escravos do campo.
Ele disse à minha mãe, em uma linguagem absolutamente respeitosa e
obsequiosa, mas muito explícita, que ela seria a senhora soberana dos criados da
casa, mas que não permitiria interferência com os escravos do campo. Ele a
reverenciava e a respeitava acima de todas as coisas vivas, mas teria dito a
mesma coisa à própria Virgem Maria caso ela estivesse atrapalhando o seu
sistema.
“Às vezes ouvia minha mãe discutindo alguns problemas com ele, tentando
ganhar sua simpatia. Ele ouvia aos apelos mais patéticos com a polidez e
equanimidade mais desencorajadora possível. ‘Tudo acaba na seguinte
pergunta’, ele dizia, ‘devo demitir ou ficar com Stubbs? Stubbs é a
personificação da pontualidade, honestidade e eficiência, tem tino para negócio e
é tão humano quanto a maioria das pessoas. Não podemos alcançar a perfeição;
se o mantiver, devo apoiar a administração dele como um todo, mesmo que haja
exceções aqui e ali. Todo governo inclui algumas severidades. As regras gerais
se sobrepõem às regras particulares.’ Meu pai parecia considerar essa última
declaração como uma justificativa para a maioria dos casos de crueldade. Depois
de dizer isso, ele geralmente colocava os pés no sofá, como um homem que já
encerrou o dia, ocupava-se de tirar um cochilo ou ler um períodico, conforme o
caso.
“A verdade é que meu pai demonstrava o tipo exato de talento para um
homem de Estado. Ele poderia ter dividido a Polônia tão facilmente quanto
dividia uma laranja, ou invadido a Irlanda de modo tão sistemático e silencioso
quanto qualquer outro homem. Ao final, minha mãe desistiu, desolada. Nunca
saberemos, até o julgamento final, o que uma criatura tão nobre e sensível como
ela sentiu, sobrepujada e completamente impotente, no que parecia ser um
abismo de injustiça e crueldade, do qual ninguém fazia ideia. Foi uma época de
muito sofrimento em um mundo infernal como o nosso. O que lhe restava além
de educar os filhos de acordo com seus próprios pontos de vista e sentimentos?
Bem, depois de tudo o que disse sobre educação, as crianças crescerão
essencialmente o que são por natureza, e apenas isso. Desde o berço, Alfred era
um aristocrata e, à medida que crescia, instintivamente todas suas simpatias e
seus raciocínios eram nessa linha, e todos os ensinamentos da mamãe iam pelos
ares. Quanto a mim, eles me tocavam profundamente. Mamãe nunca contradizia,
de fato, qualquer palavra de meu pai, nem parecia discordar dele; mas ela
imprimiu, queimada em minha própria alma, com toda a força de sua natureza
profunda e séria, a ideia de dignidade e valor da alma humana, por mais
miserável que fosse. Eu olhava no rosto dela em absoluto encantamento quando,
à noite, ela apontava para as estrelas e me dizia: 'Está vendo, ali, Auguste? A
alma mais pobre e miserável desse lugar viverá, quando todas essas estrelas
tiverem desaparecido para sempre, viverá tanto quanto o próprio Deus!’.
“Ela possuía alguns belos quadros antigos; um, em particular, de Jesus
curando um homem cego. Eram lindos e me impressionavam muito. ‘Veja lá,
Auguste’, ela dizia; ‘o homem cego era um mendigo, miserável e repulsivo; mas
Ele não quis curá-lo à distância! Ele o chamou para perto de si e colocou suas
mãos no mendigo! Lembre-se disso, meu garoto!’. Se tivesse vivido sob os
cuidados dela, ela teria me encorajado a não sei que nível de entusiasmo. Eu
poderia ter sido um santo, reformista, mártir, mas que pena! Pena! Saí de perto
dela quando tinha treze anos, e nunca mais a vi de novo!”
St. Clare pousou a cabeça sobre as mãos e não falou por um momento.
Alguns minutos depois ele ergueu os olhos e continuou:
— Que miserável e cruel é esse negócio da virtude humana! Uma mera
questão de acaso, na maioria das vezes, de latitude e longitude e posição
geográfica agindo em combinação com as disposições naturais! Na maior parte
não passa de um acidente! Seu pai, por exemplo, se estabelece em Vermont, em
uma cidade onde todos, de fato, são livres e iguais; torna-se um membro regular
da igreja e diácono e, com o passar do tempo junta-se à Sociedade Abolicionista
e passa a considerar a todos um pouco melhores do que pagãos. No entanto ele é,
em tudo, em constituição e hábito, uma réplica de meu pai. Sou capaz de
enxergá-lo de cinquenta maneiras diferentes, aquele mesmo espírito forte,
arrogante e dominador. Você sabe muito bem o quanto é impossível persuadir
algumas pessoas em seu vilarejo de que o cavalheiro Sinclair não se sente
superior a eles. A verdade é que, embora ele tenha vivido em tempos
democráticos e abraçado uma teoria democrática, ele é, no cerne, um aristocrata,
tanto quanto meu pai, que tinha aproximadamente quinhentos ou seiscentos
escravos sob seu comando.
A Srta. Ofélia sentiu-se compelida a contestar, e estava colocando de lado as
agulhas de tricô, quando St. Clare a interrompeu:
— Sei cada palavra que dirá. Não disse que os dois eram parecidos, de fato.
Um encontrava-se na condição na qual tudo agia contra a tendência natural, e o
outro onde tudo agia a favor disso; assim, um se tornou um velho democrata
teimoso, vigoroso e arrogante, e o outro, um déspota teimoso, vigoroso e
arrogante. Se ambos tivessem fazendas na Louisiana teriam sido tão parecidos
como duas velhas balas forjadas no mesmo molde.
— Que garoto desrespeitoso você é! — retrucou a Srta. Ofélia.
— Não foi minha intenção ser desrespeitoso com eles — falou St. Clare. —
Sabe muito bem que reverência não é o meu forte. Mas, voltemos à minha
história… Quando meu pai morreu, deixou para nós, os gêmeos, toda a
propriedade, para ser dividida conforme concordássemos. Não há no mundo de
Deus uma alma mais nobre, mais generosa do que a de Alfred, no que tange aos
seus iguais; e resolvemos admiravelmente a questão da propriedade, sem uma só
palavra ou sentimento de discórdia. Concordamos em administrar a fazenda
juntos; e Alfred, cuja vida ao ar livre e capacidades eram o dobro das minhas,
tornou-se um agricultor entusiástico e maravilhosamente bem-sucedido.
“Porém, dois anos de experiência me mostraram que eu não poderia ser um
parceiro naquela questão. Ter um bando de setecentos escravos a quem não
conhecia pessoalmente, ou por quem não sentia qualquer interesse, comprá-los,
dar-lhes tarefas, abrigálos, alimentá-los e fazê-los trabalhar como gado chifrudo,
ordená–los com precisão militar, o problema constante do quão pouco os
pequenos prazeres da vida os manteria trabalhando em ordem, a necessidade de
capatazes e feitores, o açoite sempre necessário, primeiro, último e único
recurso, a coisa toda era insuportavelmente terrível e repugnante para mim; e
quando me lembrava da estima de minha mãe pela miserável alma humana, tudo
se tornava ainda mais assustador!
“Para mim não faz o menor sentido falarem de escravos apreciando tudo
isso! Até hoje não tenho paciência com o lixo intolerável que alguns de vocês,
nortistas condescendentes, criaram para nos eximir de nossos pecados. Sabemos
muito bem que não é isso. Diga-me se existe algum homem no mundo que quer
trabalhar todos os dias, de sol a sol, sob o olhar constante de seu amo, sem poder
exprimir sua própria vontade, no mesmo trabalho cansativo, monótono e
imutável, tudo por um par de calças e sapatos uma vez por ano, com comida e
abrigo suficientes apenas para mantê-lo em forma para o trabalho! Qualquer
homem que pense que os seres humanos podem, de modo geral, se sentir
confortáveis com tal situação, deveria experimentar viver assim. Eu compraria o
cão e o faria trabalhar com a consciência tranquila!”
— Sempre imaginei — disse a Srta. Ofélia — que vocês, todos vocês,
aprovassem tais coisas e as tivessem como sendo corretas, de acordo com as
Sagradas Escrituras.
— Que balela! Ainda não fomos reduzidos a isso. Alfred, que é o déspota
mais determinado que já se viu sobre a Terra, não finge aceitar essa defesa; não,
ele se fia, altivo e presunçoso, no antigo território respeitável do direito dos mais
fortes e diz, com toda razão, que os agricultores americanos estão fazendo “de
outra forma, aquilo que a aristocracia inglesa e os capitalistas estão fazendo com
as classes inferiores”, isso é, se apropriando deles, corpo, alma e espírito, para
usá–los de acordo com sua conveniência. Ele defende as duas causas de forma
consistente, ao menos é assim que eu vejo. Acredita não poder haver uma
civilização superior sem a escravização das massas tanto simbólica como real.
Deve sempre haver, ele diz, uma classe inferior, condenada ao trabalho físico e
confinada à natureza animal; e uma classe superior que desenvolve o prazer e a
riqueza de uma inteligência melhor e maior, e se torna a alma que comanda os
inferiores. É assim que ele pensa porque, como disse, ele nasceu um aristocrata;
mas eu não acredito nisso, pois nasci um democrata.
— Como pode comparar duas coisas desse tipo? — perguntou a Srta. Ofélia.
— O trabalhador inglês não é vendido, trocado, separado de sua família ou
açoitado.
— Mas está tão à revelia do desejo de seu empregador como se fosse
vendido a ele. O dono de escravo pode açoitar seu escravo rebelde até a morte; o
capitalista pode matá-lo de fome. Quanto à segurança familiar, é difícil dizer
qual dos dois é pior: ter um filho vendido ou vê-los morrer de fome em casa.
— Mas isso não é justificativa para a escravidão; provar que ela não é pior
do que alguma outra coisa ruim.
— Não usei como justificativa, não. Além disso, digo que o nosso regime é a
infração mais escancarada e palpável dos direitos humanos; comprar um homem
como se compra um cavalo, olhando seus dentes, estalando suas juntas, testando
seus passos, e então pagar por ele; temos especuladores, feitores, mercadores e
corretores de corpos e almas humanas, tudo diante dos olhos do mundo
civilizado de uma forma mais aceitável, apesar de a coisa ser, no fundo, por
natureza, a mesma coisa, ou seja, apropriar-se de um grupo de seres humanos
para o uso e o benefício de outro, sem o menor pudor.
— Nunca pensei nessa questão sob essa luz — disse a Srta. Ofélia.
— Já viajei bastante pela Inglaterra, e analisei muitos documentos
relacionados às classes mais baixas daquele país, e realmente acho que não se
pode negar que Alfred tem razão quando diz que seus escravos estão em
melhores condições do que grande parte da população inglesa. Veja bem, não
deve inferir, pelo que acabei de dizer, que Alfred seja o que chamam de amo
duro, pois ele não é. Ele é despótico e impiedoso com insubordinação; mataria
um sujeito a tiro com tão pouco remorso como atiraria em um cervo, se o sujeito
lhe contrariasse. Mas, em geral, sente muito orgulho em ter seus escravos bem
alimentados e acomodados.
“Quando trabalhávamos juntos, insisti para que fizesse algo com relação à
instrução dos escravos e, para me agradar, ele providenciou um capelão que
costumava catequizá-los aos domingos, ainda que eu acreditasse que, no coração
de Alfred, ele achava que daria no mesmo ter o capelão pregando a seus cães e a
seus cavalos. E de fato, uma mente embrutecida e animalizada por todo tipo de
má influência desde o nascimento, trabalhando todos os dias sem pensar, não
consegue se desenvolver muito em algumas poucas horas aos domingos. Os
professores das escolas dominicais da população operária na Inglaterra, e dos
escravos em nosso país, talvez pudessem testemunhar o mesmo resultado aqui e
lá. Mesmo assim, há algumas exceções surpreendentes entre nós, oriundas do
fato de que os negros são mais impressionáveis pelo sentimento religioso do que
os brancos.”
— E como foi que você desistiu de sua vida na fazenda?
— Bem, trabalhamos juntos durante um tempo, até Alfred perceber que eu
definitivamente não era um homem do campo. Achou absurdo que depois de ter
reformado, alterado e melhorado tudo de acordo com os meus gostos, eu ainda
não me desse por satisfeito. Mas o fato é que, ao final, o que eu odiava mesmo
era a tal COISA, o uso desses homens e mulheres, a perpetuação dessa ignorância,
dessa brutalidade, dessa imoralidade apenas para fazer dinheiro para mim!
— Além do mais, estava sempre interferindo nos detalhes. Sendo eu um dos
mortais mais preguiçosos do mundo, era muito afeito à preguiça; e quando os
pobres coitados punham pedras no fundo de seus sacos de algodão para deixá-los
mais pesados, ou enchiam os sacos com terra e algodão em cima, me parecia
exatamente o que eu faria se fosse eles e eu não podia e não mandaria açoitá-los
por isso. Obviamente que houve um fim para a disciplina da fazenda; e Alf e eu
chegamos ao mesmo ponto a que chegamos meu pai e eu anos antes. Assim, ele
me disse que eu era tão sentimental como uma mulher e nunca me sairia bem
nos negócios; e me aconselhou a aceitar algumas ações do banco e a mansão da
família em Nova Orleans, e ir escrever poesia e deixá-lo cuidar da fazenda.
Então nos despedimos e vim para cá.
— Por que não libertou seus escravos?
— Bem, não tive coragem de fazê-lo. Não podia mantê-los como ferramenta
para fazer dinheiro; mas, gastar meu dinheiro com eles não me pareceu tão
horrendo. Alguns deles eram antigos criados da casa, aos quais eu era muito
apegado; e os mais jovens eram filhos dos mais velhos. Todos estavam muito
satisfeitos de estar onde estavam — ele fez uma pausa e caminhou
reflexivamente de um lado para o outro da sala.
“Houve um tempo em minha vida”, declarou St. Clare, “quando tive planos
e esperanças de fazer algo neste mundo, mais do que só ficar à deriva. Tinha
uma vaga e indistinta vontade de ser um tipo de emancipador, de libertar minha
terra dessa nódoa desgraçada. Todos os jovens têm esses lampejos alguma vez na
vida, suponho, mas então…”
— E por que não o fez? — perguntou a Srta. Ofélia. — Não se deve colocar
a mão no arado e depois olhar para trás.
— Bem, as coisas não aconteceram conforme o esperado e passei pelo
desespero de viver o que Salomão viveu. Imagino que tenha sido um incidente
necessário para a sabedoria de ambos, mas, de qualquer maneira, em vez de ser
um ator e regenerador da sociedade, eu me tornei um pedaço de madeira levado
pela correnteza, e desde então, fico flutuando de um lado para o outro. Alfred me
repreende toda vez que nos encontramos e tem vantagem sobre mim, posso lhe
garantir, pois ele realmente faz alguma coisa; a vida dele é um resultado lógico
de suas opiniões, e a minha é um non sequitur contemplativo.
— Meu querido primo, está satisfeito com a maneira pela qual está
enfrentando sua provação?
— Satisfeito? Mas não estava exatamente lhe dizendo o quanto a desprezo?
Mas, para voltarmos ao assunto, falávamos sobre a questão da alforria. Não acho
que meus sentimentos com relação à escravidão sejam peculiares. Conheço
muitos homens que, em seus corações, pensam do mesmo modo que eu. A terra
ruge sob ela e, por pior que seja para os escravos, é ainda muito pior para os
amos. Não é necessário usar óculos para ver que há uma grande classe de
pessoas deploráveis, imprudentes e degradadas entre nós, que são ruins para nós
assim como para elas mesmas. O capitalista e o aristocrata inglês não conseguem
se sentir como nós nos sentimos, pois não se misturam com a classe que
exploram como nós o fazemos. Os negros estão em nossas casas, são
companheiros de nossos filhos e formam a opinião deles mais rápido do que nós,
pois são de uma raça à qual as crianças sempre se juntam e se afeiçoam. Se Eva
não fosse um anjo como é, estaria arruinada. E seríamos capazes de deixar que a
varíola se espalhasse entre eles e achar que nossos filhos não se contaminariam,
apenas para que continuassem desinformados e deploráveis e pensassem que
nossos filhos não seriam afetados por aquilo. Ainda assim nossas leis proíbem
terminantemente qualquer sistema educacional eficiente para os negros, e fazem
bem, pois bastaria educar seriamente uma geração e a coisa toda explodiria pelos
ares. Se não lhe déssemos a liberdade, eles a tomariam com as próprias mãos.
— E como acha que isso terminará? — perguntou a Srta. Ofélia.
— Não sei. Uma coisa é certa: há um burburinho entre as multidões pelo
mundo. A mesma coisa está acontecendo na Europa, na Inglaterra e aqui neste
país; há um dies irae. Minha mãe costumava dizer de um milênio que estava se
aproximando, quando Cristo reinaria e todos os homens seriam livres e felizes. E
ela me ensinou a rezar, quando ainda era garoto: “Venha a nós o vosso reino”. Às
vezes acho que todos esses suspiros, gemidos e movimentação entre os coitados
prediz o que ela costumava dizer que viria. Mas quem sabe o dia em que ele
chegará?
— Augustine, às vezes acho que você não está muito distante do Reino de
Deus — comentou a Srta. Ofélia, colocando as agulhas de tricô de lado e
olhando ansiosamente para o primo.
— Obrigada pela sua alta conta, mas comigo é cheio de altos e baixos. Na
teoria, subo até os portões do paraíso; na prática, desço até o pó da Terra. Aí está
a sineta do chá; por favor, vamos. E agora não venha me dizer que nunca
conversei seriamente em toda minha vida.
À mesa, Marie mencionou o incidente com Prue.
— Imagino, prima, que pense que somos todos bárbaros.
— Acho uma barbaridade o que aconteceu — disse a Srta. Ofélia —, mas
não acho que sejam todos bárbaros.
— Sei que é impossível conviver com algumas dessas criaturas — falou
Marie. Elas são tão cruéis que não deveriam viver. Não sinto nem um pouco de
simpatia por casos desse tipo. Se eles se comportassem, isso não aconteceria.
— Mas, mamãe — replicou Eva —, a pobre criatura estava infeliz; era por
isso que bebia.
— Ah, que bobagem! Como se isso fosse uma desculpa! Eu muitas vezes
estou infeliz. Imagino — ela disse pensativamente — que eu tenha passado por
mais provações do que ela na vida. É tudo porque são muito ruins. Alguns deles
são impossíveis de se subjugar, seja lá qual for a punição. Lembro que meu pai
tinha um homem tão preguiçoso que fugia só pra escapar do trabalho, e se
escondia nos pântanos, roubando e fazendo todo tipo de coisas horríveis. Aquele
homem foi pego e açoitado, várias vezes, e nunca adiantou nada. Da última vez,
ele se arrastou, apesar de quase não conseguir se mover, e morreu no pântano.
Não havia razão nenhuma para aquilo, pois os escravos de meu pai sempre
foram bem tratados.
— Já subjuguei um homem uma vez — contou St. Clare —, ao qual todos os
feitores e senhores tinham tentando com as próprias mãos em vão.
— Você? — exclamou Marie. — Ora, ficaria muito feliz em saber quando
você fez qualquer coisa desse tipo na vida.
— Bem, ele era um sujeito enorme e forte, um africano nativo; ele parecia
ter o péssimo instinto de liberdade muito desenvolvido. Era um típico leão
africano. Chamavam-no de Spicio. Ninguém conseguia fazer nada com ele,
assim, o negro foi vendido de feitor para feitor, até que, finalmente Alfred o
comprou, por achar que pudesse controlá-lo. Então, um dia ele nocauteou o
feitor e fugiu rapidamente para os pântanos. Eu estava visitando a fazenda, pois
isso aconteceu logo depois de termos desfeito nossa sociedade. Alfred ficou
profundamente exasperado e eu lhe disse que a culpa era sua, e sugeri apostar
que conseguiria submeter o escravo. E finalmente ele concordou que, se eu o
pegasse, deveria fazer a experiência. Assim, juntaram um grupo de seis ou sete
homens, com armas e cães, para a perseguição. Quando se é um hábito, as
pessoas podem ficar tão entusiasmadas ao caçar um homem como ficam ao caçar
um cervo; de fato, eu mesmo fiquei animado, apesar de ter me colocado como
um tipo de mediador, caso ele fosse capturado.
“Bem, os cães farejavam e latiam e nós cavalgamos e corremos até que
finalmente o encontramos. Ele correu e se esquivou como um cervo, e nos
deixou para trás por muito tempo; mas finalmente os pegamos em um arbusto de
cana impenetrável e ele se virou para nos encarar, e vou lhes dizer, o negro lutou
bravamente com os cães. Ele os jogou para a direita e para esquerda, e matou
com precisão os três animais com os próprios punhos, quando um tiro de pistola
o derrubou e ele caiu, ferido e sangrando, quase nos meus pés. O pobre homem
olhou para mim com hombridade e desespero nos olhos. Mantive os cachorros e
o grupo de homens para trás à medida que se aproximavam, e o declarei meu
prisioneiro. Era tudo o que podia fazer para evitar que eles o matassem a tiros,
no afã da situação; mas persisti em minha barganha e Alfred o vendeu a mim.
Encarreguei-me dele e, em quinze dias o negro estava apaziguado, tão submisso
e dócil quanto se pode desejar um coração.”
— E o que neste mundo você fez com ele? — perguntou Marie.
— Bem, foi um processo muito simples. Levei-o para o meu próprio quarto,
mandei que lhe preparassem uma boa cama, limpei seus ferimentos e cuidei dele
eu mesmo até que conseguiu se levantar sobre os próprios pés. E, ao longo do
tempo, mandei lavrar uma carta de alforria e disse a ele que poderia ir para onde
bem quisesse.
— E ele foi? — disse a Srta. Ofélia.
— Não. O tolo rasgou a carta ao meio e recusou-se terminantemente a me
deixar. Nunca conheci um sujeito melhor e mais corajoso, leal e verdadeiro feito
aço. Tempos depois ele se converteu ao cristianismo e se tornou tão gentil
quanto uma criança. Ele costumava cuidar de minha casa no lago, e também o
fazia de forma primorosa. Eu o perdi para o primeiro surto de cólera. Na
verdade, ele arriscou a vida por mim. Eu me adoentei quase a ponto de morrer; e
quando, tomados pelo pânico, todos debandaram, Scipio cuidou de mim feito um
gigante e, de fato, me trouxe de volta à vida. Mas, pobre coitado! Ele mesmo
pegou a doença e não houve como salvá-lo. Nunca senti tanto a perda de alguém.
Eva, aos poucos, chegava mais perto do pai à medida que ele contava a
história, os lábios semiabertos, os olhos arregalados e preocupados com um
interesse profundo.
Quando ele terminou, Evangeline repentinamente jogou os braços em volta
do pescoço do pai, caiu no choro e começou a soluçar convulsivamente.
— Eva, minha filha! Qual é o problema? — perguntou St. Clare enquanto a
figura pequena da criança tremia e vibrava com a violência de seus sentimentos.
— Esta criança — ele disse — não pode ouvir histórias desse tipo. Fica nervosa.
— Não, papai. Não estou nervosa — disse Eva se controlando, subitamente,
com uma força de determinação singular para uma criança daquela. — Não
fiquei nervosa, mas essas coisas me tocam profundamente o coração.
— O que quer dizer, Eva?
— Não posso dizer, papai. São muitos pensamentos. Talvez um dia eu lhe
conte.
— Bem, quando quiser, querida. Agora, por favor, pare de chorar e deixar
seu pai preocupado — pediu St. Clare. — Olhe aqui, veja só que lindo pêssego
eu tenho para você!
Eva pegou-o e sorriu, embora ainda houvesse um resquício de nervosismo
nos cantos de sua boca.
— Venha olhar os peixinhos dourados — disse St. Clare, pegando na mão
dela e caminhando até a varanda. Momentos depois, risadas de alegria podiam
ser ouvidas através das cortinas de seda, enquanto Eva e St. Clare jogavam
pétalas de rosas um no outro e brincavam de pega-pega entre os corredores do
pátio.

É perigoso que nosso humilde amigo Tomás seja negligenciado pelas


aventuras dos bem-nascidos; mas se nossos leitores nos acompanharem até um
pequeno cômodo em cima do estábulo poderão, talvez, saber um pouco das
coisas dele. Era um quarto decente, com uma cama, uma cadeira e uma pequena
mesa de apoio onde ficavam a Bíblia e o hinário de Tomás; e onde ele está
sentado neste momento, com sua lousa diante de si, concentrado em algo que
parece custar-lhe uma boa dose de ansiedade.
O fato é que a saudade e as lembranças de casa tinham ganhado força, e ele
pedira uma folha de papel a Evangeline para escrever, e tentando juntar todo seu
estoque de conhecimento literário adquirido com as instruções do sinhozinho
George, concebeu a sábia ideia de escrever uma carta, estando agora ocupado,
sobre a lousa, escrevendo seu primeiro rascunho. Tomás estava tendo alguns
problemas, pois havia esquecido completamente a forma de algumas letras; e
aquelas das quais se lembrava, não sabia exatamente como usar. E, enquanto
estava trabalhando e se esforçando, com muita seriedade, Eva apareceu, como
um pássaro, nas costas da cadeira atrás dele, e deu uma espiada sobre o ombro
do escravo.
— Ah, Pai Tomás! Que coisas engraçadas você está fazendo aí!
— Estou tentando escrever uma carta para minha esposa e meus filhos, Srta.
Eva — explicou Tomás colocando as costas das mãos sobre os olhos —, mas de
algum modo receio não conseguir.
— Gostaria de poder ajudá-lo, Tomás! Aprendi a escrever um pouco. O ano
passado conseguia fazer todas as letras, mas infelizmente já esqueci.
Então Eva encostou sua cabecinha dourada perto da cabeça negra de Tomás,
e os dois começaram uma conversa séria e ansiosa, ambos preocupados e
ignorantes e, com um pouco de consulta e conselho sobre cada palavra, a
composição teve início à medida que os dois se sentiram muito confiantes com a
aparência da escrita.
— Sim, Pai Tomás, está realmente começando a ficar linda — disse Eva,
olhando encantadoramente para o papel. — Sua esposa e filhinhos hão de ficar
muito felizes! Ah, é uma judiação que tenha se separado deles! Um dia vou pedir
ao papai para deixá-lo ir embora.
— A sinhá disse que mandaria o dinheiro para mim assim que conseguissem
juntá-lo — disse Tomás. — Espero que ela mande. O sinhozinho George, ele
disse que viria me buscar e me deu esse dólar dele como um sinal; e Tomás tirou
a preciosa nota de dentro de suas roupas.
— Ah, então ele certamente virá! — disse Eva. — Estou tão feliz!
— Eu queria mandar uma carta para avisar onde estou e dizer à pobre Cloé
que estou bem, porque ela estava tão triste, a coitadinha!
— Ei, Tomás! — chamou a voz de St. Clare, que entrava pela porta neste
momento.
Tomás e Eva olharam.
— O que temos aqui? — St. Clare perguntou, subindo e olhando para a
lousa.
— Ah, é a carta de Tomás. Estou o ajudando a escrevê-la — contou
Evangeline. — Não é bom?
— Não desencorajaria nenhum dos dois — disse St. Clare —, mas acho
melhor deixar que eu escreva a carta para você, Tomás. Eu o farei quando voltar
de minha cavalgada.
— É muito importante que escreva — explicou Eva —, porque a senhora
dele irá mandar o dinheiro para levá-o de volta, papai; ele me disse que eles lhe
disseram isso.
St. Clare pensou, em seu coração, que aquilo era provavelmente apenas o
tipo de coisas as quais donos de escravos bondosos dizem para seus criados, para
aliviarem o horror de serem vendidos, sem qualquer intenção de cumprir a
promessa que fizeram. Mas não fez nenhum comentário em voz alta sobre isso,
apenas pediu a Tomás que selasse os cavalos para uma cavalgada.
A carta de Tomás foi escrita para ele naquela noite, conforme prometido, e
enviada em segurança pelo serviço de postagem.
A Srta. Ofélia continuou seus trabalhos na linha de manutenção da casa.
Resolveu-se, em comum acordo entre os escravos da casa, de Dinah ao escravo
mais novo, que a Srta. Ofélia era decididamente “curiosa”, um termo que os
escravos sulistas usavam para dizer que seus superiores não necessariamente
lhes agradavam.
O círculo mais alto da criadagem, a dizer, Adolfo, Jane e Rosa, concordou
que ela não era uma senhora; as senhoras nunca trabalhavam o dia todo como
ela; ela não tinha nenhum ar de superioridade, e estavam surpresos que ela
tivesse quaisquer laços de parentesco com os St. Clare. Até mesmo Marie
declarou que era absolutamente fatigante ver a prima Ofélia sempre tão ocupada.
E, de fato, a atividade da Srta. Ofélia era tão incessante que dava fundamento
para a queixa. Ela costurava e cerzia tudo, de manhã até a noite, com a energia
de alguém que sofre a pressão de uma urgência imediata; e então, ao anoitecer,
quando o trabalho era dobrado e guardado, surgia com o eterno tricô, e lá ia ela
novamente, enérgica como sempre. Era, de fato, um trabalho árduo observá-la.
20
TOPSY

Certa manhã, enquanto a Srta. Ofélia se ocupava com alguma lida


doméstica, ouviu a voz de St. Clare chamando-a ao pé da escada.
— Venha até aqui, prima; tenho algo para lhe mostrar.
— O que é isso? — perguntou a Srta. Ofélia, descendo os degraus com sua
costura na mão.
— Fiz uma compra para a sua repartição, veja só! — exclamou St. Clare e,
ao dizer isso, puxou uma garotinha negra, de oito ou nove anos de idade.
Ela era uma das mais negras de sua raça; e seus olhinhos redondos e
brilhantes feito contas de vidro passavam por tudo na sala, agitadamente. A boca
entreaberta, embasbacada pelas maravilhas da sala do novo amo, exibia dentes
brancos e brilhantes. Seu cabelo encarapinhado era todo cheio de rabichos
trançados, apontando em todas as direções. A expressão de seu rosto era uma
estranha mistura de astúcia e esperteza, encoberta, como que por um tipo de véu,
por uma expressão de triste gravidade e melancolia. Vestia-se com um único
traje surrado e esfarrapado feito de saco, e permanecia com as mãozinhas
timidamente cruzadas à sua frente. No geral, havia algo diferente e misterioso
com relação à sua aparência, algo que, passado um tempo, a Srta. Ofélia
descreveu como “absolutamente pagão” a ponto de encher a boa senhora de
profundo desespero e perguntar a St. Clare:
— Augustine, mas para que razão você me trouxe isso?
— Para educá-la, para começar, e encaminhá-la na estrada que deve seguir.
Achei-a uma espécie bem engraçada na linha de Jim Crow. Venha, Topsy — ele
acrescentou soltando um assovio, como um homem chamaria a atenção de um
cachorro —, cante-nos uma canção e nos mostre um pouco como sabe dançar.
Os olhos escuros e reluzentes brilharam com uma animação maliciosa, e a
negrinha começou a cantar, com uma voz clara e aguda, uma estranha melodia
dos negros, cujo ritmo ela mantinha com as mãos e os pés, girando, batendo
palmas, batendo os joelhos um no outro, de um jeito selvagem e fantástico, e
produzindo na garganta todos aqueles estranhos sons guturais característicos da
música de sua raça; e finalmente, dando uma ou duas cambalhotas e entoando
uma longa nota final, tão estranha e inacreditável como o som de um apito de um
trem a vapor, ela parou sobre o tapete, em pé, com as mãos cruzadas, e uma
expressão de submissão cerimoniosa e grave no rosto, apenas entrecortada pelas
olhadelas maliciosas que lhe escapavam pelo canto dos olhos.
A Srta. Ofélia permaneceu em silêncio, absolutamente paralisada de espanto.
St. Clare, sujeito brincalhão que era, parecia estar gostando do espanto da
prima e chamando a criança de novo, disse:
— Topsy, esta é sua nova senhora. Vou dar você a ela; veja lá como irá se
comportar.
— Sim, senhor — replicou Topsy, com uma gravidade cerimoniosa, seus
olhinhos maliciosos reluzindo enquanto falava.
— Precisa ser uma boa garota, Topsy — disse St. Clare.
— Ah, vou ser, sim senhor — falou Topsy ainda com o olhar brilhante e as
mãos devotamente entrelaçadas.
— Augustine, para que isso? — perguntou a Srta. Ofélia. — Sua casa já está
cheia dessas praguinhas; tanto que não é possível ficar em pé sem se enroscar em
uma delas. Levanto pela manhã e encontro uma dormindo atrás da porta, vejo
uma cabeça preta saindo por debaixo da mesa, uma deitada sobre o capacho da
porta; e todos eles estão tirando o pó, cortando grama e rindo por entre os
corrimãos, e tropeçando pelo chão da cozinha! Por que quis trazer mais esta
aqui?
— Para educá-la, já não lhe disse? Você está sempre falando sobre educação.
Achei que pudesse lhe presentear com uma espécime fresca, e deixar fazer do
seu jeito, encaminhá-la na estrada que deveria seguir.
— Eu não a quero, tenho certeza. Tenho mais coisas para fazer com eles do
que gostaria.
— Veja só como são os cristãos! Constroem uma sociedade e fazem alguns
pobres missionários passarem seus longos dias entre esses tipos mais pagãos.
Mas, estou para ver um cristão que leve um deles para casa, e se dê ao trabalho
de convertê-lo! Não, nessa hora, os negrinhos são sujos e incômodos, dão muito
trabalho e por aí vai.
— Augustine, sabe muito bem que não pensei nisso sob esse prisma —
afirmou a Srta. Ofélia, evidentemente abaixando o tom. — Bem, com razão seria
um trabalho missionário — ela concordou, olhando com mais simpatia para a
criança. St. Clare tinha tocado no ponto certo. A consciência da Srta. Ofélia
estava sempre em alerta. — Embora eu realmente não veja a necessidade de
comprar mais esta aqui; em sua casa, já há negrinhas o suficiente para tomar
todo meu tempo e disposição.
— Bem, prima — declarou St. Clare puxando-a para o lado —, tenho que
lhe pedir perdão por meus discursos inúteis. Afinal, você é tão bondosa que não
há necessidade de fazê-los. Mas, a verdade é que essa negrinha pertencia a um
casal de criaturas bêbadas que têm um restaurante ordinário pelo qual eu passo
todos os dias, e fiquei cansado de ouvi-la gritando, e eles a espancando e
blasfemando. E ela também me parecia inteligente e alegre, como se alguma
coisa pudesse ser feita dela, então eu a comprei e a darei a você. Tente dar a ela
uma boa educação ortodoxa da Nova Inglaterra, e veja como ela se sairá. Sabe
muito bem que eu mesmo não tenho dom para isso, mas gostaria que você
tentasse.
— Bem, farei o possível — concordou a Srta. Ofélia, e se aproximou de seu
novo objeto como alguém faria ao se aproximar de uma aranha negra, supondo
ter boas intenções.
— Ela está completamente suja e quase nua — ela declarou.
— Leve-a lá para baixo e faça um deles limpá-la e vesti-la.
A Srta. Ofélia levou-a para os lados da cozinha.
— Não sei pra que o sinhô St. Clare quer mais um nego! — exclamou Dinah
analisando a recém-chegada com ares não muito amigáveis. — Eu que não vou
ter ela nos meus pé, com certeza!
— Sai daqui! — disseram Rosa e Jane, com nojo supremo. — Tira ela da
nossa frente! Pra que cargas d’água o amo quis outra dessas negrinha não
sabemo.
— E isso serve pra você também! Ela não é mais preta do que você, Srta.
Rosa — retrucou Dinah, sentindo que a última declaração refletia nela mesma.
— Vocês acha que é branca. Não é nem uma coisa nem outra, nem preta nem
branca. Eu queria ser uma ou outra.
A Srta. Ofélia viu que não havia ninguém naquele ambiente que pudesse
assumir a responsabilidade e cuidar da limpeza e das roupas da recém-chegada,
assim, foi obrigada a fazê-lo por si mesma, com a ajuda relutante e descortês de
Jane.
Ouvidos educados não deveriam escutar os detalhes da primeira toalete de
uma criança abusada e oprimida. Na verdade, neste mundo, milhares devem
viver e morrer em um estado que seria chocante demais para os nervos de seus
semelhantes ouvirem ser descritos. A Srta. Ofélia possuía uma boa dose de
determinação prática e forte e assim, prosseguiu sua tarefa com resolução
heroica, confessemos, sem ares muito benevolentes, pois a paciência era uma de
suas maiores virtudes. Quando ela viu, nas costas e nos ombros da criança,
grandes marcas de chibatadas e calosidades, indeléveis do sistema sob o qual ela
crescera até aquele momento, o coração de Ofélia se encheu de piedade.
— Olha só! — disse Jane, apontando para as cicatrizes. — Isso não mostra
que ela é uma pilantra? Ela vai dar muito trabalho, tenho certeza. Odeio essas
pretinha! Tudo nojenta! Queria saber por que o senhor comprou essa aqui.
A “pretinha” ouvia a todos esses comentários com ar resignado e triste que
pareciam-lhe ser habituais, apenas observando, com o olhar astuto e furtivo de
seus olhos chamejantes, os ornamentos que Jane usava nas orelhas. Assim que
finalmente foi vestida com um traje decente e completo, e tendo os cabelos
cortados rentes à cabeça, a Srta. Ofélia, com satisfação, disse que a garota
parecia mais cristã do que ela própria, e, em sua cabeça, começou a amadurecer
alguns planos para a educação da criança.
Sentando-se à frente dela, a Srta. Ofélia começou a questionar a garotinha.
— Quantos anos você tem, Topsy?
— Sei não, sinhá — respondeu com um sorriso que mostrava todos seus
dentes.
— Não sabe quantos anos tem? Ninguém nunca lhe disse? Quem era sua
mãe?
— Nunca tive nenhuma! — disse a criança com outro sorriso.
— Nunca teve uma mãe? Como assim? Onde nasceu?
— Nunca nasci! — insistiu Topsy, com outro sorriso tão encantador que, se
a Srta. Ofelia estivesse um pouco nervosa, poderia ter pensado estar em posse de
algum gnomo coberto de fuligem do mundo das fadas; no entanto, a prima
estava nervosa, mas equilibrada e objetiva como sempre, e refutou com um tom
mais rígido.
— Não precisa me responder assim, criança. Não estou brincando com você.
Diga-me onde nasceu, e quem eram seu pai e sua mãe.
— Nunca nasci — reiterou a criatura mais enfaticamente. — Nunca tive pai,
nem mãe, nem nada. Fui criada por um especulador junto com um bando de
outras criança. A velha mãe Sue tomava conta da gente.
A criança evidentemente estava sendo sincera, e Jane, caindo na risada,
disse:
— Meu Deus, sinhá, tem muitas desse tipo. Os especulador compra elas bem
barato, quando ainda são pequena e cria elas pra vender no mercado.
— Quanto tempo viveu com seu senhor e senhora?
— Não sei.
— Um ano, mais ou menos?
— Não sei, sinhá.
— Deus Pai, esses preto baixo, não sabe dizer nada, sinhá; não entende nada
sobre o tempo — disse Jane. — Não sabe que ano é; nem quantos ano têm.
— Algum dia já ouviu falar de Deus, Topsy?
A criança parecia intrigada, mas sorriu como sempre.
— Sabe quem a criou?
— Ninguém, até onde sei — respondeu a criança com um tipo de risada
curta.
A ideia parecia lhe chamar muito a atenção, pois os olhos dela cintilaram e
ela falou:
— Acho que cresci sozinha. Acho que ninguém me criou.
— Sabe costurar? — perguntou a Srta. Ofélia, que resolveu passar a fazer
perguntas sobre assuntos mais tangíveis.
— Não, sinhá.
— O que sabe fazer? O que fazia para seu senhor e senhora?
— Buscava água, lavava as louça, lustrava faca e servia as pessoa.
— Eles eram bons para você?
— Acho que sim — respondeu a criança, observando a Srta. Ofélia com
curiosidade.
A Srta. Ofélia levantou-se depois dessa conversa encorajadora. St. Clare
estava debruçado nas costas da cadeira dela.
— Encontrará solo fértil e virgem, prima; plante suas próprias ideias, pois
não terá muita coisa que tirar daí.
As ideias sobre educação da Srta. Ofélia, assim como todas as suas ideias,
eram bem estabelecidas e definidas; e do tipo que prevaleciam na Nova
Inglaterra no século passado, e as quais ainda eram preservadas em algumas
partes longínquas e menos sofisticadas, onde não havia estradas de ferro. Até
onde podem ser expressas, as ideias se resumiam em poucas palavras: ensiná-los
a obedecer quando recebiam uma ordem; ensiná-los o catecismo, a costura e a
leitura; e chicoteá-los caso contassem uma mentira. E, obviamente, em virtude
da luz que se coloca na educação de hoje, esse sistema está muito ultrapassado,
embora seja fato indiscutível que nossas avós criaram alguns homens e mulheres
justos sob esse regime, como muitos de nós podem lembrar e testemunhar. De
qualquer forma, a Srta. Ofélia não sabia fazer diferente e, assim, aplicou suas
ideias à sua pagã com toda a diligência da qual dispunha.
A criança foi apresentada e considerada na família como a menina da Srta.
Ofélia; e, como não era bem-vista na cozinha, Srta. Ofélia resolveu confinar sua
esfera de atuação e instrução estritamente a seu próprio quarto. Com um
sacrifício pessoal que alguns de nossos leitores apreciarão, ela resolveu, em vez
de arrumar confortavelmente sua própria cama, varrer e tirar a poeira de seu
próprio quarto — que, até aqui, não tinha nem vestígio — em profundo desprezo
às ofertas de ajuda da criada da casa, condenar-se ao martírio de ensinar Topsy a
realizar essas tarefas. Ah, maldito seja esse dia! Se um de nossos leitores fizer o
mesmo um dia entenderá o valor do sacrifício dela.
A Srta. Ofélia começou a lição de Topsy levando-a até o seu quarto, na
primeira manhã, e começando, com todo afinco, os ensinamentos da arte e do
mistério de se arrumar uma cama.
Notem que Topsy, lavada e sem as trancinhas que lhe eram muito caras ao
coração, vestia um traje limpo, um avental bem engomado, e estava parada
reverentemente diante da Srta. Ofélia, com uma expressão de solenidade digna
de um funeral.
— Topsy, vou lhe mostrar como minha cama deve ser feita. Sou muito
exigente com minha cama, por isso deve aprender exatamente como arrumá-la.
— Sim, sinhá — concordou Topsy com um suspiro profundo e uma
expressão séria e lamentável.
— Topsy, olhe aqui. Esta é a bainha do lençol; este é o lado certo e este é o
lado errado, vai conseguir se lembrar?
— Sim, sinhá — respondeu Topsy com outro suspiro.
— Bem, deve trazer o lençol de baixo sobre o travesseiro, assim, e puxá-lo
para baixo do colchão, bem liso e esticado, assim, está vendo?
— Sim, sinhá — disse Topsy com atenção profunda.
— Mas, o lençol de cima — explicou a Srta. Ofélia — deve ser trazido para
baixo desse jeito, e enfiado bem firme e liso nos pés da cama, assim, a bainha
mais fina nos pés.
— Sim, sinhá — repetiu Topsy; no entanto, gostaríamos de acrescentar o que
a Srta. Ofélia não viu: enquanto as costas da boa senhora estavam viradas, no afã
de suas arrumações, a jovem discípula conseguiu pegar um par de luvas e uma
fita, que escondera com rapidez e habilidade, embaixo da manga do vestido, e
continuou com as mãos bem cruzadas como antes.
— Agora é sua vez de fazer isso, Topsy — declarou a Srta. Ofélia, puxando
os lençóis da cama e se sentando.
Topsy, séria e habilidosa, fez tudo do começo ao fim, para satisfação da Srta.
Ofélia; alisando os lençóis, passando as mãos sobre cada dobra e exibindo,
durante todo o processo, a seriedade e gravidade com as quais a instrutora fora
educada. No entanto, por um golpe de azar, um pedaço esvoaçante de fita
escapou por uma das mangas do vestido, no momento em que ela terminava a
tarefa, e chamou a atenção da Srta. Ofélia. A senhora imediatamente foi para
cima dela.
— O que é isso? Sua danada, maliciosa! Roubou isso aqui!
A fita foi puxada da manga do vestido da própria Topsy, contudo ela não se
sentiu nem um pouco desconcertada; apenas olhou para a fita com um ar de
surpresa e inocência inconsciente.
— Meu Deus! Olha, essa é a fita da Srta. Félia, né? E como veio parar na
minha manga?
— Topsy, sua fedelha, não minta para mim. Você roubou a fita!
— Sinhá, juro que não. Nunca tinha visto ela até nesse minuto!
— Topsy — disse a Srta. Ofélia. — Não sabe que é feio mentir?
— Eu nunca minto, Srta. Félia — declarou Topsy com virtuosa seriedade. —
Estou falando a verdade, só isso.
— Topsy, vou mandar lhe açoitar se continuar mentindo.
— Pelo amor de Deus, sinhá, se mandar me açoitar o dia inteiro, nem assim
vou falar outra coisa — declarou Topsy, começando a chorar. — Nunca vi ela
antes, deve ter ficado prendida na minha manga. A Srta. Félia deve ter deixado
na cama e ela ficou presa nas minha roupa e entrou na minha manga.
A Srta. Ofélia ficou tão indignada com a mentira deslavada que pegou a
garota e chacoalhou-a.
— Não me diga isso de novo!
O solavanco fez as luvas que estavam escondidas na outra manga caírem no
chão.
— Olhe só! — ralhou a Srta. Ofélia — e agora vai me dizer que não roubou
aquela fita?
Topsy agora confessou ter roubado as luvas, mas insistiu em negar o roubo
da fita.
— Topsy — falou a Srta. Ofélia — se confessar tudo, desta vez não vou lhe
açoitar.
Depois da promessa, Topsy confessou o roubo da fita e das luvas sob tristes
protestos de arrependimento.
— Agora me diga; sei que deve ter pegado outras coisas desde que chegou a
esta casa, pois ontem eu a deixei andar por todo lugar. Agora, diga-me se pegou
outra coisa e eu não a castigarei.
— Ah, sinhá! Peguei aquela coisa vermelha que a Srta. Eva tinha em volta
do pescoço.
— Pegou? Sua coisinha ruim! Bem, e o que mais?
— Peguei os brinco da Rosa, os vermelho.
— Vá buscá-los neste exato minuto, as duas coisas.
— Meu Deus, sinhá! Não posso, está tudo queimado!
— Queimado? Que história é essa? Vá buscá-los ou eu mandarei açoitá-la.
Topsy, protestando em voz alta, entre lágrimas e gemidos, declarou que não
seria possível.
— Está tudo queimado; está mesmo!
— E para que os queimou? — perguntou a Srta. Ofélia.
— Porque sou má, muito má. É horrível, eu sei, Mas não posso fazer nada.
Neste exato momento, Eva entrou inocentemente no quarto, com o exato
colar de coral em seu pescoço.
— Eva, onde pegou seu colar? — indagou a Srta. Ofélia.
— Peguei? Estive com ele o dia todo — respondeu Eva.
— Esteve com ele ontem?
— Sim; e o engraçado, titia, é que fiquei com ele a noite toda. Eu me esqueci
de tirá-lo quando fui para a cama.
A Srta. Ofélia parecia absolutamente estupefata; e ficou ainda mais quando
Rosa, naquele instante, entrou no quarto com uma cesta cheia de roupas recém-
passadas sobre a cabeça com os brincos de coral balançando em suas orelhas!
— Tenho certeza de que não sei o que fazer com uma criança dessas! — ela
disse em desespero. — Por Deus, Topsy, por que disse que roubou aquelas
coisas?
— Bem, a sinhá disse pra mim confessar e eu não sabia o que confessar —
explicou Topsy, esfregando os olhos.
— Mas é obvio que não queria que confessasse o que não fez — explicou a
Srta. Ofélia. — Isso também é contar uma mentira.
— E é? — perguntou Topsy com um ar de questionamento inocente.
— Por Deus, não tem uma gota de verdade naquela pirralha — disse Rosa
olhando com indignação para Topsy. — Se fosse o Sr. St. Clare eu açoitava ela
até o sangue escorrer, ah, faria isso sim. Ela ia ver só!
— Não, não, Rosa — disse Eva com um ar de comando que às vezes ela
assumia. — Não deve falar assim. Não suporto ouvir isso.
— Pelo amor de Deus! Senhorita Eva, é tão bondosa, não sabe nada de como
se entender com os preto. Não tem outro jeito a não ser lanhando as costa,
acredite em mim.
— Rosa! — ralhou Eva. — Fique quieta! Nunca mais fale assim! — e os
olhos da criança brilharam e seu rosto ficou mais vermelho.
Rosa se acovardou por um momento.
— A Srta. Eva tem o sangue do Sr. St. Clare, dá pra ver. Ela fala do mesmo
jeito do pai — ela disse ao sair do quarto.
Eva ficou olhando para Topsy.
Lá estavam as duas crianças, representantes dos dois extremos da sociedade.
A criança de pele clara, bem tratada, com cabelos louros, olhos profundos,
feições nobres e angelicais e movimentos de princesa; e sua semelhante negra,
tímida e submissa, mas esperta e perspicaz. As duas eram representações de suas
raças. A saxônica, nascida de anos de cultivo, comando, educação, superioridade
física e moral; a africana, nascida de séculos de opressão, submissão, ignorância,
trabalho e marginalidade.
Talvez algo relacionado a esses pensamentos estivesse em conflito na cabeça
de Eva. Mas os pensamentos infantis são instintos vagos e indefinidos. E de
acordo com a natureza nobre de Eva, tais instintos eram desejo e trabalho, sobre
os quais ela não tinha condições de se manifestar. Quando a Srta. Ofélia contou
sobre a má conduta de Topsy, a garotinha pareceu perplexa e triste, mas disse
carinhosamente:
— Pobre Topsy, por que precisa roubar? Será bem cuidada agora. Prefiro lhe
dar qualquer coisa minha a vê-la roubando.
Foram as primeiras palavras de bondade que a criança ouvira em toda sua
vida; e o tom e a maneira meiga atingiram-lhe estranhamente o coração rude e
selvagem, e o lume de algo parecido com uma lágrima brilhou naqueles olhos
redondos e espertos; mas, logo se seguiram a risadinha e o sorriso de sempre.
Não! O ouvido que nunca escutou nada além de abusos é estranhamente
incrédulo a algo tão divino quanto a bondade; e Topsy apenas achou a fala de
Eva engraçada e inexplicável. Não acreditou naquilo.
Mas, o que seria feito de Topsy? A Srta. Ofélia considerava o caso um
enigma; suas regras de educação pareciam não se aplicar a ela. Ela achou que
precisava refletir um pouco e, para ganhar tempo, na esperança de algumas
virtudes morais indefinidas estarem escondidas num armário escuro, a Srta.
Ofélia trancou Topsy dentro de um, até que pudesse pensar melhor sobre o
assunto.
— Não sei como vou controlar aquela criança sem açoitá-la — disse a Srta.
Ofélia a St. Clare.
— Bem, então açoite-a até satisfazer seu coração. Dou-lhe plenos poderes
para fazer o que quiser.
— Crianças sempre precisam levar uma surra — declarou a Srta. Ofélia. —
Nunca vi ninguém criá-las sem fazê-lo.
— Ah, com certeza — concordou St. Clare. — Faça o que achar melhor. Eu
só farei uma sugestão: já via essa criança apanhar com um atiçador de brasa,
surrada com pás e tenazes, o que estivesse à mão; e vendo que ela está
acostumada a esse tipo de tratamento, imagino que seu castigo terá que ser muito
mais enérgico para causar impressão.
— Então o que será dela? — perguntou a Srta. Ofélia.
— Você levantou uma questão muito séria — respondeu St. Clare. —
Gostaria que você a respondesse. O que será de um ser humano que só consegue
ser controlado pela chibata, que não funciona, é uma situação muito comum das
coisas por aqui!
— Não faço a mínima ideia! Nunca vi uma criança como essa.
— Crianças como essa são muito comuns ente nós, assim como homens e
mulheres. Como devem ser controlados? — perguntou St. Clare.
— Tenho certeza de que é mais do que possa dizer — respondeu a Srta.
Ofélia.
— Eu tampouco — continuou St. Clare. — As crueldades e a violência que
de vez em quando aparecem nos periódicos, casos como o de Prue, por exemplo,
de onde vêm? Em muitos casos, é um processo de enbrutecimento gradual de
ambos os lados, o dono cada vez mais cruel, o escravo cada vez mais calejado.
Açoitamento e abuso são como o láudano; é necessário dobrar a dose à medida
que a sensibilidade diminui. Vi isso logo que me tornei um proprietário de
escravos e resolvi nunca agir assim, pois não saberia quando parar e então
resolvi, pelo menos, proteger minha natureza moral. A consequência é que meus
escravos se comportam como crianças mimadas, mas acho que isso é melhor do
que ambos nos brutalizarmos. Falou muito sobre nossas responsabilidades em
educar, prima. Eu realmente gostaria que você tentasse com uma criança, que é
uma dos milhares entre nós.
— É o seu sistema que faz as crianças serem assim — retorquiu a Srta.
Ofélia.
— Eu sei; mas elas são criaturas, elas existem, e o que será feito delas?
— Bem, não posso dizer que lhe agradeço pela experiência. No entanto,
como isso parece ser uma obrigação, devo perseverar, tentar e fazer o melhor
que puder — declarou a Srta. Ofélia; e depois disso, ela realmente trabalhou com
um nível admirável de esforço e energia em seu novo projeto. Ela estabeleceu
horários e tarefas regulares para Topsy, e assumiu a responsabilidade de ensiná-
la a costurar e a ler.
Nesta última arte, a criança era bem rápida. Ela aprendeu as letras como num
passe de mágica e logo aprendeu a ler; mas a costura já era uma questão mais
difícil. A criatura era tão flexível quanto um gato e tão ativa quanto um macaco,
e o confinamento da costura era para ela uma abominação; assim, quebrava as
agulhas, atirava-as pela janela ou as enfiava nas rachaduras das paredes; ela
enroscava, quebrava e sujava a linha ou, com um movimento rápido, jogava fora
um carretel inteiro. Os movimentos dela eram tão rápidos quanto o de um
ilusionista, e seu controle facial igualmente bom; e embora a Srta. Ofélia achasse
impossível tantos acidentes acontecerem sucessivamente, sem a atenção que não
lhe deixava tempo para mais nada, não conseguia flagrá-la.
Topsy logo se tornou uma criatura falada na casa. Seu talento para todos os
tipos de piadas, gaifonas e mímicas — para dançar, dar cambalhotas, escalar,
cantar, assoviar, imitar qualquer tipo de som — parecia inesgotável. Em suas
horas de recreação, ela sempre tinha todas as crianças da casa a seus pés,
boquiabertas de admiração e surpresa; todas inclusive a Srta. Eva, que parecia
estar fascinada pela fada selvagem, como uma pomba se encanta por uma
serpente brilhosa. A Srta. Ofélia não gostava muito que Eva apreciasse tanto a
companhia de Topsy, e implorou a St. Clare que a proibisse de ficar tão perto da
negrinha.
— Ora! Deixe a criança em paz! — disse St. Clare. — Topsy fará bem a ela.
— Mas uma criança tão depravada! Não tem medo de que ela lhe ensine
algo de ruim?
— Ela não conseguirá ensinar nada de ruim a Eva; ela poderá ensinar a
alguma criança, mas o mal escorre do pensamento de Eva assim como o orvalho
de uma folha de repolho; nenhuma gota se infiltra.
— Não tenha tanta certeza disso — retrucou a Srta. Ofélia. — Eu nunca
deixaria uma filha minha brincar com Topsy.
— Bem, seus filhos não precisam — retorquiu St. Clare —, mas a minha
pode; se Eva tivesse que se corromper, teria feito isso anos atrás.
A princípio Topsy foi desdenhada e menosprezada pelos escravos mais
importantes. Em poucos dias, porém, encontraram motivo para mudar de
opinião. Descobriu-se que todos aqueles que maltratavam Topsy logo depois se
deparavam com algum tipo de acidente inconveniente: um par de brincos ou
algum objeto de valor sentimental que sumia; um artigo de vestimenta que seria
repentinamente encontrado em total ruína; a pessoa poderia tropeçar
acidentalmente em um balde de água quente, ou algum líquido sujo que se
derramaria sobre a cabeça quando estivessem vestidos para festa; em todas essas
ocasiões, quando se fazia uma investigação, não havia em quem colocar a culpa
pelas indignidades. Topsy foi citada e ficara diante de todos os acusadores
domésticos, várias vezes, mas sempre sustentava seus interrogatórios com a
expressão de grande inocência e gravidade. Ninguém no mundo jamais tinha
dúvidas de quem aprontara aquelas coisas, mas nenhum vestígio de qualquer
evidência às suposições era estabelecido, e a Srta. Ofélia era justa demais para
sentir-se na liberdade de tomar alguma providência sem ter nenhuma prova.
As vinganças eram feitas em momentos bem pensados, para encobrir ainda
mais o agressor. Assim, a vingança de Rosa e Jane, as duas criadas da casa, era
sempre escolhida nas horas quando (não com muita frequência) as duas caíam
em desgraça com a senhora, quando qualquer reclamação feita por elas
obviamente não encontrariam simpatia. Em resumo, Topsy logo fez todos na
casa compreenderem que era melhor não perturbá-la; e, realmente, assim foi.
Topsy era esperta e dinâmica em todas as operações manuais, aprendendo
tudo que lhe era ensinado com rapidez surpreendente. Com apenas algumas
lições, aprendeu a arrumar os domínios do quarto da Srta. Ofélia de um modo
que nem mesmo a própria senhora pudesse encontrar defeito. Nenhuma mão
mortal seria capaz de colocar a colcha de modo mais liso, ajustar os travesseiros
de forma mais impecável, varrer, tirar o pó ou ajeitar tudo de modo mais perfeito
do que Topsy, quando ela queria, mas não era sempre que ela queria. Se a Srta.
Ofélia, após três ou quatro dias de supervisão cuidadosa e paciente, fosse tão
otimista a ponto de supor que Topsy estava finalmente seguindo suas instruções,
e, dessa forma, se ocupava em fazer algo mais, durante uma ou duas horas Topsy
deixava o quarto em uma perfeita confusão carnavalesca. Em vez de fazer a
cama, ela se divertia arrancando as capas dos travesseiros, enfiando a cabeça
encarapinhada entre as almofadas, até, às vezes, ficar grotescamente
ornamentada com penas saindo em várias direções; subia no dossel da cama e se
pendurava de cabeça para baixo; espalhava os lençóis e os cobre-leitos pelo
quarto; vestia a almofada estreita e comprida de cima da cama com as roupas de
dormir da Srta. Ofélia e interpretava várias cenas com ela, cantando, assoviando
e fazendo caretas no espelho; em resumo, como a Srta. Ofélia dizia, era como
“educar Caim”.
Em uma ocasião, a Srta. Ofélia encontrou Topsy com seu melhor xale de
seda vermelha bordado, enrolado na cabeça como um turbante, fazendo suas
encenações em frente ao espelho, em grande estilo. A Srta. Ofélia, num descuido
incomum de sua parte, esquecera a chave na gaveta.
— Topsy! — ela disse um dia, com a paciência esgotada. — Por que se
comporta dessa maneira?
— Não sei, sinhá. Acho que é porque sou muito má.
— Não sei mais o que fazer com você, Topsy.
— Meu Deus, sinhá, precisa me açoitar; minha antiga dona sempre me
açoitava. Eu não sirvo pra nada a não ser que apanhe muito.
— Mas, Topsy, eu não quero açoitá-la. Quando quer, faz tudo direito. Qual o
motivo para não fazê-lo?
— Ah, sinhá, estou acostumada a levar umas chibatada; acho que elas é bom
pra mim.
A Srta. Ofélia tentou a receita, e Topsy obviamente fez uma grande agitação,
gritando, gemendo e pedindo perdão, e meia hora depois, empoleirada na janela
e cercada por uma multidão de “pretinhos” admirados, ela expressava seu
absoluto desprezo pela situação:
— As chibatada da Srta. Félia! Não serve nem para matar um mosquito.
Vocês tinha que ver como meu antigo amo me arrancava o couro; ele sim é que
sabia bater!
Topsy sempre fez grande alarde de seus próprios pecados e feitos,
evidentemente considerando-os como algo particularmente diferente.
— Ei, seus preto! — ela dizia para alguns de seus observadores. — Não sabe
que vocês tudo é pecador? É sim; todo mundo é. Os branco é pecador também, a
Srta. Félia sempre diz, mas acho que os preto é mais; mas, ah, nenhum de vocês
é páreo pra mim! Sou tão má que ninguém consegue fazer nada comigo. Acho
que sou a pior criatura do mundo! — E então Topsy dava uma cambalhota e
aparecia, pimpona e animada, em um lugar mais alto, obviamente se
vangloriando de seus feitos.
Aos domingos, a Srta. Ofélia se ocupava, muito seriamente, em ensinar o
catecismo a Topsy. A menina tinha uma memória verbal incomum, e repetia tudo
com uma fluência que animava muito sua instrutora.
— Qual o bem que acha que isso fará a ela? — perguntou St. Clare.
— O catecismo sempre faz bem às crianças. É o que elas devem aprender,
sabe disso — respondeu a Srta. Ofélia.
— Entende-se ou não — disse St. Clare.
— Ah, as crianças nunca entendem na hora, mas, depois que crescem tudo
fica mais claro.
— Para mim até agora não ficou — declarou St. Clare —, embora eu seja
testemunha de que você me ensinou tudo muito direitinho quando eu era um
garoto.
— Ah, você sempre foi bom aluno, Augustine. Tinha muitas ex-petativas
com relação a você — disse a Srta. Ofélia.
— E agora não tem mais? — perguntou St. Clare.
— Gostaria que você fosse tão bom quanto era quando garoto, Augustine.
— Eu também, isso é fato, minha prima — admitiu St. Clare. Bem, vá em
frente e catequise Topsy; talvez ainda dê tempo de transformá-la em alguma
coisa.
Topsy, que permanecera em pé feito uma estátua de ébano durante a
conversa, com as mãos apropriadamente entrelaçadas, a um sinal da Srta. Ofélia,
falou:
— Nossos primeiros pais, livres para agir de acordo com sua própria
vontade, saíram do estado onde foram criados.
Os olhos de Topsy piscaram e ela parecia inquisitiva.
— O que é, Topsy? — perguntou a Srta. Ofélia
— Aquele estado de onde saíram. Costumava ouvir o amo dizer como a
gente veio do Kintuck.
St. Clare riu.
— Tem que dar um significado a ela, do contrário ela criará o seu próprio —
ele disse. — Parece haver uma teoria de emigração sugerida aí.
— Ah, Augustine, fique quieto! — disse a Srta. Ofélia. — Como posso fazer
o meu trabalho se você se põe a rir?
— Bem, não vou atrapalhar seus exercícios novamente, pela minha honra —
e St. Clare levou seu periódico até a sala, e sentou-se, até Topsy ter terminado
suas citações. Estavam todas muito boas, e ela só de vez em quando transpunha
estranhamente algumas palavras importantes, e insistia no erro, apesar de todo
esforço em fazer o contrário; e St. Clare, depois de todas suas promessas
bondosas, deliciava-se com os erros, chamando Topsy toda vez que queria se
divertir, e fazendo-a repetir as passagens ofensivas, apesar das admoestações da
Srta. Ofélia.
— Como acha que conseguirei fazer qualquer coisa com a criança, se você
não para de rir, Augustine? — ela dizia.
— Tudo bem, não farei de novo; mas é engraçada a imagem que escapa
dessas palavras pomposas!
— Mas você não a corrige!
— E qual a diferença? Para ela, tanto faz uma palavra ou outra.
— Você queria que eu a educasse corretamente; e precisa se lembrar de que
ela é uma criatura inteligente e ter cuidado com a sua influência sobre ela.
— Ah, que maçada! Tenho mesmo que me lembrar disso. Mas, como a
própria Topsy diz, “Sou muito mau”.
E dessa forma, a educação de Topsy prosseguiu por mais um ou dois anos, a
Srta. Ofélia se preocupando com ela, dia após dia, como se fosse algum tipo de
praga crônica, a cujas aflições ela, com o tempo, acostumou-se, assim como as
pessoas se acostumam a uma nevralgia ou a uma enxaqueca.
St. Clare tinha pela criança o mesmo tipo de interesse que um homem
pudesse ter pelos truques de um papagaio ou por um cão de caça. Topsy, onde
quer que fosse que seus pecados a levassem à desgraça, sempre se refugiava
atrás da cadeira dele; e St. Clare, de um jeito ou de outro, sempre apaziguava a
situação para ela. Dele, Topsy ganhava alguns tostões que usava para comprar
nozes e doces, e os distribuía, com grande generosidade, a todas as crianças da
família, pois, justiça seja feita, Topsy tinha bom coração e boa índole, e apenas
fazia malcriações para se defender. Ela já está devidamente apresentada ao nosso
corps de ballet e irá contracenar, de tempos em tempos, à sua maneira, com
outros personagens da história.
21
KENTUCKY

Nossos leitores podem querer olhar para trás, por um breve intervalo, para a
cabana do Pai Tomás, na fazenda do Kentucky, e ver o que está se passando
entre aqueles que ele teve de deixar para trás.
Era uma tarde de verão, e as portas e janelas da grande sala estavam todas
abertas, convidativas à brisa passageira que estivesse bem-humorada para entrar.
O Sr. Shelby sentava-se em um grande corredor que se abria em uma sala e
percorria toda a extensão da casa até uma sacada em cada extremidade. A Sra.
Shelby estava sentada à porta, ocupada com alguma costura delicada; parecia ter
algo em mente e procurava uma oportunidade para falar.
— Sabia que a Cloé recebeu uma carta de Tomás? — ela perguntou.
— Ah, é mesmo? Parece que o Tomás tem algum amigo por lá. Como está o
velho amigo?
— Foi comprado por uma família muito boa, imagino — comentou a Sra.
Shelby. — Está sendo bem tratado e não tem muito a fazer.
— Ah! Fico feliz por isso, muito feliz — falou o Sr. Shelby sinceramente. —
Imagino que Tomás irá se acostumar à sua casa sulista e nem pensará em voltar
para cá.
— Muito pelo contrário; ele está ansioso para saber se teremos o dinheiro
para resgatá-lo — explicou a Sra. Shelby.
— Isso eu realmente não sei — disse Sr. Shelby. — Uma vez que o negócio
começa a dar errado, parece nunca haver mais fim. É como saltar de uma turfa a
outra em um pântano; empresta-se de um para se pagar o outro, e empresta-se do
outro para pagar o um; e essas malditas dívidas a serem pagas antes de se ter
tempo para fumar um charuto e se virar de lado; cartas de cobrança, bilhetes de
cobrança; todos apressados e para ontem.
— Não me parece, querido, que algo possa ser feito para resolver o
problema. Suponha que vendamos todos nossos cavalos e uma de nossas
fazendas, e paguemos tudo de uma vez?
—Ah, isso é ridículo, Emily! Você é a mulher mais elegante do Kentucky,
ainda assim não tem a menor noção sobre negócios; as mulheres nunca têm e
nunca terão.
— Mas, pelo menos — disse a Sra. Shelby —, poderia me dar uma ideia de
nossa situação; uma lista de todas as suas dívidas e de tudo que lhe é devido, e
me deixe tentar ver se consigo ajudá-lo a economizar.
— Ah, que bobagem! Não me rogue praga, Emily! Não posso lhe dizer
exatamente. Sei a situação das coisas, mas não posso destrinchar e equacionar
meus negócios, como a Cloé corta a borda das tortas. Você não entende nada de
negócios, acredite em mim.
E o Sr. Shelby, não conhecendo outra maneira de impor suas ideias, ergueu a
voz, um modo de argumentação muito conveniente e convincente quando um
cavalheiro está discutindo negócios com sua esposa.
A Sra. Shelby parou de conversar, dando um suspiro. A questão era que,
embora seu marido tivesse colocado empecilho por sua condição de mulher, ela
tinha uma mente clara, dinâmica e prática, além de força de caráter muito
superior à do marido; assim não teria sido uma suposição absurda tê-la
considerado capaz de administrar os negócios, como o Sr. Shelby supunha. Seu
coração estava firme em cumprir a promessa que fizera a Tomás e à Mãe Cloé, e
ela suspirou profundamente à medida que os desencorajamentos aumentavam ao
redor de si.
— Não acha que deveríamos pensar em algum modo de conseguir o
dinheiro? Pobre Mãe Cloé! O coração dela está tomado por essa ideia!
— Sinto muito se ela está assim. Acho que fui prematuro em fazer a
promessa. Não tenho certeza, mas acho melhor dizer a verdade a Cloé e deixá-la
se acostumar com a ideia. Tomás terá outra esposa, em um ou dois anos; e é
melhor que ela se case com outro também.
— Sr. Shelby, eu sempre ensinei aos meus escravos que o casamento deles é
tão sagrado quando o nosso. Nunca daria esse tipo de conselho à Cloé.
— É uma pena, minha cara esposa, que lhes tenha dado um fardo de moral
acima de suas condições e perspectivas. Sempre achei isso.
— É apenas a moral da Bíblia, Sr. Shelby!
— Ora, ora, Emily, não tenho intenção de me intrometer em suas noções
religiosas, mas só que elas me parecem extremamente inadequadas para pessoas
nessas condições.
— E realmente são — retorquiu a Sra. Shelby. — E é por isso que odeio essa
coisa toda, do fundo da minha alma. Vou lhe dizer uma coisa, meu caro, não
posso me redimir das promessas que faço a essas pobres criaturas. Se não posso
conseguir o dinheiro de outro modo, hei de aceitar alunos de música; sei muito
bem que posso conseguir muitos, e amealharei o dinheiro eu mesma.
— Não há de se degradar dessa forma, Emily! Eu nunca consentiria isso!
— Degradar? E quebrar a promessa que fiz a esses coitados não me
degradaria da mesma forma? Não, claro que não!
— Bem, você é sempre heroica e transcendental — refutou o Sr. Shelby. —
Mas acho melhor pensar duas vezes antes de assumir seu lado quixotesco.
Aqui a conversa foi interrompida pela aparição da Mãe Cloé na ponta da
varanda.
— Por favor, sinhá — ela pediu.
— Bem, Cloé, o que está acontecendo? — perguntou a senhora se
levantando e indo ter com ela na ponta da varanda.
— Poderia vir até aqui e conferir essa remessa de previsões?
Cloé gostava de trocar provisões por previsões, uma aplicação da língua na
qual ela sempre insistira, apesar das correções frequentes e dos conselhos dos
mais jovens da família.
— Deus do céu! — ela dizia. — Não vejo diferença; uma palavra é tão boa
quanto a outra; e previsão tá bom, de qualquer jeito — e assim a Mãe Cloé
continua a dizer a palavra errada.
A senhora Shelby sorri ao ver um lote de galinhas e patos prostrados, sobre
os quais Cloé estava sentada com grave expressão de análise.
— Estou pensando se faço uma torta para a sinhá dessa aqui.
— Ora, Mãe Cloé, não faz diferença. Sirva-os à maneira que achar melhor.
Cloé ficou ali manuseando-os distraidamente; era óbvio que não era nas
galinhas em que ela estava pensando. Finalmente, com uma risada curta com a
qual sua tribo geralmente anunciava uma proposta duvidosa, ela disse:
— Ah, sinhá! Por que o sinhô e a sinhá fica se preocupando em arrumar
dinheiro e não usa o que tem nas mão? — e Cloé riu de novo.
— Não compreendo o que quer dizer, Cloé — retrucou a senhora Shelby,
não duvidando, por conhecer o comportamento da escrava, que Cloé tinha
ouvido cada palavra da conversa que se sucedeu entre ela e o marido.
— Ah, por Deus, sinhá! — disse Cloé, rindo de novo. — Outras pessoa
aluga os preto e faz dinheiro com eles. Não fica com os escravo comendo e
bebendo.
— Bem, Cloé, quem você sugere que aluguemos?
— Meu Deus! Não estou sugerindo nada; é que Sam disse que tem um
desses doceiro, como chama eles em Louisville, que estava precisando de ajuda
para fazer os bolo e doce; e disse que paga quatro dólares por semana por
alguém; foi ele que disse.
— Continue, Cloé.
— Bom, eu estava pensando, sinhá, já é hora da Sally ser colocada pra fazer
alguma coisa. Sally está sob os meus cuidado faz tempo e sabe fazer tudo tão
bem que nem eu. E estava pensando se a sinhá me deixa ir, eu ajudava a
conseguir o dinheiro. Não tenho medo de colocar meus bolo ou minhas torta
junto com as do doceiro.
— Confeiteiro, Cloé.
— Ah, meu Deus, sinhá! Não é estranho!? As palavra é muito estranha,
nunca consigo falar elas direito!
— Mas, Cloé, quer deixar seus filhos?
— Ah, sinhá! Os menino já é grande pra trabalhar de dia, já sabe trabalhar
bem o bastante; e Sally cuidará do bebê. Ela é uma negrinha muito esperta, não
vai precisar de ninguém atrás dela.
— Louisville é bem longe daqui.
— Por Deus, eu sei! Mas quem tem medo? É mais pra baixo perto do rio,
talvez num lugar um pouco mais perto do meu velho — disse Cloé, falando a
última frase em tom de pergunta e olhando para a senhora Shelby.
— Não, Cloé, é longe demais — refutou a senhora Shelby.
A animação de Cloé desapareceu.
— Não faz mal. Sua ida certamente a deixará mais próxima, Cloé. Sim, pode
ir; e cada centavo de seu salário deve ser guardado para o resgate de seu esposo.
Assim como um raio de sol transforma uma nuvem negra em prateada, o
rosto escuro de Cloé se iluminou imediatamente, reluziu de verdade.
— Ah, meu Deus! A sinhá é tão boa! Estava pensando nisso mesmo; porque
não vou precisar de roupa, nem de sapato, nem de nada; vou guardar cada
centavo. Quantas semana tem em um ano, sinhá?
— Cinquenta e duas — respondeu a senhora Shelby.
— Tudo isso? E quatro dólares em cada semana. Quanto dá isso?
— Duzentos e oito dólares — disse a senhora Shelby.
— Nossa! — exclamou Cloé com um toque de surpresa e prazer; e quanto
tempo eu tenho que trabalhar pra pagar, sinhá?
— Quatro ou cinco anos, Cloé; mas você não precisa juntar todo o dinheiro;
eu colocarei uma parte.
— Não queria ouvir que a sinhá anda dando lição por aí. O senhor está certo
nisso; não seria bom, de jeito maneira. Enquanto eu tiver minhas mão, num
quero que ninguém de nossa família tenha que passar por isso.
— Não se preocupe, Cloé. Eu cuidarei da honra da família — a Sra. Shelby
falou sorrindo. — E quando você espera ir?
— Bem, eu não estava esperando nada; Sam vai até o rio com uns potro e
disse que eu podia ir com ele, então só vou juntar minhas coisa. Se a sinhá
permitir, vou com Sam amanhã de manhã, se sinhá puder me dar uma
autorização e umas carta de recomendação.
— Muito bem, Cloé, eu providenciarei tudo, se o Sr. Shelby não fizer
objeção. Preciso falar com ele.
A Sra. Shelby subiu para os aposentos de cima, e Mãe Cloé, encantada, foi
até sua cabana fazer suas preparações.
— Meu Deus, sinhozinho George! Então não sabia que eu ia para Louisville
amanhã! — ela disse para George quando ele, ao entrar na cabana, encontrou-a
separando as roupinhas do bebê. — Achei melhor dar uma olhada nas coisa e
deixar tudo arrumado. Mas eu vou, sinhozinho George, vou ganhar quatro
dólares por semana; e a sinhá vai guardar tudo para comprar meu velho de volta!
— Uau! — disse George. — Agora estamos falando de negócios, com
certeza! Quando vai?
— Amanhã, com o Sam. E agora, sinhozinho George, sei que vai sentar aí e
escrever para o meu bom Tomás e contar tudo, não vai?
— Com certeza — assentiu George. — Pai Tomás ficará muito feliz em ter
notícias nossas. Vou correndo em casa buscar papel e tinta e então, Mãe Cloé,
contaremos sobre os novos potros e tudo mais.
— Isso mesmo, isso mesmo, sinhozinho. Agora vá e eu vou preparar um
pouco de galinha ou alguma coisa; não vai ter muitos outro jantar com sua velha
mãe aqui.
22
“A GRAMA SECA E A FLOR
MURCHA”

Para todos nós a vida passa dia após dia; e assim aconteceu com nosso
amigo Tomás, até que dois anos se foram. Embora separado de todos aqueles que
lhe eram queridos, e preocupado com o que estava por vir, ainda assim ele nunca
se sentiu absoluta ou conscientemente infeliz, pois a harpa dos sentimentos
humanos é tão afinada que nada, exceto uma grande queda que destrua todas as
cordas ao mesmo tempo, pode danificar sua harmonia; e fazendo um retrospecto
das épocas em que parecemos estar sob privações ou julgamento, lembramos que
cada hora passada nos trouxe distrações e alívios que, mesmo não nos deixando
completamente felizes, também não nos deixaram completamente infelizes.
Tomás lia, em seu próprio quartinho de leitura, como aquele que “aprendeu a
adaptar-se a toda e qualquer circunstância e, assim, contenta-se com o que tem”.
A ele lhe parecia uma doutrina boa e razoável e ia bem ao encontro do hábito
reflexivo que ele adquirira ao ler aquele mesmo livro.
A carta que ele enviara à sua casa, como relatamos no capítulo anterior, foi
em seguida respondida pelo sinhozinho George, em uma caligrafia escolar de
garoto, bem feita e arredondada, que Tomás disse poder ser lida dos quatro
cantos do quarto. A carta continha várias passagens de notícias domésticas com
as quais nosso leitor está absolutamente familiarizado: contava como a Mãe Cloé
fora alugada por um confeiteiro em Louisville, onde sua habilidade com os
doces lhe rendia grande quantia de dinheiro toda para ela, Tomás foi informado,
a qual seria guardada para completar o valor total do dinheiro de seu resgate;
Mose e Pete estavam crescendo e já trabalhando, e o bebê estava andando pela
casa toda, sob os cuidados de Sally e dos escravos em geral.
A cabana do Pai Tomás estava temporariamente fechada, mas George
discorria de maneira brilhante sobre os ornamentos e as adições a serem feitas
quando Tomás voltasse para lá.
O restante de sua carta dava uma lista das matérias escolares de George,
cada uma iniciada com uma letra maiúscula desenhada, e também trazia o nome
de quatro novos potros que nasceram na propriedade desde que Tomás se fora;
além disso, no mesmo contexto, dizia que o pai e a mãe estavam bem. O estilo
da carta era definitivamente conciso e breve, no entanto, Tomás a achou a
espécie de composição mais maravilhosa que já surgira nos tempos modernos.
Ele nunca se cansava de olhar para ela, e chegou até mesmo a conversar com
Eva sobre a possibilidade de emoldurá-la para que pudesse pendurá-la no quarto.
Nada, exceto a dificuldade de mostrar os dois lados da página de uma só vez, foi
empecilho para essa tarefa.
A amizade entre Tomás e Eva aumentava conforme a garota crescia. Seria
difícil dizer em qual lugar de seu coração carinhoso e sensível a garotinha
guardava seu leal criado. Ele a amava como se ama algo frágil e terreno, mas, ao
mesmo tempo, adorava-a como algo divino e celestial. Olhava para ela como um
marinheiro italiano olha para a imagem do menino Jesus, com uma mistura de
reverência e ternura, e agradar às suas graciosas fantasias e lhe satisfazer os
milhares de desejos que dão à infância um caráter tão colorido quanto um arco-
íris, era a maior alegria de Tomás. De manhã, no mercado, os olhos dele estavam
sempre nas bancas de flores procurando buquês raros para ela, e o melhor
pêssego ou a melhor laranja era sempre colocado no bolso para dar a ela quando
voltasse; e a visão que mais o agradava era ver a cabecinha dourada olhando
pelo portão, vendo-o chegar ao longe, e ouvir sua pergunta infantil: “Bem, Pai
Tomás, o que trouxe hoje para mim?”.
E Eva, por sua vez, não era menos atenciosa em seus agrados a ele. Embora
fosse uma criança, ela era ótima leitora: o ouvido musical apurado, o gosto pela
poesia, e uma simpatia natural pelo que é grande e nobre, faziam dela uma
leitora da Bíblia como ele nunca vira antes. A princípio, ela a lia para agradar ao
humilde amigo, mas logo sua própria natureza mais séria lançou seus tentáculos
e se enroscou ao redor do majestoso livro; e Eva adorou, pois o livro despertou
nela estranhos desejos, e emoções fortes e vagas, tal qual crianças apaixonadas e
imaginativas amam sentir.
As partes que mais a agradavam eram o Livro das Revelações e as Profecias,
cujo imaginário profundo e fantástico e a linguagem fervorosa a impressionavam
a tal ponto que ela questionava, em vão, seus significados; e ela e seu amigo
simplório, a criança velha e a nova, sentiam-se exatamente da mesma maneira.
Tudo o que sabiam é que o texto falava de uma glória a ser revelada, de algo
maravilhoso ainda por vir, um lugar onde suas almas regozijariam, mas ainda
não sabiam por quê; e embora não pudesse ser compreendido no plano físico, na
ciência da moral nem tudo o que não é compreendido é infrutífero. A alma, uma
estranha trêmula, desperta entre duas eternidades incertas: a eternidade passada e
a eternidade futura. Um facho de luz ilumina um pequeno espaço ao seu redor e,
assim, é mistér ir em busca do desconhecido; as vozes e os movimentos obscuros
que saíam dos pilares enuviados da inspiração causavam, cada qual, perguntas e
respostas em sua natureza ansiosa. O imaginário místico contém tantos talismãs
e segredos preciosos inscritos em hieróglifos desconhecidos; ela os guarda no
peito e anseia lê-los quando transpuser o véu para o outro lado.
A essa altura de nossa história, a família St. Clare se mudou,
temporariamente, para a casa de campo no Lago Pontchartrain. Os calores do
verão levavam todos aqueles que podiam se dar ao luxo de sair da cidade
sufocante e insalubre a buscar as brisas frescas às margens do lago.
A casa de campo de St. Clare era pequena e elegante, ao estilo indonésio,
rodeada por pórticos de bambu que se abriam em todos os lados para os jardins e
caminhos gramados. A sala de estar principal dava para um grande jardim com o
aroma de todas as plantas e flores pitorescas dos trópicos, onde caminhos
serpenteados corriam até a beirada do lago, cujas águas prateadas subiam e
desciam sob os raios de sol; um cenário nunca igual e, a cada hora, mais belo.
Temos agora um daqueles crepúsculos intensamente dourados, que
incendeiam todo o horizonte em uma chama de glória e transformam a água em
um reflexo do céu. O lago exibe manchas róseas e douradas, exceto por onde os
barcos de velas brancas deslizam, para cima e para baixo, feito espíritos, e as
estrelinhas douradas refletem o brilho e olham para si mesmas enquanto
tremeluzem sobre a água prateada.
Tomás e Eva estavam sentados em um banco relvado, em uma árvore ao
fundo do jardim. Era uma noite de verão, e a Bíblia de Eva estava em cima de
seus joelhos. Ela lia: — E vi um mar de vidro misturado com fogo!
— Tomás — disse Eva parando repentinamente e apontando para o lago. —
Lá está.
— O que, Srta. Eva?
— Não vê, ali? — perguntou a criança apontando para a água vítrea que, à
medida que subia e descia, refletia o brilho dourado do céu. — Há um mar de
vidro misturado com o fogo.
— É verdade, Srta. Eva — Tomás assentiu; e depois cantou:
Ah, se tivesse as asas da aurora,
Voaria para a fronteira de Canaã
Anjos brilhantes me levariam para casa,
Para Nova Jerusalem.

— Onde acha que fica Nova Jerusalém, Pai Tomás? — perguntou Eva.
— Ah, lá nas nuvens, Srta. Eva.
— Então acho que eu a vejo — disse Eva. — Olhe dentro daquelas nuvens!
Parecem grandes portões de pérolas e pode-se ver além deles, longe, bem longe,
é tudo de ouro. Tomás, cante agora sobre os “espíritos bem-aventurados”.
E Tomás cantou o hino metodista muito conhecido:

Vejo uma multidão de espíritos bem-aventurados


Que conhecem a glória do outro lado
Todos com longas vestes brancas
Segurando palmas nas mãos

— Pai Tomás, eu os vi. — disse Eva.


Tomás não tinha dúvidas disso; e isso não o surpreendia nem um pouco. Se
Eva lhe dissesse que já tinha ido ao Paraíso, ele teria achado aquilo
absolutamente possível.
—Às vezes eles me visitam durante o sono, esses espíritos — e os olhos de
Eva ficaram sonhadores, e ela murmurou baixinho:

Todos com longas vestes brancas


Segurando palmas nas mãos.

— Pai Tomás — falou Eva —, estou indo para lá.


— Para onde, Eva?
A criança se levantou e apontou a mãozinha para o céu; o brilho da tarde
iluminou seus cabelos dourados e ruborizou seu rosto com um tipo de brilho
extraterreno, e seus olhos se fixaram melancolicamente no céu.
— Vou para lá — ela repetiu —, para junto dos espíritos bem-aventurados,
Tomás. Logo irei para lá.
O velho coração devotado sentiu um golpe repentino; e Tomás pensou no
quanto ele notara, nos últimos seis meses, as mãozinhas cada vez mais magras
de Eva, e sua pele cada vez mais transparente, e sua respiração cada vez mais
curta; e como, quando ela corria ou brincava no jardim, que antes fazia durante
horas, agora ela ficava tão cansada e lânguida. Ele ouvia a Srta. Ofélia sempre
falar de uma tosse a qual todos os medicamentos dela não podiam curar; e neste
momento as bochechas ferviam e as mãozinhas queimavam com uma febre
teimosa; mesmo assim as palavras de Eva nunca tinham lhe afetado como agora.
Será que um dia já existiu uma criança como Eva? Sim, já existiu. Mas seus
nomes estão todos em lápides e seus doces sorrisos, seus olhos celestiais, suas
palavras e modos únicos estão entre os tesouros enterrados dos corações
saudosos. Em quantas famílias se ouve a lenda de que todas as bondades e
graças dos vivos não são nada comparadas aos encantos peculiares daqueles que
já se foram? É como se o Paraíso tivesse uma legião especial de anjos, cujo
ofício era passar uma temporada neste mundo e conquistar o coração dos
humanos que um dia levarão consigo em seu voo para casa. Quando vir aquela
luz profunda e espiritual nos olhos, quando a pequena alma se revelar em
palavras mais doces e sábias do que as palavras comuns das crianças, saiba que
irá perdê-la, pois a marca do paraíso está nela, e em seus olhos brilha a luz da
imortalidade.
Mesmo assim, amada Eva! Estrela brilhante de sua morada! Seu tempo está
acabando, mas aqueles que mais a amam ainda não sabem.
A conversa entre Tomás e Eva foi interrompida por um chamado brusco da
Srta. Ofélia.
— Eva! Eva! Minha filha, o sereno está caindo; não deve ficar aqui fora!
Eva e Tomás se apressaram para entrar.
A Srta. Ofélia era experiente e hábil nas táticas da enfermagem. Sendo da
Nova Inglaterra, ela conhecia muito bem os primeiros passos ardilosos daquela
doença lenta e insidiosa que ceifa a vida dos mais delicados e mais amados, e,
antes que uma fibra de vida pareça se quebrar, condena-os irrevogavelmente à
morte.
Ela notara a tosse fraca e seca, o rubor diário das bochechas; e o brilho dos
olhos e a oscilação de humor proveniente da febre tampouco a enganavam.
Tentou transmitir seus medos a St. Clare, mas ele refutou suas sugestões com
uma petulância feroz, muito diferente de seu conhecido e indiferente bom
humor.
— Deixe de grasnar, prima! Odeio isso! — ele dizia. — Não vê que a
criança está apenas crescendo? As crianças sempre perdem força quando
crescem muito rápido.
— Mas ela está com essa tosse!
— Ah, a tosse não é nada! Nada. Talvez ela esteja um pouco gripada.
— Bem, foi exatamente assim que se foram Elisa Jane, Ellen e Maria
Sanders.
— Ah, pare com essas lendas funestas de enfermeiras! À medida que
envelhecem ficam tão prudentes que mal uma criança tosse ou espirra e já veem
o desespero e a ruína à espreita. Apenas cuide da criança, tire-a do sereno da
noite, não a deixe brincar muito e ela ficará bem.
Foi isso o que St. Clare disse, mas ficava cada dia mais nervoso e inquieto.
Ele observava Eva ter febre diariamente tanto quanto repetia que “a criança
estava bem”, que não havia nada demais na tosse, que era apenas alguma
infecção do estômago, como as crianças sempre têm. Mas, passou a cuidar mais
dela do que antes, levá-la para cavalgar com ele e dia sim dia não trazia algum
tipo de receita ou mistura fortificante e dizia:
— Não que a criança precise, mas mal também não há de fazer.
Devemos dizer que o que lhe afetava profundamente o coração, mais do que
qualquer outra coisa, era o amadurecimento diário dos pensamentos e dos
sentimentos da filha. Ao mesmo tempo em que mantinha todos os gracejos
infantis, ela sempre soltava, inconscientemente, palavras de tamanho alcance e
sabedoria espiritual que pareciam ser uma inspiração. Nessas ocasiões, St. Clare
sentia um súbito arrepio e a tomava nos braços, como se aquele abraço carinhoso
pudesse salvá-la; e seu coração se enchia de profunda determinação para mantê-
la entre eles, para nunca deixá-la partir.
Todo o coração e a alma da criança pareciam absorvidos em amor e
bondade. Ela sempre fora impulsivamente generosa, mas agora havia nela uma
consideração tocante e madura notada por todos. Eva ainda adorava brincar com
Topsy e as outras crianças negras, mas agora parecia mais uma espectadora do
que uma protagonista das brincadeiras, e, a cada vez, sentava-se por meia hora
rindo das estrepulias de Topsy, e então uma sombra parecia passar pelo seu rosto,
seus olhos se anuviavam e seus pensamentos se perdiam.
— Mamãe — ela disse à mãe um dia, repentinamente. — Por que não ensina
seus criados a ler?
— Mas que pergunta, minha filha! As pessoas nunca fazem isso!
— Por que não? — perguntou Eva.
— Porque não lhes serve de nada saber ler. Não os ajuda a trabalhar melhor
e eles não foram feitos para outra coisa.
— Mas eles precisam ler a Bíblia, mamãe, para aprenderem as vontades de
Deus.
— Ah, mas alguém pode ler para eles o quanto quiserem.
— A mim me parece, mamãe, que a Bíblia foi feita para que todos a lessem
cada um por si. Eles precisam dela muitas vezes, quando não há ninguém para
lê-la.
— Eva, você é uma criança muito estranha — disse a mãe.
— A Srta. Ofélia ensinou Topsy a ler — continuou Eva.
— Sim, e veja só o bem que fez. Topsy é a pior criatura que já vi na vida!
— Veja só a pobre da Mammy! — disse Eva. — Ela ama tanto a Bíblia e
gostaria muito de poder lê-la! E o que ela fará quando eu não puder mais ler para
ela?
Marie estava ocupada remexendo no conteúdo de uma gaveta, quando
respondeu:
— Bem, é claro que com o passar do tempo você terá outras coisas para
pensar além de ler a Bíblia para nossos criados. Não que isso não seja
apropriado; eu mesma já fiz isso quando tinha saúde. Mas, quando começar a
usar lindos vestidos e a frequentar a sociedade, não terá mais tempo. Veja só
essas joias! — ela acrescentou. — Eu as darei a você quando ficar moça. Usei-as
em meu primeiro baile, e vou lhe dizer, Eva, causei um frisson!
Eva levantou a caixa de joias e ergueu um colar de diamantes. Seus olhos
grandes e pensativos repousaram sobre eles, mas era evidente que seus
pensamentos estavam em outro lugar.
— Que séria está, criança! — exclamou Marie.
— Isso aqui vale muito dinheiro, mamãe?
— Para falar a verdade, sim. Meu pai mandou buscá-lo na França. Vale uma
pequena fortuna.
— Gostaria que fosse meu — disse Eva — para fazer o que bem quisesse
com ele.
— E o que faria com ele?
— Eu o venderia e compraria um pedaço de terra em um dos Estados livres,
e levaria todos nossos escravos para lá, e contrataria professores para ensiná-los
a ler e a escrever.
Eva foi interrompida pela gargalhada da mãe.
— Construir um internato? E não lhes ensinaria a tocar piano e pintar sobre
o veludo?
— Eu os ensinaria a ler a própria Bíblia, a escrever suas próprias cartas e a
ler as cartas que lhes fossem enviadas — disse Eva com firmeza. — Sei o quanto
eles sofrem por não poderem fazer essas coisas. Tomás sofre, Mammy também,
muitos deles sofrem. Acho isso errado.
— Ora, ora, Eva! Você é apenas uma criança! Não entende nada dessas
coisas! — disse Marie. — Além do mais, sua conversa faz minha cabeça doer.
Marie sempre tinha uma dor de cabeça na manga para qualquer conversa que
não lhe agradasse.
Eva retirou-se, mas depois daquela conversa com a mãe passou a dar aulas
de leitura assiduamente à Mammy.
23
HENRIQUE

Naquela época, Alfred, o irmão de St. Clare, com seu filho mais velho, um
garoto de doze anos, passaram um ou dois dias com a família no lago.
Nenhuma visão poderia ser mais singular e bela do que a dos dois irmãos. A
natureza, em vez de estabelecer semelhanças entre os dois, os tinha feito opostos
em todos os sentidos; ainda assim, um elo misterioso os unia em uma amizade
mais próxima do que a de costume.
Costumavam passear, de braços dados, subindo e descendo as alamedas e os
caminhos do jardim; Augustine, com seus olhos azuis e cabelos dourados, seu
porte etereamente flexível e feições alegres; e Albert, de olhos escuros, com seu
porte romano arrogante, braços e pernas firmes e bem feitos, e modos
determinados. Estavam sempre criticando as opiniões e práticas um do outro,
mas nada disso os influenciava; de fato, a própria contrariedade parecia os unir,
assim como a atração entre polos magnéticos opostos.
Henrique, o filho mais velho de Alfred, era um garoto nobre de porte
principesco, olhos escuros, cheio de vivacidade e energia e, desde o primeiro
momento em que foram apresentados, pareceu absolutamente fascinado pela
divina beleza da prima Evangeline.
Eva tinha um pônei de estimação, branco como a neve. Era manso como
uma ovelha e tão gentil quanto sua pequena dona; e este pônei foi trazido até o
pórtico dos fundos por Tomás, enquanto um mulatinho de mais ou menos treze
anos trazia um pequeno cavalo árabe preto que acabara de ser importado, por um
preço exorbitante, para Henrique.
Henrique tinha muito orgulho de sua nova posse, e à medida que se
aproximou e tomou as rédeas das mãos de seu cavalariço, olhou cuidadosamente
por cima do cavalo e seu semblante se escureceu.
— O que é isso, Dodo, seu cão preguiçoso! Não esfregou meu cavalo esta
manhã?
— Sim, sinhô — respondeu Dodo de maneira submissa. — Ele se sujou
sozinho.
— Seu mentiroso, cale essa boca! — refutou Henrique levantando o chicote
de montaria com violência. Como ousa responder?
O garoto era bonito, mulato de olhos brilhantes, do tamanho de Henrique, e
seu cabelo encaracolado caía ao redor da testa alta e larga. Tinha sangue branco
nas veias, como se podia perceber pelo rápido rubor no rosto e o fulgor nos olhos
quando tentou responder.
— Sinhozinho Henrique! — ele começou.
Henrique acertou-lhe o rosto com seu chicote de montaria e, torcendo um de
seus braços, forçou-o a ajoelhar-se e bateu nele até perder o fôlego.
— Seu cão insolente! Isso é para aprender a não responder quando eu falo
com você! Leve o cavalo de volta e o limpe de acordo. Vou lhe ensinar qual é o
seu lugar!
— Sinhozinho — retorquiu Tomás —, acho que o que ele ia dizer era que o
cavalo começou a se esfregar quando ele trazia o bicho da cavalariça; ele é muito
fogoso; foi assim que se sujou; eu vi ele limpando o animal.
— Fique de boca fechada até que lhe peçam para falar! — Henrique
retrucou, girando sobre os calcanhares e subindo os degraus para falar com Eva,
que estava ali vestida em trajes de montaria.
— Minha querida prima, peço desculpas por esse sujeito idiota tê-la deixado
esperando. Qual o problema, prima? Parece tão séria.
— Como pôde ser tão cruel e malvado com o pobre Dodo? — perguntou
Eva.
— Cruel e malvado!? — respondeu o garoto com autêntica surpresa. — O
que quer dizer, querida Eva?
— Não quero que me chame de querida Eva quando se comporta desse
modo.
— Querida prima, não conhece Dodo; esse é o único jeito de controlá-lo; ele
mente e dá desculpas o tempo todo. A única maneira é dominá-lo de uma vez por
todas, não deixá-lo abrir a boca; é assim que papai faz.
— Mas o Pai Tomás explicou que foi um acidente, e ele nunca diz o que não
é verdade.
— Ele é um preto incomum, então! — disse Henrique. — Dodo só abre a
boca para falar mentiras.
— Você é que o obriga a mentir, assustando-o e o tratando assim.
— Ora, Eva, você gostou tanto de Dodo que acabarei ficando com ciúme.
— Mas você bateu nele, e ele não merecia.
— Ah, bem, fica por conta das vezes que ele mereceu e não apanhou.
Alguns cortezinhos nunca são de todo mal com Dodo, ele é um demoniozinho,
vou lhe contar. Mas, não baterei mais nele na sua frente, se a incomoda tanto.
Eva não estava satisfeita, mas julgou inútil tentar fazer seu lindo primo
entender seus sentimentos.
Dodo logo voltou com os cavalos.
— Bem, Dodo, fez um bom trabalho dessa vez — disse o jovem amo com
ares mais simpáticos. — Venha aqui e segure o cavalo da Srta. Eva enquanto eu
a coloco na sela.
Dodo se aproximou do pônei de Eva. O rosto dele estava contorcido e os
olhos indicavam que ele havia chorado.
Henrique, que se gabava por sua destreza cavalheiresca em todos os quesitos
da galantaria, rapidamente colocou a prima delicada na sela e, tomando as
rédeas, colocou-as nas mãos dela.
Mas Eva inclinou-se para o outro lado do cavalo, onde Dodo estava, e disse
enquanto ele soltava as rédeas:
— É um bom garoto, Dodo! Obrigada!
Dodo olhou extasiado para aquele rosto meigo; o sangue lhe subiu pelo rosto
e as lágrimas lhe encheram os olhos.
— Aqui, Dodo — disse o amo imperiosamente.
Dodo saiu apressado e segurou o cavalo enquanto seu amo montava.
— Aqui está um trocado para comprar doce, Dodo — Henrique falou. — Vá
comprar.
E Henrique seguiu pelo caminho atrás de Eva. Dodo ficou olhando para as
duas crianças. Uma lhe deu dinheiro e a outra lhe deu o que ele mais queria: uma
palavra bondosa, falada com atenção. Fazia apenas alguns meses que Dodo se
separara da mãe. Seu amo o comprara em um mercado de escravos, pois seu belo
rosto combinava com o belo cavalo; e agora estava passando pelo processo de
adestramento nas mãos de seu jovem amo.
A cena da surra fora testemunhada pelos irmãos St. Clare do outro lado
jardim.
O rosto de Augustine ficou vermelho, mas ele apenas observou com seu
sarcasmo indiferente, como de costume.
— Suponho que isso seja o que chamamos de educação republicana, Alfred?
— Henrique é um sujeitinho endiabrado quando o sangue esquenta —
respondeu Alfred com displicência.
— E suponho que considere isso uma prática instrutiva para ele — retrucou
Augustine secamente.
— Não teria o que fazer, mesmo que achasse. Henrique é um tipo
tempestuoso; eu e a mãe já desistimos dele há muito tempo. Por outro lado,
aquele Dodo é um demoniozinho perfeito, não há surra que possa machucá-lo o
bastante.
— E é assim que ensina Henrique o primeiro verso do catecismo dos
republicanos: “Todos os homens nascem livres e iguais!”.1
— Balela! — refutou Alfred. — Um das bobagens sentimentalistas francesas
de Tomas Jefferson. É absolutamente ridículo termos isso em voga entre nós até
hoje.
— Imagino que sim. — disse St. Clare seriamente.
— É evidente que os homens não nascem livres nem iguais; nascem outra
coisa. De minha parte, considero bobagem metade dessa conversa republicana.
Só as pessoas educadas, inteligentes, abastadas e refinadas podem ter direitos
iguais; não a canaille.2
— Se puder manter essa ideia na cabeça da canaille. Eles já tiveram a vez
deles na França.3
— Obviamente que devem ser mantidos sob controle, consistente e
sistematicamente, como eu o faria — disse Alfred, batendo o pé com firmeza,
como se estivesse pisando em cima de alguém.
— Coisas horríveis acontecem quando eles se rebelam — disse Augustine.
Em Santo Domingo,4 por exemplo.
— Que nada! — retrucou Alfred — neste país não deixaremos que isso
aconteça. Devemos nos colocar contra toda essa conversa de instrução e
melhoria de que se fala no momento; a classe baixa não deve ser instruída.
— Isso é coisa do passado — contestou Augustine. — Uma hora eles serão
instruídos e nós nem nos daremos conta. Nosso sistema os educa na barbárie e
brutalidade. Estamos quebrando todos os elos de humanização e fazendo deles
bestas-feras; se um dia derem a volta por cima, aí quero só ver.
— Eles nunca darão a volta por cima! — retorquiu Alfred.
— Não teria tanta certeza assim — continuou St. Clare. — Aqueça a
caldeira, feche a válvula de escape, depois se sente em cima dela e veja onde irá
parar.
— Bem — disse Alfred. — Veremos. Não tenho medo de me sentar em cima
da válvula de escape desde que as caldeiras sejam fortes e as máquinas
funcionem bem.
— Os nobres da época de Luís xvi também pensavam assim; e a Áustria e
Pio ix pensam assim agora. Quem sabe alguma manhã vocês se encontrem pelos
ares, quando as caldeiras explodirem.5
— Dies declarabit6 — comentou Alfred, rindo.
— E lhe digo mais — continuou Augustine —, em nossos tempos, se há
uma coisa que se pode revelar com a força divina é que as massas hão de se
rebelar e as classes mais baixas se transformarão nas classes mais altas.
— Esta é mais uma de suas bobagens republicanas, Augustine! Por que
nunca falou no púlpito? Seria um excelente orador! Espero estar morto antes
deste milênio no qual sua multidão nojenta se rebelará.
— Nojenta ou não, eles o governarão quando chegar a hora — disse
Augustine. — E serão governadores à maneira que os fizermos. A nobreza
francesa escolheu ter pessoas “sans culotte”7 e tiveram governadores “sans
culotte” a contento. O povo do Haiti…
— Ah, por favor, Augustine! Como se não tivéssemos tido o suficiente
daquele Haiti abominável e desprezível. Os haitianos não eram anglo-saxões; se
fossem, teria sido outra história. O anglo-saxão é a raça dominante do mundo, e
éassim que deve ser.
— Bem, há uma boa dose de infusão de sangue anglo-saxão entre nossos
escravos agora — disse Augustine. — Há muitos entre eles que só tem o
suficiente de africano para acrescentar um pouco do calor e do fervor tropical à
nossa rigidez e previsão calculista. Se algum dia chegar a hora de Santo
Domingo, o sangue anglo-saxão predominará. Filhos de pais brancos, com nosso
sentimento de desprezo lhe queimando nas veias, não serão sempre comprados,
vendidos e comercializados. Eles se levantarão e, com eles, a raça materna.
— Bobagem! Loucura!
— Bem — disse Augustine —, existe um velho ditado para esse efeito:
“Assim como foi nos dias de Noé, assim será; eles comeram, beberam,
semearam, edificaram e não sabiam de nada até que veio o dilúvio e os levou”.
— De modo geral, Augustine, acho que seus talentos serviriam para um
fazer piquete — Alfred disse rindo. — Não tema por nós; temos nove décimos
da posse. E temos o poder. Essa raça subjugada — ele disse pisando firme — é
escrava e continuará sendo escrava! E temos força suficiente para controlar
nossa própria munição.
— Filhos educados como o seu Henrique serão os guardiões-netos de seus
depósitos de pólvora — disse Augustine. — Tanta calma e sangue-frio! O
provérbio diz “Aqueles que não sabem governar a si mesmos não podem
governar os outros”.
— Há só um problema aí — refutou Alfred reflexivamente. — Não há
dúvidas que nosso sistema dificulta um pouco a criação dos filhos. No geral, as
crianças têm muita liberdade para demonstrar as paixões, as quais, em nosso
clima, são quentes o bastante. Tenho problemas com Henrique. O garoto é
generoso e tem bom coração, no entanto, quando está agitado, é um perfeito fogo
de artifício. Acho que vou enviá-lo para ser educado no Norte, pois lá a
obediência é mais respeitada e ele se relacionará mais com pessoas de sua classe,
não com pessoas inferiores.
— Já que educar crianças é a tarefa mais nobre da raça humana — refutou
Augustine —, deveria considerar que nosso sistema não funciona muito bem
neste ponto.
— Não funciona para algumas coisas — retrucou Alfred —, para outras,
sim. Faz os garotos serem mais viris e corajosos; e a própria marginalidade de
uma raça abjeta tende a reforçar neles as virtudes opostas. Acho que Henrique,
agora, tem um senso mais apurado do valor da verdade, de tanto ver traição e
mentira, característicos da escravidão.
— Uma visão cristã do assunto, com certeza! — disse Augustine.
— Mas é verdade, cristã ou não; e é tão cristã quanto a maioria das coisas no
mundo — retrucou Alfred.
— Pode ser — assentiu St. Clare.
— É inútil conversar, Augustine. Acredito que já falamos sobre esse assunto
quinhentas vezes, mais ou menos. Que tal uma partida de gamão?
Os dois irmãos subiram os degraus do pórtico e logo se sentaram no delicado
banco de bambu com o tabuleiro de gamão entre eles. Enquanto arranjavam suas
peças, Alfred disse:
— Vou lhe dizer, Augustine, se pensasse como você pensa, tomaria alguma
atitude.
— Ouso dizer que tomaria mesmo; você é um homem de ação, mas faria o
quê?
— Bem, instruiria seus próprios escravos, por exemplo — Alfred respondeu
com um meio sorriso de escárnio.
— Seria mais fácil aplainar o Monte Etna, e lhes pedir para ficar em pé em
cima dele, do que me pedir para educar meus escravos diante de toda a pressão
que a sociedade em massa exerce sobre eles. Um homem sozinho não pode fazer
nada contra a ação de toda a sociedade. A educação, para ter algum efeito,
precisa ser uma educação do Estado; ou a sociedade deve consentir o suficiente
para que ela exista.
— Você joga os dados primeiro — disse Alfred; e logo os dois irmãos já
estavam concentrados no jogo, e não ouviram mais nada até que escutaram o
trote dos cavalos embaixo do pórtico.
— Aí vêm as crianças! — disse Augustine se levantando. — Olhe só, Alf! Já
viu algo tão lindo na vida?
E, verdade seja dita, era, de fato, uma linda visão. Henrique, com sua testa
larga, cachos escuros e sedosos e o rosto reluzente, ria alegremente enquanto se
inclinava em direção à prima loura, à medida que se aproximavam. Ela estava
vestida em um traje de montaria azul, com um chapéu da mesma cor. O exercício
dera nuances brilhantes às bochechas da garota e intensificara o efeito singular
da pele transparente e dos cabelos dourados.
— Pelos céus! Que beleza deslumbrante! — exclamou Alfred. Augustine,
vou lhe dizer, não acha que logo ela estará destruindo corações?
— Irá mesmo, é verdade. Deus sabe o quanto isso me assusta! — respondeu
St. Clare com um tom subitamente amargo, ao apressar o passo para tirá-la do
cavalo.
— Eva, minha querida! Está muito cansada? — ele perguntou ao tomá-la
nos braços.
— Não, papai — respondeu a criança, mas a respiração curta e pesada da
garotinha alarmou o pai.
— Por que cavalgou tão rápido? Sabe que não é bom para você.
— Eu me senti tão bem e gostei tanto, papai, que acabei me esquecendo.
St. Clare carregou-a nos braços até dentro da sala, e deitou-a no sofá.
— Henrique, deve ter cuidado com Eva — ele disse. — Não deve cavalgar
muito rápido com ela.
— Eu cuidarei dela — comentou Henrique sentando-se ao lado do sofá e
pegando na mão de Eva.
Eva estava se sentindo muito melhor. O pai e o tio voltaram para o jogo e as
crianças foram deixadas juntas.
— Sabe, Eva, sinto muito que o papai só vá passar dois dias aqui, e que
depois eu não a verei de novo por muito tempo! Se ficasse com você, tentaria ser
bom e não ficar zangado com Dodo e tudo mais. Não tenho a intenção de tratar
mal o Dodo, mas, você sabe, meu pavio é muito curto. Não sou muito mau com
ele. Dou-lhe uns trocados de vez em quando; e pode ver que ele se veste bem.
No fim das contas, acho que Dodo está muito bem.
— Acha que estaria bem se não houvesse uma só criatura no mundo que o
amasse?
— Eu? Claro que não.
— E você afastou Dodo de todos os amigos que ele tinha e agora ele não tem
ninguém que o ame; ninguém pode ser bom assim.
— Bem, até onde sei, não há nada que possa fazer. Não posso buscar a mãe
dele e não posso amá-lo, ninguém pode, até onde eu sei.
— E por que você não pode amá-lo? — Eva perguntou.
— Amar Dodo? Eva, não me peça isso! Eu posso até gostar bastante dele,
mas não se pode amar aos criados.
— Eu amo, com certeza.
— Que estranho!
— A Bíblia não diz que devemos amar a todos?
— Ah, a Bíblia! Com certeza ela diz muitas coisas boas, mas ninguém pensa
em fazê-las, sabe muito bem, Eva, ninguém faz nada.
Eva não falou; seus olhos ficaram fixos e reflexivos por alguns minutos.
—De qualquer forma, caro primo — ela disse —, ame Dodo e seja bom para
ele, por mim!
— Eu poderia amar qualquer coisa por você, minha prima querida, pois
realmente acho que é a criatura mais amável que já vi em toda minha vida! — e
Henrique falou com uma seriedade tão grande que suas bochechas
enrubesceram. Eva recebeu aquelas palavras com absoluta humildade, sem nem
mesmo alterar a expressão, apenas dizendo:
— Fico feliz que se sinta assim, Henrique querido! Espero que se lembre
disso!
A sineta do jantar colocou fim à conversa dos dois.
24
PRESSÁGIOS

Dois dias depois, Alfred e Augustine St. Clare se despediram; Eva, que
durante a companhia do jovem primo fora estimulada a esforços além de sua
força, começou a piorar rapidamente. St. Clare finalmente concordou em chamar
um médico, coisa que sempre evitara, pois fazê-lo era admitir uma verdade
inconveniente.
Contudo, durante um ou dois dias, Eva esteve tão debilitada que precisou se
confinar em casa, e o médico fora chamado.
Marie St. Clare mal tinha notado a piora gradual da saúde e da força da filha,
pois estava completamente absorvida na análise das duas ou três novas formas
de doença das quais acreditava ser vítima. O princípio básico da crença de Marie
era que ninguém nunca fora ou poderia ser maior sofredor do que ela mesma; e,
assim, sempre repelia com indignação qualquer sugestão de que alguém ao seu
redor pudesse estar doente. Ela sempre achava que, em casos como esse, não se
passava de preguiça ou falta de ânimo; e que se sofressem como ela sofria, logo
notariam a diferença.
A Srta. Ofélia várias vezes tentara despertar nela os receios maternais com
relação à Eva, sem sucesso.
— Não vejo nada de errado com a criança! — ela dizia. — Ela está correndo
e brincando o tempo todo.
— Mas está tossindo muito!
— Tossindo! Não me venha dizer nada sobre tosse. Sempre tossi, a vida
inteira. Quando tinha a idade de Eva achavam que eu morreria. Mammy passou
noites a fio ao meu lado. Ah, a tosse de Eva não é nada.
— Mas ela está mais fraca a cada dia e com a respiração ofegante.
— Bobagem! Já tive isso durante anos; é só uma afecção nervosa.
— E à noite ela tem suado muito!
— Bem, eu também, há dez anos. Não raro minhas roupas ficam ensopadas,
uma noite após a outra. Nenhum fio de minhas roupas de dormir ficam secos, e
os lençóis ficam tão molhados que Mammy precisa pendurá-los para secar! Eva
não sua desse jeito!
A Srta. Ofélia decidiu não falar mais nada. No entanto, como Eva agora
estava visivelmente prostrada e o médico fora chamado, Marie, repentinamente,
assumiu uma postura diferente.
Ela sabia, assim dizia; sempre sentira que estava destinada a ser a mais
miserável das mães. Aqui estava ela, com sua saúde debilitada, e sua única e
querida filha morrendo diante de seus próprios olhos! E então expulsava
Mammy durante as noites, e fazia escândalos e blasfemava com mais energia do
que nunca, o dia todo, na força desse novo sofrimento.
— Minha querida Marie, não fale assim! — disse St. Clare. — Não pode
perder a esperança!
— Você não tem os sentimentos de mãe, St. Clare. Nunca me compreendeu!
E não me compreende agora!
— Mas não fale assim, como se fosse um caso perdido!
— Não consigo ser tão indiferente quanto você, St. Clare. Se não se aflige
com o estado alarmante de sua única filha, eu me aflijo. É um golpe muito forte
para mim, além de tudo que já estava aguentando antes.
— É verdade que Eva é muito delicada, disso eu sempre soube — St. Clare
disse —, e que ela cresceu tão rápido a ponto de perder as forças, e que a
situação dela é crítica. Mas neste momento está prostrada pelo calor e pela
animação da visita do primo e pelos esforços que fez. O médico diz que ela pode
melhorar.
— Obviamente, se consegue olhar pelo lado positivo, fique à vontade. É
uma benção existirem pessoas insensíveis neste mundo. Gostaria muito de não
me sentir como me sinto; só me deixa absolutamente arrasada! Gostaria muito de
poder ser como o restante de vocês!
E o “restante deles” tinha bom motivo para desejar o mesmo, pois Marie
apregoava seu sofrimento como a razão e a desculpa para todos os tipos de
aflições que infligia às pessoas que a cercavam. Cada palavra dita por qualquer
pessoa, tudo que era feito ou não em qualquer lugar, era apenas uma nova prova
de que ela estava cercada por pessoas sem coração, seres insensíveis que não se
importavam com seus pesares. A pobre Eva, ouvindo algumas dessas
reclamações, debulhava-se em lágrimas com pena da mãe e sofria por ser ela a
causadora de tanta aflição.
Em uma ou duas semanas houve uma grande melhora dos sintomas, uma
dessas tréguas traiçoeiras através da qual a doença inexorável tantas vezes
engana o coração ansioso, mesmo estando à beira do túmulo. Os passos de Eva
estavam novamente no jardim, nas varandas; ela brincava e ria de novo, e o pai,
de pronto, declarou que logo ela estaria tão saudável quanto antes. Apenas a
Srta. Ofélia e o médico não se entusiasmaram com esse armistício ilusório.
Outro coração também sentiu a mesma certeza, e esse foi o coração de Eva. O
que às vezes fala à alma, tão tranquila e calmamente, que seu tempo terreno é
curto? É o instinto secreto da natureza decadente ou a vibração impulsiva da
alma, à medida que a imortalidade se aproxima? Seja lá o que for, morava no
coração de Eva uma certeza calma, doce e profética de que o paraíso estava
próximo; calma como a luz do crepúsculo, doce como a quietude luminosa do
outono, lá repousava seu coração, apenas magoado pela aflição que causaria
àqueles a quem tanto amava. E, apesar de ser tratada com tanto cuidado e de a
vida revelar diante de si todo o esplendor que só o amor e a riqueza podem
oferecer, Eva não se lastimava por estar morrendo.
Naquele livro que ela e seu humilde amigo tanto leram juntos, ela vira e
sentira a imagem do Deus que amava as criancinhas; e à medida que olhava e
refletia, Ele deixava de ser uma imagem e uma figura do passado distante e se
tornava uma realidade viva e próxima. O amor d’Ele lhe envolvia o coração
infantil com mais do que afeição mortal; e é com Ele que ela se encontraria,
assim dizia; ela iria para a casa do Senhor.
Mas o coração dela sofria com uma doce tristeza por todos aqueles a quem
deixaria para trás. Principalmente o pai, pois Eva, apesar de nunca ter pensado
muito sobre isso, tinha a distinta impressão de que ocupava um lugar especial em
seu coração. Por ser uma criatura adorável, Eva amava muito à Marie, e todo o
egoísmo que via nela apenas a entristecia e a deixava perplexa, pois nutria em
seu íntimo a crença infantil de que a mãe não poderia fazer nada de errado.
Havia algo sobre a mãe que Eva nunca conseguiu compreender, mas sempre
relevou baseando-se na ideia de que, apesar de tudo, Marie era sua mãe e ela a
amava profundamente.
Também sentia pelos criados bons e leais para quem ela era considerada a
luz do dia e o brilho do sol. Crianças geralmente não generalizam, mas Eva era
uma criança incomumente madura, e as coisas que presenciara dos males do
sistema sob o qual eles viviam tinham tocado profundamente seu coração
reflexivo e sensato. Ela tinha vagos desejos de fazer algo por eles, de abençoar e
salvar não apenas a eles, mas todos nas mesmas condições, desejos que
infelizmente se contrastavam com a debilidade de seu corpo miúdo.
— Pai Tomás — ela disse um dia enquanto lia para o amigo —, consigo
compreender por que Jesus quis morrer por nós.
— Por que, Srta. Eva?
— Pelo mesmo motivo que eu.
— E qual é o motivo, Srta. Eva? Eu não entendo.
— Não consigo explicar, mas quando vi aquelas pobres criaturas no barco,
sabe, quando eu e você subimos, algumas tinham perdido as mães, e outras os
esposos e algumas mães choravam por seus filhos pequenos, e quando ouvi
sobre a pobrezinha da Prue… Ah, aquilo não foi horrível? E muitas outras vezes
senti que ficaria feliz em morrer, se minha morte pudesse acabar com aquela
miséria. Se pudesse, Tomás, eu morreria por eles — disse a garota, seriamente,
colocando sua mãozinha magra sobre a dele.
Tomás olhou para a criança com reverência; e quando ela, ouvindo a voz do
pai, se afastou, ele enxugou as lágrimas muitas vezes enquanto a seguia com os
olhos.
— É inútil tentar manter a Srta. Eva aqui — ele disse para Mammy quando a
encontrou um minuto depois. — Ela tem a marca do Senhor na testa.
— Ah, sim, sim — assentiu Mammy erguendo as mãos. — Sempre falei
isso. Ela nunca pareceu uma criança desse mundo, sempre achei que ela tem
uma coisa profunda nos olho dela. Falei pra sinhá, muitas vez. E está chegando a
hora, todo mundo vê, ah, minha amada e abençoada ovelhinha de Deus!
Eva veio tropeçando pelos degraus do pórtico até o pai. Era final de tarde e
os raios de sol formavam um tipo de aura atrás da garota à medida que ela se
aproximava com seu vestido branco, seus cabelos dourados e maçãs do rosto
luminosas, os olhos incomumente brilhantes com a febre baixa que lhe queimava
nas veias.
St. Clare a chamara para lhe mostrar uma estátua que comprara para ela; mas
a aparência da garota, quando ela chegou mais perto, lhe impressionou imediata
e sofregamente. Há um tipo de beleza tão intensa, ainda assim tão frágil, que mal
aguentamos olhá-la. O pai tomou-a subitamente nos braços e quase se esqueceu
do que ia lhe dizer.
— Eva, querida, está se sentindo melhor esses dias, não está?
— Papai — Eva interrompeu com uma repentina firmeza. — Há coisas que
sempre quis lhe dizer por muito tempo. Quero dizê-las agora, antes que eu fique
mais fraca.
St. Clare estremeceu quando Eva sentou-se no colo dele, colocou a cabeça
em seu peito e disse:
— É inútil manter tudo dentro de mim por mais tempo. A hora de deixá-lo
está chegando. Vou-me para nunca mais voltar! — e Eva caiu em prantos.
— Ah, minha querida Evinha! — disse St. Clare, tremendo enquanto falava,
mas falando alegremente. — Só está nervosa e um pouco desanimada; não deve
alimentar esses pensamentos ruins. Veja isso, eu lhe comprei uma pequena
escultura!
— Não, papai — refutou Eva empurrando suavemente a estatueta para o
lado — não se engane! Não estou melhor, sei disso perfeitamente e logo irei
embora. Não estou nervosa, não estou desanimada. Se não fosse por você, papai,
e por meus amigos, estaria absolutamente feliz. Quero ir, quero muito ir!
— Minha querida filha, o que deixou seu pobre coraçãozinho tão triste?
Você teve tudo o que poderia ser dado para lhe fazer feliz.
— Preferiria estar no céu, mas, pelo bem de meus amigos me disporia a
viver. Há muitas coisas aqui que me entristecem, coisas que me parecem
terríveis. Preferiria estar lá, mas não quero deixá-lo; meu coração quase se parte
ao pensar nisso.
— E o que a entristece e parece tão terrível, Eva?
— Ah, coisas que são feitas, e refeitas o tempo todo. Fico triste por nossos
escravos; eles me amam profundamente e são tão bons e tão gentis comigo.
Gostaria que fossem todos livres, papai.
— Eva, minha filha, não acha que estão numa boa situação?
— Ah, papai, mas se qualquer coisa lhe acontecer, o que será deles? Há
muito poucos homens como você, papai. O tio Alfred não é como você, e a
mamãe também não; e se pensar nos donos da pobre da Prue! Que coisas
horríveis as pessoas fazem e são capazes de fazer! — E Eva deu de ombros.
— Minha querida, você é muito sensível. Peço perdão por ter lhe deixado
ouvir essas histórias.
— É isso o que me incomoda, papai. Quer que eu viva feliz e nunca sofra,
nunca sofra com nada, nem mesmo ouça uma história triste, quando outras
pobres criaturas não têm nada exceto dor e sofrimento, a vida toda me parece
muito egoísta. Preciso saber dessas coisas, preciso senti-las! Coisas desse tipo
sempre me pesam no coração, doem muito. Pensei e pensei sobre elas. Papai,
não há uma maneira de dar a liberdade a todos os escravos?
— Essa é uma questão difícil, minha querida. Não há dúvida de que a
maneira atual é muito ruim, muitas pessoas concordam com isso. Eu mesmo sou
um deles. Gostaria de todo coração que não houvesse um só escravo sobre a
terra, mas não sei o que posso fazer sobre essa questão.
— Papai, é um homem tão bom, tão nobre e tão gentil e sempre tem um
modo de dizer as coisas que é tão agradável; não poderia sair por aí tentando
persuadir as pessoas a fazer o que é certo com relação à escravidão? Quando eu
estiver morta, papai, então pensará em mim e o fará por mim. Eu faria, se
pudesse.
— Quando estiver morta, Eva! — exclamou St. Clare passionalmente. —
Oh, minha filha, não fale assim comigo! Você é tudo o que tenho neste mundo!
— O filhinho da pobre Prue era tudo o que ela tinha neste mundo e mesmo
assim teve que ouvi-lo chorar até não poder fazer mais nada! Papai, essas pobres
criaturas amam a seus filhos tanto quanto você me ama. Por favor, faça algo por
elas! A coitada da Mammy ama os filhos dela; já a vi chorar quando fala deles. E
Tomás ama a seus filhos também e é terrível, papai, que essas coisas aconteçam
o tempo todo!
— Está bem, está bem, querida — St. Clare disse em tom apaziguador. —
Não se preocupe e pare com essa conversa sobre morrer, e farei qualquer coisa
que quiser.
— E prometa-me, papai, que Tomás será alforriado assim que — ela parou e
disse hesitante —, assim que eu morrer.
— Sim, querida, farei qualquer coisa nesse mundo, qualquer coisa que me
pedir.
— Papai querido — disse a garota encostando seu rosto fervendo no dele —,
como gostaria que fôssemos juntos!
— Para onde, querida? — perguntou St. Clare.
— Para a casa de nosso Salvador; lá é tão tranquilo e tão cheio de amor — a
garota falou despretensiosamente, como se fosse um lugar onde já tivesse ido
várias vezes. — Gostaria de ir, papai? — ela perguntou.
St. Clare puxou-a para mais perto, mas ficou em silêncio.
— Você virá até mim — ela disse falando com uma voz de assertividade
tranquila, que sempre usava sem perceber.
— Hei de segui-la. E nunca a esquecerei.
As sombras solenes da noite os envolviam cada vez mais profundamente, e
St. Clare sentou-se em silêncio apertando o corpinho frágil em seu peito. Ele não
via mais os olhos profundos, mas a voz postada sobre ele foi a voz de um
espírito, e, como se em um tipo de visão do julgamento final, toda sua vida
passada desvendou-se à frente de seus olhos: as orações e os hinos da mãe; seus
próprios desejos e aspirações para o bem, quando moço; e entre eles e este
momento, anos de materialismo e ceticismo e daquilo que os homens chamam
de vida respeitável. Podemos pensar muito, tantas coisas em um só momento. St.
Clare viu e sentiu muitas coisas, mas não disse nada; e, à medida que escurecia,
levou a filha até seu quarto. Quando ela estava preparada para descansar,
mandou sair os criados e embalou-a nos braços, e cantou para ela até que
pegasse no sono.
25
A PEQUENA EVANGELISTA

Era uma tarde de domingo. St. Clare estava deitado em uma chaise de
bambu no pórtico, apreciando um charuto. Marie reclinava-se em um sofá do
outro lado da janela que dava para o pórtico, bem isolada, debaixo de um toldo
de gaze transparente, protegida do ataque dos mosquitos, e segurando
languidamente na mão um livro de orações de capa elegante. Ela o segurava por
ser domingo e imaginava tê-lo lido, embora, de fato, ela só tivesse tirado sonecas
sucessivas com o livro aberto nas mãos.
A Srta. Ofélia, quem, depois de uma busca diligente, encontrara uma
pequena igreja metodista não muito longe dali, saíra para ir ao culto tendo
Tomás como cocheiro e Eva como companhia.
— Augustine — disse Marie depois de ter tirado um cochilo. — Preciso
mandar alguém até a cidade para chamar o velho Dr. Posey. Tenho certeza de
que estou com problemas no coração.
— Bem, e por que precisa mandar chamá-lo? O médico que está cuidando de
Eva é muito capacitado.
— Eu não confiaria nele para um caso crítico — refutou Marie —, e lhe digo
que o meu caso está piorando cada vez mais! Tenho pensado nisso há duas ou
três noites.Tenho tido tantas dores e tantas sensações estranhas.
— Ah, Marie, você está triste. Não acredito que seja nenhum problema de
coração.
— Como ousa dizer isso! — retrucou Marie. — Devia estar preparada para
isso. Fica muito preocupado quando Eva tosse ou tem o menor problema, mas
nunca pensa em mim.
— Se acha conveniente sofrer de alguma doença do coração, então tentarei
concordar com isso — disse St. Clare. — Eu não sabia que queria.
— Espero que não lamente por isso quando for tarde demais! — disse Marie.
— Mas, acredite se puder, minha preocupação com Eva e os esforços que tenho
feito com aquela adorada criança me fizeram desenvolver o que eu suspeitava há
tempos.
Os esforços aos quais Marie se referia seriam difíceis de ser enumerados. St.
Clare fez esse comentário para si mesmo, e continuou fumando como um
homem desprezível e sem coração que era, até que a carruagem parou em frente
ao pórtico e Eva e a Srta. Ofélia saltaram.
A Srta. Ofélia marchou direto para seu próprio quarto, para guardar o chapéu
e o xale, como sempre fazia, antes de emitir palavra sobre qualquer assunto; e
Eva veio, ao chamado do pai, e sentou-se nos joelhos dele, contando-lhe do culto
ao qual tinham ido.
Logo escutaram sonoras exclamações e violentas reprovações vindas do
quarto da Srta. Ofélia, o qual, assim como o que eles se sentavam agora, abria-se
para o pórtico.
— O que será que Topsy está aprontando? — perguntou St. Clare. — Essa
comoção toda só pode ter a ver com ela!
E, um momento depois, a Srta. Ofélia, absolutamente indignada, veio
arrastando a culpada.
— Venha aqui, agora! — ela ordenou. — Contarei tudo ao seu amo!
— Qual é o problema dessa vez? — perguntou Augustine.
— O problema é que não posso ser amaldiçoada com esta criança nem mais
um minuto! Já passou dos limites; não posso mais suportar! Eu a tranquei no
quarto e dei a ela um hino para estudar, e o que ela faz? Espia onde coloquei
minha chave e vai até o gabinete, pega o acabamento de um chapéu e o corta em
pedacinhos para fazer roupas de boneca! Nunca vi algo assim em toda minha
vida!
— Eu lhe falei, prima — disse Marie —, que acabaria por descobrir que
essas criaturas não podem ser criadas sem severidade. Se as coisas fossem do
meu jeito — ela prosseguiu, olhando com ar reprovador para St. Clare —, eu
mandaria essa criança para fora e a açoitaria; açoitaria até ela não poder ficar
mais em pé!
— Não duvido! — refutou St. Clare. — E depois vêm me falar da
sensibilidade das mulheres! Estou para conhecer uma mulher que, se fizesse as
coisas à sua maneira, não fosse capaz de matar um cavalo, ou um criado! Que
dirá um homem!
— Não há necessidade dessa sua hesitação, St. Clare — retorquiu Marie. —
A prima tem bom senso e agora consegue enxergar tão claramente quanto eu.
A Srta. Ofélia tinha a capacidade de indignação própria das donas de casa
disciplinadas, e essa fora ativamente despertada pelas peraltices e desperdícios
da criança; na verdade, muitas das minhas leitoras provavelmente teriam se
sentido da mesma forma na situação dela; mas as palavras de Marie, fortes
demais, a fizeram se acalmar.
— Nada nesse mundo me faria tratar a criança dessa maneira — ela admitiu
—, no entanto, Augustine, não sei o que fazer. Já ensinei e ensinei; já falei até
cansar; já bati; já a puni de todas as formas nas quais posso pensar e ela continua
a ser exatamente o que sempre foi.
— Venha aqui, Topsy, sua macaquinha serelepe! — disse St. Clare
chamando a menina para perto dele.
Topsy foi; seus olhos redondos e duros reluzindo e piscando com uma
mistura de apreensão e o costumeiro desdém.
— Por que se comporta assim? — perguntou St. Clare, o qual não podia
evitar se encantar com a expressão da criança.
— Acho que é por causa do meu coração malvado! — respondeu Topsy
timidamente. — A Srta. Félia diz que é por isso!
— Será que não vê o quanto a Srta. Ofélia tem feito por você? Ela diz que já
fez tudo o que podia.
— Meu Deus, claro que sim, sinhô! Minha antiga sinhá também dizia isso.
Ela me açoitava mais, e puxava meu cabelo e batia minha cabeça na porta; mas
não adiantava nada! Mas acho que se eles arrancasse todos os fio de cabelo da
minha cabeça, mesmo assim não serviria pra nada. Sou muito má! Deus do céu!
Não sou nada além de uma neguinha, não tem jeito!
— Bem, não quero mais ser responsável por ela! — declarou a Srta. Ofélia.
— Não posso mais ter esse tipo de trabalho!
— Gostaria de lhe fazer uma pergunta — disse St. Clare.
— O que é?
— Se o seu Evangelho não é forte o bastante para salvar uma criança pagã
que tem em casa, só para você, qual a utilidade de se enviar um ou dois pobres
missionários para o meio de uma multidão deles? Imagino que essa criança seja
um típico exemplo dos seus milhares de pagãos.
A Srta. Ofélia não deu uma resposta imediata e Eva, que até ali tinha
assistido à cena como espectadora silenciosa, fez um sinal para que Topsy a
seguisse. Havia uma pequena saleta envidraçada no canto da varanda que St.
Clare usava com sala de leitura, e Eva e Topsy desapareceram para dentro desse
lugar.
— O que será que Eva está fazendo? — questionou St. Clare. — Quero só
ver.
E, se aproximando na ponta dos pés, ele ergueu uma cortina que cobria a
porta de vidro e olhou lá dentro. Em um momento, colocando o dedo sobre os
lábios, fez um gesto silencioso para a Srta. Ofélia vir olhar. Lá estavam as duas
crianças sentadas no chão, uma de frente para a outra. Topsy, com seu
costumeiro e indiferente ar de desdém e despreocupação; e, à sua frente, estava
Eva, todo o rosto fervendo de sentimentos e os olhos cheios de lágrimas.
— Por que se comporta tão mal, Topsy? Por que não tenta ser boa? Não ama
ninguém, Topsy?
— Não sei nada de amor; amo doces e você, e é só — respondeu Topsy.
— Mas você não ama nem seu pai e nem sua mãe?
— Nunca tive nenhum dos dois. Já te contei isso, Srta. Eva.
— Ah, eu sei — continuou Eva com tristeza. — Mas não tem nenhum
irmão, irmã, ou tia, ou…
— Não, ninguém. Nunca tive nada nem ninguém.
— Mas, Topsy, se apenas tentasse ser boa, poderia…
— Não podia ser nada que uma neguinha, mesmo que fosse boa — disse
Topsy. Se arrancasse a pele e ficasse branca, então eu ia tentar.
— Mas as pessoas podem amá-la, mesmo sendo negra, Topsy. A Srta. Ofélia
a amaria muito, se você fosse boazinha.
Topsy soltou uma risada curta e seca, seu jeito típico de expressar
incredulidade.
— Você não acha? — perguntou Eva.
— Não. Ela não me suporta porque sou preta! Ela prefere que um sapo
encoste nela! Ninguém pode amar os preto e os preto não pode fazer nada! Não
me importo! — refutou Topsy começando a assoviar.
— Ah, Topsy, coitadinha, eu amo você! — Eva disse com um surto de
sentimentos e colocando a mãozinha fina e branca sobre o ombro de Topsy. —
Eu amo você por nunca ter tido pai, mãe ou amigos; por ter sido uma criança
miserável e maltratada! Eu amo você e quero que seja boa. Estou muito doente,
Topsy, e acho que não vou viver muito tempo; e realmente me deixa muito triste
vê–la sendo tão desobediente. Gostaria muito que você tentasse ser boa, por
mim. Só estarei com você um pouco mais.
Os olhos redondos e astutos de Topsy encheram-se de lágrimas; gotas
grandes e brilhantes rolavam pesadamente pelo seu rosto, uma a uma e caíam
sobre a mãozinha branca. Sim, naquele momento, um raio de credulidade, um
raio de amor celeste penetrou a escuridão daquela alma pagã! Topsy abaixou a
cabeça entre os joelhos e chorou, soluçou, enquanto a linda criança, inclinada
sobre ela, parecia o retrato de algum anjo que veio ao resgate de um pecador.
— Pobre Topsy! — disse Eva. — Não sabe que Jesus ama a todos da mesma
maneira? Ele a ama tanto quanto ama a mim. Ele lhe ajudará a ser boa e então
finalmente irá ao paraíso e será um anjo para sempre, como se fosse branca.
Pense nisso, Topsy! Você pode ser um daqueles espíritos bem-aventurados sobre
os quais o Pai Tomás canta.
— Ah, minha querida, minha querida Srta. Eva! — contestou a criança. —
Vou tentar, vou tentar. Nunca liguei pra isso antes.
St. Clare, neste momento, deixou cair a cortina.
— Isso faz me lembrar de minha mãe — ele comentou com a Srta. Ofélia.
— É verdade o que ela me disse; se queremos dar visão a um cego, devemos
fazer como Cristo fez: chamá-lo até nós e colocar nossas mãos sobre ele.
— Sempre tive preconceito contra os negros — admitiu a Srta. Ofélia. — E
é verdade; nunca suportei que aquela criança pudesse me tocar; mas não achei
que ela soubesse.
— As crianças percebem tudo — disse St. Clare. — Não há como esconder
nada delas. Mas acredito que nem todas as tentativas do mundo de se fazer o
bem a uma criança, nem todos os favores substanciais que pode lhes fazer são
capazes de gerar um sentimento de gratidão se houver repugnância no coração. É
estranho, mas é a pura verdade.
— Mas não sei o que fazer para mudar — disse a Srta. Ofélia. — Eles
realmente me desagradam, principalmente essa criança. Como posso não sentir
isso?
— Eva aparentemente consegue.
— Ela é tão amável! Tão parecida com Cristo — disse a Srta. Ofélia. —
Gostaria de ser assim. Ela poderia me ensinar uma lição.
— Não seria a primeira vez que uma criancinha seria usada para dar
exemplo a um velho discípulo; caso isso acontecesse — disse St. Clare.
26
A MORTE

“Não chores por aqueles cujo véu da morte,


Na aurora da vida, lhes afastou dos olhos.1”

O quarto de Eva era um cômodo espaçoso, no qual, assim como todos os


outros quartos da casa, abria-se para a larga varanda. O quarto se comunicava, de
um lado, com o quarto do pai e da mãe e, do outro, com o aposento ocupado pela
Srta. Ofélia. St. Clare satisfez seus próprios olhos e gosto ao mobiliar o quarto
de Eva com um estilo peculiar que combinasse com a personalidade da filha. As
janelas tinham cortinas de musselina cor-de-rosa e branca; o chão era coberto
por tapetes vindos de Paris, com uma estampa exclusiva, tendo a borda de botões
de rosa e folhas, e o centro com rosas já abertas. A armação da cama, as
poltronas e os sofás eram de bambu trabalhado em padrões graciosos e
enfeitados. Acima da cabeceira da cama havia um pedestal de alabastro, sobre o
qual ficava a estátua de um anjo de asas caídas, segurando uma coroa de folhas
de murta. A partir da coroa, sobre a cama, caíam cortinas leves de gaze cor-de-
rosa, listradas de prata, provendo a proteção contra os mosquitos, uma adição
indispensável a todas as acomodações naquele clima. Os graciosos sofás de
bambu possuíam amplas almofadas adamascadas cor-de-rosa e acima deles,
caindo das mãos das figuras esculpidas, havia cortinas de gaze semelhantes
àquelas da cama. Uma mesa de bambu, leve e enfeitada ficava no meio do
quarto, onde havia um vaso de mármore de Paros em formato de lírio branco,
sempre cheio de flores. Sobre essa mesa encontravam-se livros e algumas
bugigangas de Eva, com um elegante conjunto de alabastro que o pai lhe dera
quando a viu tentando melhorar na escrita. Havia uma lareira no quarto, e em
cima do mantel de mármore encontrava-se uma linda estátua de Jesus rodeado de
criancinhas, e, nas laterais, vasos de mármore, para os quais Tomás se orgulhava
e se esmerava em trazer buquês de flores todas as manhãs. Duas ou três pinturas
de crianças, em várias posições, embelezavam a parede. Em resumo, não havia
lugar para onde os olhos fossem que não se vissem imagens de infância, beleza e
paz. Aqueles olhinhos nunca se abriam, à luz da manhã, sem repousar sobre algo
que sugerisse consolo e pensamentos belos ao coração.
A enganosa força que tinha animado Eva durante um tempo estava passando
rápido; cada vez mais raramente seus passos leves eram ouvidos na varanda, e
cada vez mais ela se encontrava deitada no pequeno sofá ao lado da janela
aberta, seus olhos grandes e profundos fixos nas águas ondulantes do rio.
Era mais ou menos no meio da tarde, quando ela estava deitava, a Bíblia
meio aberta, seus dedinhos transparentes largados entre as folhas, quando ela
ouviu a voz aguda da mãe na varanda.
— O que está fazendo agora, sua porcaria? Um novo tipo de traquinagem!
Está arrancando as flores, hein? — e Eva ouviu o som de uma tapa violento.
— Meu Deus, sinhá! Elas é pra Srta. Eva — ela ouviu uma voz dizer, que
sabia ser a de Topsy.
— Srta. Eva! Mas que boa desculpa! E acha que ela iria querer as suas
flores, sua negrinha inútil! Saia daqui!
Em um minuto, Eva levantou-se do sofá e foi até a varanda.
— Ah, não, mamãe! Eu adoro flores; dê-me; eu as quero.
— Mas, Eva, o seu quarto já está cheio de flores.
— Flores nunca são demais — disse Eva. — Topsy, traga-as aqui.
Topsy, que esse tempo todo permanecera com a cabeça baixa e triste, agora
se aproximou e ofereceu as flores a ela. Ela o fez com um olhar de estranha
hesitação e timidez, muito diferente da audácia e alegria que lhe eram tão
peculiares.
— É um lindo buquê! — elogiou Eva olhando para o ramalhete.
E ele era realmente bem singular: um gerânio carmim brilhante, e uma única
camélia japônica branca com folhas lustrosas. Fora amarrado com evidente
atenção ao contraste de cores, e o arranjo de cada folha fora cuidadosamente
estudado.
Topsy pareceu feliz quando Eva disse:
— Topsy, você arruma as flores maravilhosamente bem. Aqui está um vaso
vazio — ela disse. — Gostaria que você fizesse um ramalhete para ele todos os
dias.
— Que coisa estranha! — retrucou Marie. — E para que iria querer isso?
— Não se preocupe, mamãe. Acho que Topsy faria isso de bom grado, não é
mesmo, Topsy?
— Claro, como queira, minha querida! Topsy, você ouviu sua sinhazinha;
obedeça!
Topsy fez uma pequena mesura e olhou para baixo e, ao se afastar, Eva viu
uma lágrima rolar pelo rosto negro.
— Mamãe, eu sabia que Topsy queria fazer algo por mim — Eva disse à
mãe.
— Ah, que bobagem! É só porque ela gosta de fazer traquinagens. Ela sabe
que não deve colher flores, então colhe, é só isso. Mas, se lhe agrada que ela as
arranque, assim seja.
— Mamãe, acho que Topsy está diferente do que era; está tentando ser uma
boa garota.
— Ela terá que tentar muito até atingir esse nível — Marie comentou com
uma risada sarcástica.
— Ah, mamãe, coitadinha da Topsy! Tudo sempre foi contra ela.
— Não desde que ela chegou aqui, tenho certeza. Houve muita conversa,
muitos ensinamentos, e tudo nesse mundo que qualquer pessoa poderia fazer foi
feito; e ela continua má e sempre será assim. Aquela criatura não serve para
nada!
— Mas, mamãe, é tão diferente ter sido criada como eu fui, com tantos
amigos, com tantas coisas boas e felizes; e ser criada como ela foi, a vida inteira,
até ter chegado aqui!
— Provavelmente — Marie respondeu bocejando. — Minha nossa, como
está calor!
— Mamãe, acredita que Topsy pudesse se tornar um anjo assim como
qualquer um de nós, se ela fosse cristã, não acredita?
— Topsy?! Que ideia ridícula! Só você para pensar uma coisa dessas. Mas
acho que ela poderia, sim.
— Mas, Deus não é o Pai dela assim como é nosso? Jesus não é o Salvador
dela?
— Bem, pode ser. Imagino que Deus tenha criado a todos — disse Marie. —
Onde está meu vidrinho de sais?
— É uma pena, ah, uma pena tão grande! — disse Eva olhando para o lago
ao longe e falando consigo mesma.
— O que é uma pena? — perguntou Marie.
— Que qualquer um que possa ser um anjo iluminado, e viver com os anjos,
tenha que se humilhar e se degradar e ninguém os ajuda.
— Bem, Eva, não há nada que possamos fazer. Não vale a pena se
preocupar! Não sei o que pode ser feito; temos que agradecer por nossos
próprios privilégios.
— Eu mal consigo — disse Eva. — Fico tão triste em pensar naqueles que
não têm nada.
— Isso é muito esquisito — falou Marie. — Tenho certeza de que minha
religião me manda agradecer por todos meus privilégios.
— Mamãe — pediu Eva — quero cortar um pouco do meu cabelo; um bom
pedaço.
— Para quê? — perguntou Marie.
— Quero dá-lo aos meus amigos enquanto consigo fazê-lo eu mesma,
mamãe. Poderia pedir à titia que viesse aqui e o cortasse para mim?
Marie ergueu a voz e chamou a Srta. Ofélia que estava na outra sala.
A criança levantou-se um pouco dos travesseiros quando ela entrou e,
chacoalhando seus longos cachos dourados pediu, muito alegremente:
— Venha titia, tose a ovelhinha!
— O que é isso? — perguntou St. Clare, quem acabara de entrar com uma
fruta que fora apanhar para a filha.
— Papai, só quero que a titia corte um pouco do meu cabelo. Tenho muito e
deixa minha cabeça muito quente. Além disso, quero dá-lo.
A Srta. Ofélia entrou com a tesoura.
— Cuidado, não o estrague — pediu o pai. — Corte embaixo, onde não
aparece. Os cachos de Eva são meu orgulho.
— Ah, papai! — Eva disse com tristeza.
— Sim, e quero que continuem lindos até levá-la à fazenda de seu tio para
ver o primo Henrique — declarou St. Clare em um tom animado.
— Eu nunca irei lá, papai. Irei para um lugar melhor. Ah, acredite em mim!
Será que não vê que a cada dia estou mais fraca?
— Por que insiste em que eu acredite em uma coisa tão cruel, Eva? —
perguntou o pai.
— Só porque é verdade, papai; se acreditar agora, talvez sinta da mesma
forma que eu.
St. Clare cerrou os lábios e ficou observando com pesar os cachos lindos e
longos, os quais, ao se separarem da cabeça da filha, eram colocados, um a um,
no colo da garota. Ela os erguia, olhava séria para eles, enroscava-os entre os
dedos e, de vez em quando, olhava ansiosamente para o pai.
— É exatamente o que tinha previsto! — declarou Marie. — E é exatamente
isso o que tem acabado com a minha saúde, dia após outro, me levando em
direção ao túmulo, embora ninguém se importe. Já vi o bastante. St. Clare, logo
verá que eu estava certa.
— O que lhe dará grande consolo, sem dúvida! — refutou St. Clare com um
tom seco e amargo.
Marie deitou-se no sofá e cobriu o rosto com seu lenço de cambraia.
Os olhos azuis de Eva fitavam seriamente de um para o outro. Era o olhar
sereno e compreensivo de uma alma parcialmente desprendida de seus laços
terrenos; era evidente que ela via, sentia e apreciava a diferença entre os dois.
Ela fez um sinal com a mão para chamar o pai. Ele veio e sentou-se ao lado
dela.
— Papai, minhas forças se esvaem a cada dia, e sei que tenho que ir embora.
Há algumas coisas que gostaria de dizer e fazer; coisas que preciso fazer; sempre
é tão contra a que eu toque nesse assunto. Mas devo falar; não há como adiar.
Por favor, deixe-me falar agora!
— Minha filha, pode falar! — disse St. Clare, cobrindo os olhos com uma
mão e segurando a mão de Eva com a outra.
— Então quero ver todos nossos escravos juntos. Tenho algumas coisas que
devo dizer a eles — pediu Eva.
— Está bem — concordou St. Clare com um tom de resistência seca.
A Srta. Ofélia mandou um mensageiro e logo todos os criados estavam
reunidos na sala.
Eva recostou-se nos travesseiros; o cabelo caído solto no rosto, o rosto
vermelho contrastando dolorosamente com a palidez intensa de sua pele e o fino
contorno de sua feição, dos braços e pernas, e seus olhos grandes e celestiais
olhando fixamente para todos ao seu redor.
Os escravos foram tomados por uma súbita emoção. O rosto angelical, as
grandes mechas de cabelo cortadas e colocadas ao lado dela, o rosto escondido
do pai e os soluços de Marie afligiram de uma vez os sentimentos daquela raça
sensível e impressionável e, à medida que entravam, entreolhavam-se,
suspiravam e balançavam a cabeça. Havia um silêncio profundo, como de um
funeral.
Eva levantou-se e olhou demorada e intensamente para todos à sua
volta.Todos pareciam tristes e apreensivos. Muitas das mulheres escondiam os
rostos nos aventais.
— Mandei chamá-los, meus queridos amigos, porque amo vocês — Eva
disse. — Amo a todos vocês e quero lhes dizer algo de que gostaria que se
lembrassem para sempre… Vou deixá-los. Em algumas semanas não estarei mais
aqui….
Neste momento a criança foi interrompida por gemidos, soluços e
lamentações de todos os presentes, e em meio aos quais a voz fraca dela se
perdeu completamente. Ela esperou um momento e então, falando com um tom
que se sobrepunha aos soluços de todos, ela continuou:
— Se me amam, não devem me interromper assim. Ouçam ao que tenho a
dizer. Quero lhes falar sobre suas almas… Muitos de vocês, infelizmente, são
muito indiferentes. Estão pensando apenas neste mundo. Quero que se lembrem
de que há um mundo lindo onde Jesus está. Irei para lá, e vocês também podem
ir. É um mundo tanto para mim como para vocês. Porém, se quiserem ir para lá,
não devem viver vidas inúteis, negligentes e imprudentes. Precisam ser cristãos.
Devem lembrar que cada um de vocês pode vir a ser um anjo, e serão anjos para
sempre… Se quiserem se tornar cristãos, Jesus os ajudará. Devem rezar para Ele;
devem ler…
Eva se interrompeu, olhou penosamente para eles e lhes disse com pesar:
— Ah, meus queridos! Não sabem ler, pobrezinhos! — e então escondeu o
rosto no travesseiro e soluçou, ao mesmo tempo em que os soluços abafados
daqueles a quem ela se dirigia, ajoelhados no chão, a estimularam.
— Não se preocupem — ela disse levantando o rosto e sorrindo alegremente
por entre as lágrimas. — Rezei muito por vocês e sei que Jesus os ajudará,
mesmo que não saibam ler. Tentem fazer o melhor que podem; rezem todos os
dias, peçam a Ele que os ajudem, e, quando puderem, peçam que a Bíblia seja
lida para vocês; e, assim, tenho certeza de que os verei todos no Paraíso.
“Amém” foi a resposta murmurada dos lábios de Tomás e Mammy e de
alguns outros mais velhos que pertenciam à igreja Metodista. Os mais jovens e
os menos instruídos, tomados completamente pelo momento, estavam soluçando
com as cabeças enfiadas entre os joelhos.
— Sei que todos vocês me amam — disse Eva.
— Sim, ah, sim! Claro que te amamos! Deus abençoe! — foi a resposta
involuntária de todos.
— Sim, eu sei! Não há ninguém aqui que nunca tenha sido muito bondoso
comigo e quero lhes dar algo que, quando olharem, sempre se lembrarão de
mim. Darei a todos vocês uma mecha do meu cabelo e, quando a olharem, se
lembrem de mim, de que fui para o Paraíso e de que os verei lá, a todos.
É impossível descrever a cena quando, em meio às lágrimas e soluços, todos
se juntaram ao redor da pequena criatura e pegaram das mãos dela o que lhes
parecia a última prova do amor de Eva. Caíram de joelhos; soluçaram, oraram e
beijaram a barra de seu vestido; e os mais velhos disseram palavras de carinho
misturadas às preces e às bênçãos, de acordo com o hábito de sua raça.
À medida que cada um pegava seu presente, a Srta. Ofélia, que estava muito
apreensiva pelo efeito que toda essa agitação causaria em sua pequena paciente,
fazia sinal para cada um sair do quarto.
Ao final, todos tinham saído, exceto Tomás e Mammy.
— Aqui está, Pai Tomás — disse Eva. — Uma mecha bem linda para você.
Ah, estou tão feliz, Pai Tomás, de pensar que o verei no Paraíso, pois tenho
certeza de que o verei; e Mammy, minha querida, gentil e bondosa Mammy! —
ela disse jogando os braços carinhosamente ao redor da velha enfermeira. — Sei
que estará lá também!
— Ah, Srta. Eva, não sei como posso viver sem você, não sei! — replicou a
fiel escrava. — Parece que estão tirando tudo da casa de uma vez só! — e
Mammy se entregou à paixão do sofrimento.
A Srta. Ofélia expulsou gentilmente Tomás e Mammy do quarto e achou que
todos tivessem saído, mas, ao se virar, deu de cara com Topsy.
— De onde você veio? — ela perguntou repentinamente.
— Eu estava aqui — respondeu Topsy, enxugando lágrimas dos olhos. —
Ah, Srta. Eva, eu tenho sido uma garota má; mas será que você pode me dar uma
mecha de seu cabelo também?
— Claro que sim, Topsy! Aqui está, toda vez que a olhar pense que eu a amo
e que quero que seja uma boa garota.
— Ah, Srta. Eva, eu tô tentando! — disse Topsy fervorosamente. — Mas,
meu Deus, é tão difícil ser boa! Não estou acostumada, de jeito nenhum!
— Jesus sabe disso, Topsy; ele sente muito por você e vai lhe ajudar!
Topsy, com os olhos escondidos no avental, foi silenciosamente retirada do
quarto pela Srta. Ofélia, mas, ao sair, escondeu a preciosa mecha no peito.
Quando todos saíram, a Srta. Ofélia fechou a porta. Aquela estimada senhora
enxugara muitas de suas próprias lágrimas durante a cena, mas a preocupação
com as consequências de tamanha agitação para sua jovem paciente era
prioridade em sua mente.
St. Clare permaneceu sentado o tempo todo, com as mãos escondendo os
olhos, na mesma posição. Quando todos se foram, sentou-se em silêncio.
— Papai! — chamou Eva colocando as mãos sobre as dele.
Ele olhou rapidamente e estremeceu, mas não respondeu.
— Meu papai querido! — Eva disse.
— Não consigo! — disse St. Clare, levantando-se. — Não consigo aguentar
isso! Deus Todo-Poderoso está jogando muito pesado comigo! — E St. Clare
pronunciou essas palavras com ênfase bem amarga.
— Augustine! E Deus não tem o direito de fazer o que bem entende com o
que lhe pertence? — perguntou a Srta. Ofélia.
— Talvez sim, mas isso não torna o fardo menos pesado de se carregar —
ele disse de um modo seco e duro, sem derramar uma lágrima.
— Papai, assim você quebra meu coração! — disse Eva, levantando-se e se
jogando nos braços do pai. — Não deve se sentir assim! — E a criança soluçou e
chorou com tanta violência que alarmou a todos, colocando os pensamentos do
pai em outra direção.
— Por favor, Eva, minha querida! Shh! Shh! Foi um erro de minha parte.
Agi mal. Sentirei e farei qualquer coisa contanto que não fique aflita; não chore
assim. Eu me resignarei. Agi mal falando desse jeito.
Eva logo se aconchegou nos braços do pai como uma pombinha cansada. E
ele, acolhendo-a, tranquilizou-a com todas as palavras carinhosas que pôde
lembrar.
Marie se levantou e saiu do quarto, sozinha, caindo em uma violenta crise de
histerismo.
— Você não me deu uma mecha de cabelo, Eva — disse o pai sorrindo
tristemente.
— São todas suas, papai — ela falou sorrindo —, suas e da mamãe; e deve
dar à titia tantas quantas ela quiser. Só as dei eu mesma para nossos escravos,
papai, pois eles poderão ser esquecidos depois que eu me for, e porque eu
gostaria que isso lhes ajudasse a se lembrar. Você é cristão, não é, papai? —
perguntou Eva em dúvida.
— Por que me pergunta isso?
— Não sei. Você é tão bom, não sei como poderia não sê-lo.
— O que é ser cristão, Eva?
— Amar a Cristo acima de tudo — respondeu Eva.
— E você o ama, Eva?
— Com certeza.
— Mas você nunca o viu — disse St. Clare.
— Isso não faz diferença — replicou Eva. — Acredito nele e, em poucos
dias, eu o verei — e o jovem rostinho se iluminou radiante de alegria.
St. Clare não disse mais nada. Já vira aquele sentimento antes, na mãe; mas
nenhuma corda ressoava àquela vibração.
Eva, depois disso, piorou rapidamente; não havia dúvidas sobre o que
aconteceria; a esperança mais ardente não poderia ser enganada. Seu lindo
quarto tornou-se um leito de morte, e a Srta. Ofélia, dia e noite, desempenhava
as funções de enfermeira, e nunca seus amigos apreciaram mais o seu valor do
que naquele papel. Com olhos e mãos tão bem treinados, tanta habilidade e
prática em cada arte que promovia aconchego e conforto e mantinha à distância
cada incidente desagradável da doença, com tanta noção de tempo, com a mente
tão clara e serena, com tanta precisão ao se lembrar de todos os medicamentos e
instruções dos médicos, ela era tudo para ele. Eles, que tinham dado de ombros
às suas pequenas peculiaridades e hábitos, tão diferentes da liberdade negligente
dos modos sulistas, reconheciam agora que ela era exatamente a pessoa que
queriam.
O Pai Tomás ficava o tempo todo no quarto de Eva. A garota sofria de crises
nervosas e sentia-se aliviada ao ser carregada; e era a maior alegria para Tomás
carregar aquele corpo frágil em seus braços, acomodá-la em um travesseiro,
ajudá-la para lá e para cá no quarto, ou levá-la até a varanda; e quando as brisas
frescas vinham do lago, e Eva sentia-se mais fortalecida de manhã, ele às vezes
caminhava com ela até as laranjeiras do jardim ou, sentando-se em alguns de
seus velhos bancos, cantava-lhe alguns de seus hinos favoritos.
O pai geralmente fazia o mesmo, mas seu porte era mais esguio e quando
ficava cansado Eva lhe dizia:
— Ah, Papai, deixe que Tomás me carregue! Pobre homem! Ele fica muito
satisfeito e sabe que é tudo o que ele pode fazer por mim, e ele quer fazer
alguma coisa!
— Eu também, Eva! — refutou o pai.
— Bem, papai, você pode fazer tudo e é tudo para mim. Você lê para mim,
passa as noites em claro e Tomás só pode fazer essa única coisa e cantar; e sei
que ele faz tudo com mais facilidade do que você. Ele tem muita força para me
carregar!
O desejo de fazer algo não se restringia a Tomás. Todo criado da casa
mostrava o mesmo sentimento e, cada um a seu modo, fazia o que podia.
O pobre coração de Mammy também queria ajudar sua garotinha querida,
mas ela não teve oportunidade de fazê-lo, noite e dia, quando Marie declarou
que tal era seu estado mental que era impossível para ela descansar, e
obviamente, era contra seus princípios deixar que qualquer um descansasse.
Vinte vezes por noite, Mammy era acordada para lhe esfregar os pés, para lhe
molhar a cabeça, para procurar seu lenço de bolso, para ver qual era o barulho do
quarto de Eva, para baixar a cortina por estar muito claro, ou para suspendê-la
por estar muito escuro. E durante o dia, quando queria um tempo livre para
cuidar de seu bichinho de estimação, Marie parecia incomumente criativa em
mantê-la ocupada em qualquer lugar e em todo lugar da casa, ou com a pessoa
dela. Dessa forma, algumas conversas roubadas e olhadas momentâneas eram
tudo o que Mammy conseguia ter.
— Sinto que, neste momento, é minha obrigação ser particularmente
cuidadosa comigo mesma — ela dizia. — Fraca como estou e com todos os
cuidados que aquela criança exige de mim.
— Com certeza, minha querida — retrucou St. Clare. — Achei que nossa
prima a tivesse dispensado de todos esses deveres.
— Fala tipicamente como um homem, St. Clare; como se uma mãe pudesse
ser dispensada dos cuidados de um filho nesse estado. Mas, é sempre assim;
ninguém nunca sabe como eu me sinto! Não consigo ser tão insensível como
você!
St. Clare sorriu. Devem desculpá-lo, mas não havia outra coisa a fazer, pois
St. Clare ainda conseguia sorrir. A viagem de despedida do pequeno espírito foi
tão plácida e lúcida, o pequeno barco levado às portas do Paraíso pela brisa doce
e perfumada, que era impossível perceber que era a morte que estava se
aproximando. A criança não sentiu dor, apenas uma fraqueza tranquila e suave,
aumentado diária e imperceptivelmente. E ela estava tão linda, tão amorosa, tão
confiante, tão feliz, que ninguém podia resistir à influência tranquilizadora
daquele ar de inocência e paz que parecia envolvê-la. St. Clare percebeu-se
estranhamente calmo. Não era esperança, visto que essa era impossível; não era
resignação; era apenas uma calma permeando o presente, que lhe parecia tão
bela a ponto de não desejar pensar no futuro. Era como aquele jato de ânimo que
sentimos em meio às florestas luxuriantes e amenas no outono, quando as
árvores se encobrem de um rubor fervoroso e errático e as últimas flores se
penduram nos galhos; e, neste momento, apreciamo-las ainda mais, pois
sabemos que logo tudo irá desaparecer.
O amigo que mais conhecia a imaginação e os presságios de Eva era seu fiel
companheiro Tomás. A ele Eva contava tudo o que não queria dizer ao pai para
não incomodá-lo. Com ele, ela dividia as intimações misteriosas recebidas pela
alma, à medida que as cordas começavam a soltar, antes que a vida se despedisse
da terra para sempre.
Tomás, ao final, não dormia mais em seu próprio quarto, mas passava a noite
toda do lado de fora, na varanda, pronto para atender a qualquer chamado.
— Pai Tomás, por que agora resolveu dormir em qualquer lugar e em todo
lugar, feito um cachorro? — perguntou a Srta. Ofélia. Pensei que você fosse um
dos tipos mais desenvolvidos, que gostasse de dormir em uma cama, à maneira
cristã.
— E gosto, Srta. Félia — Tomás explicou misteriosamente. — Eu gosto,
mas agora…
— Mas agora o quê?
— Não devemos falar tão alto; que o senhor St. Clare não nos ouça; mas,
Srta. Félia sabe que deve haver alguém esperando pelo noivo.
— O que quer dizer, Tomás?
— A Srta. sabe o que diz a Escritura: “À meia-noite ouviu-se um grito:
atenção, o noivo se aproxima”.2 É por isso que estou esperando agora, toda
noite, Srta. Félia. E não posso dormir e não escutar o chamado, de jeito nenhum.
— Mas, Pai Tomás, o que o faz pensar assim?
— A Srta. Eva, ela conversa comigo. O Senhor manda seu mensageiro na
alma. Preciso estar lá, Srta. Félia, pois quando essa criança abençoada for para o
reino d’Ele, as portas vai se abrir tanto que nós todos vai vislumbrar a glória,
senhorita.
— Pai Tomás, por acaso a Srta. Eva disse se esta noite estava se sentindo
pior do que de costume?
— Não; mas ela me disse essa manhã que a hora estava chegando; isso é eles
falando essas coisa para a criança, senhorita; “são os anjos, é o som da trombeta
antes do amanhecer” — Tomás respondeu citando um de seu hinos favoritos.
Essa conversa aconteceu entre a Srta. Ofélia e Tomás, entre dez e onze
horas, uma noite, depois de todos os arranjos terem sido tomados para a noite
quando, ao ir trancar a porta de fora, a Srta. Ofélia encontrou Tomás deitado ao
lado da porta, no pórtico.
Ela não ficava nervosa tampouco facilmente impressionada, mas o aspecto
solene e sincero do escravo a tocara profundamente. Eva estivera incomumente
feliz e alegre naquela tarde, e sentara-se ereta na cama, olhando seus pequenos
tesouros e coisas preciosas, e designando os amigos a quem gostaria de lhes
presentear. E seu jeito estava mais animado, e a voz mais natural do que estivera
há semanas. O pai tinha vindo vê-la à noite e dissera que Eva, mas do que nunca
depois da doença, se parecia mais com o que sempre fora; e quando ele lhe deu
um beijo de boa noite, disse à Srta. Ofélia:
— Prima, acho que conseguiremos mantê-la conosco, ao final. É evidente
que ela está se sentindo melhor.
No entanto, à meia-noite — hora mística e estranha! — quando o véu entre o
presente incerto e o futuro eterno se rompe, chegou o mensageiro!
Houve um som no quarto, primeiro de alguém entrando rapidamente. Era a
Srta. Ofélia, que resolvera passar a noite acordada com sua pequena paciente, e
quem, na virada da noite, notara o que as enfermeiras experientes chamam de
“mudança significativa”. A porta de fora foi aberta imediatamente e Tomás, que
estava esperando do lado de fora, prontamente ficou em estado de alerta.
— Vá chamar o médico, Tomás! Não perca um segundo! — ordenou a Srta.
Ofélia e, atravessando o quarto, bateu à porta de St. Clare.
— Primo — ela chamou. — Por favor, venha.
Aquelas palavras lhe caíram no coração como a terra sobre o caixão. Por
quê? Ele levantou-se e correu para o quarto da filha em um instante, se
debruçando sobre Eva, que ainda dormia.
O que foi que viu que fez seu coração parar? Por que não houve palavras
entre os dois? Não poderá dizer aquele que nunca viu a mesma expressão na face
daquele a quem mais ama; aquela expressão indescritível, perdida, irrefutável,
que diz que o ser amado não mais lhe pertence.
No rosto da Eva, no entanto, não havia marcas medonhas, apenas uma
expressão elevada e quase sublime, a presença protetora dos espíritos, a aurora
da vida eterna na alma dessa criança.
Ficaram lá tão quietos olhando para ela que até mesmo o bater do relógio
parecia muito alto. Em poucos momentos Tomás retornou com o médico. Ele
entrou, deu uma olhada e ficou em silêncio como os outros.
— Há quanto tempo essa mudança aconteceu? — ele perguntou em voz
baixa para a Srta. Ofélia.
— Na virada da noite — fora a resposta.
Marie, assustada pela entrada do médico, veio apressada do outro quarto.
— Augustine! Prima! Ah! O quê? — Ela começou ansiosamente.
— Silêncio! — pediu St. Clare com a voz embargada — Ela está morrendo!
Mammy ouviu as palavras e voou para acordar os criados. A casa logo
estava agitada; luzes acesas, passos ouvidos, rostos ansiosos amontoados no
pórtico e espiando chorosos pelas portas de vidro. Mas St. Clare não ouvia nem
diza nada; apenas via aquela expressão no rosto da pequena dormente.
— Ah, se ela acordasse e falasse só mais uma vez! — ele disse; e,
debruçando-se sobre ela, falou ao ouvido da filha: — Eva, minha querida!
Os grandes olhos azuis se abriram e um sorriso passou pelo rosto dela; ela
tentou levantar a cabeça e falar.
— Sabe quem eu sou, Eva?
— Papai querido — respondeu a criança com um último suspiro, jogando os
braços ao redor do pescoço dele. Em um momento, os braços caíram de novo e,
quando St. Clare levantou a cabeça, viu um espasmo de agonia mortal passar
pelo seu rosto; ela buscava fôlego e jogou as mãos para cima.
— Ah, meu Deus, isso é horrível! — ele disse, virando-se em agonia, e
apertando a mão de Tomás, sem perceber o que estava fazendo. — Ah, Tomás,
meu amigo, isso está me matando!
Tomás tinha as mãos de seu amo entre as suas e, com lágrimas escorrendo
pelo rosto negro, ergueu os olhos buscando ajuda onde sempre costumava
buscar.
— Reze para que este momento seja breve! — pediu St. Clare. — Meu
coração está dilacerado.
— Ah, Deus abençoe! Está acabado, está acabado, meu caro Senhor! —
disse Tomás. — Olhe para ela!
A criança estava arfando sobre os travesseiros, exausta, os grandes olhos
vidrados e virados para cima. E o que diziam aqueles olhos que falavam tanto do
Paraíso? A Terra era passageira assim como a dor terrena; mas o brilho daquele
rosto era tão solene, tão misterioso e tão triunfal que fazia engasgar até mesmo
os soluços de sofrimento. Eles se juntaram ao redor dela, em silêncio absoluto.
— Eva — chamou St. Clare gentilmente.
Ela não ouviu.
— Ah, Eva, diga-nos o que vê! O que é? — perguntou o pai.
Um sorriso reluzente e glorioso lhe iluminou o rosto e ela respondeu arfante:
— Ah! Amor, alegria, paz! — então deu um último suspiro e passou da
morte para a vida eterna!
— Adeus, amada filha! Os portões reluzentes e eternos se fecharam atrás de
si; nunca mais veremos seu rostinho doce. Ah, pobres daqueles que a viram
entrar no Paraíso, quando acordarem e virem apenas o céu cinzento e frio da
vida diária sem você, que partiu para sempre.
27
“ESTE É O FIM TERRENO” — JOHN
Q. ADAMS

As estatuetas e pinturas do quarto de Eva foram cobertas por tecidos


brancos; apenas sussuros e passos abafados eram ouvidos ali, e a luz que
atravessava solenemente as janelas foi parcialmente escurecida pelas cortinas
fechadas.
A cama foi coberta de branco e lá, embaixo da estátua do anjo suspenso,
jazia o pequeno corpo dormente, dormindo para nunca mais acordar!
Lá estava ela, vestida em um dos vestidos brancos simples que teria usado
quando estava viva; a luz rosada atravessando as cortinas dava um brilho morno
à frieza congelante da morte. Os cílios pesados repousavam suavemente sobre o
rosto puro; a cabeça estava levemente virada para um lado, como se dormisse,
porém cada traço de seu rosto refletia aquela expressão celestial elevada, um
misto de ruptura e repouso que evidenciava que aquele não era um sono
passageiro, mas o descanso longo e sagrado que “Ele dá àqueles a quem ama”.
Não há morte como a sua, querida Eva! Nem escuridão nem sombra de
morte; apenas um brilho se apagando, assim como a estrela da manhã se
desaparece na aurora dourada. Logrou a vitória sem ter ido ao combate,
conquistou a coroa sem ter ido à guerra.
Era isso que St. Clare pensava enquanto, de braços cruzados, ficava ali em
pé, olhando. Ah! E quem saberia dizer o que ele estava pensando? Desde que as
vozes dentro do quarto disseram “ela se foi”, tudo fora envolto em um nevoeiro
sombrio, trevas e temível escuridão. Ouviu as vozes ao redor dele, fez e
respondeu às perguntas. Eles lhe perguntaram quando seria o funeral e onde
deveriam enterrá-la, ao que ele respondeu irritado que não fazia diferença.
Adolfo e Rosa arrumaram o quarto; volúveis, fúteis e infantis que
geralmente eram, neste momento eram piedosos e sentimentais e, enquanto a
Srta. Ofélia se ocupava dos detalhes gerais da organização e da limpeza, foram
as mãos deles que deram os toques suaves e poéticos aos arranjos, que tiraram
do leito de morte o ar cruel e sinistro que sempre marcavam os funerais da Nova
Inglaterra.
Havia flores secas nas prateleiras, todas brancas, delicadas e perfumadas,
com graciosas folhas pendentes. O vaso favorito de Eva, com um único botão de
rosa de musgo, repousava sobre a mesinha branca da criança. As pregas dos
tecidos e o caimento das cortinas foram mexidos e remexidos por Adolfo e Rosa,
com a delicadeza característica da raça. Mesmo agora, enquanto St. Clare estava
ali pensativo, a pequena Rosa entrou suavemente no quarto com uma cesta de
flores brancas. Ela deu um passo para trás ao ver St. Clare e parou
respeitosamente, mas, vendo que ele não a notara, foi até a cama para colocar as
flores ao redor da defunta. St. Clare observava, como em um sonho, a escrava
encaixar uma gardênia entre as mãozinhas da filha, e, com bom gosto admirável,
espalhar outras flores ao redor do leito.
A porta se abriu novamente e Topsy, com os olhos inchados de tanto chorar,
apareceu segurando algo embaixo do avental. Rosa fez um sinal rápido e
proibitivo, mas a menina deu um passo para a frente e entrou no quarto.
— Não pode ficar aqui — disse Rosa com um sussurro ríspido e claro. —
Não tem nada que fazer aqui!
— Ah, por favor! Me deixa entrar. Eu trouxe uma flor, uma flor tão linda! —
insistiu Topsy segurando um botão de mini-rosa semiaberto. — Só me deixa
colocar uma ali.
— Saia daqui! — Rosa disse mais incisivamente.
— Deixe-a ficar! — interviu St. Clare, repentinamente batendo o pé. — Ela
pode entrar.
Rosa recuou imediatamente, e Topsy dirigiu-se até a cama e colocou sua
oferta aos pés da defunta. Então, de repente, com um grito sofrido e selvagem,
jogou-se no chão ao lado da cama e chorou com sonoros gemidos.
A Srta. Ofélia entrou rapidamente no quarto e tentou levantar e acalmar a
pequena escrava, mas foi em vão.
— Ah, Srta. Eva! Srta. Eva! Queria morrer também, queria muito!
Havia uma dor pungente naquele grito; o sangue subiu ao rosto pálido e frio
de St. Clare e as primeiras lágrimas desde que Eva se fora lhe encheram os
olhos.
— Levante-se, criança — pediu a Srta. Ofélia com uma voz suave. — Não
chore assim. A Srta. Eva foi para o céu; ela é um anjo.
— Mas não vou mais ver ela! — disse Topsy. — Nunca mais vou ver ela! —
e soluçou novamente.
Todos ficaram em silêncio.
— Ela falou que me amava — disse Topsy. — Ela falou. Ah, meu Deus! Ah,
meu Deus! Agora não tenho mais ninguém! Ninguém!
— Isso é bem verdade — concordou St. Clare. — Mas, por favor, veja se
consegue confortar a pobre criatura — ele disse à Srta. Ofélia.
— Queria nunca ter nascido! — Topsy falou. — Não queria ter nascido de
jeito nenhum! Não sirvo pra nada.
A Srta. Ofélia ergueu-a firme, porém gentilmente e retirou-a do quarto. No
entanto, ao fazer isso, lágrimas escorreram de seus olhos.
— Topsy, minha pobre criança — ela disse enquanto a levava até o outro
quarto. — Não desista! Eu posso amá-la, apesar de não ser igual à nossa querida
Eva. Espero ter aprendido alguma coisa do amor de Cristo com ela. Eu a amarei,
de verdade. E tentarei ajudá–la a crescer como uma boa garota cristã!
A voz da Srta. Ofélia valia mais do que suas palavras e mais do que as
lágrimas sinceras que escorriam pelo seu rosto. A partir daquele momento
passou a exercer uma influência sobre aquela criança destituída, e nunca mais a
perdeu.
“Ah, minha Eva, fez tanto bem durante tão pouco tempo na Terra!”, St.
Clare disse a si mesmo. “Que tipo de contas hei de prestar por meus longos
anos?”.
Durante um tempo houve sussurros e passos suaves dentro do quarto, à
medida que todos, um após o outro, entravam para olhar a morta; em seguida
chegou o pequeno esquife; e depois veio o funeral, e carruagens paravam à porta
e estranhos entravam e se sentavam, e havia cachecóis e fitas brancas, e as faixas
pretas de luto, e os enlutados vestidos de capas pretas; e leram-se palavras da
Bíblia e ofereceram-se preces; e St. Clare vivia, andava e se movia como alguém
que já não possuía mais lágrimas para chorar. Até o último momento, tudo o que
ele via era aquela cabecinha dourada no caixão, e então viu colocarem a
mortalha e fecharem a tampa do esquife; e, ao lado dos outros, ele caminhou até
um pequeno lugar no final do jardim, e lá, ao lado do banco de arbustos onde ela
e Tomás tantas vezes conversaram, cantaram e leram, estava a pequena
sepultura. St. Clare ficou em pé olhando perdidamente para a cova; viu baixarem
o esquife; ouviu, ao fundo, as palavras solenes “Eu sou a Ressureição e a Vida;
aquele que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá a vida eterna”; e, à
medida que a terra era jogada e enchia a pequena sepultura, não podia acreditar
que era sua Eva que estavam lhe tirando da vista para sempre.
E não era mesmo! Não era Eva, mas apenas a frágil semente daquela forma
brilhante e imortal com a qual ela surgiria no dia do Senhor Jesus!
E então tudo acabou, e os enlutados voltaram ao lugar ao qual ela não mais
pertencia; e o quarto de Marie foi escurecido e ela deitou-se na cama, chorando e
gemendo em sofrimento incontrolável, querendo a atenção dos criados a todo
momento. Obviamente que eles não tiveram tempo para chorar, e por que
teriam? A dor era dela, e Marie estava absolutamente convencida de que
ninguém neste mundo poderia sentir o que ela estava sentindo.
— St. Clare não derramou uma lágrima sequer — ela disse. — Ele não se
simpatiza com ela, e é absolutamente incrível pensar no quanto é insensível e
indiferente quando deveria saber o quanto ela estava sofrendo.
As pessoas são tão escravas de seus olhos e ouvidos que muitos dos criados
realmente pensaram que a senhora era a principal sofredora da casa,
especialmente quando Marie passou a ter espasmos histéricos e mandou chamar
o médico e, finalmente, declarou que estava à beira da morte. E, entre a pressa e
a correria, as garrafas quentes, as flanelas amornadas, as troças e as confusões,
houve muita distração.
Tomás, no entanto, guardava no coração um sentimento que o levava ao seu
amo. Ele o seguia por toda parte, melancólico e triste; e quando um dia o viu
sentado, pálido e quieto, no quarto de Eva, segurando diante dos olhos a Bíblia
da filha, ainda que não estivesse enxergando uma só letra ou palavra do que
estava ali, Tomás acreditou haver mais dor e sofrimento naqueles olhos fixos e
secos do que em todos os gemidos e lamentações de Marie.
Em poucos dias, a família St. Clare estava de volta à cidade; Augustine, com
a impaciência do sofrimento, desejava mudar de ares, mudar o rumo de seus
pensamentos. Assim, deixaram para trás a casa e o jardim, com sua pequena
sepultura, e voltaram a Nova Orleans. St. Clare andava ocupadíssimo pelas ruas,
e lutava para preencher o abismo no coração com a pressa e o alvoroço da cidade
e a mudança de cenário; e as pessoas que o viam na rua, ou o encontravam no
café, sabiam da perda dele apenas pelo sinal de luto que carregava no chapéu,
pois lá estava ele sorrindo, conversando e lendo o periódico, e especulando sobre
política, e resolvendo negócios; e quem seria capaz de ver que toda a alegria
externa não passava de uma concha vazia encobrindo um coração tão sombrio e
silencioso como um sepulcro?
— O Sr. St. Clare é um homem peculiar — disse Marie à Srta. Ofélia em
tom de reclamação. — Sempre achei que se havia alguma coisa a que ele amasse
na vida era nossa querida Eva; mas ele parece tê-la esquecido com muita
facilidade. Nunca consigo que ele fale sobre ela! Realmente imaginei que ele
fosse mais sensível!
— As águas calmas geralmente são as mais profundas, é o que costumavam
me dizer — disse a Srta. Ofélia, em tom profético.
— Ah, não acredito nessas coisas; é tudo conversa fiada. Se as pessoas têm
sentimentos, elas demonstram, não há como ser diferente. No entanto, é um
grande infortúnio ter sentimentos. Gostaria de ser como St. Clare. Meus
sentimentos me corroem!
— Mas, sinhá, o Sr. St. Clare está magro feito uma sombra. Dizem que ele
nunca come nada — comentou Mammy. — Sei que ele não esqueceu a Srta.
Eva. Ninguém pode esquecer ela, aquela criaturinha amada e abençoada! — a
escrava acrescentou enxugando os olhos.
— Cada coração conhece sua própria amargura — disse a Srta. Ofélia com
pesar.
— É isso mesmo o que eu acho. E conheço minha dor, mas ninguém mais
parece comiserar-se de mim. Eva costumava fazê-lo, mas ela se foi! — E Marie
deitou-se no sofá e começou a chorar inconsolavelmente.
Marie era uma daquelas mortais desafortunadamente constituídas, cujos
olhos só davam valor às coisas depois de perdidas, e não quando as possuía.
Parecia colocar defeito em todas as coisas, mas, assim que as perdia, não havia
fim para todos os atributos que lhes agregava.
Enquanto essa conversa acontecia na sala, outra se desenrola na biblioteca de
St. Clare.
Tomás, que estava sempre inquieto a seguir seu amo, vira-o ir até a
biblioteca algumas horas antes; e, depois de esperar, em vão, para que ele saísse,
finalmente resolveu entrar, determinado. Entrou sorrateiramente. St. Clare estava
deitado no sofá, no canto mais distante da sala. Estava de barriga para baixo,
com a Bíblia de Eva aberta à sua frente, à distância.Tomás foi até lá e ficou em
pé ao lado do sofá. Ele hesitou, e neste momento, St. Clare levantou-se
rapidamente. O rosto sincero, tão cheio de dor, e com uma expressão de afeição
e simpatia tão pungente, impressionou o amo. St. Clare colocou a mão sobre a
mão de Tomás e encostou a testa sobre ela.
— Ah, Tomás, meu bom amigo, meu mundo está tão vazio como uma casca
de ovo.
— Eu sei, senhor, eu sei — concordou Tomás. — Mas, ah, se o senhor
conseguisse olhar para cima, para onde nossa querida Srta. Eva está, para nosso
Senhor Jesus!
— Ah, Tomás! E eu olho, mas o problema é que não vejo nada. Bem que
gostaria de conseguir ver alguma coisa.
Tomás suspirou profundamente.
— Parece que só é dada às crianças e aos sujeitos pobres e honestos como
você a dádiva de ver o que não podemos — disse St. Clare. — Por que será?
— Eu te louvo, Pai, senhor dos céus, pois escondestes as coisas dos sábios e
prudentes e as revelastes aos pequeninos — murmurou Tomás. — Sim Pai, pois
assim foi do teu agrado.
— Tomás, eu não acredito, não consigo acreditar. Tenho o hábito de duvidar
— disse St. Clare. — Quero acreditar nesta Bíblia, mas não consigo.
— Meu caro senhor, peça ao bom Deus. Deus, eu creio; ajude–me a vencer
minha incredulidade!
— E quem é que sabe alguma coisa? — perguntou St. Clare, os olhos
vagando sonhadoramente e falando consigo mesmo. — Todo aquele amor e fé
maravilhosos eram apenas uma das fases sempre mutáveis dos sentimentos
humanos, sem nada real onde se apoiar, morrendo com aquele último suspiro? E
não há nem Eva, nem Paraíso, nem Cristo, nem nada?
— Ah, meu amo, claro que há! Sei disso. Tenho certeza disso — respondeu
Tomás caindo de joelhos. — Por favor, meu amo, acredite!
— Como sabe que Cristo existe, Tomás? Nunca viu Deus.
— Eu sinto ele na minha alma, meu amo, posso sentir ele neste momento!
Ah, senhor, quando me venderam e separaram de minha esposa e meus filhos,
quase morri. Senti como se não existisse mais nada; e então o bom Deus, ele
ficou do meu lado, e disse “Não tenha medo, Tomás”; e ele traz luz e alegria pra
alma de um pobre homem, deixa tudo em paz; e eu sou tão feliz, amo a todos e
sinto apenas o que Deus quer, e cumpro apenas o desejo d’Ele, e vou somente
aonde Deus quer que eu vá. Sei que isso não vem de mim porque sou uma
maldita criatura rabugenta; é desejo de Deus e sei do que Ele é capaz de fazer
pelo senhor, meu amo.
Tomás falava com as lágrimas escorrendo e a voz embargada. St. Clare
encostou a cabeça no ombro do escravo e apertou-lhe a mão forte, fiel e negra.
— Tomás, você me ama — ele disse.
— Eu daria minha vida, nesse dia abençoado, para ver meu amo se tornar
um cristão.
— Que tolice, meu amigo! — disse St. Clare, levantando um pouco a
cabeça. — Não sou digno do amor de um coração tão bom e honesto quanto o
seu.
— Ah, meu amo, não sou só eu que amo o senhor; o abençoado Senhor
Jesus também te ama!
— E como sabe disso, Tomás? — perguntou St. Clare.
— Sinto em minha alma. Ah, senhor! O amor de Cristo, que é maior que
todo o conhecimento.
— Impressionante — exclamou St. Clare, virando-se — que a história de um
homem que viveu e morreu mil e oitocentos anos atrás ainda possa influenciar as
pessoas! Mas ele não era um homem! — ele acrescentou repentinamente. —
Nenhum homem jamais viveu tanto e teve tanto poder! Ah, quisera eu acreditar
no que minha mãe me ensinou e rezar como quando era garoto!
— Se o senhor quiser — disse Tomás. — A Srta. Eva costumava ler a Bíblia
de um jeito tão lindo. Ia ser tão bom se o senhor fizesse a bondade de ler ela pra
mim. Mal leio ela agora que a Srta. Eva se foi.
Era o capítulo 11 de São João, que falava da ressureição de Lázaro. St. Clare
leu-o em voz alta, sempre parando para amainar os sentimentos que surgiam com
a emoção da história. Tomás se ajoelhou diante dele, com as mãos cruzadas e
uma profunda expressão de amor, confiança e adoração em seu rosto sereno.
— Tomás, — perguntou o amo —, isso é real para você?
— Quase consigo ver, senhor — respondeu Tomás.
— Como gostaria de ter seus olhos, Tomás.
— Peço a Deus que um dia tenha!
— Tomás, sabe muito bem que tenho muito mais conhecimento do que você.
E se eu lhe dissesse que não acredito nesta Bíblia?
— Ah, meu amo — respondeu Tomás, levantando as mãos em um gesto de
protesto.
— Isso abalaria sua fé, de algum modo?
— Nem um pouco — disse Tomás.
— Mas, Tomás, sabe que sei muito mais do que você.
— Ah, meu amo, mas não acabou de ler que Ele esconde dos cultos e
prudentes e revela aos pequeninos? Mas o senhor certamente não estava falando
sério, estava? — perguntou Tomás ansiosamente.
— Não, Tomás, não estava. Não sou incrédulo, e acho que há razões para
acreditar, mas, ainda assim, não creio. É um péssimo hábito que tenho, Tomás.
— Ah, se o senhor rezasse!
— E como sabe que eu não rezo, Tomás?
— E o senhor reza?
— Eu rezaria, Tomás, se houvesse alguém lá quando eu rezasse; mas é como
falar ao vento. Mas, venha, Tomás, reze e me ensine como fazer.
O coração de Tomás se encheu de alegria e transbordou em preces, como
águas represadas por muito tempo. Uma coisa era evidente: Tomás acreditava
que havia alguém ouvindo, havendo ou não. Na verdade, St. Clare sentiu-se
levado pela onda da fé e do sentimento, quase aos portões do paraíso que o
escravo parecia tão vividamente conceber. Parecia aproximá-lo de Eva.
— Obrigado, meu amigo — agradeceu St. Clare quando Tomás se levantou.
— Gosto de ouvi-lo, Tomás, mas agora vá e me deixe sozinho. Conversaremos
mais em outra oportunidade.
Tomás saiu da sala em silêncio.
28
O ENCONTRO

Semanas e semanas se passaram na mansão dos St. Clare e as ondas da vida


voltaram ao seu fluxo normal onde aquele pequeno barco afundara. A realidade
da vida, tão desinteressante, fria e dura não respeita as dores alheias; é
imperiosa, insensível e segue seu curso. Ainda assim deve-se comer, beber,
dormir e acordar novamente; ainda assim deve-se barganhar, comprar, vender,
questionar e responder; deve-se, em resumo, se criar milhares de sombras,
embora não haja mais interesse em nenhuma delas; o hábito frio e mecânico de
viver persiste mesmo após todo o interesse vital ter desaparecido.
Todos os interesses e esperanças da vida de St. Clare giravam,
inconscientemente, ao redor da filha. Era para Eva que ele cuidava da
propriedade; era para Eva que ele planejava o uso de seu tempo, e fazer isso ou
aquilo para Eva; comprar, melhorar, alterar, organizar ou se dispor de algo para
ela fora seu hábito durante tanto tempo que, agora que a filha se fora, parecia
não haver mais nada em que pensar e mais nada com o que se ocupar.
É verdade que havia outra vida, uma vida que, assim que descoberta, revela-
se como uma figura solene e importante diante das cifras insignificantes do
tempo, transformando-as em comandos de valor misterioso e indizível. St. Clare
sabia disso muito bem; e muitas vezes, nas horas de maior desespero, ele ouvia
uma voz fina e infantil chamando-o para o céu, e via uma mãozinha lhe
apontando o caminho da vida; porém, a letargia do sofrimento tomava conta dele
e ele não conseguia se levantar. Tinha um tipo de natureza capaz de conceber
melhor e com mais clareza as coisas religiosas a partir de suas próprias
percepções e instintos do que muitos cristãos verdadeiros e praticantes. A
capacidade de apreciar e de perceber as nuances mais sutis, e a relação moral das
coisas, geralmente parece ser um atributo daqueles cuja vida não lhes dá muita
importância. Assim, Moore, Byron, Goethe geralmente descrevem o verdadeiro
sentimento religioso com mais sabedoria do que qualquer outro homem cuja
vida é governada pela religião. Em mentes como essas, o desprezo pela religião
é uma traição mais perigosa, um pecado mais mortal.
St. Clare nunca teve a intenção de ser governado por qualquer obrigação
religiosa; e o refinamento de sua natureza lhe dava uma visão tão instintiva da
extensão das exigências do cristianismo que ele recuou, por antecipação, do que
sentia ser a extorsão de sua própria consciência, se um dia resolvesse assumi-las.
Pois, a natureza humana, no plano ideal, é tão contraditória, que não assumir
uma posição parece ser melhor do que assumi-la e depois abandoná-la.
Em muitos aspectos, St. Clare parecia outro homem. Lia a Bíblia de Eva
séria e sinceramente; refletia de forma mais profunda e prática sobre sua relação
com os criados, o suficiente para deixá-lo extremamente insatisfeito tanto com
seu passado como com seu presente; e uma coisa que fez assim que voltou a
Nova Orleans foi dar início às medidas necessárias para a alforria de Tomás, que
deveria ser concluída assim que ele finalizasse todas as formalidades. Enquanto
isso, ele se aproximava cada dia mais do escravo. Nada no mundo o fazia
lembrar mais de Eva, e ele insistia em tê-lo sempre por perto; e por mais
melindroso e inatingível que fosse com relação aos seus sentimentos mais
íntimos, St. Clare quase os dizia em voz alta a Tomás. Assim, não era de se
admirar a expressão de afeição e devoção com a qual Tomás seguia seu jovem
amo.
— Bem, Tomás — disse St. Clare um dia depois de começar as formalidades
legais para a alforria de Tomás. — Farei de você um homem livre; arrume seu
baú e prepare-se para voltar ao Kentucky.
O súbito raio de alegria que brilhou no rosto de Tomás enquanto ele
levantava as mãos para o céu, seu enfático “Deus seja Louvado!” deixou St.
Clare desconcertado; não lhe agradava que Tomás estivesse tão pronto para
deixá-lo.
— Não teve tantos momentos ruins aqui para estar com tanta pressa, Tomás
— ele retrucou secamente.
— Não, não, senhor! Não é isso. Ser um homem livre! É por isso que estou
feliz!
— Mas, Tomás, no seu caso, não acha que está melhor do que se fosse um
homem livre?
— Não, de jeito nenhum, meu senhor — exclamou Tomás com grande
energia. — Não, de jeito nenhum.
— Se trabalhasse, você nunca poderia comprar roupas como essas ou ter a
vida que eu lhe dou.
— Sei disso, senhor. O senhor tem sido muito bom, mas prefiro ter roupas
ruins, uma casa pobre, tudo miserável e ser tudo meu do que ter tudo do bom e
do melhor e ser de outra pessoa. Sempre fui assim, senhor. Acho que é natural,
meu amo.
— Suponho que sim, Tomás, e irá embora e me deixará daqui a mais ou
menos um mês — ele acrescentou muito descontente. — E nenhum mortal
entenderia se não o fizesse — St. Clare disse com um tom mais brincalhão. Em
seguida levantou-se e começou a caminhar em direção à porta.
— Só irei quando o senhor não estiver mais triste assim — disse Tomás. —
Ficarei aqui o quanto o senhor precisar, se puder ser útil.
— Só quando não estiver mais triste, Tomás? — perguntou St. Clare olhando
melancolicamente pela janela. — E quando é que minha tristeza passará?
— Quando o senhor se tornar um cristão! — respondeu Tomás.
— E pretende realmente ficar aqui até esse dia chegar? — questionou St.
Clare com um meio sorriso enquanto se afastava da janela e colocava a mão
sobre o ombro do escravo. — Ah, meu bom e tolo Tomás! Não o manterei aqui
até que esse dia chegue. Vá para casa, para sua mulher e seus filhos e mande
lembranças minhas a todos.
— Acredito que esse dia vai chegar — disse Tomás sério e com lágrimas nos
olhos. — Deus tem uma missão para o senhor, meu amo!
— Uma missão? — perguntou St. Clare. — Bem, diga-me sua opinião sobre
qual tipo de missão seria, vamos lá.
— Bem, até mesmo um pobre sujeito como eu recebe uma missão de Deus.
E o senhor St. Clare, que tem instrução, riqueza e amigos, pode fazer muito pelo
Senhor!
— Tomás, você parece achar que Deus precisa que muita coisa seja feita por
Ele — St. Clare disse sorrindo.
— Fazemos por Deus aquilo que fazemos pelas criaturas d’Ele — explicou
Tomás.
— Boa teologia, Tomás. Melhor do que os sermões do Dr. B, ouso dizer —
comentou St. Clare.
A conversa aqui foi interrompida pelo anúncio da chegada de alguns
visitantes.
Marie St. Clare sentia a perda de Eva o mais profundamente possível, e,
como era uma mulher que possuía a grande habilidade de fazer todos ao seu
redor tão infelizes como ela própria, suas criadas imediatas ainda tinham motivo
para lamentar a perda da sinhazinha, cujos modos cativantes e intercessões
gentis tantas vezes lhes serviram de armadura contra as exigências tirânicas e
egoístas da mãe. A pobre Mammy, em particular, ceifada de todos os laços
domésticos, sempre encontrou consolo naquele ser maravilhoso, estava com
coração partido. Ela chorava dia e noite, e estava, por excesso de sofrimento,
menos habilidosa e alerta do que o normal na ajuda com a senhora, que
despejava uma tempestade de injúrias constantes sobre sua cabeça indefesa.
A Srta. Ofélia sentiu muito a perda, mas, em seu coração bondoso e honesto,
carregava o fruto da vida eterna. Tornou-se mais dócil e mais gentil, e embora
continuasse assídua com todos os seus deveres, desempenhava-os com um ar
quieto e recatado que combinava mais com o seu estado de espírito. Passou a ser
mais diligente nos ensinamentos a Topsy, ensinando-lhe principalmente a partir
da Bíblia; não se afastava mais do toque da escrava nem manifestava repulsa,
pois já não a sentia. Agora via a garota através das lentes suaves que Eva
colocara diante de seus olhos, e a enxergava apenas como uma criatura imortal
que Deus lhe enviara para ser encaminhada na glória e na virtude. Topsy não se
transformou em uma santa, mas a vida e a morte de Eva exerceram uma
mudança notável nela. A indiferença se fora e agora havia sensibilidade,
esperança, desejo e busca pelo bem, uma busca irregular, interrompida e vez ou
outra suspensa, mas sempre renovada.
Um dia, ao ser chamada pela Srta. Ofélia, Topsy foi ao encontro dela
guardando alguma coisa apressadamente no peito.
— O que está fazendo aí, sua pilantra? Está roubando alguma coisa, tenho
certeza — disse a imperiosa Rosa, que fora enviada para chamá-la e, ao mesmo
tempo, pegou a garota pelo braço.
— Vá embora, Srta. Rosa! — respondeu Topsy, desvencilhando-se dela. —
Isso não é nada da sua conta!
— Não é da minha conta? — refutou Rosa. — Vi você escondendo alguma
coisa; conheço seus truque! — e Rosa puxou o braço e tentou enfiar a mão
dentro do peito de Topsy, enquanto a garota, enfurecida, chutava e brigava
valentemente pelo que considerava seus direitos. O clamor e a confusão
trouxeram a Srta. Ofélia e St. Clare ao campo de batalha.
— Ela está roubando! — denunciou Rosa.
— Não estou coisa nenhuma! — vociferou Topsy, soluçando
passionalmente.
— Dê-me isso, seja lá o que for! — ordenou a Srta. Ofélia com firmeza.
Topsy hesitou, mas, numa segunda ordem, tirou do peito um pacotinho
embrulhado em um dos pés de suas velhas meias.
A Srta. Ofélia o desembrulhou. Havia um livrinho que Eva presenteara a
Topsy, contendo um único verso da Bíblia, organizado para cada dia do ano, e, e
em um papel estava a mecha de cabelo que Eva lhe dera naquele dia memorável
quando dissera seu último adeus.
St. Clare ficou bem tocado pela cena; o livrinho estava embrulhado em um
longo pedaço de fita preta, arrancada das roupas do funeral.
— Por que amarrou isso em volta do livro? — perguntou St. Clare,
segurando a fita preta.
— Porque, porque, porque era da Srta. Eva. Ah, por favor, não tire ela de
mim, por favor! — ela implorou e, jogando-se no chão e cobrindo a cabeça com
o avental, começou a chorar veementemente.
Era uma mistura curiosa do patético com o ridículo: a velha meia, a fita
preta, o livrinho, a mecha de cabelo louro e o sofrimento de Topsy.
St. Clare sorriu, mas havia lágrimas nos olhos dele, quando disse:
— Por favor, não chore; pode ficar com tudo! — E, reunindo os objetos,
jogou-os no colo dela e levou a Srta. Ofélia até a sala.
— Acho realmente que conseguirá tirar algo dali — ele disse apontando o
dedão para trás por sobre o ombro. — Qualquer um capaz de sofrimento sincero
é capaz de fazer o bem. Deve tentar fazer alguma coisa com ela.
— A criança melhorou muito — admitiu a Srta. Ofélia. — Tenho grandes
esperanças para ela, mas Augustine — ela disse colocando a mão sobre o braço
dele —, tem uma coisa que gostaria de perguntar. De quem é essa criança? Sua
ou minha?
— Bem, eu a dei a você — respondeu Augustine.
— Mas não legalmente. Quero que ela seja minha legalmente — pediu a
Srta. Ofélia.
— Meu Deus, prima! — exlamou Augustine. — O que a Sociedade
Abolicionista há de pensar? Instituirão um dia de jejum por esse deslize, se você
se tornar dona de uma escrava!
— Não diga bobagem! Quero que ela seja minha, para que tenha o direito de
levá-la aos estados livres e lhe dar a liberdade, para que tudo o que estou fazendo
não seja desfeito.
— Ah, prima! Que mal terrível esse bem fará! Não posso encorajá-la!
— Não quero que faça piada, mas que reflita — esbravejou a Srta. Ofélia. —
É inútil tentar fazer dessa criança uma criança cristã a não ser que consiga salvá-
la de todas as chances e reveses da escravidão; se realmente quer dá-la a mim,
quero que faça um termo de doação, ou algum tipo de documento legal.
— Ora, ora — disse St. Clare. — Farei — e sentou-se, desdobrando um
periódico para ler.
— Mas quero que seja feito agora — insistiu a Srta. Ofélia.
— E por que a pressa?
— Porque o agora é o único momento para fazermos as coisas — explicou a
Srta. Ofélia. — Vamos lá, aqui está o papel, caneta e tinta; apenas escreva.
St. Clare, assim como a maioria dos homens de sua classe, educadamente
odiavam o tempo presente da ação, de forma que ficou extremamente irritado
pela assertividade da prima.
— Qual o problema? — ele perguntou. — Não pode aceitar minha palavra?
Poderia se pensar que tomou lições com os judeus para abordar uma pessoa
dessa forma.
— Quero ter certeza — explicou a Srta. Ofélia. — Você pode morrer, ou
falir e então Topsy será colocada a leilão a despeito de tudo o que eu possa fazer.
— Realmente, você é bem precavida. Bem, já que estou nas mãos de uma
ianque, não há nada a fazer a não ser concordar — e St. Clare escreveu
rapidamente um termo de doação, o qual, sendo ele versado nas formas da lei, o
fez com facilidade, e assinou o nome em letras maiúsculas esparramadas,
concluindo com um enorme floreio.
— Pronto. Isso é preto no branco o bastante, Srta. Vermont? — ele
perguntou enquanto entregava o documento para a prima.
— Bom garoto — elogiou a Srta. Ofélia, sorrindo. — Mas não há
necessidade de testemunhas?
— Ah, é mesmo! Sim, aqui — ele disse abrindo a porta do quarto de Marie.
— Marie, a prima quer o seu autógrafo; só coloque o seu nome aqui.
— O que é isso? — perguntou Marie enquanto passava os olhos pelo papel.
— Ridículo! Pensei que a prima fosse misericordiosa demais para uma coisa tão
horrível — ela acrescentou escrevendo o nome displicentemente. — Mas, se ela
gosta desse artigo, fique à vontade.
— Aqui está, ela é sua, de corpo e alma — declarou St. Clare entregando o
papel à Srta. Ofélia.
— Não é mais minha do que jamais foi antes — disse a Srta. Ofélia. —
Ninguém, exceto Deus, tem o direito de dá-la a mim; mas pelo menos agora eu
posso protegê-la.
— Bem, então ela é sua por uma lei fictícia — disse St. Clare ao virar-se
para entrar na sala e ler seu periódico.
A Srta. Ofélia, que raramente se sentava na companhia de Marie, seguiu-o
para dentro da sala, tendo dobrado o documento cuidadosamente antes disso.
— Augustine! — ela chamou, de repente, enquanto tricotava. — Já fez
algum tipo de disposição para seus criados, caso você morra?
— Não — respondeu St. Clare, continuando a leitura.
— Então todas suas indulgências para com eles podem um dia se provar uma
grande crueldade.
O próprio St. Clare já pensara naquilo várias vezes, mas respondeu
negligentemente:
— Bem, farei as disposições, um dia.
— Quando? — perguntou a Srta. Ofélia.
— Ah, um dia desses.
— E se morrer antes?
— Prima, qual é o problema? — perguntou St. Clare, colocando o periódico
de lado e olhando para ela. — Acha que estou com sintomas de febre amarela ou
cólera para estar fazendo os arranjos pós-morte com tanto afinco?
— Em meio à vida temos a morte — disse a prima.
St. Clare levantou-se e, largando o periódico descuidadamente, caminhou até
a porta que ficava aberta para a varanda, para colocar fim àquela conversa que
não lhe agradava.
Mecanicamente, repetiu a última palavra:
— Morte! — e, ao se recostar nas grades e observar a água cristalina subir e
descer na fonte, e, em meio a uma névoa turva e ondulante, vir as flores e as
árvores e os vasos dos pátios, ele repetia a mística palavra tão comum a todas as
bocas, todavia com força tão assustadora. — MORTE! Estranho existir tal palavra
— ele disse — estranho existir tal coisa e sempre nos esquecermos dela; num dia
pode-se estar vivo, feliz, belo e cheio de esperanças, desejos e quereres e, no
outro, partir, partir para sempre!
Era uma tarde quente e dourada e, ao caminhar até o outro lado da varanda,
viu Tomás concentrado na Bíblia, apontando, como sempre fazia, para cada
palavra sucessivamente, e sussurrando-as para si mesmo com um ar sério.
— Gostaria que lesse para você, Tomás? — perguntou St. Clare sentando-se
despreocupadamente ao lado do escravo.
— Se o amo não se importar — respondeu Tomás agradecido. — O senhor
faz tudo ficar tão mais simples.
St. Clare pegou o livro e olhou-o, começando a ler uma das passagens que
Tomás designara com marcações pesadas. O texto dizia:
“Quando o Filho do homem vier em sua glória, acompanhado de todos os
anjos celestes, sentar-se-á no trono da glória; e todas as nações se reunirão
perante a Ele, e Ele as dividirá umas das outras, assim como um pastor separa as
ovelhas dos bodes”. St. Clare lia animadamente até chegar ao último verso.
“Então o rei dirá àqueles à sua esquerda: Afastem-se de mim, seus malditos,
e ardam no fogo eterno, pois tive fome e não me ofereceram comida; tive sede e
não me deram água; estive abandonado e não me ofereceram abrigo, estive nu e
não me cobriram; estive enfermo e preso e não me visitaram. E então eles
perguntaram a Ele: Senhor, quando foi que o vimos faminto, sedento,
abandonado, nu, enfermo ou preso e não lhe ajudamos? E então Ele lhes
respondeu: toda vez que não fizeram pelos necessitados, não fizeram por mim”.
St. Clare pareceu impressionado por aquela última passagem, pois a leu duas
vezes, a segunda bem devagar, como se estivesse remoendo as palavras na
cabeça.
— Tomás — ele disse —, esses sujeitos que receberam o castigo parecem ter
feito o que eu fiz: vivendo vidas boas, fáceis e respeitáveis e não se preocupando
em questionar quantos de seus irmãos estavam famintos, sedentos, enfermos ou
aprisionados.
Tomás não respondeu.
St. Clare levantou-se e caminhou reflexivo para cima e para baixo da
varanda, parecendo estar perdido em seus pensamentos; estava tão absorto que
Tomás precisou lembrá-lo duas vezes de que a sineta para o chá já havia tocado,
até ter a atenção do amo.
St. Clare estava absorvido nos próprios pensamentos e reflexivo durante
todo o horário do chá. Depois do chá, ele, Marie e a Srta. Ofélia se acomodaram
na sala, em silêncio.
Marie jogou-se em um sofá, sob um mosquiteiro de seda, e logo pegou no
sono. A Srta. Ofélia ocupou-se, silenciosamente, com seu tricô. St. Clare sentou-
se ao piano e começou a tocar um movimento suave e melancólico com um
acompanhamento de escala eólia. Estava em um estado de imaginação tão
profunda, que parecia conversar consigo mesmo através da música. Pouco tempo
depois, abriu uma das gavetas, tirou uma velha partitura cujas folhas estavam
amareladas pela idade, e começou a virá-las.
— Aqui está — ele disse para Srta. Ofélia — esta era uma das partituras de
minha mãe, e aqui é a letra cursiva dela, venha dar uma olhada. Ela copiou e fez
os arranjos a partir do Réquiem de Mozart — a Srta. Ofélia se aproximou
conforme ele pedira.
— Ela costumava cantar isso — St. Clare declarou. — Acho que consigo
ouvi-la agora.
Ele tocou alguns acordes majestosos e começou a cantar aquela maravilhosa
peça em latim, a “Dies Irae”.1
Tomás, que estava ouvindo do lado de fora, na varanda, foi levado pelo som
até a porta, onde ficou em pé, observando seriamente. Ele não compreendia as
palavras, claro, mas a música e o modo de cantar pareceram lhe afetar muito,
principalmente quando St. Clare cantou as partes mais tristes. Tomás teria
simpatizado ainda mais se soubesse o significado das lindas palavras:
Recordare Jesu pie
Quod sum causa tuae vieae
Ne me perdas, illa die;
Quaerens me sedisti lassus,
Redemisti crucem passus,
Tantus labor no sit cassus.2

St. Clare dizia as palavras com uma expressão profunda e triste, pois o véu
sombrio dos anos foi erguido e ele parecia ouvir a voz da mãe guiando a sua.
Voz e instrumento pareciam ambos vivos e reproduziam com vívida simpatia os
arranjos que o etéreo Mozart concebera, a princípio, como seu próprio réquiem
de morte.
Quando St. Clare acabou de cantar, sentou-se recostando a cabeça na mão
por alguns momentos, e então começou a andar de um lado para o outro.
— Que concepção sublime é esta do juízo final! — ele disse. — A correção
dos erros de toda a vida! A solução de todos os problemas morais insolúveis pela
sabedoria! É, realmente, uma imagem maravilhosa.
— E muito temerosa para nós também — comentou a Srta. Ofélia.
— Pelo menos para mim, suponho — declarou St. Clare parando para
refletir. — Estava lendo para Tomás esta tarde o capítulo de Mateus que fala
sobre isso e fiquei muito impressionado. Devia-se esperar algum tipo de castigo
enorme imposto àqueles excluídos do paraíso; mas não, eles são condenados
apenas por não fazerem o bem, como se isso incluísse todo tipo de mal.
— Talvez — explicou a Srta. Ofélia — seja impossível para uma pessoa que
não faz o bem não fazer o mal.
— E o que — perguntou St. Clare falando distraidamente, mas com
profundo sentimento —, o que seria dito daqueles cujo coração, educação e
desejos da sociedade o chamaram em vão por algum motivo nobre; alguém que
pairou como um espectador sonhador e neutro sobre os conflitos, agonias e
malfeitos dos homens, quando deveria ter sido um trabalhador?
— Eu diria que ele deve se arrepender, começando agora — respondeu a
Srta. Ofélia.
— Sempre prática e objetiva! — comentou St. Clare, o rosto se abrindo em
um sorriso. — Você nunca me deixa tempo para reflexões generalizadas, prima;
sempre me traz de volta para o presente; tem na cabeça um tipo de agora eterno.
— O agora é o único tempo que me pertence — refutou a Srta. Ofélia.
— Minha querida Eva, pobrezinha! — disse St. Clare. — Tinha na alma a
determinação de me redimir.
Era a primeira vez, desde a morte de Eva, que ele dizia tantas palavras sobre
ela, e falava, evidentemente, reprimindo os sentimentos ainda muito fortes.
— Minha visão sobre o cristianismo é a seguinte — ele acrescentou — Acho
que nenhum homem pode professá-lo consistentemente sem jogar todo o peso de
seu ser contra o monstruoso sistema de injustiça que forma a base de nossa
sociedade; e, se necessário, sacrificar-se na batalha. Isso significa dizer que eu
não poderia, de outra forma, ser um cristão, ainda que já tenha visto muitos
cristãos inteligentes que não passaram por isso. O desejo deles de percepção dos
erros que me encheu de horror me trouxe mais ceticismo do que outra coisa.
— Se sabia de tudo isso, por que não o fez? — perguntou a Srta. Ofélia.
— Ah, porque possuo apenas aquele tipo de benevolência que consiste em
deitar-me em um sofá, e blasfemar a igreja e o clero por não serem mártires e
confessores. É muito fácil enxergar como os outros podem ser mártires.
— Bem, e agirá diferente agora? — perguntou a Srta. Ofélia.
— O futuro a Deus pertence — respondeu St. Clare. — Sou mais corajoso
do que era antes, pois perdi tudo; e aquele que não tem nada a perder pode se dar
ao luxo de se arriscar.
— E o que fará?
— Espero cumprir meu dever para com os pobres e desafortunados assim
que puder — respondeu St. Clare. — A começar pelos meus próprios criados,
por quem ainda não fiz nada, e talvez um dia, no futuro, possa parecer que fiz
algo para toda uma classe; algo para salvar meu país da desgraça dessa terrível
posição na qual se encontra perante todas as nações civilizadas.
— Acha possível que uma nação se emancipe voluntariamente? —
perguntou a Srta. Ofélia.
— Não sei — respondeu St. Clare. — Estamos em uma época de grandes
feitos. O heroísmo e o desinteresse estão crescendo aqui e ali pelo mundo. Os
nobres húngaros libertaram milhões de criados, apesar da enorme perda
pecuniária; e, talvez, entre nós, haja espíritos generosos que não avaliem a honra
e a justiça em dólares e centavos.
— Não acredito nisso — comentou a Srta. Ofélia.
— Mas, suponhamos que amanhã acordemos e nos emancipemos; quem
instruiria esses milhões e os ensinaria a usar sua liberdade? Eles nunca se
desenvolveriam para fazer algo entre nós. A verdade é que nós mesmos somos
muito indolentes e inúteis para lhes darmos uma ideia da indústria e da energia
necessária para transformá-los em homens de verdade. Eles teriam que ir para o
Norte, onde trabalhar é a norma e o costume universal. E agora me diga, será que
há filantropia cristã suficiente entre os seus estados do Norte para sustentarem o
processo de educação e desenvolvimento deles? Vocês mandam milhares de
dólares para missões estrangeiras, mas será que conseguem aguentar ter os
pagãos enviados às suas cidades e vilas, dedicar-lhes seu tempo, pensamento e
dinheiro para elevá-los ao padrão cristão? É isso que eu gostaria de saber. Se
emanciparmos, queremos educá-los? Quantas famílias, em sua cidade,
abrigariam um homem ou uma mulher negra, os ensinaria, apoiaria e os
converteria em cristãos? Quantos comerciantes aceitariam Adolfo, se eu quisesse
fazer dele um atendente, ou lhe ensinaria mecânica, se quisesse lhe ensinar a
fazer negócios? Se eu quisesse mandar Jane e Rosa para a escola, quantas
escolas nos estados do Norte as aceitariam? Quantas famílias as abrigariam? E
elas são tão brancas como muitas mulheres do Norte ou Sul. Está vendo, prima?
É preciso nos fazer justiça; estamos em péssima posição. Somos os opressores
mais óbvios dos negros; mas o preconceito não cristão do Norte é um opressor
quase igualmente severo.
— Bem, primo, sei que é assim — disse a Srta. Ofélia. — Sei que foi assim
comigo, até ver que era meu dever superá-lo; e acredito que o superei, e sei que
há muitas pessoas boas no Norte que, com relação a esse assunto, apenas
precisam aprender qual é o dever delas para passar a fazê-lo. Certamente acho
que seria uma abnegação muito maior receber os pagãos entre nós do que enviar
missionários até eles, mas acredito que faríamos isso.
— Você faria, sei disso — disse St. Clare. — Gostaria de ver alguma coisa
que não faria se achasse que fosse o seu dever!
— Bem, não sou tão bondosa assim — refutou a Srta. Ofélia. — Outros
também o fariam, se vissem as coisas do mesmo modo que eu. Pretendo levar
Topsy para casa comigo, quando for embora. Imagino que as pessoas
estranharão, a princípio; mas acho que acabarão vendo tudo como eu vejo. De
mais a mais, sei que há muitas pessoas no Norte que fazem exatamente o que
acabou de dizer.
— Sim, mas é a minoria; e se é que vamos começar a emancipar, logo
teremos notícias suas.
A Srta. Ofélia não fez nenhum comentário. Houve uma pausa de alguns
minutos; e o semblante de St. Clare foi encoberto por uma expressão triste e
sonhadora.
— Não sei por que tenho pensado tanto em minha mãe essa noite — ele
comentou. — Estou com uma estranha sensação de que ela está perto de mim.
Fico me lembrando de coisas que ela costumava dizer. Estranho como essas
coisas do passado às vezes voltam tão vividamente!
St. Clare andou de um lado para o outro na sala durante mais alguns minutos
e disse:
— Acho que vou sair à rua um pouco para ouvir as notícias.
Ele pegou o chapéu e saiu.
Tomás o seguiu pelo corredor até o pátio e perguntou se deveria acompanhá-
lo.
— Não, meu amigo — respondeu St. Clare. — Estarei de volta em uma
hora.
Tomás sentou-se na varanda. Fazia uma linda noite enluarada e ele sentou-se
observando o subir e descer do jato de água da fonte, ouvindo o seu burburinho.
Tomás pensou em sua casa e que logo seria um homem livre, capaz de voltar
para casa quando desejasse. Pensou no quanto trabalharia para comprar a esposa
e os garotos. Sentiu os músculos de seus braços fortes com um tipo de alegria,
enquanto pensava que logo eles lhe pertenceriam e o quanto poderiam trabalhar
para conquistar a liberdade de sua família. Em seguida, pensou em seu nobre e
jovem amo, e, um segundo depois, veio a prece habitual que ele sempre lhe
oferecia; depois seus pensamentos passaram à linda Eva, que agora ele
acreditava estar entre os anjos; e pensou tanto a ponto de quase achar que aquele
rosto lindo de cabelos dourados estava olhando para ele, pelo jato de água que
vinha da fonte. E, inebriado, pegou no sono e sonhou que a via vindo pulando
em direção a ele, como ela costumava fazer, com uma guirlanda de jasmim no
cabelo, o rosto resplandecente e os olhos radiantes de alegria; no entanto, ao
olhar, ela parecia estar saindo da terra; seu rosto tinha um tom mais pálido, os
olhos tinham um brilho mais profundo e divino, um halo dourado parecia lhe
rodear a cabeça, e então ela desapareceu de vista; e Tomás foi acordado por uma
batida alta e som de muitas vozes ao portão.
Ele apressou-se para desfazer o tumulto e, com vozes abafadas e passos
pesados, vieram vários homens trazendo um corpo embrulhado em um capote,
deitado sobre uma padiola. A luz da lamparina iluminava todo o rosto, e Tomás
deu um grito selvagem de surpresa e desespero que ressoou pelas galerias à
medida que os homens chegavam mais perto com a carga, até a porta aberta da
sala onde a Srta. Ofélia continuava sentada tricotando.
St. Clare fora até um café à procura de um periódico daquela tarde.
Enquanto lia, uma rusga surgiu entre dois cavalheiros na sala, ambos
parcialmente embriagados. St. Clare e mais um ou dois outros tentaram separá-
los, quando de repente ele recebeu um golpe na lateral, com uma faca de caça
que tentava tirar de um deles.
A casa se encheu de choros e lamentos, berros e gritos; criados puxando os
cabelos freneticamente, se jogando no chão ou correndo de um lado para o outro
sem rumo, lamentando. Apenas Tomás e a Srta. Ofélia pareciam ter presença de
espírito, pois Marie estava em uma forte convulsão histérica. Sob as ordens da
Srta. Ofélia, um dos sofás da sala foi rapidamente preparado, e o corpo
ensanguentado foi colocado ali; St. Clare desmaiara devido à dor e à perda de
sangue, mas, à medida que a Srta. Ofélia lhe aplicava os tônicos, ele voltou a si,
abriu os olhos, olhou fixamente para eles, olhou ao redor da sala, os olhos
passando ardentemente sobre cada um dos objetos até finalmente repousarem no
retrato da mãe.
O médico chegou e examinou o ferido. Era evidente, pela expressão de seu
rosto, que não havia esperanças; mesmo assim se pôs a cuidar do ferimento e ele,
a Srta. Ofélia e Tomás continuaram o trabalho com calma, por entre as
lamentações, soluços e choros dos criados assustados que se apinharam nas
portas e janelas da varanda.
— Agora precisamos dispersar todas essas criaturas; tudo depende do
repouso dele — instruiu o doutor.
St. Clare abriu os olhos e olhou fixamente para os criados nervosos, a quem
a Srta. Ofélia e o doutor tentavam tirar do recinto.
— Pobres criaturas! — ele disse, e uma amarga expressão de autoflagelo lhe
passou pelo rosto.
Adolfo se recusava terminantemente a sair. O terror tinha lhe privado de toda
presença de espírito; ele se jogou no chão e nada podia persuadi-lo a se levantar.
O restante cedeu aos apelos urgentes da Srta. Ofélia, de que a salvação do seu
amo dependia do silêncio e da obediência deles.
St. Clare mal podia dizer palavra; deitava-se com os olhos fechados, mas era
visível que tinha pensamentos conflitantes. Algum tempo depois, colocou a mão
sobre a de Tomás, que estava ajoelhado a seu lado e disse:
— Tomás, meu pobre amigo!
— Diga-me, senhor! — pediu Tomás seriamente.
— Estou morrendo! — disse St. Clare pressionando-lhe a mão. — Reze por
mim!
— Se quiser, posso chamar um clérigo — disse o doutor.
St. Clare balançou a cabeça enfaticamente e repetiu para Tomás, agora ainda
mais sério:
— Reze!
E Tomás rezou com todo seu coração e força, para aquela alma que estava
partindo, a alma que parecia olhar tão firme e tristemente através daqueles olhos
azuis melancólicos. Foi realmente uma prece oferecida em voz alta e lágrimas.
Quando Tomás parou de falar, St. Clare alcançou e tomou a mão do escravo,
olhando-o fervorosamente, mas sem dizer nada. O amo fechou os olhos, mas
ainda manteve o aperto de mão, pois, nos portões da eternidade, a mão negra e a
branca se entrelaçam no mesmo gesto. Sussurou para si mesmo em intervalos
interrompidos:
Recordare Jesu pie —
Ne me perdas — illa die
Querens me — sedisti lassus

Era evidente que as palavras que estivera cantando aquela noite estavam
passando por sua cabeça, palavras de súplica dedicadas à Piedade Infinita. Seus
lábios se entreabriam em intervalos, e parte dos hinos eram repetidos por ele.
— A mente dele está delirando! — disse o doutor.
— Não! Estou finalmente indo para casa! — St. Clare declarou
energeticamente. — Finalmente, finalmente!
O esforço para falar o exauriu. A palidez profunda da morte caiu sobre ele, e,
com ela, como se tivesse vindo das asas de um espírito misericordioso, uma
linda expressão de paz, como a de uma criança cansada que adormece.
Assim ele permaneceu por alguns minutos. Percebia-se que a mão celestial
repousava sobre ele. Pouco antes de o espírito partir, St. Clare abriu os olhos
com um brilho súbito de alegria e reconhecimento, e disse “Mãe!”. Então se foi!
29
OS DESPROTEGIDOS

Muitas vezes ouvimos falar da angústia dos criados negros pela perda de um
amo bondoso, pois nenhuma criatura nesse mundo de Deus é deixada mais
profundamente desprotegida e desolada do que um escravo sob essas
circunstâncias.
A criança que perdeu um pai ainda tem a proteção de um amigo e da lei; ela
é alguma coisa e tem o direito de fazer alguma coisa; tem seus direitos e sua
posição reconhecidos; o escravo não tem nada. A lei o considera, sob todos os
aspectos, tão despojado de direitos quanto um fardo de mercadoria. O único
reconhecimento possível de qualquer de seus desejos e necessidades enquanto
criatura humana e imortal que lhes é dado, chega a eles através do desejo
soberano e irresponsável de seu amo; e quando esse amo morre, nada mais resta.
O número de homens que sabe como usar essa descomunal força
irresponsável de forma humana e generosa é pequeno. Todos sabem disso, e os
escravos mais ainda, pois eles reconhecem que há dez vezes mais chance de
encontrarem um senhor abusivo e tirânico do que um bondoso e generoso.
Quando St. Clare deu seu último suspiro, terror e consternação tomaram
conta de toda a casa. Ele fora levado subitamente, em plena flor e força da
juventude! Todos os cômodos e corredores da casa ressoavam com soluços e
gritos de desespero.
Marie, cujo sistema se acostumara ao fluxo constante de satisfação dos
próprios desejos, não tinha como aguentar o terror do choque, e, no momento em
que seu esposo partiu, passava de um desmaio a outro; e ele, a quem ela se
juntara no misterioso laço do casamento, se fora para sempre, sem nem mesmo a
possibilidade de uma palavra de despedida.
A Srta. Ofélia, com sua força e autocontrole característicos, permanecera ao
lado de seu parente até o último momento — olhos, ouvidos e toda a atenção —,
fazendo todo o pouco que podia ser feito e, junto com ela, toda sua alma em
orações suaves e fervorosas as quais o pobre escravo entoava pela alma de seu
amo que morria.
Quando estavam arrumando o corpo para seu último descanso, encontraram
sobre seu peito uma medalha simples e pequena, que se abria com uma mola.
Dentro havia a miniatura de um rosto de mulher, nobre e belo, e no verso,
embaixo de um cristal, uma mecha de cabelo preto. Colocaram-nos de volta
sobre o peito inerte, pó ao pó, tristes relíquias dos primeiros sonhos que um dia
fizeram palpitar aquele coração tão frio!
A alma de Tomás estava tomada por pensamentos de eternidade; e enquanto
trabalhava em torno da massa inerte, nem por um momento lhe passou pela
cabeça que a morte súbita de seu amo o colocava em estado de escravidão
permanente. Sentiu-se em paz com relação ao amo, pois, naquele momento,
quando entoara a prece no coração do Pai, encontrara uma resposta de silêncio e
confiança nascendo dentro de si. Nas profundezas de sua natureza afetuosa,
conseguira perceber algo na plenitude do amor divino, como um antigo oráculo
uma vez dissera: “Aquele que habita no amor, habita em Deus, e Deus nele!”.
Tomás acredita e confia, e, assim, estava em paz.
E o funeral passou, com todo seu desfile de trajes de luto, orações e rostos
tristes; e então voltaram as ondas frias e lamacentas da vida diária; e então a
pergunta difícil que não queria calar: “O que faremos agora?”.
A pergunta veio à mente de Marie quando, vestida em um robe de luto solto
e rodeada de criados ansiosos, sentou-se em uma grande poltrona reclinável
inspecionando amostras de crepe e bombazina. Passou pela cabeça da Srta.
Ofélia, que começou a direcionar seus pensamentos para sua casa no Norte.
Passou, num silêncio tenebroso, pela cabeça dos escravos, que conheciam muito
bem a natureza fria e tirânica da senhora em cujas mãos foram abandonados.
Todos sabiam muito bem que as indulgências que lhes eram dadas não vinham
da senhora, mas do senhor; e que, agora que ele se fora, não haveria nenhum tipo
de filtro entre eles e qualquer castigo tirânico imposto pelo ânimo amargado com
o sofrimento.
Aproximadamente duas semanas após o funeral, quando a Srta. Ofélia estava
ocupada em seu aposento, ouviu uma suave batida na porta. Ela a abriu e lá
estava Rosa, a linda e jovem quadrarona, de quem já falamos várias vezes
anteriormente, com o cabelo todo desarrumado e os olhos inchados de chorar.
— Ah, Srta. Félia! — ela disse, caindo sobre os joelhos e pegando a saia do
vestido da senhora. — Por favor, por favor, vá falar com a senhora Marie!
Interceda por eu! Ela vai me mandar pra ser açoitada! Olha aqui! — e entregou
um papel para a Srta. Ofélia.
Era uma ordem, escrita com a caligrafia italiana delicada de Marie, ao
senhor de uma casa de açoitamento, para que desse quinze chibatadas na
escrava.
— O que você estava fazendo? — perguntou a Srta. Ofélia.
— Ah, Srta. Félia, a senhora sabe, tenho um gênio ruim; é muito ruim pra
eu. Estava provando um vestido da Srta. Marie, e ela me deu um tapa na cara; e
eu falei sem pensar, e fui impertinente e ela disse que ia acabar comigo e me
ensinar, de uma vez por todas, que eu não podia ser tão orgulhosa como eu
sempre fui; então ela escreveu isso e diz que eu devo cumprir a ordem. Eu
prefiro que ela me mate de uma vez.
A Srta. Ofélia ficou em pé pensando com o papel na mão.
— Sabe, Srta. Félia — disse Rosa. — Não ligo muito pras chibatadas, se
fosse a senhora Marie ou a Srta. que me dessem; mas ser mandada pra um
homem! E um homem tão horrível, que vergonha, Srta. Félia!
A Srta. Ofélia sabia bem que era de costume mandar mulheres e garotos para
casas de açoitamento — para as mãos dos piores homens possíveis, homens vis o
suficiente para fazerem disso uma profissão —, para serem subjugadas à
exposição brutal e correção vergonhosa. Ela já tinha ouvido falar naquilo, mas
até aqui nunca tinha se dado conta disso, até ver o corpo esguio de Rosa quase
convulsionar de nervoso. Todo o sangue honesto do brio feminino, o sangue
forte e libertário da Nova Inglaterra, subiu-lhe às bochechas e palpitava forte em
seu coração indignado; no entanto, com a habitual prudência e autocontrole, ela
se conteve, amassou o papel com força nas mãos e disse simplesmente à Rosa:
— Sente-se, menina, enquanto falo com sua ama.
— Vergonhoso! Monstruoso! Inadmissível! — ela dizia a si mesma enquanto
atravessava a sala.
Encontrou Marie sentada na poltrona reclinável, com Mammy em pé ao lado
dela, penteando-lhe o cabelo; Jane estava sentada no chão ao lado dela, ocupada
lhe massageando os pés.
— Como está se sentindo hoje? — perguntou a Srta. Ofélia.
Um suspiro profundo e os olhos fechados foram a única resposta por um
momento; e então Marie respondeu:
— Ah, não sei, prima. Acho que estou tão bem como sempre — E Marie
limpou os olhos com um lenço de cambraia com uma larga borda preta.
— Vim — disse a Srta. Ofélia com uma tosse curta e seca que geralmente
introduz um assunto difícil —, vim lhe falar sobre a pobre Rosa.
Os olhos de Marie ficaram bem abertos agora, e um rubor tomou conta de
seu rosto lívido, quando ela respondeu rispidamente:
— Bem, o que tem ela?
— Ela sente muito pelo que fez.
— Ela sente, não é? Ela sentirá muito mais antes que eu acabe com ela! Já
tolerei as desobediências dessa criatura por tempo demais; e agora vou acabar
com ela, vou fazê-la comer poeira!
— Mas não poderia puni-la de outra maneira? De um jeito menos
vergonhoso?
— Quero fazê-la passar vergonha; é exatamente isso o que eu quero. Toda a
vida ela foi presumida por sua delicadeza e sua beleza e seus ares de senhora, até
se esquecer de quem realmente é; eu lhe darei uma lição da qual nunca mais se
esquecerá, tenho certeza!
— Mas, prima, pense bem, se destruir a delicadeza e o pudor de uma jovem
irá depravá-la rapidamente.
— Delicadeza! — refutou Marie com uma risada desdenhosa. — Uma
palavra boa demais para alguém como ela! Eu a ensinarei, com todos os seus
ares, que ela não é melhor do que as vagabundas negras que ficam pelas ruas!
Nunca mais há de ser impertinente comigo!
— Há de responder a Deus pela sua crueldade! — retorquiu a Srta. Ofélia
energeticamente.
— Crueldade! Gostaria de saber o que é crueldade! Dei ordens para apenas
quinze chibatadas, e lhe disse para não aplicá-las com muita força. Tenho certeza
que não há crueldade nisso, há?
— Não há crueldade!? — exclamou a Srta. Ofélia. — Imagino que qualquer
garota preferiria ser morta a passar por isso!
— Talvez possa parecer assim para qualquer um que tenha seus sentimentos;
mas essas criaturas se acostumam; é a única maneira de serem dominados.
Deixe-os pensar que podem tomar ares de delicadeza e coisas do tipo, e passam
por cima de você, assim como meus criados sempre fizeram. Agora vou colocá-
los no lugar certo; e quero que saibam que eu os mandarei para serem açoitados,
um depois do outro, se não se comportarem! — disse Marie, olhando ao redor
enfaticamente.
Jane abaixou a cabeça e se acovardou diante disso, pois sentia que aquelas
palavras eram particularmente dirigidas a ela. A Srta. Ofélia sentou-se por um
momento, parecendo ter engolido alguma mistura explosiva e estar prestes a
explodir. Em seguida, lembrando-se da inutilidade de contenção dessa natureza,
cerrou os lábios resolutamente, se recompôs e saiu da sala.
Foi difícil voltar e dizer a Rosa que não podia fazer nada por ela; e logo
depois, um dos criados veio anunciar que a ama tinha lhe ordenado que levasse
Rosa consigo para a casa de correção, para onde a quadrarona foi conduzida às
pressas, apesar das lágrimas e das súplicas.
Alguns dias depois, perto das varandas, Tomás estava em pé, pensativo,
quando foi acompanhado por Adolfo, quem, desde a morte do amo, estivera
absolutamente deprimido e desconsolado. Adolfo sabia que ele sempre fora um
objeto das antipatias de Marie, no entanto, enquanto o amo estava vivo, ele
nunca dera muita atenção a isso. Marie tivera várias reuniões com o advogado
dela; depois de conversar com o irmão de St. Clare, ela estava determinada a
vender o lugar e todos os criados, exceto aqueles de sua própria propriedade, e
esses ela pretendia levar com ela de volta à fazenda do pai.
— Sabe, Tomás, que todos nós seremos vendidos? — disse Adolfo.
— Como sabe disso? — perguntou Tomás.
— Eu me escondi atrás das cortinas quando a sinhá estava conversando com
o advogado. Em poucos dias todo mundo vai pro leilão, Tomás.
— Que seja feita a vontade de Deus! — Tomás disse, cruzando os braços e
respirando fundo.
— Nunca teremos um amo como esse! — lamentou Adolfo
apreensivamente. — Mas prefiro ser vendido a ficar à sorte da senhora.
Tomás afastou-se; seu coração estava pesado. A esperança de liberdade, a
lembrança de sua esposa e de seus filhos distantes, crescera em sua alma
paciente, assim como o náufrago quase chegando ao porto tem a visão da igreja
e dos lindos tetos de sua vila nativa, por sobre uma onda negra, apenas para lhes
dar um último adeus. Apertou os braços sobre o peito, engoliu as lágrimas
amargas e tentou rezar. Aquela pobre e velha alma tinha uma opinião tão
singular e indizível a favor da liberdade, que era um sacrifício para ele
abandoná-la, e quanto mais dizia “Que seja feita a Sua vontade”, pior ele se
sentia.
Ele procurou a Srta. Ofélia, quem, desde a morte de Eva, tinha o tratado com
notável e respeitosa bondade.
— Senhorita Félia — ele começou —, o senhor St. Clare tinha prometido
minha liberdade. Ele me disse que já tinha começado a providenciar ela e agora,
talvez, se a Srta. Félia tiver a bondade de conversar sobre isso com a sinhá,
talvez ela pode continuar os trâmite, como era desejo do amo St. Clare.
— Falarei em seu nome, Tomás, e farei o melhor que puder — disse a Srta.
Ofélia. — Mas, se depender da senhora St. Clare, não lhe daria muitas
esperanças. Mesmo assim, tentarei.
Este incidente ocorreu poucos dias depois do de Rosa, enquanto a Srta.
Ofélia se ocupava com seus preparativos para voltar para o Norte.
Refletindo seriamente, considerou talvez ter usado uma linguagem muito
exacerbada em sua última conversa com Marie e resolveu que desta vez se
esforçaria para moderar o tom e ser o mais conciliatória possível. Assim, a boa
alma se recompôs, e pegando seu tricô, resolveu ir até o quarto de Marie, ser o
mais cordial possível, e negociar o caso de Tomás com toda a habilidade
diplomática que possuía.
Encontrou Marie deitada em um sofá, apoiando os cotovelos em almofadas,
enquanto Jane, que estivera fora fazendo compras, encontrava-se diante dela
exibindo algumas amostras de delicados tecidos pretos.
— Isso ficará bom — disse Marie, escolhendo um. — Só não tenho certeza
se será totalmente apropriado para o luto.
— Meu Deus, senhora! — disse Jane voluvelmente. — A senhora
Derbennon usou exatamente esse mesmo tecido, depois que o general morreu no
verão passado; cai muito bem!
— O que acha? — Marie perguntou à Ofélia.
— É uma questão de hábito, suponho — respondeu a Srta. Ofélia. — Pode
julgar esse quesito melhor do que eu.
— A questão é que não tenho um só vestido nesse mundo que me sirva —
explicou Marie —, e, como venderei a casa e irei embora na semana que vem,
preciso decidir sobre o que usar.
— Mas vai assim tão rápido?
— Sim. O irmão de St. Clare escreveu, e ele e o advogado acham que é
melhor colocar os criados e a mobília a leilão, e deixar o lugar para ser vendido
pelo advogado.
— Há uma coisa sobre a qual gostaria de lhe falar — declarou a Srta. Ofélia.
— Augustine prometeu a liberdade a Tomás, e começara os trâmites legais
necessários para isso. Espero que consiga usar sua influência para conseguir
terminar tudo.
— Mas é claro que não farei uma coisa dessas! — exclamou Marie
rispidamente. — Tomás é um dos que criados mais valiosos do lugar. Não teria
condições de gastar esse dinheiro, de qualquer maneira. Além disso, para que ele
quer a liberdade? Está muito melhor como está.
— Mas ele a deseja muito, e seu amo lhe prometera — insistiu a Srta. Ofélia.
— Até acredito que ele a queira — refutou Marie. — Eles todos a querem,
simplesmente porque são um bando de descontentes, sempre querendo o que não
têm. Mantenha um escravo sob os cuidados de um amo e ele se sairá bem e será
respeitável; mas, liberte–os e eles ficam preguiçosos e não trabalham e começam
a beber e acabam se tornando sujeitos terríveis e vagabundos. Já vi acontecer
centenas de vezes. A liberdade não lhes traz benefício algum.
— Mas Tomás é tão leal, trabalhador e religioso!
— Ah, isso é desnecessário me dizer! Já vi cem iguais a ele. Ele se sairá
muito bem, contanto que alguém cuide dele, isso é tudo.
— Mas, pense bem — insistiu a Srta. Ofélia. — Quando o colocar à venda,
são muitas as chances de ele acabar com um amo ruim.
— Ah, isso é bobagem! — retrucou Marie. — Uma chance em cem que um
bom sujeito acabe com um amo ruim; a maioria do senhorio é boa, apesar de
tudo o que dizem. Eu nasci e cresci aqui no Sul, e nunca conheci nenhum senhor
que não tratasse bem aos seus criados, tão bem quanto mereçam. Não tenho o
menor receio quanto a isso.
— Bem — disse a Srta. Ofélia energicamente —, sei que dar a liberdade a
Tomás foi um dos últimos desejos do seu esposo; também foi uma das promessas
que ele fez à nossa querida Eva em seu leito de morte, e não gostaria de pensar
que você teria a liberdade de ignorá-lo.
Diante desse apelo, Marie cobriu o rosto com um lenço e começou a chorar e
a usar seu frasco de sais com grande veemência.
— Todos são contra mim! — ela disse. — Ninguém tem a mínima
consideração para comigo! Não esperava que você trouxesse à tona as
lembranças dos meus problemas; é tão cruel! Mas ninguém se importa, minhas
provações são tão peculiares! É tão difícil; tive uma filha e ela me foi levada! E
quando encontrei um marido que me conveio perfeitamente — e sou tão difícil
de ser agradada — ele também foi levado! E parecem ter tão pouca pena de
mim, trazendo-me esses assuntos tão indiferentemente quando sabe que tomam
conta de mim! Suponho que tivesse boas intenções, mas mesmo assim é muito
cruel, muito! — E Marie soluçava e engasgava buscando ar, e mandava que
Mammy abrisse a janela e que lhe trouxesse seu frasco de cânfora, e que lhe
lavasse o cabelo e desabotoasse o vestido. E, em meio à confusão generalizada
que se instalou, a Srta. Ofélia escapou para seu quarto.
Ela reconheceu, prontamente, que seria inútil dizer qualquer outra coisa, pois
Marie tinha uma capacidade indefinida para ataques histéricos; e, depois disso,
toda vez que os desejos de seu esposo ou de Eva com relação aos criados eram
mencionados, ela sempre achava conveniente simular uma operação. A Srta.
Ofélia, dessa forma, fez a única coisa boa que lhe restara fazer por Tomás:
escreveu uma carta à Sra. Shelby por ele, lhe contando das mazelas e lhe
implorando que enviasse socorro.
No dia seguinte, Tomás e Adolfo e mais meia dúzia de outros escravos
foram levados para o depósito de escravos, para esperarem a conveniência do
mercador, que montaria um lote para ser leiloado.
30
O DEPÓSITO DE ESCRAVOS

Um depósito de escravos! Talvez alguns dos meus leitores consigam formar


uma visão de um lugar tão horrível. Imaginam uma caverna podre e obscura,
algum Tártaro “informis, ingens, cui lumen ademptum”.1 Mas, não, meu amigo
inocente: nos dias de hoje os homens aprenderam a arte de pecar com primor e
refinamento para não chocar os olhos da alta sociedade. A propriedade humana
está em alta no mercado e, assim, é bem alimentada, limpa, cuidada e
supervisionada, para que sejam colocados à venda saudáveis, fortes e lustrosos.
Um depósito de escravos em Nova Orleans é uma casa igual às outras do lado de
fora, mantida com esmero, onde todos os dias pode se ver, sob um tipo de
cobertura do lado de fora, filas de homens e mulheres em pé, como um sinal da
propriedade vendida do lado de dentro.
Então, educadamente, pode-se ser convidado a entrar e examinar, e ali
encontrará uma abundância de maridos, esposas, irmãos, irmãs, pais, mães e
filhos pequenos a serem vendidos “separadamente” ou em lotes, de acordo com
o que melhor convir ao comprador; e aquela alma imortal, uma vez resgatada
com sangue e angústia pelo Filho de Deus, quando a terra tremer, e as rochas
caírem e os túmulos se abrirem, poderá ser vendida, alugada, emprestada e
trocada por mercadorias ou produtos secos, de acordo com o formato do negócio
ou o gosto do comprador.
Um ou dois dias tinham se passado após a conversa entre Marie e a Srta.
Ofélia, quando Tomás, Adolfo e mais meia dúzia de outros escravos da
propriedade de St. Clare foram entregues aos cuidados benevolentes do Sr.
Skeggs, dono de um depósito na rua, para esperar pelo leilão no dia seguinte.
Tomás tinha um baú cheio de roupas relativamente grande, assim como a
maioria dos outros. Foram levados apressadamente para dentro, para passarem a
noite em um quarto comprido, onde muitos outros homens, de todas as idades,
tamanhos e tons de pele negra estavam reunidos e dos quais emanavam
gargalhadas estrondosas e uma alegria inimaginável.
— Ha, ha! Está certo. É isso mesmo, meus amigos, continuem! — disse o Sr.
Skeggs. — Minha gente é sempre muito animada! É Sambo, com certeza! — ele
disse, dirigindo-se, com aprovação, a um negro encorpado que estava fazendo os
truques e gracejos que causaram os gritos ouvidos por Tomás.
Como era de se imaginar, Tomás não estava com humor para se juntar a
essas estripulias e, assim, colocando seu baú o mais longe possível do grupo
barulhento, sentou-se em cima dele e encostou a cabeça na parede.
Os negociantes do artigo humano fazem esforços mirabolantes e
sistemáticos para promover uma alegria ruidosa entre os negros, com o objetivo
de não os deixarem mergulhar em reflexões e parecerem insensíveis às
condições deles. O objetivo do treinamento dado a um preto, desde sua venda no
mercado do Norte até chegar ao Sul, é sistematicamente feito no sentido de
torná-lo calejado, irracional e bruto. O traficante de escravos junta sua gangue na
Virgínia ou no Kentucky e os leva a um lugar agradável e salubre, geralmente
um lugar cercado de muita água, para serem engordados. Ali são alimentados
diariamente; e por alguns terem a tendência a ficarem deprimidos, geralmente se
mantêm um violino entre eles, e são obrigados a dançar todos os dias; e aquele
que se recusa a ficar alegre, cujos pensamentos na esposa, no filho, ou na casa
não lhes permite ficar feliz, é marcado como mal-humorado e perigoso, e está
sujeito a todas as maldades que a má índole de um homem absolutamente
irresponsável e bruto possa infligir sobre ele. Prontidão, alerta e aparência
alegre, especialmente diante dos observadores, são constantemente exigidos
deles, tanto pela esperança de se encontrar um bom amo quanto pelo medo do
que possa lhes acontecer caso não sejam vendidos.
— O que este preto está fazendo aqui? — perguntou Sambo, chegando perto
de Tomás depois que o Sr. Skeggs saiu da sala. Sambo era totalmente preto,
grande, muito animado, falador, cheio de truques e gracejos.
— O que você tá fazendo aqui? — perguntou Sambo, vindo até Tomás e lhe
cutucando, brincalhão, ao lado da cintura. — Tá meditando, é?
— Amanhã serei vendido em leilão. — respondeu Tomás tranquilamente.
— Vendido em leilão. Ora, ora! Isso não é divertido? Eu bem que queria
passar por isso também! Ah, como eu faria eles rir, vou te dizer! Mas, me diga, o
lote inteiro vai amanhã? — disse Sambo colocando a mão sobre o ombro de
Adolfo, como se já o conhecesse.
— Por favor, me deixe em paz! — pediu Adolfo, fervorosamente, erguendo-
se com absoluto desgosto.
— Ora, vamos lá, meus amigo! Esses aqui é preto branco, meio cor de
creme, sabe, perfumado! — ele disse, chegando perto de Adolfo e fungando-o.
— Ah, Senhor! Ele seria bom em uma loja de tabaco; eles podia ficar com ele
para dar uma fungada! Por Deus, ele vai deixar a loja toda perfumada, com
certeza!
— Eu disse para sair de perto de mim, se importa!? — falou Adolfo,
enfurecido.
— Ah, como são sensível esses preto branco! Olha pra nós! — e Sambo fez
uma imitação cómica dos modos de Adolfo. — Todo cheio de não-me-toques.
Imagino que veio de uma família boa.
— Isso mesmo! — respondeu Adolfo. — Tinha um amo que poderia
comprar todos vocês por uma velha carroça!
— Nossa, imaginem! — retrucou Sambo. — Que cavalheiro que somos!
— Eu pertencia à família St. Clare — declarou Adolfo cheio de orgulho.
— É mesmo? Aposto que eles se sente sortudo por ter se livrado de você.
Imagino que vão trocar você por um monte de chaleira rachada! — Sambo disse
com um sorriso provocador.
Adolfo, enraivecido com a afronta, voou furiosamente para cima do
adversário, blasfemando e golpeando-o por todos os lados. O restante ria e
gritava, e o alvoroço trouxe o feitor até a porta.
— O que é isso, rapazes? Ordem! Ordem! — ele disse entrando e sacando
um grande chicote.
Todos voaram em direções diferentes, exceto Sambo, quem, contando com a
predileção que o Sr. Skeggs tinha por ele, com autorização para fazer arruaça,
ficou onde estava, abaixando a cabeça com um sorriso chistoso toda vez que o
mestre tentava lhe desferir um golpe.
— Meu Deus, senhor, não é a gente! A gente tá quieto! É essa gente nova;
eles é muito irritante! Fica implicando com a gente o tempo todo!
O feitor, diante disso, virou-se para Tomás e Adolfo, e distribuindo alguns
socos e chutes sem perguntar muito, deixando ordens gerais para todos se
comportarem e irem dormir, saiu do recinto.
Enquanto esse episódio se passava no dormitório dos homens, o leitor pode
estar curioso para dar uma olhada no recinto correspondente alocado às
mulheres. Esticadas em várias posições sobre o chão, pode-se ver inúmeras
formas dormentes de vários tons de pele, desde o mais puro ébano ao branco, e
de todas as idades, da infância à velhice, agora dormindo. Aqui está uma garota
linda e inteligente, de dez anos de idade, cuja mãe fora vendida ontem e que hoje
chorou até pegar no sono, quando ninguém a estava olhando. Aqui, uma velha
negra, cujos braços finos e dedos calejados davam sinais de trabalho pesado,
esperando ser vendida no dia seguinte como um artigo de segunda, por qualquer
preço; e mais umas quarenta ou cinquenta, com as cabeças envolvidas em
cobertores ou artigos de vestuário, espalhavam-se pelo recinto. Mas, em um
canto, sentadas separadamente do restante, havia duas mulheres de aparência
mais interessante do que o normal. Uma dela é uma mulata vestida
respeitosamente, entre quarenta e cinquenta anos, com olhos carinhosos e uma
fisionomia agradável e gentil. Ela tem na cabeça um turbante alto, e seu vestido
é impecavelmente assentado e de bom material, mostrando que ela fora cuidada
por boas mãos. Ao lado dela, e aconchegada bem perto, está uma garota de
quinze anos, sua filha. Ela é uma quadrarona, como pode ser percebido por sua
pele mais clara, embora a similaridade com a mãe seja bem evidente. Tem os
mesmos olhos suaves e escuros, com cílios compridos e seu cabelo cacheado é
de um castanho luxuriante. Ela também está vestida com grande esmero e suas
mãos brancas e delicadas demonstram seu pouco contato com o trabalho servil.
Essas duas serão vendidas amanhã, e o cavalheiro a quem elas pertencem, um
membro da igreja cristã de Nova York, receberá o dinheiro e depois irá receber a
comunhão e não pensará mais nisso.
Essas duas, a quem chamaremos de Susan e Emmeline, tinham sido criadas
pessoais de uma senhora amável e devota de Nova Orleans, por meio da qual
receberam instrução e treinamento religioso. Aprenderam a ler e a escrever,
foram diligentemente instruídas nas verdades da religião e haviam sido tão
felizes como se pode ser sob essas condições. No entanto, o único filho da
protetora delas era o responsável pela propriedade, e, por falta de cuidado e
extravagância, implicou grande parte dela e, ao final, não conseguiu pagar. Um
dos maiores credores era a respeitável firma de B. & Co., em Nova York. B. &
Co. escrevera ao advogado deles em Nova Orleans, que anexou os bens (esses
dois artigos e um lote de escravos da fazenda eram os bens mais valiosos), e
escrevera para Nova York para lhe informar sobre o assunto. O irmão B., sendo
como dissemos um homem cristão, e residente de um estado livre, sentiu-se
constrangido. Ele não era a favor de negociar escravos e almas humanas, claro
que não; no entanto, havia trinta mil dólares em questão, e isso era dinheiro
demais para se perder por princípios; e assim, depois de muita reflexão e
conselhos daqueles que sabia que iriam lhe aconselhar conforme queria, o irmão
B. escreveu ao advogado para que fizesse o negócio da maneira que melhor lhe
conviesse e depois lhe enviasse os rendimentos.
No dia seguinte à chegada da carta em Nova Orleans, Susan e Emmeline
foram acrescentadas ao grupo e enviadas ao depósito para esperar por um leilão
público na manhã seguinte; e enquanto brilha levemente sobre nós a luz do luar
que entra sorrateiramente pela janela gradeada, podemos ouvir a conversa delas.
Ambas estão chorando, baixinho, de forma que a outra não escute.
— Mãe, deite a cabeça em meu colo e veja se consegue dormir um pouco —
disse a moça, tentando parecer tranquila.
— Não tenho cabeça para dormir, Em. Não consigo; talvez essa seja a nossa
última noite juntas!
— Mãe, não diga isso! Talvez sejamos vendidas juntas, quem sabe?
— Se esse fosse o caso de todos, eu até que diria o mesmo, Em — declarou
a mulher —, mas tenho tanto medo de perdê-la que não vejo outra coisa a não
ser perigo.
— Mas, mãe, o homem disse que temos boa aparência, e que nos venderia
bem.
Susan se lembrava das palavras e dos olhares do homem. Com aflição mortal
no coração, ela se lembrava de como ele olhara para as mãos de Emmeline, e
levantara os cabelos cacheados dela, e a declarara como um artigo de primeira
linha. Susan fora criada como cristã, crescera lendo a Bíblia diariamente, e tinha
o mesmo horror de que sua filha fosse vendida para uma vida de vergonha, como
qualquer mãe teria, mas não tinha esperanças, nem proteção.
— Mãe, acho que conseguiremos alguma coisa boa se a senhora for
cozinheira e eu camareira ou costureira em alguma família. Ouso dizer que
conseguiremos. Vamos parecer tão alegres e felizes quanto possível, e dizer o
que sabemos fazer e talvez consigamos alguma coisa boa — disse Emmeline.
— Amanhã quero que prenda seu cabelo todo para trás — pediu Susan.
— Para que, mãe? Não fico tão bonita desse jeito.
— Sim, mas assim lhe venderão melhor.
— Não vejo como! — retorquiu a filha.
— Famílias respeitáveis preferirão comprá-la se virem que parece simples e
decente, não tentando parecer bonita. Conheço os modos deles melhor do que
você — explicou Susan.
— Se é assim, farei como está pedindo, mãe.
— E, Emmeline, se por acaso nunca nos vermos de novo depois de amanhã,
se eu for vendida a uma fazenda em algum lugar e você a outra, sempre se
lembre de como foi criada, e tudo o que a senhora sempre lhe disse; leve consigo
sua Bíblia e seu hinário; e se for fiel a Deus, Ele será fiel a você.
Assim fala a pobre alma, em dolorosa desesperança, pois sabe que amanhã
qualquer homem, por mais vil e brutal, por mais herege e inescrupuloso que seja,
se tiver dinheiro para pagar por ela, poderá se tornar o proprietário de sua filha,
corpo e alma; e então, como a criança haverá de ser fiel? Ela pensa em tudo isso
enquanto segura a filha nos braços, desejando que a garota não fosse nem tão
linda nem tão atraente. Parece quase uma provocação se lembrar do quão pura e
religiosamente, do quão acima do padrão normal ela fora criada. No entanto, não
lhe resta outro recurso a não ser rezar; e muitos na mesma situação fizeram
preces ao Senhor, escravos aprisionados, respeitáveis e impecavelmente
organizados, preces que não foram esquecidas por Deus, como o dia seguinte há
de mostrar. “Mas, se alguém fizer cair no pecado um destes pequeninos que
creem em mim, melhor lhe seria amarrar uma pedra de moinho no pescoço e se
afogar nas profundezas do mar”.
O reflexo suave, brilhante e silencioso da lua penetra fixamente, marcando
as barras das janelas gradeadas sobre as formas dormentes e prostradas. Mãe e
filha, juntas, estão entoando um cântico fúnebre selvagem e melancólico, um
hino comum nos funerais de escravos:

Ah, onde está o pranto de Maria?


Ah, onde está o pranto de Maria?
Chegou à terra de Deus.
Ela morreu e foi para o paraíso.
Ela morreu e foi para o paraíso.
Chegou à terra de Deus.

Aquelas palavras, cantadas por vozes de peculiar doçura e melancolia, com


um tom parecido ao suspiro de desespero terreno depois da esperança divina,
vagavam pelas salas escuras da prisão com uma cadência patética, à medida que
diziam verso depois de verso:

Ah, onde estão Paulo e Silas?


Ah, onde estão Paulo e Silas?
Foram à terra de Deus.
Estão mortos e foram para o paraíso.
Estão mortos e foram para o paraíso.
Chegaram à terra de Deus.

Cantem, pobres mulheres! A noite é curta, e a manhã há de separá-las para


sempre.
Mas agora o dia está nascendo, e todos estão se movimentando; e o honrado
Sr. Skeggs está ocupado e agitado, pois um lote de mercadoria precisa ser
composto para ir a leilão. Há uma rígida inspeção nos toaletes; ordens para que
todos se apresentem com suas melhores expressões faciais e estejam alegres; e
agora todos são colocados em um círculo para uma última inspeção antes de
marcharem até a Bourse.
O Sr. Skeggs, com seu chicote na mão e seu charuto na boca, anda de um
lado para o outro dando os toques finais em suas mercadorias.
— O que é isso? — ele perguntou, parando em frente de Susan e Emmeline.
— Onde estão seus cachos, garota?
A garota olhou timidamente para a mãe, que, com a delicada habilidade
comum às de sua classe, responde:
— Eu lhe disse, ontem à noite, que alisasse o cabelo e o puxasse para trás, e
não deixasse os cachos voando por aí; assim parece mais respeitoso.
— Balela! — disse o homem, virando-se peremptoriamente para a garota. —
Vá, enrole os cachos e fique bem linda! — ele acrescentou dando uma estalada
ao cipó que tinha nas mãos. — E volte rápido!
— E você vai ajudar ela! — ele ordenou à mãe. — Esses cachos vão me
render uns cem dólares a mais na venda dela!

Sob o domo esplêndido estavam homens de todas as nações, de um lado para


o outro sobre o pavimento de mármore. Em cada lado da área circular havia
pequenas tribunas, ou estações, para uso dos pregoeiros e leiloeiros. Dois desses,
em lados opostos da área, estavam agora ocupados com cavalheiros distintos e
talentosos, aumentando entusiasticamente, em inglês e francês ao mesmo tempo,
as ofertas dos conhecedores das várias especialidades. Um terceiro, do outro
lado, ainda desocupado, foi rodeado por um grupo, esperando o momento da
venda começar. E aqui podemos reconhecer os criados de St. Clare — Tomás,
Adolfo e outros; e também lá, Susan e Emmeline, esperando a vez delas com
rostos ansiosos e tristes. Vários espectadores, com intenção de comprar, ou sem
intenção nenhuma, como podia ser o caso, juntaram-se ao redor do grupo,
pegando, examinando e comentando sobre suas características e rostos com a
mesma liberdade com que um grupo de jóqueis discute o mérito de um cavalo.
— Olá, Alf! O que o traz aqui? — perguntou um jovem elegante, batendo no
ombro de outro jovem também muito bem vestido, que estava examinando
Adolfo através dos óculos.
— Bem, estava querendo um mordomo, e ouvi dizer que o lote de St. Clare
estava indo a leilão. Pensei em passar por aqui para dar uma olhada…
— Nunca há de me ver comprando um dos negros de St. Clare! Pretos
folgados, todos eles. Insolentes feito o diabo! — disse o outro.
— Não se preocupe com isso! — comentou o primeiro. — Se eu os comprar,
primeiro lhes tirarei a pompa; logo saberão que terão que lidar com outro tipo de
senhor que não o Monsieur St. Clare. Marque minhas palavras, comprarei aquele
sujeito. Gosto do porte dele.
— Vai acabar descobrindo que lhe custará tudo o que tem para mantê-lo. Ele
é absolutamente extravagante!
— Sim, mas meu senhor logo se dará conta de que não pode ser
extravagante comigo. Espere até ser mandado para o calabouço algumas vezes e
ficar totalmente nu! Ah, eu o transformarei, de cima a baixo, você verá. Hei de
comprá-lo, isso é certo!
Tomás estivera em pé observando ansiosamente a multidão de rostos
passando ao seu redor, esperando por aquele que haveria de chamar de amo. E,
se algum dia, senhor, tivesse a necessidade de selecionar, entre duzentos homens,
aquele que se transformaria em seu proprietário e árbitro absoluto, perceberia,
talvez assim como Tomás percebeu, quão poucos são aqueles com quem se
sentiria à vontade para se entregar. Tomás viu uma abundância de homens
grandalhões, encorpados, grosseiros; homens pequenos, miúdos, secos; homens
magros, esguios e tímidos; e toda variedade de homens comuns e grosseiros, que
escolhiam seus irmãos homens como se estivessem escolhendo batatas,
colocando-os no fogo ou no cesto com igual indiferença, de acordo com o que
lhes convinha; mas Tomás não viu nenhum St. Clare.
Um pouco antes de a venda começar, um homem baixo, largo e musculoso,
com uma camisa xadrez consideravelmente aberta no peito, e calças sujas e
usadas, abriu o caminho pela multidão a cotoveladas, como alguém que está
ativamente envolvido no negócio; e, chegando perto do grupo, começou a
examiná-los sistematicamente. Desde o momento em que Tomás viu o homem se
aproximando, sentiu um horror e revolta de dentro de si, que só aumentava à
medida que o homem chegava mais perto. Evidentemente, apesar de baixo, ele
tinha uma força gigantesca. Sua cabeça redonda e pontuda, olhos grandes cinza-
claro, sobrancelhas desgrenhadas cor de areia, cabelo curto, enrolado e
queimado de sol, eram aspectos bem desanimadores, devemos confessar. Sua
boca grande e áspera estava inchada pelo tabaco, cujo suco, de vez em quando,
ele cuspia com grande ênfase e força explosiva; suas mãos eram enormes,
peludas, queimadas de sol, sardentas e muito sujas, guarnecidas de unhas longas
em condições nojentas. Esse homem iniciou uma inspeção bem íntima do lote.
Puxou Tomás pelo maxilar e abriu-lhe a boca para inspecionar os dentes; fê-lo
subir a manga da camisa para mostrar seus músculos; virou-o, fê-lo pular e
correr para mostrar os passos.
— Onde foi criado? — ele acrescentou brevemente a essas investigações.
— No Kentucky, senhor — respondeu Tomás, olhando ao redor, como se
buscasse ajuda.
— O que fazia?
— Tomava conta da fazenda do meu amo — respondeu Tomás.
— Que mentira! — refutou o homem prontamente enquanto examinava os
outros. Passou brevemente por Adolfo; então, expelindo uma escarrada de
tabaco nas botas bem engraxadas dele, e fazendo uma interjeição desdenhosa,
afastou-se. Novamente, ele parou diante de Susan e Emmeline. Esticou a mão
pesada e suja e puxou a garota na direção dele; passou a mão pelo pescoço e pelo
busto da escrava; apalpou seus braços, inspecionou seus dentes e então a
empurrou de volta à mãe, cujo rosto paciente demonstrava o sofrimento que
sentia a cada movimento do monstruoso forasteiro.
A garota ficou assustada e começou a chorar.
— Pare com isso, sua insolente! — disse o vendedor. — Não quero choro
aqui, a venda vai começar. — E, de fato, a venda começou.
Adolfo foi arrematado, por uma boa soma, pelo jovem cavalheiro que
declarara previamente sua intenção em comprá-lo; e outros criados do lote de St.
Clare foram vendidos a vários compradores.
— Agora é a sua vez, preto! Está ouvindo? — perguntou o leiloeiro a
Tomás.
Tomás subiu no banco, olhou ao redor ansiosamente; tudo parecia se
misturar em um barulho geral e indistinto, a voz do pregoeiro gritando suas
qualificações em francês e inglês, as apostas rápidas em francês e inglês; e quase
imediatamente veio o golpe final do martelo, e o som claro da última sílaba da
palavra “dólares”, quando o leiloeiro anunciou seu preço; e o destino de Tomás
estava selado. Ele tinha um senhor.
Ele foi expulso do banco; o homem baixo de cabeça pontuda puxando-o
rudemente pelo ombro empurrou-o para o lado, dizendo com voz ríspida:
— Você, fique aí!
Tomás mal percebia o que estava acontecendo; mas as ofertas do leilão
continuavam — conversas, barulhos, uma hora em francês, outra hora em inglês.
E o martelo bateu novamente: Susan foi vendida! Ela desce do banco, para, olha
tristemente para trás, a filha estica as mãos na direção dela. Ela olha com agonia
para o rosto do homem que a comprou, um homem de meia idade respeitável, de
aparência bondosa.
— Oh, senhor, por favor, compre minha filha!
— Gostaria muito, mas infelizmente não tenho como pagar por ela! — disse
o cavalheiro olhando, com interesse doloroso, enquanto a jovem subia no banco
e olhava ao redor com olhos tímidos e assustados.
Infelizmente o sangue lhe enrubesce o rosto quase sempre pálido, os olhos
dela têm um fogo ardente e a mãe geme ao ver que a filha está mais bela do que
jamais esteve antes. O pregoeiro se apercebeu de sua vantagem e discorreu
fluente e detalhadamente, misturando francês e inglês, enquanto os lances
aumentavam numa rápida sucessão.
— Farei o que puder — disse o cavalheiro bondoso, encaminhando-se para
se juntar aos lances. Em poucos minutos seu lance foi coberto. Ele fica em
silêncio e o leiloeiro anima-se; mas os lances gradualmente caem. A disputa
agora é entre um velho aristocrata e nosso conhecido de cabeça pontuda. O
aristocrata dá alguns lances, avaliando desdenhosamente seu oponente; mas o
cabeça–pontuda tem vantagem sobre ele, e a controvérsia não dura mais do que
um momento; o martelo cai; ele é o dono da escrava, de seu corpo e alma, a não
ser que Deus intervenha por ela.
O amo dela chama-se Legree, dono de uma fazenda de algodão no Rio
Vermelho. Ela é empurrada para junto do mesmo lote com Tomás e outros dois
homens, e vai embora, chorando enquanto se afasta.
O cavalheiro benevolente apiedou-se; no entanto, essas coisas acontecem
todos os dias! Sempre se veem filhas e mães chorando nas vendas! Não há nada
que se possa fazer; e assim ele se afasta com sua mercadoria em outra direção.
Dois dias depois, o advogado da firma cristã B. & Co., de Nova York,
enviou-lhes o dinheiro. No verso do recibo poderiam escrever as seguintes
palavras ao grande Pagador, a quem prestarão contas no futuro: “Aquele que
pede contas do sangue derramado não esquece; Ele não ignora o clamor dos
oprimidos”.
31
A ROTA DA ESCRAVIDÃO

“Teus olhos são puros demais para olhar para o mal; tu eres incapaz de
tolerar os malfeitos. Então por que toleras os traidores? Por que
silencias enquanto os perversos engolem aqueles mais virtuosos do que
eles mesmos?”
— Hab. 1: 13.

Na menor parte de um barco pequeno e de segunda categoria sobre o Rio


Vermelho sentava-se Tomás — correntes nos pulsos, nos pés e um peso maior do
que o das correntes em seu coração. Tudo desaparecera de seu céu, a lua e as
estrelas; tudo passara diante dele, assim como as árvores e as ribanceiras agora
passavam, para nunca mais voltar. A casa do Kentucky, a esposa e os filhos e os
amos indulgentes; a casa de St. Clare, com todo seu refinamento e esplendor; a
cabeça dourada de Eva, com seus olhos angelicais; o orgulhoso, alegre, belo,
indiferente e, no entanto, sempre bondoso St. Clare; horas de tranquilidade e
diversão complacente — tudo isso se fora! E em seu lugar, o que ficou?
Um dos momentos mais amargos da escravidão é quando o negro, simpático
e maleável, depois de adquirir, com uma família refinada, os gostos e
sentimentos que formam a atmosfera do lugar, cai nas mãos de tipos rudes e
brutais; assim como uma cadeira ou mesa que um dia decorou um esplendoroso
salão, vai parar um dia surrada e desfigurada em um bar de alguma taverna suja,
ou em qualquer outro lugar de festejo vulgar. A grande diferença é que a mesa e
a cadeira não têm sentimentos, mas o homem tem; pois nem mesmo um ato legal
declarando que ele pode ser “possuído, reconhecido, e declarado por lei como
um bem móvel pessoal” não pode lhe apagar a alma, com seu pequeno mundo de
lembranças, esperanças, amores, medos e desejos.
O Sr. Simon Legree, amo de Tomás, comprara escravos em vários lugares
em Nova Orleans, num total de oito, e os levou, algemados em duplas, até o
vapor Pirata, que estava atracado no porto pronto para subir o Rio Vermelho.
Tendo-os embarcado e o barco já a caminho, ele veio inspecioná-los com
aquele ar de eficiência característico. Parando na frente de Tomás, que vestira
seu melhor traje para o leilão, de tecido bem engomado e botas brilhantes, ele
expressou-se brevemente:
— Levante-se.
Tomás levantou-se.
— Tire esse lenço! — e enquanto Tomás, enroscado em seus grilhões,
tentava fazê-lo, Legree o ajudou puxando o lenço de seu pescoço, com a mão
pesada, colocando-o no bolso.
Legre agora se virou para o baú de Tomás, o qual, antes disso, ele estivera
pilhando, e, tirando de dentro velhas pantalonas e um casaco surrado que Tomás
costumava usar para o trabalho de cavalariça, ele ordenou, soltando as algemas
dos pulsos de Tomás e apontando para um vão entre as caixas:
— Vá até lá e vista isso.
Tomás obedeceu e voltou momentos depois.
— Tire as bota! — ordenou Legree.
Tomás o fez.
— Aqui está — disse Legree, jogando para o escravo um par de sapatos
grosseiros e pesados, comuns aos escravos. — Coloque esses aqui.
Na troca rápida de roupas, Tomás se esquecera de transferir sua amada
Bíblia para o bolso. E foi bom que isso tenha acontecido, pois o Sr. Legree, ao
recolocar as algemas em Tomás, começou a investigar deliberadamente o
conteúdo de seus bolsos. Tirou um lenço de seda e colocou-o em seu próprio
bolso. Olhou com um grunhido arrogante para vários brinquedinhos que Tomás
guardava apenas porque Eva se divertia com eles, e atirou-os por sobre os
ombros para dentro do rio.
O hinário metodista de Tomás, o qual, na pressa, ele esquecera, Legree agora
segurava e folheava as páginas.
— Arre! Religioso, dá pra ver. Então, qual o seu nome, quer dizer que
pertence à igreja, hein?
— Sim, mestre — Tomás respondeu com firmeza.
— Bem, logo tiro isso de você. Não quero saber de preto nenhum
declamando, rezando e cantando, se lembre disso. E agora, se comporte! — ele
disse com uma batida de pé e um olhar furisoso de seus olhos cinzentos
direcionado a Tomás. — Eu sou sua igreja agora! Acho que me entende; agora
terá de ser como eu digo.
Algo dentro do negro silencioso respondeu “Não!” e, como se repetido por
uma voz invisível, saíram as palavras de uma antiga profecia que Eva sempre
lera para ele “Não tenhas medo, pois virei lhe resgatar. Dei a ti o meu nome; tu
ME pertences!”.
Mas Simon Legree não ouviu nenhuma voz. Aquela voz ele nunca ouviria.
Ele apenas passou os olhos pelo rosto sombrio de Tomás e saiu. Levou até o baú
do escravo, o qual continha um guarda-roupa belo e abundante, até a proa do
barco, onde foi rodeado por várias pessoas. Rindo muito à custa dos negros que
tentaram ser cavalheiros, os artigos foram vendidos rapidamente a um e outro
até, ao final, o próprio baú vazio ir a leilão. Era uma piada engraçada, eles
pensavam, principalmente ao verem como Tomás olhava para as coisas dele
enquanto eram distribuídas entre um e outro; e a venda do baú foi o mais
chistoso de tudo, ocasionando muitos gracejos.
Após o término da pequena transação, Simon caminhou novamente até sua
propriedade.
— Tomás, veja bem, deveria me agradecer por ter aliviado sua bagagem.
Cuide bem dessas roupa. Vai demorar muito para ter outra. Meus preto tem que
ser cuidadoso; na minha fazenda, uma roupa tem que durar o ano inteiro.
Simon caminhou até o lugar onde Emmeline estava sentada, acorrentada a
outra mulher.
— E você, meu bem — ele disse passando a mão debaixo do queixo dela. —
Mantenha o bom humor!
O olhar involuntário de horror, medo e aversão com o qual a garota o olhou
não escapou aos olhos do homem. Ele franziu gravemente o cenho.
— Não me venha com frescura, garota! Quando falar com você, quero que
faça uma cara amável, está ouvindo? E você, sua velha seca! — ele disse dando
um empurrão na mulata acorrentada à Emmeline. — Não me olhe assim! Vocês
tem que parecer feliz, escuta o que estou falando!
— Estou avisando — Legree falou dando alguns passos para trás —, olhem
pra mim, olhem pra mim, olhem bem dentro dos meus olhos, agora! — ele
gritou batendo o pé a cada pausa.
Como por encantamento, todos os olhos agora estavam olhando em direção
do olhar verde-acinzentado de Simon.
— Vejam bem — ele disse cerrando os punhos em algo parecido com um
martelo de ferreiro. — Estão vendo esses punho? Vejam como são pesado! —
ele disse, socando a mão de Tomás. — Olhem esses ossos! Bem, posso garantir a
vocês que esse punho está acostumado a dar cabo dos preto. Até hoje nunca vi
um preto que não tivesse caído com um único golpe — ele continou, colocando
o punho tão perto do rosto de Tomás que ele piscou e recuou. — Não tenho
ninguém pra tomar conta de vocês! Eu cuido do meu próprio negócio; e saibam
que não perco nada de vista! Quando eu falar, quero todos na ponta dos pés,
parados, num pulo. É assim que as coisas funcionam comigo. Não vão achar
nenhum ponto fraco em mim. Então, se comportem, porque eu não tenho dó!
As mulheres involuntariamente prenderam o fôlego e todo o resto sentou-se
com rostos tristes e melancólicos. Enquanto isso, Simon girou sobre os
calcanhares e marchou até o bar do barco para tomar um trago.
— É assim que me apresento aos meus preto — ele disse para um cavalheiro
que permaneceu em pé ao lado dele durante seu discurso. — Meu sistema é ser
forte desde o começo, pra eles saber o que vem pela frente.
— Com certeza! — disse o estranho olhando para Simon com a curiosidade
de um naturalista observando um espécime deslocado.
— Isso mesmo, com certeza! Não sou desses cavalheiro dono de fazenda,
com as mão delicada, que não faz nada o dia inteiro e são tapeado por algum
feitor velhaco! Sente meus ossos da mão; olha pros meus punho! Vou te dizer,
meu amigo, a carne aqui é dura feito pedra, de tanto praticar nos meus preto; dê
uma olhada!
O estranho colocou os dedos no material em questão e simplesmente
comentou:
— Realmente é muito duro e imagino — ele acrescentou — que a prática
também tenha lhe endurecido o coração.
— Ah, acho que sim — respondeu Simon com uma gargalhada. — Acho
que sou tão insensível como qualquer um. Vou te dizer, ninguém me afeta! Os
grito e as choradeira da negraiada não me atinge nem um pouco, isso lá é
verdade.
— Tem um lote muito bom aqui.
— Verdade — concordou Simon. — Tem aquele Tomás, que me disseram
ser bem incomum. Paguei um pouco alto, pensando em colocar ele como
cocheiro ou como administrador; só preciso tirar da cabeça dele as ideia que
aprendeu, tratando ele como os preto tem que ser tratado e ele vai ficar ótimo! A
mulata velha foi uma imposição. Acho que está doente, mas paguei o que ela
valia e acho que vai durar só um ou dois ano. Não fico tentando salvar os preto.
Uso e depois compro mais, esse é o meu jeito. Dá menos trabalho e tenho
certeza de que no final das conta sai mais barato — e Simon deu um gole.
— E quanto tempo eles geralmente duram? — perguntou o estranho.
— Não sei direito; depende da constituição deles. Sujeitos par-rudos duram
uns seis ou sete anos; os porcaria acabam em dois ou três. Quando comecei,
costumava passar pelo trabalho de cuidar deles, tentava fazer eles durar, levando
médico quando eles ficava doente, dando roupa e cobertor, tentando manter eles
decente e confortável. Meu Deus! Que perda de tempo! Perdi dinheiro neles e
me deu muito trabalho. Agora, veja bem, eu coloco eles pra trabalhar, doente ou
são. Quando um preto morre, compro outro. E acho que acaba sendo mais fácil e
mais barato, em todos os aspectos.
O estranho afastou-se e se sentou ao lado de um cavalheiro que estivera
ouvindo a conversa com contida indignação.
— Por favor, não deve tomar aquele sujeito como exemplo dos fazendeiros
sulistas — ele pediu.
— Espero que não! — comentou o jovem cavalheiro enfaticamente.
— Esse aí é um sujeito baixo, terrível e brutal! — disse o outro.
— E mesmo assim suas leis permitem que ele mantenha qualquer número de
seres humanos sujeitos ao seu desejo absoluto sem nem uma sombra de
proteção; e, por mais baixo que ele seja, não se pode dizer que não há outros
como ele.
— Bem — continuou o outro —, também há muitos homens humanos e
sensíveis entre os fazendeiros.
— Realmente — disse o jovem —, mas na minha opinião são vocês, homens
sensíveis e humanos, os responsáveis por toda a brutalidade e violência imposta
por esses miseráveis, pois, sem a conivência e a influência dos primeiros, o
sistema não duraria nem por uma hora. Se não houvesse fazendeiros diferentes
daquele — ele disse apontando o dedo para Legree, que estava de costas para
eles — todo o sistema viria por água abaixo. É sua respeitabilidade e sua
humanidade que permite e protege as brutalidades dele.
— Posso ver que o senhor realmente me tem em alta conta — disse o
fazendeiro, sorrindo. — Mas devo lhe aconselhar a não fazer tão alto, pois há
pessoas a bordo que podem não ser tão tolerantes à sua opinião como eu. É
melhor esperar até chegarmos à minha fazenda e lá poderá abusar de todos o
quanto quiser.
O jovem enrusbeceu e sorriu e os dois logo se ocuparam de um jogo de
gamão. Enquanto isso, outra conversa acontecia na parte baixa do barco, entre
Emmeline e a mulher mulata a quem ela estava acorrentada. Como era natural,
estavam trocando detalhes sobre suas histórias particulares:
— A quem você pertencia? — perguntou Emmeline.
— Bem, meu amo era o Sr. Ellis; morava na Rua Levee. Talvez você já viu a
casa.
— Ele era bom pra você? — continuou Emmeline.
— Geralmente sim, até ficar doente. Ele está doente, melhora e piora, faz
mais de seis mês e tem sido terrível. Parecia que não queria dar sossego pra
ninguém, dia e noite. Eu passava as noite acordada até que me cansei tanto e não
consegui mais ficar acordada; e uma noite eu peguei no sono, Meu Deus, ele
ficou muito zangado e disse que me venderia pro pior amo que pudesse
encontrar; ele também tinha prometido minha liberdade quando morreu.
— Você tinha amigos? — disse Emmeline.
— Sim, meu marido. Ele é ferreiro. O meu amo geralmente alugava ele. Ele
me vendeu tão rápido que não tive nem tempo de ver ele; e tenho quatro filho.
Ah, pobre de mim! — disse a mulher cobrindo o rosto com as mãos.
É um impulso natural em todas as pessoas, ao ouvirem uma história aflitiva,
buscar palavras de consolo para diminuir o sofrimento. Emmeline queria falar
alguma coisa, mas não conseguia pensar em nada para dizer. E o que havia a ser
dito? Como por consenso, ambas evitaram, por medo e horror, fazer qualquer
menção ao homem horrível a quem agora pertenciam.
De fato há uma confiança religiosa até mesmo para o momento mais
obscuro. A mulata era membro da Igreja Metodista e tinha um espírito religioso
sincero, ainda que pouco esclarecido. Emmeline fora educada com muito mais
esmero, aprendera a ler e a escrever e fora diligentemente instruída de acordo
com a Bíblia, sob os cuidados de sua senhora fiel e devota. Mesmo assim, não
seria um teste à fé do mais firme dos cristãos se encontrarem aparentemente
abandonados por Deus, subjugados à extrema violência? Quanto mais seria
necessário para abalar a fé de uma pobre cristã, jovem e inexperiente?
O barco seguia viagem, com sua carga pesada de sofrimento, pelas correntes
lamacentas, avermelhadas e tépidas através das curvas tortuosas e abruptas do
Rio Vermelho; e os olhos tristes olhavam perdidamente para as íngremes
ribanceiras cor de tijolo, à medida que deslizavam pela mesmice tediosa.
Finalmente o barco parou em uma cidadezinha e Legree desembarcou com seu
séquito.
32
LUGARES OBSCUROS

“Os lugares escuros do mundo estão cheios de habitações de


crueldade.”1

Caminhando pesarosamente atrás de uma carroça ruim e de uma estrada


ainda pior, Tomás e seus companheiros olhavam para a frente.
Na carroça, estavam sentados Simon Legree e as duas mulheres, ainda
algemadas, que foram colocadas junto com a bagagem na parte de trás; e todo o
grupo tentava encontrar a fazenda de Legree, que estava a uma boa distância
dali.
Era uma estrada inóspita e abandonada, agora serpenteando por entre o
terreno arenoso e úmido de pinheiros, onde o vento soprava sofregamente sobre
as trilhas de troncos de madeira e pelos pântanos de ciprestes; as árvores tristes
saindo do chão escorregadio e esponjoso, penduravam-se com longas coroas de
musgo negro, enquanto, vez ou outra, podia-se ver a forma assustadora de uma
cobra aquática deslizando entre os pedaços de troncos e galhos espalhados aqui e
ali, apodrecendo na água.
Esta jornada já é inconsolável o bastante para um viajante com os bolsos
cheios de dinheiro e um cavalo bem selado, percorrendo essa estrada solitária em
algum compromisso de negócios; mas é muito mais triste e selvagem para
homens condenados que, a cada passo, afastam-se cada vez mais daquilo que
amam e desejam.
Assim deveria pensar alguém que testemunhasse a expressão de profunda
tristeza daqueles rostos escuros, do cansaço melancólico e paciente com os quais
aqueles olhos tristes repousavam em cada objeto que passava por eles ao longo
dessa penosa jornada.
Simon, no entanto, continuava a viagem, aparentemente satisfeito, de
quando em quando sacando um frasco de bebida que carregava no bolso.
— Ei, vocês aí! — ele disse ao se virar para trás e dar uma olhada nos rostos
desanimados atrás dele. — Cantem uma canção, rapazes, vamos lá!
Os homens entreolharam-se, e o “vamos lá” foi repetido, com um ríspido
estalido da chibata que o condutor carregava nas mãos. Tomás começou a cantar
um hino metodista:

Jerusalém, minha feliz morada


Que me étão querida!
Quando meus sofrimentos terminarem
Encontraremos suas glórias…

— Cale a boca, seu preto maldito! — rugiu Legree. — Acha que eu ia querer
ouvir alguma coisa do seu velho inferno metodista? Cantem alguma coisa mais
alegre, agora, rápido!
Outro dos homens começou a cantar uma canção sem sentido, mas muito
comum aos escravos:

O amo me viu pegar um negrinho,


Mais alto, garotos, mais alto!
Ele morreu de rir, até o cair da noite
Ho! Ho! Ho! Rapazes
Ho! Yo! Hi! Hei! Ho!

O cantor parecia estar tirando a canção de sua cabeça, geralmente buscando


uma rima, sem se esforçar muito para fazer sentido; e todo o grupo se juntou ao
coro nos intervalos:

Ho! Ho! Ho!


Mais alto! Hei! Ho! Hei! Ho!

A canção foi entoada a todo pulmão, com uma falsa alegria; mas nenhum
suspiro de desespero, nenhuma prece fervorosa poderia lhes ter gerado uma
tristeza tão profunda como as notas selvagens do coro. Como se o pobre,
ingênuo coração, ameaçado — aprisionado — se refugiasse naquela canção de
santuário inarticulada, e encontrasse nela uma linguagem na qual soprasse suas
preces ao Senhor! Havia um orador entre eles, o qual Simon não podia ouvir. Ele
apenas ouvia o grupo cantando estridentemente, e se sentiu bem satisfeito; ele
estava fazendo com que eles “mantivessem o ânimo”.
— Bem, minha pequena — ele disse virando-se para Emmeline e colocando
a mão sobre o ombro dela. — Estamos quase chegando em casa.
Quando Legree blasfemava e tinha ataques de fúria, Emmeline ficava
aterrorizada; mas quando ele colovava a mão em cima dela e falava do jeito que
estava fazendo agora, ela preferiria que ele lhe batesse. A expressão nos olhos
dele lhe deixava com a alma enojada, e lhe causava arrepios na pele.
Involuntariamente, ela se aproximou da mulata ao lado dela, como se ela fosse
sua mãe.
— Você nem tem brincos! — ele disse pegando a orelhinha dela com seus
dedos ásperos.
— Não, senhor — respondeu Emmeline, tremendo e olhando para baixo.
— Bem, eu vou te dar um par de brincos de presente, se for uma boa garota.
Não precisa ter tanto medo; não tenho a intenção de fazer você trabalhar
muito.Você terá bons momentos comigo, e vai viver como madame; só precisa
ser boazinha.
Legree tinha bebido ao ponto de quase se tornar gentil; e foi mais ou menos
a esta altura que avistou os limites da fazenda. A propriedade anteriormente
pertencera a um cavalheiro de muito dinheiro e bom gosto, que dedicara
considerável atenção ao embelezamento do terreno. Ao morrer, insolvente,
Legree comprara a propriedade por uma barganha e a usava, assim como fazia
com tudo, meramente para ganhar mais dinheiro. O lugar tinha uma aparência de
destruição e abandono, que é sempre produzido pela evidência de que os
cuidados do proprietário anterior foram deixados à decadência.
O que um dia fora um gramado macio e bem aparado em frente à casa,
pontilhado aqui e ali por arbustos ornamentais, agora estava coberto de grama
emaranhada e desgrenhada, com postes para cavalos aqui e ali, onde a relva
desaparecera de tanto ser pisoteada, e o chão sujo com baldes quebrados,
sabugos de milho e outros restos de imundícies. Por todo lado jasmins
orvalhados e madressilvas penduravam-se toscamente de algum suporte
ornamental que fora puxado de lado para ser usado como poste para os cavalos.
O que um dia fora um grande jardim, agora estava coberto de ervas daninhas por
entre as quais brotavam florzinhas solitárias aqui e acolá. O que um dia fora uma
estufa, agora não tinha mais os batentes das janelas, e sobre as prateleiras
apodrecidas estavam alguns potes de flores secas e esquecidas, com galhos
dentro deles, cujas folhas ressequidas evidenciavam que um dia tinham sido
plantas.
A carroça continuou por um passeio de pedregulho coberto de mato, sob
uma notável avenida de árvores da China, cujas formas graciosas e folhagem
sempre verde pareciam ser as únicas coisas ali que não foram ameaçadas ou
alteradas, como espíritos nobres, profundamente enraizadas na bondade, para
florescer e crescer mais forte entre o desânimo e a decadência.
A casa um dia fora grande e bela. Construída à maneira sulista, tinha uma
varanda larga de dois andares ladeando toda a casa, para onde se abriam todas as
portas externas da casa, e a parte de baixo era apoiada por pilares de tijolos.
Contudo, o lugar parecia desolado e desaconchegante; algumas janelas
foram abertas com pedaços de madeira, outras com tecidos rasgados e cortinas
penduradas por apenas uma dobradiça, tudo demonstrando negligência e
desconforto profundos.
Pedaços de madeira, palha, velhos barris e caixas aprodrecidas espalhavam-
se pelo chão em todas as direções; e três ou quatro cães de aparência feroz,
alertados pelo som das rodas da carroça, vieram correndo, e não fosse pelo
esforço de criados esfarrapados que vieram atrás deles, teriam devorado Tomás e
seus companheiros.
— Bem podem ver o que espera vocês! — disse Legree, acariciando os
cachorros com um sorriso de satisfação, virando-se para Tomás e o grupo. —
Veja bem o que espera vocês se tentar fugir! Esses cachorro foram criado pra
caçar pretos, e vão adorar comer um de vocês no jantar. Então, se comportem!
Ei, Sambo! — ele disse para um sujeito em trajes esfarrapados com um chapéu
sem aba, que foi oficioso em suas atenções. — Como estão as coisas por aqui?
— Muito bem, senhor.
— Quimbo! — Legree falou para outro que estava fazendo cuidadosas
demonstrações para chamar a atenção do amo. — Fez o que mandei fazer?
— Acho que sim, não fiz.?
Esse dois negros eram as principais mãos da fazenda. Legree os treinara com
selvageria e brutalidade tão sistematicamente quanto treinara seus buldogues; e
após uma longa prática em maus tratos e crueldade, trouxe a natureza deles ao
mesmo nível de capacidade. É uma observação comum, e muito utilizada para a
forte militância contra o caráter da raça, que o feitor negro é sempre mais
tirânico e cruel do que o branco. Isso apenas prova que a mente do negro tem
sido mais agredida e aviltada do que a mente do branco. Não é mais verdade
para essa raça do que é para qualquer raça oprimida no mundo. O escravo é
sempre tirano se tiver a oportunidade de sê-lo.
Legree, assim como outros poderosos sobre quem estudamos na história,
governava sua fazenda baseado em um tipo de antagonismo de forças. Sambo e
Quimbo cordialmente se odiavam; os escravos da fazenda odiavam uns aos
outros e os dois, e, colocando uns contra os outros, ele tinha certeza de que
através de uma das três partes sempre seria informado sobre qualquer coisa que
acontecesse.
Ninguém pode viver absolutamente sem relacionamentos sociais; e Legree
encorajava seus dois satélites negros a certa familiaridade com ele; uma
familiaridade, no entanto, suscetível a que um ou outro se metesse em
enrascadas a qualquer momento, pois, sob a menor provacação, um deles sempre
estava pronto, num piscar de olhos, a ser o ministro da vingança sobre o outro.
Enquanto estavam ali ao lado de Legree, pareciam compor uma boa
ilustração do fato de que homens brutos são ainda mais baixos do que animais.
Seus traços rudes, escuros e pesados, seus olhos grandes revirando de inveja um
do outro, sua entonação semibruta, bárbara e gutural, as roupas esfarrapadas
voando ao vento; tudo estava admiravelmente de acordo com o caráter vil e
desagradável do lugar.
— Sambo! — ordenou Legree. — Leve esses rapaz para seus aposento; e
aqui está uma negrinha que trouxe pra vocês. — ele disse enquanto separava a
mulata de Emmeline e a puxava em direção a eles. — Prometi trazer uma pra
vocês, não foi?
A mulher deu um pulo para trás e disse repentinamente:
— Ah, meu amo! Deixei meu velho marido em Nova Orleans.
— E eu com isso? Não quer um aqui? Chega de falatório, saia daqui! —
disse Legree levantando o chicote.
— Vem, mocinha! — ele disse para Emmeline. — Você vem para dentro
comigo.
Um rosto escuro e selvagem foi visto, por um momento, olhando pela janela
da casa e, quando Legree abriu a porta, uma voz feminina disse algo em um tom
rápido e imperativo. Tomás, que estava olhando com interesse ansioso para
Emmeline quando ela entrou, notou a voz, e ouviu Legree responder com raiva:
— Dobre sua língua! Faço o que quiser com todos vocês!
Tomás não ouviu mais nada, pois logo estava seguindo Sambo até os
aposentos. Os aposentos ficavam em um tipo de rua com várias cabanas rústicas
e enfileiradas em uma parte da fazenda longe da casa. Tinham um ar de
abandono e brutalidade. O coração de Tomás quase parou ao vê-las. Para se
confortar, estivera pensando em uma cabana rústica com certeza, mas onde
pudesse ficar sozinho e tranquilo, onde tivesse uma prateleira para colocar sua
Bíblia e um lugar para ficar sozinho depois de suas longas horas de trabalho.
Olhou dentro de várias; não passavam de meras coberturas, destituídas de
qualquer tipo de mobília, exceto um monte de palha, coberta de pó, espalhada a
esmo pelo chão nu, endurecido pelos passos de inúmeros pés.
— Qual dessas é minha? — ele perguntou submissivamente a Sambo.
— Sei não; acho que cabe aqui — disse Sambo. — Ainda tem espaço; já tem
um monte de preto em cada uma; não sei onde enfiar mais ninguém.

Era tarde da noite quando os exaustos ocupantes das cabanas vieram em


bando para a casa, homens e mulheres, em trajes sujos e esfarrapados, tristes e
incomodados, sem nenhuma vontade de parecerem agradáveis para os recém-
chegados. A vida do pequeno vilarejo não ecoava sons convidativos; vozes
roucas e guturais confundiam-se nos moinhos onde a porção de milho ainda seria
moída para fazer a massa daquela que se constituiria a única refeição do dia.
Desde as primeiras luzes do dia eles estiveram nos campos, pressionados a
trabalhar sob os açoites dos feitores; pois agora estavam no pico e na pressa da
estação, e nenhuma possibilidade de pressionar a todos para trabalharem o
máximo possível era deixada de lado. “Sinceramente”, diz algum preguiçoso,
“colher algodão não é trabalho tão duro assim”. Não é? E também não é muito
inconveniente uma gota de água cair sobre a cabeça; não obstante, a pior tortura
da inquisição era derramar gota, após gota, após gota, a cada minuto, em uma
sucessão monótona, no mesmo lugar; e o trabalho em si fácil, torna-se difícil
pela pressão, hora após hora, da mesmice invariável e incansável, sem nem
mesmo a consciência do livre-arbítrio para lhe tirar o tédio. À medida que o
rebanho entrava, Tomás olhava em vão para o grupo procurando por algum rosto
conhecido. Viu apenas homens tristes, rancorosos e embrutecidos, e mulheres
fracas e desanimadas, ou mulheres que deixaram de ser mulheres; os fortes
afastando os fracos, o egoísmo humano bruto, selvagem e ilimitado de quem não
se espera nem se deseja nada de bom, seres que, tratados de todas as maneiras
como brutos, tranformaram-se em tais. O som dos moinhos estendia-se noite
adentro, e, aliás, eram muito poucos comparados ao número de pessoas, e os
mais fortes empurravam os mais cansados e fracos para trás, os quais, por sua
vez, alimentavam-se por último.
— Ei, você! — Sambo disse vindo em direção à mulata e atirando um saco
de milho na frente dela. — Qual seu nome?
— Lucy — respondeu a mulher.
— Bem, Lucy, agora você é minha mulher. Moa este milho e prepare o meu
jantar, entendeu?
— Não sou sua mulher coisa nenhuma, e não vou ser! — refutou a escrava
com a coragem súbita e ríspida do desespero. — Saia daqui!
— Então vou te dar uma surra! — Sambo falou levantando o pé
ameaçadoramente.
— Pode até me matar, se quiser. Quanto antes, melhor! Eu queria estar
morta! — ela respondeu.
— Olha, Sambo, continue sujando as mão e vou contar para o amo de você!
— gritou Quimbo, que estava ocupado no moinho, do qual ele violentamente
tirara duas ou três mulheres que agora esperavam para moer o milho.
— E vou dizer que não deixa as mulher chegar perto dos moinho, seu nego
velho! — disse Sambo. — Pega o moinho só pra você!
Tomás estava cansado pelo dia de trabalho, e quase desmaiava de fome.
— Aí está! — disse Quimbo atirando um saco áspero contendo uma porção
de milho. — Aí, preto, pega esse saco e cuide bem dele; não vai ter mais nada na
semana.
Tomás esperou até muito tarde para conseguir um lugar nos moinhos; e
então, tocado pelo absoluto cansaço de duas mulheres que ele vira tentando moer
o milho ali, fez o trabalho para elas, juntou as brasas do fogo onde muitos já
tinham assado seus pães antes delas, e então prosseguiu fazendo o seu próprio
jantar. Esse era um novo tipo de trabalho ali — um pouco de caridade, por
menor que fosse, mas que lhes acendeu uma chama no coração. Uma expressão
de bondade feminina tomou conta dos rostos delas; elas misturaram a massa para
ele e a coloraram para assar; Tomás sentou-se à luz do fogo e pegou sua Bíblia,
pois carecia de conforto.
— O que é isso? — perguntou uma mulher.
— Uma Bíblia — respondeu Tomás.
— Meu bom Deus! Não vejo uma desde o Kentuck.
— Foi criada no Kentuck? — perguntou Tomás com grande interesse.
— Sim, e muito bem criada também; nunca na vida esperei chegar a esse
ponto! — disse a mulher, suspirando profundamente.
— Mas que livro é esse? — indagou outra mulher.
— Uma Bíblia!
— Não diga que nunca viu uma na vida! — retrucou a outra mulher. — Eu
costumava ouvir a sinhá ler, às vezes, no Kentuck; mas, meu Deus! Aqui nós só
ouve palavrão e blasfêmia.
— Então leia um trechinho! — pediu a primeira mulher, curiosa, vendo
Tomás concentrado no livro.
Tomás leu:
— “Vinde a MIM todos os que estais cansados e sobrecarregados e eu vos
aliviarei.”
— São palavra bonitas — comentou a mulher. — Quem falou?
— O Senhor Deus — respondeu Tomás.
— Gostaria de saber onde encontrar Ele — disse a mulher. — Eu ia lá;
parece que nunca mais consigo descansar na vida. Meu corpo dói e eu tremo
todinha, todo dia, e Sambo sempre está me surrando porque não colho mais
rápido, e à noite, sempre passa de meia-noite quando consigo comer, e parece
que nem bem acabo de me virar e fechar os olho e já é de manhã de novo. Se eu
sabia onde estava o Senhor Deus, eu ia falar disso para ele.
— Ele tá aqui, em todo lugar — explicou Tomás.
— Ah, não vai querer que eu acredito nisso daí, né? Sei que Deus não está
aqui — refutou a mulher. — Nem adianta falar. Vou é me deitar e dormir
enquanto posso.
As mulheres voltaram às suas cabanas, e Tomás sentou-se sozinho perto do
fogo que ardia lentamente e refletia brilhos avermelhados sobre seu rosto.
A lua, crescente e prateada, apareceu no céu púrpura e, calma e silenciosa,
assim como Deus observa o cenário de miséria e opressão, olhava
tranquilamente para o negro solitário, sentado de braços cruzados com a Bíblia
em cima dos joelhos.
“Será que Deus está AQUI?”. Ah, como é possível para o coração ignorante
se manter firme na fé diante de tantos desgovernos e injustiças palpáveis e
irrepreensíveis? Naquele coração simplório nascia um conflito esmagador: a
terrível consciência dos desgostos, a perspectiva sombria de uma vida inteira de
sofrimento, a perda de todas as esperanças passando lamentavelmente diante da
alma. Como um marinheiro prestes a morrer afogado que vê diante de si,
trazidos pela onda escura, os cadáveres da esposa, do filho e do amigo! Ah, neste
lugar, como crer e confiar na premissa da fé cristã de que “Deus ESTá em todo
lugar e Ele RECOMPENSA todos aqueles que o buscam”?
Tomás levantou-se, desconsolado, e arrastou-se até a cabana para a qual fora
alocado. O chão já estava abarrotado de gente cansada e dormente, que o cheiro
podre do lugar quase o fez vomitar; no entanto, o ar úmido e pesado da noite
estava frio, e seu corpo estava exausto; assim, enrolando-se em um cobertor
surrado, que constituía sua única roupa de cama, esticou-se sobre a palha e
pegou no sono.
Nos sonhos, uma voz suave soou no seu ouvido; ele estava sentado no banco
de arbustos perto do Lago Pontchartrain, e Eva, com seus olhos sérios abaixados,
lia a Bíblia para ele; e ele a ouviu ler:
“Quando passares pelas águas, eu estarei contigo; quando, pelos rios, eles
não te submergirão; quando passares pelo fogo, não te queimarás, nem as
chamas arderão em ti. Porque eu sou o Senhor, teu Deus, o Santo de Israel, teu
Salvador.”
Aos poucos as palavras pareciam se dissipar e desaparecer, como em uma
música divina; a criança levantou os olhos profundos e fitou-o carinhosamente, e
raios de amor e conforto pareciam sair dos olhos dela e penetrar o coração do
escravo; e, como se levada pela música, ela pareceu voar com asas brilhantes,
das quais, como se fossem estrelas, caíam floquinhos e lantejoulas de ouro; e
então ela desapareceu.
Tomás acordou. Aquilo fora um sonho? Permita que seja. E quem diria que
aquele jovem espírito bondoso, cuja vida dedicara a confortar e consolar os
oprimidos, fora a escolhida de Deus para assumir esse ministério mesmo depois
da morte?

É maravilhoso saber
Que sobre nossas cabeças
Pairam os espíritos dos mortos
Com asas de anjos.
33
CASSY

“Prestem atenção: vi as lágrimas dos oprimidos, mas não há quem os


console; o poder está do lado dos seus opressores, e não há quem os
console.”
— Ecl. 4:1

Levou muito pouco tempo para Tomás se familiarizar com tudo o que
poderia ser esperado e temido em seu novo modo de vida. Era um trabalhador
exímio e eficiente em qualquer tarefa que fizesse e, tanto por hábito quanto por
princípio, fiel e disponível. De disposição tranquila e pacífica, ele esperava, por
diligência persistente, desviar de si mesmo pelo menos uma porção dos pecados
de sua condição. Ele viu abuso e sofrimento suficientes para deixá–lo enojado e
cansado; mas estava determinado a continuar trabalhando, com paciência
religiosa, confiando no correto julgamento de Deus, com a esperança de que
ainda houvesse alguma salvação.
Legree notou as habilidades de Tomás sem falar nada. Considerou-o escravo
de primeira linha, embora sentisse uma antipatia secreta por ele, a antipatia
natural do mal pelo bem. Via claramente que Tomás percebia toda vez que a
violência e brutalidade recaíam sobre os menos afortunados; pois a atmosfera da
opinião é tão sutil que se faz notada até mesmo sem palavras, e a opinião de um
escravo pode incomodar até mesmo a seu amo. Tomás, de várias maneiras,
manifestava um sentimento de bondade, uma comiseração por seus
companheiros desafortunados, estranhos e novos a ele, observado por Legree
com olhos de despeito. Ele comprara Tomás com a intenção de, um dia,
transformá-lo num tipo de administrador geral, a quem, às vezes, pudesse confiar
seus negócios durante suas curtas ausências; e, de acordo com sua opinião, o
primeiro, segundo e terceiro requisitos para essas funções era ter o coração duro.
Legree acreditava que, como Tomás não lhe fazia objeção, conseguiria endurecê-
lo ao longo do tempo e assim, após algumas semanas na fazenda, Legree estava
determinado a dar início ao processo.
Uma manhã, quando os escravos estavam reunidos para o campo, Tomás
notou, surpreso, uma novata entre eles, cuja aparência lhe chamou a atenção. Era
uma mulher alta e esguia, com mãos e pés extremamente delicados, vestida em
roupas bonitas e respeitáveis. Pela fisionomia talvez tivesse trinta e cinco ou
quarenta anos, e tinha um rosto que, depois de visto, nunca era esquecido,
daqueles que, à primeira vista, parecem nos passar uma ideia de história
selvagem, dolorosa e romântica. Sua testa era alta e suas sobrancelhas marcadas
com admirável beleza. O nariz reto e bem delineado, os lábios delgados, e o
contorno gracioso da nuca e do pescoço denunciavam que ela um dia fora de
grande beleza; no entanto, seu rosto era profundamente marcado por linhas de
dor, orgulho e arrogância. Sua tez era amarelada e doentia, o rosto magro, os
traços marcados e todo seu corpo desnutrido. Mas seus olhos eram sua
característica mais marcante — grandes, profundamente negros, sofregamente
desperados e selvagens. Havia um orgulho feroz e desafiador em cada linha de
seu rosto, em cada curva de seus lábios flexíveis, em cada movimento de seu
corpo; mas em seus olhos havia uma angústia marcante e indelével, uma
expressão tão desesperançosa e imutável que contrastava assustadoramente com
o desdém e o orgulho de seus modos.
De onde ela vinha e quem ela era, Tomás não sabia. Era a primeira vez que a
via, caminhando ao lado dele, ereta e orgulhosa, à luz cinzenta da madrugada. Os
escravos, no entanto, já a conheciam, pois havia muitos olhares e viradas de
cabeça e uma exaltação velada, porém aparente, entre as criaturas miseráveis,
esfarrapadas e quase mortas de fome pelas quais ela fora rodeada.
— Finalmente vai fazer alguma coisa! Bem feito! — disse alguém.
— Ha, ha, ha! — riu outro. Agora vai ver como é bom, madame!
— Vamos ver ela trabalhar!
— Quero só ver se ela vai ficar até a noite, como nós.
— Ia ficar feliz de ver ela levar uma surra!
A mulher ignorou esses comentáros e continuou andando com a mesma
expressão de arrogância raivosa, como se não estivesse ouvindo nada. Tomás
sempre vivera entre pessoas refinadas e bem educadas e sentiu, intuitivamente,
pelo seu ar e postura, que ela pertencia a essa classe; mas como e porquê ela
tinha chegado a essa situação degradante, não podia dizer. Embora a mulher não
tenha olhado nem falado com ele durante todo o caminho até o campo, ficou o
tempo todo ao lado dele.

Tomás logo se ocupou com seu trabalho, mas, como a mulher não estava
muito longe dele, sempre dava uma olhada para ela enquanto trabalhava. Ele
reparou, numa olhadela, que uma destreza e eficiência naturais tornavam o
trabalho uma tarefa mais fácil para ela do que para muitos dos outros. Ela colhia
de forma rápida e muito limpa, com ar de escárnio, como se desprezasse o
trabalho, a desgraça e a humilhação das circunstâncias nas quais fora colocada.
Ao longo do dia, Tomás estava trabalhando perto da mulata que fora
comprada no mesmo lote que ele. Ela encontrava-se, evidentemente, em
condições de grande sofrimento, e Tomás ouvia–a rezando enquanto cambaleava
e tremia e parecia prestes a desmaiar. Tomás, em silêncio, chegou perto dela e
transferiu várias porções de algodão de seu próprio cesto para o dela.
— Ah, não, não! — disse a mulher, parecendo supresa. — Vai arrumar
confusão pra você.
Nesse exato momento Sambo apareceu. Parecia ter um desprezo especial
pela mulher e, estalando seu chicote, disse em tom violento e gutural:
— O que é que está aprontando, Luce? — e, ao dizer isso, chutou a mulher
com seus sapatos de couro e atingiu o rosto de Tomás com seu chicote.
Tomás retomou seu trabalho em silêncio, mas a mulher, antes disso já quase
no limite da exaustão, desmaiou.
— Vou fazer ela voltar a si! — disse o feitor com um sorriso feroz. — Vou
dar para ela uma coisa melhor do que cânfora! — e tirando um alfinete da manga
do casaco, enfiou-o na carne da escrava. A mulher grunhiu e levantou-se um
pouco. — Levanta, sua besta, e trabalha, senão vou te mostrar outro truque!
Durante alguns momentos a mulher pareceu estimulada por uma força
incomum, e trabalhou com desesperada vontade.
— Continue assim — gritou o homem —, ou hoje à noite vai desejar ter
morrido, estou dizendo!
— Sei bem disso! — Tomás ouviu-a responder; e, de novo, ouviu-a dizer: —
Ah, meu Senhor, quanto tempo? Ah, Senhor, por que não ajuda a gente?
Mesmo diante de todo o risco que corria, Tomás caminhou mais para a frente
e colocou todo o algodão de seu cesto dentro do da mulher.
— Ah, não deve fazer isso! Não faz ideia do que vão fazer com você! —
avisou a mulher.
— Posso aguentar! — respondeu Tomás. — Mais do que você — e foi para
o lugar dele novamente. Um momento se passou.
De repente, a mulher estranha a quem descrevemos e quem, durante o curso
de seu trabalho, chegou perto de Tomás o suficiente para lhe ouvir as últimas
palavras, ergueu seus pesados olhos negros e fixou-os, por um segundo, no
negro; em seguida, tirando um punhado de algodão de seu próprio cesto,
colocou-o no dele.
— Você não conhece nada deste lugar — ela declarou. — Do contrário não
teria feito isso. Depois de estar aqui durante um mês, não ficará por aí ajudando
ninguém; vai achar difícil o bastante tomar conta da própria pele!
— Deus nos livrará disso, senhorita! — disse Tomás, usando instintivamente
com sua companheira de colheita a forma respeitosa e apropriada para os bem-
criados com quem ele vivera.
— Deus nunca visita essas paragens! — retrucou a mulher com amargura
enquanto continuava a fazer seu trabalho com agilidade; e, de novo, um sorriso
desdenhoso curvou os lábios dela.
Mas o movimento da mulher foi visto pelo feitor, do outro lado do campo; e
estalando seu chicote, ele chegou perto dela.
— Ei, ei! — ele gritou com a mulher com um ar triunfante. — Está querendo
me enganar? Tome tento! Está sob meus cuidado agora! Se comporta ou te
arrebento!
Um olhar de fuzilamento brilhou daqueles olhos negros e, levantando a
cabeça com os lábios tremendo e as narinas dilatadas, ela se levantou e fixou o
olhar de ódio e desdém no feitor.
— Cão! — ela respondeu. — Não ouse tocar em mim! Ainda tenho poder
suficiente para jogá-lo aos cães, queimá-lo vivo, ou fazer picadinho de você.
Basta que eu diga uma palavra!
— Então por que diabos está aqui? — perguntou o homem, evidentemente
amedrontado, dando um passo para trás. — Não tive a intenção de machucar,
madame Cassy!
— Fique longe de mim! — bradou a mulher. E, de fato o homem pareceu
muito inclinado a verificar alguma coisa do outro lado do campo, e se afastou
rapidamente.
A mulher voltou prontamente à sua atividade, e trabalhou com uma agilidade
que espantou Tomás. Ela parecia trabalhar por magia. Antes de o dia terminar,
tinha enchido o cesto, esvaziado e empilhado tudo, sem contar os punhados que
colocara no cesto de Tomás. Muito depois do pôr-do-sol, todo o grupo exausto,
com os cestos na cabeça, seguiu em fila até a instalação apropriada para o
depósito e a pesagem do algodão. Legree estava lá, conversando animadamente
com os dois feitores.
— Aquele Tomás vai dar muito trabalho; ficou colocando algodão dentro do
cesto da Lucy. Se o amo não prestar atenção, qualquer dia desse ele vai fazer os
preto tudo ficar alerta! — disse Sambo.
— Vai ver só, aquele preto maldito! — disse Legree. Vai ter que aprender,
né, rapazes?
Os dois negros deram um sorrisinho horrendo diante daquela intimação.
— Ah, com certeza! O amo Legree vai dar uma lição nele! Nem o diabo
faria melhor do que o senhor — declarou Quimbo.
— Bem, rapazes, a melhor maneira de mudar as ideia dele é encarregar ele
do chicote. Vão lá ensinar a lição!
— Meu Deus, o senhor vai ter muito trabalho para mudar as ideia desse
nego!
— Vai ter que mudar, de qualquer jeito! — disse Legree enquanto enrolava o
fumo na boca.
— E lá vai a Lucy, a vadia mais feia e irritante desse lugar! — comentou
Sambo.
— Cuidado, Sam. Vou começar a adivinhar o motivo de seu desprezo por
Lucy.
— O mestre sabe muito bem que ela não fez o que o mestre mandou e não
quis me aceitar quando eu dei as ordem pra ela.
— Se fosse você dava uma surra nela — disse Legree, cuspindo. — Só que
temos muito trabalho e não vale a pena fazer isso agora. Ela é franzina, mas
essas preta magricela é capaz de quase morrer pra fazer as coisa do jeito delas!
— Mas Lucy é mesmo muito irritante e preguiçosa, andando de um lado
para o outro sem fazer nada. E o Tomás, foi ele que encheu o cesto pra ela.
— Foi mesmo? Então Tomás terá o prazer de açoitar ela. Vai ser uma boa
prática pra ele, além do que vai acabar com a preta como vocês dois faria.
“Ha, ha, ha!”, riram os dois negros malditos; e os sons diabólicos pareciam,
de fato, uma expressão da personalidade demoníaca que Legree lhes conferira.
— Mas, senhor, Tomás e a Srta. Cassy, os dois encheram o cesto de Lucy.
Pode apostar que está com o peso certo, senhor!
— Eu vou fazer a pesagem! — informou Legree enfaticamente.
Os dois feitores, mais uma vez, soltaram sua gargalhada diabólica.
— A Srta. Cassy fez o dia de trabalho da Lucy.
— Ela colhe feito o diabo e todos seus anjo!
— Acho que ela tem o diabo no corpo! — disse Legree; e grunhindo um
juramento blasfemo, caminhou até a sala de pesagem.
Lentamente, as criaturas exaustas caminhavam para dentro da sala e,
relutantes e cabisbaixas apresentavam seus cestos para serem pesados.
Em uma lousa, Legree anotava o peso ao lado de cada nome escrito na lista.
O cesto de Tomás foi pesado e aprovado, e ele esperou ansioso pelo
resultado da mulher de quem tinha ficado amigo.
Cambaleando com fraqueza, ela se aproximou e entregou o cesto. Estava
bem pesada, como Legree pôde perceber, mas tomado pela fúria, ele disse:
— Sua besta preguiçosa! De novo fora do peso! Fique de lado e logo se verá
comigo!
A mulher deu um gemido de desespero profundo, e sentou-se em um banco.
A pessoa que fora chamada de madame Cassy agora se aproximou e, como
um ar negligente e arrogante, entregou seu cesto. Ao entregá-lo, Legree encarou-
a com um olhar desdenhoso, porém inquisitivo.
Ela fixou firmemente os olhos nele, mexeu os lábios levemente e disse algo
em francês. O que foi dito, ninguém sabe, mas o rosto de Legree transformou-se
em uma expressão diabólica quando ela falou; ele levantou a mão como se fosse
bater nela, um gesto para o qual ela olhou com desprezo selvagem enquanto se
virava e afastava-se.
— E agora venha até aqui, Tomás — chamou Legree. Eu já falei pra você
que não te comprei pro trabalho comum. Tenho a intenção de promover você e
tornar você um administrador, e esta noite já vai poder começar a tomar o gosto
pela coisa. Agora vá lá pegar aquela escrava pra dar umas chibatada; acho que já
viu o suficiente pra saber como se faz.
— Peço que me perdoe, senhor — disse Tomás. — Mas não me coloque
para fazer tal coisa, senhor. Não tô acostumado com isso, nunca fiz e não posso
fazer, de jeito nenhum.
— Vai aprender uma porção de coisas que ainda não sabe, antes que acabe
com você! — disse Legree pegando um chicote e dando um golpe pesado no
rosto de Tomás, seguindo a punição com uma saraivada de golpes.
— Aí está! — ele disse quando parou para descansar. — Ainda vai me dizer
que não vai fazer o que eu mandei?
— Sim, senhor — respondeu Tomás erguendo a mão para limpar o sangue
que escorria de seu rosto. — Posso trabalhar dia e noite e trabalhar enquanto
houver um sopro de vida em mim, mas não acho justo e nunca farei isso, senhor!
Nunca!
Tomás tinha a voz notalvemente suave e tranquila e modos geralmente
respeitosos, o que deu a Legree a ideia de que ele seria covarde e facilmente
persuadido. Ao dizer essas últimas palavras, a pobre mulher juntou as mãos e
disse “Ah, meu Deus!”, e todos olharam involuntariamente uns para os outros,
suspirando profundamente, como se estivessem se preparando para uma
tormenta prestes a explodir.
Legree parecia estupefato e confuso, mas finalmente explodiu:
— O quê? Preto miserável! Não venha me dizer que não acha justo fazer o
que eu mando! O que faz qualquer um de vocês, malditos animais, achar que
podem pensar o que é justo ou não? Talvez pense que é um cavalheiro, senhor
Tomás, pra dizer ao seu mestre o que é certo e o que não é! Então acha que é
injusto castigar a mulher!
— Acho sim, senhor — respondeu Tomás. — A pobre criatura tá fraca e
doente; ia ser muito cruel e eu nunca vou fazer isso, nem começar. Mestre, se
tem a intenção de me matar, me mate, mas nunca vou levantar a mão para
ninguém aqui, nunca. Antes disso prefiro morrer!
Tomás falou com uma voz suave, mas que não deixava dúvidas com relação
à sua decisão. Legree tremia de raiva; seus olhos esverdeados fuzilavam, e os
próprios bigodes pareciam se eriçar de ódio; no entanto, assim como um animal
feroz que brinca com sua vítima antes de devorá-la, controlou seu impulso de
violência imediata e falou com escárnio:
— Ora, ora! Finalmente um verdadeiro cão devoto entre nós, pecadores! —
um santo, um cavalheiro, não menos que isso, pra dizer a nós, pecadores, os
nossos pecados! Que criatura poderosa e santa deve ser! E você, seu pilantra,
que se diz tão religioso, nunca ouviu a Bíblia dizer “Criados, obedeçam a seus
mestres”? E eu não sou seu mestre? Não fui eu quem pagou mil e duzentos
dólares, em dinheiro vivo, por tudo o que está dentro dessa carcaça preta e
velha? Você não é meu, de corpo e alma? — ele perguntou, chutando Tomás
violentamente com sua bota. — Me diz!
Nas profundezas do sofrimento físico, curvado pela opressão brutal, essa
pergunta gerou um brilho de alegria e triunfo na alma de Tomás. Ele
repentinamente se esticou e olhando seriamente para o céu, enquanto as lágrimas
e o sangue lhe escorriam pelo rosto dilacerado, exclamou:
— Não, não, não! Minha alma não lhe pertence, meu senhor! Não comprou,
pois não pode comprar ela! Ela foi comprada e paga por aquele que é capaz de
protegê-la; independentemente do que faça, não pode me machucar!
— Não posso? — perguntou Legree com uma fungada. — É o que veremos!
Sambo, Quimbo, deem uma sova tão boa nesse cão a ponto de ele não conseguir
levantar o mês inteiro!
Os dois negros gigantes que agora seguravam Tomás, com exultação
demoníaca em seus rostos, poderiam ser a própria personificação das forças
maléficas. A pobre mulher gritou de apreensão e todos se levantaram, num
impulso generalizado, quando os dois escravos arrastaram Tomás, sem
resistência, para fora do lugar.
34
A HISTÓRIA DA QUADRARONA

“Prestem atenção: vi as lágrimas dos oprimidos, mas não há quem os


console; o poder está do lado dos seus opressores e não há quem os
console. Louvei mais aos mortos que já se foram do que aos vivos que
ainda vivem.”
— Ecl. 4:2

Era tarde da noite e Tomás encontrava-se gemendo e sangrando sozinho, em


um velho barracão de gim, entre os pedaços de maquinário quebrado, fardos de
algodão estragado e outros lixos acumulados no lugar.
A noite estava úmida e fechada, e o ar espesso formigava com uma miríade
de insetos que aumentava ainda mais a interminável tortura de seus ferimentos, à
medida que uma sede ardente, a pior de todas as torturas, ultrapassava até
mesmo o pior de seus ferimentos físicos.
— Ah, meu bom Deus! Tenha compaixão! Me dá forças! Me dá forças
acima de tudo! — pedia Tomás em meio à sua agonia.
Ouviram-se passos adentrando no barracão, atrás dele e a luz de uma
lanterna brilhou nos olhos dele.
— Quem está aí? Ah, pelo amor de Deus, me dê um pouco de água!
A mulher, Cassy — pois era mesmo ela — apoiou a lanterna e, servindo
água de uma garrafa, ergueu a cabeça de Tomás e deu-lhe de beber. Ele sorveu
um gole atrás do outro com vontade febril.
— Beba o quanto quiser — ela disse. — Eu sabia que seria assim. Não é a
primeira vez que saio à noite para dar água a pessoas que padeceram do mesmo
mal que sofre agora.
— Obrigada, sinhá! — Tomás disse quando acabou de beber.
— Não me chame de sinhá! Sou uma escrava miserável, assim como você; o
tipo mais baixo que pode existir! — ela falou amargamente. — Mas agora — ela
disse indo até a porta e puxando uma pequena paillasse1 sobre a qual ela
espalhara tecidos embebidos em água fria —, tente, meu pobre homem, rolar pra
cima disso.
Endurecido pelos ferimentos, Tomás demorou para conseguir fazer esse
movimento; mas, ao terminar, sentiu um sensível alívio com o contato
refrescante do linho em suas feridas.
A mulher, já muito acostumada às vítimas da brutalidade, tinha se
familiarizado com as artes da cura, e continuou a fazer as aplicações nos
ferimentos de Tomás que, por isso, logo se sentiu um pouco melhor.
— Pronto — disse a mulher ao lhe erguer a cabeça e apoiá-la em um rolo de
algodão avariado que serviu de travesseiro. — Isso é o melhor que posso fazer
por você.
Tomás agradeceu-a, e a mulher, sentada no chão, puxou os joelhos e,
abraçando-os, olhou fixamente para a frente, com uma expressão amarga e
sofrida de apoio. Seu chapéu caiu para trás e longos cachos ondulados de cabelo
preto lhe emolduraram o rosto singular e melancólico.
— Não adianta nada, meu pobre amigo! — ela finalmente falou. — Não
adianta nada, isso que está tentando fazer. Foi um sujeito corajoso, tinha a justiça
ao seu lado, mas é tudo em vão e não vale a pena lutar contra isso. Está nas mãos
do demônio! Ele é mais forte, e você deve ceder!
“Ceder? E não foi isso que a fraqueza humana e a agonia física tinham
suspirado antes?”, Tomás pensou, pois aquela mulher amarga, de olhos
desesperados e voz melancólica lhe parecia a personificação da tentação contra a
qual ele estivera lutando.
— Ai, Deus! Ai, Deus! — ele gemeu. — Como posso ceder?
— Não adianta chamar a Deus; Ele nunca ouve — refutou a mulher
rispidamente. — Acho que não existe Deus nenhum; ou se há, está contra nós.
Tudo está contra nós, céu e terra. Tudo nos empurra em direção ao inferno. E por
que não devemos ir?
Tomás fechou os olhos e deu de ombros para as palavras descrentes.
— Veja bem — continuou a mulher. — Você não sabe de nada; mas eu sei.
Estou neste lugar há cinco anos, corpo e alma sob os pés desse homem, e o odeio
tanto quanto odeio ao próprio demônio! Aqui estamos, em uma fazenda solitária,
a vinte quilômetros de distância de qualquer outra, no meio dos pântanos;
nenhum branco aqui que possa testemunhar se formos queimados vivos, se
escaldado, cortado em pedaços, jogado aos cães, enforcado ou açoitado até a
morte. Não há lei aqui, nem de Deus nem dos homens, que possa fazer o
mínimo, por você ou por mim. E esse homem! Não há coisa nenhuma neste
mundo que ele não faça! Poderia fazer o cabelo arrepiar e os dentes tilintar se
contasse o que já vi e sei das coisas que acontecem aqui, e não adianta resistir!
Acha que eu queria viver com ele? Justo eu, que fui uma mulher criada com
tanta delicadeza? E ele, pelo amor de Deus, o que ele foi, o que ele é? Mesmo
assim, vivi com ele durante esses cinco anos e amaldiçoei cada minuto da minha
vida, dia e noite! E agora ele arrumou uma nova, uma jovenzinha, de apenas
quinze anos, e ela foi criada de acordo com a religião. Sua bondosa senhora a
ensinou a ler a Bíblia e ela trouxe a Bíblia para cá, para esse inferno! — e a
mulher deu uma risada selvagem e sofrida que se espalhou com um som
estranho e sobrenatural pelo velho barracão arruinado.
Tomás enlaçou as mãos; tudo era horror e escuridão.
— Ah, Jesus! Meu Senhor Jesus! Será que se esqueceu de suas pobres
criaturas? — ele finalmente disse. — Socorro, senhor, estou morrendo!
A mulher continuou com firmeza:
— E acha que esses cães miseráveis com quem trabalha merecem que sofra
por eles? Cada um se virará contra você na primeira oportunidade. Todos são tão
baixos e cruéis uns com os outros quanto podem ser; não adianta sofrer para
evitar machucá-los.
— Coitados! — disse Tomás. — O que os fez serem tão cruéis? E se eu
ceder, hei de me acostumar com isso e, pouco a pouco vou ser como eles! Não,
não, senhorita! Já perdi tudo: esposa, filhos, casa e um mestre bondoso, que teria
me libertado se ele tivesse vivido apenas uma semana a mais. Já perdi tudo neste
mundo, e tudo ficou para trás, para sempre; não posso perder o paraíso também;
não, não posso, além de tudo, ser maldito.
— Mas o Senhor não pode atribuir os pecados a nós — disse a mulher. —
Ele não há de pensar que somos culpados, quando somos forçados a fazer o que
fazemos; ele imputará os pecados àqueles que nos obrigaram a cometê-los.
— Sim — concordou Tomás. — Mas isso não faz com que a gente não seja
amaldiçoado. Se um dia eu tiver o coração tão endurecido e tão ruim como
aquele Sambo, não fará diferença pra mim como eu chego no final; tenho medo
do que é ser assim.
A mulher fixou um olhar desvairado e assustado em Tomás, como se uma
nova ideia tivesse lhe passado pela cabeça; e então, gemendo com pesar, ela
disse:
— Ah, meu Deus, tenha piedade! Você tem razão! Ai! Ai! Ai! — e, com
grunhidos, ela caiu no chão, como alguém esmagado e pisoteado por alguma
extrema angústia mental.
Houve um silêncio, por alguns intantes durante os quais a respiração de
ambos podia ser ouvida, quando Tomás disse baixinho:
— Ah, por favor, senhorita!
A mulher levantou-se subitamente, com o rosto refeito à sua expressão rígida
e melancólica de sempre.
— Por favor, senhorita, eu vi eles jogarem meu casaco naquele canto, e no
bolso está minha Bíblia; pode fazer a gentileza de pegar ele pra mim?
Cassy foi até lá e pegou-a. Tomás abriu-a prontamente, em uma passagem
marcada, bem batida, de uma das últimas cenas da vida de Cristo, na qual por
aquelas chibatadas somos curados.
— Se a senhorita puder fazer a bondade de ler isso, me aliviaria mais do que
a própria água.
Cassy pegou o livro, com uma expressão seca e orgulhosa e passou os olhos
sobre a passagem. Em seguida leu em voz alta, com uma voz suave, e com uma
beleza de entonação muito peculiar, com um pouco de angústia e glória. Às
vezes, enquanto lia, a voz dela falhava e, outras vezes, não saía, então ela parava
com um ar de compostura fria, até que conseguisse se recuperar. Quando chegou
às palavras tocantes “Pai, perdoe-os, pois eles não sabem o que fazem” ela
abaixou o livro e, enfiando o rosto na massa pesada de cabelo, soluçou alto, com
violência consulsiva.
Tomás também chorava e, de vez em quando, soltava algumas palavras.
— Se a gente pudesse acreditar nisso! — disse Tomás. — Parece ser tão
natural para Ele, mas nós temos que lutar tanto para isso! Ah, Senhor, nos ajude!
Ah, abençoado Senhor Jesus, nos ajude!
— Senhorita — Tomás chamou depois de um tempo. — Posso perceber que,
de alguma forma, está muito acima de mim; mas há uma coisa que a senhorita
ainda poderá aprender com o velho Tomás. A senhorita disse que Deus está
contra nós, pois deixa a gente ser abusado e surrado; mas veja só o que
aconteceu com o Filho Dele, o abençoado Senhor da Glória. Ele não foi sempre
pobre? E será que qualquer um de nós algum dia chegou tão no fundo do poço
quanto Ele? O Senhor não se esqueceu de nós, tenho certeza disso. Se a gente
sofre como ele, também reinaremos, diz a Escritura; mas, se o negamos, ele
também nos negará. Eles todos não sofreram? O Senhor e todos os seus? Eles
foram apedrejados e perseguidos, e perambularam em peles de ovelha e cabra, e
foram destituídos, afligidos e atormentados. O sofrimento não é motivo pra fazer
a gente pensar que o Senhor nos abandonou; muito pelo contrário; devemos nos
segurar nele e nunca ceder ao pecado.
— Mas por que Ele nos coloca onde não podemos fazer outra coisa senão
pecar? — perguntou a mulher.
— Acho que podemos, sim — respondeu Tomás.
— Veja, o que você vai fazer? — indagou Cassy. Amanhã eles vão te surrar
de novo. Conheço-os bem; já vi tudo o que são capazes de fazer. Não consigo
imaginar o que vão fazer com você; e farão com que, no final, acabe cedendo!
— Senhor Jesus! — implorou Tomás. — Você vai tomar conta de minha
alma? Ah, meu Pai, por favor! Não me deixe sucumbir.
— Ah, meu caro! — disse Cassy. — Já ouvi todos esses lamentos e todas
essas preces antes; ainda assim, todos acabaram sucumbindo e se submetendo.
Emmeline está tentando se segurar e você também, mas pra quê? Deve ceder ou
vão matar você aos poucos.
— Que seja, então, vou morrer! — refutou Tomás. — Podem judiar de mim
o quanto quiserem, mas não vão conseguir evitar minha morte! E, depois disso,
não poderão fazer mais nada. Estarei livre, estarei bem! Sei que Deus há de me
ajudar a passar por tudo isso!
A mulher não respondeu; apenas sentou-se com seus olhos negros
intensamente fixados no chão.
— Talvez seja assim mesmo — ela murmurmou. — Mas, para aqueles que
já cederam, não há mais esperanças! Nenhuma! Vivemos na podridão e nos
tornamos repugnantes, até repugnarmos a nós mesmos! E desejamos morrer, mas
não ousamos nos matar! Sem esperança! Sem esperança! Sem esperança! E essa
garota agora, tão jovem quanto eu era!
“Você me enxerga”, ela continuou, falando com Tomás muito rapidamente.
“Vê o que sou! Bem, eu fui criada no luxo; a primeira lembrança que tenho da
vida é de brincar, quando era uma criança, em pátios esplêndidos; de ser vestida
como uma boneca, e as pessoas e visitas costumavam me elogiar. As janelas do
salão davam para um jardim, e lá eu costumava brincar de esconde-esconde sob
as laranjeiras, com meus irmãos e irmãs. Fui para um convento, e lá aprendi
música, francês, bordados, e não sei mais o quê; e quando fiz catorze anos, saí
para ir ao funeral de meu pai. Ele morreu repentinamente, e quando a
propriedade foi colocada à venda, descobriram que mal havia o suficiente para
cobrar as dívidas; e quando os credores fizeram um inventário da propriedade,
fui colocada nele. Minha mãe era uma escrava, e meu pai sempre teve a intenção
de me alforriar; mas não o fez e então fui colocada na lista do inventário. Sempre
soube quem eu era, mas nunca pensei muito sobre o assunto. Ninguém espera
que um homem forte e saudável vá morrer. Meu pai estava bem apenas quatro
horas antes de morrer; foi um dos primeiros casos de cólera em Nova Orleans.
No dia seguinte ao funeral, a esposa de meu pai pegou os filhos e foi embora
para a fazenda do pai dela. Achei que eles me trataram de forma estranha, mas
não sabia. Havia um jovem advogado encarregado de resolver os negócios, e ele
vinha todos os dias, andava pela casa e falava muito gentilmente comigo. Um
dia trouxe com ele um jovem que achei ser a coisa mais linda que já tinha visto.
Nunca me esquecerei daquela noite. Caminhei com ele pelo jardim. Eu estava
sozinha e cheia de tristeza, e ele foi tão bom e gentil comigo e me disse que tinha
me visto antes de eu ir para o convento, e que me amava muito e que seria meu
amigo e meu protetor; em resumo, ele não me disse, mas tinha pagado dois mil
dólares por mim e eu era propriedade dele; e eu me entreguei a ele de boa
vontade, pois o amava. Amava!”, a mulher enfatizou, fazendo uma pausa. “Ah,
como eu amei aquele homem! Como ainda o amo agora, e sempre o amarei, até
o último suspiro! Ele era tão lindo, tão nobre, tão cheio de classe! Acomodou-me
em uma linda casa, com criados, cavalos, carruagens, mobília e vestidos. Tudo o
que o dinheiro podia comprar ele me deu. Eu o amava mais do que a Deus e à
minha própria alma e, mesmo que tentasse, não era capaz de fazer nada contra a
vontade dele.
“Eu só queria uma coisa na vida: queria que ele se casasse comigo. Achava
que, se ele me amava tanto quanto dizia, e se eu era o que ele parecia pensar que
eu era, ele quereria se casar comigo e me dar a liberdade. Mas ele me convenceu
de que aquilo seria impossível e me disse que se fôssemos fiéis um ao outro, isso
já era um casamento aos olhos de Deus. Se aquilo era verdade, eu não era a
esposa daquele homem? Eu não era fiel? Durante sete anos, não observei cada
olhar e cada movimento e apenas vivi e respirei para agradá-lo? Ele teve febre
amarela e durante vinte dias e noites eu cuidei dele. Eu sozinha, dava a ele todos
os remédios e fazia tudo por ele; e então ele me chamava de seu anjo bom e dizia
que eu lhe salvara a vida. Tivemos dois filhos lindos. O primeiro foi um garoto,
e o chamamos de Henry. Ele era a imagem do pai, tinha os olhos e a cabeça tão
lindos, e seu cabelo se pendurava em cachos; tinha o espírito do pai, e seu
talento também. Ele dizia que a pequena Elise se parecia comigo. Ele costumava
me dizer que eu era a mulher mais linda da Louisiana, e que tinha muito orgulho
de mim e das crianças. Ele adorava que eu os vestisse bem e nos levava, a mim e
às crianças, para passear pela cidade em uma carruagem aberta, para ouvir os
comentários que as pessoas faziam sobre nós; e costumava encher meus ouvidos
constantemente com os elogios feitos a mim e aos filhos. Ah, que dias felizes
eram aqueles! Eu pensava ser tão feliz quanto se poderia ser! Mas então vieram
tempos horríveis! Um primo dele, muito seu amigo e a quem admirava muito,
veio à Nova Orleans; mas, desde a primeira vez em que o vi, não sabia por que,
tive horror a ele, pois senti que nos traria sofrimento. Passou a levar Henry para
sair com ele, e muitas vezes não voltava para casa antes das três da manhã. Eu
não ousava dizer uma só palavra, pois Henry estava tão bem-humorado e eu
tinha medo. O primo levou Henry para as casas de jogos, e ele era um daqueles
tipos que, uma vez lá dentro, não havia como segurá-lo. Então lhe apresentou a
outra mulher, e logo percebi que o coração dele não me pertencia mais. Ele
nunca me disse, mas eu via, sentia dia após outro o meu coração partir-se, mas
não podia dizer uma só palavra! Diante disso, o maldito se ofereceu para
comprar a mim e às crianças para saldar as dívidas de jogo de Henry, que se
tornaram um empecilho para se casar conforme queria: e ele nos vendeu! Um dia
ele me disse que tinha negócios para resolver no campo e que se ausentaria por
duas ou três semanas. Falou comigo com mais carinho do que o de costume, e
disse que voltaria logo; mas nunca me enganou. Eu sabia que tinha chegado a
hora. Fiquei petrificada; não podia falar tampouco derramar uma lágrima. Ele
me beijou, beijou as crianças muitas vezes, e saiu. Eu o vi montar no cavalo e o
observei até o perder de vista; então caí e desmaiei.
“Então ele veio, o maldito! Veio para tomar posse. Disse-me que comprara a
mim e a meus filhos e me mostrou alguns papéis. Eu o blasfemei diante de Deus
e lhe disse que preferia morrer a viver com ele.
“‘Faça como quiser’, disse o primo. ‘Mas, se não se comportar direito,
venderei as duas crianças e você nunca mais as verá de novo.’
“Ele me disse que sempre quis me possuir, desde a primeira vez que me viu.
E que tinha carregado Henry com ele e o fizera contrair dívidas com o objetivo
de fazê-lo vender-me. Que fê-lo apaixonar–se por outra mulher e que eu deveria
saber, depois de tudo aquilo, que ele não se deixaria vencer por alguns ataques
histéricos, lágrimas ou coisas do tipo.
“Cedi porque estava de mãos atadas. Ele tinha meus filhos; toda vez que eu
resistia aos desejos dele, ele falava em vendê-los e me fazia tão submissa quanto
queria. Ah, que vida aquela! Viver com o coração partindo todos os dias,
continuar amando quando tudo era sofrimento; e estar ligada, de corpo e alma, a
alguém a quem odiava. Com Henry eu gostava muito de ler, de brincar, de
dançar e cantar; mas tudo o que eu fazia para esse outro era um grande
aborrecimento; mesmo assim eu tinha medo de lhe recusar qualquer coisa. Ele
era muito rígido e dominador com as crianças. Elise era muito tímida, mas
Henry era muito atrevido e altivo como o pai. Estava sempre encontrando
defeitos e discutindo com o garoto, e eu me acostumei a viver com medo e
tormentos diários. Tentava fazer as crianças obedientes; tentava mantê-los à
distância, pois me agarrava àquelas crianças como à morte; mas de nada
adiantou. Ele vendeu as duas crianças. Um dia me levou para passear e quando
voltei para casa elas não estavam mais lá! Disse-me que as vendera; mostrou-me
o dinheiro, o preço do sangue delas. Então pareceu que tudo de bom no mundo
se fora. Eu delirava e blasfemava; amaldiçoava Deus e os homens e, durante um
tempo, acredito que ele realmente teve medo de mim. No entanto, não desistiu.
Disse-me que meus filhos foram vendidos, mas que dependia de mim se eu
quisesse vê-los novamente e que, se eu não obedecesse, eles sofreriam mais
ainda. Bem, pode-se fazer qualquer coisa a uma mulher quando se tem seus
filhos. Ele me obrigou a submeter-me; fez-me acalmar-me; enganou-me com
esperança de que, talvez, pudesse comprá-los de volta; e assim as coisas foram
indo, durante uma ou duas semanas. Um dia, passando pela prisão, vi uma
multidão em frente ao portão e ouvi a voz de uma criança e, de repente, o meu
Henry escapou de dois ou três homens que o seguravam e correu, gritando e se
agarrando ao meu vestido. Eles vieram atrás dele, xingando vigorosamente, e um
homem, cujo rosto nunca mais esquecerei, disse a ele que não fugiria tão fácil
assim, que iria com ele até a prisão e que lhe daria uma lição da qual jamais se
esqueceria. Tentei implorar e argumentar, mas eles apenas riram; o pobre
garotinho gritava e me olhava no rosto e se agarrava a mim até que, ao puxá-lo,
rasgaram a saia do meu vestido pela metade e o carregaram enquanto gritava
‘Mamãe! Mamãe! Mamãe!’. Havia um homem em pé ali que pareceu se
compadecer de mim. Ele balançou a cabeça e contou que o homem dissera que o
garoto fora desobediente e insolente desde quando o comprara; que ele iria lhe
ensinar uma lição de uma vez por todas. Eu me virei e corri e, a cada passo,
parecia ouvi-lo gritar. Entrei na casa, corri sem fôlego até o pátio, onde encontrei
Butler. Contei tudo a ele e implorei para que fosse lá e interferisse. Ele apenas
riu e me disse que o garoto ia ter o que merecia. Disse que ele tinha que receber
uma lição, quanto mais cedo melhor. ‘O que você esperava?’, ele perguntou.
“Pareceu-me que algo dentro de minha cabeça saiu do lugar naquele
momento. Senti-me zonza e furiosa. Lembro-me de ver uma enorme faca de
caçador sobre a mesa; lembro-me de pegá-la e voar para cima dele; e então tudo
ficou escuro e eu não sei mais o que se passou, durante dias e dias.
“Quando voltei a mim, estava em um lindo quarto, mas não era o meu. Uma
velha senhora negra me assistia e um médico veio me ver, e houve grandes
cuidados comigo. Um tempo depois, descobri que Butler havia ido embora e me
deixado na casa para ser vendida, e era por isso que estavam tomando tantos
cuidados comigo.
“Eu não queria ficar boa e não esperava ficar, mas, apesar disso, a febre
passou e eu fui melhorando e finalmente saí da cama. Então, obrigaram-me a me
vestir com esmero todos os dias, e os cavalheiros entravam, paravam, fumavam
seus charutos, me olhavam, faziam perguntas e discutiam o meu preço. E estava
tão triste e silenciosa que nenhum deles me queria. Ameaçaram me açoitar se eu
não me animasse mais e não fizesse algum esforço para parecer mais agradável.
Finalmente, um dia veio um cavalheiro chamado Stuart. Ele pareceu gostar de
mim; viu que havia algo terrível em meu coração e veio me ver sozinho, muitas
vezes, e finalmente me persuadiu a lhe contar tudo. Ele finalmente me comprou,
e prometeu fazer tudo que pudesse para encontrar e comprar meus filhos de
volta. Foi ao hotel onde o meu Henry estava; disse a ele que o garoto fora
vendido a um fazendeiro no Rio Pearl, e foi a última notícia que tive dele.
Depois Stuart descobriu onde estava minha filha; uma velha senhora a mantinha.
Ele ofereceu uma imensa quantia por ela, mas não quiseram vendê-la. Butler
descobriu que a queriam por minha causa e me mandou o recado de que eu
nunca a teria. O Capitão Stuart foi muito bom para mim; ele tinha uma fazenda
esplêndida e me levou até lá. Em um ano, tive um filho. Ah, aquela criança!
Como eu a amava! E como ele se parecia com o meu pobre Henry. No entanto,
eu já tinha tomado a decisão, sim, já tinha. Nunca mais deixaria uma criança
crescer! Tomei o pequenino nos braços, quando ele tinha duas semanas, beijei-o,
chorei em cima dele, depois dei láudano a ele, e apertei-o no peito enquanto ele
adormecia até a morte. Como sofri e chorei por causa disso! E quem seria capaz
de dizer que não lhe dei láudano por engano? Mas essa é uma das coisas pelas
quais fico feliz agora. Não me arrependo até hoje; ele, ao menos, não sofre. Não
poderia ter lhe dado melhor morte, pobre criança! Tempos depois a cólera
chegou, e o Capitão Stuart morreu; todos que queriam viver morriam, e eu, que
pensava estar às portas da morte, eu vivi! Depois fui vendida e passada de mão
em mão, até ficar encarquilhada e enrugada; então tive a febre e esse maldito me
comprou e me trouxe até aqui, e aqui estou!”
A mulher parou. Ela contara sua história com uma urgência selvagem e
passional, às vezes parecendo endereçá-la a Tomás, às vezes fazendo um
solilóquio. A força com que falava era tão veemente e poderosa que, durante
alguns minutos Tomás esquecera até mesmo da dor de seus ferimentos e,
apoiando-se em um dos cotovelos, observou-a caminhando ansiosamente de um
lado para o outro, seus longos cabelos negros balançando pesadamente enquanto
ela se movia.
— Você me diz — ela falou depois de uma pausa — que há um Deus; e que
esse Deus olha e vê todas essas coisas. Talvez seja assim. As irmãs no convento
costumavam falar sobre o Dia do Julgamento, quando tudo viria à luz; e será que
também haverá vingança? Eles não fazem ideia do que nós e nossos filhos
sofremos, nem imaginam! É uma questão menor; ainda assim, já andei pelas ruas
quando parecia ter tristeza o bastante em meu coração para afundar uma cidade.
Sim! E no Dia do Julgamento final ficarei diante de Deus, uma testemunha
contra todos aqueles que arruinaram a minha vida e a dos meus filhos, corpo e
alma!
“Quando era menina, achava que era religiosa; amava a Deus e rezava.
Agora sou uma alma perdida, tomada pelos demônios que me atormentam noite
e dia; eles me provocam. Qualquer dia ainda hei de fazer alguma besteira!”, ela
disse fechando a mão enquanto uma luz insana brilhou em seus pesados olhos
negros. “Vou mandá-lo para onde pertence, e bem rápido, numa dessas noites,
nem que me queimem viva por isso!”
Uma risada alta e desvairada ecoou pelo cômodo vazio e terminou em um
soluço histérico; ela se jogou no chão, em soluços e tremores convulsivos.
Em poucos momentos, o frenesi passou e ela se levantou lentamente,
parecendo ter voltado a si.
— Posso fazer algo mais por você, pobre amigo? — ela disse se
aproximando de onde Tomás estava deitado. — Quer que lhe dê mais água?
Havia uma doçura graciosa e misericordiosa na voz e nos modos dela ao
dizer aquilo que contrastava com o desvario anterior.
Tomás bebeu água e olhou séria e piedosamente para o rosto da mulher.
— Ah, senhorita, gostaria que recorresse Àquele que pode salvá-la!
— Recorrer a Ele? Onde Ele está? Quem é Ele? — perguntou Cassy.
— Aquele sobre quem leu para mim, o Senhor.
— Quando era uma garotinha, costumava ver a figura dele sobre o altar —
disse Cassy, seus olhos negros fixos em uma expressão de sonho desolado. —
Mas Ele não está aqui! Não há nada aqui, exceto pecado e um imenso e
profundo desespero! Ah! — ela colocou a mão sobre o peito e respirou fundo,
como se para retirar um grande peso do coração.
Tomás parecia querer falar de novo, mas ela o cortou com um gesto
decisivo.
— Não diga nada, meu pobre amigo. Tente dormir, se puder.
E, colocando a água ao alcance do escravo e tomando todas as providências
possíveis para o conforto dele, Cassy saiu do barracão.
35
LEMBRANÇAS DO TEMPO

“E são efémeras as coisas que nos trazem


De volta ao coração o peso do que se foi para sempre;
Um som, uma flor, o vento, o oceano podem ferir
E despertar a corrente elétrica à qual estamos sobriamente ligados.”
— A Peregrinação de Childe Harold, Canto 4.1

A sala de estar da casa de Legree era grande e comprida, com uma lareira
ampla e larga. Em outros tempos fora adornada com um papel caro e chamativo,
que agora despencava mofado, rasgado e desbotado pelas paredes úmidas. O
ambiente tinha um odor particularmente fétido e desagradável, composto da
mistura de umidade, sujeira e lixo, comuns às casas velhas e fechadas. O papel
de parede tinha nódoas de cerveja e vinho em alguns lugares, e estava todo
rabiscado com anotações de giz e longas contas de somar, como se ali tivessem
praticado aritmética. Sobre a lareira havia um braseiro cheio de carvão aceso,
pois, apesar de o tempo não estar frio, as noites sempre eram úmidas e geladas
naquela sala imensa, e Legree, além disso, precisava do fogo para acender seus
charutos e aquecer a água para o ponche. O brilho avermelhado do carvão
iluminava o aspecto confuso e desolador do ambiente — celas, selins, vários
tipos de cabrestos, chicotes de montaria, casacos e peças de roupas espalhadas
por toda a sala; e os cachorros, dos quais já falamos anteriormente, acampavam
entre as roupas a seu bel prazer.
Legree estava misturando uma taça de ponche, servindo a água quente de
uma jarra trincada e de ponta quebrada, grunhindo como sempre fazia.
— Maldito seja aquele Sambo! Ficar criando problema entre os novatos e
eu! O sujeito agora não vai poder trabalhar por uma semana! Bem no meio da
época de colheita!
— Sim, e a culpa é sua — disse uma voz atrás da cadeira dele. Era Cassy,
que interrompera o monólogo de Legree.
— Arre! Sua diaba! Quer dizer que voltou, é?
— Sim, voltei — ela disse calmamente. — Voltei para fazer as coisas a meu
modo.
— Sua víbora mentirosa! Hei de cumprir minha palavra! Ou você se
comporta ou vai ficar nas cabana, trabalhando e comendo com os outros.
— Prefiro mil vezes viver no buraco mais sujo das cabana a ficar sob o seu
teto! — retrucou a mulher.
— Mas, até onde sei, você está sob o meu teto — ele respondeu, virando-se
para cima dela com um sorriso de escárnio. — E isso é um conforto. Então, vem
sentar no meu colo, minha querida, e seja boazinha — ele disse segurando a
cintura dela.
— Simon Legree, tome cuidado! — disse a mulher com um fogo ardendo
nos olhos, um olhar tão selvagem e insano que chegava a ser quase
amedrontador. — Tem medo de mim, Simon! — ela disse deliberadamente. — E
tem motivo para isso! Vou lhe avisar, tenha cuidado, pois tenho o diabo no
corpo!
As últimas palavras ela sussurrou em um tom sibilante bem perto do ouvido
dele.
— Sai daqui! Acredito pela minha alma que você tem mesmo o diabo no
corpo! — disse Legree afastando-a com um empurrão, e olhando desconfiado
para Cassy.
— Mas, afinal de contas, Cassy, por que não podemos ser amigos como
antes?
— Como antes? — ela refutou rispidamente. Ela parou, e um mundo de
sentimentos engasgados vindo à tona em seu coração a manteve em silêncio.
Cassy sempre exercera sobre Legree o tipo de influência que uma mulher
forte e apaixonada sempre exerce sobre um homem, por mais brutal que ele seja;
mas, ultimamente, estava ficando cada vez mais irritada e cansada, sob o odioso
jugo da servidão, e sua irritabilidade às vezes se transformava em surtos de
insanidade; e essas reações faziam dela um objeto de terror para Legree que,
como era comum a pessoas rudes e sem instrução, tinha um horror supersticioso
por pessoas insanas. Quando Legree trouxe Emmeline para a casa, todas as
brasas flamejantes do sentimento feminino se acenderam no coração cansado de
Cassy, e ela tomou partido da garota, dando início a um feroz impasse com o
senhor. Legree, furioso, jurou colocar Cassy para fazer serviços braçais no
campo se ela não se comportasse. Cassy, com orgulho sarcástico, declarou que
iria mesmo para o campo. E lá trabalhou um dia inteiro, como já descrevemos,
para mostrar ao senhor o quanto desprezava sua ameaça.
Legree ficara incomodado o dia todo, em segredo. Cassy tinha sobre ele uma
influência da qual não conseguia se libertar. Quando apresentou o cesto nas
balanças de pesagem, ele esperou algum tipo de concessão e falou com ela em
tom meio conciliatório e meio sarcástico, e ela lhe respondera com profundo
desprezo.
O tratamento execrável ao pobre Tomás a enfurecera ainda mais; e ela
seguira Legree até a casa, sem nenhuma intenção em particular, exceto
repreendê-lo por sua brutalidade.
— Eu queria que você se comportasse decentemente, Cassy — disse Legree.
— Veja só quem está falando em se comportar decentemente! E o que você
tem feito? Você, que nem mesmo tem juízo suficiente para poupar um de seus
melhores escravos, bem no meio da alta estação de colheita, simplesmente pelo
seu temperamento demoníaco?
— Fui um idiota, é verdade, por deixar esse imbróglio acontecer — admitiu
Legree —, mas quando ele quis impor sua vontade, tive que dar a uma lição.
— Tenho certeza de que jamais conseguirá.
— Não? — Legree refutou levantando-se impestivamente. — Quero só ver
se não vou! Ele será o primeiro preto que nunca se dobrou! Quebrarei todos os
ossos do corpo dele, mas garanto que ele vai ceder!
Naquele momento, a porta se abriu e Sambo entrou. Ele se aproximou de
cabeça baixa, segurando alguma coisa embrulhada num papel.
— O que é isso, seu cão? — perguntou Legree.
— Uma bruxaria, amo!
— O quê?
— Uma coisa que os preto pega das bruxa. Evita de sentir dor quando eles é
castigado. Ele tinha isso pendurado no pescoço, com uma fita preta.
Legree, assim como todos os homens ateus e cruéis, era supersticioso. Pegou
o papel e, receoso, o abriu.
De lá saíram uma moeda de prata de um dólar e uma mecha longa e
brilhante de cabelo louro, a qual, como se estivesse viva, enroscava-se por entre
os dedos de Legree.
— Maldição! — ele gritou, com fúria repentina, batendo o pé no chão e
puxando a mecha de cabelo com força, como se aquilo o queimasse. — De onde
veio isso? Jogue fora! Queime! Queime! — ele gritou, repartindo tudo ao meio e
atirando dentro do carvão. — Por que trouxe isso pra mim?
Sambo ficou ali parado, com sua bocarra pesada bem aberta, estupefato, sem
saber o que dizer; e Cassy, que se preparava para sair da sala, parou e olhou para
ele profundamente surpresa.
— Não me traga mais dessas coisas do demônio! — ele bradou, mostrando o
punho cerrado para Sambo, que rapidamente se esquivou em direção à porta; e,
pegando o dólar de prata, atirou-o pela janela, para dentro da escuridão.
Sambo ficou feliz por ter escapado. Depois que o escravo se foi, Legree
sentiu-se um pouco envergonhado por seu ataque de nervos. Jogou-se na
poltrona e começou a beber lentamente seu copo de ponche.
Cassy aproveitou para sair, uma vez que não estava sendo observada por ele,
e esgueirou-se para ajudar Tomás, conforme já relatamos.
E qual era o problema com Legree? E o que havia em uma simples mecha de
cabelo para fazer temer a um homem brutal, tão familiar a todo tipo de
crueldade? Para responder a essa pergunta, devemos transportar o leitor para a
história pregressa de Legree. Embrutecido e condenável como é agora esse
homem herege, houve um tempo quando fora embalado no seio de sua mãe,
criado com preces e hinos religiosos, sua testa agora ardente, refrescada pelas
águas do santo batismo. Na infância, fora criado por uma mulher loura, ao som
do sino do Sabbath, para louvar e rezar. Longe, na Nova Inglaterra, aquela mãe
criara o único filho com incansável e profundo amor, e preces pacientes. Filho de
um homem de temperamento difícil, a quem aquela doce mulher desperdiçara
todo seu amor, Legree seguira os passos do pai. Impetuoso, desobediente e
tirânico, ele desprezava todos os conselhos da mãe e não aceitava repreensões.
E, ainda moço, separou-se dela para buscar fortuna no mar. Ele nunca voltou
para casa senão uma vez e, na ocasião, a mãe, com o coração de quem precisava
amar, embora não tivesse mais nada na vida, continou a amá-lo, e buscou entre
preces e súplicas fervorosas tirá-lo de uma vida de pecados, para o bem de sua
alma eterna.
Aquele fora o dia de graça de Legree; os anjos o chamaram; e ele quase fora
persuadido, e a misericória lhe segurou pelas mãos. Seu coração demonstrou
piedade, e houve um conflito interno; mas, ao final, o pecado venceu e ele
colocou toda a força de sua natureza bruta contra a convicção de sua
consciência. Legree bebia e blasfemava, estava mais embrutecido e cruel do que
nunca. E uma noite, quando a mãe na última agonia de seu desespero ajoelhou-
se a seus pés, repeliu-a violentamente atirando-a ao chão, sem sentidos, e, em
meio a blasfêmias horríveis, voltou para o navio. Depois disso, voltou a ter
notícias da mãe uma noite, quando, festejando na companhia de bêbados,
depositaram-lhe uma carta na mão. Ele a abriu e uma mecha de cabelo, longa e
encaracolada, caiu de dentro da carta e se enroscou em seus dedos. A carta lhe
dizia que a mãe estava morta e que, enquanto morria, ela o abençoou e o
perdoou.
Há uma necromancia aterrorizante e pecaminosa no mal que transforma as
coisas mais doces e sagradas em fantasmas de horror e medo. Aquela mulher
pálida e carinhosa, suas preces de morte, seu amor misericordioso, traziam
àquele coração pecador e cruel apenas uma sentença maldita e, com ela, uma
indigação ardente e uma perspectiva temerosa pelo juízo final. Legree queimou o
cabelo e a carta, e quando os viu sibilando e crepitando no fogo, tremeu
internamente ao pensar nas chamas do inferno. Tentou beber, se divertir e deixar
de lado as lembranças, mas quase sempre nas profundezas da noite, quando o
silêncio solene obriga a alma perversa a comungar consigo mesma, ele via a mãe
pálida em pé a seu lado, sentia os cabelos macios se enroscando em seus dedos,
até que o suor gelado lhe escorria pelo rosto e ele se levantava correndo da cama.
Você que já ouviu, no mesmo evangelho, que Deus é amor, e que Deus é um
fogo ardente, consegue entender como, para a alma mergulhada no mal, o amor
perfeito é a tortura mais perigosa, a sentença e o fim de todo o desespero?
“Maldito seja!”, Legree disse a si mesmo enquanto engolia a bebida; “De
onde ele tirou aquele cabelo?” E se parece tanto com… — arre! Achei que
tivesse esquecido aquilo. Que porcaria! Achei que tinha um jeito de esquecer as
coisa! Arre, que se exploda! Estou sozinho. Vou chamar Em. Ela me odeia,
aquela macaca! Não me importo, vou deixar ela no ponto!”.
Legree saiu até um grande saguão que dava para os degraus do que um dia
fora uma maravilhosa escadaria espiralada; mas a passagem estava suja e escura,
entulhada de caixas e restos indesejados. Os degraus, sem tapetes, pareciam se
espiralar para dentro da escuridão, em direção a um lugar desconhecido. O luar
pálido penetrava pela claraboia em cima da porta; o ar estava insalubre e frio,
como o de um túmulo.
Legree parou ao pé da escada e ouviu uma voz cantando. Parecia estranho e
fantasmagórico naquela velha casa sombria, talvez pelo estado já amedrontado
de seus nervos. “Que diabos! O que é isso?”.
Uma voz triste e selvagem canta um hino conhecido entre os escravos:

Ah, virá a dor, a dor, a dor


Ah, a dor virá no julgamento do Senhor!

— Maldita seja essa garota! — disse Legree. — Vou esganá-la! Em! Em! —
ele gritou rispidamente, mas apenas um eco desdenhoso saindo das paredes lhe
respondeu. A doce voz continuou a cantar:

Pais e filhos apartarão!


Pais e filhos apartarão!
E nunca mais se encontrarão!

E o refrão claro e alto reverberava pelos corredores vazios:

Ah, virá a dor, a dor, a dor


Ah, a dor virá no julgamento do Senhor!

Legree parou. Teria vergonha de confessar, mas grandes gotas de suor lhe
molhavam a testa e seu coração angustiado e descompassado; estava cheio de
medo; pensou ter visto alguma coisa branca se levantando e reluzindo na
escuridão diante dele, e estremeceu ao pensar o que faria se a forma de sua mãe
morta aparecesse de repente à sua frente.
“Só sei de uma coisa”, ele disse a si mesmo ao voltar tropeçando para a sala
de estar e se sentar. “Depois disso, vou deixar aquele negro em paz! Por que fui
mexer naquele maldito papel? Acho que sou amaldiçoado, só pode ser! Desde
que mexi naquilo não paro de suar e tremer! Onde ele achou aquele cabelo? Não
pode ser o dela! Eu queimei ele, tenho certeza, queimei sim! Seria uma piada o
cabelo ressuscitar dos mortos!
Ah, Legree! Aquela mecha dourada era mesmo encantada! Cada cabelo
tinha em si um feitiço de terror e remorso por você, e foi usado por uma força
maior para impedir que suas mãos cruéis infligissem mais maldades sobre os
aflitos!
— Acordem, acordem e me façam companhia! — Legree disse pisando duro
e assoviando para os cachorros. Mas os animais, sonolentos, apenas abriram os
olhos para ele e os fecharam de novo. — Vou mandar Sambo e Quimbo virem
aqui pra cantar e dançar alguma daquelas danças do inferno, e me distrair desses
pensamento horroroso! — e, colocando o chapéu, foi até a varanda e tocou um
berrante, com o qual ele geralmente chamava os dois feitores de zibelina.
Legree, quando estava de bom humor, costumava receber essas duas
personalidades na sala de estar, e, depois de animá-los com uísque, se entretinha
fazendo-os cantar, dançar ou brigar, conforme lhe agradava.
Entre uma e duas da manhã, quando Cassy voltava de seus cuidados com o
pobre Tomás, ouviu o som selvagem de gritos, berros e cantorias vindos da sala
de estar, misturados ao latido dos cachorros e outros sintomas de um tumulto
generalizado.
Ela subiu os degraus da varanda e olhou para dentro. Legree e os dois
escravos, em estado de terrível embriaguez, cantavam, gritavam, jogavam
cadeiras e faziam todo tipo de caretas horrorosas e ridículas uns para os outros.
Ela colocou a mão pequena e delicada sobre a cortina e fixou o olhar para
eles; havia um mundo de desdém e amargura arrebatadora em seus olhos negros
ao fazê-lo. “Será que seria pecado livrar o mundo desses desgraçados?”,
perguntou a si mesma.
Cassy virou-se depressa e, dando a volta pela porta de trás, subiu os degraus
apressadamente e bateu à porta de Emmeline.
36
EMMELINE E CASSY

Cassy entrou e encontrou Emmeline sentada no canto mais afastado do


quarto, pálida de medo. Ao entrar, a garota levantou-se nervosa; mas, ao ver
quem era, correu para a frente e, pegando no braço de Cassy, disse:
— Ah, Cassy, é você! Estou tão feliz por ter vindo! Estava com medo que
fosse… Ah, não sabe o barulho terrível que fizeram a noite toda lá embaixo!
— Claro que sei — respondeu Cassy secamente. — Já o ouvi mais do que o
suficiente.
— Ah, Cassy, me diga, será que não conseguimos fugir desse lugar? Não me
importo pra onde, para o pântano entre as cobras, qualquer lugar! Será que não
conseguimos fugir para longe daqui?
— Nosso único destino é a cova — respondeu Cassy.
— Alguma vez já tentou fugir?
— Já vi muitas tentativas e as consequências delas — disse Cassy.
— Estaria disposta a viver nos pântanos, e me alimentar de cascas de
árvores. Não tenho medo de cobras! Prefiro ficar perto de uma cobra a ter ele
perto de mim! — Emmeline falou com veemência.
— Já houve muitos aqui com a mesma opinião que você — explicou Cassy.
— Mas não poderia ficar nos pântanos; seria farejada pelos cachorros e trazida
de volta, e então, então…
— O que ele faria? — perguntou a garota olhando com interesse sem fôlego
para o rosto da mulher.
— Seria melhor perguntar o que ele não seria capaz de fazer — respondeu
Cassy. — Legree aprendeu seu ofício entre os piratas das Índias Ocidentais. Não
conseguiria dormir muito se eu lhe contasse todas as coisas que já vi, e coisas
que ele conta às vezes como piadas. Já ouvi gritos aqui que não me saíram da
cabeça durante semanas. Há um lugar perto das barracas onde se pode ver uma
árvore negra e queimada, e o chão está coberto com cinzas pretas. Pergunte a
qualquer um o que aconteceu ali e veja se alguém ousará lhe contar.
— Ah, meu Deus, o que quer dizer com isso?
— Não vou lhe contar. Odeio pensar naquilo. E vou lhe dizer uma coisa, só
Deus sabe o que veremos amanhã se aquele pobre sujeito continuar o que
começou.
— Horrível! — disse Emmeline, cada gota de sangue desaparecendo de seu
rosto. — Ah, Cassy, me diga o que fazer!
— Faça o que eu fiz. Faça o melhor que puder, faça o que tem que fazer e
compense tudo com ódio e blasfêmias.
— Ele quis me fazer beber um pouco daquele conhaque horrendo! — contou
Emmeline. — E eu odeio bebida…
— É melhor beber — aconselhou Cassy. — Eu também odiava e agora não
consigo viver sem. Precisamos de algum consolo; as coisas não parecem tão
horríveis depois de tomar um gole daquilo.
— Minha mãe me dizia para nunca chegar perto de coisas desse tipo —
explicou Emmeline.
— Sua mãe lhe ensinou? — indagou Cassy com ênfase amarga e desafiadora
na palavra mãe. — E de que adianta as mães ensinarem alguma coisa? Todas
serão compradas, e sua alma pertencerá àquele que pagou por vocês! É assim
que as coisas são. Então, escute bem: beba o conhaque; beba o máximo que
conseguir; as coisas serão mais fáceis assim.
— Ah, Cassy! Tenha pena de mim!
— Pena de você! E eu não tenho? Tenho uma filha, Deus sabe onde ela está,
e com quem ela está agora, provavelmente seguindo o mesmo caminho que sua
mãe seguiu antes dela, e que seus filhos seguirão depois dela! Não tem fim, é
uma maldição eterna!
— Gostaria de nunca ter nascido! — declarou Emmeline, apertando as mãos.
— Esse é um desejo antigo meu — disse Cassy. — Me acostumei a desejar
isso. Se tivesse coragem, eu me mataria — ela continuou olhando para a
escuridão lá fora, com aquele desespero silencioso e permanente comum à
expressão de seu rosto quando estava calma.
— Seria pecado se suicidar — Emmeline falou.
— Não sei por quê; não acho que seria pior do que as coisas que vivemos e
fazemos todos os dias. Mas as irmãs me diziam coisas, quando eu estava no
convento, que me deixaram com medo de morrer. Se esse fosse o fim de todos
nós, por que então…
Emmeline se afastou e enfiou o rosto nas mãos.
Enquanto essa conversa acontecia no quarto, Legree, tomado pela bebedeira,
pegara no sono na sala lá embaixo. Legree não tinha o hábito de embebedar-se.
Sua constituição rude e forte precisava e suportava um estímulo contínuo capaz
de destruir e enlouquecer alguém de constituição mais delicada. Mas um
profundo e secreto sentimento de cautela quase sempre evitava que ele
satisfizesse seu apetite a ponto de perder o controle de si mesmo.
Contudo, naquela noite, em seus intensos esforços para banir de sua mente
os elementos assustadores de tristeza e remorso que carregava dentro de si, tinha
se permitido beber mais do que o normal, de tal forma que, ao dispensar seus
escravos, caiu pesadamente sobre uma poltrona na sala e logo dormira
profundamente.
Ah! Como ousa uma alma maléfica adentrar o mundo obscuro dos sonhos?
Aquele lugar cujas ímpias fronteiras ficam tão assustadoramente próximas da
mística cena da retribuição? Legree teve um sonho. Em seu sono pesado e
turbulento, uma forma velada estava ao seu lado, e colocou uma mão macia e
fria sobre ele. Ele pensou saber quem era e estremeceu, horrorizado, embora o
rosto estivesse encoberto. Então pensou sentir aquele cabelo se enrolando por
entre os dedos e, em seguida, enroscando-se suavemente em volta de seu
pescoço, apertando, apertando até ele não poder mais respirar; depois pensou
ouvir vozes sussurrando para ele, sussurros que o arrepiaram de medo. Em
seguida parecia estar à beira de um abismo assustador, enquanto mãos escuras se
estendiam e o puxavam; e Cassy veio atrás dele rindo, e o empurrou. Então a
solene figura encoberta apareceu e tirou o véu: era sua mãe. Ela se afastou e ele
despencou em meio a uma confusão de gritos, gemidos e risadas demoníacas.E
foi então que Legree acordou.
A luz rosada da manhã se espalhava pela sala. A estrela da manhã, acima no
céu esplendoroso, com seu olho de luz solene e sagrado, observava o homem
pecador. Ah, quanta beleza, frescor e cerimônia há em cada amanhecer! Como se
dissesse ao homem insensato: “Preste atenção! Terá uma nova chance! Lute pela
glória imortal!”. Não há discurso ou língua na qual essa voz não seja ouvida;
mas o homem mau e arrogante não a ouviu. Ele despertou com um juramento e
uma blasfêmia. O que seria para ele o ouro e o violeta, o milagre diário de um
novo dia? O que seria para ele a santidade daquela estrela que o filho de Deus
lhe concedera como seu próprio emblema? Embrutecido, ele via sem perceber; e,
tropeçando para a frente, encheu um copo de conhaque e bebeu-o pela metade.
— Tive uma noite dos infernos! — ele disse à Cassy, que acabara de entrar
pela porta do outro lado.
— Com o passar do tempo há de ter cada vez mais.
— O que quer dizer com isso, sua insolente?
— Um dia desses há de descobrir — replicou Cassy no mesmo tom. — Veja
bem, Simon, tenho um conselho para lhe dar.
— Não me diga!
— Meu conselho é — Cassy continou com firmeza enquanto arrumava
algumas coisas na sala — para que deixe Tomás em paz.
— E o que você tem a ver com isso?
— O quê? Para ser sincera, não deveria me envolver. Se quer pagar mil e
duzentos dólares pelo sujeito e inutilizá-lo no auge da colheita só por causa de
sua maldade, não tenho nada com isso. Já fiz o que podia por ele.
— Já? E por que está se metendo nos meus negócios?
— Na verdade, não estou. Já lhe economizei milhares de dólares várias
vezes, cuidando de seus escravos; e é esse tipo de agradecimento que recebo. Se
sua safra for menor do que a deles no mercado, imagino que perderá sua aposta,
não é mesmo? Acho que Tompkins não deixará barato e então você terá que
pagar sua dívida centavo por centavo, não é? Já consigo até imaginar você
fazendo isso.
Legree, assim como outros fazendeiros, tinham uma única ambição: ter a
maior safra da temporada. E ele tinha várias apostas nesta colheita, pendentes na
cidade ao lado. Cassy, dessa forma, com tato feminino, tocara a única corda que
poderia ser vibrada.
— Bem, vou deixá-lo do jeito que está — concordou Legree. — Mas ele vai
ter que me pedir perdão e prometer se comportar melhor.
— Isso ele não fará — refutou Cassy.
— Não vai, é?
— Não, não vai — confirmou Cassy.
— Gostaria de saber por quê, senhorita — disse Legree com extremo
escárnio.
— Porque ele agiu corretamente e sabe disso, e não dirá que agiu errado.
— E quem se importa com o que ele pensa? O preto vai dizer o que eu
quiser ou…
— Ou você perderá sua aposta na colheita de algodão por mantê-lo fora do
campo, bem na hora de maior precisão.
— Mas ele vai ceder, é claro que vai. E acha que não sei como é os preto?
Essa manhã ele vai implorar que nem um cachorro.
— Não vai, Simon. Não consegue com o tipo dele. Será mais fácil matá-lo
aos poucos a tirar dele uma só palavra de confissão.
— Isso é o que vamos ver. Onde ele está? — perguntou Legree, saindo.
— Na sala de refugos do barracão de gim — informou Cassy.
Legree, embora tenha sido tão resoluto ao falar com Cassy, ainda se afastava
da casa com um grau de desconfiança que não lhe era comum. Os sonhos da
noite passada, misturados às prudentes sugestões de Cassy, o afetaram
consideravelmente. Ele decidiu que ninguém seria testemunha de seu encontro
com Tomás; e, determinado, se não conseguisse subjulgá-lo com ameaças,
postergaria sua vingança, a ser colocada em prática numa ocasião mais
conveniente.
A majestosa luz da aurora, a glória angelical da estrela matinal, espreitava
pela tosca janela do barracão onde Tomás estava deitado; e, como se vindas de
um raio celeste, ele ouviu as palavras solenes: “Sou a raiz e o filho de Davi, a luz
e a estrela da manhã”. Os conselhos e as intimações de Cassy, longe de lhe
desencorajar a alma, tinham ao final lhe dado força, como se fosse um chamado
divino. Ele não sabia quando, mas o dia de sua morte se anunciava no céu; e o
coração de Tomás vibrava com espamos de alegria e desejo ao imaginar que todo
o esplendor com o qual sempre sonhara, o grande trono branco, com seu arco-
íris eterno; as coroas, as palmeiras, as harpas, tudo isso estaria diante de seus
olhos antes de o sol se pôr novamente. E, assim, sem tremer nem estremecer,
ouviu a voz de seu opressor quando esse se aproximou.
— E então, meu velho? — Legree perguntou com um chute desdenhoso. —
Como está? Eu não disse que ia te ensinar uma ou duas coisinhas? Gostou, hein?
Agora vai concordar comigo, Tomás? Não parece tão teimoso como na noite
passada. Aposto que não vai querer fazer um sermão pra um pecador agora, vai?
Tomás não respondeu.
— Levanta, seu animal! — ordenou Legree, chutando-o novamente.
Fazer isso era um grande problema para alguém tão machucado e fraco, e,
como Tomás se esforçou para fazê-lo, Legree gargalhou ruidosamente.
— O que fez você ficar tão animado esta manhã, Tomás? Pegou um
resfriado ontem à noite?
A essa altura Tomás já tinha ficado em pé, e confrontava o mestre com um
rosto firme e impassível.
— Que diabos! — disse Legree olhando para ele de cima a baixo. — Acho
que ainda não aprendeu a lição. Vem aqui, Tomás, ajoelha e pede perdão pelo
que fez ontem à noite.
Tomás não se mexeu.
— Ajoelha, cão! — gritou Legree, açoitando-o com seu chicote de montaria.
— Senhor Legree — disse Tomás —, não posso me ajoelhar. Só fiz o que
achava certo fazer. E vou fazer de novo, se for preciso. Nunca vou fazer uma
crueldade, não importa o castigo.
— Claro, mas não sabe o que pode acontecer, senhor Tomás. Acha que o que
aconteceu já foi suficiente. Vou dizer uma coisa: isso não foi nada, nada mesmo.
Que tal ser amarrado a uma árvore e ter uma fogueira acesa ao seu redor. Isso ia
ser muito agradável, não ia?
— Senhor — respondeu Tomás —, sei que pode fazer coisas terríveis, mas
— ele se esticou para a frente e juntou as mãos —, mas depois que matar o
corpo, não vai ter mais nada que possa fazer. Ah, e depois de tudo, virá a
ETERNIDADE!
ETERNIDADE, a palavra reverberava pela alma do homem negro com luz e
poder enquanto ele falava; ela também reverberou pela alma do pecador, como
uma picada de escorpião. Legree rangeu os dentes, mas o ódio o manteve em
silêncio; e Tomás, como um homem livre, falou, com uma voz nítida e animada:
— Senhor Legree, já que me comprou, serei um escravo bom e fiel.
Dedicarei todo o trabalho das minhas mãos, a força em meus braços e todo o
meu tempo; mas, não entregarei minha alma a um mortal. Eu me fiarei em Deus,
e colocarei seus mandamentos à frente de tudo, vivendo ou morrendo. Cedo ou
tarde vou morrer. O senhor pode me açoitar, me matar de fome ou me queimar;
isso apenas vai me mandar mais cedo pra onde quero ir.
— Mas, antes disso, farei você ceder! — gritou Legree com raiva.
— Alguém virá me ajudar — disse Tomás. — O senhor não vai ter
ninguém.
— E quem nesse mundo vem te ajudar? — perguntou Legree com desdém.
— Deus Todo-Poderoso — respondeu Tomás.
— Maldito! — gritou Legree e, com um soco, jogou Tomás no chão.
Neste momento, Legree sentiu uma mão fria e macia sobre o ombro. Ele
virou; era a mão de Cassy; mas o toque gélido o fez lembrar-se do sonho da
noite anterior e, pipocando em sua cabeça, surgiram todas as imagens
assustadoras dos guardiões da noite, com uma porção do terror que os
acompanhavam.
— Está louco? — perguntou Cassy, em francês. — Deixe-o em paz! Deixe-
me cuidar dele para que possa trabalhar de novo. Não foi isso que acabei de lhe
falar?
Dizem que os crocodilos e rinocerontes, embora protegidos em suas
carapaças à prova de bala, têm um ponto fraco onde são vulneráveis; e, para os
hereges destemidos, incautos e céticos, esse ponto fraco é o terror supersticioso.
Legree se afastou, determinado a abrir mão da situação por hora.
— Está bem, faça como quiser — ele disse a Cassy, rabugento. — Quanto a
você, Tomás, não vou lidar com você agora porque o trabalho urge e quero todos
trabalhando; mas eu nunca me esqueço de nada. Ainda te pego e um dia vai me
pagar com sua própria pele preta, escute o que estou te dizendo!
Legree virou-se e saiu.
— Vá embora — disse Cassy, seguindo-o com os olhos. — Sua hora
também vai chegar! Ah, meu pobre amigo, como está?
— Dessa vez o Senhor Deus enviou um anjo e fechou a boca do leão —
respondeu Tomás.
— Dessa vez, sim — Cassy replicou —, mas agora terá a cólera dele sobre
você, e ele irá persegui-lo, dia e noite, farejando seu pescoço feito um cão,
sugando seu sangue, gota por gota, até lhe tirar a vida. Conheço esse homem!
37
LIBERDADE

“Independentemente das formalidades dedicadas ao altar da


escravidão, no momento em que se toca o solo sagrado da Bretanha, o
altar e Deus viram pó, e ele redime, se regenera e se liberta pelo
indomitável gênio da emancipação universal.”
— Curran1

Deixemos Tomás nas mãos de seus repressores enquanto voltamos à busca


da fortuna de George e sua esposa, a quem deixamos em mãos amigáveis em
uma casa de fazenda à beira da estrada.
Deixamos Tom Loker grunindo e rolando de um lado para o outro em uma
cama quacre imaculadamente limpa, sob a supervisão maternal da tia Dorcas,
que o achava um paciente tão tratável quanto um bisão ferido.
Imaginem uma mulher alta, digna e religiosa, cujas sombras da toca de
musselina deixam transparecer cabelos grisalhos, repartidos ao meio sobre uma
testa larga e clara, onde olhos cinza reflexivos formavam um arco. Tem um lenço
branco de crepe dobrado de forma impecável sobre o peito, e seu vestido de seda
marrom farfalha suavemente enquanto ela desliza para lá e para cá dentro do
quarto.
— Aquele maldito! — Tom Loker diz chutando os lençóis.
— Devo pedir-lhe, Thomas, para que não use esse tipo de linguagem —
pediu a tia Dorcas, rearrumando a cama tranquilamente.
— Mas não vou, vovozinha, se puder fazer alguma coisa — refutou Tom. —
Esse calor miserável já é suficiente para fazer um sujeito praguejar.
Dorcas tirou um cobertor da cama, alisou os lençóis de novo e arranjou-os de
tal maneira que Tom ficou parecendo uma crisálida, e chamou-lhe a atenção:
— Meu amigo, gostaria que parasse de praguejar e blasfemar e refletisse
sobre a sua vida.
— Que inferno! — retrucou Tom. — E pra quê eu ia refletir sobre a vida?
Essa é a última coisa que eu quero pensar. Tire tudo isso daqui! — E Tom se
agitou novamente, arrancando os lençóis e desarrumando todo de um modo
terrível.
— Aquele sujeito e a rapariga estão aqui, imagino — ele afirmou irritado,
depois de uma pausa.
— Estão sim — confirmou tia Dorcas.
— Acho melhor subirem logo até o lago — disse Tom. — Quanto mais
rápido, melhor.
— Provavelmente é o que farão — comentou tia Dorcas, tricotando
sossegadamente.
— Escuta aqui — ameaçou Tom —, temos correspondentes em Sandusky
que toma conta dos barco pra gente. Não me importo de revelar isso agora.
Espero que eles consiga fugir, só pra irritar o Marks, aquele cão maldito! Pro
inferno com ele!
— Thomas! — tia Dorcas repreendeu-o.
— Vou te dizer uma coisa, vovozinha, se apertar muito o sujeito, ele acaba
escapando — disse Tom. — Mas a rapariga, diga pra eles vestir ela diferente, pra
disfarçar. A descrição dela já foi pra Sandusky.
— Tomaremos as providências — respondeu tia Dorcas com sua típica
compostura.
E, depois de ter passado três semanas em uma casa quacre, doente com uma
febre reumática que se instalou junto as suas outras aflições, Tom levantou-se da
cama como um homem um pouco mais triste e mais sábio, e, em vez de caçar
escravos, refez a vida em um dos assentamentos onde seus talentos foram mais
bem utilizados para fazer armadilhas para ursos, lobos e outros habitantes da
floresta, o que lhe garantiu grande renome nas redondezas. Tom sempre falava
com reverência sobre os quacres: “Boa gente!” ele dizia; “Quiseram me
converter, mas não conseguiram de todo. Mas, vou te contar, forasteiro, eles
cuidam de um doente como ninguém, não tem erro. E fazem sopas e petiscos
maravilhosos!”
Uma vez que Tom lhes informara que o grupo seria procurado em Sandusky,
acharam prudente dividi-lo. Jim, com sua mãe idosa, foi na frente; e uma ou
duas noites depois, George e Elisa, junto com o filho, foram levados
separadamente para Sandusky, e acomodados sob um teto hospitaleiro a fim de
se prepararem para sua última passagem pelo lago.
A noite passou rápido e a estrela matinal da liberdade nasceu diante deles.
Liberdade! Palavra energizante! Mas, o que ela significa? Há algo nela além do
próprio nome, uma figura retórica? Por que, homens e mulheres da América, seu
sangue pulsa diante dessa palavra, pela qual seus pais sangraram e suas mães
corajosas concordaram em perder seus entes mais nobres e queridos?
Há nela algo tão glorioso e caro para uma nação que não seja glorioso e caro
para um homem? O que é a liberdade para uma nação, senão a liberdade de seus
indivíduos? O que é a liberdade para um jovem, que se senta ali, com os braços
cruzados sobre o peito largo, o que é a liberdade para George Harris? Para seus
pais, a liberdade era o direito da nação de ser uma nação. Para George, é o
direito de um homem ser um homem, e não um bruto; o direito de chamar a
esposa a quem ama de esposa e de protegê-la da violência sem lei; o direito de
proteger e educar seu filho; o direito de ter sua própria casa, sua própria religião,
seu próprio caráter sem necessitar ser subjugado pelo desejo de outrem. Todos
esses sentimentos se agitavam e borbulhavam no peito de George enquanto ele
inclinava a cabeça sobre a mão, pensativo, observando sua esposa adaptar
artigos de vestimenta masculina em seu lindo corpo esguio, com os quais seria
mais seguro para ela fazer a fuga.

— E agora isso aqui — ela disse ao ficar em frente ao espelho e balançar


suas sedosas madeixas negras, fartas e encaracoladas. — Ah, George, é quase
uma pena — ela disse enquanto levantava uma parte do cabelo, brincando. — É
uma pena que tenha que cortar tudo isso, não é?
George sorriu com tristeza e não respondeu.
Elisa virou-se para o espelho, e a tesoura brilhava à medida que os cachos
eram cortados de sua cabeça, um após o outro.
— Pronto, acho que está bom — ela disse pegando uma escova de cabelo. —
E agora uns toques finais. Veja só, não sou um lindo rapaz? — Ela perguntou,
virando-se para o esposo, rindo e corando ao mesmo tempo.
— Você sempre será linda, de qualquer jeito — George respondeu.
— Por que está tão preocupado? — perguntou Elisa, ajoelhando-se em um
joelho e pousando a mão sobre a dele. — Estamos a apenas vinte e quatro horas
do Canadá, pelo menos é o que dizem. Só um dia e uma noite no lago e depois,
ah, depois!
— Ah, Elisa! — George disse puxando-a mais para perto — É isso! Minha
fé agora está se afunilando para um ponto. Chegar tão perto, estar quase à vista e
perder tudo. Não conseguirei viver com isso, Elisa.
— Não tenha medo — tranquilizou a esposa, cheia de esperança. — O bom
Deus não teria nos trazido até aqui se não quisesse que chegássemos até o final.
Sinto que Ele está conosco, George.
— Você é uma mulher abençoada, Elisa! — George disse puxando-a em um
forte abraço. — Mas, ah, diga-me! Será que essa grande misericórdia é para nós?
Será que todos esses anos de sofrimento terão fim? Seremos finalmente livres?
— Tenho certeza disso, George — respondeu Elisa olhando para cima,
enquanto lágrimas de esperança e entusiasmo brilhavam em seus longos cílios
negros. Sinto dentro de mim que Deus nos libertará da escravidão hoje mesmo.
— Acreditarei em você, Elisa — disse George, levantando-se
repentinamente. — Acreditarei. Vamos, vamos logo. Muito bem, isso mesmo. —
ele falou segurando-a a cerca de um braço de distância e olhando
admiravelmente para ela. — Você é realmente um lindo rapaz! Esse corte de
cachos curtos é bem charmoso. Coloque seu chapéu. Assim, um pouco mais para
o lado. Nunca vi você tão linda! Mas, está quase na hora da carruagem. Gostaria
de saber se a Sra. Smyth já aprontou Harry.
A porta se abriu e uma mulher de meia-idade respeitável entrou, trazendo o
pequeno Harry vestido em roupas de garota.
— Que linda garotinha ele está! — disse Elisa, girando-o. — Nós o
chamaremos de Harriet. Vê como o nome combina?
A criança ficou parada olhando seriamente para mãe vestida em suas roupas
novas e estranhas, observando-a em profundo silêncio e, vez ou outra,
suspirando profundamente e espiando-a por entre os cachos escuros.
— O Harry não conhece a mamãe? — perguntou Elisa, esticando as mãos na
direção dele.
A criança se pendurou timidamente à mulher.
— Por favor, Elisa, por que tenta lhe fazer carinho quando sabe que ele
precisa ficar longe de você?
— Foi bobagem — concordou Elisa. — Mas, não aguento vê-lo se afastar de
mim. Vamos, onde está minha capa? Aqui; como é que os homens vestem as
capas, George?
— Deve usar assim — ensinou o marido, jogando a capa sobre os ombros.
— Assim — disse Elisa, imitando o movimento. — E preciso pisar firme,
dar passos largos e tentar parecer atrevido.
— Não exagere — disse George. — Vez ou outra há rapazes mais modestos,
e acho que seria mais fácil se tentasse agir como um desses tipos.
— E essas luvas! Misericórdia! — exclamou Elisa. — Veja só, minhas mãos
estão perdidas dentro delas.
— Eu lhe aconselho a ficar com elas o tempo todo — disse George. — Suas
mãozinhas finas poderiam nos delatar. E agora, Sra. Smyth, lembre-se de que
estamos sob sua responsabilidade e precisa ser nossa tia.
— Já ouvi — respondeu a Sra. Smyth — que há homens por lá avisando
todos os capitães dos barcos de mercadorias sobre um homem, uma mulher e
uma criança.
— É mesmo? — indagou George. — Se por acaso virmos tais pessoas, nós
os avisaremos.
Uma carruagem de aluguel seguiu até o porto. Os dois rapazes, como
pareciam, subiram a rampa até dentro do barco, Elisa oferecendo o braço
galantemente à Sra. Smyth enquanto George cuidava da bagagem.
George estava em pé na sala do capitão, tomando as providências para o seu
grupo, quando ouviu dois homens conversando ao seu lado.
— Já examinei todos os que subiram a bordo — disse um deles. — Tenho
certeza de que não estão neste barco.
A voz era do comissário do barco. O interlocutor a quem ele se dirigia era o
nosso conhecido Marks quem, com a valiosa perserverança que o caracterizava,
viera à Sandusky em busca daquele que pudesse devorar.
— Mal dá para notar a diferença da mulher com uma branca — disse Marks.
— O homem é um mulato bem claro e tem uma marca em uma das mãos.
A mão com a qual estava recebendo as passagens e o troco tremeu um
pouco; mas ele virou-se tranquilamente, fixou um olhar despreocupado no rosto
do interlocutor e caminhou alegremente até o outro lado do barco, onde Elisa o
esperava.
A Sra. Smyth, com o pequeno Harry, buscou refúgio na cabine das senhoras,
onde a beleza escura da suposta garotinha recebeu muitos comentários elogiosos
das passageiras.
George teve a satisfação, quando o sino tocou indicando que o barco iria
partir, de ver Marks descer a prancha até a praia; e suspirou aliviado quando o
barco se colocou a uma distância sem volta entre eles.
O dia estava esplêndido. As ondas azuis do lago Erie dançavam ondulantes e
brilhantes sob a luz do sol. Uma brisa fresca soprava da costa, e o majestoso
barco seguia seu caminho galantemente.
Ah, que mundo desconhecido existe no coração humano! Quem poderia
imaginar, enquanto George caminhava calmamente de um lado para o outro no
deque do barco a vapor, com seu tímido companheiro ao lado, tudo o que lhe
queimava no peito? O bem que se aproximava parecia bom demais para ser
verdade, bom demais para ser realidade; e o dia inteiro ele sentiu um medo
terrível de que algo surgisse para lhe tirar aquela felicidade.
No entanto, o barco continuou a jornada. Horas se passaram e, finalmente, a
costa inglesa surgiu plena e clara; uma costa encantada com poder mágico, o
qual com um toque dissiparia todos os feitiços da escravidão,
independentemente da língua ou da nação.
George e a esposa se deram os braços à medida que o barco se aproximava
da pequena cidade de Amherstburg, no Canadá. A respiração de George ficou
pesada e curta, uma névoa lhe encobriu os olhos e ele pressionou
silenciosamente a mão delicada que tremia sobre seu braço. O sino tocou; o
barco parou. Mal percebendo o que fazia, George verificou a bagagem, juntou
seu pequeno grupo e desembarcou. Permaneceram em silêncio até que o barco se
retirasse e então, com lágrimas e abraços, marido e mulher, com o filho
assustado nos braços, ajoelharam-se e elevaram seus corações a Deus!

Houve algo parecido a ir da morte à vida; do manto sepulcral às vestes


do paraíso; do domínio do pecado e da luta, do egoísmo à pura liberdade da
alma perdoada, onde os elos da morte e do inferno são abandonados e os
mortais se cobrem de imortalidade; onde a mão da misericórdia gira a chave
dourada, e a voz da misericórdia diz: 'Rejubile, sua alma está livre’.

O grupo logo foi levado pela Sra. Smyth para a residência hospitaleira de um
bondoso missionário, cuja caridade cristã o colocara aqui como um pastor dos
rejeitados e ambulantes que sempre buscavam asilo naquelas paragens.
E quem poderia explicar as maravilhas daquele primeiro dia de liberdade? O
sentido de liberdade não é muito superior e mais refinado do que qualquer outro
dos nossos sentidos? Andar, falar e respirar, ir e vir sem ser seguido, e estar livre
do perigo! Quem poderia explicar as bênçãos de um homem livre ao repousar a
cabeça sobre o travesseiro, sob leis que lhe garantem os direitos dados por Deus
a todos os homens? Quanto é justo e valioso àquela mãe poder olhar o lindo
rosto de seu filho dormente, ainda mais querido pelas lembranças dos milhares
de perigos! Impossível dormir diante de tamanhas bênçãos! Esses dois não
tinham um palmo de terra, nem um teto para chamar de seu; tinham gastado tudo
até o último centavo. Não tinham nada além dos pássaros no céu, ou das flores
no campo, todavia, não conseguiam dormir de tanta felicidade. “Ah, vós que
tirais a liberdade de um homem, com quais palavras respondereis a Deus?”
38
A VITÓRIA

“Graças a Deus, que nos deu a vitória.”1

Quantas vezes, muitos de nós, nos caminhos difíceis da vida, sentimos em


alguns momentos quão mais fácil seria morrer a viver? O mártir, mesmo quando
desafiado pela angústia e pelo horror da morte do corpo, encara o próprio terror
de seu destino como um tônico forte e estimulante. Há uma animação vívida,
uma alegria e fervor que podem guiá-lo por qualquer crise de sofrimento que é a
hora do nascimento da glória e do descanso eterno.
No entanto, viver, sofrer, dia após dia, sob o jugo maligno, amargo, baixo e
degradante da servidão, cada nervo enterrado e oprimido, cada força de
sentimento gradualmente humilhada, este longo e inútil martírio, essa sangria
lenta e diária da vida interior, gota a gota, hora após hora, esse é o verdadeiro
teste para se conhecer a verdadeira essência de um homem ou uma mulher.
Quando Tomás ficava frente a frente com seu opressor, e lhe ouvia as
ameaças, e pensava no fundo da alma que sua hora havia chegado, seu coração
se inchava de bravura e o negro imaginava poder aguentar a tortura e o fogo,
aguentar qualquer coisa com a visão de Jesus e do paraíso a um passo de
distância; porém, depois que o opressor saía e a animação presente passava, a
dor de seus ferimentos e membros cansados voltava, e voltava a consciência de
seu estado de absoluta desgraça, desesperança e abandono; e o dia se arrastava
tristemente.
Muito antes de seus ferimentos estarem curados, Legree insistiu para que ele
fosse colocado de volta no trabalho regular do campo; e então, dia após o outro
vinham a dor e o cansaço, agravados por todo tipo de injustiça e indignidade que
uma mente curel, maligna e maliciosa poderia imaginar. Qualquer pessoa, em
nossa situação, que já passou pela provação da dor, mesmo com todos os alívios
que costumamos receber, deve conhecer a que ponto chega a irritação dessas
circunstâncias. Tomás não questionava mais a hostilidade de seus companheiros,
não. Ele se deu conta de que o temperamento plácido e alegre, sempre habitual
em sua vida, fora transformado, forçosamente, pelas vias da mesma miséria.
Tinha a esperança de se distrair lendo a Bíblia, mas não havia nenhum tipo de
distração ali. No auge da estação, Legree não hesitava em pressionar ainda mais
os escravos, domingos e dias da semana da mesma forma. E por que não
deveria? Dessa forma colhia mais algodão e ganhava sua aposta; e se alguns
escravos morriam, poderia comprar outros melhores. A princípio, Tomás
costumava ler um ou dois versículos da Bílblía, sob a chama do fogo, depois de
ter voltado de deu trabalho diário, mas, após o tratamento cruel que recebera,
vinha para casa tão exausto que sua cabeça caía e seus olhos falhavam quando
tentava ler; e ele ficava satisfeito em poder se esticar, com os outros, em
exaustão profunda.
Não é estranho que a confiança e a paz religiosa, que o mantiveram até aqui,
tenham dado caminho a inquietações da alma e desenconrajamento sombrio? O
problema mais terrível dessa sua vida misteriosa estava constantemente à frente
de seus olhos: almas oprimidas e arruinadas, o mal triunfante e Deus, silencioso.
Tomás lutou durante semanas e meses, em sua alma, contra a escuridão e a
tristeza. Pensou na carta que a Srta. Ofélia escrevera a seus amigos de Kentucky,
e rezava fervorosamente para Deus lhe socorresse. E então assistia, dia após dia,
com a vaga esperança de vir alguém para libertá-lo e, quando ninguém apareceu,
ele voltava novamente aos pensamentos amargos de sua alma, de que é em vão
seguir a Deus, e que Deus se esquecera dele. Às vezes ele via Cassy e, outras
vezes, quando chamado à casa, olhava de relance a forma degenerada de
Emmeline, contudo, mantinha pouco contato com ambas; de fato, não havia
tempo para ter contato com ninguém.
Uma noite, sentou-se em profundo cansaço e prostração ao lado de alguns
pedaços de carvão onde seu minguado jantar estava assando. Colocou alguns
gravetos de madeira no fogo, esforçando-se para aumentar a luz, e então tirou
sua surrada Bíblia do bolso. Lá estavam todas as passagens marcadas, as quais
tantas vezes lhe animaram a alma, palavras de patriarcas e profetas, poetas e
sábios, os quais desde os primórdios diziam palavras encorajadoras aos homens,
vozes da grande massa de testemunhas que um dia nos cercou no decorrer da
vida. Será que as palavras perderam sua força, ou seria a visão falha e os
sentidos fatigados que já não podiam mais reagir ao toque dessa inspiração
divina? Suspirando profundamente, guardou a Bíblia no bolso. Uma risada rouca
o alertou; ele levantou os olhos. Legree estava em pé em frente a ele.
— Bem, meu velho! — ele disse — parece que sua religião não tem
serventia nenhuma! Acho que finalmente consegui colocar isso na sua cabeça!
A zombaria cruel era pior do que a fome, o frio ou a nudez. Tom ficou em
silêncio.
— Você foi um tolo — Legree continuou —, pois eu tinha boas intenção
com você quando te comprei. Você podia ter sido melhor do que Sambo ou
Quimbo, e ter uma vida mais fácil. E, em vez de ser açoitado e espancado a cada
um ou dois dias, podia ter tido a liberdade de mandar por aí e castigar outros
preto; e também podia, vez ou outra, ter ganhado um bom copo de ponche de
uísque. Vamos lá, Tomás, não acha melhor ser razoável? Joga esse lixo velho no
fogo e entra pra minha igreja!
— Deus me livre! — disse Tomás, com veemência.
— Veja bem, Deus não vai te ajudar; se fosse te ajudar, não teria me deixado
comprar você! Essa sua religião não passa de uma porcaria mentirosa, Tomás.
Conheço muito bem. É melhor se fiar em mim. Eu sou alguém e posso fazer
alguma coisa!
— Não, senhor! — refutou Tomás. — Eu continuarei confiando n’Ele. Deus
pode ou não me ajudar, mas eu vou continuar com Ele e acreditar n’Ele até o
fim!
— Cada dia fica mais tolo! — contestou Legree, cuspindo nele com desdém
e empurrando-o com o pé. — Deixa pra lá. Vou ficar atrás de você, e um dia
você vai mudar de ideia, pode apostar! — E então Legree se afastou.
Quando um grande peso rebaixa a alma ao nível mais baixo que a resiliência
pode aguentar, há um esforço instantâneo e desesperado de cada nervo físico e
moral para retirar esse peso, assim como a mais terrível das angústias sempre
precede o retorno de uma onda de alegria e coragem. E foi assim que aconteceu
com Tomás. As provocações ateístas de seu senhor cruel afundaram sua alma já
cansada até o ponto mais baixo e, embora a mão da fé ainda se apoiasse na rocha
eterna, fazia-o com um toque insensível e desesperado. Tom sentou-se
entorpecido perto do fogo. De repente, tudo à sua volta pareceu desaparecer e
uma visão surgiu diante dele, de alguém coroado com espinhos, ferido e
sangrando. Tomás observou, encantado e surpreso, a paciência magistral do
rosto; os olhos profundos e tristes o tocaram no fundo do coração; sua alma
acordou, e, inundado de emoção, ele esticou as mãos e caiu sobre os joelhos,
quando, gradualmente, a visão mudou: os espinhos pontudos se tornaram raios
de glória e, com um esplendor inconcebível, viu aquele mesmo rosto inclinando-
se misericordiosamente na direção dele, e uma voz disse: “Ao vencedor darei o
direito de sentar-se comigo em meu trono, assim como eu também venci e
sentei-me no trono de meu Pai”.
Por quanto tempo ficou deitado ali, Tomás não sabia. Quando recobrou os
sentidos, o fogo tinha se apagado, suas roupas estavam molhadas com o orvalho
frio e úmido; no entanto, a crise de tristeza da alma passara e, com a felicidade
que lhe invadiu, não mais sentiu fome, frio, cansaço, frustração, desprezo. Do
fundo da alma, ele, naquele momento, perdeu e se desapegou de todas as
esperanças desta vida, e ofereceu, de boa vontade, um sacrifício inquestionável
ao Infinito. Tomás levantou os olhos para as estrelas eternas e silenciosas,
protótipos de seres angelicais que cuidam eternamente dos homens, e a solidão
da noite trouxe as palavras triunfantes de um hino que ele cantara muitas vezes
em dias mais felizes, mas nunca com tanto sentimento como agora:

A terra se dissolverá como neve,


O sol já não mais brilhará,
Mas Deus, que aqui me chamou,
Meu para sempre será.

E quando esta vida mortal cessar


E a carne e os sentidos não mais existirem
Terei eu, no céu,
Uma vida de paz e alegria

Quando estivermos lá há dez mil anos,


Brilhando reluzentes como o sol,
Não teremos menos dias do que antes
Para vangloriarmos a Deus.

Aqueles familiarizados com as histórias religiosas da população escrava


sabem que as relações como essa que acabamos de narrar são comuns entre eles.
Ouvimos algumas de seus próprios lábios, de caráter muito tocante e
impressionante. O psicólogo nos relata um estado no qual as afeições e imagens
mentais se tornam tão dominantes e poderosas que acabam afetando nossos
sentidos externos, fazendo com que criem imagens tangíveis do imaginário
mental. Quem poderia avaliar o que o Espírito Supremo seria capaz de fazer com
essas possibilidades de mortalidade ou, de que forma Ele poderia encorajar as
almas desesperadas dos desolados? Se o pobre escravo abandonado acredita que
Jesus apareceu e falou com ele, quem pode contradizê-lo? Jesus não disse que
sua missão, em todos os tempos, era acolher aqueles de coração partido e libertar
os oprimidos?
Quando a luz fraca da aurora despertou os miseráveis para voltar ao trabalho
no campo, havia entre aqueles pobres coitados exauridos e trêmulos um que
caminhava com força impressionante, pois, mais firme do que o chão sobre o
qual ele caminhava era sua fé inabalável no amor eterno do Todo-Poderoso. Ah,
Legree, tente usar toda sua força agora! Profunda agonia, tristeza, degradação,
tormentos e perda de todas as coisas apenas agilizarão o processo pelo qual ele
se tornará rei e servo do Senhor!
A partir desse momento, uma esfera inviolável de paz envolveu o pobre
coração do oprimido, e o onipresente Salvador fez dele um templo. Agora,
passados os sangrentos arrependimentos terrenos, passadas as oscilações de
esperança, medo e vontades; a determinação humana, por tanto tempo
aniquilada, sofrida e angustiada, agora parecia completamente imersa no Divino.
A viagem da vida parecia estar tão perto do fim; e tão próxima e tão vívida
parecia a misericórdia eterna que os piores sofrimentos da vida não mais o
afetavam.
Todos notaram a mudança na aparência dele. A alegria e disposição
voltaram, além de uma tranquilidade à qual nenhum insulto ou molestamento
poderiam abalar.
— Que diabos aconteceu com Tomás? — Legree perguntou a Sambo. —
Pouco tempo atrás ele se arrastava pelo chão, agora está saltitante como um
grilo.
— Não sei, não, mestre. Vai fugir, talvez.
— Queria ver ele tentar fazer isso! — disse Legree, com um sorriso
selvagem — Né, Sambo?
— Acho que sim! Hey, hey, ho! — respondeu o gnomo negro, gargalhando
obedientemente. — Ah, Deus, que divertido! Ver ele preso na lama, correndo e
se escondendo pelo mato, os cachorro agarrando ele! Quase rachei no meio de
tanto rir aquela vez que pegamos a Molly. Pensei que eles fosse rasgar ela em
pedacinho antes de eu conseguir tirar eles de cima dela. Até hoje ela tem a marca
daquela fuga!
— Vai levar elas pro túmulo! — comentou Legree. — Mas, Sambo, fique
alerta. Se o negro tentar qualquer coisa do tipo, traz ele de volta.
— Pode deixar comigo, mestre! — disse Sambo. — Vou caçar o preto! Ho,
ho, ho!
Essa conversa aconteceu enquanto Legree montava no cavalo para ir à
cidade vizinha. Naquela noite, ao voltar, resolveu virar o cavalo e passar pelas
barracas para ver se tudo estava bem.
Era uma maravilhosa noite enluarada, e as sombras das árvores-da-china se
erguiam num desenho minucioso sobre o pasto abaixo, e havia um silêncio
invisível no ar, tão solene que seria quase um pecado perturbá-lo. Legree não
estava muito longe das barracas quando ouviu a voz de alguém cantando. Não
era o som costumeiro dali, então parou para ouvir. Uma voz de tenor afinada
cantava:

Quando vejo meus títulos


Nas mansões do paraíso,
Dou adeus a todos os medos
E seco meus olhos molhados.

Se a terra lutar contra minha alma


E atirar as flechas do inferno
Rirei da fúria de Satã,
E zombarei do mundo descontente

Deixe que venha o dilúvio


E tempestades de agonia
Pois estarei em casa a salvo,
Meu Deus, meu Céu, meu Tudo

“Ora, ora. Então ele acha isso, é?”, disse Legree a si mesmo.
— Como odeio esses maldito hino metodista! Vai ver só, seu preto! — ele
bradou indo repentinamente para cima de Tomás e levantando o chichote. —
Como ousa estar em pé quando já deveria estar dormindo? Cala essa bocarra
preta e entre já!
— Sim, senhor — concordou Tomás, animado, ao levantar-se e entrar na
barraca.
Legree sentiu-se provocado além da conta pela evidente felicidade de Tomás
e, indo atrás dele, esmurrou-lhe a cabeça e os ombros.
— Aí está, seu cão! Vamos ver se vai se sentir tão bem depois disso!
Mas as pancadas foram sentidas apenas pelo homem exterior e não como
antes, no coração. Tomás permaneceu absolutamente submisso e, ainda assim,
Legree não podia esconder de si mesmo que seu poder sobre o escravo já não
mais existia. Assim, quando Tomás desapareceu para dentro da cabana, e ele, de
repente, deu meia volta no cavalo, passaram pela sua cabeça aqueles flashes que
geralmente iluminam a consciência da alma cruel e sombria. Legree
compreendia muito bem que era DEUS que estava entre ele e sua vítima, e o
blasfemou. Aquele homem subsmisso e silencioso, a quem nem surras, nem
ameaças, nem chibatadas, nem qualquer tipo de crueldade poderia perturbar,
acordou uma voz dentro dele, como a de um velho mestre que acorda dentro de
uma alma demoníaca, dizendo: “Que queres conosco, Jesus de Nazaré? Vieste
aqui para nos atormentar antes do tempo?”.
A alma de Tomás se derramava em compaixão e simpatia pelos pobres
infelizes que o rodeavam. Parecia-lhe que sua vida de sofrimento terminara e,
diante daquele estranho tesouro de paz e felicidade que recebera do céu, desejou
poder fazer algo para aliviar a desgraça dos companheiros. Sim, verdade seja
dita, as oportunidades eram escassas; mas, nas idas e vindas dos campos e
durante as horas de trabalho, surgiam oportunidades de estender a mão aos
exaustos, aflitos e desanimados. A princípio, as criaturas aniquiladas e
brutalizadas mal podiam compreender aquilo, mas ao continuar semana após
semana, mês após mês, aquelas ações começaram a tocar cordas há muito tempo
silenciosas naqueles corações petrificados. Gradual e imperceptivelmente aquele
homem paciente, estranho e quieto, que estava sempre pronto a suportar o peso
de todos e não pedia ajuda a ninguém, que apoiava a todos e sempre vinha por
último, tirava do pouco que tinha para dividir com os necessitados; o homem
que, nas noites frias, oferecia seu cobertor puído para dar mais conforto a
algumas mulheres trêmulas pela doença, e que enchia os cestos dos mais fracos
no campo, correndo o risco de não alcançar sua própria cota, e o qual, embora
perseguido pela incansável crueldade de seu tirano comum, nunca se juntou ao
coro para rebelar-se ou praguejar; esse homem finalmente passou a ter um
estranho poder sobre eles, e quando a alta estação de colheita passou, e de novo
puderam usar seus domingos a seu bel prazer, muitos se reuniam ao redor dele
para ouvi-lo falar de Jesus. Eles se reuniam, alegremente, para ouvir, rezar e
cantar juntos em algum lugar, mas Legree não permitia e mais de uma vez
impediu tais tentativas com ameças e punições brutais, de forma que as palavras
abençoadas circulavam de boca em boca. E quem poderia explicar a felicidade
simples com que alguns desses pobres execrados, para quem a vida era uma
triste jornada ao sombrio desconhecido, ouviam falar de um Redentor
misericordioso e de uma casa sagrada? Dizem os missionários que, de todas as
raças do mundo, nenhuma jamais recebeu o Evangelho com mais amabilidade do
que os africanos. O princípio de confiança e de fé inquestionável, sua fundação,
é um elemento mais natural nessa raça do que em qualquer outra, e várias vezes
notou-se entre eles que a semente da verdade, quando plantada no coração dos
mais ignorantes, gera frutos cuja abundância pode envergonhar até mesmo
aqueles da mais alta classe e cultura.
A pobre mulata, cuja boa fé fora absolutamente destruída e sufocada pela
avalanche de crueldade e maldade que se colocou sobre ela, sentia a alma se
alegrar pelos hinos e passagens da Escritura Sagrada que esse pobre missionário
sussurrava em seus ouvidos de vez em quando, nas idas e vindas do trabalho; e
até mesmo a mente quase insana e transtornada de Cassy se tranquilizava e se
acalmava com as influências simples e discretas de Tomás.
Tomada pela loucura e desespero das agonias excruciantes da vida, Cassy
geralmente pensava, em sua alma, em um momento de retribuição, quando suas
próprias mãos infligiriam a seu opressor toda a injustiça e crueldade da qual fora
testemunha ou as quais ela própria tinha sofrido.
Uma noite, depois de todos estarem dormindo na cabana de Tomás, ele
acordou sobressaltado ao ver o rosto dela no buraco entre os troncos que serviam
como janela. Ela fez um gesto silencioso para que ele fosse para fora.
Tomás saiu pela porta. Era entre uma e duas horas da manhã, luar aberto,
calmo e silencioso. Tomás notou, quando a luz da lua iluminou os grandes olhos
negros de Cassy, que havia um brilho selvagem e particular neles, diferente do
habitual desespero de sempre.
— Venha aqui, Pai Tomás — ela disse, colocando a mão delicada no pulso
dele e puxando-o para a frente com a força de uma mão de aço. — Venha aqui,
tenho novidades.
— O que é, Srta. Cassy? — perguntou Tomás, ansioso.
— Tomás, gostaria de ser livre?
— Eu serei, senhorita, quando Deus quiser — respondeu Tomás.
— Ah, mas poderia ser livre esta noite — refutou Cassy com súbita
animação. — Venha!
Tomás hesitou.
— Venha! — ela disse, em um sussurro, fixando os olhos negros nele. —
Venha comigo! Ele está dormindo como uma pedra! Fiz uma mistura na bebida
para deixá-lo nesse estado. Gostaria de ter mais, assim não precisaria da sua
ajuda. Mas venha, a porta de trás está destrancada; tem um machado lá, eu
mesma o coloquei ali; a porta dele está aberta; eu lhe mostrarei o caminho. Faria
isso sozinha, mas meus braços estão tão fracos. Venha comigo!
— Por nada nesse mundo, senhorita! — Tomás retorquiu com firmeza,
parando e segurando-a enquanto ela o puxava para a frente.
— Mas pense em todas essas pobres criaturas — disse Cassy. — Poderemos
libertar a todos e ir para algum lugar nos pântanos, e encontrar uma ilha e viver
sozinhos; já ouvi coisas desse tipo. Qualquer vida é melhor do que essa!
— Não! — Tomás disse rispidamente. — Nenhum bem vem do mal. Preferia
cortar minha mão direita!
— Então eu mesma o farei! — Cassy falou, virando-se.
— Por favor, Srta. Cassy! — Tomás pediu se colocando na frente dela. —
Pelo bom Deus que morreu por você, não venda sua boa alma ao diabo dessa
maneira! Nada de bom virá disso! O Senhor não nos pede vingança! Devemos
padecer e esperar!
— Esperar? — indagou Cassy. — E eu já não esperei? Esperei até minha
cabeça ficar tonta e meu coração doente? E por que ele me fez sofrer? Por que
fez sofrer a centenas de criaturas miseráveis? E ele não está lhe arrancando a
carne e lhe tirando o sangue? Recebi o chamado; eles me chamam! A hora de
Legree chegou e eu hei de ter o sangue dele!
— Não, não, não! — insistiu Tomás, segurando as mãos delicadas da
mulher, fechadas com violência espasmódica. — Não, pobre criatura de alma
perdida, não deve fazer isso! Nosso amado e abençoado Deus nunca derramou
sangue senão o d’Ele, e fez isso por nós, quando fomos seus algoz. Senhor, nos
ajuda a seguir seus passos e amar a nossos inimigos.
— Amar? — bradou Cassy com um olhar furioso. — Amar tais algozes?
Isso não é coisa desse mundo!
— Não, senhorita, não é! — Tomás concordou levantando os olhos. — Mas
Ele nos dá esse amor, e essa é a vitória. Quando a gente puder amar e rezar por
todos e apesar de tudo, a batalha chegará ao fim, e a vitória vem, glória a Deus!
— e com olhos marejados e voz embargada, o negro olhou para o céu.
E isso, ó, África! Última das nações, chamada à coroa de espinhos, à tortura,
ao suor sangrento, à cruz da agonia, esta vai ser sua vitória! Através disso
reinará com Cristo quando o reino d’Ele se instalar na Terra.
O fervor profundo dos sentimentos de Tomás, a doçura de sua voz, suas
lágrimas caíram como orvalho sobre o espírito transtornado e selvagem da pobre
mulher. Uma candura lhe encobriu o fogo insano dos olhos; ela abaixou a
cabeça, e Tomás pôde sentir os músculos das mãos dela relaxando quando ela
disse:
— Não lhe disse que espíritos malignos me perseguem? Ah, Pai Tomás, não
consigo rezar; gostaria de conseguir. Nunca mais rezei desde que meus filhos
foram vendidos! Deve ter razão no que está falando, sei que tem; mas quando
tento rezar, só consigo odiar e praguejar. Não consigo rezar!
— Pobre mulher! — disse Tomás, misericordioso. — Satanás quer tomar
posse de você e quebrar você no meio feito um galho de trigo. Rezo a Deus por
você. Ah, Srta. Cassy, recorra ao bom Jesus. Ele veio para curar os coração aflito
e confortar quem sofre.
Cassy assentiu em silêncio enquanto grandes lágrimas pesadas escorriam de
seus olhos tristes.
— Senhorita Cassy — Tomás falou hesitante, depois de observá-la em
silêncio por um momento —, se pudesse sair daqui, se isso fosse possível, eu
falaria pra você e Emmeline irem embora; quer dizer, se pudesse fazer isso sem
derramamento de sangue, não de outra forma.
— E você viria conosco, Pai Tomás?
— Não — respondeu Tomás. — Houve um tempo em que eu iria, mas o
Senhor me deu uma missão entre essas pobre criatura, e ficarei com eles e vou
carregar minha cruz até o fim. É diferente para você; é uma prisão, é mais do que
pode suportar; assim, se puder, é melhor partir.
— Não conheço outro caminho senão o do túmulo — declarou Cassy. —
Não há animal ou pássaro que não seja capaz de encontrar um lar em algum
lugar; até mesmo as cobras e os crocodilos têm um lugar para se deitar e ficar em
paz; mas não há lugar para nós. Lá nos pântanos escuros os cães nos caçarão e
nos encontrarão. Tudo e todos estão contra nós; até mesmo as próprias bestas
estão contra nós. Para onde iremos?
Tomás ficou em silêncio e finalmente disse:
— Ele, que salvou Davi na cova dos leões, que salvou as crianças da
fornalha ardente; Ele que andou sobre a água e ordenou aos ventos que parassem
de soprar; Ele está vivo. E tenho fé que vai te guiar. Tente fugir e eu vou rezar
por você, com toda a força de meu coração!
Que estranha lei da mente é essa que, de repente, traz nova luz a uma ideia
há muito descartada, como uma pedra inútil atirada ao poço que depois surge
como um diamante?
Cassy sempre elocubrara, durante horas, todos os possíveis e prováveis
esquemas de fuga, mas descartara a todos, achando-os inúteis e impraticáveis.
Mas neste momento um plano passou por sua cabeça, tão simples e factível em
todos os seus detalhes, que retomou as esperanças.
— Pai Tomás, eu tentarei fugir! — a mulher declarou repentinamente.
— Amém! Deus vai te guiar! — Tomás disse.
39
O ESTRATAGEMA

“Mas o caminho dos ímpios é como densas trevas; nem sequer sabem
em quem tropeçam.”1

O sótão da casa ocupada por Legree, assim como a maioria dos sótãos, era
um espaço enorme, desolado, empoeirado, repleto de teias de aranhas e entulhos.
A rica família que habitara a casa em seus dias de esplendor importara uma
mobília maravilhosa, parte da qual levaram consigo, enquanto outra fora deixada
em cômodos mofados e desocupados, ou guardados neste lugar. Uma ou duas
caixas imensas, nas quais a mobília fora trazida, estavam encostadas nas paredes
do sótão. Havia uma pequena janela que permitia a entrada de um pouco de luz,
atráves de seus painés desbotados, sobre as cadeiras de espaldar alto e mesas
sujas, que já viram dias melhores. No todo, era um espaço estranho e
fantasmagórico, no entanto, por mais assustador que fosse, entre os negros
supersticiosos havia lendas que aumentavam ainda mais seus horrores. Poucos
anos antes, uma negra que desagradara Legree fora confinada ali durante
semanas. O que aconteceu no local não ousamos dizer; os negros costumavam
cochichar sombriamente entre si; sabe-se que um dia o corpo da infeliz criatura
foi tirado de lá e enterrado e, depois disso, dizia-se que ameaças e blasfêmias, e
o som violento de socos, costumavam soar pelo velho sótão, misturados a gritos
e gemidos de desespero. Certa vez, quando Legree escutou esse tipo de
conversa, teve um ataque de nervos, e jurou que a próxima pessoa que contasse
histórias sobre o sótão teria oportunidade de conhecer o que havia lá, pois ele a
acorrentaria lá por uma semana. Essa ameaça foi o suficiente para cessar a
conversa, embora, de forma alguma, não tenha tirado o crédito da história.
Aos poucos, a escadaria que levava ao sótão, e até mesmo o corredor que
dava para a escadaria, passou a ser evitado por todos na casa, pois todos tinham
medo de falar do assunto, e, assim, a lenda foi gradualmente caindo no
esquecimento. Ocorreu subitamente a Cassy fazer uso dessa supersticiosidade
exacerbada, tão forte em Legree, para o propósito de sua libertação e de sua
companheira sofredora.
O quarto de dormir de Cassy ficava bem embaixo do sótão. Um dia, sem
consultar Legree, resolveu por conta própria e com alguma ostentação, mudar
toda a mobília e todos os aparatos do quarto para outro mais distante. Os criados,
chamados para realizarem a movimentação, corriam de um lado para o outro,
animados e confusos, quando Legree voltou de uma cavalgada.
— Olá, Cassy! — disse Legree. — O que está acontecendo agora?
— Nada. Achei melhor me mudar para outro quarto — Cassy disse com
indiferença.
— E posso saber por quê? — perguntou Legree
— Resolvi mudar — respondeu Cassy.
— Pelo inferno que é só isso! Por quê?
— Porque gostaria de poder dormir, de vez em quando.
— Dormir? Bem, e o que impede você de dormir?
— Até contaria, se quisesse ouvir — Cassy respondeu secamente.
— Põe pra fora, sua ordinária! — ordenou Legree.
— Ah, nada. Imagino que não lhe incomodaria! Só gemidos, e pessoas se
arrastando, e rolando pelo chão do sótão, metade da noite, da meia-noite até de
manhã!
— Gente no sótão! — refutou Legree, incomodado, porém forçando um
sorriso. — E quem é, Cassy?
Cassy ergueu seus olhos negros ríspidos e olhou para o rosto de Legree com
uma expressão que lhe gelou os ossos, ao dizer:
— Sou eu quem pergunta quem são elas, Simon. Gostaria que você me
dissesse. Mas você não saberia, imagino!
Praguejando, Legree desferiu um golpe de chicote, mas Cassy desviou para
um lado, passou pela porta e disse olhando para trás:
— Se dormisse naquele quarto entenderia do que estou falando. Talvez
devesse experimentar! — e fechou imediatamente a porta.
Legree vociferou, praguejou e ameaçou arrombar a porta, mas
aparentemente pensou melhor e caminhou incomodado até a sala. Cassy
percebeu que tinha tocado no ponto certo e, a partir daquele momento, com
particular diligência, nunca parou de operar as influências que começara.

Em um buraco na madeira do sótão Cassy inseriu o gargalo de uma velha


garrafa, de tal forma que, quando havia um mínimo vento, sons sofridos e
lúgubres saíam dali e, durante as ventanias, os ruídos aumentavam a ponto de
parecerem gritos, os quais os ouvidos crédulos e supersticiosos facilmente
imaginariam ser de horror e desespero.
Vez ou outra esses sons eram ouvidos pelos escravos, e reavivavam com
força total a memória da lenda do velho fantasma. Um horror fantasmagórico e
supersticioso parecia tomar conta da casa; e, embora ninguém ousasse
mencionar nada a Legree, ele próprio fora envolvido por aquela atmosfera de
medo.
Ninguém é tão supersticioso como um homem ateu. O cristão acredita na
presença de um Pai sábio e todo-poderoso, cuja presença preenche o vazio
desconhecido com luz e ordem; mas, para um homem que não crê em Deus, o
espírito terreno é, nas palavras do poeta hebreu, “uma terra de escuridão e uma
sombra de morte” sem nenhum tipo de ordem, onde a luz se assemelha à
escuridão. Para ele, vida e morte são terrenos assombrados, repletos de formas
vagas e monstruosas de terrível padecimento.
Os elementos morais dormentes em Legree foram incitados pelas conversas
com Tomás; incitados apenas para serem sufocados pela força determinante do
mal; ainda assim havia tremor e comoção diante do mundo interior obscuro
revelado a cada palavra, prece ou hino que reagia com pavor supersticioso.
A influência de Cassy sobre Legree era estranha e singular. Ele era seu dono,
tirano e torturador. Ela estava, como ele bem sabia, total e inegavelmente nas
mãos dele, sem qualquer possibilidade de ajuda ou consolo; ainda assim, não é
possível, até mesmo para o mais brutal dos homens, viver em constante relação
com uma mulher de personalidade forte e não ser controlado por ela. Logo que
ele a comprara, Cassy era, como ela mesma colocou, uma mulher de criação
delicada; mas então ele a humilhara, sem nenhum escrúpulo, sob os pés de sua
brutalidade. Mas, com o tempo, à medida que as degradações e o desespero
endureciam a força feminina dentro dela, e trazia à tona o fogo de paixões mais
ardentes, Cassy se tornara a senhora de Legree, que a tiranizava e a temia ao
mesmo tempo.
Essa influência tornara-se mais ameaçadora e decisiva desde que a
insanidade parcial da escrava dera tons mais estranhos, misteriosos e
desconcertantes às suas palavras e ao seu linguajar.
Uma ou duas noites depois, Legree sentava-se na velha sala, junto ao fogo
crepitante que lançava sombras incertas pelo ambiente. Era uma noite
tempestuosa e ventosa, daquelas que trazem todo tipo de barulhos desconhecidos
a velhas casas dilapidadas. As janelas estalavam, as persianas batiam, o vento
engolia tudo, trovejando e revirando a chaminé, e, de quando em quando,
baforava fumaça e cinzas, como se uma legião de espíritos estivesse vindo atrás
deles. Legree estivera fazendo contas e lendo periódicos durante algumas horas,
enquanto Cassy sentava-se no canto, olhando tristemente para o fogo. Legree
colocou o periódico de lado e, vendo um velho livro sobre a mesa, o qual notara
que Cassy estivera lendo, pegou-o e começou a folheá-lo. Era uma daquelas
coleções de histórias de assassinatos sangrentos, lendas fantasmagóricas e
aparições sobrenaturais, que, grosseiramente escritas e ilustradas, exercem uma
estranha fascinação assim que se começa a lê-las.
Legree desprezou e fez piada, contudo, virou página seguinte até que
finalmente, depois de ler um pouco, atirou o livro para longe, praguejando.
— Você não acredita em fantasmas, acredita, Cass? — ele perguntou,
pegando as tenazes e arrumando o fogo. — Pensei que tivesse mais juízo e não
se deixasse impressionar tanto pelos barulhos.
— Não faz diferença o que eu penso — Cassy respondeu com tristeza.
— Os camarada no mar costumava me assustar com histórias — contou
Legree. — Nunca conseguiram. Mas, vou te contar uma coisa, essa bobagem não
me mete medo.
Cassy, do canto escuro, olhava intensamente para ele. Havia nos olhos dela
um brilho estranho que sempre causara incômodo a Legree.
— Esses barulho não passa de ratos e vento — afirmou Legree. — Ratos faz
um barulho danado. Eu às vezes ouvia eles no porão do navio; e o vento, ah,
pelo amor de Deus! O vento pode virar qualquer coisa.
Cassy sabia que Legree estava constrangido diante dela e não fez nenhum
comentário e, como antes, continuou com o olhar fixo nele, com aquela
expressão estranha e misteriosa no rosto.
— Anda, mulher, diz alguma coisa. Você não acha? — perguntou Legree.
— Por acaso os ratos conseguem descer as escadas e andar pelo corredor e
abrir a porta, quando se trancou e se colocou uma cadeira atrás dela? —
perguntou Cassy. — E vir andando, andando até a cama, e colocar a mão, assim?
Enquanto falava, Cassy mantinha os olhos brilhantes fixos em Legree e ele
olhava para ela como um homem num pesadelo; e quando a escrava colocou sua
mão gelada sobre a dele, Legree recuou com uma ameaça.
— Mulher! O que quer dizer? Alguém fez isso?
— Ah, não, claro que não; por acaso eu falei que alguém fez? — Cassy
respondeu com um frio sorriso de escárnio.
— Mas, você viu de verdade? Vamos lá, Cass, o que é, diz!
— Vá dormir lá — disse Cassy — se quiser saber.
— E isso veio do sótão, Cassy?
— Isso o quê? — perguntou Cassy?
— Bem, isso de que acabou de falar…
— Eu não disse nada — refutou Cassy esquivando-se com um silêncio
macabro.
— Vou ver o que está acontecendo. Vou esta noite mesmo. Vou levar minhas
pistola…
— Faça isso; durma naquele quarto. Gostaria de vê-lo fazendo isso. E use
suas pistolas, por favor!
Legree bateu o pé e praguejou violentamente.
— Não pragueje — disse Cassy. — Nunca se sabe quem está ouvindo!
Preste atenção! O que foi isso?
— O quê? Perguntou Legree, assustado.
Um antigo relógio holandês, que ficava no canto da sala, começou a bater
lentamente as doze badaladas.
Por algum motivo, Legree nem falou nem se moveu; um horror vago tomou
conta dele enquanto Cassy, com um brilho astuto e zombeteiro nos olhos,
olhava-o fixamente, contando as badaladas.
— Meia-noite; bem, agora verá — ela disse, virando-se e abrindo a porta
que dava para o corredor, parando como se estivesse ouvindo algo.
— Ouça! O que é isso? — ela perguntou erguendo o dedo.
— É só o vento — respondeu Legree — Não vê como está soprando forte?
— Simon, venha aqui — pediu Cassy, num sussurro, colocando a mão sobre
a dele e levando-o até o pé da escada. — Sabe o que é isso? Escute!
Um grito selvagem desceu pela escadaria. Vinha do sótão. Os joelhos de
Legree tremeram e o rosto dele empalideceu de medo.
— Não seria melhor pegar suas pistolas? — Cassy perguntou com um
escárnio que congelou o sangue de Legree. — Precisa ver o que está
acontecendo. Quero que você vá lá em cima agora: eles estão lá!
— Não vou coisa nenhuma! — Legree bradou praguejando.
— Por que não? Não existem fantasmas, sabe muito bem disso! Vamos! — e
Cassy subiu alguns degraus da escadaria espiralada, rindo e olhando para trás. —
Vamos!
— Acho que você é o diabo em pessoa! — Legree falou. — Volte aqui, sua
bruxa! Volte aqui, Cass! Não deve subir aí!
Mas Cassy soltou uma gargalhada selvagem e continou. Ele a ouviu abrir as
portas de entrada que davam para o sótão. Uma lufada de vento desceu as
escadas, apagando a vela que ele segurava na mão, e com o vento, gritos
pavorosos e assustadores que pareciam ser gritados no ouvido do próprio
homem.
Legree correu desesperadamente para dentro da sala, onde, em poucos
minutos, foi seguido por Cassy, pálida, calma, gélida como um espírito vingador,
e com o mesmo brilho assustador nos olhos.
— Espero que agora esteja satisfeito — ela falou.
— Vá pro inferno, Cass! — retrucou Legree.
— Por quê? Só fui lá em cima e fechei as portas. Qual é o problema com o
sótão, Simon? O que você acha? — Cassy perguntou.
— Não é da sua conta! — Legree respondeu.
— Ah, não é? Bem, de qualquer forma, fico feliz por não ter que dormir
embaixo dele — falou a escrava.
Prevendo o aumento do vento, naquela mesma noite Cassy fora até o sótão e
abrira a janela. Obviamente, no momento em que as portas se abriram, o vento
soprou escada abaixo e apagou a vela.
Esse pode servir como exemplo do jogo que Cassy jogaria com Legree até
que, em breve, ele preferisse colocar a cabeça dentro da boca de um leão a
explorar o sótão. Enquanto isso, à noite, enquanto todos dormiam, Cassy lenta e
cuidadosamente acumulava lá um estoque de provisões suficiente para prover
subsistência durante algum tempo; ela transferiu, artigo por artigo, grande parte
do seu guarda-roupa e do de Emmeline. Com todas as coisas organizadas, elas
apenas esperavam pelo momento adequado para colocarem seu plano em ação.
Bajulando Legree e se aproveitando de um intervalo de bom humor, Cassy o
persuadira a levá-la até a cidade vizinha, situada bem à margem do Rio
Vermelho. Com uma memória aguçada ao ponto de clareza sobrenatural, ela
memorizou cada curva da estrada e fez uma estimativa mental do tempo que
levariam para atravessá-la.
Quando tudo já se encontrava pronto para ação, nossos leitores talvez
queiram olhar por trás dos bastidores e ver o coupe d’etat final.
A noite estava caindo. Legree se ausentara para ir a uma fazenda vizinha.
Durante muitos dias Cassy estivera incomumente amável e obsequiosa, de forma
que, ela e Legree estavam aparentemente em bons termos. Neste momento
encontramos Cassy e Emmeline no quarto da última, ocupadas arrumando duas
pequenas trouxas.
— Pronto, estão de bom tamanho — disse Cassy. — Agora ponha seu
chapéu e vamos: está quase chegando a hora.
— Mas agora ainda conseguem nos ver — falou Emmeline.
— E quero mesmo que nos vejam — Cassy respondeu com frieza. — Não
sabe que eles precisam fazer uma busca, de qualquer maneira? Isso tudo
acontecerá da seguinte forma: vamos escapar pela porta dos fundos e correr pelo
meio das barracas. Sambo e Quimbo com certeza nos verão. Eles irão atrás de
nós e nós entraremos no pântano; assim, não poderão nos seguir mais até
voltarem e soarem o alarme, pegarem os cachorros e tudo mais; enquanto eles
vão de um lado para o outro, se atropelando como sempre fazem, você e eu
iremos até o riacho que corre atrás da casa e o atravessaremos até chegarmos do
lado oposto da porta de trás. Isso deixará os cachorros perdidos, pois não
conseguem sentir o cheiro na água. Todos sairão da casa para nos procurar e
então nós entramos sorrateiramente pela porta de trás e subiremos até o sótão,
onde eu já fiz uma ótima cama com uma daquelas caixas enormes. Ficaremos no
sótão por um bom tempo, pois, acredite em mim, Legree moverá céu e terra para
nos encontrar. Reunirá alguns dos antigos feitores das outras fazendas e armará
uma verdadeira caçada; e eles irão procurar cada centímetro de chão naquele
pântano. Ele gosta de se vangloriar que ninguém nunca conseguiu fugir dele.
Então, deixe que nos procure o quanto quiser!
— Cassy, planejou tudo tão bem! — Emmeline elogiu. — Só você mesmo
para inventar uma coisa assim!
Não havia prazer nem alegria nos olhos de Cassy, apenas uma firmeza
desesperadora.
— Venha — ela disse, puxando Emmeline pela mão.
As duas fugitivas se esgueiraram silenciosamente pela casa, e correram, nas
sombras acumuladas da noite, ao longo das barracas. A lua crescente, que
parecia um farol prateado no céu ocidental, atrasava um pouco a chegada da
noite. De acordo com as expectativas de Cassy, quando estavam perto de
alcançar os pântanos que circundavam a fazenda, ouviram uma voz mandando-
as parar. No entanto, não era Sambo, mas Legree, quem as seguia com violentas
blasfêmias. Ao ouvi-lo, o espírito frágil de Emmeline esmoreceu e, pegando no
braço de Cassy ela disse:
— Ah, Cassy, acho que vou desmaiar!
— Se desmaiar, mato você! — ameaçou Cassy, puxando um punhal pequeno
e reluzente e colocando-a diante dos olhos da garota.
A distração teve o efeito esperado. Emmeline não desmaiou e, junto com
Cassy, continou se embrenhando pelo labirinto do pântano, tão fundo e escuro
que seria impossível a Legree pensar em segui-las sem ajuda.
— Bem — ele disse, gargalhando cruelmente —, de qualquer jeito, agora as
duas se enfiaram numa armadilha — essas vagabunda!
— Ei, vocês! Sambo! Quimbo! Todos aqui! — Legree gritou vindo até as
barracas quando os homens e mulheres estavam voltando do trabalho. — Tem
duas fujona no pântano. Vou dar cinco dólares para qualquer preto que pegar
elas! Soltem os cachorro! Soltem Tigre, Fúria e todo o resto!
A reação produzida por esta notícia foi imediata. Muitos dos homens deram
um passo à frente para, oficiosamente, oferecerem seus serviços, ou na esperança
de receberem uma recompensa ou simplesmente por se renderem ao servilismo,
um dos efeitos mais maléficos da escravidão. Uns corriam para lá, outros para
cá. Alguns colocavam fogo nas tochas de madeira de pinho. Outros
desamarravam os cachorros, cujos latidos roucos e selvagens aumentavam ainda
mais a confusão da cena.
— Mestre, nós pode atirar, se nós encontrar elas? — perguntou Sambo, a
quem o mestre entregara um rifle.
— Pode atirar em Cass, se quiser; já passou da hora daquela praga ir para o
inferno, onde ela pertence; mas na garota, não — Legree ordenou. — E agora,
rapazes, fiquem alerta e esperto! Cinco dólares pra quem pegar elas; e um copo
de aguardente pra todo mundo, de qualquer jeito.
Todo o bando, iluminado pelas tochas ardentes, bramiu, gritou e berrou
como loucos, e homens e feras foram em direção ao pântano, seguidos logo atrás
por todos os escravos da propriedade. Assim sendo, a casa estava totalmente
deserta quando Cassy e Emmeline se esgueiraram para dentro, pelos fundos. Os
berros e bramidos de seus perseguidores ainda ecoavam no ar, e, olhando das
janelas da sala, Cassy e Emmeline conseguiam ver a tropa com suas tochas,
dispersando-se ao longo das margens do pântano.
— Veja só! — Emmeline disse apontando para Cassy. — A caçada já
começou! Olhe só todas aquelas luzes! Ouça! Os cães! Não está ouvindo? Se
estivéssemos lá, não teríamos a menor chance! Ah, pelo amor de Deus, vamos
nos esconder! Rápido!
— Não precisa ter pressa — disse Cassy, friamente. — Passarão a noite fora
depois da caçada. — Aí é que está a diversão da noite! Nós iremos lá para cima,
mais tarde. Enquanto isso — ela disse tirando deliberadamente uma chave do
bolso de um casaco que Legree jogara às pressas —, eu pegarei uma coisa para
nossa viagem.
Cassy destrancou a escrivaninha, tirou um maço de notas às quais contou
rapidamente.
— Por favor, não faça isso! — pediu Emmeline.
— Não? — refutou Cassy. — Por que não? Gostaria de morrer de fome nos
pântanos, a ter isso aqui para pagar nosso caminho até os estados livres? O
dinheiro pode tudo, minha cara — e, enquanto falava, guardava o dinheiro no
seio.
— Isso seria roubar — disse Ememeline em um sussurro cansado.
— Roubar! — exclamou Cassy com uma risada desdenhosa. — Aqueles que
nos roubam o corpo e a alma não merecem explicações. Cada uma dessas notas
está sendo roubada de criaturas malditas, famintas e trabalhadoras, que vão até o
inferno pra dar lucro a ele. Ah, ele que venha falar em roubar! Mas, vamos, é
melhor subirmos ao sótão; lá tenho um estoque de velas e alguns livros para
passar o tempo. Pode ter certeza de que não irão até lá nos procurar. Se vierem,
fingirei que sou um fantasma.
Quando Emmeline chegou ao sótão, encontrou uma caixa imensa, que um
dia fora utilizada para transportar pesadas peças de mobília, virada de lado, de
forma que a abertura ficava de frente para a parede, perto das cimalhas. Cassy
acendeu uma pequena lamparina e, passando por trás das cimalhas, ambas se
acomodaram lá dentro. O compartimento estava forrado com dois pequenos
colchões e alguns travesseiros; ao lado, uma caixa estava bem guarnecida com
velas, provisões e todas as roupas necessárias para a jornada, as quais Cassy
arranjara em trouxas de dimensão surpreendentemente pequena.
— Pronto! — Cassy falou enquanto ajeitava a lamparina em um pequeno
gancho que colocara do lado de dentro da caixa com esse propósito. — Esta será
nossa casa neste momento. Gosta?
— Tem certeza de que eles não virão nos procurar no sótão?
— Gostaria muito de ver Simon Legree fazendo isso — disse Cassy. — Não,
tenho certeza; ele ficaria muito feliz em manter distância daqui. Quanto aos
escravos, prefeririam ser mortos a tiro a enfiarem o nariz aqui.
Um pouco mais tranquilizada, Emmeline se acomodou no travesseiro.
— Cassy, estava falando a verdade quando disse que me mataria? — ela
perguntou objetivamente.
— Só quis impedir que desmaiasse — Cassy respondeu. — E consegui. E
agora, Emmeline, tem de colocar na cabeça que não pode desmaiar, haja o que
houver; não há necessidade disso. Se eu não a tivesse impedido, talvez agora
estivéssemos nas mãos daquele maldito.
Emmeline estremeceu.
As duas permaneceram em silêncio durante um tempo. Cassy se entreteve
com um livro francês; Emmeline, tomada pela exaustão, caiu no sono e dormiu
um pouco. Acordou sobressaltada pelos altos gritos e berros, o trote dos cavalos
e o latido dos cães e gritou baixinho.
— É só a caçada chegando ao fim — declarou Cassy friamente. — Não
tenha medo. Olhe por esse buraco aqui. Não estão todos lá? Simon tem que
desistir, pelo menos por essa noite. Veja só como o cavalo dele está enlameado
de tanto se embrenhar no pântano; os cachorros também parecem desanimados.
Ah, meu bom amo, terá que encarar a caçada até cansar; e a presa não está lá.
— Ah, não fale mais nada! — pediu Emmeline. — E se eles a ouvirem?
— Se ouvirem alguma coisa, isso os manterá mais longe ainda— disse
Cassy. — Não há perigo; podemos fazer tanto barulho quanto quisermos; isso só
irá acrescentar mais efeito ao drama.
Ao final, o silêncio da noite alta se espalhou pela casa. Legree,
almaldiçoando sua má sorte e jurando terrível vingança no dia seguinte, foi para
a cama.
40
O MÁRTIR

“Não julgues aquele pelo Céu esquecido!


Ainda que a vida lhe tenha negado todo o bem
Com o coração destruído e sangrando
O homem desprezado irá morrer também!
Pois Deus marcou todos os dias tristes
E contou cada lágrima amarga
E as bênçãos dos longos anos no paraíso
Compensarão todo o sofrimento
Pelo qual passam seus filhos.”
— Bryant

Até a viagem mais longa um dia chega a termo; a noite mais sombria
terminará ao amanhecer. Um lapso de momento inexorável e eterno sempre leva
o mal para a noite eterna, e a noite dos justos para um dia eterno. Caminhamos
até aqui com nosso humilde amigo, no vale da escravidão; primeiramente por
campos de flores de doçura e indulgências, depois por separações sofridas de
todas as coisas caras a um homem. Mais uma vez, esperamos com ele por uma
ilha ensolarada, onde mãos generosas lhe cobrissem os grilhões com flores; e,
por último, o acompanhamos quando o último raio de esperança terrena escapou
pela noite; e neste momento de negrume da escuridão terrena, o firmamento do
desconhecido se iluminou com estrelas de novo lustro e significância.
A estrela da manhã agora paira sobre os cumes das montanhas, e ventanias e
brisas, extraterrenas, anunciam que os portões do dia estão se abrindo.
A fuga de Cassy e Emmeline irritou ao máximo o já mal humorado Legree, e
sua fúria, como já era esperado, recaiu sobre a cabeça indefesa de Tomás.
Quando ele anunciou apressadamente o problema que tinha nas mãos, houve um
brilho súbito nos olhos de Tomás, uma rápida levantada de mãos que não
escapou aos olhos do amo. Ele viu que Tomás não se juntara ao grupo de
perseguidores. Pensou em obrigá-lo a fazê-lo, todavia, tendo experiência da
inflexibilidade do escravo quando ordenado a tomar parte de qualquer ação
inumana, Legree não pararia, nessas circunstâncias de pressa, para entrar em
conflito com ele.
Tomás, dessa forma, ficou para trás, com alguns outros que aprenderam a
rezar com ele, e ofereceu preces às fugitivas.
Quando Legree retornou, confuso e decepcionado, todo o ódio que há muito
nutria na alma pelo escravo começou a se transformar em algo mortal e
desesperador. E aquele homem não o tinha enfrentado, com firmeza, força e
resistência, desde o dia em que o comprara? Não havia nele um espírito o qual,
por mais silencioso que fosse, queimava dentro dele como o fogo da perdição?
“Eu odeio ele! — Legree gritou naquela noite enquanto se sentava à cama.
— Eu odeio ele! E ele não é MEU? Não posso fazer o que bem quiser com ele? E
quero saber quem é que vai me impedir — e Legree fechou os punhos e
balançou-os, como se tivesse algo nas mãos que pudesse esmagar em pedaços.
No entanto, Tomás era um escravo fiel e valioso e, embora Legree o odiasse
ainda mais por isso, a consideração era, de algum modo, um empecilho para ele.
Na manhã seguinte, resolveu não dizer nada ainda; decidiu juntar um grupo
com homens das fazendas vizinhas, com cães e armas, para cercar o pântano e
fazer uma caçada sistemática. Se tivesse sucesso, melhor; se não, traria Tomás
diante de si —— e os dentes de Legree semicerraram e o sangue ferveu — e
então o subjugaria, ou — fez uma horrenda promessa para si mesmo, à qual sua
alma assentiu.
Dizem que o interesse de um mestre é segurança suficiente para o escravo.
Na fúria do desejo insano de um homem, ele é capaz, de boa vontade e olhos
abertos, de vender sua alma ao diabo para alcançar seus objetivos; assim, por
que haveria de ser cuidadoso com o corpo de seu vizinho?
— Bem — disse Cassy no dia seguinte, do sótão, ao fazer um
reconhecimento de área pelo buraco da parede —, a caçada começou novamente
hoje!
Três ou quatro homens a cavalo saltavam no espaço em frente à casa, e um
ou dois cachorros desconhecidos estavam brigando com os negros que os
mantinham nas coleiras, rosnando e latindo uns para os outros.
Dois dos homens eram feitores de fazendas nas redondezas, ao passo que
outros eram alguns dos conhecidos de Legree da taverna de uma cidade vizinha,
que vieram pelo simples interesse na atividade. Nunca poderia se pensar em um
grupo pior. Em rodadas, Legree servia conhaque para todos, inclusive para os
escravos, que vieram de várias plantações para aquele serviço; era necessário, o
máximo possível, transformar todos os serviços desse tipo entre os negros em
uma grande festa.
Cassy pressionou o ouvido no buraco da parede e, à medida que a brisa da
manhã soprava diretamente em direção à casa, ela conseguia ouvir boa parte da
conversa. Uma expressão de grave astúcia e profunda gravidade lhe cobriu o
rosto ao ouvi-los dividindo as áreas de busca, discutindo os méritos dos
cachorros, dando ordens para atirar e falando sobre o tratamento a ser dado a
cada uma, caso fossem capturadas.
Cassy recuou e, juntando as mãos, levantou os olhos e disse:
— Ah, Deus Todo-Poderoso! Somos todos pecadores, mas o que fizemos,
mais do que o restante do mundo, para sermos tratadas assim?
Havia uma terrível tristeza em sua voz e em seu rosto ao dizer essas
palavras.
— Se não fosse por você, minha filha — ela disse olhando para Emmeline.
— Eu iria até lá e agradeceria a qualquer um deles que quisesse atirar em mim. E
para que há de me servir a liberdade? Há de me devolver meus filhos ou fazer de
mim o que eu era antes?
Emmeline, em sua simplicidade infantil, tinha um pouco de medo dos
humores negros de Cassy. Ela parecia perplexa, mas não fez nenhum
comentário. Apenas lhe tomou a mão, com um movimento gentil e carinhoso.
— Não faça isso! — Cassy pediu, tentando se desvencilhar dela. — Acabará
me fazendo amá-la e prometi nunca mais amar de novo!
— Pobre Cassy! — disse Emmeline. — Não fique assim! Se Deus nos
conceder a liberdade, talvez Ele traga sua filha de volta; de qualquer forma, eu
serei como uma filha para você. Sei que nunca mais verei minha pobre mãe
novamente. Eu a amarei, Cassy, quer você me ame ou não!
O espírito amoroso e infantil venceu. Cassy sentou-se ao lado dela, colocou
o braço ao redor do pescoço da garota, acariciou-lhe o cabelo castanho e macio,
e Emmeline então se maravilhou com a beleza dos olhos magnificentes da
mulher, agora suavizados pelas lágrimas.
— Ah, Em! — Cassy falou. — Já passei fome e sede pelos meus filhos, e
meus olhos anseiam por vê-los novamente! Aqui! Aqui! — ela disse batendo no
peito. — Está tudo desolado, é tudo um grande vazio! Se Deus me devolvesse
meus filhos, daí sim seria capaz de rezar.
— Deve confiar Nele, Cassy — disse Emmeline. — Ele é nosso Pai!
— A fúria dele caiu sobre nós — Cassy disse. — Ele nos abandonou.
— Não, Cassy! Deus há de ser bom para nós! Confiemos Nele — falou
Emmeline. — Eu nunca perdi a esperança.

A caçada fora longa, animada e minuciosa, porém infrutífera; Cassy exultou


de alegria e animação ao ver Legree, cansado e abatido, apear do cavalo.
— Quimbo! — chamou Legree ao sentar-se na sala. — Vá e traga Tomás
aqui agora! Aquele escravo maldito está metido nisso até o pescoço, e vou fazer
ele falar de qualquer jeito!
Sambo e Quimbo, embora se odiassem, compartilhavam o mesmo ódio por
Tomás. Legree lhes dissera, a princípio, que o comprara para ser o feitor geral
durante a ausência dele, e isso dera início ao ódio por parte deles, que diante de
sua natureza servil e cruel, aumentava à medida que viam o escravo cada vez
mais desobediente às ordens do mestre.
Tomás ouviu a mensagem com o coração em alerta, pois sabia do plano de
fuga das escravas, assim como o esconderijo delas neste momento; conhecia o
caráter mortal e o poder despótico do homem com quem teria de lidar. Todavia,
sentia-se fortificado em Deus para abraçar a morte, em vez de trair as fugitivas
indefesas.
Colocou o cesto de lado e, erguendo os olhos, disse:
— Em tuas mãos entrego meu espírito! Ó Senhor, venha em meu resgate! —
e então se entregou silenciosamente às mãos brutais e rudes com as quais
Quimbo o segurava.
— Ei, ei! — falou o gigante enquanto o arrastava. — Agora vai ver o que é
bom! Aposto que o mestre está muito nervoso! Não tem como fugir agora! Vou
te dizer, vai ver o que é bom! Quem manda ficar ajudando as nega do sinhô
fugir! Vai ver só o que é bom!
Nenhuma daquelas palavras selvagens chegaram àqueles ouvidos, pois uma
voz suprema dizia: “ Não temas aqueles que matam o corpo, pois, depois disso,
não há nada mais que possam fazer”. Os nervos e os ossos do corpo daquele
pobre homem vibravam diante daquelas palavras, como se ele tivesse sido
tocado pelo dedo de Deus; e Tomás sentiu a força de mil almas em uma só. Ao
passar, as árvores e arbustos, as barracas de sua servitude, todo o cenário de sua
degradação parecia girar em torno dele, como a paisagem de um carro em
movimento. Sua alma latejava, sua morada estava à vista, e o momento de
liberdade parecia ao alcance da mão.
— Bem, Tomás! — disse Legree caminhando até o escravo, agarrando-o
pelo colarinho de seu casaco, falando entredentes em um paroxismo de ódio
pungente. — Sabe que resolvi matá-lo?
— Imagino que sim, senhor — Tomás respondeu calmamente.
— Re-sol-vi ma-tá-lo, Tomás — enfatizou Legree com uma calma sombria e
medonha —, a não ser que me diga o que sabe sobre aquelas vadia!
Tomás permaneceu em silêncio.
— Ouviu o que eu disse? — perguntou Legree, pisando duro e rugindo como
um leão enfurecido. — Fala!
— Não tenho nada pra falar, senhor — respondeu Tomás, com firme e
deliberada determinação.
— Como ousa me dizer, seu velho negro cristão, que não sabe de nada? —
bradou Legree.
Tomás ficou quieto.
— Fala! — bradou Legree, golpeando-o furiosamente. — Sabe de alguma
coisa?
— Sei, meu senhor, mas não posso lhe dizer. Estou pronto pra morrer!
Legree suspirou fundo e, controlando a raiva, pegou Tomás pelo braço e
quase encostando o rosto no dele, disse com uma voz assustadora:
— Ouça bem, Tomás! Acha que porque relevei o que fez antes, não cumpro
o que digo, mas, desta vez, resolvi e já calculei os custos. Você sempre me
afrontou, mas agora ou faz o que eu mando ou eu te mato! Ou uma coisa ou
outra. Vou derramar cada gota de sangue que tem dentro de você, e contar elas,
uma por uma, até você ceder!
Tomás olhou para seu mestre e falou:
— Senhor, se estivesse doente, ou em apuros, ou à beira da morte, eu podia
salvar o senhor; daria todo o sangue do meu coração. Se tirar cada gota de
sangue desse velho corpo pudesse salvar sua preciosa alma, eu o daria de boa
vontade, assim como Deus deu o dele por mim. Ah, senhor! Não cometa esse
grande pecado! Será pior pro senhor do que pra mim! Faça o pior que puder e
meus problema logo estão terminado. Mas, se o senhor não se arrepender, os
seus problema jamais vai ter fim!
Assim como uma estranha estrofe de música celestial ouvida no olho do
furacão, esse jato de sentimento provocou um momento de pausa. Legree,
estupefato, olhava para Tomás. E o silêncio era tanto que o tique-taque do velho
relógio podia ser ouvido, medindo, com um toque silencioso, os últimos
momentos de misericórdia e provação daquele coração embrutecido.
O momento passou. Houve uma pausa hesitante, uma exaltação irresoluta e
branda; e então o espírito do mal retornou com veemência absoluta e Legree,
espumando de raiva, golpeou a vítima, atirando-a ao chão.
Cenas de sangue e crueldade são chocantes aos nossos ouvidos e corações. O
que um homem é capaz de fazer, outro homem não tem coragem de ouvir. O que
um irmão-homem e um irmão-cristão deve padecer não pode ser revelado, nem
mesmo no ambiente mais secreto, tamanho seria o tormento da alma. Ainda
assim, ó, minha nação! Essas coisas são feitas sob a sombra de suas leis! Ó,
Cristo! Sua igreja a tudo vê, quase em silêncio!
Mas, no passado, houve Um cujo sofrimento transformou um instrumento de
tortura, degradação e vergonha em um símbolo de glória, honra e imortalidade;
e, onde quer que esteja seu espírito, nem amarras degradantes, nem sangue nem
insultos podem tornar a derradeira luta de um cristão em outra coisa senão
gloriosa.
Estaria só, naquela longa noite, aquele cujo espírito amoroso e corajoso,
naquele velho barracão, suportara surras e chicotadas brutais?
Não! Ao seu lado estava o Único, visto apenas por ele, “feito semelhante ao
Filho de Deus”.
O tentador também ficou ao lado dele, cego pelo desejo furioso e despótico,
a cada momento pressionando-o para terminar aquela agonia através da traição
aos inocentes. Mas o coração corajoso e verdadeiro segurou-se firme à Rocha
Eterna. Assim como seu Senhor, Tomás sabia que, para salvar aos outros ele
mesmo não poderia ser salvo; e as provações extremas não lhe arrancariam
palavra alguma, exceto de oração ou verdade sagrada.
— Ele está quase morto, amo — Sambo disse tocado, contra a própria
vontade, pela paciência da vítima.
— Batam nele, até ceder! Batam! Batam! — Legree gritou. — Vou tirar até
sua última gota de sangue, até ele confessar!
Tomás abriu os olhos e olhou para seu senhor.
— Pobre coitado! — ele disse.— Não pode fazer mais nada. Eu te perdoo,
de todo coração. — e então Tomás desmaiou.
— Acho que finalmente ele morreu! — disse Legree, dando um passo para a
frente para olhar para ele. — Sim, está morto! Bom, pelo menos a boca dele está
fechada para sempre. Isso é lá um conforto!
Sim, Legree, mas quem calará essa voz em sua alma? Nessa alma que não se
arrepende, não reza, não tem esperanças, na qual o fogo que nunca apaga já está
queimando?
Contudo, Tomás ainda não se fora. Suas lindas palavras e preces devotas
atingiram os corações dos negros embrutecidos que foram os instrumentos das
crueldades infligidas sobre ele; e, no momento em que Legree saiu, eles o
puseram no chão e, em sua ignorância, tentaram trazê-lo de volta à vida, como se
aquilo fosse um favor para ele.
— Com certeza acabamos de fazer uma coisa terrível! — disse Sambo. —
Espero que o senhor que responda por isso, não nós.
Os dois lavaram os ferimentos e fizeram uma cama grosseira, com algodão
refugado, onde deitaram o corpo da vítima; e um deles, indo até a casa, implorou
a Legree por um gole de conhaque, fingindo estar cansado. Levou a bebida de
volta ao barracão e derramou-a na garganta de Tomás.
— Ah, Tomás! — disse Quimbo. Nós tem sido muito ruim pra você!
— Eu perdoo vocês, com todo meu coração! — Tomás falou baixinho.
— Ah, Tomás! Por favor, diga pra nós quem é Jesus! — pediu Sambo. —
Esse Jesus, que ficou do seu lado a noite toda. Quem é Ele?
A pergunta reanimou o espírito do moribundo. Falou, em poucas frases
enérgicas, sobre o maravilhoso Deus; sua vida, sua morte, sua presença eterna e
seu poder de salvação.
E os dois homens selvagens choraram.
— Por que nunca ouvi isso antes? — perguntou Sambo. — Mas eu acredito!
Não tem como não acreditar! Senhor Jesus, tenha misericórdia de nós!
— Pobres coitados! — disse Tomás. — Estaria disposto a dar tudo o que
tenho se isso levasse vocês a Cristo! Ó, Senhor! Dê a mim essas duas almas, eu
lhe peço!
Aquela prece foi atendida.
41
O JOVEM AMO

Dois dias depois, um jovem atravessou a avenida de árvores da China em


uma carruagem simples, e jogando as rédeas rapidamente sobre o pescoço dos
cavalos, caminhou apressadamente e perguntou sobre o proprietário da fazenda.
Era George Shelby e, para saber como chegara até ali, precisamos voltar um
pouco em nossa história.
A carta da Srta. Ofélia à Sra. Shelby, por algum infeliz incidente, ficara
detida em alguma agência postal antes de alcançar o seu destino. E, obviamente,
antes de ser recebida, Tomás já tinha se perdido nos pântanos distantes do Rio
Vermelho.
A Sra. Shelby lera a mensagem com grande preocupação, mas era
impossível tomar qualquer providência imediata. Na época ela estava cuidando
do marido doente, em uma crise delirante de febre. O sinhozinho George Shelby,
que, nesse intervalo, transformara–se de garoto em um jovem alto, ajudava-a
constantemente, e era a única pessoa em quem ela confiava os negócios do
marido. A Srta. Ofélia tivera a precaução de enviar o nome do advogado que
estava cuidando dos negócios dos St. Clares; e, tudo o que podia ser feito, na
urgência do momento, era enviar uma carta pedindo esclarecimentos. A morte
súbita do Sr. Shelby, alguns dias depois, trouxe obviamente grande pressão para
a resolução de outros assuntos.
O Sr. Shelby tinha confiança nas habilidades da esposa, e a apontou como
única inventariante de suas propriedades e, com isso, negócios enormes e
complexos caíram imediatamente nas mãos dela.
A Sra. Shelby, com sua energia característica, envolveu-se no trabalho de
desembaraçar a teia de problemas; e ela e George se ocuparam, durante algum
tempo, da coleta e análise das contas, venda de propriedades e quitação de
dívidas, pois a Sra. Shelby estava determinada a deixar tudo de forma
reconhecível e tangível, e assumir as consequências. Nesse meio tempo, eles
receberam uma carta do advogado, a quem a Srta. Ofélia os recomendara,
dizendo que ele não sabia nada referente à questão: que o homem fora vendido
em leilão púlbico e que, além de receber o dinheiro, ele não sabia nada sobre
aquele assunto.
Nem George nem a Sra. Shelby ficaram satisfeitos com esse resultado; e,
assim, quase seis messes depois, quando George desceu o rio para fazer negócios
para a mãe, resolveu visitar Nova Orleans e fazer algumas perguntas
pessoalmente, na esperança de descobrir o paradeiro de Tomás e, então, resgatá-
lo.
Depois de meses de busca infrutífera, por mero acaso, George topou com um
homem em Nova Orleans quem parecia ter a informação que ele desejava; e com
dinheiro no bolso, nosso herói tomou o barco a vapor no Rio Vermelho, decidido
a encontrar e recomprar seu velho amigo.
Ele logo foi levado à casa-grande, onde encontrou Legree sentado na sala.
Legree recebeu o estranho com hospitalidade um tanto quanto grosseira.
— Sei que comprou, em Nova Orleans, um rapaz chamado Tomás. Ele
pertencia à fazenda de meu pai, e vim até aqui para tentar comprá-lo de volta —
disse o jovem rapaz.
O semblante de Legree se fechou e ele falou, passionalmente:
— Sim, comprei mesmo esse sujeito, e por uma baita barganha! O cão mais
revoltado, metido e imprudente que já vi! Por causa dele meus preto quer fugir; e
ele ajudou duas rapariga, valendo oitocentos ou mil dólares cada uma, a fugir.
Ele confessou e, quando eu perguntei onde elas estava, o nego disse que sabia,
mas não ia contar; resistiu, mesmo eu tendo dado a pior surra que já dei num
escravo até hoje. Acho que ele queria morrer; mas não sei se vai ser dessa vez.
— Onde ele está? — perguntou Geroge impetuosamente. — Deixe-me vê-lo
— as bochechas do rapaz estavam vermelhas e seus olhos cuspiam fogo, no
entanto ele não disse nada, ainda.
— Ele está lá naquele barracão — disse o sujeitinho que segurava o cavalo
de George.
Legree chutou o garoto e praguejou contra ele; mas George, sem dizer outra
palavra, virou-se e caminhou a passos largos até o local onde estava Tomás.
Já fazia dois dias que Tomás estava deitado, desde a noite fatídica, sem
sofrer, pois cada nervo de sofrimento fora massacrado e destruído. Jazia em um
estupor silencioso, pois a constituição de um corpo tão forte e bem feito não
podia liberar de uma vez o espírito aprisionado. Às escondidas, na escuridão da
noite, criaturas desoladas tinham passado por ali, abrindo mão de suas horas de
descanso, tentando retribuir os cuidados amorosos que ele sempre distribuíra
abundantemente. De fato, aqueles pobres discípulos tinham muito pouco a dar,
apenas um copo de água fria, mas o faziam com todo o coração.
Lágrimas caíram sobre aquele rosto honesto e insensível, lágrimas de
arrependimento tardio de pagãos ignorantes e miseráveis, cujos amor e paciência
à beira da morte os fizeram se arrepender, e cujas preces amargas, sopradas
sobre eles pelo recém-descoberto Salvador, de quem eles mal sabiam o nome,
mas a quem os corações ignorantes em súplica nunca imploram em vão.
Cassy, que saíra sorrateiramente de seu esconderijo e, ouvindo a conversa,
descobriu o sacrifício que fora feito por ela e Emmeline, fora até lá na noite
anterior, sob o perigo de ser presa; e tocada pelas poucas palavras que aquela
alma afetuosa ainda tinha força para proferir, o longo inverno do desespero e os
anos gélidos se dissiparam e a mulher sombria e desesperada chorou e rezou.
Quando George entrou no barracão, sentiu a cabeça girar e o coração
afundar.
— Como é possível? Como é possível? — ele perguntou, ajoelhando-se ao
lado do escravo. — Pai Tomás, meu pobre e grande amigo!
Algo naquela voz penetrou nos ouvidos do moribundo. Ele mexeu a cabeça
levemente, sorriu e disse:
— Jesus pode fazer um leito de morte ser tão macio como travesseiros de
pena.
Lágrimas honradas que faziam juz a um coração humano caíam dos olhos do
jovem enquanto ele se inclinava sobre o velho amigo.
— Ah, meu querido Pai Tomás! Acorde, fale comigo uma vez mais! Abra os
olhos! Sou o sinhozinho George, o seu sinhozinho George. Não me reconhece?
— Sinhozinho George! — disse Tomás, abrindo os olhos e falando com voz
fraca. — Sinhozinho George! — Ele parecia perplexo.
Aos poucos as ideias pareceram lhe encher a alma; os olhos vagos ficaram
fixos e brilhantes, todo o rosto se iluminou, as mãos ásperas se juntaram e
lágrimas escorreram pelo rosto do escravo.
— Deus seja louvado! Isso é tudo, tudo, tudo o que eu queria! Não se
esqueceram de mim! Isso me aquece a alma; faz bem ao meu velho coração!
Agora posso morrer feliz! Deus seja louvado, ah, minha alma!
— Não morrerá! Não pode morrer, nem pensar nisso! Vim para comprá-lo e
levá-lo de volta para casa! — disse George com impetuosa veemência.
— Ah, sinhozinho George, chegou tarde demais. O Senhor Deus já me
comprou e me levará para casa; e eu quero ir. O paraíso é melhor do que
Kintuck.
— Por favor, não morra! Isso me mata! Corta-me o coração pensar em tudo
o que sofreu, e vê-lo aqui neste barracão. Meu pobre companheiro!
— Não me chame de pobre companheiro! — pediu Tomás solenemente. —
Já fui miserável, mas agora tudo já passou. Estou no portão do paraíso e irei para
a glória! Ah, sinhozinho George! O Paraíso chegou! Tenho a vitória! O Senhor
Jesus me concedeu a vitória! Bendito seja o Seu nome!
George ficou perplexo diante da força, da veemência e do poder com que
essas sentenças esparsas foram pronunciadas. Sentou-se em silêncio, olhando.
Tomás pegou a mão do rapaz e continuou:
— Não deve contar para a Cloé o estado em que me encontrou, coitada! Há
de ser muito sofrido para ela. Apenas diz para ela que me encontrou indo para a
glória e que eu não podia ficar por ninguém. E diz para ela que o Senhor teve ao
meu lado sempre e em todo lugar, e tornou tudo leve e fácil. Ah, meus pobre
filho, e o bebê! Meu velho coração se partiu por eles vez depois da outra! Diga
pra eles pra seguir o meu exemplo, seguir o meu exemplo! Dê meu amor ao
senhor e à boa e querida senhora, e a todos naquele lugar! Não faz ideia, mas
amo a todos! Amo todas as criatura do mundo! Não tenho nada senão amor! Ah,
sinhozinho George, vale a pena ser cristão!
Neste momento, Legree apareceu na porta do barracão, deu uma olhada com
ar de indiferença afetada e se afastou.
— O velho Satanás! — George disse com indignação. — É um conforto
saber que o demônio o fará pagar por isso algum dia desses!
— Por favor! Não, não deve falar assim! — pediu Tomás, tomando a mão do
jovem. — Ele não passa de uma criatura miserável! É horrível pensar nisso! Ah,
se ele pelo menos conseguisse se arrepender, o Senhor o perdoaria agora mesmo;
mas acho que ele nunca se arrependerá!
— Espero que não! — refutou George. — Nunca hei de querer vê-lo no céu!
— Não fale assim, sinhozinho George! — Isso me preocupa! Não se sinta
assim! Ele não me fez nenhum mal, apenas abriu os portões do Reino para mim;
foi só isso!
Neste momento, a força súbita cuja alegria de reencontrar seu jovem senhor
produzira no moribundo, desapareceu. Uma piora profunda tomou conta dele;
Tomás fechou os olhos e aquela mudança misteriosa e sublime que pairou sobre
o rosto dele indicava que outros mundos se aproximavam.
Ele passou a respirar com longos e profundos suspiros, e seu peito largo
subia e descia pesadamente. A expressão de seu rosto era a de um conquistador.
— Quem, quem poderá nos separar do amor de Cristo? — ele perguntou
com uma voz de fraqueza mortal. E, com um sorriso, adormeceu no sono eterno.
George olhava-o fixamente, com veneração solene. Parecia-lhe que o lugar
era sagrado e, ao fechar os olhos sem vida do moriundo, e sair do mundo dos
mortos, apenas um pensamento lhe passava pela cabeça, aquele expressado pelo
seu caro e simplório amigo: “Vale a pena ser cristão!”.
Virou-se; Legree estava em pé atrás dele, melancólico.
Algo naquele cenário de morte despertara a voracidade natural das jovens
paixões. A presença do homem era simplesmente enojante a George, e sentiu
apenas um impulso de se afastar dele, falando o menos possível.
Fixando os olhos verdes e astutos em Legree, George simplesmente disse
apontando para o morto:
— Já tirou tudo o que tinha dele. Quanto devo lhe pagar pelo corpo? Eu o
levarei comigo e o enterrarei decentemente.
— Não vendo preto morto — respondeu Legree, indiferente. — Mas, fique à
vontade para enterrar ele onde e quando quiser.
— Rapazes — George disse em tom autoritário para os dois ou três negros
que estavam olhando para o corpo. — Ajudem-me a levantá-lo e carregá-lo até
minha carroça; e me deem uma pá.
Um deles correu para pegar a pá; os outros dois ajudaram George a carregar
o corpo até a carroça.
George nem falou nem olhou para Legree, que não contradisse as ordens
dele e ficou assobiando, com ares forçados de despreocupação. Ele os seguiu
cabisbaixo até a carroça parada em frente à porta.
George espalhou a capa pela carroça e colocou o corpo cuidadosamente
sobre ela, movendo o assento para dar mais espaço. Então ele se virou, olhou
fixamente para Legree e disse com compostura forçada:
— Ainda não lhe disse o que penso dessa atrocidade; acredito que esta não
seja a hora nem o lugar. Senhor, o sangue deste inocente terá justiça. Eu
considero isso um assassinato. Irei até o primeiro magistrado que encontrar e o
denunciarei.
— Faça o que bem quiser! — Legree disse estalando os dedos com escárnio.
— Quero só ver o senhor fazendo isso. E onde vai arrumar testemunha? Como
vai provar? Ah, não me venha com essa!
George compreendeu de imediato a força do desafio do fazendeiro. Não
havia uma só pessoa branca no local e, de acordo com as cortes sulistas, o
testemunho de um negro não vale nada. Sentiu, naquele momento, como se
pudesse apelar aos céus com seu grito indignado por justiça, mas em vão.
— Afinal de contas, para que tanta confusão por causa de um negro morto?
— perguntou Legree.
Essas palavras foram como acender faísca em um paiol de pólvora.
Prudência nunca foi uma virtude cardinal desse garoto do Kentucky. George
virou-se e, indignado, socou o rosto de Legree, derrubando-o ao chão. E,
enquanto o olhava de cima, chispando de ódio e vingança, parecia ser uma ótima
personificação de seu homônimo sobre o dragão.
Alguns homens, no entanto, decidamente melhoram depois de serem
golpeados. Se um homem os arremessa ao chão, parecem imediatamente
conceber um respeito por ele; e Legree era um desse tipo. Assim, ao levantar-se
e limpar a poeira das roupas, ele olhou para a carroça que partia com evidente
admiração, mas não abriu a boca até que ela estivesse fora do campo de visão.
Além das fronteiras da fazenda, George notara um pequeno monte seco e
arenoso, sombreado por algumas árvores; ali fizeram o túmulo de Tomás.
— Quer que tire a capa, senhor? — perguntaram os negros quando a
sepultura estava pronta.
— Não, não, enterre-a com ele! É tudo o que posso lhe dar agora, meu pobre
Tomás. Ela é sua!
Depositaram o corpo na cova; em seguida cavaram em silêncio, fecharam e a
cobriram com musgo verde.
— Podem ir, rapazes — George disse, colocando uma moeda na mão de
cada um. Porém, os escravos continuaram ali.
— Por favor, sinhozinho, compra a gente! — disse um.
— Nós vai ser muito fiel! — disse o outro.
— A vida aqui é dura, sinhô! — falou o primeiro. — Por favor, compra a
gente, sinhô!
— Não posso, não posso! — George disse a eles com dificuldade, fazendo
um sinal para irem embora. — É impossível!
Os pobres sujeitos, desanimados, retiraram-se em silêncio.
— Deus eterno! — George disse, ajoelhando-se na sepultura de seu velho
amigo. — Ah, seja testemunha de que, a partir de agora, farei todo o possível
para livrar minha pátria da maldição da escravidão!
Não há nenhum monumento que marque o último lugar de descanso de
nosso amigo. E não é necessário! Seu Deus sabe onde ele está e o trará ao lugar
d’Ele, imortal, quando chegar a glória.
Não tenham pena dele! Uma vida e uma morte assim não devem ser
lamentadas. A Glória plena de Deus não está na riqueza da onipotência, mas no
amor abnegado e sofrido! E abençoados são os homens a quem o Senhor chama
de amigos, os quais pacientemente carregam suas cruzes por Ele. Sobre esses
está escrito: “Bem aventurados são os que choram, pois esses serão consolados”.
42
UMA AUTÊNTICA HISTÓRIA DE
FANTASMA

Por alguma razão inexplicável, a essa altura as lendas fantasmagóricas eram


abundantes entre os escravos na fazenda de Legree.
Era fato sussurrado que, na calada da noite, ouviam-se passos descendo
pelas escadas do sótão e vigiando a casa. As portas da entrada superior foram
fechadas em vão; o fantasma ou carregava uma cópia da chave no bolso, ou se
valia do conhecido privilégio dos fantasmas de passarem pelo buraco da
fechadura e continuarem suas andanças com alarmante liberdade.
As autoridades no assunto estavam meio divididas com relação à forma da
aparição, em virtude de um hábito bem comum entre os negros — e, devemos
admitir, entre os brancos também — de invariavelmente fechar os olhos e cobrir
as cabeças com cobertores, anáguas ou qualquer outra coisa que possa ser usada
como proteção nessas ocasiões. É óbvio, como é de conhecimento de todos,
quando os olhos do corpo não veem o objeto, os olhos do espírito são
incomumente vivazes e perspicazes; e, desse modo, havia uma abundância de
descrições completas do fantasma, muito juradas e testemunhadas, as quais,
como geralmente é o caso das descrições, não concordavam umas com as outras
em nada em particular, exceto a peculiaridade comum da família à qual pertencia
a tribo da aparição, usuária do lençol branco. As pobres almas não eram versadas
em história antiga, e não sabiam que Shakespeare autenticara esse costume
dizendo:
Os mortos, de lençol branco, guincham e gaguejam pelas ruas de
Roma.1

E, assim, todos os detalhes relacionados ao assunto são um caso


impressionante de pneumatologia,2 aos quais recomendamos a atenção de um
médium espiritual.
Seja como for, temos razões particulares para saber que a figura alta de
lençol branco vagava, nos horários mais aprovados pelos fantasmas, pela
propriedade de Legree; abria as portas, ia e vinha pela casa, desaparecendo em
alguns momentos e reaparecendo depois, subia a escadaria silenciosa que ia até o
sótão; e que, de manhã, todas as portas estavam fechadas e trancadas, firmes
como sempre.
Legree não podia deixar de ouvir os sussurros; e os esforços feitos para
esconderem tudo dele o irritavam ainda mais. Bebia mais conhaque do que de
costume; mantinha a mente clara e praguejava mais do que nunca durante o dia;
no entanto, tinha pesadelos, e as visões em sua cabeça quando estava dormindo
eram qualquer coisa exceto agradáveis. Na noite após o corpo de Tomás ter sido
levado embora, Legree foi até a cidade vizinha para festejar e se embebedou em
demasia. Cansado, voltou tarde para casa, trancou a porta, tirou a chave e foi
para a cama.
Por mais que um homem sofra todas as dores necessárias para se acalmar, ao
final, a alma humana é algo terrivelmente fantasmagórico e incômodo para um
homem cruel carregar. Quem conhece seus limites e suas fronteiras? Quem
conhece todas as dúvidas terríveis, aqueles medos e temores, que a fazem querer
morrer e ao mesmo tempo alcançar a eternidade? Quão tolo é aquele que tranca a
porta para afastar os espíritos, mas que tem no próprio peito um espírito que não
ousa encarar sozinho, cuja voz abafada e coberta com montanhas de profanação
é o anúncio das trombetas da morte!
Legree trancou a porta e apoiou nela uma cadeira; arranjou uma lamparina
na cabeceira da cama e colocou as pistolas ali. Examinou as trancas e os
cadeados das janelas e então praguejou “que não se importava nem com o
demônio nem com seus anjos” e foi dormir.
Dormiu profundamente, visto que estava cansado. Mas, finalmente chegou-
lhe ao sono uma sombra, um horror, uma apreensão pairando sobre ele. Era a
mortalha da mãe, ele pensou. Ouviu um barulho confuso de gritos e grunhidos e,
com tudo isso, deu-se conta de que estava dormindo e tentou acordar. Estava
parcialmente desperto. Tinha certeza de que algo estava entrando no quarto.
Sabia que a porta estava se abrindo, mas não era capaz de mexer um braço ou
uma perna. Finalmente, virou-se, sobressaltado: a porta estava aberta, e viu uma
mão apagando a lamparina.
O luar estava embaçado e úmido, e então ele viu! Uma coisa branca se
esgueirando. Ouviu o farfalhar de suas vestes fantasmagóricas. A sombra parou
ao lado da cama; uma mão fria tocou a dele e uma voz disse, três vezes, num
sussurro baixo e assustador: “Venha! Venha! Venha!”. E, enquanto suava de
terror, não sabia como nem quando a coisa iria embora. Saiu correndo da cama e
tentou abrir a porta, que estava fechada e trancada. Então, o homem desmaiou.
Depois desse episódio, Legree passou a beber mais do que nunca,
imprudente e desmedidamente.
Logo se falava na fazenda que ele estava doente e moribundo. O excesso
trouxera uma terrível doença que parecia refletir as horríveis sombras da
prestação de contas na vida presente. Ninguém suportava os horrores daquele
quarto doentio quando Legree berrava e gritava, e falava de visões que quase
gelavam o sangue daqueles que o ouviam; e, ao lado de seu leito de morte,
permanecia uma figura resoluta, branca e inexorável dizendo: “Venha! Venha!
Venha!”.
Por incrível coincidência, na mesma noite em que a visão apareceu para
Legree, a porta de entrada da casa foi encontrada aberta na manhã seguinte, e
alguns negros viram duas figuras brancas caminhando pela avenida em direção à
estrada.
O dia já estava quase amanhecendo quando Cassy e Emmeline pararam, por
um momento, em um pequeno arvoredo perto da cidade.
Cassy trajava-se ao estilo das senhoras espanholas crioulas, toda de preto.
Um pequeno chapéu na cabeça, coberto por um véu ricamente bordado,
escondia-lhe o rosto. Concordaram que, durante a fuga, Cassy encarnaria a
personagem de uma senhora crioula e Emmeline, a de sua criada.
Desde pequena criada em contato com a alta sociedade, o linguajar, os
movimentos e os ares de Cassy se adequavam ao papel que assumira; e ela ainda
guardava um esplêndido guarda-roupa e conjuntos de joias de outrora, que lhe
permitiam encenar tudo de forma satisfatória.
Ela parou nos arredores da cidade, onde notara alguns baús à venda, e
comprou um bem bonito, e pediu ao vendedor para que o trouxesse com ela. E,
assim, acompanhada por um garoto puxando seu baú, e com Emmeline atrás
dela, carregando sua mala de tecido e pacotes de mantimentos, Cassy entrou na
pequena taverna como uma senhora de respeito.
A primeira pessoa que chamou a atenção dela, assim que chegou, foi George
Shelby, que estava ali esperando pelo próximo barco.
Cassy vira o jovem pelo buraco na parede do sótão, vira-o transportar o
corpo de Tomás e observara, com exultação secreta, seu reencontro com Legree.
Mais tarde, das conversas que entreouviu dos negros enquanto rondava com seu
disfarce fantasmagórico após o cair da noite, ela conseguiu juntar informações
sobre quem ele era e qual a relação dele com Tomás. Por conseguinte, sentiu–se
mais confiante quando soube que o jovem, assim como ela, esperava pelo
próximo barco.
A atitude, os modos, o comportamento e a evidente independência financeira
evitaram que surgissem quaisquer suspeitas na taverna. As pessoas nunca
questionam muito aqueles que pagam bem, uma coisa que Cassy havia previsto
quando se munira de dinheiro.
Quase à noitinha, ouviu-se um barco a vapor chegando, e George Shelby
ofereceu a mão para ajudar Cassy a subir a bordo, com a elegância típica de todo
aquele natural de Kentucky, e empenhou–se para que lhe desse um aposento em
bom estado.
Sob o pretexto de estar doente, Cassy permaneceu no quarto, deitada,
durante todo o tempo que passaram no Rio Vermelho; e era assistida, com
devoção obsequiosa, por sua criada.
Quando chegaram ao Rio Mississipi, George, descobrindo que, assim como
ele, a estranha senhora subiria o rio, propôs alugar um quarto para ela no mesmo
barco, compadecendo-se, bondoso que era, de sua saúde delicada e desejoso para
fazer o que pudesse para ajudá-la.
Assim, todos os viajantes foram transferidos em segurança para o vapor
Cincinnati, que deslizava rio acima sob uma poderosa lufada de fumaça.
A saúde de Cassy estava bem melhor. Ela sentou-se perto das grades, veio à
mesa, e no barco ouviam-se comentários sobre a senhora que outrora deveria ter
sido muito bela.
Desde o primeiro momento em que olhara para o rosto dela, George fora
tocado por um daqueles sentimentos passageiros e indefinidos de simpatia, dos
quais quase todas as pessoas se lembram e com os quais ficam perplexos. Não
conseguia tirar os olhos dela nem parar de observá-la. À mesa, ou sentada à
porta de seu quarto, Cassy sempre encontrava os olhos do jovem fixos nela, que
os desviava educadamente quando a mulher mostrava, pelo seu semblante, que
estava incomodada com a observação.
Cassy ficou incomodada. Começou a achar que o jovem suspeitava de
alguma coisa; e finalmente decidiu confiar na generosidade dele e se abrir
completamente, confiando-lhe toda sua história.
George estava profundamente inclinado a simpatizar com qualquer um que
tivesse fugido da fazenda de Legree, um lugar sobre do qual não seria capaz de
lembrar nem de falar com paciência, e com a corajosa indiferença às
consequências características de sua idade e situação, ele assegurou à Cassy que
faria todo o possível para protegê-la e ajudá-la.
O quarto ao lado de Cassy fora ocupado por uma senhora francesa chamada
De Thoux, acompanhada de uma linda filhinha, uma criança de
aproximadamente doze anos.
Essa senhora, descobrindo pela conversa de George que ele era de Kentucky,
pareceu evidentemente disposta a cultivar-lhe a amizade, desejo esse suplantado
pelas graças de sua filhinha, uma linda diversão para distrair o cansaço de uma
viagem de quinze dias em um barco a vapor.
A cadeira de George era quase sempre colocada à porta de seu quarto. E
Cassy, sentada sob os toldos, podia ouvir a conversa deles.
Madame de Thoux era muito detalhista em suas perguntas relacionadas ao
Kentucky, onde dissera ter vivido durante um período de sua vida. George
descobriu, para sua surpresa, que a residência dela deveria ter sido em sua
vizinhança; e as perguntas da mulher demonstravam tal conhecimento das
pessoas e das coisas de sua região que chegavam a lhe causar espanto.
Um dia Madame de Thoux perguntou a George:
— Conhece algum homem em suas redondezas chamado Harris?
— Há um velho camarada com esse nome que vive não muito longe da
propriedade do meu pai — respondeu George. — Mas nunca tivemos muito
relacionamento com ele.
— Ele é um grande senhor de escravos, acredito — disse Madame de Thoux,
de um modo que parecia trair o grande interesse que ela tentava não demonstrar.
— É mesmo — disse George, parecendo muito surpreso com a declaração
da senhora.
— Saberia dizer se ele tem ou talvez já tenha ouvido falar que ele seja dono
de um rapaz mulato chamado George?
— Ah, com certeza. George Harris. Eu o conheço muito bem; ele se casou
com uma criada da minha mãe, mas agora fugiu para o Canadá.
— Fugiu? — perguntou Madame Thoux rapidamente. — Graças a Deus!
George fez um olhar de estranheza, mas não disse nada.
Madame de Thoux recostou a cabeça na mão e começou a chorar.
— Ele é meu irmão — ela declarou.
— Madame! — George exclamou com grande tom de espanto.
— Sim! — falou Madame de Thoux, levantando a cabeça com orgulho e
limpando as lágrimas. — Sr. Shelby, George Harris é meu irmão!
— Estou absolutamente embasbacado! — admitiu George, empurrando a
cadeira para trás dois ou três passos e olhando para Madame de Thoux.
— Eu fui vendida para o Sul quando ele ainda era garoto — ela contou. —
Fui comprada por um homem bom e generoso. Ele me levou consigo para as
Índias Ocidentais, me alforriou e se casou comigo. Morreu há pouco tempo e
estou indo para o Kentucky para ver se consigo encontrar e resgatar meu irmão.
— Já tinha ouvido falar de uma irmã chamada Emily, que fora vendida para
o Sul — contou George.
— Sim, claro! Eu sou a irmã — disse Madame de Thoux. — Diga-me que
tipo de…
— Um homem maravilhoso — disse George. — Apesar da maldição da
escravidão que recai sobre ele. Ele tem um caráter de primeira linha, tanto pela
inteligência como pelos princípios. Veja bem, sei de tudo isso porque ele se
casou em nossa família.
— Com que classe de mulher? — perguntou Madame de Thoux ansiosa.
— Um tesouro — respondeu George. — Uma moça linda, inteligente e
amorosa. Muito religiosa. Minha mãe a criou e a educou, quase tão
cuidadosamente como a uma filha. Ela sabia ler, escrever, bordar e coser
lindamente; e também era uma excelente cantora.
— Nasceu em sua casa? — Madame de Thoux indagou.
— Não. Meu pai a comprou em uma de suas viagens à Nova Orleans, e a
levou de presente para minha mãe. Ela tinha oito ou nove anos na época. Meu
pai nunca disse à minha mãe quanto pagou por ela, mas, outro dia, olhando seus
velhos papéis, encontrei o documento de venda. Ele pagou uma soma
exorbitante por ela, com certeza. Imagino que tenha sido por sua beleza
extraordinária.
George estava sentado de costas para Cassy, e não viu a expressão
interessada de seu semblante enquanto ele dava todos aqueles detalhes.
A essa altura da história, ela tocou-lhe o braço e, com o rosto absolutamente
pálido de interesse, disse:
— Sabe os nomes das pessoas de quem seu pai a comprou?
— Um homem chamado Simmons, eu acho; era o principal da transação.
Pelo menos acho que esse era o nome que estava no documento de venda.
— Ah, meu Deus! — Cassy disse caindo sem sentidos sobre o chão da
cabine.
George agora estava em completo estado de alerta, assim como Madame de
Thoux. Embora nenhum dos dois fosse capaz de conjecturar qual era a causa do
desmaio de Cassy, ainda assim fizeram todo o tumulto apropriado para tais
casos; no afã de sua humanidade, George bateu a mão na jarra e quebrou dois
copos; e várias senhoras na cabine, ouvindo que alguém havia desmaiado, junta-
ram-se à porta do quarto, bloqueando a circulação do ar o máximo possível, de
forma que, no geral, tudo ocorrera de acordo com o esperado.
Pobre Cassy! Ao se recompor, virou o rosto para a parede, chorou e soluçou
como uma criança. Mães, talvez vocês consigam dizer em que ela estava
pensando! Talvez não; contudo, ela com certeza sentiu, naquele momento, que
Deus tivera misericórdia dela e que um dia veria a filha — assim como
realmente o fez, meses depois. Mas, não antecipemos as coisas.
43
RESULTADOS

O restante de nossa história será narrado com brevidade. George Shelby,


interessado, assim como qualquer outro jovem ficaria, pelo romance do incidente
não menos do que pelos sentimentos de humanidade, empenhou-se para enviar o
certificado de venda de Elisa, cuja data e nome correspondiam aos fatos
lembrados por Cassy e os quais não deixavam sombra de dúvida em sua mente
quanto à identidade da filha. Agora cabia a ela descobrir a rota dos fugitivos.
Madame de Thoux e ela, embora unidas pela singular coincidência de seus
destinos, seguiram imediatamente para o Canadá e deram início a uma
empreitada de perguntas nas estações onde se encontrava um grande número de
fugitivos da escravidão. Em Amherstburg elas encontraram o missionário com
quem George e Elisa se abrigaram assim que chegaram ao Canadá e, através
dele, foram capazes de seguir a trilha da família até Montreal.
George e Elisa viviam livres há cinco anos. George conseguira ocupação na
loja de um renomado maquinista, onde ganhava o sustento da família, a qual,
nesse meio tempo, tinha aumentado com a chegada de mais uma filha.
O pequeno Harry, um garoto belo e inteligente, frequentava uma boa escola
e adquiria proficiência de conhecimento muito rapidamente.
O bondoso pastor da estação em Amherstburg, onde George se abrigara
assim que chegou, ficou de tal forma interessado nas declarações de Cassy e
Madame de Thoux que sucumbiu aos pedidos da última e as acompanhou à
Montreal em sua busca, com todas as despesas de viagem pagas por ela.
O cenário agora se muda para uma pequena e impecável habitação nos
arredores de Montreal; o horário, à noite. Um fogo alto queima na lareira; uma
mesa de chá, coberta com uma alva toalha, está preparada para a refeição
noturna. Em um canto da sala havia uma mesa coberta com uma toalha verde,
sobre a qual havia uma escrivaninha aberta, lápis, papel e, em cima, uma
prateleira repleta de livros bem selecionados.
Aquele era o estúdio de George. A mesma gana de melhoria que o levou a
dominar, às escondidas, as artes da leitura e da escrita, em meio aos trabalhos e
desencorajamentos de sua vida anterior, ainda o levava a devotar todo seu tempo
livre ao seu próprio desenvolvimento.
Neste momento ele está sentado à mesa, tomando notas de um volume que
está lendo da biblioteca da família.
— Vamos, George — disse Elisa. — Passou o dia todo fora; deixe esse livro
de lado e vamos conversar enquanto estou preparando o chá, por favor.
E a pequena Elisa se junta aos esforços da mãe, caminhando até o pai e
tentando lhe arrancar o livro da mão, e, em vez disso, se instalar sobre os joelhos
dele.
— Ah, sua bruxinha! — George diz cedendo, como deve fazer qualquer
homem nessas circunstâncias.
— Isso mesmo — comenta Elisa ao cortar um pedaço de pão. Ela parece um
pouco mais velha; sua silhueta um pouco mais cheia; seu semblante mais
matronal do que antes; no entanto, tão feliz e satisfeita quanto uma mulher pode
ser.
— Harry, meu filho, como se saiu naquela soma hoje? — perguntou George
colocando as mãos sobre a cabeça do garoto.
Harry já não tinha mais seus longos cachos, mas nunca seria capaz de perder
aqueles olhos brilhantes e cílios compridos e aquela testa elegante e altiva que
reluz com triunfo quando ele responde:
— Fiz, tudo, tudo sozinho, papai. E ninguém me ajudou!
— Muito bem! — elogiou o pai. — Dependa só de você mesmo, meu filho.
Terá uma chance melhor do que teve o coitado de seu pai.
Neste momento há uma batida na porta, e Elisa vai até lá para abri-la. O
entusiástico “Ora vejam, é o senhor!”, chama a atenção do esposo e o bondoso
pastor de Amherstburg é convidado a entrar. Há duas mulheres com ele e Elisa
pede a elas para se sentarem.
Verdade seja dita, o bom pastor organizara um pequeno roteiro, a partir do
qual o assunto se desenvolveria, e, no caminho até ali, todos concordaram
cautelosa e prudentemente a não deixar que as coisas escapassem, senão de
acordo com o que fora combinado previamente.
Assim, fez um movimento pedindo às mulheres que se sentassem, pegou um
lenço de bolso para limpar a boca a fim de prosseguir com seu discurso
introdutório conforme planejado e ficou consternado quando a Madame de
Thoux estragou todo o plano atirando os braços ao redor do pescoço de George,
contando tudo de uma só vez:
— Ah, George! Não me reconhece? Sou Emily, sua irmã!
Cassy se sentara com mais compostura, e de sua parte, teria levado o plano a
cabo muito bem, se a pequena Elisa não tivesse aparecido repentinamente à sua
frente, cada traço e curva exatamente igual ao da filha quando a vira pela última
vez. A criança olhou-a com curiosidade; e Cassy tomou-a nos braços, apertou-a
no peito dizendo o que, naquele momento, acreditava ser verdade:
— Querida, sou sua mãe!
Realmente foi muito problemático reestabelecer a ordem; no entanto, o bom
pastor finalmente conseguiu silenciar a todos e recitou o discurso com o qual
intencionara dar início às conversas daquela noite, e o fez de forma tal que o
grupo se derramou em lágrimas de uma maneira que satifasria qualquer orador,
antigo ou moderno.
Juntos, se ajoelharam, e o bom homem rezou, pois há alguns sentimentos tão
agitados e tumultosos que somente encontram paz sendo entregues ao amor do
Todo-Poderoso. Depois, levantando-se, a nova família recém-aumentada se
abraçou, confiante em Deus, o qual, atráves dos riscos e perigos, juntara-os
novamente.
O caderno de anotações de um missionário entre os fugitivos canadenses
contém verdades mais extraordinárias do que a ficção. E como não haveria de
ser assim, quando se prevalece um sistema que separa as famílias e espalha seus
membros, assim como o vento sopra espalhando as folhas do outono? Esses
locais de refúgio, assim como o refúgio eterno, reúnem, em feliz comunhão,
corações que sofreram durante anos, considerando-se perdidos de seus entes
queridos para sempre. E é indescritível o acolhimento com o qual cada um dos
recém-chegados é recebido, pois talvez traga com ele algum elo de ligação com
a mãe, irmã, filho ou esposa ainda perdidos na sombra da escravidão.
Histórias de heroísmo são realizadas aqui mais do que em romances,
quando, desafiando a tortura e própria morte, o fugitivo voluntariamente
percorreu o caminho de volta aos terrores e perigos daquelas terras sombrias em
busca de uma irmã, da mãe ou da esposa.
Um jovem, sobre quem um missionário nos relatou, recapturado duas vezes
e subjugado a todo tipo de castigo por seu heroísmo, escapara novamente e, em
uma carta à qual ouvimos ser lida, conta a seus amigos que voltará uma terceira
vez para que, talvez, consiga libertar a irmã. Digam-me, meus senhores, este
homem é um herói ou um criminoso? Não seria capaz de fazer o mesmo por sua
própria irmã? E quem há de condená-lo?
Mas, voltemos aos nossos amigos, a quem deixamos enxugando as lágrimas
e se recuperando de tão grande e inesperada alegria. Agora se encontram
sentados ao redor da mesa, definitivamente num clima amistoso; apenas Cassy,
segurando a pequena Elisa no colo e apertando-a de quando em quando de um
modo que espanta a garotinha, se recusa obstinadamente a encher a boca de bolo
conforme o desejo da pequenina, alegando, para inquietação da garota, que tem
algo melhor do que bolo e que não quer mais nada.
E, de fato, em dois ou três dias uma mudança tão grande aconteceu com
Cassy que nossos leitores mal a reconheceriam. A expressão desesperada e triste
de seu rosto dera lugar à doce confiança. Ela pareceu totalmente envolvida no
seio familiar, e se afeiçoou profundamente aos pequenos, como se eles fossem
algo pelo qual ela esperara durante muito tempo. Na verdade, seu amor pela
pequena Elisa fluía mais naturalmente do que pela própria filha, pois a pequena
era a imagem exata da criança a quem ela um dia perdera. A garotinha era um
elo de ternura entre mãe e filha, através de quem a afeição e a convivência se
desenvolviam. A devoção firme e consistente de Elisa, regida pela leitura assídua
das palavras sagradas, fizeram dela a guia perfeita para o espírito cansado e
abalado da mãe. Cassy se rendeu prontamente à boa influência e, com toda a
alma, tornou-se uma cristã devota e gentil.
Um ou dois dias depois, Madame de Thoux contou ao irmão as
peculiaridades de sua situação. A morte do marido a deixara com imensa fortuna,
a qual ela generosamente oferecera para dividir com a família. Quando
perguntou a George qual seria a melhor forma de ajudá-lo, ele respondeu “Dê-
me instrução, Emily. Esse sempre foi o desejo de meu coração. Do resto eu me
encarrego”.
Após grande deliberação, decidiu-se que a família toda iria passar alguns
anos na França; e toda a família embarcou levando Emmeline com eles.
A beleza dela ganhou a afeição do primeiro tenente do navio e, logo após
entrarem no porto, ela se casou com ele.
George passou quatro anos em uma universidade francesa, e aplicando-se
com zelo incansável, obteve uma excelente educação.
Ao final, os problemas políticos na França obrigaram a família, mais uma
vez, a buscar asilo no Canadá.
Os sentimentos e as opiniões de George, agora um homem instruído, podem
ser expressos em uma carta a um de seus amigos:

“Sinto-me um pouco perdido com relação ao rumo a tomar no futuro. É


verdade, como você mesmo disse, que poderia me misturar aos círculos dos
brancos deste país, sendo meu tom de pele tão claro, e o da minha esposa e
família quase imperceptível. Poderia. Mas, para ser honesto, não tenho vontade.
“Minha simpatia não é pelos da raça de meu pai, mas pelos da raça de minha
mãe. Para meu pai, nunca passei de um bom cão ou um cavalo; para minha
pobre e desolada mãe eu era um filho; e, embora eu nunca mais a vira depois
daquela venda cruel que nos separou até ela morrer, sei que ela sempre me amou
profundamente. Sei pelo meu próprio coração. Quando penso em tudo o que ela
sofreu, os meus próprios sofrimentos iniciais, das penúrias e lutas de minha
esposa heroica, de minha irmã vendida no mercado de escravos de Nova
Orleans, embora tente não ter sentimentos anti-cristãos, peço que me desculpem
por dizer que não tenho ganas de me passar por americano nem de me identificar
com eles.
“É com a raça africana, escravizada e oprimida que simpatizo; e, se pudesse
ter algum desejo, desejaria ter a pele dois tons mais escuros, em vez de um mais
claro.
“O desejo e a vontade de minha alma é ter uma nacionalidade africana.
Quero que as pessoas possam ter uma existência tangível e separada; e onde
devo procurar por isso? Não no Haiti, pois no Haiti eles não tinham de onde
começar. Um riacho não pode cursar acima de sua fonte. A raça que formou o
caráter dos haitianos foi a de um povo fatigado e efeminado, e, obviamente, essa
raça levará séculos para chegar a algum lugar.
“Assim, onde devo procurar? Nas costas da África vejo uma república, uma
república formada por homens escolhidos que, por força, automotivação e
educação conseguiram, em muitos casos, se sobrepor às condições da
escravidão. Tendo passado por um estágio preparatório de insipiência, essa
república finalmente passou a ser uma nação reconhecida no mundo,
reconhecida tanto pela França como pela Inglaterra. Meu desejo é ir para lá e
encontrar o meu próprio povo.
“Tenho consciência, neste momento, que terei todos contra mim, mas, antes
de golpearem, por favor, me escutem. Durante minha estada na França, segui,
com profundo interesse, a história de meu povo na América. Notei a luta entre
abolicionistas e colonialistas, e, como expectador à distância, tive algumas
impressões as quais nunca teriam me ocorrido como participante da luta.
“Tenho certeza de que a Libéria, enganada e desrespeitada pelas mãos de
nossos opressores, fora subserviente sob todos os aspectos. Sem dúvida esse
esquema poderá ser usado, de maneiras injustificáveis, como um meio de
retardar nossa emancipação. No entanto, para mim a questão é “Não há um Deus
acima de todas as trapaças?”, “Será que Ele negará os desejos deles, e encontrará
uma pátria para nós?”
“Nos dias de hoje uma nação se forma em um dia. Uma nação começa,
agora, com todos os grandes problemas que a vida republicana e a civilização lhe
depositam. Permitam-nos, então, juntarmos as forças, de todo coração, e ver o
que podemos tirar desse novo desafio e de todo o continente africano que se abre
diante de nós e de nossos filhos. Nossa nação terá em suas praias a onda da
civilização e do cristianismo, e lá surgirão repúblicas poderosas as quais,
crescendo tão rápido como a vegetação tropical, perdurarão nos tempos por vir.
“E há de dizer que estou abandonando meus irmãos escravizados? Acredito
que não. Se me esquecer deles por uma hora, por um só momento da minha vida,
Deus há de me perdoar! Mas, o que posso fazer por eles aqui? Posso lhes soltar
os grilhões? Não, não como indivíduos; mas deixe-me ir e fazer parte de um país
que terá voz no Conselho das Nações, e então poderemos conversar. Uma nação
tem o direito de argumentar, protestar, implorar e pleitear as preocupações de sua
raça, o que, um indíviduo sozinho não tem.
“Se a Europa um dia for um grande conselho das nações livres, e confio em
Deus que será, se lá, toda a servidão e todas as desigualdades sociais, injustas e
opressivas, forem aniquiladas, e se eles, assim como a França e a Inglaterra o
fizeram, reconhecerem nossa posição, então, no grande congresso das nações,
faremos nosso apelo e apresentaremos a causa de nossa raça escravizada e
sofredora; e não há de ser possível que a livre e esclarecida América não
desejará, então, baixar o escudo sinistro que a coloca em desgraça entre as
nações, e que é, verdadeiramente, uma maldição tanto para si como para aqueles
que ela escraviza.
“Então, há de dizer que nossa raça tem os mesmos direitos de participar da
república americana tanto quanto os irlandeses, alemães e suecos. E, realmente,
temos. Mas temos de ser livres para podermos nos encontrar e participar, para
crescer como indivíduos de valor, sem nenhuma avaliação de casta ou cor; e
aqueles que nos negam esse direito, negam os princípios de igualdade humana
professados por eles próprios. Devemos, em particular, ser livres aqui. Temos
mais do que os direitos de um homem comum; temos o pleito de reparação de
uma raça oprimida. Porém, não é isso o que quero. Quero um país, minha
própria nação. Creio que a raça africana tenha peculiaridades ainda a serem
reveladas à luz da civilização e do cristianismo, as quais, se não as mesmas dos
anglo-saxões, possam se provar moralmente de uma estirpe ainda mais alta.
“À raça anglo-saxônica foi confiado o destino do mundo, durante seu
período pioneiro de sofrimentos e conflitos. Para essa missão, seus elementos de
rigidez, inflexibilidade e energia foram bem adaptados; no entanto, como cristão,
espero por uma nova Era. Acredito que permaneceremos firmes em suas
fronteiras; e espero que as mazelas que agora convulsionam as nações não
passem de contrações para o nascimento da paz e da fraternidade universal.
“Acredito que o desenvolvimento da África seja essencialmente cristão. Se
não são uma raça dominante e liderante, são, no mínimo, afetuosos, bondosos e
misericordiosos. Tendo estado na fornalha da injustiça e da opressão, têm a
necessidade de conservarem em seus corações a sublime doutrina do amor e do
perdão, através da qual hão de vencer, e cuja missão é dissipá-la por todo o
continente africano.
“Confesso, pessoalmente, que tenho minhas dúvidas quanto a isso, tendo em
minhas veias o sangue quente e impetuoso dos saxões; mas, tenho um eloquente
pastor do Evangelho sempre ao meu lado, na pessoa de minha linda esposa.
Quando começo a duvidar, seu espírito bondoso sempre me restaura, e mantém
meus olhos focados na vocação e na missão cristã de nossa raça. Como um
patriota cristão, como um mestre do cristianismo, irei para o meu país, minha
escolhida e gloriosa África! E a ela, em meu coração, às vezes dedico essas
esplêndidas palavras de profecia: “Em vez de abandonada e odiada, sem que
ninguém quisesse passar por ti, farei de ti um orgulho, uma alegria para todas as
gerações”.
“Poderá me chamar de entusiasta e poderá me dizer que não ponderei muito
bem o desafio que estou prestes a encarar. Mas digo que ponderei, sim, e fiz as
contas. Vou para a Libéria não como vou ao Elíseo do romance, mas como se
fora a um campo de trabalho. Tenho a intenção de trabalhar com ambas as mãos,
trabalhar duro, trabalhar contra todos os tipos de dificuldades e revezes; e
trabalhar até morrer. É por isso que irei, e com isso tenho absoluta certeza de que
não hei de me decepcionar.
“Seja lá qual for o juízo que faça sobre minha determinação, não deixe de
depositar em mim a sua confiança; e tenha certeza de que todas as minhas ações
serão feitas com o coração totalmente dedicado ao meu povo.

George Harris”

George, junto com sua esposa, filhos, irmã e mãe, embarcou para a África
algumas semanas depois. Se não estivermos enganados, o mundo um dia ainda
falará dele.
De nossos outros personagens não temos nada em particular para narrar,
exceto algumas palavras relacionadas à Srta. Ofélia e Topsy, e um capítulo de
despedida, que dedicaremos a George Shelby.
A Srta. Ofélia voltou para Vermont e levou Topsy consigo, para grande
supresa daquele rígido corpo deliberativo, cujos cidadãos da Nova Inglaterra
reconhecem sob o termo de “Nosso povo”. O “Nosso povo”, a princípio, achou a
garota uma adição estranha e desnecessária àquele ambiente doméstico bem
organizado; no entanto, tais foram os eficientes esforços da Srta. Ofélia, em seu
desafio consciente quando às suas obrigações para com sua élève,1 que a criança
rapidamente alcançou as graças e a amizade de todos os familiares e vizinhos.
Ao chegar à idade adulta, ela foi, a seu próprio pedido, batizada, e se tornou um
membro da igreja cristã local; e demonstrou tanta inteligência, ânimo, vontade e
desejo em fazer o bem ao mundo que foi finalmente recomendada e aprovada
como missionária em um dos postos na África; e tivemos notícias de que, a
mesma animação e engenhosidade que, quando criança, a faziam tão versátil e
incansável em seu crescimento, são agora utilizados para lecionar às crianças de
seu próprio país.

P.S.: Para grande satisfação de algumas mães, gostaríamos de relatar que as


buscas iniciadas por Madame de Thoux resultaram, recentemente, na descoberta
do filho de Cassy. Sendo um jovem cheio de energia, ele fugira alguns anos
antes de sua mãe, e fora abrigado e educado por amigos dos escravos, no Norte.
Logo irá se juntar à sua família na África.
44
O LIBERTADOR

George Shelby mal escrevera algumas linhas à mãe, informando o dia em


que ela deveria esperá-lo chegar. Ele não teve coragem de narrar a cena da morte
de seu velho amigo. Tentara várias vezes, mas apenas conseguiu cair no choro e,
invarialmente, acabava rasgando o papel, secando os olhos e indo a algum lugar
quieto.
Havia uma agradável animação pela mansão dos Shelby naquele dia, na
expectativa do jovem senhor George.
A Sra. Shelby sentara-se confortavelmente na sala, onde um fogo ardente de
madeira de castanheira dissipava o frio da tarde de outono. Aos cuidados de Mãe
Cloé, nossa velha amiga, a mesa de jantar fora posta, reluzente com prataria e
cristais.
Trajando um novo vestido de algodão, com um avental alvo e limpo, e um
turbante alto e bem engomado, o rosto negro luzidio brilhando de satisfação, ela
supervisionava, com meticulosidade desnecessária, a arrumação da mesa, apenas
como uma desculpa para conversar um pouco com sua senhora.
— Ah, meu Deus! Acha que ele vai ficar contente? — ela perguntou. —
Coloquei o prato bem onde ele gosta, perto da lareira. O sinhozinho George
sempre gostou do lugar mais quente. Ah, sai daqui! Por que Sally não pegou o
melhor bule de chá, aquele pequenininho novo, que o sinhozinho George deu de
presente para a sinhá no Natal? Eu vou pegar. E a sinhá, teve notícia do
sinhozinho George? — ela disse inquisitivamente.
— Sim, Cloé, mas me escreveu apenas uma linha dizendo que chegaria em
casa esta noite, se conseguisse. Isso foi tudo.
— Ele não falou nada do meu velho, do meu esposo? — perguntou Cloé
ainda mexendo nas xícaras de chá.
— Não, não falou. Ele não falou nada, Cloé. Ele disse que contaria tudo
quando chegasse em casa.
— Isso é bem típico do sinhozinho. Ele sempre fica ansioso pra contar tudo.
Sempre falei isso pro sinhozinho George. Na minha opinião, não sei por que os
branco gosta tanto de escrever as coisa do jeito que faz; escrever é um trabalho
tão lento e tão difícil.
A Sra. Shelby sorriu.
— Acho que meu velho nem vai mais conhecer os garoto e a bebê. Meu
Deus! Ela é uma garotona agora; e também é muito boa e esperta, a Polly. Ela foi
até em casa olhar um bolo de milho no forno. Fiz do jeito que meu velho sempre
gostava. Do jeito que eu fiz na manhã quando ele foi embora. Deus abençoe!
Como fiquei triste aquele dia!
A senhora Shelby suspirou profundamente, e sentiu um peso no coração
diante daquelas palavras. Ela ficara inquieta desde que recebera a carta do filho,
como se algo estivesse escondido sob o véu de silêncio que ele criara.
— A sinhá está com os recibo? — Cloé perguntou ansiosamente.
— Sim, Cloé.
— Porque eu quero mostrar para o meu velho os recibo que o doceiro deu
pra eu. Ele disse “Cloé, queria que você ficassse mais tempo.” E eu falei:
“Obrigada, senhor, mas o meu esposo está voltando pra casa, e a sinhá já não
pode mais ficar sem eu”. Foi isso o que falei pra ele. Um homem muito bom
aquele senhor Jones.
Cloé insistira, obstinadamente, que os recibos mostrando os salários que
recebera fossem guardados pra mostrar ao esposo, como testemunho de suas
habilidades.
A senhora Shelby prontamente consentira em realizar o pedido da escrava.
— Ele não vai conhecer a Polly, meu velho não vai, não. Meu Deus, já faz
cinco ano que ele foi embora! Naquele tempo ela era só uma bebezinha, mal
ficava em pé. Lembro como ele ria quando ela ficava caindo toda vez que
tentava andar. Meu Deus!
Ouviu-se o barulho das rodas da carruagem.
— Sinhozinho George! — excalmou a Mãe Cloé, correndo em direção à
janela.
A senhora Shelby correu até a porta de entrada e se enlaçou nos braços do
filho. Mãe Cloé fixou os olhos ansiosamente na escuridão.
— Ah, pobre Mãe Cloé! — disse George, parando piedosamente para tomar
a mão áspera e negra da escrava entre as suas. — Seria capaz de dar toda minha
fortuna para trazê-lo comigo, mas ele foi para um lugar melhor.
Houve uma reação passional por parte da senhora Shelby, mas Mãe Cloé não
disse nada.
O grupo entrou na sala de jantar. O dinheiro do qual Mãe Cloé sentia tanto
orgulho, continuava sobre a mesa.
— Aqui — ela disse, juntando e entregando as notas com mãos trêmulas, à
sua senhora. — Nunca mais quero ver nem ouvir falar disso de novo.
Exatamente como eu pensei que ia ser: vendido e assassinado naquelas maldita
plantação!
Cloé virou-se e caminhou, presumida, para fora da sala. A senhora Shelby
seguiu-a delicadamente e pegou-lhe uma das mãos, acomodou a escrava em uma
cadeira e sentou-se ao lado dela.
— Minha boa e pobre Cloé! — ela lamentou.
Cloé recostou a cabeça no ombro da senhora, e soluçou:
— Ah, sinhá! Me perdoa, mas meu coração está partido, é só isso.
— Sei que está — assentiu a senhora Shelby à medida que suas lágrimas
caíam rapidamente —, e não há nada que eu possa fazer para curá-lo, mas Jesus
pode. Ele cura os corações partidos e cuida de suas chagas.
Houve um momento de silêncio e todos choraram juntos. Finalmente,
George, sentado ao lado da viúva, pegou-lhe a mão e, com palavras simples,
descreveu a cena triunfal da morte do esposo e repetiu suas últimas mensagens
de amor.
Numa manhã, aproximadamente um mês depois, todos os escravos da
propriedade dos Shelby foram chamados a se reunir no grande corredor que
percorriam a casa, para ouvir algumas palavras de seu jovem amo.
Para surpresa de todos, ele apareceu entre eles com um maço de papéis na
mão, contendo cartas de alforria para cada um, as quais ele leu e distribuiu uma
após a outra, em meio a soluços, lágrimas e gritos de todos os presentes.
Muitos, contudo, juntaram-se em volta dele, implorando para que não
fossem mandados embora e, com rostos ansiosos, devolviam ao amo a carta de
alforria.
— Nós não quer mais liberdade do que já tem. Nós sempre teve o que
queria. Nós não quer sair desse lugar, deixar o amo e a sinhá e tudo o resto!
— Meus bons amigos — disse George assim que conseguiu um pouco de
silêncio —, não será necessário irem embora. A fazenda continuará precisando
de tantos braços trabalhadores quanto antes. E precisaremos da mesma coisa
para a casa-grande. No entanto, agora vocês são homens e mulheres livres. Eu
lhes pagarei salários pelo trabalho, de acordo com o que combinarmos. A
vantagem é que, caso eu me envolva em dívidas ou morra, coisas que podem
acontecer, vocês não podem ser levados nem vendidos. Tenho a intenção de
continuar a administrar a propriedade, e a ensiná-los, talvez, algo que poderão
levar algum tempo para aprender: como usar seus direitos de homens e mulheres
livres. Espero que sejam bons e queiram aprender. E agora, meus amigos, ergam
os olhos para o céu e agradeçam a Deus pela bênção da liberdade.
Um negro idoso e patriarcal, que envelhecera e ficara cego na fazenda, agora
se levantou e, erguendo as mãos trêmulas para o céu, disse:
— Vamos dar graças ao Senhor!
Todos se ajoelharam juntos, e nunca um Te Deum mais tocante e
emocionado subiu aos céus, nem mesmo vindo de um órgão, sino ou canhão, do
que esse vindo de um velho coração sincero.
Ao levantar-se, alguém deu início a um hino metodista, cuja estrofe era:

A hora do jubileu chegou


Voltem para casa, pecadores.

— Só mais uma coisa — George continuou quando os cumprimentos da tuba


terminaram. — Vocês se lembram de nosso velho amigo Tomás?
Naquele momento, George fez uma breve narrativa da cena de morte e da
despedida amorosa a todos da fazenda, e acrescentou:
— Foi no túmulo dele, meus amigos, que decidi, perante Deus, que nunca
mais seria dono de um escravo, já que não poderia libertá-lo; jurei que ninguém,
sob as minhas ordens, jamais correrá o risco de ser separado da família e dos
amigos, e morrer sozinho em uma fazenda longínqua como ele morreu. Assim,
quando agradecerem, se lembrem de que devem sua liberdade àquela alma
bondosa, e retribuam em gentileza à sua esposa e filhos. Pensem em sua
liberdade cada vez que virem a Cabana do Pai Tomás; e deixem que ela seja um
memorial para que se lembrem de seguir os passos dele, sendo tão honestos, fiéis
e cristãos como ele foi.
45
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escritora tem recebido perguntas, de correspondentes de diferentes partes


do país, com relação à veracidade dessa narrativa, e a essas perguntas ela dará
uma resposta generalizada.1
Os incidentes individuais que compõem a narrativa são, em grande parte,
autênticos, muitos deles sendo testemunhados por ela própria ou por seus amigos
pessoais. A escritora e seus amigos conheceram e reproduziram quase todos os
personagens aqui apresentados; e muitas das falas são palavra por palavra do que
ela própria ouviu, ou de como lhe foram descritas.2
A aparência pessoal de Elisa e sua personalidade são esboços tirados da vida
real. A fidelidade incorruptível, a devoção e a honestidade do Pai Tomás teve
mais do que uma versão, de acordo com o conhecimento dela. Alguns dos
incidentes mais trágicos e românticos, alguns dos mais terríveis, também tiveram
paralelo com a realidade. O incidente da mãe atravessando o Rio Ohio sobre o
gelo é um fato bem conhecido. A história da velha Prue (Capítulo 19), foi um
fato ocorrido de acordo com a observação pessoal de um dos irmãos da escritora,
na época um contador de um grande estabelecimento mercantil de Nova Orleans.
Dessa mesma fonte derivou o personagem do fazendeiro Legree. Sobre ele, o
irmão da escritora escreveu, falando da visita que fez à sua fazenda em sua
viagem de cobranças: “Ele, de fato, me fez sentir seus punhos, que eram como
um martelo de um ferreiro, ou um nódulo de ferro, me dizendo que era 'calejado
de tanto surrar os negros’. Quando deixei a fazenda, suspirei profundamente, e
senti como se tivesse escapado da caverna de um ogro”.
O destino trágico de Tomás também teve, muitas vezes, seu paralelo com a
vida real, e há por todo o país, testemunhas vivas que confirmariam isso.
Lembremos que em todos os estados do Sul é um princípio da jurisprudência que
nenhuma pessoa de cor pode testemunhar em um julgamento contra um branco,
e seria fácil perceber que casos assim ocorreram toda vez que há um homem
cujas paixões superam seus interesses, e um escravo com hombridade ou
princípios suficientes para resistir aos seus desejos. Na verdade, não há nada que
proteja a vida de um escravo, senão o caráter de seu amo. Fatos chocantes
demais para serem ditos ocasionalmente chegam aos ouvidos do público, e o
comentário que se ouve com relação a eles é ainda pior do que o fato em si.
Dizem: “Certamente casos como esse ocorrem de quando em quando, mas não
são exemplos da prática generalizada”. Se as leis da Nova Inglaterra foram
estabelecidas de tal forma que um mestre pudesse, de quando em quando,
torturar seu aprendiz até a morte, sem a possibilidade de ser levado à justiça, será
que esse fato seria recebido com a mesma compostura? Será que diriam que
“esses casos são raros e não são exemplos da prática generalizada?”. Essa
injustiça é inerente ao sistema escravocrata; um não existe sem o outro.
A venda pública e vergonhosa de lindas garotas mulatas ou quadraronas
ganhou notoriedade a partir dos eventos subsequentes à captura do Pearl.
Extraímos o seguinte trecho do discurso do Hon. Horace Mann, um dos
conselheiros legais dos réus neste caso. Ele diz: “Naquele grupo de setenta e seis
pessoas que tentaram, em 1848, fugir do Distrito de Columbia na escuna Pearl, e
cuja defesa dos oficiais eu assisti, havia várias garotas jovens e saudáveis nessas
condições, cujo porte e beleza são muito valorizados por especialistas. Elisabeth
Russel era uma delas. Ela imediatamente caiu nas garras de um traficante de
escravos, e fora enviada para o mercado de Nova Orleans. Os corações daqueles
que as viram se apiedaram do destino da escrava. Ofereçam oitocentos dólares
para resgatá-la, e a alguns não lhes restaria mais nada depois da oferta; mas o
traficante de escravos fora inexorável. Ela fora despachada para Nova Orleans;
no entanto, a meio caminho de lá, Deus teve piedade dela e a golpeou com a
morte. Havia duas garotas com sobrenome Edmundson no mesmo grupo. Prestes
a ser enviada para o mesmo mercado, a irmã mais velha foi até o matadouro,
implorar ao cruel homem que as possuía, para, pelo amor de Deus, poupar suas
vítimas. Ele fez chacota, falando dos lindos vestidos e da bela mobília que
teriam. ‘Sim’, ela dissera, ‘Isso tudo serve muito bem nesta vida, mas qual a
serventia delas na outra?’. As duas foram enviadas à Nova Orleans, mas depois
resgatadas por uma enorme soma e levadas de volta”. Não é evidente, a partir
disso, que as histórias de Emmeline e Cassy talvez não sejam de todo frutos da
imaginação?
A justiça também obriga a autora a declarar que a bondade e generosidade
atribuídas a St. Clare também não são imaginárias, como mostrará a história a
seguir. Alguns anos atrás, um cavalheiro sulista estava em Cincinnati com seu
escravo predileto, que fora seu criado pessoal desde garoto. O jovem se
beneficiou dessa oportunidade para garantir sua liberdade, e fugiu para a
proteção de um quacre, bem conhecido por negócios desse tipo. O proprietário
ficou indignado. Ele sempre tratara o escravo com indulgência, e a confiança em
seu afeto era tanta que acreditava que o escravo fora convencido a se revoltar
contra si. Tomado de raiva, foi visitar o quacre; no entanto, possuidor de candura
e bondade incomuns, logo foi tranquilizado pelos argumentos e representações
desse. Era um lado da questão que nunca ouvira, sobre o qual nunca pensara; e
ele imediatamente disse ao quacre que, se o escravo dissesse diante dele que
queria ser livre, ele o libertaria. Assim, a entrevista aconteceu e o jovem amo
perguntou a Nathan se ele um dia tivera algum motivo para reclamar do
tratamento que recebera, sob qualquer aspecto.
— Não, amo — Nathan respondeu. — O senhor sempre foi muito bom para
mim.
— Então, por que quer me deixar?
— O senhor pode morrer e então, o que seria de mim? É melhor ser um
homem livre.
Depois de pensar um pouco, o jovem amo respondeu:
— Nathan, se estivesse em sua posição, acho que me sentiria do mesmo
modo. Você está livre.
Ele imediatamente providenciou a carta de alforria; depositou um bom
dinheiro nas mãos do quacre, para ser usado com parcimônia e ajudar o escravo
a começar a vida, e deixou uma carta de aconselhamento muito sensível e
bondosa ao jovem. A carta esteve durante algum tempo nas mãos da escritora.
A autora espera ter feito justiça a essa nobreza, generosidade e humanidade,
que, em muitos casos, caracterizam os indivíduos sulistas. Tais acontecimentos
nos poupam do desespero profundo em nossa espécie. No entanto, ela pergunta a
qualquer pessoa que conhece o mundo: pessoas desse tipo são comuns em algum
lugar?
Durante muitos anos de sua vida, a autora evitou todo e qualquer tipo que
falasse ou fizesse alusão à questão da escravidão, considerando ser este um
assunto sofrido demais para ser questionado, e o qual, à medida do aumento do
esclarecimento e do avanço da civilização, certamente um dia desprezarão.
Porém, desde o Compromisso de 1850, quando ela ouviu, com perfeita surpresa
e consternação, pessoas cristãs e humanas de fato recomendando a denúncia de
fugitivos, para que permanecessem como escravos, como uma obrigação dos
bons cidadãos; quando ouviu, de todas as bocas de pessoas amáveis,
misericordiosas e distintas, deliberações e discussões sobre até que ponto a
obrigação cristã caberia nesses casos, a autora apenas conseguiu pensar: esses
homens e cristãos não têm noção do que é a escravidão, pois, se tivessem, tal
questionamento nunca estaria aberto a discussão. E, disso, nasceu o desejo de
exibi-la, numa vívida realidade dramática. A autora tentou mostrar a escravidão
da melhor forma possível, em seus melhores e piores aspectos. Em seu melhor
aspecto, ela talvez tenha obtido sucesso; mas, ah! Quem há de dizer o que ainda
permanece oculto naquele vale assombrado da morte que está do outro lado?
A vocês, homens e mulheres nobres e generosos do Sul, cuja virtude,
magnanimidade e pureza de caráter são ainda maiores pelas severas tentações
impostas, é que apelo. Alguma vez já sentiram, no fundo de suas almas, em suas
conversas privadas, que há sofrimento e mal nesse sistema amaldiçoado, muito
além do que foi revelado, ou que pode ser mostrado aqui? E como poderia ser de
outra forma? Será o Homem uma criatura digna de poder absolutamente
irresponsável? E o sistema escravocrata, negando ao escravo todos os direitos
legais de testemunho, não faz de cada proprietário um désposta irresponsável?
Alguém falharia ao inferir qual seria o resultado prático? Se há, como
admitimos, um sentimento comunitário entre vocês, homens de bem, da justiça e
da humanidade, também não há outro tipo de sentimento entre os desalmados,
brutos e cruéis? E esses desalmados, brutos e cruéis não podem, pela lei da
escravidão, possuir tantos escravos quanto os mais puros e mais bondosos? E,
por acaso, os honrados, os justos, os esclarecidos e piedosos são maioria em
qualquer lugar deste mundo?
O tráfico de escravos, pela lei americana, é hoje considerado pirataria. Mas o
tráfico de escravos, tão sistemático como sempre foi feito na costa da África, é
resultado inevitável da escravidão americana. E quanto a seus horrores e
sofrimentos, podem eles ser revelados?
A autora apresentou apenas uma leve sombra, uma pincelada da angústia e
desespero que, neste momento, assola milhares de corações, desmantelando
milhares de famílias e levando uma raça sensível e oprimida à loucura e ao
desespero. Há aqueles que conhecem mães cujo tráfico maldito levou ao
assassinato de seus filhos. E elas próprias buscam na morte um abrigo para a
miséria pior do que a morte. Nada de tão trágico poderia ser escrito, falado ou
concebido a ponto de se igualar à assustadora realidade das cenas de cada dia e
cada hora em nosso solo, sob a sombra da lei americana e à sombra da cruz de
Cristo.
Homens e mulheres da América, vocês consideram essas circunstâncias algo
a ser celebrado, absolvido e ignorado em silêncio? Fazendeiros de
Massachussets, New Hampshire, Vermont e Connecticut que leem este livro ao
lado da chama do fogo de uma noite de inverno; generosos e corajosos
marinheiros e proprietários de navios do Maine, seria isso algo a ser apoiado e
encorajado? Valentes e bondosos habitantes de Nova York, fazendeiros do rico e
vibrante Ohio, e você dos vastos estados das planícies, respondam, seria isso
algo a ser protegido e tolerado? E vocês, mães da América, vocês que sempre
aprenderam ao lado do berço de seus próprios filhos a amar e se compadecer de
toda a humanidade, pelo amor sagrado que têm pelos seus filhos; pela alegria de
sua infância alegre e imaculada; pela comiseração e ternura com que guiam seus
passos; pelas ansiedades com sua educação; pelas preces que rogam pela
eternidade de suas almas; eu lhes rogo, tenham piedade da mãe que tem todos os
seus mesmos sentimentos, mas nenhum direito legal de preteger, guiar ou educar
a criança nascida de seu ventre! Pelas horas de vigília aos seus filhos doentes;
por aqueles olhos moribundos dos quais nunca puderam se esquecer, por aqueles
últimos choros que perduram sem seus corações quando não puderam nem
ajudar nem salvar; pela desolação do berço vazio, do quarto silencioso, eu lhes
imploro, tenham misericórdia das mães que constantemente perdem seus filhos
para o tráfico americano de escravos! Digam-me, mães da América, a escravidão
é algo a ser defendido ou tolerado em silêncio?
E como podem dizer que os cidadãos dos estados livres não devem
responder por isso ou não podem fazer nada sobre essa questão? Ah, se Deus
permitisse que isso fosse verdade! Mas não é. Os cidadãos dos estados livres
defenderam, encorajaram e participaram; e são tão culpados, perante Deus,
quanto os cidadãos do Sul, uma vez que não têm a desculpa da educação e do
costume.
Se no passado as mães dos estados livres tivessem se sentido como
deveriam, os filhos dos estados livres não teriam sido os mantenedores, e,
notoriamente, os senhores de escravos mais rígidos; os filhos dos estados livres
não teriam sido coniventes com a propagação da escravidão pelo nosso país; os
filhos dos estados livres não teriam, como fizeram, negociado as almas e os
corpos de homens como mercadoria equivalente a dinheiro em suas negociações
mercantis. Há multidões de escravos comprados temporariamente, e depois
vendidos de novo, por mercadores nas cidades do Norte; assim, como pode toda
a culpa ou a desgraça da escravidão recair apenas sobre o Sul?
Os homens do Norte, as mães do Norte, os cristãos do Norte, têm mais a
fazer além de denunciar seus irmãos pecadores do Sul; têm de encontrar a
maldade entre os seus.
Mas então, o que pode fazer cada indivíduo? Sobre isso, cada um poderá
julgar o que lhe cabe. Há uma coisa que qualquer indivíduo pode fazer; pode
garantir que esteja agindo corretamente. Uma atmosfera de influência simpática
circunda cada ser humano; e o homem ou a mulher que sente estar agindo de
forma forte, saudável e justa com relação aos grandes interesses da humanidade
é um contínuo benfeitor da raça humana. Analise, assim, suas simpatias com
relação a essa questão! Estão em harmonia com as simpatias de Cristo? Ou
foram influenciadas e pervertidas pelos sofismas da política mundial?
Homens e mulheres cristãos do Norte! Além disso, têm outro poder: podem
rezar! Acreditam no poder da oração? Ou rezar se tornou uma tradição
apostólica indistinta? Rezem pelos pagãos de outras paragens, mas rezem
também pelos pagãos de sua própria casa. E rezem por aqueles cristãos
oprimidos cuja única chance de aprimoramento religioso está ligada ao acaso de
comércio e da venda e, para quem, qualquer aderência aos códigos morais do
cristianismo é, em muitos casos, uma impossibilidade, a não ser que tenha
recebido de Deus a coragem e a graça do martírio.
Mas ainda há mais. Nas fronteiras de seus estados livres estão surgindo o
que restou das pobres famílias destruídas e sofridas; homens e mulheres que
escaparam, pela providência divina, das ondas de escravidão, débeis em
conhecimento e, em muitos casos, fracos de constituição moral, em decorrência
de um sistema que mistura e confunde todos os princípios do cristianismo e da
moralidade. Eles buscam refúgio entre vocês; vêm em busca de educação,
conhecimento, cristianismo.
E o que devem a esses pobres desafortunados, ó, cristãos? Cada cristão
americano não deve à raça africana algum esforço de reparação dos sofrimentos
que a nação americana tem imposto sobre eles? A Igreja de Cristo dever ouvir
em silêncio às súplicas e se afastar das mãos miseráveis daqueles que lhes
pedem ajuda? E, através do seu silêncio, encorajar a crueldade que os capturaria
de nossas fronteiras? Se assim for, será um terrível espetáculo. Se assim for, o
país terá motivo para tremer ao lembrar que o destino das nações está nas mãos
do Único que é comiserado e misericordioso.
Dizem: “Não os queremos aqui; deixem que vão à África!”?.
Que a providência divina tenha lhes dado um refúgio na África, é,
certamente, um fato grandioso e notável; mas não há razão para que a Igreja de
Deus recuse a responsabilidade para com essa raça desprezada, que seu dever lhe
exige.
Povoar a Libéria com uma raça ignorante, inexperiente e semibárbara, que
acabou de se libertar dos grilhões da escravidão, seria apenas prolongar durante
anos o período de luta e conflito inerentes a novas iniciativas. Permitam que a
Igreja do Norte receba esses pobres sofredores no espírito de Cristo; que ela os
receba de acordo com os benefícios de educação da sociedade e das escolas
republicanas até alcançarem certo nível de maturidade moral e intelectual, e,
então os ajude na viagem até aquelas terras, onde poderão colocar em prática as
lições aprendidas na América.
Há um grupo de homens no Norte, relativamente pequeno, que já esteve
fazendo isso; e, como resultado, este país já viu exemplos de homens, antigos
escravos, que rapidamente adquiriram fortuna, reputação e instrução. O talento
foi desenvolvido, o que, considerando as circustâncias, é certamente algo
extraordinário; e no que tange às qualidades morais de honestidade, gentileza e
bondade de sentimentos, aos esforços heroicos e abnegados pelo resgate dos
irmãos e amigos ainda na escravidão, foram notáveis a ponto de, considerando-
se a influência sob as quais eles nasceram, serem surpreendentes.
A autora viveu durante muitos anos na fronteira dos estados escravocratas, e
teve inúmeras oportunidades de observação em meio àqueles que um dia foram
escravos. Eles serviam a família dela há anos, como criados e, na ausência de
escolas para recebê–los, ela, em muitos casos, os intruíra em casa, junto com
seus próprios filhos. Ela também teve o testemunho de missionários entre os
fugitivos no Canadá, que coincide com sua própria experiência; e suas
conclusões com relação às capacidades da raça negra são altamente
encorajadoras.
Geralmente, o primeiro desejo do escravo emancipado é receber educação.
Não há nada que não estejam dispostos a dar ou a fazer para terem seus filhos
instruídos; e, até onde a autora pôde observar por si mesma, ou pelo testemunho
dos professores entre eles, os negros são extraordinariamente inteligentes e
vorazes aprendizes. Os resultados das escolas fundadas para eles por
benevolentes indivíduos de Cincinnati reiteram exatamente essa afirmação.
A autora apresenta a seguinte declaração dos fatos, sob a autoridade do
Professor C. E. Stowe,3 do Educandário Lane, de Ohio, com relação aos
escravos emancipados, agora residentes em Cincinatti, apresentada para mostrar
a capacidade da raça negra, mesmo sem nenhum tipo particular de assistência ou
estímulo. Publicaremos as letras iniciais. Todos são residentes de Cincinnati.
“B——— Marceneiro; vinte anos na cidade; vale dez mil dólares, pecúlio
próprio; Batista.”
“C——— Negro; roubado da África; vendido em Nova Orleans; livre há
quinze anos; pagou mil e seiscentos dólares por sua própria liberdade;
fazendeiro; proprietário de várias fazendas em Indiana; Presbiteriano;
provavelmente vale quinze ou vinte mil dólares; pecúlio próprio.”
“K——— Negro; comerciante do ramo de imóveis; vale trinta mil dólares;
aproximadamente quarenta anos de idade; livre há seis anos; pagou mil e
oitocentos dólares pela família; membro da Igreja Batista; recebeu patrimônio do
seu senhor, do qual cuidou bem e aumentou.”
“G——— Negro; negociante de carvão; aproximadamente trinta anos de
idade; vale mil e oitocentos dólares; pagou pela liberdade duas vezes, tendo uma
vez sido fraudado no valor de um mil e seiscentos dólares; ganhou todo o
dinheiro com o próprio esforço, grande parte enquanto era escravo, alugando-se
para seu amo e trabalhando por conta própria; um sujeito elegante e de modos
refinados.”
“W——— Três quartos negro; barbeiro e garçom; do Kentucky; livre há
dezenove anos; pagou pela própria liberdade e a da família mais de três mil
dólares; vale vinte mil dólares; pecúlio próprio; diácono na Igreja Batista.”
“G. D——— Três quartos negro; caiador; do Kentucky; livre há nove anos;
pagou mil e quinhentos dólares pela sua liberdade e a da família; morreu
recentemente, com sessenta anos; valia seis mil dólares.
O Professor Stowe diz: “Todos esses, exceto G—, conheci e convivi
pessoalmente durante anos, e faço minhas colocações a partir de meu próprio
conhecimento”.
A autora se lembra muito bem de uma mulher negra, empregada como
lavadeira na casa de seu pai. A filha dessa mulher casou-se com um escravo. Ela
era uma jovem mulher extremamente ativa e capaz, e, por meio de seu trabalho e
habilidade, e a mais abnegada perseverança, juntou mil e novecentos dólares
para a liberdade do esposo, pela qual ela pagou, de acordo com suas próprias
palavras, às mãos do senhor dele. Ainda faltavam cem dólares a serem pagos
quando o esposo morreu. Ela nunca recuperou o dinheiro.
Esses são apenas alguns fatos, entre os milhares que podem ser dados como
prova da abnegação, energia, paciência e honestidade exibida por um escravo
emancipado.
E não nos esqueçamos de que esses indivíduos obtiveram grande sucesso na
conquista da própria fortuna e posição social diante de todas as desvantagens e
obstáculos. O homem negro, pela lei de Ohio, não pode votar, e, até poucos anos,
lhe era negado o direito de testemunhar em processos legais com os brancos. E
essas circunstâncias não estão confinadas ao estado de Ohio. Em todos os
estados da União vemos homens, recém-libertos dos grilhões da escravidão, os
quais por meio da força da autoinstrução, sempre digna de muita admiração,
alcançaram postos respeitáveis na sociedade. Pennington, entre os clérigos, e
Douglas e Ward, entre os editores, são exemplos famosos.
Se essa raça perseguida, com todo tipo de obstáculo e desvantagem,
conseguiu realizar tanto, quanto mais seriam capazes de fazer se a igreja cristã
agisse a favor deles no espírito do Senhor!
Essa é uma época no mundo em que as nações estão tremendo e
convulsionando. Há uma força poderosa reinando, agitando e desestabilizando o
mundo, como um terromoto. Será que a América está a salvo? Toda nação que
carrega no peito a grande e terrível injustiça tem em si os elementos dessa útlima
convulsão.
E qual é essa força poderosa que reina sobre todas as nações e línguas, cujos
gritos pela liberdade e igualdade entre os homens não podem ser silenciados?
Ó, Igreja de Cristo, leia os sinais dos tempos! Não será a força do espírito
d’Ele, cujo reino está por vir, e cuja vontade será feita na terra assim como no
céu?
E quem sobreviverá ao dia da Aparição? “Pois este dia queimará feito uma
fornalha; e Ele aparecerá como uma testemunha contra aqueles que oprimem o
ganho do trabalhador, a viúva e o órfão, e que privam os direitos ao forasteiro; e
despedaçará o opressor”.4
Essas palavras horríveis não seriam destinadas a uma nação que alimenta em
seu peito tamanha injustiça? Cristãos! Toda vez que rezam para que venha a nós
o Vosso Reino, como podem se esquecer de que a profecia une em terrível
companhia o dia da vingança ao dia da redenção?
Um dia de graça ainda há de nos ser concedido. Tanto o Norte quanto o Sul
já foram culpados antes diante de Deus; e a Igreja Cristã tem grandes contas a
prestar. Este país não será salvo se unindo para proteger a injustiça e a crueldade,
e fazendo do pecado um capital comum, mas por meio do arrependimento, da
justiça e do perdão; pois a eterna lei pela qual a pedra afunda no oceano não é
tão certeira como a lei mais forte pela qual a injustiça e a crueldade trarão às
nações a ira do Deus Todo-Poderoso!
NOTAS
CAPÍTULO 1
1 gramática de Murray: English Grammar (1795), escrita por Lindley Murray
(1745-1826), a maior autoridade em gramática norte-americana de seu tempo.
2 quadrarão: aquele que possui um quarto de sangue negro nas veias, filho de
branco e mulato.
3 Jim Crow: gíria pejorativa para se referir a negros. Tem provável origem na
canção “Jump Jim Crow”, interpretada pelo cantor branco Thomas D. Rice
(que se apresentava usando o rosto pintado de negro). No fim do século xix,
leis promulgadas nos estados sulistas destinadas à segregação racial ficaram
conhecidas como “Leis Jim Crow”.
4 um segundo Wilberforce: William Wilberforce (1759-1833), político inglês que
se manifestou contra a escravidão.

CAPÍTULO 2
1 descaroçador de algodão de Whitney: uma máquina com essa descrição foi
realmente inventada por um jovem negro em Kentucky. (Nota da autora)

CAPÍTULO 7
1 ferrovia subterrânea: trata-se da Underground Railroad, um sistema de
esconderijos e passagens subterrâneas criado por negros e brancos
abolicionistas a fim de auxiliar a fuga de escravos fugitivos para o Canadá.

CAPÍTULO 8
1 sua natureza canina: referência à obra The Pilgrim’s Progress [O progresso do
peregrino] (1678), de John Bunyan, uma alegoria para a busca espiritual
protestante.

CAPÍTULO 12
1 recusa ser consolada: Jeremias 31:15-16.

CAPÍTULO 14
1 uma rosa com suas pétalas ainda por abrir: trecho de Don Juan 14:43 (1818-
1824), do poeta inglês Lord Byron.

CAPÍTULO 16
1 Prefiro ensinar a vinte outras pessoas como fazer o bem: trecho da peça O
mercador de Veneza (1:2:17-18).

CAPÍTULO 23
1 Todos os homens nascem livres e iguais: trecho da Declaração da
Independência do Estados Unidos.
2 canaille: palavra francesa que significa, literalmente, “matilha de cães”. Usado
em língua inglesa no séc. xix como sinônimo de turba, populacho.
3 França: referência à Revolução Francesa (1789), cujo início foi desencadeado
por uma revolta popular.
4 Santo Domingo: referência às sucessivas rebeliões de escravos ocorridas no
Haiti, a ex-colônia francesa Saint-Domingue, a partir de 1791 (como
consequências da Revolução Francesa). Em 1804, o ex-escravo Jean-Jacques
Dessalines proclamou-se imperador, massacrando todos os brancos da ilha. O
episódio passou a ser usado como argumento contra o “aspecto bárbaro” das
populações negras.
5 Os nobres da época de Luís xvi: neste parágrafo são mencionados três chefes
de Estado derrubados por seus respectivos povos. Luís xvi, rei da França, foi
para a guilhotina durante a Revolução Francesa. Em 1848, o imperador
austríaco enfrentava uma série de rebeliões. No Vaticano, o papa Pio ix foi
afastado por nacionalistas italianos.
6 Dies declarabit: expressão latina que significa “o tempo dirá”.
7 sans culotte: membros do partido republicano radical durante a Revolução
Francesa.

CAPÍTULO 26
1 Não chores por aqueles cujo véu da morte: “Weep Not for Those,” um poema
de Thomas Moore (1779-1852).
2 atenção, o noivo se aproxima: Mateus 25:1-12. Alusão a parábola sobre a
vinda de Cristo.

CAPÍTULO 28
1 Dies Irae: hino em latim sobre o dia do juízo final, parte da Missa de Réquiem.
2 Recordare Jesu pie: “Lembra-te, Jesus piedoso, que por mim enfrentastes o
mal e a traição; Não me percas nessa estrada tenebrosa; Procurando-me, teus
pés ficaram exaustos; Por mim morreste na cruz; Que teu sacrifício não seja
em vão.” (Nota da autora)

CAPÍTULO 30
1 Tártaro “informis, ingens, cui lumen ademptum”: na mitologia grega, o
Tártaro é o mais profundo dos nove mundos inferiores, prisão dos titãs
derrotados e local de tortura para a alma dos mortos. Stowe cita verso da
Eneida de Virgílio: “informe, ingente, e sem olhos” (Livro iii, 682).

CAPÍTULO 32
1 cheios de habitações de crueldade: Salmos 74:20.

CAPÍTULO 34
1 paillasse: espécie de esteira ou colchão fino, em francês.

CAPÍTULO 35
1 A peregrinação de Childe Harold: poema do escritor inglês Lord Byron.

CAPÍTULO 37
1 Curran: John Philpot Curran (1750-1817), orador e juiz irlandês que trabalhou
pela emancipação católica. A citação é um trecho da defesa de James
Somerset, um escravo jamaicano que, chegado à Inglaterra, reivindicou sua
liberdade. A corte decidiu a favor de Somerset (1772).

CAPÍTULO 38
1 Graças a Deus que nos deu a vitória: 1 Coríntios 15:55-57.

CAPÍTULO 39
1 nem sequer sabem em quem tropeçam: Provérbios 4:19.

CAPÍTULO 42
1 Os mortos, de lençol branco: trecho da peça Hamlet (1:1:115).
2 pneumatologia: Teoria acerca dos espíritos.

CAPÍTULO 43
1 élève: estudante em francês.
CAPÍTULO 45
1 uma resposta generalizada: aqui Stowe responde às cartas de leitores
recebidas durante o ano em que A cabana do Pai Tomás foi publicada em
folhetim, entre 1851 e 1852, antes da publicação em formato de romance.
2 como lhe foram descritas: após críticas e questionamentos com relação à
veracidade das histórias narradas, provenientes especialmente de leitores
sulistas, Stowe escreveu e publicou A Key to Uncle Tom’s Cabin [Uma chave
para A cabana do Pai Tomás], em que relatou os incidentes verídicos em que se
baseou para a escrita do romance.
3 Professor C.E. Stowe: marido de Harriet Beecher Stowe, Calvin Ellis Stowe.
4 Pois este dia queimará feito uma fornalha: adaptado de Malaquias 4:1,
Jeremias 22:3 e Salmos 72:4.
Este livro foi composto em
Crimson Roman no corpo 10.5/15
e impresso em papel Chambril Avena 70g/m2 pela
RR Donnelley.

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