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Mini-Curso (CHK17 – História Social da Escravidão)

A “segunda escravidão” no longo século XIX: Brasil, Cuba, EUA e África

UFBA, Curso de Pós-Graduação em História, 2º semestre de 2018


Local – Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), Pça. Inocêncio Galvão 43, Largo 2 de julho,
Centro, Salvador
Datas e horário: 5a feira à noite, 18:00-20:30; 18/10 a 13/12 (oito aulas, sendo 15/11 feriado)
Requisitos para inscrição: cursar programa de pós-graduação ou desenvolver pesquisa de
iniciação científica no último ano da graduação

Professor: Robert Slenes

Ementa:

1) O curso enfoca a “segunda escravidão” (termo traduzido de second slavery) nas


Américas: ou seja, o novo sistema escravista – na verdade, para os criadores do conceito, um
“segundo escravismo” – que nasce na esteira de mudanças na virada para o oitocentos,
notadamente a Revolução dos escravos em Saint Domingue (a partir de 1791) e a abolição do
tráfico africano para o Caribe Britânico (1808), e dura até sua última abolição em 1888.
Reconhece-se, entretanto, que essa tentativa de distinguir entre formas daquilo
conhecido como “escravidão” (chattel slavery, ou seja, “escravidão de semovente”, em que o
escravizado legalmente é um bem comerciável) surge junto com esforços de repensar a relação
entre esse regime específico de trabalho (e propriedade) e outras formas de labor coagido
“análogo ao de escravo”. (Esta última qualificação foi empregada em um protocolo influente da
Liga de Nações de 1926, motivado principalmente por formas de trabalho forçado na África,
que deixou marcas na jurisprudência mundial, inclusive no artigo 149 do código penal brasileiro
de 1940 e no mesmo artigo reformulado em 2003.)
Portanto, o curso também dedica um espaço para a nova bibliografia sobre os efeitos
das demandas de trabalho dessa “segunda escravidão” americana na África, especialmente na
África Central, duramente impactada pelo aumento no tráfico transatlântico até meados do
século XIX. E explora um pouco, também, a nova historiografia sobre formas de trabalho
coagido “análogo ao de escravo” que proliferam nas Américas e na África no decurso do “longo
século XIX” (c. 1781 até, para nossos propósitos, c. 1926).
O conjunto dessas novas bibliografias, surgidas num período de acirrado crescimento
mundial da desigualdade social e do número de pessoas sujeitas a formas de “escravidão
contemporânea”, questiona a ideia da progressão etapista, quase necessária, entre formas de
organização de trabalho (ou “modos de produção”), que predominava na historiografia
anterior.

2) Cunhado pelo historiador Dale Tomich nos anos 1990, inicialmente a partir de novos
dados sobre o tráfico negreiro para as Américas, o termo second slavery traça um paralelo com
a “segunda servidão” na Europa oriental, que crescia em importância na medida em que
definhava a servidão mais antiga no oeste do continente. Da mesma forma, nota Tomich, a
“segunda escravidão”, assim como o tráfico em pessoas que a alimentava, crescia em
importância em novas áreas do mundo atlântico, principalmente no Sudeste brasileiro, em
Cuba/Puerto Rico e no “Sul Profundo” dos Estados Unidos (nesta última região, sustentada
desde o início por um tráfico doméstico de cativos afro-americanos). Isso na mesma época em
que a escravidão se retraía na maior parte do resto da América (o Norte-Nordeste do Brasil
sendo uma exceção até 1850).
Mas o escravismo não só ganhou novos espaços e uma nova dinâmica no século XIX.
Respondendo ao enorme crescimento da demanda por commodities nos países do Atlântico
norte – o resultado da revolução industrial – a segunda escravidão, inclusive o tráfico de
cativos, integrava-se cada vez mais às instituições econômicas e aos modos de organização e
vigilância do trabalho no mundo capitalista. Havia, por exemplo, grandes fazendas
assemelhando-se a fábricas e usando métodos “tayloristas” (bem antes de Taylor) para
arregimentar os trabalhadores e extrair deles mais lucros. Havia, também, grandes traficantes-
escravistas se destacando pela “integração vertical” de suas atividades (por exemplo,
montando barracões para escravizados na costa africana, mantendo seus próprios navios
negreiros para transportar essas pessoas, providenciando sítios na costa brasileira para a
recuperação da saúde destas, e recebendo depois os sobreviventes como trabalhadores em
suas fazendas de café no Vale do Paraíba ou eventualmente vendendo-os a outros
proprietários). Tudo isso muito antes de Arnold Carnegie empregar estratégias análogas nos
Estados Unidos (adquirindo minas de ferro e ferrovias para transportar o minério), visando
tornar suas fábricas de aço mais lucrativas.
A nova historiografia coloca em cheque a velha ideia (de economistas liberais e também
de marxistas) de que o escravismo era um sistema pré-capitalista ou “anti-econômico/arcaico”
para os proprietários de cativos, supostamente mais preocupados com a ostentação da riqueza
do que em gerenciá-la e fazê-la crescer: ou seja, um sistema que dava lucros contínuos apenas
aos negociantes (de “mentalidade capitalista”) que intermediavam as vendas das commodities
e dos escravizados. Ao contrário, as pesquisas apontam para a necessidade de estudar de perto
o “capitalismo histórico” – com enfoque particular na maneira como, em cada lugar e época, os
donos de capital se relacionam com formas de trabalho diversas (e com trabalhadores/as,
diferentes em cultura e experiência, que também atuam com “agência” própria). É só assim que
se chega a uma compreensão adequada dos movimentos e permutações no tempo desse
sistema econômico.
O título da introdução (de autoria de Tomich e Zeuske) de uma coletânea importante
sobre a segunda escravidão sintetiza o que isso significa em termos metodológicos, ao referir-
se tanto à “economia mundial” quanto a “microhistórias comparativas”. Casam-se aqui as
perspectivas da micro-história italiana (Ginzburg, Grendi, Levi) e inglesa (Thompson,
Hobsbawm, MacFarlane), baseada em métodos como o da “ligação nominativa de fontes”, com
a “análise de sistemas mundiais” de Wallerstein, que tem afinidades com a obra de Hobsbawm
e com os objetivos maiores dos microhistoriadores. Enfim, só se chega à “história global” da
segunda escravidão e de sua relação com o capitalismo através de inúmeras análises de
relações e redes humanas ao rés do chão. A constatação vale também para a análise global de
formas de trabalho “análogas à escravidão”.
Programa do Curso - Aulas e Temas:

18/10 Introdução ao Curso: capitalismo e escravidão – historiografia e debates recentes; a


construção do conceito de “segunda escravidão” (nas Américas), e sua aplicabilidade na
África; as formas de trabalho coagido “análogo ao de escravo” na América e na África,
antes e depois do fim do tráfico

25/10 Capitalismo e anti-escravismo; a visão europeia do africano na época da revolução


burguesa e do romantismo

01/11 A micro-história e a questão da “agência” escrava

08/11 Da “análise de sistemas mundiais” à “história global” e ao “capitalismo histórico”

15/11 FERIADO

22/11 O capitalismo histórico e a segunda escravidão: Brasil, Cuba, EUA

29/11 A segunda escravidão e seu impacto na África

06/12 Brasil Império: a economia e política da segunda escravidão

13/12 Escravidão e trabalho análogo ao de escravo: África e América, c. 1781 a c. 1926


Leituras e bibliografia para cada aula:

As leituras para discussão, como também leituras suplementares para quem quer se
aprofundar nos temas abordados, são listadas a seguir. Todas as primeiras, como
também algumas das suplementares (marcadas com asterisco), estão (ou estarão
dentro em breve) disponíveis em pdf ou outro formato, online ou no site do Programa
de Pós-Graduação em História: www.ppgh.ufba.br (buscar “mini-curso”). Também
haverá uma bibliografia adicional (não disponível no site) para cada aula.
(Segue, inicialmente, as leituras recomendadas para a primeira aula.)

1) 18/10 Introdução ao Curso: capitalismo e escravidão – historiografia e debates recentes; a


construção do conceito de “segunda escravidão” (nas Américas), e sua aplicabilidade na
África; as formas de trabalho coagido “análogo ao de escravo” na América e na África,
antes e depois do fim do tráfico
Leituras para discussão:
*TOMICH, Dale; ZEUSKE, Michael. “Introduction”. Review (Fernand Braudel Center, Binghamton
University, N.Y.). Número sobre “The Second Slavery: Mass Slavery, World-Economy,
and Comparative Microhistories, Part I”. Vol. 31, N. 2 (2008), p. 91-100.
*MARQUESE, Rafael Bivar. “Capitalismo e escravidão”[de Eric Williams] e a historiografia sobre
a escravidão nas Américas”. Estudos Avançados (USP), Vol. 26, N. 75, 2012, p. 341-354.
DRESCHER, Seymour. Econocide [1977]. 2a ed. Chapel Hill: University of North Carolina Press,
2010. Ler online (Amazon.com), edição Kindle: “Foreward” de David Brian Davis, seguido
de “Preface to the Second Edition” de Drescher (textos historiográficos, disponíveis na
tela, sem cortes).
Visitar site: www.slavevoyages.org (“The Trans-Atlantic Slave Trade Database”): no cabeçalho
clicar em “Languages”, depois em “português”; circular no site para ver as possibilidades
de pesquisa.
2) 25/10 Capitalismo e anti-escravismo; a visão europeia do africano na época da
revolução burguesa e do romantismo
Leituras para discussão:
* WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão [1944]. São Paulo: Companhia das Letras, 2012,
caps. 7 e 12 (p. 181-191, 283-287).
*DRESCHER, Seymour. Abolição: uma história da escravidão e do antiescravismo. São Paulo:
Companhia das letras, 2011 [2009], cap. 8, “Aboliçionismo sem revolução: a Grã
Bretanha da década de 1770 à de 1020”.
Leituras suplementares, aulas 1 e 2:
ELTIS, David. Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade.New York:
Oxford University Press, 1987.
BROWN, Christopher. Moral Capital: Foundations of British Abolitionism. Chapel Hill: University
of North Carolina Press, 2006.
BLACKBURN, Robin. A queda do escravismo colonial. Rio de Janeiro: Record, 2002 [1988].
*LINEBAUGH, Peter. “Todas as montanhas atlânticas estremeceram” [1982]. Revista Brasileira
de História vol. 3, n. 6 (set. 1983), p. 7-46. (Também disponível online, entrando no
Google com autor e título.)
LINEBAUGH, Peter. The Magna Carta Manifesto: Liberties and Commons for All. Berkeley:
University of California Press, 2009.
*LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos,
plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário [2000].São Paulo: Companhia das
Letras, 2008. “Conclusão: Tigre! Tigre!”, p. 341-369.
*SLENES, Robert W. “Brazil” [capítulo sobre a historiografia a respeito da escravidão no Brasil].
In: Oxford Handbook on Slavery in the Americas (nasérieOxford History Handbooks),
Robert L. Paquette e Mark M. Smith, orgs. New York: Oxford University Press, 2010, pp.
111-133.
*CHALHOUB, Sidney; SILVA, Fernando Teixeira da. “Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos
e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980”. Cadernos Arquivo
Edgard Leuenroth (UNICAMP), v. 14, 2009, p. 13-57. (Também disponível online.)
*SLENES, Robert W.African Abrahams, Lucretias and Men of Sorrows: Allegory and Allusion in
the Brazilian Anti-slavery Lithographs (1827-1835) of Johann Moritz Rugendas. Slavery
and Abolition, 23:2, p. 147-168.
*CARVALHO, Bruno. “Writing Race in Two Americas: Blackness, Science, and Circulation of
Knowledgein the Eighteenth-Century Luso-Brazilian World and the United States”. The
Eighteenth Century, Vol. 57, N. 3.Outono, 2016, p. 303-324

Aula 14-11-2018
TOMICH_Pelo Prisma da Escravidão_caps 1 e 3

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