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1.1 Conjuntos
Um conjunto é uma coleção de elementos. Embora o conceito possa ser definido
de maneira mais formal, à partir de axiomas fundamentais dos quais todas as
outras propriedades são deduzidas, fazer isso sem paradoxos e inconsistências
torna a tarefa árdua e pouco agrega para os propósitos deste livro. Sendo assim,
iremos lidar com eles usando uma noção mais informal.
Conjuntos podem ser finitos, mas também podem ser infinitos. Os conjun-
tos que nos interessam são aqueles que contém números e/ou funções numéricas.
Como um conjunto não é um número e nem uma função numérica, não encon-
traremos jamais um conjunto que contém a si mesmo. Sendo assim, estamos
livres de precisar usar muito rigor, pois nunca encontraremos paradoxos como
o abaixo:
Paradoxo de Russel: Alguns conjuntos podem conter a si mesmos. Por
exemplo, o conjunto de todas as coisas que são triângulos não é um triângulo,
e não contém a si mesmo. Mas o conjunto de todas as coisas que não são
triângulos não é um triângulo, e portanto, contém a si mesmo. E o conjunto
de todos os conjuntos que não contém a si mesmos? Ele contém a si mesmo ou
não?
O conjunto vazio ∅, bem como {5} e {−4, 3, 1000} são exemplos de conjuntos
finitos. O conjunto dos números inteiros, o conjunto de números pares ou ainda
de números primos são exemplos de conjuntos infinitos.
Uma caracterı́stica importante de conjuntos é que por definição, cada ele-
mento pertencente a um conjunto é distinto. Não tem como existir dois elemen-
tos iguais dentro de um mesmo conjunto. Algo análogo a um conjunto, mas que
permite existir várias cópias de um mesmo elemento é chamado de multicon-
junto, mas o estudo deles não será relevante para nós. Também não existe uma
ordem associada a um conjunto. Então {1, 2} e {2, 1} são apenas duas maneiras
diferentes de se representar o mesmo conjunto. Caso tenhamos uma coleção
ordenada de elementos, dizemos que temos uma tupla ou sequência, não um
1
2 CAPÍTULO 1. NÚMERO, VARIÁVEL, FUNÇÃO
conjunto. Neste caso, denotamos ela usando parênteses, e podemos dizer que a
tupla (1, 2) é diferente de (2, 1).
Algumas operações relevantes sobre conjuntos são:
1.2 Corpo
Seja um conjunto A e duas operações denotadas pelo sı́mbolo de + e ·. Então,
estes elementos formam um corpo se eles tem as seguintes propriedades:
a + (b + c) = (a + b) + c
1.2. CORPO 3
a+b=b+a
a+0=a
a(bc) = (ab)c
ab = ba
a(b + c) = ab + ac
Como exemplo, podemos citar um dos exemplos não triviais mais simples de
um corpo: as operações de soma e multiplicação definidas sobre um único bit.
Seja B = {0, 1}, e seja a soma e subtração definida como:
0+0=0 0·0=0
0+1=1 0·1=0
1+0=1 1·0=0
1+1=0 1·1=1
Sendo B um conjunto finito com só dois elementos, você pode verificar ma-
nualmente que todas as sete propriedades de corpos se aplicam e funcionam
para as operações de soma e multiplicação, tais como nós as definimos.
4 CAPÍTULO 1. NÚMERO, VARIÁVEL, FUNÇÃO
Note que não importa o corpo com o qual estamos lidando, sempre será
verdade que para todo elemento a pertencente a ele, a · 0 = 0. Esta não é uma
propriedade listada na definição, mas é uma consequência dela. Observe:
a·0=a·0+a·0⇔a·0−a·0= a·0+a·0−a·0
⇔0= a·0
a≤a
Se a ≤ b e b ≤ a, então a = b
Se a ≤ b e b ≤ c, então a ≤ c
a ≤ b ou b ≤ a
Se a ≤ b, então c + a ≤ c + b
x < y ⇔ x ≤ y e x ̸= y
x > y ⇔ y ≤ x e x ̸= y
x≥y⇔ y≤x
a) x < y ⇔ x + y < y + z
b) z > 0 ⇔ z −1 > 0
c) z > 0 ⇔ −z < 0
d) Se z > 0, x < y ⇔ xz < yz
e) Se z < 0, x < y ⇔ xz > yz
conceito de um número que não representa uma quantidade que podemos ver
e segurar na mão era pouco intuitivo. Os chineses foram os primeiros a usar
o conceito como ferramenta para resolver diversos problemas matemáticos, em
algum momento entre 200 a.C. e 200 d.C.
O conjunto formado apenas pelos números desenvolvidos na antiguidade,
capazes de contar um número potencialmente infinito de elementos discretos
(como galinhas e ovelhas), incluindo o número zero que não era usado por todas
as civilizações, é o conjunto de números naturais. Denotamos tal conjunto
por:
N = {0, 1, 2, . . .}
Podemos estender o conjunto dos números naturais unindo ele com o con-
junto formado por todos os números negativos. Fazendo isso, obtemos o con-
junto dos números inteiros, denotado por:
N = {. . . , −2, −1, 0, 1, 2, . . .}
Podemos dividir os números inteiros em pares e ı́mpares. Um número par é
todo aquele que pode ser escrito na forma 2k, quando k é algum outro número
inteiro. Um número ı́mpar é todo aquele que pode ser escrito na forma 2k + 1,
onde k é algum outro número natural. Sabemos que 8 é par porque ele pode
ser escrito como 2(4). E 9 é ı́mpar porque ele pode ser escrito como 2(4) + 1.
Teorema 1 Se a é um número par, então a2 também é par. Se a é um número
ı́mpar, então a2 também será ı́mpar.
Prova: Se a é par, ele pode ser escrito na forma 2k para algum k ∈ Z. E
sendo assim, a2 = 4k 2 . Como 4k 2 = 2(2k 2 ), então a2 pode ser escrito na forma
2k ′ , com k ′ = 2k 2 . Portanto, a2 seria par.
Por outro lado, se a é ı́mpar, ele pode ser escrito na forma 2k + 1 para algum
k inteiro. Sendo assim, a2 = (2k + 1)2 = 4k 2 + 4k + 1. Podemos reescrever
isso como: 4k 2 + 4k + 1 = 2(2k 2 + 2k) + 1 = 2k ′ + 1, para k ′ = 2k 2 + 2k. Isso
demonstra que a2 seria ı́mpar neste caso.
■
Podemos estender o conjunto de números inteiros adicionando à ele também
as frações do tipo ab tal que a (chamado de numerador) e b (chamado de de-
nominador) são inteiros e b ̸= 0. Pode-se notar que os inteiros também podem
ser escritos desta forma: −2 = − 12 . Chamamos todos os números com esta
propriedade de números racionais.
Um mesmo número racional pode ser expresso de uma infinidade de maneiras
equivalentes: 12 = 24 = 36 = . . .. Geralmente preferimos representar um racional
na sua forma que tem o numerador e denominador mais próximos de zero, sendo
que o denominador é positivo. Esta é chamada de sua forma canônica. No caso,
1 −1
2 é a forma canônica do racional acima e 2 é a forma canônica de seu inverso
aditivo.
A soma de dois racionais é calculada como ab + dc = ad+cb bd e a multiplicação
como ab · dc = ac bd . Podemos comparar com a relação ≤ dois racionais apenas
1.3. NÚMEROS RACIONAIS 7
0 1
( , )
1 0
2. (Note que 10 não é um racional e está aı́ apenas para ajudar.) Percorra a
lista inserindo um novo elemento entre cada dois outros. Entre os elemen-
m′ m+m′
tos mn e n′ você deve inserir n+n′ :
0 1 1
( , , )
1 1 0
3. Repita:
0 1 1 2 1
( , , , , )
1 2 1 1 0
4. Repetindo mais uma iteração:
0 1 1 2 1 3 2 3 1
( , , , , , , , , )
1 3 2 3 1 2 1 1 0
5. Mais uma:
0 1 1 2 1 3 2 3 1 4 3 5 2 5 3 4 1
( , , , , , , , , , , , , , , , , )
1 4 3 5 2 5 3 4 1 3 2 3 1 2 1 1 0
6. Repita quantas vezes quiser, e no fim descarte o último elemento por não
ser um racional.
Prova: Para demonstrar que nunca repetimos nenhum elemento, note que,
ignorando o 10 , todos os elementos são números racionais ordenados. No começo
temos só o 01 , que está ordenado. Na próxima iteração temos 10 < 11 . Na terceira
iteração obtemos: 01 < 12 < 11 < 12 .
Como vimos, isso é verdade para todos os casos iniciais. Para mostrar que
isso continua sendo verdade sempre, considere o que acontece quando temos
m′
dois elementos m n < n′ um do lado do outro. À partir dele, a próxima iteração
′
produzirá m+m
n+n′ .
′
Para demonstrar que m m+m
n < n+n′ , vamos escrever ambos de maneira equiva-
lente, modificando seus denominadores para n(n + n′ ):
m m(n + n′ ) nm + n′ m
= =
n n(n + n′ ) n(n + n′ )
m + m′ n(m + m′ ) nm + nm′
= =
n + n′ n(n + n′ ) n(n + n′ )
Como os seus denominadores agora são iguais, podemos apenas comparar os
numeradores para ver qual é maior. Para ajudar nisso, vamos também reescrever
a inequação inicial:
m m′ mn′
< ′ ⇔ n < m′
n n
⇔ n′ m < nm′
1.3. NÚMEROS RACIONAIS 9
Isso pôde ser feito graças a todos os valores serem maiores que zero. Como
n′ m < nm′ , então mn + mn′ < mn + nm′ (devido à propriedade da compa-
tibilidade da ordem com a adição vista na Seção anterior). Portanto, como
m+m′
querı́amos demonstrar, é verdade que m n < n+n′ .
′ ′
De maneira análoga, pode-se demonstrar que m+m m
n+n′ < n′ (faça como exercı́cio).
Sendo assim, isso garante que cada novo número inserido irá sempre obedecer
à ordem e será sempre estritamente maior que o anterior e estritamente menor
que o que vem depois. Portanto, é impossı́vel que um número seja repetido duas
vezes. ■
′
Lema 1 Sejam m m
n e n′ dois elementos sucessivos em qualquer etapa da geração
da árvore de de Stern-Brocot. Temos que m′ n − mn′ = 1.
Prova: Podemos verificar que isso é verdade para todos o caso inicial du-
rante a geração da árvore. Primeiro temos 01 e 10 . E é verdade que 1·1−0·0 = 1.
Assumindo que isso é verdade para o estado inicial da lista de valores gerados,
m′
quando vamos gerar um novo valor à partir de dois elementos m n e n′ (e sabemos
′
que a propriedade vale para eles, então: m′ n − mn′ = 1), produzimos m+m n+n′ .
Temos que demonstrar então que:
(m + m′ )n − m(n + n′ ) = 1
m′ (n + n′ ) − (m + m′ )n′ = 1
era igual a 1.
Sendo assim, esta propriedade é válida para o estado inicial da lista quando
começamos a produzir a árvore de Stern-Brocot. E a qualquer momento em
que estamos produzindo um novo valor, se a propriedade é válida para os que já
existem, ela será válida para o novo valor produzido e seus vizinhos. Isso prova
que a propriedade é sempre verdade. ■
Prova: Se m a
n < b , podemos reescrever a inequação como mb < an. Então,
an − mb será um número positivo. Ele também será um número inteiro, pois
a, b, m, n ∈ Z. Portanto, o resultado da subtração necessariamente será um
inteiro maior ou igual a 1.
10 CAPÍTULO 1. NÚMERO, VARIÁVEL, FUNÇÃO
Se ab < m
n , podemos reescrever a inequação como an < mb. Então, mb − an
será um número positivo. E também será um inteiro. Portanto, o resultado
desta subtração necessariamente será maior ou igual a 1. ■
a
Teorema 3 Não existe um número racional não negativo b que não esteja
presente na árvores de Stern-Brocot.
Para demonstrar isso, primeiro observe que a cada iteração na qual geramos
novos elementos para a árvore de Stern-Brocot, introduzimos um novo número
natural. O 01 já está presente. Depois vem o 11 . E assim por diante. O fato é
que para os casos iniciais nós sempre temos em nossa lista um número natural
n 1
1 imediatamente antes do 0 . Se iso é verdade para os casos iniciais, para
mostrar que sempre é verdade, observe que depois de mais uma iteração, o novo
número posicionado antes de 01 é n+10+1 , que também é natural e é o sucessor
do número que havia antes. Portando cada nova iteração introduz na árvore o
menos número natural que ainda não estava representado.
Isso nos mostra que para todo racional ab , após um número suficiente de
iterações, teremos na nossa lista um número maior que ele. Desta forma, tere-
m′ m′
mos: m a m a
n < b < n′ onde n e n′ foram inseridos na árvore árvore e b não foi
′
inserido. Dizemos que m a m a
n delimita b à esquerda e n′ delimita b à direita.
Pelo Corolário 1, sabemos então que:
an − bm ≥ 1 bm′ − an′ ≥ 1
Portanto:
Ou ainda:
a + b ≥ m′ + n′ + m + n
Isso nos mostra que a soma do numerador e denominador de qualquer raci-
onal positivo representado na forma canônica ab vai ser sempre maior ou igual à
m′
soma dos numeradores e denominadores dos racionais m n e n′ que fazem parte
da árvore de Stern-Brocot e delimitam ab .
m′
Entretanto, se existem dois racionais m a
n e n′ delimitando b , após realizar
mais uma iteração para gerar novos elementos, iremos produzir o novo valor
m′ +m
n′ +n , e então três coisas diferentes podem ocorrer:
1.3. NÚMEROS RACIONAIS 11
m′ +m
• n′ +n = ab : neste caso ocorre o que queremos provar que sempre acontece:
o racional ab é inserido na árvore.
m′ +m
• n′ +n < ab : neste caso temos um novo valor delimitando ab à esquerda.
Mas note que este novo valor tem numerador e/ou denominador maior. A
nova soma do numerador e denominador do delimitador à esquerda de ab
será maior em pelo menos 1 unidade.
m′ +m
• n′ +n > ab : neste caso temos um novo valor delimitando ab à direita. Este
novo valor também terá uma soma de seu numerador e denominador pelo
menos 1 unidade maior que o delimitador anterior.
Isso nos mostra que à medida que realizamos novas iterações e produzimos
novos valores na árvore, os delimitadores de ab vão se aproximando dele. Entre-
tanto, sabemos que a cada iteração, a soma dos numeradores e denominadores
dos delimitadores vai aumentando sempre um valor inteiro positivo. E também
que a soma a + b sempre será maior que a soma dos numeradores e denomi-
nadores de seus delimitadores. Isso demonstra que necessariamente uma hora
a
b será inserido na árvore. Pois se isso não fosse verdade, após um número fi-
nito de iterações acabarı́amos tendo um cenário no qual os delimitadores teriam
uma soma maior que a + b de seus numeradores e denominadores, e isso é uma
contradição com as propriedades que demonstramos da árvore.
■
Os teoremas que vimos nos dizem que todos os números racionais estão
contidos na árvore de Stern-Brocot, e que cada um deles aparece nela uma única
vez. Com isso, apesar dos números racionais serem infinitos, e apesar de que em
um intervalo qualquer sempre existir um número infinito de racionais, nós ainda
somos capazes de enumerar cada um deles em uma ordem bem definida sem
esquecer de nenhum. Podemos enumerar todos os racionais apenas colocando
eles na ordem em que são inseridos à medida que geramos a árvore, apenas
precedendo cada um deles pelo seu valor negativo:
0 1 1 1 1 2 2 1 1 2 2 3 3 1 1 2 2 3 3
Q= ,− , ,− , ,− , ,− , ,− , ,− , ,− , ,− , ,− , ,...
1 1 1 2 2 1 1 3 3 3 3 2 2 4 4 5 5 5 5
Da mesma forma como normalmente enumeramos os números naturais co-
locando eles em ordem crescente:
N = {0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, . . .}
Isso nos mostra que podemos estabelecer uma relação de cada número ra-
cional de Q com um único número natural de N, e vice-versa. Portanto, a
cardinalidade de Q é igual à cardinalidade de N. Ambos os conjuntos infinitos
podem ser vistos como tendo exatamente o mesmo tamanho.