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nº20

JUL-DEZ
2020

A História Cultural das Ciências e a Divulgação Científica: reflexões


teóricas

1
Camila Binhardi Natal
2
Marcia Helena Alvim

Resumo

Neste artigo serão desenvolvidas reflexões teóricas acerca das possíveis relações entre a
História Cultural das Ciências e a Divulgação Científica. Para fundamentá-las, serão
discutidos conceitos e noções relativos a historiografia, ciência, cultura e divulgação
científica, a partir de breve revisão bibliográfica. O objetivo do artigo é analisar,
teoricamente, as referidas relações, considerando-se a premissa de que podem contribuir
para a circulação social da cultura científica de modo mais democrático, contextualizado
e significativo. Como resultado, consideramos que a divulgação científica, ao abordar a
ciência devidamente historicizada, eleva ainda mais o seu potencial de contribuir para a
ampliação da consciência reflexiva e crítica da sociedade, que nela dispõe de um
importante instrumento de educação não formal, referente não apenas à educação
científica, mas cidadã.

Palavras-chave: história cultural das ciências, cultura científica, divulgação científica,


educação científica.

1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ensino e História das Ciências e da Matemática,
Universidade Federal do ABC, Santo André, São Paulo, Brasil. E-mail: camila.natal@ufabc.edu.br.
2
Docente Permanente no Programa de Pós-Graduação em Ensino e História das Ciências e da
Matemática, Universidade Federal do ABC, Santo André, São Paulo, Brasil. E-mail:
marcia.alvim@ufabc.edu.br.
nº20
JUL-DEZ
2020

The Cultural History of Sciences and Scientific Popularization:


theoretical reflections

Abstract

In this article, it will be developed theoretical reflections on the possible interplays


between the cultural history of sciences and scientific popularization. To support them,
concepts and notions regarding to historiography, science, culture and scientific
popularization will be discussed, starting from a brief literature review. The aim of this
article is to theoretically analyze the aforementioned relationships by considering the
premise that they can contribute to the social movement of scientific culture in a more
democratic, contextualized, and meaningful point of view. As a result, we consider that
scientific popularization, by addressing science properly historicized, enhance even
more its potential to contribute to the broadening of both the reflective and critical
understanding of society, because it refers to non-formal education not only scientific,
but citizen.

Key-words: cultural history of the sciences, scientific culture, scientific popularization,


scientific education.
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JUL-DEZ
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Perspectivas historiográficas e a História Cultural das Ciências

A História Cultural das Ciências e a Divulgação Científica são os temas deste


artigo, cujo objetivo, em síntese, é tecer novas reflexões teóricas a respeito das possíveis
relações entre ambas, considerando-se a premissa de que podem contribuir para a
circulação social da cultura científica de modo mais democrático, contextualizado e
significativo.

De acordo com Pimentel (2010) a expressão História Cultural das Ciências, a


princípio, pode soar contraditória, por reunir duas ideias tradicionalmente opostas:
cultura e ciência. De modo simplista, a primeira costuma conter, em seu campo de
significações, atributos como criatividade e subjetividade; a segunda, ao contrário,
reúne predicados como racionalidade, método e objetividade. Essa aparente
controvérsia não se sustenta, porém, quando se considera a ciência, justamente, como
produção embasada pela cultura, conforme Alvim e Zanotello (2014, p. 352).

A ciência entendida como cultura não seria apenas um conjunto de saberes


especializados, produtores de teorias e metodologias, mas uma construção
humana sobre os fenômenos do mundo natural a partir de elementos de seu
universo cultural, possuindo uma relação dialógica com a sociedade na qual é
produzida, uma vez que a ciência sofre e exerce impactos
sócio-político-econômicos e culturais na mesma. (ALVIM e ZANOTELLO,
2014, p. 352-353).

Cumpre observar que o próprio conceito de ciência – e, sobretudo, o de cultura –


não são exatamente consensuais; ao contrário, são significativamente polissêmicos. No
que se refere ao segundo, deve-se pontuar que o século XX trouxe-lhe novas definições
e abordagens em relação ao que, no século XIX, era considerado digno de investigação
historiográfica. (BARROS, 2003, p. 145).

Em relação ao conceito de ciência, segundo Chibeni (2001, p. 2), é possível


identificar, nas múltiplas variantes da visão comum da ciência (visão da atividade
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científica e da natureza da ciência), algumas pressuposições centrais: a) a ciência


começa por observações; b) as observações são neutras; c) as leis científicas são
extraídas do conjunto das observações por um processo supostamente seguro e objetivo,
chamado indução. De acordo com Alvim e Zanotello (2014) essa percepção refere-se a
uma herança da visão iluminista, segundo a qual a ciência traria progresso e seria
sempre positiva ao bem estar social. Nessa proposta, a ciência era vista como universal,
permanente e única expressão do conhecimento humano sobre a natureza.

Ilustração 1: Representação tradicional relativa à História das Ciências.

A historiografia das ciências foi permeada por essa mesma perspectiva até
meados dos anos 1980, quando conheceu uma profunda renovação, comparável à
registrada, nos anos 1930, na História Geral (PESTRE, 1996). A referida renovação é
apresentada pelo autor como a realização de historiadores e sociólogos que recusavam
uma concepção racionalista ou positivista das ciências. O movimento fora semeado,
porém, com décadas de antecedência:

Desde a década de 1960, esforços intelectuais vêm sendo depositados na


consolidação de uma nova vertente historiográfica em história das ciências,
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que busca realizar uma análise contextualizadora da prática científica e do


impacto social da ciência e da tecnologia. Esta visão historicista das ciências
contou com um crescente número de adeptos e deflagrou uma ruptura
significativa à vertente historiográfica precedente: o positivismo. (...) Nas
décadas de 1970 e 1980, discussões que propunham uma renovação
historiográfica mobilizaram a história das ciências através dos Social Studies
of Science e intensificaram-se atualmente com as contribuições da História
Cultural.” (ALVIM e ZANOTELLO, 2014, p.351-352)

De acordo com Matos (2010, p. 123), a ‘Nova História Cultural’ surgiu nos anos
1980, a partir de uma crise vivida pela terceira geração dos Annales, e assim
denominou-se para diferenciar-se da História Cultural acadêmica, dedicada às
3
manifestações oficiais da cultura .

A História Cultural apresenta a ciência como uma realidade mutável e diversa.


Antes de entender a ciência na cultura humana, ela passa a ser vista como parte
estruturante da cultura (ALVIM e ZANOTELLO, 2014, p. 353).

Convém, no entanto, problematizar o vocábulo cultura – seja em virtude de sua


extrema polissemia conceitual, já mencionada, seja no âmbito da vertente
historiográfica que adjetiva:

O termo 'cultura' é ainda mais problemático que o termo 'popular'. Como


observou Burckhardt em 1882, história cultural é um 'conceito vago'. Em
geral, é usado para se referir à 'alta' cultura. Foi estendido 'para baixo',
continuando a metáfora, de modo a incluir a 'baixa' cultura, ou cultura
popular. Mais recentemente, também se ampliou para os lados. O termo
cultura costumava se referir às artes e às ciências. Depois, foi empregado
para descrever seus equivalentes populares – música folclórica, medicina
popular e assim por diante. Na última geração, a palavra passou a se referir a
uma ampla gama de artefatos (imagens, ferramentas, casas e assim por
diante) e práticas (conversar, ler, jogar). (BURKE, 2008, p. 42-43)

Para Chartier (2002, p. 17), “o principal objeto da história cultural é identificar o


modo como, em diferentes lugares e momentos, uma sociedade é construída, pensada e
apreendida, a partir das representações do mundo social.” Quanto à História Cultural

3
Neste artigo, adotaremos a expressão ‘História Cultural’, e não a mencionada ‘Nova História Cultural’.
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das Ciências, trata-se de uma das três tradições dominantes na História das Ciências, a
partir dos sciences studies – as outras seriam a tradição historiográfica clássica e a
tradição epistemológica e filosófica, afeitas aos debates internos das ciências (VIEIRA,
2012, p. 267-268).

A História Cultural das Ciências, segundo Alvim e Zanotello (2014, p. 353),


objetiva construir um relato histórico acerca do conhecimento científico produzido pelo
homem, em sintonia com os significados culturais que o engendraram, bem como
analisar os efeitos gerados à sociedade que o construiu. Assim, ao ser culturalmente
historicizada e situada, a ciência torna-se um objeto crítico, compreensível através de
seu entendimento enquanto artefato sociocultural. Nesse sentido, o ensino de ciências
conteudista pode ser transformado de modo a conceder significado à aprendizagem,
numa relação dialética que pressupõe a compreensão dos condicionantes históricos, das
demandas sociais e políticas e da atuação sociocultural na produção dos conhecimentos.

Compreender o ensino de ciências nessa perspectiva valoriza uma educação


crítica e reflexiva acerca da construção dos saberes, bem como das ações humanas em
relação à natureza e enquanto agentes históricos. Nesse viés, a História Cultural das
Ciências configura-se como um importante aporte teórico às discussões sobre a natureza
da ciência, o ensino e a divulgação científica, visto que, ao propiciar a reflexão histórica
sobre a produção dos conhecimentos, apresenta, ainda, as responsabilidades sociais,
políticas e ambientais da ciência na nossa sociedade – discussão basilar à educação e à
divulgação científica.

A História Cultural das Ciências e a divulgação científica

No âmago das relações entre ciência e sociedade situa-se a divulgação científica.


A seguir, após breves conceituações e reflexões teóricas, a mesma será abordada sob
dois aspectos, diretamente relacionados às premissas da História Cultural das Ciências:
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∙ Como prática, objeto e veículo de representações não apenas científicas, mas


culturais;

∙ De que modos pode se beneficiar das perspectivas da História Cultural das


Ciências, em prol de circulação social da cultura científica de modo mais
contextualizado e significativo.

A divulgação científica, em síntese, refere-se à comunicação pública da ciência,


com o intuito de popularizá-la, além de ser um importante meio de educação não
formal. A própria etimologia da expressão divulgação científica, sobretudo do primeiro
vocábulo que a compõe, reitera a essência dessa tese. O substantivo divulgação
originou-se do latim divulgatĭo,ōnis, com o significado de “ação de espalhar, publicar,
4
divulgar” ao público (vulgus) .

Pressupõe-se, portanto, que um dos principais propósitos da divulgação


científica é o de comunicar, no sentido de tornar comum, isto é, acessível e
compreensível à sociedade, o conhecimento científico, antes restrito ao meio acadêmico
– que pode ser não apenas interessante, mas também útil, a diversos âmbitos da vida.
Autores como Mendonça (2010, p. 03) endossam essa definição, ao afirmar que “no
caso da divulgação científica, como a própria etimologia da palavra divulgar sugere,
trata-se de fazer chegar à população, de forma a um tempo rigorosa e simples, a
dinâmica da ciência na vida cotidiana”.

A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura


(UNESCO) em sua Declaração sobre ciência e o uso do conhecimento científico,
enfatiza a importância social e educativa da divulgação científica – responsabilidade
atribuída aos próprios cientistas –, além de destacar o já citado impacto cultural da
ciência, ao estabelecer que (grifos nossos):

A responsabilidade social dos cientistas requer que mantenham altos


padrões de integridade científica e de controle de qualidade, que

4
Fonte: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
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compartilhem os seus conhecimentos, comuniquem-se com o público e que


eduquem a nova geração. (...) O currículo das ciências deve incluir a ética
científica, assim como a história, a filosofia e o impacto cultural da ciência.
(UNESCO, 1999, p. 8)

Embora costume ser associada à educação não formal, a divulgação científica


pode ser considerada, também, um importante recurso de apoio ao ensino e
aprendizagem na educação formal, sobretudo na educação básica. Seu uso pode
contribuir para ampliar e atualizar os conteúdos dos materiais didáticos oficiais;
diversificar as experiências pedagógicas, por meio de espaços como museus de ciências;
tornar a ciência mais atraente e acessível aos estudantes; entre inúmeras outras
possibilidades.

Além disso, a divulgação científica pode ser considerada um valioso instrumento


de transformação da sociedade, em virtude de sua potencial contribuição para a
atenuação de um dos mais estruturais aspectos da desigualdade social: a democratização
do acesso à educação e à cultura científica. Em geral, o contato que a população
costuma ter com a ciência limita-se ao período escolar. Considerando-se o agravante de
que, infelizmente, não raras vezes, o ensino na rede pública de educação básica é
significativamente deficitário, afetado pela precariedade do sistema, a educação
científica dos estudantes tende a estar aquém do recomendável. Essa situação pode
comprometer, por consequência, não apenas a formação acadêmica, mas a consciência
crítica e, em sentido amplo, a inclusão social e o pleno exercício da cidadania.

Falar de inclusão social no domínio da difusão ampla dos conhecimentos


científicos e tecnológicos e de suas aplicações compreende, portanto, atingir
não só as populações pobres, as dezenas de milhões de brasileiros em tal
situação, mas também outras parcelas da população que se encontram
excluídas no que se refere a um conhecimento científico e tecnológico básico.
A razão principal para o presente quadro reside na ausência de uma educação
científica abrangente e de qualidade no ensino fundamental e médio do país.
(MOREIRA, 2006, p.11)

Como se efetiva, no entanto, a relação entre a divulgação científica e a


sociedade? A divulgação científica, a priori, é veiculada pela mídia, nos mais diversos
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meios de comunicação (impresso, audiovisual, digital etc.). Segundo Caldas (2003, p.


73), a compreensão do “papel educativo da mídia na formação da opinião pública e
geração de uma consciência crítica sobre a influência da ciência e da tecnologia no
mundo moderno é fundamental para o exercício pleno de uma cidadania ativa”.

A mídia dispõe, portanto, de um poder decisivo na circulação social do


conhecimento científico. De acordo com Foucault (1972), porém, o poder não existe,
mas sim, práticas ou relações de poder. A propósito das relações de poder intrínsecas à
mídia e à divulgação científica, Caldas (2010, p. 32) questiona, com absoluta
pertinência:

A quem cabe formular as prioridades dos investimentos públicos e privados


sobre ciência, tecnologia e inovação (CT&I), considerando os múltiplos e
distintos interesses envolvidos, nem sempre transparentes? Qual o papel dos
cientistas, dos políticos, dos empresários e da sociedade organizada na
discussão e na elaboração das políticas públicas de CT&I, cujos impactos são
determinantes para o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida da
população? Como a política científica brasileira é divulgada na mídia e como
é percebida pela opinião pública? (CALDAS, 2010, p. 32).

Este artigo não se aterá a propor possíveis respostas a tais questionamentos, no


entanto, pareceu-nos oportuno reproduzi-los em sua íntegra, considerando sua direta
relação com algumas das legítimas e fundamentais preocupações da História Cultural
das Ciências, como a influência decisiva exercida pelos interesses dos que detém o
poder de determinar, por exemplo, o que “merece” financiamento e divulgação – o que
afeta, por consequência, a evolução e a circulação pública da ciência.

Ainda no tocante às influências, segundo Barros (2003, p. 146), “a História


Cultural enfoca não apenas os mecanismos de produção dos objetos culturais, como
também os seus mecanismos de recepção”, sendo que, “de um modo ou de outro, a
recepção é também uma forma de produção”. As práticas e os objetos culturais,
portanto, são portadores de sentidos, associados a representações, tanto em sua
produção quanto em sua recepção.
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Considerando-se a divulgação científica um autêntico exemplo de prática e


objeto cultural, veiculadora de sentidos e representações, ponderamos: existe uma
interação realmente dialógica entre os divulgadores e seus interlocutores, ou
essencialmente unilateral? A sociedade também pode, de fato, exercer influências sobre
a ciência, como num autêntico processo cultural?

Nas atividades de divulgação ainda é hegemônica uma abordagem,


denominada ‘modelo do déficit’, que, de uma forma simplista, vê na
população um conjunto de analfabetos em ciência que devem receber o
conteúdo redentor de um conhecimento descontextualizado e encapsulado.
Aspectos culturais importantes em qualquer processo divulgativo raramente
são considerados, e as interfaces entre a ciência e a cultura são
frequentemente ignoradas. (MOREIRA e MASSARANI, 2002, p.63)

A superação do mencionado modelo de déficit é, atualmente, um dos maiores


desafios da divulgação científica, a favor de relações CTS efetivamente dialógicas e
culturais, estabelecidas entre os sujeitos produtores e receptores da cultura científica.
Dentre os possíveis modelos de comunicação pública da ciência e da tecnologia
(LEWESTEIN, 2003), além do modelo de déficit, pode-se citar o contextual, da
especialidade leiga e da participação pública, sendo que este último costuma ser
avaliado como o mais democrático.

No modelo de déficit, a comunicação é unilateral, num cenário em que apenas o


cientista/especialista é o emissor, enquanto o público é mero receptor passivo. No
modelo contextual, há uma evolução mínima, apenas teórica, no que se refere ao caráter
dialógico: embora o cientista ainda seja o emissor, o público receptor já é reconhecido
como portador de saberes culturais e experiências prévias dignos de valor. Já no modelo
da experiência leiga, admite-se que o cientista emissor já não é o único detentor do
saber verdadeiro, visto que o público receptor também dispõe de saberes locais a serem
considerados – e, portanto, não é de todo leigo. Critica-se, no entanto, o fato de que a
especialidade leiga pode ser superestimada, em detrimento do conhecimento obtido
pelo método científico. Por fim, o modelo da participação pública costuma ser avaliado
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como o mais democrático, uma vez que, de acordo com suas premissas, o cientista deve
dialogar com o público, por meio de fóruns, debates e, atualmente, das novas
tecnologias de informação e comunicação.

A divulgação científica, por sua vez, não veicula apenas conteúdos científicos,
mas sim, cultura científica. Segundo Vogt (2003), a cultura científica contém, em seu
escopo:

[...] a ideia de que o processo que envolve o desenvolvimento científico é um


processo cultural, quer seja ele considerado do ponto de vista de sua
produção, de sua difusão entre pares ou na dinâmica social do ensino e da
educação, ou ainda do ponto de vista de sua divulgação na sociedade, como
um todo, para o estabelecimento das relações críticas necessárias entre o
cidadão e os valores culturais, de seu tempo e de sua história. (VOGT, 2003,
p. II).

Ainda segundo Vogt (2003, p. V), a dinâmica da cultura científica poderia ser
mais bem compreendida se visualizada na forma de uma espiral:

Ilustração 2: A espiral da cultura científica, segundo Vogt (2003).

Assim, para que possa contribuir, de fato, para a circulação social da ciência
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elevada ao âmbito cultural – isto é, a cultura científica – a divulgação científica pode


beneficiar-se de algumas das principais perspectivas preconizadas pela História Cultural
das Ciências. Segundo Barros (2003, p. 146), “comunicar’ é produzir cultura”, logo, a
divulgação científica torna-se um exemplo privilegiado de produtora de representações
que, por sua vez, podem inspirar práticas sociais.

De certo modo, os meios de comunicação dedicados à divulgação científica


(como revistas especializadas, suplementos de jornais, websites etc.) dispõem da
oportunidade ímpar de registrar a história das ciências quase que simultaneamente à sua
produção. De acordo com Mangini (2015, p. 121), “em Ciência, o crédito vai para o
cientista que primeiro apresenta uma ideia para o mundo, e não necessariamente para
aquele que a teve primeiro. A publicação científica, nesse sentido, tem a função de
registro histórico”.

Ao cuidar de abordar a ciência devidamente historicizada, a divulgação


científica eleva ainda mais o seu potencial de contribuir para a ampliação da consciência
reflexiva e crítica da sociedade, que nela dispõe de um importante instrumento de
educação não formal, referente não apenas à educação científica, mas cidadã.

É nesse contexto que a história da ciência pode ser um instrumento


importante (...), já que professores, jornalistas e comunicadores científicos, ao
utilizarem fontes adequadas e perspectivas historiográficas atualizadas,
podem promover uma visão mais crítica em relação à ciência e à construção
do conhecimento científico e, consequentemente, evitar uma imagem
deformada da ciência, dos cientistas e do seu papel na sociedade.
(CHINELLATO, 2016, p. 12)

Além dos cuidados com as fontes, os profissionais da área de divulgação


científica devem atentar para a abordagem histórica adotada, com o intuito de evitar
perpetuar a circulação das já famigeradas “características que reforçam visões
distorcidas da atividade científica, tais como: a ideia de ‘experimentos cruciais’,
cientistas como ‘gênios’, e o desenvolvimento linear e acumulativo da ciência”
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(SCHMIEDECKE e PORTO, 2015, p. 627), observadas por esses autores em episódios


de séries televisivas de divulgação científica. Nessa perspectiva, a História Cultural das
Ciências, ao propor a compreensão do científico como produto sociocultural, confere à
divulgação científica um grande potencial reflexivo e de ruptura com uma concepção
tradicional sobre o desenvolvimento das ciências.

A própria produção textual da divulgação científica apresenta-se como uma


importante fonte documental histórica acerca de nossa percepção sobre ciências. Se
pensarmos no modelo de déficit, exposto acima, como proposta de divulgação científica,
podemos nos questionar o quanto o mesmo representa uma determinada visão sobre a
prática científica e uma suposta hierarquia científico-cultural – ambas produtos
históricos. Discutir a divulgação científica enquanto objeto historiográfico pode se
apresentar como um relevante caminho para refletirmos sobre a hegemonia científica
vivenciada em nossa sociedade, bem como a respeito de possíveis estratégias de
transformação desse cenário.

Um possível meio de se atenuar as referidas distorções seria o estabelecimento e


a manutenção de um diálogo constante entre todos os atores que deveriam atuar, unidos,
em prol da divulgação científica – como também proposto na citada espiral da cultura
científica: além dos comunicadores (como os jornalistas, de formação ou de ofício),
acadêmicos e cientistas, também os historiadores das ciências, de preferência os afeitos
à vertente cultural dessa historiografia. Diversos outros agentes poderiam ser incluídos
nesse processo colaborativo – em atenção ao que pressupõe o modelo de participação
pública, considerado o mais democrático dentre os modelos de comunicação pública da
ciência e da tecnologia mencionados anteriormente.

Como bem afirmou Candotti (2002, p. 17): “A divulgação científica não é


apenas página de literatura, mas exercício de reflexão sobre os impactos sociais e
culturais de nossas descobertas”.
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Ilustração 3: Nuvem de palavras alusivas à História Cultural das Ciências e à


Divulgação Científica

Considerações Finais

As possíveis relações entre a História Cultural das Ciências e a divulgação


científica, enquanto prática e objeto não apenas veiculador, mas também produtor de
representações e sentidos, são portadoras de imensurável potencial social no que se
refere à comunicação pública das ciências, histórica e criticamente problematizada.
Consideramos, em ressonância com Candotti (2002), que a circulação das ideias e dos
resultados de pesquisas científicas é fundamental não apenas para avaliar o seu impacto
social e cultural, mas também para recuperar, por meio do livre debate e confronto de
ideias – o salutar exercício da controvérsia –, vínculos e valores culturais que a
descoberta do novo rompe ou fere. A reflexão relativa à produção de conhecimentos
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enquanto prática sociocultural potencializa tanto a educação quanto a divulgação


científica, buscando a promoção da criticidade em ambas. Eis o poder das referidas
relações: contribuir, significativamente, para a compreensão histórica e a evolução
social da ciência e da cultura.

Fontes das imagens

Ilustração 1: http://agendapesquisa.com.br/wp-content/uploads/2016/02/ciencia.jpg
Ilustração 2: VOGT, Carlos. A espiral da cultura científica. Revista ComCiência,
SBPC/Labjor, n. 45, jul.2003.
Ilustração 3: Elaborada pelas autoras.

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