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forense: análise
de drogas, testes
de desempenho
e testemunho
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Introdução
A toxicologia é uma ciência que estuda os efeitos adversos de substâncias
químicas sobre um organismo vivo, unindo, principalmente, conhecimentos de
química, bioquímica, fisiologia, farmacologia e biologia celular. Dentro dessa
área, encontramos a toxicologia forense, que tem como foco avaliar o efeito
nocivo de sustâncias químicas sobre o organismo em situações em que haja
envolvimento criminalístico, jurídico, médico-legal e afins. Na toxicologia forense
é bastante comum a avaliação de drogas de abuso e substâncias psicoativas,
que podem ser analisadas em um grande espectro de amostras biológicas,
que vão desde sangue e urina até órgãos e fios de cabelo.
Neste capítulo, você vai estudar os tipos de amostra que podemos utilizar
em análises forenses para a detecção de drogas de abuso. Vai ver quais são os
2 Toxicologia forense: análise de drogas, testes de desempenho e testemunho
testes de desempenho que são afetados por essas mesmas drogas e entender
como a toxicologia forense pode contribuir para a resolução de casos na justiça.
Segundo o último World Drug Report (2020), cerca de 269 milhões de pes-
soas no mundo usaram algum tipo de droga no ano de 2018, o que corresponde
a 5,4% da população mundial com idades entre 15 e 64 anos, e a maior parte
é consumidora de maconha e opioides. Acompanhe esses números em mais
detalhes na Figura 1. Esse número vem crescendo exponencialmente a cada
ano, e o consumo de drogas parece ser algo fora do controle (UNODC, 2020).
Cérebro 50g
Fígado 50g
Rins 50g
Coração: 25mL
Sangue
Periférico: 10mL
Sangue
O sangue é o principal fluido biológico de escolha para avaliações toxicológi-
cas, bastante utilizado para identificar e quantificar substâncias circulantes
e correlacionar com o estado clínico do indivíduo. Também é possível corre-
lacionar as quantidades encontradas com as concentrações de metabólitos
presentes na urina, a fim de estabelecer a dose real que foi ingerida e o tempo
decorrido desde que foi consumida. O grande problema desta amostra é que
a detecção de amostras nesse material deve ser feita o mais rápido possível,
tendo em vista que a janela de detecção é restrita, pois as substâncias não
permanecem por muito tempo na circulação, sendo logo metabolizadas e
excretadas (BORDIN et al., 2015; LISBOA, 2016; DORTA et al., 2018).
Recomenda-se utilizar, preferencialmente, o sangue total (coletado ge-
ralmente na veia cefálica), tendo em vista que algumas drogas podem ter
mais afinidade por proteínas presentes no soro ou plasma, não fornecendo
quantidades fidedignas circulantes. Essa amostra deve ser coletada com anti-
coagulante EDTA (não utilizar quando a suspeita for de compostos metálicos ou
organometálicos) ou heparina (pode interagir com alguns fármacos). Também
pode ser utilizado um conservante para evitar a perda de compostos (fluoreto
de sódio, 2–3mg/mL de sangue), a glicólise e a contaminação bacteriana.
Na gravidez, pode-se coletar sangue do cordão umbilical (BRASIL, [2013?];
LISBOA, 2016; DORTA et al., 2018).
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Urina
Em geral, a urina é considerada a matriz menos invasiva e de fácil obtenção,
disponível em grandes volumes e que apresenta poucos interferentes. Pode
facilmente ser congelada, sendo estável por muito tempo. É eleita para a ava-
liação de uso recente de alguma substância, especialmente seus metabólitos,
que, em geral, podem ser encontrados nessa amostra por um período de
2 a 5 dias após o consumo.
Esse fluido geralmente é indicado para a detecção rápida de substâncias
como benzodiazepínicos, opioides, anfetaminas, canabinoides (substâncias
ativas e metabólitos oriundos da maconha, como canabinol, canabidiol e
THC [Δ9tetrahidrocanabinol]) e cocaína. A coleta da amostra de urina deve ser
sempre assistida por algum profissional, tendo em vista a grande facilidade
de adulteração da amostra pela pessoa que será avaliada. Muitas vezes,
há o consumo prévio de diuréticos para aumentar a excreção de metabólitos,
de modo que, no momento do exame, esses metabólitos pesquisados pode-
rão não estar presentes ou em quantidade/concentração diminuída. Dessa
forma, o laboratório deve procurar, além da droga-alvo, outro tipo de droga
utilizada para adulterar a amostra ou alterar o resultado da análise (KLAASSEN;
WATKINS III, 2012; BORDIN et al., 2015; LISBOA, 2016; MOREAU; SIQUEIRA, 2016).
Ar expirado
O ar expirado (ar alveolar) é uma amostra não invasiva que possibilita a
avaliação de substâncias voláteis. Sua análise é bastante comum para a
detecção de etanol, especialmente em abordagens a condutores de veículos.
Por ser de fácil obtenção, a avaliação pode ser feita no próprio local, com
o auxílio de um aparelho conhecido popularmente como bafômetro. Para
obter amostra de ar alveolar, basta que o motorista sopre continuamente
até o total esvaziamento pulmonar. O aparelho desconta a primeira porção
do sopro, por se tratar apenas da volatilização da substância nas primeiras
porções pulmonares e pela própria boca, contabilizando apenas o ar que vem
dos alvéolos (LISBOA, 2016; MOREAU; SIQUEIRA, 2016).
Conteúdo gástrico
É bastante útil em casos de intoxicação oral por alguma substância. O con-
teúdo gástrico pode ser obtido por meio de amostras de vômito ou de lavado
gástrico durante o próprio atendimento hospitalar. A análise desse conteúdo
geralmente detecta facilmente as substâncias, tendo em vista que a maior
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parte é consumida por via oral; muitas vezes, podem ser encontrados até
mesmo comprimidos e cápsulas que ainda não foram digeridos e absorvidos.
O achado de grandes quantidades de substância nesse conteúdo possibilita
confirmar suspeitas de overdose intencional. Outro fator que pode ser ob-
servado é o cheiro deste conteúdo. A presença de odor de amêndoa amarga
pode sugerir intoxicação por cianeto, enquanto o odor de alho pode indicar
intoxicação com organofosforados (LISBOA, 2016; DORTA et al., 2018).
Fluido oral
As concentrações de drogas encontradas nesse tipo de fluido, como cocaína,
anfetamina, canabinoides, benzodiazepínicos e etanol, indicam as quantidades
consumidas recentemente (de 6 a 24h, no máximo 2 dias para drogas mais
básicas), refletindo a fração livre da droga na circulação sanguínea (pois o
sangue transfere as substâncias para a saliva por meio de difusão passiva
ou ultrafiltração, que ficam acumuladas no fluido oral). As principais drogas
rastreadas nessa amostra são anfetaminas, cocaína, canabinoides, opioi-
des, benzodiazepínicos e etanol (BORDIN et al., 2015; LISBOA, 2016; MOREAU;
SIQUEIRA, 2016; DORTA et al., 2018).
As vantagens dessa amostra é a sua fácil obtenção, podendo ser coletada
em qualquer local. A rapidez na obtenção de resultados em triagens (feitas,
muitas vezes, em abordagens a condutores de veículos e trabalhadores em
seu local de trabalho, para saber se a pessoa em questão está sob efeito
de alguma droga que altere seu desempenho; a testagem é feita na hora,
por imunoensaios) e a possibilidade de guardar a amostra para dosagens
posteriores ou confirmações por outros métodos também são vantagens.
A desvantagem do fluido oral é que ele não é uma amostra de qualidade
para quantificações precisas, pois não existem muitos valores de referência
para essa amostra e que possam ser extrapolados para o sangue. Além disso,
a amostra deve ser coletada somente após 10 minutos de a pessoa ter comido
ou bebido alguma coisa, cerca de 4 horas após a ingestão de drogas ou outras
substâncias, e a higiene bucal não deve ser feita, pois pode mascarar ou
interferir na qualidade da análise (BORDIN et al., 2015; LISBOA, 2016; MOREAU;
SIQUEIRA, 2016; DORTA et al., 2018).
Cabelo
É uma matriz biológica muito importante, que possibilita uma janela de
avaliação muito mais prolongada (semanas a meses) do que as amostras
corriqueiramente utilizadas, fornecendo informações do padrão de consumo
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Etanol no
Estágio Sinais e sintomas clínicos
sangue (g/L)
(Continuação)
Etanol no
Estágio Sinais e sintomas clínicos
sangue (g/L)
A=p·r·c
onde:
teor alcoólico (%) · volume (mL) · 0,79 (peso em gramas equivalente a 1mL)
Indica estar
Amostra Qualidades Limitações
sob efeito?
2 Etanol 148 26
3 Benzodiazepínicos 70 12
4 Maconha 67 12
5 Anfetamínicos 41 7
(Continua)
16 Toxicologia forense: análise de drogas, testes de desempenho e testemunho
(Continuação)
6 Gama- 24 4
hidroxibutirato
7 Opiáceos (morfina/ 20 4
codeína)
8 Outras drogas 13 3
Nos livros de ficção escritos por Agatha Christie e Sir Arthur Conan
Doyle, os detetives Hercule Poirot e Sherlock Holmes desvendam
uma série de casos que envolvem o uso de substâncias psicoativas
para a prática de crimes. Em alguns momentos, acredita-se que o próprio
Sherlock Holmes era viciado em cocaína e heroína.
Além dos livros, as aventuras de Sherlock Holmes inspiraram dois filmes,
Sherlock Holmes (2009) e Sherlock Holmes: A Game of Shadows (2011), ambos
do diretor Guy Ritchie, que apresentam o uso de substâncias na prática de
crimes. As aventuras de Hercule Poirot também se transformaram em um
filme, lançado em 2016, intitulado O Assassinato No Expresso do Oriente, que
também abrange o uso de substâncias de interesse toxicológico.
No filme Do Inferno, o ator Johnny Depp interpreta o inspetor Frederick
Abberline, que, por meio do efeito alucinógeno do ópio (que ele acreditava
ser um poder mediúnico), consegue visualizar os assassinatos cometidos
por Jack, o Estripador.
Nos contos da Disney, um exame toxicológico em Alice, do conto “Alice no
País das Maravilhas”, poderia desvendar que tipo de substância continha
nas bebidas e comidas que ela ingere durante a história, e que a fazia ter
as sensações de mudança de tamanho, ver criaturas estranhas e animais
falantes. Igualmente, nos contos da Branca de Neve e da Bela Adormecida,
uma coleta de matriz biológica das princesas poderia elucidar a causa dos
sonos profundos.
O livro acadêmico A Serpente e o Arco-íris conta a história de Wade Davis,
um etnobotânico e antropólogo que, em visita ao Haiti, conseguiu coletar
amostras de plantas e drogas para descobrir quais substâncias estavam por
trás da formação do zumbi, que, pela lenda, é um ser humano que foi trazido
de volta à vida pela magia, desprovido de sentimentos e vontade própria,
controlado por um mestre. Em suas pesquisas, Wade conseguiu identificar
substâncias que compunham a poção, como alucinógenos extraídos de plantas
do gênero Datura, além da tetrodotoxina, uma toxina que causa paralisia,
oriunda do peixe baiacu. A administração dessa poção nas pessoas, junto com
um ritual religioso, fazia com que estas acreditassem que haviam morrido e
se tornando um zumbi (DAVIS, 1985).
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Referências
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