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Capı́tulo 1

Número, Variável, Função

1.1 Conjuntos
Um conjunto é uma coleção de elementos. Embora o conceito possa ser definido
de maneira mais formal, à partir de axiomas fundamentais dos quais todas as
outras propriedades são deduzidas, fazer isso sem paradoxos e inconsistências
torna a tarefa árdua e pouco agrega para os propósitos deste livro. Sendo assim,
iremos lidar com eles usando uma noção mais informal.
Conjuntos podem ser finitos, mas também podem ser infinitos. Os conjun-
tos que nos interessam são aqueles que contém números e/ou funções numéricas.
Como um conjunto não é um número e nem uma função numérica, não encon-
traremos jamais um conjunto que contém a si mesmo. Sendo assim, estamos
livres de precisar usar muito rigor, pois nunca encontraremos paradoxos como
o abaixo:
Paradoxo de Russel: Alguns conjuntos podem conter a si mesmos. Por
exemplo, o conjunto de todas as coisas que são triângulos não é um triângulo,
e não contém a si mesmo. Mas o conjunto de todas as coisas que não são
triângulos não é um triângulo, e portanto, contém a si mesmo. E o conjunto
de todos os conjuntos que não contém a si mesmos? Ele contém a si mesmo ou
não?
O conjunto vazio ∅, bem como {5} e {−4, 3, 1000} são exemplos de conjuntos
finitos. O conjunto dos números inteiros, o conjunto de números pares ou ainda
de números primos são exemplos de conjuntos infinitos.
Uma caracterı́stica importante de conjuntos é que por definição, cada ele-
mento pertencente a um conjunto é distinto. Não tem como existir dois elemen-
tos iguais dentro de um mesmo conjunto. Algo análogo a um conjunto, mas que
permite existir várias cópias de um mesmo elemento é chamado de multicon-
junto, mas o estudo deles não será relevante para nós. Também não existe uma
ordem associada a um conjunto. Então {1, 2} e {2, 1} são apenas duas maneiras
diferentes de se representar o mesmo conjunto. Caso tenhamos uma coleção
ordenada de elementos, dizemos que temos uma tupla ou sequência, não um

1
2 CAPÍTULO 1. NÚMERO, VARIÁVEL, FUNÇÃO

conjunto. Neste caso, denotamos ela usando parênteses, e podemos dizer que a
tupla (1, 2) é diferente de (2, 1).
Algumas operações relevantes sobre conjuntos são:

1. União: A união de dois conjuntos A, B, denotada por A ∪ B é o conjunto


de todos os elementos que estão no conjunto A ou estão no conjunto B.

2. Intersecção: A união de dois conjuntos A, B, denotada por A ∩ B é o


conjunto de todos os elementos que estão no conjunto A e também estão
no conjunto B.

3. Subtração: A subtração de dois conjuntos A, B, denotada por A − B é


o conjunto de todos os elementos que estão no conjunto A, mas não estão
no conjunto B.

Chamamos o tamanho de um conjunto de cardinalidade. Podemos deno-


tar a cardinalidade de um conjunto pelo seu número de elementos. Conjuntos
infinitos não tem um número definido para sua cardinalidade. Podemos também
comparar a cardinalidade de dois conjuntos dizendo assim qual é maior. Uma
forma de fazer isso seria obter o seu número de elementos e comparar o números.
Entretanto, se fizermos isso não poderemos comparar a cardinalidade de con-
juntos infinitos. Ao invés disso, faremos a comparação da cardinalidade de dois
conjuntos da seguinte forma: se temos um conjunto A e B, e pudermos esta-
belecer uma regra clara que nos permita conectar cada elemento do conjunto
A com um único elemento do conjunto B, e se pudermos também estabelecer
uma regra de como conectar cada elemento de B em um único elemento em
A, então ambos os conjuntos tem a mesma cardinalidade. Se, por outro lado,
pudermos criar uma regra que conecta cada elemento de A a um elemento do
conjunto B, mas demonstrarmos ser impossı́vel fazer o mesmo, conectando cada
elemento de B a um elemento do conjunto A, então isso significa que B tem
uma cardinalidade maior que A.

Exercı́cio 1.1.1: Em quais casos (A ∪ B) ∩ C = A ∪ (B ∩ C)? Encontre um


exemplo no qual esta igualdade não é verdadeira.
Exercı́cio 1.1.2: Quantos subconjuntos um conjunto finito de n elementos
possui?

1.2 Corpo
Seja um conjunto A e duas operações denotadas pelo sı́mbolo de + e ·. Então,
estes elementos formam um corpo se eles tem as seguintes propriedades:

1. Associatividade da Adição: Para todo a, b, c ∈ A:

a + (b + c) = (a + b) + c
1.2. CORPO 3

2. Comutatividade da Adição: Para todo a, b ∈ A:

a+b=b+a

3. Identidade Aditiva: Existe um elemento 0 ∈ A tal que para todo a ∈ A:

a+0=a

4. Inverso Aditivo: Para todo a ∈ A, existe um elemento denominado por


−a tal que:
a + (−a) = 0

5. Associatividade da Multiplicação: Para todo a, b ∈ A:

a(bc) = (ab)c

6. Comutatividade da Multiplicação: Para todo a, b ∈ A:

ab = ba

7. Identidade Multiplicativa: Existe um elemento 1 ∈ A tal que para


todo a ∈ A:
a·1=a

8. Inverso Multiplicativo: Para todo a ∈ A, existe um elemento denomi-


nado por a1 ou a−1 tal que:
aa−1 = 1

9. Distributividade: Para todo a, b, c ∈ A:

a(b + c) = ab + ac

Como exemplo, podemos citar um dos exemplos não triviais mais simples de
um corpo: as operações de soma e multiplicação definidas sobre um único bit.
Seja B = {0, 1}, e seja a soma e subtração definida como:

0+0=0 0·0=0
0+1=1 0·1=0
1+0=1 1·0=0
1+1=0 1·1=1

Sendo B um conjunto finito com só dois elementos, você pode verificar ma-
nualmente que todas as sete propriedades de corpos se aplicam e funcionam
para as operações de soma e multiplicação, tais como nós as definimos.
4 CAPÍTULO 1. NÚMERO, VARIÁVEL, FUNÇÃO

Note que não importa o corpo com o qual estamos lidando, sempre será
verdade que para todo elemento a pertencente a ele, a · 0 = 0. Esta não é uma
propriedade listada na definição, mas é uma consequência dela. Observe:

a·0= a · (0 + 0) (pela Identidade Aditiva)


= a·0+a·0 (pela Identidade Aditiva)

Temos então que a · 0 = a · 0 + a · 0. Pela propriedade do Inverso Aditivo,


existe um −(a · 0) tal que se somado com a · 0 resulta em zero. Então:

a·0=a·0+a·0⇔a·0−a·0= a·0+a·0−a·0
⇔0= a·0

O que termina de demonstrar que para todo elemento de um corpo, multi-


plicar pelo elemento neutro da adição (zero) resulta em zero.
Podemos também ter um corpo totalmente ordenado. Isso ocorre quando
além das propriedades vistas acima, também conseguimos definir uma relação
≤ tal que:

1. Propriedade Reflexiva: Para todo a ∈ A:

a≤a

2. Propriedade Anti-simétrica: Para todo a, b ∈ A:

Se a ≤ b e b ≤ a, então a = b

3. Propriedade Transitiva: Para todo a, b, c ∈ A:

Se a ≤ b e b ≤ c, então a ≤ c

4. Propriedade da Ordem Total: Para todo a, b ∈ A:

a ≤ b ou b ≤ a

5. Compatibilidade da Ordem com Adição: Para todo a, b, c ∈ A:

Se a ≤ b, então c + a ≤ c + b

6. Compatibilidade da Ordem com Multiplicação: Para todo a, b, c ∈


A:
Se a ≤ b e 0 ≤ c, então ca ≤ cb
1.3. NÚMEROS RACIONAIS 5

Quando temos uma ordem sobre elementos quaisquer x e y, também podemos


usar os operadores <, > e ≥ para expressar a ordem. Tais operadores significam:

x < y ⇔ x ≤ y e x ̸= y
x > y ⇔ y ≤ x e x ̸= y
x≥y⇔ y≤x

Exercı́cio 1.2.3: O corpo definido mais acima sobre o conjunto B = {0, 1}


pode ser definido como uma relação de ordem total? Se sim, como construir a
relação? Se não, que propriedades não podem ser satisfeitas?
Exercı́cio 1.2.4: Mostre que para todo corpo totalmente ordenado que contém
os elemento x, y, z, as seguintes propriedades são válidas:

a) x < y ⇔ x + y < y + z
b) z > 0 ⇔ z −1 > 0
c) z > 0 ⇔ −z < 0
d) Se z > 0, x < y ⇔ xz < yz
e) Se z < 0, x < y ⇔ xz > yz

1.3 Números Racionais


O conceito de número é um dos mais antigos e fundamentais da aritmética. Eles
são usados para contar, medir e rotular coisas. Dependendo da complexidade
das operações necessárias para cada civilização, diferentes tipos de números fo-
ram usados. Uma sociedade de caçadores e coletores onde não há propriedade
privada pode até mesmo usar conjuntos finitos como seus números, podendo
ter em sua linguagem meios para contar somente até 3 ou 20, por exemplo. À
medida que um povo passa a ter necessidade de lidar, por exemplo com criações
de animais maiores ou com a propriedade privada de certos bens, como galinhas
e ovelhas, pode-se passar a representar a quantidade de tais bens por meio de
números naturais, sem o número zero. Um aumento maior da complexidade
da propriedade privada leva ao surgimento da contabilidade, o que é um fa-
tor que motiva o surgimento do número zero: um escriba que deve registrar a
quantidade de produção diária de um estabelecimento deve ter alguma forma
de representar o caso no qual nada é produzido ao longo do dia. Isto foi o que
motivou o uso mais antigo conhecido do zero no antigo Egito, por volta de 1770
a.C. Os egı́pcios também parecem ter sido os primeiros a representar números
fracionários, motivados pelo problema de ter que medir a terra e pelo desen-
volvimento da arquitetura. Já os números negativos vieram bastante depois: o
6 CAPÍTULO 1. NÚMERO, VARIÁVEL, FUNÇÃO

conceito de um número que não representa uma quantidade que podemos ver
e segurar na mão era pouco intuitivo. Os chineses foram os primeiros a usar
o conceito como ferramenta para resolver diversos problemas matemáticos, em
algum momento entre 200 a.C. e 200 d.C.
O conjunto formado apenas pelos números desenvolvidos na antiguidade,
capazes de contar um número potencialmente infinito de elementos discretos
(como galinhas e ovelhas), incluindo o número zero que não era usado por todas
as civilizações, é o conjunto de números naturais. Denotamos tal conjunto
por:

N = {0, 1, 2, . . .}
Podemos estender o conjunto dos números naturais unindo ele com o con-
junto formado por todos os números negativos. Fazendo isso, obtemos o con-
junto dos números inteiros, denotado por:

N = {. . . , −2, −1, 0, 1, 2, . . .}
Podemos dividir os números inteiros em pares e ı́mpares. Um número par é
todo aquele que pode ser escrito na forma 2k, quando k é algum outro número
inteiro. Um número ı́mpar é todo aquele que pode ser escrito na forma 2k + 1,
onde k é algum outro número natural. Sabemos que 8 é par porque ele pode
ser escrito como 2(4). E 9 é ı́mpar porque ele pode ser escrito como 2(4) + 1.
Teorema 1 Se a é um número par, então a2 também é par. Se a é um número
ı́mpar, então a2 também será ı́mpar.
Prova: Se a é par, ele pode ser escrito na forma 2k para algum k ∈ Z. E
sendo assim, a2 = 4k 2 . Como 4k 2 = 2(2k 2 ), então a2 pode ser escrito na forma
2k ′ , com k ′ = 2k 2 . Portanto, a2 seria par.
Por outro lado, se a é ı́mpar, ele pode ser escrito na forma 2k + 1 para algum
k inteiro. Sendo assim, a2 = (2k + 1)2 = 4k 2 + 4k + 1. Podemos reescrever
isso como: 4k 2 + 4k + 1 = 2(2k 2 + 2k) + 1 = 2k ′ + 1, para k ′ = 2k 2 + 2k. Isso
demonstra que a2 seria ı́mpar neste caso.

Podemos estender o conjunto de números inteiros adicionando à ele também
as frações do tipo ab tal que a (chamado de numerador) e b (chamado de de-
nominador) são inteiros e b ̸= 0. Pode-se notar que os inteiros também podem
ser escritos desta forma: −2 = − 12 . Chamamos todos os números com esta
propriedade de números racionais.
Um mesmo número racional pode ser expresso de uma infinidade de maneiras
equivalentes: 12 = 24 = 36 = . . .. Geralmente preferimos representar um racional
na sua forma que tem o numerador e denominador mais próximos de zero, sendo
que o denominador é positivo. Esta é chamada de sua forma canônica. No caso,
1 −1
2 é a forma canônica do racional acima e 2 é a forma canônica de seu inverso
aditivo.
A soma de dois racionais é calculada como ab + dc = ad+cb bd e a multiplicação
como ab · dc = ac bd . Podemos comparar com a relação ≤ dois racionais apenas
1.3. NÚMEROS RACIONAIS 7

comparando seus numeradores quando o denominador for igual. Se os deno-


minadores forem diferentes, nós podemos antes torná-los iguais multiplicando
tanto o numerador como denominador deles por um valor adequado.
É fácil notar que a estrutura algébrica que descrevemos atende à todos os
requisitos de um corpo totalmente ordenado visto na Seção anterior. O número
0 1
1 é o elemento neutro da adição, enquanto o 1 é o elemento neutro da multi-
plicação.
Os números racionais tem uma propriedade bastante intrigante não possuı́da
pelos inteiros: entre dois números inteiros sempre tem uma quantidade finita
de números inteiros. Mas entre dois racionais, a quantidade de outros racionais
encontrados é infinita. Embora existam 2 inteiros entre 0 e 3, existem infinitos
racionais.
Apesar disso, existe um método interessante que nos permite gerar uma lista
composta por todos os racionais positivos. Ele funciona assim:

1. Gere uma lista inicial contendo:

0 1
( , )
1 0
2. (Note que 10 não é um racional e está aı́ apenas para ajudar.) Percorra a
lista inserindo um novo elemento entre cada dois outros. Entre os elemen-
m′ m+m′
tos mn e n′ você deve inserir n+n′ :

0 1 1
( , , )
1 1 0
3. Repita:

0 1 1 2 1
( , , , , )
1 2 1 1 0
4. Repetindo mais uma iteração:

0 1 1 2 1 3 2 3 1
( , , , , , , , , )
1 3 2 3 1 2 1 1 0
5. Mais uma:

0 1 1 2 1 3 2 3 1 4 3 5 2 5 3 4 1
( , , , , , , , , , , , , , , , , )
1 4 3 5 2 5 3 4 1 3 2 3 1 2 1 1 0
6. Repita quantas vezes quiser, e no fim descarte o último elemento por não
ser um racional.

O método acima é chamado de árvore de Stern-Brocot por causa do nome


dos matemáticos que o descobriram e porque podemos desenhar os números ge-
rados como uma árvore na qual cada um deles se ramifica à partir dos anteriores,
como mostrado na Figura 1.1.
8 CAPÍTULO 1. NÚMERO, VARIÁVEL, FUNÇÃO

Figura 1.1: Árvore de Stern-Brocot

Teorema 2 Cada elemento da árvore de Stern-Brocot é único.

Prova: Para demonstrar que nunca repetimos nenhum elemento, note que,
ignorando o 10 , todos os elementos são números racionais ordenados. No começo
temos só o 01 , que está ordenado. Na próxima iteração temos 10 < 11 . Na terceira
iteração obtemos: 01 < 12 < 11 < 12 .
Como vimos, isso é verdade para todos os casos iniciais. Para mostrar que
isso continua sendo verdade sempre, considere o que acontece quando temos
m′
dois elementos m n < n′ um do lado do outro. À partir dele, a próxima iteração

produzirá m+m
n+n′ .

Para demonstrar que m m+m
n < n+n′ , vamos escrever ambos de maneira equiva-
lente, modificando seus denominadores para n(n + n′ ):

m m(n + n′ ) nm + n′ m
= =
n n(n + n′ ) n(n + n′ )

m + m′ n(m + m′ ) nm + nm′
= =
n + n′ n(n + n′ ) n(n + n′ )
Como os seus denominadores agora são iguais, podemos apenas comparar os
numeradores para ver qual é maior. Para ajudar nisso, vamos também reescrever
a inequação inicial:

m m′ mn′
< ′ ⇔ n < m′
n n
⇔ n′ m < nm′
1.3. NÚMEROS RACIONAIS 9

Isso pôde ser feito graças a todos os valores serem maiores que zero. Como
n′ m < nm′ , então mn + mn′ < mn + nm′ (devido à propriedade da compa-
tibilidade da ordem com a adição vista na Seção anterior). Portanto, como
m+m′
querı́amos demonstrar, é verdade que m n < n+n′ .
′ ′
De maneira análoga, pode-se demonstrar que m+m m
n+n′ < n′ (faça como exercı́cio).
Sendo assim, isso garante que cada novo número inserido irá sempre obedecer
à ordem e será sempre estritamente maior que o anterior e estritamente menor
que o que vem depois. Portanto, é impossı́vel que um número seja repetido duas
vezes. ■

Lema 1 Sejam m m
n e n′ dois elementos sucessivos em qualquer etapa da geração
da árvore de de Stern-Brocot. Temos que m′ n − mn′ = 1.

Prova: Podemos verificar que isso é verdade para todos o caso inicial du-
rante a geração da árvore. Primeiro temos 01 e 10 . E é verdade que 1·1−0·0 = 1.
Assumindo que isso é verdade para o estado inicial da lista de valores gerados,
m′
quando vamos gerar um novo valor à partir de dois elementos m n e n′ (e sabemos

que a propriedade vale para eles, então: m′ n − mn′ = 1), produzimos m+m n+n′ .
Temos que demonstrar então que:

(m + m′ )n − m(n + n′ ) = 1
m′ (n + n′ ) − (m + m′ )n′ = 1

O primeiro caso é equivalente a (m + m′ )n − m(n + n′ ) = mn + m′ n − mn −


mn = m′ n − mn′ . Mas como já sabemos que a propriedade é válida para m

n e
m′
n′ , então isso demonstra que este valor é igual a 1.
O segundo caso é equivalente a m′ (n + n′ ) − (m + m′ )n′ = m′ n + m′ n′ −
mn − m′ n′ = m′ n − mn′ . Deu exatamente o mesmo valor que já sabı́amos que

era igual a 1.
Sendo assim, esta propriedade é válida para o estado inicial da lista quando
começamos a produzir a árvore de Stern-Brocot. E a qualquer momento em
que estamos produzindo um novo valor, se a propriedade é válida para os que já
existem, ela será válida para o novo valor produzido e seus vizinhos. Isso prova
que a propriedade é sempre verdade. ■

Corolário 1 Seja qualquer racional positivo ab representado em sua forma canônica,


e seja m m a
n um racional representado na árvore de Stern-Brocot. Se n < b , então
a m
an − mb ≥ 1. Se b < n , então mb − an ≥ 1.

Prova: Se m a
n < b , podemos reescrever a inequação como mb < an. Então,
an − mb será um número positivo. Ele também será um número inteiro, pois
a, b, m, n ∈ Z. Portanto, o resultado da subtração necessariamente será um
inteiro maior ou igual a 1.
10 CAPÍTULO 1. NÚMERO, VARIÁVEL, FUNÇÃO

Se ab < m
n , podemos reescrever a inequação como an < mb. Então, mb − an
será um número positivo. E também será um inteiro. Portanto, o resultado
desta subtração necessariamente será maior ou igual a 1. ■
a
Teorema 3 Não existe um número racional não negativo b que não esteja
presente na árvores de Stern-Brocot.

Para demonstrar isso, primeiro observe que a cada iteração na qual geramos
novos elementos para a árvore de Stern-Brocot, introduzimos um novo número
natural. O 01 já está presente. Depois vem o 11 . E assim por diante. O fato é
que para os casos iniciais nós sempre temos em nossa lista um número natural
n 1
1 imediatamente antes do 0 . Se iso é verdade para os casos iniciais, para
mostrar que sempre é verdade, observe que depois de mais uma iteração, o novo
número posicionado antes de 01 é n+10+1 , que também é natural e é o sucessor
do número que havia antes. Portando cada nova iteração introduz na árvore o
menos número natural que ainda não estava representado.
Isso nos mostra que para todo racional ab , após um número suficiente de
iterações, teremos na nossa lista um número maior que ele. Desta forma, tere-
m′ m′
mos: m a m a
n < b < n′ onde n e n′ foram inseridos na árvore árvore e b não foi

inserido. Dizemos que m a m a
n delimita b à esquerda e n′ delimita b à direita.
Pelo Corolário 1, sabemos então que:

an − bm ≥ 1 bm′ − an′ ≥ 1
Portanto:

(m′ + n′ )(an − bm) + (m + n)(bm′ − an′ ) ≥ (m′ + n′ ) + (m + n)

O que pode ser reescrito como:

am′ n − bmm′ + ann′ − bmn′ + bmm′ − amn′ + bm′ n − ann′ ≥ m′ + n′ + m + n

Ou ainda:

a(m′ n − mn′ ) + b(m′ n − mn′ ) ≥ m′ + n′ + m + n


Pelo Lema 1, sabemos que m′ n − mn′ = 1. Então isso é equivalente a:

a + b ≥ m′ + n′ + m + n
Isso nos mostra que a soma do numerador e denominador de qualquer raci-
onal positivo representado na forma canônica ab vai ser sempre maior ou igual à
m′
soma dos numeradores e denominadores dos racionais m n e n′ que fazem parte
da árvore de Stern-Brocot e delimitam ab .
m′
Entretanto, se existem dois racionais m a
n e n′ delimitando b , após realizar
mais uma iteração para gerar novos elementos, iremos produzir o novo valor
m′ +m
n′ +n , e então três coisas diferentes podem ocorrer:
1.3. NÚMEROS RACIONAIS 11

m′ +m
• n′ +n = ab : neste caso ocorre o que queremos provar que sempre acontece:
o racional ab é inserido na árvore.
m′ +m
• n′ +n < ab : neste caso temos um novo valor delimitando ab à esquerda.
Mas note que este novo valor tem numerador e/ou denominador maior. A
nova soma do numerador e denominador do delimitador à esquerda de ab
será maior em pelo menos 1 unidade.
m′ +m
• n′ +n > ab : neste caso temos um novo valor delimitando ab à direita. Este
novo valor também terá uma soma de seu numerador e denominador pelo
menos 1 unidade maior que o delimitador anterior.
Isso nos mostra que à medida que realizamos novas iterações e produzimos
novos valores na árvore, os delimitadores de ab vão se aproximando dele. Entre-
tanto, sabemos que a cada iteração, a soma dos numeradores e denominadores
dos delimitadores vai aumentando sempre um valor inteiro positivo. E também
que a soma a + b sempre será maior que a soma dos numeradores e denomi-
nadores de seus delimitadores. Isso demonstra que necessariamente uma hora
a
b será inserido na árvore. Pois se isso não fosse verdade, após um número fi-
nito de iterações acabarı́amos tendo um cenário no qual os delimitadores teriam
uma soma maior que a + b de seus numeradores e denominadores, e isso é uma
contradição com as propriedades que demonstramos da árvore.

Os teoremas que vimos nos dizem que todos os números racionais estão
contidos na árvore de Stern-Brocot, e que cada um deles aparece nela uma única
vez. Com isso, apesar dos números racionais serem infinitos, e apesar de que em
um intervalo qualquer sempre existir um número infinito de racionais, nós ainda
somos capazes de enumerar cada um deles em uma ordem bem definida sem
esquecer de nenhum. Podemos enumerar todos os racionais apenas colocando
eles na ordem em que são inseridos à medida que geramos a árvore, apenas
precedendo cada um deles pelo seu valor negativo:

 
0 1 1 1 1 2 2 1 1 2 2 3 3 1 1 2 2 3 3
Q= ,− , ,− , ,− , ,− , ,− , ,− , ,− , ,− , ,− , ,...
1 1 1 2 2 1 1 3 3 3 3 2 2 4 4 5 5 5 5
Da mesma forma como normalmente enumeramos os números naturais co-
locando eles em ordem crescente:

N = {0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, . . .}
Isso nos mostra que podemos estabelecer uma relação de cada número ra-
cional de Q com um único número natural de N, e vice-versa. Portanto, a
cardinalidade de Q é igual à cardinalidade de N. Ambos os conjuntos infinitos
podem ser vistos como tendo exatamente o mesmo tamanho.

Exercı́cio 1.3.5: A aparição conhecida mais antiga dos números negativos


ocorreu em um livro da China antiga com o seguinte exercı́cio:
12 CAPÍTULO 1. NÚMERO, VARIÁVEL, FUNÇÃO

Se você plantar um pacote de sementes de boa qualidade com quatro pacotes


de sementes de baixa qualidade, você irá colher uma saca de arroz. Se você plan-
tar três pacotes de sementes de média qualidade e um pacote de baixa qualidade,
você irá colher uma saca de arroz. Se você plantar dois pacotes de semente de
boa qualidade e um pacote de média qualidade, irá colher uma saca de arroz.
Quantas sacas de arroz produzem respectivamente cada pacote de boa, média e
baixa qualidade?
Resolva o problema e observe que embora números negativos não apareçam
no enunciado e nem na reposta, eles inevitavelmente surgem ao manipular o
sistema de equações que gera a resposta.
Exercı́cio 1.3.6: Como podemo modificar os valores iniciais da geração da
árvore de Stern-Brocot de modo que ela passe a gerar e armazenar também o
racionais negativos?
Exercı́cio 1.3.7: Mostre que os conjunto N e Z tem a mesma cardinalidade.

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