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Temporalidade trágica e humanismo

Tragic temporality and humanism


Temporalità tragica e umanesimo

Rodrigo Viana Passos1


Recebido em: 08/07/2020
Aprovado em: 01/10/2020

Resumo: O presente ensaio investigará, de modo iniciante, a dimensão trágica do tempo e sua relação possível
com o humanismo. Seu horizonte é o da Destruktion heideggeriana (a partir de Ser e Tempo, O conceito de
Tempo e Carta sobre o humanismo) e a déconstruction derridiana (essencialmente com Espectros de Marx e Os
fins do homem), dois matizes filosóficos contemporâneos que dedicaram importante parte de suas análises ao
humanismo e sua crise, bem como ao problema do tempo e da temporalidade. O trágico será um fenômeno que
em um momento importante apontará para o cerne axial de ambas as problemáticas.

Palavras-chaves: Déconstruction; Destruktion; Humanismo; Tempo;

Abstract: The present essay will investigate, in an initiating fashion, the tragic dimension of time and its
possible relation with humanism. Its horizon is that of the heideggerian Destruktion (from Being and Time, The
concept of Time and Letter on humanism) and derridian déconstruction (essentially with Specters of Marx and
The ends of man). These are two contemporary philosophical tonalities that dedicated a main part of their
analysis to humanism and its crisis, as well as to the problem of time and of temporality. The tragic is a
phenomenon that, in an important moment, will lead to the axial core of both themes.

Keywords: Déconstruction; Destruktion; Humanism; Time;

Riassunto: Il presente saggio esaminerà, in modo iniziale, la tragica dimensione del tempo e la sua possibile
relazione con l'umanesimo. Il suo orizzonte è quello della Destruktion heideggeriana (da Essere e Tempo, Il
concetto di tempo e Lettera sull'Umanesimo) e della déconstruction derridiana (essenzialmente con Spettri di
Marx e Fini dell'uomo). Lei sono due tonalità filosofiche contemporanee che hanno dedicato una parte principale
della loro analisi all'umanesimo e alla sua crisi, così come al problema del tempo e della temporalità. Il tragico
sarà un fenomeno che, in un momento importante, porterà al nucleo assiale di entrambi i temi.

Parole-chiave: Déconstruction; Destruktion; Tempo; Umanesimo;

Introdução
Eu não sou eu nem sou o outro, / sou qualquer coisa de
intermédio:/ Pilar da ponte de tédio/ Que vai de mim
para o Outro.
(Mário de Sá-Carneiro)

Neste ensaio pretendo esboçar algumas questões que surgem de um contato ainda
iniciante com a desconstrução derridiana em paralelo com a filosofia existencial

1
Doutorando em Filosofia pela PUC-RJ. Contato: e-mail: rodrigowvp@gmail.com / http://orcid.org/0000-
0002-2292-0743.

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fenomenológica heideggeriana. Particularmente a leitura de Espectros de Marx (Spectres de


Marx) apresenta marcos importantes quanto a isso, os quais guiarão a presente investigação
introdutória. Uma obra que pergunta pelo “para onde” do comunismo, numa interpretação ao
mesmo tempo minuciosa e expansiva, ofereceu-me, em específico, a oportunidade de
perguntar sobre a relação do trágico com o tempo. Efetivamente, o trágico aparece já na
abertura e conduz toda a tessitura do texto. É Shakespeare, ou melhor, Hamlet que condensa,
em harmonia com sua figura e seu lamento, as duas questões numa única frase: “the time is
out of joint”. O tempo está fora dos eixos, o mundo está desajustado. De início, perguntar-se-
ia se o evento trágico instaurou ou apenas explicitou, intensificou essa disjunção do tempo.
Além disso, o que significa esta disjunção do tempo? Ela é boa ou má?
Contudo, antes de avançar propriamente sobre esta questão, creio ser fundamental
percorrermos pelo menos em linhas gerais algumas considerações seminais de Heidegger
quanto ao fenômeno do tempo. Para isso, servir-me-ei de sua preleção O conceito de tempo de
julho de 1924. Esta preleção condensa de uma maneira radical as discussões posteriormente
desenvolvidas à larga em Ser e Tempo e Problemas fundamentais da Fenomenologia. Este
excurso inicial nos permitirá ter uma melhor posição sobre o modo como o problema do
tempo poderá ser articulado com o destino do Humanismo.
Voltando aos espectros, veremos que, no mesmo ato de abertura, Heidegger faz sua
aparição. Derrida o representa como um leitor sério de tragédias, um leitor que lê
ontologicamente a experiência do trágico. Mais do que isso, Heidegger medita, a partir de um
dito fragmentário e obscuro de Anaximandro, sobre o tempo e seus injustos caminhos
(HEIDEGGER, 2002). A partir desse estado de coisas, no entanto, Heidegger quer oferecer
uma resolução para o enigma do tempo, e é em relação a isso que Derrida se colocará
criticamente. Em termos gerais, a postura do argelino é de que o tempo sempre vai mal, e isso
está, a princípio, para além de ser bom e mau; aquém disso, é no mínimo uma chance, um
vislumbre para algo outro (DERRIDA, 1993). Pretendo não esgotar tal discussão, mas apenas
apresentá-la em suas linhas gerais, especialmente naquilo que se mostra pertinente ao tema
central, qual seja, pensar o Humanismo a partir de uma estranha temporalidade. Esta, por sua
vez, será considerada preliminarmente a partir da experiência do trágico.
Nesse sentido, a crise do Humanismo será a impulsionadora, pois ela traz em si
mesma, enquanto crise, um conjunto de questões tradicionais que têm a ver com a própria
destinação do humano, um para-onde que se multiplica nas diversas facetas dos discursos
humanistas. É talvez este para-onde o ponto fulcral. Nele articula-se toda nossa espera de
amanhã, um fio condutor para nossas ações, um sentido. Com isso, partindo da Carta sobre o

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humanismo, poderemos começar a suspeitar da estrutura desta destinação, pois é colocada


radicalmente a pergunta sobre a humanidade do homem a partir de um horizonte desafiador
da metafísica, em que a essência do homem se mostra não como futuro-presente, mas sim
futuridade. Por sua vez, essas discussões ganharão também outro matiz e perspectiva através
do ensaio Les fins de l’homme de Derrida, no qual a própria crítica heideggeriana ao
humanismo é reavaliada. Entendo que aí, curiosamente, o humanismo ganha uma
possibilidade diferente quando pensado ele mesmo em sua finidade (ou finitude).
Avançando neste ponto, buscarei refletir, a partir de Espectros de Marx, como
pensamento da disjunção impõe novas perguntas sobre a própria possibilidade do tempo ou
do tempo como possibilidade nessa futuridade mesma, pondo em questão alguns pressupostos
do pensamento heideggeriano. Dessa forma, porém, creio que o pensamento heideggeriano
não se mostrará simplesmente refutado, mas aberto para algo não totalmente pensado. Junto a
isso, estarão algumas tentativas em relação à Poética de Aristóteles, à tragédia grega clássica,
mas, privilegiadamente, a moderna tragédia shakespeariana a partir de Hamlet, buscado com
elas uma melhor colocação da noção de trágico em sua dimensão temporalizante.
Assim, se em Espectros de Marx pergunta-se whither marxism (para onde [vai] o
marxismo), aqui será discutido liminarmente 1) whither man, para onde o homem e 2) whither
time, para onde o tempo. Em outras palavras, em face da postulação da desconjuntura
“essencial” do tempo, pode o humanismo oferecer algo de decisivo ao destino do homem? No
entanto, tratar-se-á aqui de um prelineamento possível das questões do ponto de vista da
Destruktion-Déconstruction de modo a encaminhá-las para futuros desenvolvimentos mais
específicos.

O homem e o abismo do ser: a futuridade do humanismo


A investigação que originou este ensaio esteve inicialmente às voltas do Humanismo:
seus fundamentos, seu desenvolvimento histórico, crises, críticas, abandonos, repaginações...
Vindo de uma caminhada de leituras e discussões no âmbito da fenomenologia e da
hermenêutica filosófica, a inquietação era a de justificar a possibilidade-necessidade do (de
um) discurso humanista para nosso tempo. Contudo, despontava no horizonte dois grandes
empecilhos: a Destruktion heideggeriana e a Déconstruction derridiana (DERRIDA, 1972;
HEIDEGGER, 1983). Ambos, cada um a seu modo, apontavam inicialmente para uma certa
falência, um cansaço quase incontornável do Humanismo e seus projetos. No fundo, o que
estava dito era: o Humanismo é mais uma das faces de uma metafísica. Assim, a ideia fixa
inicial em relação ao Humanismo era a de que ele possibilitaria, numa formulação quem sabe
ingênua e apressada, um futuro melhor, uma abertura para novos horizontes. Isto se apoiaria

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numa orientação hermenêutico-filosófica, em que a estrutura da compreensão, investigada


fenomenologicamente, seria por assim dizer o campo de uma nova solidariedade, um novo
modo de estruturação das relações humanas. A compreensão, essencialmente dialógica do
ponto de vista da hermenêutica filosófica, é a possibilidade da construção de consensos – ou,
ao menos, de espaços de linguagem – sempre novos. Enfim, a questão que se desenhava tinha
a ver com o novo, o futuro, um bom fim para nossos dramas – ou pelo menos diferente. Para
onde caminha – ou deve caminhar – o homem?
Para Heidegger o caminho é de retorno ao Ser, essa clareira onde os entes podem vir a
ter algum sentido possível, sentido que se colhe junto às palavras, à linguagem, ao lógos que
reúne e dá a medida às coisas: a casa do ser, em que o homem é convidado a habitar.
Heidegger, profeta de um novo tempo, inclusive nos presenteia, em certa altura de sua obra,
com esta figura estranha, até patética: o ser humano é o pastor do ser. Eis então a essência ek-
stática do humano, motivo pelo qual a reconquista deste solo é a condição para um novo
começo, o pulo derradeiro para fora da metafísica tradicional, o início de uma nova história:
uma nova clareira. Eis, apesar da vontade de Heidegger, um discurso humanista? Se sim, pelo
menos de uma ambiguidade fundamental. Deixo em suspenso. O importante para mim agora é
fazer notar que está em questão este instante derradeiro-inaugural do começo.
Por sua parte, ainda que herdeiro do pensamento de Heidegger, Derrida põe em
suspeita esse novo discurso sobre o homem (DERRIDA, 1972), este seu estranho fim. Mas
por em suspeita significa uma certa suspensão, melhor dito, uma epokhé. Pois a palavra de
Heidegger deve ser ouvida como um presságio. Enquanto tal, está nessa indecisão
interpretativa (tão humana) do que pode-ser. Chamei de “ambiguidade fundamental” um
pouco acima; ambiguidade esta que nos expõe todo texto, mas talvez principalmente qualquer
texto sobre a destinação humana. Esta nova profecia sobre o homem diz: 1) a essência do
homem é sua relação com o ser, é estar disposto a esta doação originária, gratuita; 2) este
novo começo do homem é seu fim. Mas há uma hora marcada para isso, um momento
próprio? Há qualquer sinal? E depois? É difícil pensar suficientemente sobre este impossível e
incalculável depois.
Nesse sentido, as reflexões de Heidegger na Carta sobre o humanismo são certamente
estranhas, aporéticas. Realmente parece que andamos num círculo, atraídos à órbita dessa
abertura misteriosa. Derrida chamará isso de aimantation [magnetização]. Mas, afinal, o que
há de insuficiente na caracterização clássica do homem como zôon lógon ékhon, ou mesmo no
par essência-existência (essentia-existentia) etc.? Ao questionar a tradição, Heidegger vê uma
dramática redução da compreensão do homem ao tratá-lo sob esses esquemas, sobretudo

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porque através deles a essência do homem é pensada como algo presente, à mão, como um
dado esgotável numa visada totalizante. Como o aponta Heidegger constantemente ao longo
dessa carta-ensaio, essa é uma problemática que já havia sido desenvolvida em suas bases
fundamentais em Ser e Tempo. Com efeito, ela se encaminhou ali até a explicitação da
dimensão essencialmente temporal da existência humana. É a partir dela que se compreende
que o presente não é apenas uma espacialidade, uma posição numa sequência de posições
dadas, mas é fundamentalmente uma compreensão e experiência de tempo, a qual articula
também uma compreensão de passado e futuro. Em verdade, o humano enquanto presença
[Dasein] é tempo à medida em que é através dele que há temporalização, portanto, qualquer
possibilidade de se estabelecer um nexo temporal das coisas (HEIDEGGER, 1982; 2013).
É nesse mesmo sentido que a reabilitação da pergunta pelo sentido do Ser é também
conduzida a partir da dimensão temporal da presença, sendo, assim, um chamado para uma
imersão no tempo numa perspectiva existencial. Ou seja, nessa imersão, o homem também se
descobre como tempo, ou temporal, e abre a possibilidade de acesso à uma dimensão mais
originária da temporalidade do tempo, qual seja, aquela que se doa historialmente a partir do
Ser. Com isso, a pergunta pelo Ser é, em grande medida, também a (re)habilitação da essência
do homem como temporalidade [Zeitlichkeit] que se põe ek-staticamente na temporaneidade
[Temporalität]. Pastor do tempo? Que pensamento é este?

Mas o pensar não é apenas une aventure, enquanto procurar e perguntar para além,
para o desconhecido. O pensar está referido ao ser como o que está em advento
(l’avenant). O pensar, enquanto pensar no advento do ser está ligado ao ser como
advento. O ser já se destinou ao pensamento. O ser é como o destino do pensar. O
destino, porém, é em si historial. Sua história já chegou à linguagem, no dizer dos
pensadores (HEIDEGGER, 1983, p. 174, grifo meu).

É uma dificuldade incontornável pensar esse advento. Cabe ao humano a guarda


pensante desse e neste advento? Talvez tenha isso algo que ver com o que chamei de
impossível depois. De fato, é aqui que se colocam minhas inquietações.
Se rememorarmos algo do espírito de Ser e Tempo, ou mesmo de um texto anterior a
ele, chamado O conceito de tempo, veremos em que este estranho discurso humanista de
Heidegger tem de ver com o tempo. Há aí um apelo pelo futuro, pela futuridade da presença
[Dasein]. Portanto, tomemos este segundo texto como paradigma, pois ali o questionamento
está realmente condensado e direcionado ao que nos vem agora a propósito.
No princípio dele, Heidegger nomeia algumas representações corriqueiras sobre o
tempo e as resume sob o status de agora-presente (Jetzt): passado-presente, presente-presente,
futuro-presente. Ou seja, o tempo calculado, esperado, indiferenciado. É o que se designa,
inclusive em Ser e tempo e também em Os problemas fundamentais da fenomenologia, de

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conceito vulgar de tempo. Essa compreensão do tempo é como uma tranquilidade frenética do
pensamento objetivador, sedimentada em nossas ocupações corriqueiras, que encobre a
possibilidade mais autêntica de experiência do tempo. Ela está condicionada às atividades
mais imediatas da vida, às coisas à mão. Além disso, está o homem, sua existência, sua
história, como objeto à mão destituído de qualquer singularidade. Por isso, já em O conceito
de tempo, Heidegger está engajado com a descoberta de uma outra relação com o tempo, que
na verdade é uma outra relação com o ser da presença, do homem. Relação esta que também
aprofundará posteriormente a dimensão fática da existência (HEIDEGGER, 2013). Na
seguinte passagem, Heidegger sintetiza para nós o que está sendo balbuciado até aqui:

[...] tempo é presença [Dasein]. Presença é a minha atualidade [Jeweiligkeit], e ela


pode ser atualidade no futural [Zukünftigen], no antecipar ao consciente, mas
indeterminado, passar. A presença sempre está num modo de seu possível ser
temporal. A presença é o tempo, o tempo é temporal [Zeit ist zeitlich]. A presença
não é o tempo, mas a temporalidade [Zeitlichkeit]. O enunciado fundamental: o
tempo é temporal, é, por isso, autêntica determinação – e ele não é uma tautologia,
porque o ser da temporalidade significa uma realidade díspar. A presença é o seu
passar [Vorbei], é a sua possibilidade no antecipar a este passar [Vorlaufen zu
diesem Vorbei]. Neste antecipar sou eu o tempo autenticamente, tenho tempo. Na
medida em que o tempo sempre é meu, existem muitos tempos. O tempo é destituído
de sentido; tempo é temporal (HEIDEGGER, 1997, p. 37 [modificado por mim]).

Antes de mais, gostaria apenas de fazer algumas demarcações sobre palavras


fundamentais dessa passagem. Com efeito, de início, temporalidade da presença é o ser
temporal dela. Em sua descrição fenomenológica, por assim dizer, encontramos esses
momentos estruturantes da temporalidade, os quais em Ser e Tempo aparecerão sob a rubrica
de ekstasis. Quanto a elas, gostaria de apontar também, em específico, a possibilidade de se
traduzir Vorbei por “passado”, mas isto talvez trouxesse a inconveniente proximidade com a
ideia historiográfica de “passado”. Vorbei como “passar” talvez acertadamente expresse essa
transitividade e mobilidade temporal da presença. Por sua vez, a opção de “atualidade” por
Jeweiligkeit buscou preservar o caráter de ser deste instante “próprio”, “respectivo”, ou
mesmo “singular” do tempo da presença. Além disso, note-se que no interior desta palavra
temos este weilig, que pode derivar do verbo weilen: demorar[-se].
Avançando um pouco o passo, vemos que a presença é este “entre”, como enfatiza
sempre Márcia Schuback (In: HEIDEGGER, 2013), pelo qual transcorre um mistério, que
aqui está expressado pelo Tempo. O homem, compreendido enquanto presença, é este passar,
em que passado e futuro confluem e adensam-se mutuamente numa tensão, singularizando-se
em cada instante [Augenblick] próprios. Nesse caminho, o passar também se articula
autenticamente com a finitude da presença, que talvez seja universalizada para o próprio
horizonte da humanidade. É já bastante conhecida a análise de Heidegger sobre o ser-para-a-

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morte [Sein zum Tode] em Ser e Tempo, tema que também aparece neste texto seminal
comentado até aqui. Não é a morte simplesmente dada que representa, enquanto algo esperado
e sabido, o horizonte a partir do qual a presença se singulariza. Mas é na sua experiência
antecipadora da angústia, em que a existência se coloca radicalmente numa visualização do
caráter de nada de seu fundamento e, assim, abre-se para seu poder-ser [seinkönnen], que a
morte se mostra como um direcionamento necessário e radical da existência. Ser presença é
ser-para esta possibilidade último-originária não como um momento ao final de uma
sequência temporal, mas como uma aura que permeia cada momento estruturante da
existência, tornando-a finita a cada decisão-instante (HEIDEGGER, 1982; 1997; 2013).
Agora, se pensarmos agora em antecipação, podemos avaliar em que me medida esta
investigação sobre a temporalidade da presença se apresenta positivamente para a crítica do
Humanismo. A finitude do Humano, da Humanidade, o fim do Humanismo... Esse
pensamento perigoso também retraça o destino do homem a essa finição, que é tanto o
definhamento do Homo humanus, a sua metafísica, como também a intensificação de uma
outra dimensão do humano. A cada momento, o Homem tem de finar para que, a todo instante
novamente, dê-se a presença em sua futuridade. Um gesto possível de ler na Carta sobre o
humanismo talvez seja esse discurso enviesado sobre a humanidade do homem que não fala
mais sobre ele, mas sobre um espaço em que ele habita como convidado especial, mas não
senhor. Isso parece obedecer a um movimento bastante consequente do pensamento
Heideggeriano. Afinal, tendo explicitado de início a temporalidade da presença e sua
dimensão fática de compreensão do ser, Heidegger entende que se colocou propriamente em
condições de avançar para a temporalidade originária, a temporaneidade [Temporalität] do
Ser. Em certo sentido, a análise da temporalidade é a condição de possibilidade para o acesso
à temporaneidade; por sua vez, é a temporaneidade é a condição de possibilidade ontológica
da temporalidade.
Contudo, a pergunta que importuna paulatinamente é o que esse homem deve
sacrificar para exercer essa posição privilegiada. Quem, o que, quantos são perdidos de vistas
nessa tentativa de guarda e espera pela proveniência? É preciso pensar também certas
urgências que vêm de um lugar estranho ao Ser e ao homem. Seria desejável, especulo,
deixar-se dominar completamente pela estranheza, não como momento essencial de
clarificação da existência (como aparece em Ser e Tempo), mas sim para que a presença se
faça do elemento da estranheza para a-guardar o inumano e inominável apelo. Digamos: o
intempestivo agora.

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Nesse sentido, o encerramento de O conceito de tempo me parece, anacronicamente,


oferecer uma possibilidade mais esperançosa e subterrânea aos desígnios derradeiros de
Heidegger. Lá, diz-se com muita simplicidade: “presença seria, então, ser-questionável”
(Ibidem, p. 39, modificado por mim) [Denn wäre Dasein Fraglichsein]. Assim, a partir desse
horizonte perguntante, é a pergunta pelo tempo que, quero dizer, abre o tempo como o a ser
sempre questionável, ou aquele que faz a pergunta fundamental sempre de novo.

O trágico e o espectro do tempo


Gostaria então de partir destas dificuldades heideggerianas sobre esse estranho (e
insuficiente) destino do homem. Porém, neste momento apresentarei algumas teses a partir de
Derrida, mas sempre, quando possível, apresentando alguma explicação adicional que
considerar importante sobre Heidegger.
Em primeiro lugar, impõe-se para Derrida pensar isto que ele denomina “a onto-teo-
teleologia [l'onto-théo-téléologie]” (DERRIDA, 1972, p. 144), que anima o discurso
filosófico do Humanismo, mesmo aqueles discursos que se colocaram contra uma forma sua
mais recente, o antropologismo. Em resumo: mesmo Hegel, Husserl, Heidegger, pensadores
que se colocaram a missão de crítica e superação do antropologismo recaem nele mesmo. Em
relação a Heidegger, Derrida diz de início que “gostaria de começar a esboçar as formas do
encarceramento que mantém, uma sobre a outra, a ‘humanidade’ do homem e o pensamento
do ser, um certo Humanismo e a verdade do ser” (Ibidem, p. 148). Mais adiante, Derrida
esclarecerá que se trata então de questionar essa encruzilhada em que o humano – não mais
um ser concebido metafisicamente como, por exemplo, animal racional ou um ente com sua
essência e seus predicados –, ou melhor, o próprio do humano, é concebido a partir do
horizonte do ser. É este “próprio” (eigentlich) do homem – o qual faz ressonância com
autenticidade (Echtheit) e remonta ao ser – que está em suspensão agora. Para agilizar um
pouco, resumirei este estado de coisas assim: por que é o Dasein, o ente que nós homens
somos, o ente exemplar para o início do questionamento dos questionamentos, que conduz e
precede qualquer outro, inclusive o da destinação dos destinos (a pergunta pelo sentido do
ser)? Por que a pergunta pelo “próprio”? Por que o Ser?
Portanto, é de saber se, primeiro, a pergunta pelo sentido do Ser e, posteriormente, a
concepção do homem como pastor do Ser são capazes de mobilizar para este “novo”, o
derradeiro-começo. Em Ser e Tempo o acesso à questão do sentido do Ser é precedido pela
analítica do modo de ser do ente exemplar, aquele que vive e se pergunta, por essência, acerca
do sentido de Ser. Por outro lado, a Carta sobre o humanismo seria uma retomada e melhor
elaboração da questão, mudando, digamos, o foco do magnetismo: do Dasein (presença, ser-

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aí) ao Ser propriamente. A Destruktion do Humanismo é também a do homem, mas ao modo


de uma mudança de direção. Por mais que a busca seja pela essência do homem (a
humanidade do homem), ela não será buscada nele mesmo, mas no próprio Ser. Ser e Tempo
seria uma preparação necessária, mas apenas isso, na qual a elaboração do modo de ser da
presença deveria habilitar um acesso adequado ao Ser. Como aponta Derrida, em Ser e Tempo
está em marcha essa aproximação a “si” da presença, mas que revela cada vez mais a
distância em relação ao Ser (o “paradoxo” do mais próximo onticamente e mais distante
ontologicamente exposto em Ser e Tempo). Por sua vez, a Carta sobre o humanismo
conduziria a uma reaproximação ao Ser (a metáfora da casa serve bem para isso).
Aproximando-se do Ser, o homem aproxima-se de si propriamente. Ao fim e ao cabo, a
Destruktion talvez seja um afundamento mais radical, inaudito, no homem, do homem no Ser,
e talvez do Ser na não-proveniência radical de seu Outro. Derrida sintetiza assim, quanto a
isso, sua posição em relação ao pensamento heideggeriano:

Isto que talvez seja hoje abalado não é esta segurança do próximo, esta co-pertença e
esta co-propriedade do nome do homem e do nome do ser, tal qual habita e se habita
ela mesma na língua do Ocidente, em sua oikonomia, tal qual ela se afundou, tal
qual ela se inscreve e esquece segundo a história da metafísica, tal qual ela desperta
também pela destruição da onto-teologia? Mas esse abalamento – o qual não pode
vir senão de um certo de fora – era já requisitado na estrutura mesma que ele
solicita. Sua margem era marcada em seu corpo próprio. No pensamento e na língua
do ser, o fim do homem esteve desde sempre prescrito e esta prescrição não fez
jamais senão modular o equívoco do fim, no jogo do telos e da morte. Na leitura
deste jogo, pode-se compreender em todos seus sentidos o seguinte encadeamento: o
fim do homem é o pensamento do ser, o homem é o fim do pensamento do ser, o fim
do homem é o fim do pensamento do ser. O homem é desde sempre seu próprio fim,
ou seja, o fim de seu próprio. O ser é desde sempre seu próprio fim, ou seja, o fim de
seu próprio (DERRIDA, 1972, p. 161, tradução minha)

A noção de fim traz consigo tanto a concepção de finalidade, propósito, direcinamento


(por exemplo, kantiana), quanto de encerramento, “finição”, definhamento. Nesse passo, a
partir da argumentação derridiana, é possível dizer que a leitura da crise do humanismo,
inclusive em seu prosseguimento na própria crítica heideggeriana, traz a relevo que o fim do
homem é seu fim. Se quisermos buscar um linguajar metafísico, pode-se dizer que o homem é
sempre em sua saída do si mesmo. Isto significa: seu distanciamento, desapropriação.
Curiosamente, isto faz certo eco com o que foi dito mais acima sobre a temporalidade da
presença, que tem seu fundamento na finitude radical. Por outro lado, quanto às
consequências disto para o Ser, arrisco dizer que o que parece dito é: para que haja a
possibilidade de ser, é necessário que ele não seja um índice de apropriação e retorno, mas de
diferenciação e dispersamento. Para Ser é preciso ao mesmo tempo Não-Ser, que é o fora não-
familiar, o estranhamento radical inaudito. A temporalidade desse inaudito é de uma chegada

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intempestiva. também é realizar que em Ser em Tempo, por exemplo, essa dimensão própria
da presença é na verdade a menos familiar para ela ou, retomando uma formulação já feita
aqui, a mais distante onticamente e a mais próxima ontologicamente. Isso tudo para dizer que,
no final das contas, o pensamento heideggeriano pode ganhar uma perspectiva positiva a
partir da desconstrução.
Feitas tais ponderações acerca do humanismo de Heidegger, penso ser possível
avançarmos para o outro tema que anima este ensaio. Mas recomeço por um recuo, uma
pequena nota apenas que se origina assim: que experiência pode nos despertar para esse modo
perigoso de viver, ser? A hipótese é de que o trágico é uma tal experiência, essencialmente
porque através dela acontece, de maneira intensificada, a temporalidade mesma. Ou seja, não
será um exame do trágico a partir de um ponto de vista moral. Com isso, vou à Poética de
Aristóteles por um momento, e é preciso justificar por quê. Esse pequeno desvio será guiado
pela seguinte pergunta: Qual a compreensão de tempo na Poética e de que modo ela explicita,
indiretamente, num vislumbre, uma conexão entre o trágico e o tempo? Como não começar
pela paradigmática tese sobre a relação entre poesia (em geral) e história? Parece um recuo
muito grande, mas ele poderá servir para situar aqui uma melhor compreensão do trágico.
De modo muito direto, Aristóteles legitima a poesia a um lugar de conhecimento,
muito diferente de certa estética moderna. Em especial, o conhecimento do homem em sua
dimensão ético-política. Lá, Aristóteles afirma

Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de poeta narrar o que
aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer, o que é
possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o
historiador e o poeta, por escreverem em verso as obras de Heródoto, e nem por isso
deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) – diferem, sim,
em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a
poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela
principalmente o universal, e esta, o particular. Por “referir-se ao universal” entendo
eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e acções que, por
liame de necessidade e verossimilhança, convêm a tal natureza; e ao universal, assim
entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes aos seus personagens; particular, pelo
contrário, é o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu (ARISTÓTELES, 1994,
[1451a, 36-1451b, 10]).

Epopeia, lírica, comédia, tragédia, todas tocam nalguma dimensão humana, no drama
de seu caráter, suas virtudes e seu destino verossímil, crível, creditável segundo o que é
natural. Assim, diremos, quase numa tautologia, que a tragédia mostra o trágico possível da
vida, ou a vida como possivelmente trágica. Mas em que consiste ele?
Para não tornar isto um ensaio sobre Aristóteles, precisarei me ater a uma definição
imediata. Digamos que, nestas primeiras tentativas, o trágico seja uma violenta disjunção do
tempo, da sequência do tempo ou do tempo experienciado como sequência. Haveria nesse

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caso algo a ser olhado mais de perto, que são as noções de enlace e desenlace (δέσις [désis] e
λύσις [lýsis]) e suas relações com o evento trágico. Há entre ambas isto que Aristóteles
denomina de modificação (μεταβαίνει, metabáinei) provocada ou pela peripécia, reviravolta
(περιπέτεια, peripéteia) ou pelo reconhecimento (ἀναγνώρισις, anagnórisis), ou por ambas ao
mesmo tempo. Mas isso parece ser algo que aparentemente foge do controle de Aristóteles,
fere seus desígnios e concepções canonizadas. Digo isso a partir de uma certa leitura do livro
IV, 10-14, da Física, no qual Aristóteles está mais preocupado em pensar o tempo enquanto
algo natural (simplesmente dado, vorhanden, na linguagem de Heidegger), e concebido como
um continuum de “agoras” [nûn] que pode ser contado – oferece-se como número ou ao
número [arithmós]. Essa é uma leitura que segue inclusive a esposada por Heidegger em Ser e
Tempo e, especialmente, em Os problemas fundamentais da Fenomenologia. De fato, a
reavaliação das reflexões de Aristóteles sobre o tempo feita por Heidegger é o ponto de
partida para a reorientação da questão, agora tomada da perspectiva da existencialidade da
presença.
Ainda nesse caminho não esperado, mas traçado pelo estagirita, o evento trágico
destrói a tranquilidade ou anestesiamento de espírito do herói, desenreda a trama na qual ele
acreditava se encontrar, no progresso de sua história. Essa experiência tanto do herói como
também do expectador (mesmo que leitor) reúne em si os momentos da temporalidade.
Inclusivamente, do ponto de vista da fenomenologia existencial, as emoções (ou disposições,
afecções, páthei) compaixão [éleos] e pavor [phóbos] podem ser redescobertas a partir da
temporalidade, pois elas certamente podem ser pensadas na unidade do cuidado [Sorge].
Nesse sentido, se lembrarmos da definição da tragédia (em que o trágico que mostra) feita por
Aristóteles, veremos que o efeito da experiência trágica se dá enquanto kátharsis das
emoções, ou seja, uma purificação delas (ARISTÓTELES, 1994, [1449b, 24-28]). Do jogo
temporal dos acontecimentos emergem herói e expectadores em uma nova disposição. Por
esse ângulo, em Ser e Tempo um dos passos importantes ao final é justamente a
reconsideração e reorientação das disposições a partir da temporalidade. Desse modo, é
factível reconsiderar a kátharsis como o modo existencial-temporal da experiência do trágico.
Prosseguindo ainda nesta análise, mas agora em outra faceta do fenômeno, tem-se que
tal irrupção não vem do acaso ou do nada, mas do passado – já estava aí desde sempre,
adormecido, esquecido, negado. É algo que advém (portanto, do futuro; tem o caráter da
futuridade) do passado. Heróis como Édipo, por exemplo, pressentem desde o início um mal-
estar que se instala no ar, cantando desde o início essa estranheza de mau agouro. Por que
estes hinos, lamentações e rezas a ressoar pelas ruas de Tebas?, por que esse cheiro a incensar

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os ares da cidade?, pergunta Édipo já de início (SÓFOCLES, 1981, p. 311ss). Édipo, um bem-
aventurado em sucessos humanos, reconhecerá, numa vira-volta, o abismo da existência. De
fato, é de se atentar que, em grande medida, o evento trágico não é simplesmente algo que se
produziu num único instante da peça, mas que ele ressoa demoradamente dentro e fora da
trama. Afinal, se, por um lado, em termos dramáticos, o efeito trágico se produz na descoberta
da origem de Édipo, por outro ele é sustentado tanto por um emaranhado de ações
efetivamente encenadas, como também por outras sobre as quais apenas são ditas, relatadas.
O trágico na tragédia transborda o próprio interior da trama, mas ganha realmente tensão
apenas nela até irromper plenamente num instante. O trágico, enfim, advém.
Esse advir é o a ser pensado, ou pelo menos a começar a se pensar. Contudo, ainda é
preciso situar melhor a questão. É verdade que o trágico nas tragédias está sempre associado a
algum tipo de infortúnio grandioso, uma desgraça da maior eminência e iminência. Isso é
totalmente compreensível. Mas desejo chamar a atenção não tanto para o evento pontual da
desgraça efetiva (e/ou seu reconhecimento), mas para algo, diria, que se faz esquecido ou, ao
menos, inominado. E aqui apresso algumas conclusões sobre Derrida, que deverão vir mais
adiante. Com efeito, quero levantar a hipótese de que o próprio tempo é, por essência, trágico.
Em linguajar heideggerianos, isso significaria que não só a temporalidade é trágica, mas que
em sua origem ela se dá como trágica, portanto, no próprio seio da temporaneidade do Ser. O
Ser é trágico. Isto não pelo “simples” fato de que constantemente acontecem grandes
infortúnios (pessoais, sociais, mundiais...), mas sim que, na sua estruturação, o tempo só é
possível como disjunção (DERRIDA, 1993). É esta desconjuntura primeira do tempo que
possibilita a desconjuntura do infortúnio trágico específico, singular. Por isso, Hamlet é um
caso genial que atualiza tanto o gênero literário da tragédia em si, bem como a própria
dimensão existencial do trágico. Hamlet nomeia o âmago do seu drama junto ao tempo: “O
tempo está disjunto. Oh, despeito imundo, / Que para endireitá-lo eu tenha vindo ao mundo!”
(SHAKESPEARE, 2015, p. 82).
É interessante que a tradução de Lawrence Pereira acrescente “mundo” (que não
aparece literalmente no texto original), e que faz eco com “imundo”. Seja por escolha
estilística ou por uma interpretação interessante da passagem, ele nomeia uma dimensão
íntima do tempo (time): o mundo. Mas também, como menciona Derrida, a época. Dessa
forma, o tempo não é uma instância etérea, que transcorre indiferentemente homogênea. Claro
que se pode contar os dias e as horas, mas o tempo, a temporalidade do tempo é a de
constituir, enquanto sentido, o próprio mundo e a destinação do mundo como história. O
mundo de Hamlet está imundo, de ponta cabeça. É como se a Dinamarca fosse o próprio

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Inferno, especialmente nas horas geladas da noite, na virada de um dia para o outro. E o pior:
ele, Hamlet, o pobre Hamlet, foi chamado pelo fantasma do rei-Hamlet (ou que parece muito
bem com o rei) a vingá-lo, corrigindo, então, o curso do tempo. Hamlet-filho é conjurado a
ser redentor de seu mundo imundo. Salvando-o e purificando-o, a vida poderia, enfim, seguir
feliz.
Por isso, é um bom contraste que, no início de Espectros de Marx, apareça um amigo
imaginário de Derrida: “eu gostaria de aprender, enfim, a viver2 (DERRIDA, 1993, p. 12)”.
Ele tem uma ingenuidade até cativante. Esta abertura amigável e cheia de boa vontade reúne o
gesto por excelência ao qual Derrida gostaria de pôr em suspenso: a ânsia pelo “enfim”, pelo
certo caminho, a redenção da vida, ou seja, a onto-teo-teleologia [do tempo]. Por isso, a
esperança desse amigo nos parece contrastar com a experiência do trágico que foi prelineada
acima. Nesse caso, Heidegger se pareceria com esse amigo imaginário, ao menos numa forma
própria e certamente mais complexa dessa ingenuidade cativante, até mesmo sedutora. Em
alguma medida, poder-se-ia dizer que Heidegger é um anti-Hamlet derridiano, senão em seu
todo, pelo menos num gesto importante. Hamlet lamenta o fardo de consertar o mundo, de
tirá-lo da injustiça; Heidegger medita grave e serenamente, põe-se em silêncio e solidão, e
então levanta um dedo meio tímido, mas decidido: a junta do mundo, que é necessária e
essencialmente desjunto, é a clareira do Ser. Em Espectros de Marx isso é tematizado por
Derrida a partir do ensaio O dito de Anaximandro. Nesse caso, o dito heideggeriano é aí
perfeitamente condizente com o projeto da Carta sobre o humanismo, na qual o pastor do Ser
aparece como o justo, não no sentido moral público, mas no ontológico, e o Ser como esse
“âmbito” unificador da totalidade dos entes [em desordem, disjuntos]. Veja-se, por exemplo,
estas derradeiras linhas daquele ensaio:
Primeiro: o Ser como Um:

Tò khréon porta em si a ainda velada essência da reunião iluminante-abrigadora. A


precisão [Der Brauch] é reunião [Versammlung]: lógos. A partir da essência do
lógos pensada deste modo, a essência do Ser é determinada como o Um unificador:
Hén. Parmênides pensa este mesmo Hén. Ele pensa a unidade deste Um unificador
explicitamente como Móira (Fragmento 8 em Diels, Fragmente der Vorsokratiker).
Pensada a partir da experiência essencial do ser, Móira corresponde ao lógos de
Heráclito. A essência de Móira e lógos é já pensada [ist vorgedacht] no Khréon de
Anaximandro (HEIDEGGER, 2002, p. 278).

Segundo: o destino do homem a partir daí:

Se, contudo, Ser, em sua essência, precisar se valer [braucht] da essência do


homem? Se a essência do homem residir no pensamento da verdade do Ser? Então o
pensamento deve poetizar [dichten] acerca do enigma [Rätsel] do Ser. Ele traz o

2
Original: “«je voudrais apprendre à vivre enfin ».

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alvorecer [die Frühe] do pensamento para a proximidade daquilo a ser pensado [in
die Nähe des zu Denkenden] (Ibidem, p. 281, com modificações).

Isto posto, a meditação acerca da essência do homem, o humanismo heideggeriano,


mostra-se novamente em sua magnetização unificador do Ser, agora a partir do dito de
Anaximandro. Isso permite recolocar a questão inicial: para onde, enfim, o homem?
Relembrando algo já falado anteriormente, essa pergunta contém, no modo do questionar e de
suas respostas dadas ao longo da história, dois pressupostos: 1) há uma essência do homem,
uma ideia, um conceito, um algo presente em questão (Eine Sache, uma coisa, uma causa em
questão); 2) para onde significa primariamente uma progressão sempre adiante, uma marcha,
com percalços, mas sempre em frente, da humanidade do homem. É difícil dizer em que
medida se pode dizer hoje que há um espectro do Humanismo rondando o mundo, assim
como Marx dizia do comunismo no séc. XX – e que Derrida rememora para abrir seu texto
(DERRIDA, 1993). É certo que o séc. XX foi com muita evidência um século dos discursos e
práticas do Humanismo. Nunca se falou tanto e expressamente sobre ele – fundamentalmente
por conta das guerras, do entre guerras e dos pós-guerras. Mas o Humanismo não morreu, e
não quero dizer que ele tenha de ser esquecido, extirpado, pois isso é apenas a repetição de
um modo de pensar fácil. Na lógica espectral de Derrida, nada morre.
Esta lógica do espectro nomeia uma racionalidade contraditória com certo lógos. Não
como o que reúne, mas o que dispersa, desconjunta, “acolhe” a estranheza. O espectro é uma
entidade paradigmaticamente sui generis, a tal ponto que ela simboliza o próprio da
assombração. Contudo, antes disso, o espectro é aquilo que não se faz presente; não é carne,
nem puro espírito; não é passado nem futuro; não é vida nem morte. Mas está aí, é presença e
não presente. O espectro, na desconstrução, é a metáfora para essa nova lógica, é a metáfora
por excelência, pois ele traz em si a própria possibilidade e necessidade de deslocamento,
trânsito e comércio das coisas, dos sentidos. Numa primeira aproximação, o espectro é algo
que, não sendo cativo do tato, também não o é do tempo, pelo menos como cotidianamente o
compreendemos e com o qual lidamos. Porque, enquanto re-apresentação de algo que deveria
ter ficado no passado (morto), atua no presente, no instante. Na verdade, o espectro é
justamente aquele entre imponderável, essa estranha presencialidade disjunta. O espectro é o
tempo, ou melhor, o tempo dá-se como espectro.
Neste entre já habita a presença. Neste entre dá-se o ser? Do homem? De início nesse
entre está-se em desconforto, algo não vai bem – como na Dinamarca de Hamlet, na Tebas de
Édipo, na Argos de Agamemnon... A pergunta da desconstrução é se o tempo está em algum
momento bem, no sentido de que tudo funciona como se espera, automaticamente,
milimetricamente calculado e executado. Talvez o perigo maior não esteja necessariamente no

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mal, mas na tranquilidade e na espera – na boa consciência. O texto trágico parece nos
ensinar, pelo contrário, que nada está bem, não só no momento em que o cataclismo se abate
espetacularmente, mas sempre. O dito The time is out of joint poderia, numa brincadeira, se
traduzido por O tempo é fora das juntas, disjunto. “Estar” é esse presente ilusório; “ser” é
advento-doador.
Com efeito, o que advém é sempre esse círculo ou espiral do passado-futuro: o
passado vem do futuro, e o futuro vem do passado. Por enquanto, chamarei simplesmente de
apelo, mais concreto do que qualquer matéria, mais ideal que qualquer ideia. Simplesmente
uma voz, por vezes murmúrio, outras, grito: por justiça, por perdão.... Singelamente a graça
de ser mais uma (ou primeira) vez ouvido. Se melhor ou pior, só o tempo dirá, mas sempre a
[im]possível possibilidade: uma chance, para além do bem e do mal.

Considerações finais
Dizer que o tempo é trágico não significa entregar-se ao pessimismo e tristeza. A
disputa pelo futuro não deve se pautar pelo binarismo otimismo-pessimismo, mas uma coisa
outra. Este pensamento chega sempre propositalmente tarde ao fim, e desconfia de qualquer
sentença que pretenda decretar o fim de alguma coisa. É sempre urgente estar vigilante para a
chegada daquilo que parecia esquecido, soterrado, ignorado. Pois aí mora os maiores dos
perigos, bem como os maiores bens.
O movimento foi o de partir de considerações mais gerais acerca da compreensão de
tempo de Heidegger para articulá-la com o seu projeto crítico ao humanismo. Paralelamente
foram-se apresentando recensões críticas de Derrida que, mais do que jogar por terra as
investigações heideggerianas, coloca-as sob uma nova possibilidade. Em poucas palavras, o
que se encontrou preliminarmente – e que, portanto, coloca-se a serviço futuros
desenvolvimentos mais consequentes – é que a possibilidade do Humanismo se encontra em
assumir a dimensão trágica do humano, a qual, por sua vez, apresenta-se sob o signo da
experiência do tempo. É de se reconhecer especialmente aí o vigor da fenomenologia
existencial, ao mesmo tempo em que se a dispõe a uma imersão ético-política. Especialmente
quanto a esta última, contudo, resta muito trabalho ainda ser feito, mas que parece ser bastante
promissor.
Assim, aqui se seguiram em verdade alguns esboços, dos mais bem-intencionados.
Desejei apenas colocar algum modo de acesso a esse problema tão antigo quanto o que ele
próprio questiona: o tempo. O principal foi realmente pensá-lo a partir da dimensão do
trágico, mas tentando também articulá-lo a uma região de problemas e situações críticas do
Humanismo. Porque ele, o Humanismo, por mais que o tom tenha sido crítico, não pode ser

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levianamente abandonado, até mesmo porque, do ponto de vista da desconstrução, como já foi
dito acima, nada morre. O Humanismo, em analogia ao Comunismo discutido por Derrida,
manter-se-á sempre a rondar nosso mundo, tematicamente ou não. De fato, enquanto espectro
de discursos sobre a essência do homem, o Humanismo coloca esta essência mesma do
homem no jogo espectral: sempre interpelante e interpelável, porém nunca concluída. Porque
ele, no final das contas, pode ser inclusive, neste por-vir, um espaço questionador de nossos
desafios sempre novamente. Por isso, creio cada vez mais que ele não é simplesmente jogado
às traças pela desconstrução ou mesmo pela Destruktion. Talvez numa traição ao pensamento
heideggeriano, mas, por isso mesmo, com ele, a desconstrução dá ao Humanismo, e ao
homem, o que ele sempre necessitará: mais tempo, mais paciência, mais crise e queda: enfim,
uma nova e urgente palavra.

Referências
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Press, 1996.

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Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2013.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. Trad. Lawrence Flores Pereira. São Paulo: Penguin
Classics Companhia das Letras, 2015.

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____. Hamlet: prince of Denmark. (The new Cambridge Shakespeare). Ed. Phillip Edwards.
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