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A alma do imperador
Brandon Sanderson
Sumário
Prólogo
Dia dois
Dia três
Dia cinco
Dia doze
Dia dezessete
Dia trinta
Dia quarenta e dois
Dia cinquenta e oito
Dia cinquenta e nove
Dia setenta
Dia setenta e seis
Dia oitenta e cinco
Dia noventa e sete
Dia noventa e oito
Epílogo: Dia cento e um
Nota do autor
A cidade de Elantris e outros reinos da série ficam localizados no
planeta Sel, no Sistema Selish, de uma galáxia ainda não identifica-
da da Cosmere.
Império da Rosa está localizado pouco acima de Teod, após as montanhas.
Assinalado como “Bárbaros da Rosa”, pois este é um mapa da visão de
mundo do Império Fjordênico.
Prólogo
Gaotona passou os dedos pela tela grossa, inspecionando uma das maiores
obras de arte que já tinha visto. Infelizmente, era uma fraude.
“A mulher é perigosa.” Vozes sibiladas vieram de trás dele. “O que ela
faz é uma abominação.”
Ele inclinou a tela em direção à luz laranja-avermelhada da lareira e es-
treitou os olhos. Na sua idade, já não tinha a visão como antes. Que preci-
são, pensou enquanto estudava as pinceladas, sentindo as camadas de óleos
densos. Exatamente iguais ao original.
Ele nunca teria percebido os erros por conta própria. Uma flor milíme-
tros fora de posição. Uma lua que estava um pouco baixa demais no céu.
Os especialistas levaram dias de inspeção detalhada para encontrar as falhas.
“Ela é uma das melhores forjadoras vivas.” As vozes pertenciam aos ar-
biters{1}, colegas de Gaotona, os burocratas mais importantes do império.
“Ela tem uma reputação tão grande quanto o império. Precisamos executá-
la como um exemplo.”
“Não.” Frava, líder dos arbiters, tinha uma voz aguda e anasalada. “Ela
é uma ferramenta valiosa. Essa mulher pode nos salvar. Devemos usá-la.”
Por quê? Gaotona tentava compreender. Por que alguém capaz de pro-
duzir uma arte tão majestosa se voltaria para a falsificação? Por que não cri-
ar pinturas originais? Por que não ser um verdadeiro artista? Tenho que en-
tender.
“Sim”, continuou Frava, “a mulher é uma ladra e pratica uma arte hedi-
onda. Mas eu posso controlá-la, e graças ao seu talento seremos capazes de
consertar essa bagunça em que estamos metidos.” Os outros murmuraram
preocupados e expressaram objeções.
A mulher de que falavam, Wan ShaiLu, era mais do que apenas uma vi-
garista. Muito mais. Ela podia mudar a natureza da própria realidade. O
que levantava outras questões: por que estava se preocupando em aprender
a pintar? A arte comum não era um tanto mundana comparada aos talen-
tos místicos que possuía?
Muitas perguntas. Gaotona, sentado junto à lareira, voltou seu olhar
para a origem do burburinho. Os outros, formando um círculo de conspi-
radores, estavam ao redor da mesa de Frava, suas vestes longas e coloridas
rebrilhando à luz do fogo.
“Concordo com Frava”, disse Gaotona.
Os outros olharam para ele. Suas carrancas indicavam que pouco se im-
portavam com o que dizia, embora suas posturas demostrassem algo dife-
rente. O respeito que tinham por Gaotona podia não ser mais o mesmo,
mas seus feitos ainda eram relembrados.
“Tragam a falsificadora”, ordenou Gaotona, se levantando. “Quero ou-
vir o que tem a dizer. Suspeito que será mais difícil de controlar do que
Frava supõe, mas não temos escolha. Ou usamos as habilidades dessa mu-
lher, ou abdicamos do controle do império.”
Os murmúrios cessaram. Quantos anos se passaram desde que Frava e
Gaotona concordaram pela última vez, ainda mais em algo tão divisivo
quanto usar um forjador?
“Que assim seja”, concluiu Frava calmamente.
Dia dois
E Shai trabalhou.
Começou investigando a vida do imperador. Poucas pessoas entendiam
o quanto a falsificação era baseada em estudo e pesquisa. Era uma arte que
qualquer homem ou mulher poderia aprender. Exigia apenas mão firme e
atenção aos detalhes.
Isso e a disposição de passar semanas, meses e até anos preparando o ca-
rimbo ideal.
Mas ela não tinha anos. Sentia-se pressionada ao ler biografia após bio-
grafia, e muitas vezes ficava acordada até tarde fazendo anotações. Não
achava que poderia fazer o que queriam. Criar uma falsificação crível da al-
ma de outra pessoa, ainda mais em tão pouco tempo, não era possível. In-
felizmente, tinha que manter a farsa enquanto planejava uma fuga.
Não deixavam que saísse do quarto. Era obrigada a usar um penico
quando a natureza exigia e, para os banhos, eram enviados uma banheira
com água morna e panos. Estava sob supervisão o tempo todo, até enquan-
to se banhava.
O selador de sangue vinha todas as manhãs para renovar sua marca na
porta. A cada vez, o ato exigia um pouco do sangue dela. Em pouco tempo,
os braços ficaram cobertos de cortes rasos.
Também Gaotona a visitava sempre. O velho arbiter a estudava en-
quanto ela lia, observando-a com aqueles olhos que julgavam, mas não odi-
avam.
Enquanto traçava seus planos, Shai chegou a uma conclusão: para ser
livre, teria que manipular aquele homem de algum jeito.
Dia doze
Tenho que fazer isso, pensou Shai enquanto o selador de sangue cortava
seu braço. Hoje. Poderia partir hoje.
Escondida na outra manga, ela levava uma tira de papel feita para imi-
tar as que o selador de sangue frequentemente trazia nas manhãs em que
chegava cedo.
Fazia dois dias que ela tinha visto um pouco de cera em uma delas.
Eram cartas. Então ela percebeu. Tinha estado errada sobre esse homem o
tempo todo.
“Boas notícias?”, indagou ela enquanto ele imprimia o selo com seu
sangue.
O homem de lábios brancos lançou um olhar de desprezo para ela.
“De casa”, insistiu Shai. “Da mulher para quem você escreve, em Dzha-
mar. Você recebeu uma carta dela hoje? O correio chega de manhã no palá-
cio. Batem na porta, entregam uma carta.”
É isso que te faz acordar, ela adicionou mentalmente. Por isso é pontual
nesses dias.
“Deve estar com muita saudade para não conseguir suportar deixar a
carta no seu quarto.”
O homem baixou o braço e agarrou Shai pela blusa.
“Deixe-a em paz, bruxa”, sussurrou ele. “Você, deixe-a em paz! Nada de
truques ou magia!”
Ele era mais jovem do que ela tinha imaginado. Esse era um erro co-
mum com os dzhamarianos. Seus cabelos grisalhos e sua pele branca enga-
navam os olhos dos estrangeiros. Shai devia ter percebido. Ele era pouco
mais do que um rapaz.
Ela apertou os lábios.
“Você fala dos meus truques e magia enquanto segura um selo mancha-
do com o meu sangue? Você é quem ameaça enviar esqueletos para me per-
seguir, meu amigo. Tudo o que eu posso fazer é polir uma mesa de vez em
quando.”
“Você... você... Ah!”
O jovem ergueu as mãos bruscamente e começou a selar a porta.
Os guardas observavam com diversão indiferente e desaprovação. As
palavras de Shai eram um lembrete calculado de que ela era inofensiva, en-
quanto o selador de sangue era verdadeiramente antinatural. Os guardas
haviam passado quase três meses vendo-a se comportar como uma erudita
amável enquanto aquele homem tirava seu sangue e o usava para horrores
arcanos.
Tenho que deixar cair o papel, pensou Shai, e abaixou a manga para
que seu papel falsificado caísse quando os guardas se virassem.
Isso iniciaria seu plano, sua fuga...
Mas meu trabalho ainda não está terminado... A alma do imperador.
Ela hesitou. Cometeu o erro de hesitar.
A porta se fechou.
A oportunidade se foi.
Atordoada, Shai se dirigiu à cama e se sentou na borda, com a carta fal-
sificada ainda escondida na manga. Por que ela tinha hesitado? Seus instin-
tos de autopreservação estavam tão fracos?
Posso esperar um pouco mais, disse a si mesma. Até que a Marca de Es-
sência de Ashravan esteja pronta.
Ela havia dito isso a si mesma por dias. Semanas, na verdade. A cada
dia que se aproximava do prazo, era outra oportunidade para que Frava
agisse. A arbiter continuou indo e vindo com desculpas para levar os escri-
tos de Shai e tê-los analisados. Em breve, suas anotações chegariam ao pon-
to em que o outro Forjador não teria que se esforçar muito para terminar o
trabalho.
Ou pelo menos, é o que ele pensaria. Quanto mais Shai progredia, mais
percebia o quão impossível era aquele projeto. E mais ela desejava que fun-
cionasse de todo jeito.
Pegou seu livro sobre a vida do imperador e logo se viu revendo seus
anos de juventude. A ideia de que Ashravan não voltaria a viver, que todo o
trabalho de Shai fosse apenas uma distração enquanto ela tentava escapar...
Esses pensamentos causavam dor física nela.
Noites, pensou Shai. Você desenvolveu afeição por ele. Está começando
a vê-lo como Gaotona vê! Não deveria se sentir assim. Nunca o conheceu
de verdade. Além disso, ele era uma pessoa desprezível.
Mas nem sempre fora. Não, na verdade, ele nunca fora de fato despre-
zível. Era muito mais complexo do que isso. Todas as pessoas eram. Ela po-
dia entender, podia ver...
“Noites!”, exclamou, se levantando e se afastando o livro. Precisava lim-
par a mente.
Quando Gaotona entrou no quarto seis horas depois, Shai estava pres-
sionando um carimbo contra a parede do fundo. O idoso abriu a porta, en-
trou e estacou quando a parede foi inundada por variadas cores.
Espirais de videiras jorravam do selo como jatos de tinta. Verde, escar-
late, âmbar. A pintura crescia como algo vivo, folhas brotavam dos galhos,
cachos de frutas expandiam em explosões suculentas. Os desenhos ficavam
mais densos, bordas douradas surgindo do nada e correndo como riachos,
margens de folhas, tudo refletindo a luz.
O mural se expandiu, cada centímetro impregnado de uma ilusão de
movimento. Vinhas curvadas, espinhos inesperados surgindo por trás dos
galhos. Gaotona soltou um suspiro de admiração e se aproximou de Shai.
Atrás dele, Zu entrou na sala e os outros dois guardas saíram, fechando a
porta.
Gaotona estendeu a mão e tocou a parede, mas é claro que a pintura es-
tava seca. Pelo que sabia, a parede havia sido pintada antes há anos. Gaoto-
na se ajoelhou e examinou os dois selos que Shai havia colocado na base da
pintura. Apenas o terceiro, colocado acima, havia disparado a transforma-
ção: os primeiros selos eram notas sobre como a imagem seria criada. Dire-
trizes, uma revisão da história, instruções.
“Como?”, questionou Gaotona.
“Um dos strikers escoltou Atsuko de JinDo durante sua visita ao Palá-
cio Rosa”, respondeu ela. “Atsuko ficou doente e foi obrigada a permanecer
em seu quarto por três semanas. E isso aconteceu a apenas um andar aci-
ma.”
“E sua Falsificação o coloca, em vez disso, neste quarto?”
“Sim. Isso foi antes dos danos causados pela goteira no teto no ano pas-
sado, então é plausível que ele tenha sido alojado aqui. A parede se lembra
de Atsuko passando alguns dias muito fraco para sair, mas com forças sufi-
cientes para pintar. Um pouco a cada dia, um desenho crescente de videi-
ras, depois folhas e frutas. Para passar o tempo.”
“Isso não deveria funcionar”, rebateu Gaotona. “Essa Falsificação é
muito tênue. Você mudou demais.”
“Não”, argumentou ela. “Está dentro da linha... essa linha em que a
maior beleza está.”
Ela guardou o carimbo. Mal se lembrava das últimas seis horas. Tinha
ficado absorta no frenesi da criação.
“Mesmo assim”, disse Gaotona.
“Vai funcionar. Se você fosse a parede, o que escolheria ser? Deprimida
e chata ou uma explosão viva de pintura?”
“As paredes não podem pensar!”
“Isso não as impede de se importar.”
Gaotona balançou a cabeça, murmurando sobre superstições.
“Quanto tempo?”
“Para criar este carimbo? Estive esculpindo aqui e ali por cerca de um
mês. Era a última coisa que eu queria fazer para o quarto.”
“O artista era JinDo”, prosseguiu ele. “Talvez, como você é da mesma
terra... Mas não! Isso é pensar de acordo com sua superstição.”
Gaotona continuou balançando a cabeça de um lado para o outro, ten-
tando entender por que a pintura havia funcionado, ainda que fosse óbvio
para Shai que funcionaria
“Os jindoenses e o meu povo não são a mesma coisa, aliás”, acrescentou
Shai, irritada. “Pode ter havido alguma conexão no passado distante, mas
agora não temos nada a ver com eles.”
Como eram os Grands. Apenas porque as pessoas tinham traços seme-
lhantes, já presumiam que eram todos os mesmos.
Gaotona observou o quarto e seus belos móveis, que haviam sido escul-
pidos e polidos. O chão de mármore com incrustações de prata, a lareira
crepitante e o pequeno abajur. Um elegante tapete, que havia sido uma col-
cha cheia de buracos, cobria o chão. O vitral da janela cintilava na parede à
direita, iluminando a linda pintura.
A única coisa que ainda mantinha sua forma original era a porta, espes-
sa, mas comum. Shai não poderia falsifica-la, pelo menos não com aquele
selo de sangue.
“Você está ciente de que agora tem o quarto mais requintado do palá-
cio?”, indagou Gaotona.
“Não acredito”, respondeu Shai, franzindo o nariz. “Com certeza, os
aposentos do imperador são os maiores.”
“Sim, maiores. Mas mais bonitos, não.”
Gaotona se ajoelhou ao lado da pintura e examinou os selos na base.
“Você incluiu explicações detalhadas de como isso foi pintado.”
“Para criar uma Falsificação realista, você precisa ter pelo menos alguma
habilidade técnica naquilo que está imitando.”
“Então, você poderia ter pintado esta parede você mesma.”
“Eu não tenho tintas.”
“Mas poderia ter pedido. Teria providenciado. Em vez disso, você criou
uma Falsificação.”
“Isso é o que eu sou”, redarguiu ela, se irritando de novo.
“Isso é o que você escolheu ser. Se uma parede pode desejar ser um mu-
ral, Wan ShaiLu, então você poderia desejar se tornar uma grande pintora.”
Ela soltou bruscamente o carimbo na mesa e inspirou várias vezes.
“Você tem personalidade”, disse Gaotona. “Como ele. De fato, sei exa-
tamente como você se sente agora, porque você me fez sentir assim várias
vezes. Me pergunto se essa coisa que você faz poderia ser uma ferramenta
para ajudar as pessoas a desenvolverem empatia. Inscrever suas emoções em
um selo e depois permitir que os outros sintam como é ser você...”
“Isso soa maravilhoso”, disse Shai. “Quem sabe se Forjar almas não fos-
se uma ofensa tão terrível contra a natureza...”
“Quem sabe.”
“Se você pode ler esses selos, é porque se tornou muito bom nisso”,
mudou de assunto deliberadamente.
“A verdade...”
Shai ergueu a cabeça, contendo sua raiva após o acesso inicial. O que
era isso?
Gaotona vasculhou envergonhado o profundo bolso de sua túnica e ti-
rou uma caixa de madeira. A caixa onde ela guardava seus tesouros, as suas
cinco Marcas de Essência. Essas revisões de sua alma poderiam transformá-
la, em tempos de necessidade, em alguém que ela poderia ter sido.
Shai deu um passo à frente, mas quando Gaotona abriu a caixa, desco-
briu que os selos não estavam lá.
“Lamento por isso”, começou o ancião, “mas entrega-los a você agora
seria um pouco estúpido da minha parte. Aparentemente, qualquer um de-
les poderia ter te libertado da prisão em um instante.”
“Na verdade, apenas dois deles poderiam fazer isso”, respondeu Shai
com amargura, cerrando as mãos.
Esses carimbos de alma representavam mais de oito anos de trabalho da
sua vida. O primeiro deles ela começara no dia em que concluiu seu apren-
dizado.
“Hmm, sim”, concordou. Dentro da caixa havia placas de metal inscri-
tas com os selos menores que compunham os planos das revisões de sua al-
ma. “Este aqui, certo?” Ele levantou uma das placas. Shaizan. “Que tradu-
zido significa... Shai do Punho? Este faria de você uma guerreira, se você se
selasse?”
“Sim”, firmou Shai.
Então ele estava estudando suas Marcas de Essência, daí sua habilidade
em ler seus selos.
“Eu entendo apenas um décimo do que está inscrito aqui”, confessou
Gaotona. “O que eu encontro é impressionante. Com certeza, deve ter te
levado anos de trabalho.”
“Eles são valiosos para mim”, admitiu Shai, forçando-se a sentar na me-
sa e não olhar para as placas.
Se ela pudesse escapar com elas, poderia criar um novo carimbo facil-
mente. Ainda levaria semanas, mas a maior parte de seu trabalho não seria
perdida. Se, em vez disso, destruíssem essas placas...
Gaotona sentou-se em sua cadeira habitual, examinando as placas com
curiosidade. De outra pessoa, ela teria sentido uma ameaça implícita. Veja
o que tenho em mãos, veja o que poderia fazer com você. Mas, de Gaoto-
na, não. O homem estava genuinamente curioso.
Ou não estava? Como acontecia com frequência a ela, Shai não conse-
guia reprimir seus instintos. Por melhor que fosse, sempre haveria alguém
melhor. Como seu tio Won a havia avisado. Será que Gaotona a havia en-
ganado esse tempo todo? Ela tinha uma forte sensação de que deveria con-
fiar na avaliação do ancião. Mas, se estivesse errada, isso poderia ser um de-
sastre.
Poderia ser um desastre de qualquer maneira, pensou. Você já deveria
ter fugido há dias.
“Entendo o carimbo de se tornar uma soldado”, continuou Gaotona,
afastando uma das placas. “E esta também. Habitante das florestas e especi-
alista em sobrevivência. Parece extremamente versátil. Impressionante. E
aqui temos uma erudita. Mas por quê? Você já é uma.”
“Nenhuma mulher pode saber tudo”, explicou Shai. “O tempo de estu-
do é limitado. Quando me marco com a Marca de Essência, de repente
posso falar uma dúzia de idiomas, desde Fen a Mulla’dil e até alguns idio-
mas Sycla. Eu conheço dezenas de culturas diferentes e sei como me com-
portar nelas. Eu entendo de ciências, matemática e das principais facções
políticas do mundo.”
“Ah”, suspirou Gaotona.
Me dê eles, pensou.
“Mas e este?”, perguntou Gaotona. “Mendiga? Por que você iria querer
parecer faminta? E, pelo que vejo, você perderia quase todo o cabelo e teria
cicatrizes por toda a pele.”
“Isso permite que mude minha aparência”, revelou Shai. “De forma
drástica. É útil.”
Ela não mencionou que, com essa aparência, conhecia as ruas e como
sobreviver nas áreas mais pobres de qualquer cidade. Que sem o selo não
era especialista em arrombar fechaduras, mas com ele era incomparável.
Com sua ajuda, provavelmente conseguiria escapar pela pequena janela,
já que esse selo reescrevia seu passado para dar a ela anos de experiência co-
mo contorcionista, e descer os cinco andares em direção à liberdade.
“Deveria ter percebido”, disse Gaotona. Ele levantou a última placa.
“Então só nos resta esta, a mais enigmática de todas.”
Shai não disse nada.
“Cozinheira”, continuou. “Trabalho agrícola, costura. Outro pseudôni-
mo, suponho. Para imitar uma pessoa mais simples?”
“Sim.”
Gaotona assentiu, baixando a placa.
Sinceridade. Ele tem que ver sinceridade. Não posso falsificar isso.
“Não”, disse Shai, suspirando.
Ele a fitou.
“É minha saída”, confessou. “Nunca vou usá-la. Mas está aí, caso eu
queira parar algum dia.”
“Sua saída?”
“Se algum dia eu usar, vai escrever por cima dos meus anos como Forja-
dora. Tudo. Eu vou esquecer como fazer o carimbo mais simples, vou até
mesmo esquecer que fui uma aprendiz Forjadora. Vou me tornar alguém
comum.”
“E você quer isso?”
“Não.”
Uma pausa.
“Sim. Talvez. Uma parte de mim quer.”
Sinceridade. Como era difícil. Às vezes, era o único caminho.
Shai sonhava com uma vida simples. Da mesma maneira que alguém
que está na beira de um precipício se pergunta como seria pular. A tentação
sempre estava lá, mesmo que fosse ridícula.
Uma vida normal. Sem se esconder, sem mentiras. Shai adorava o que
fazia. Ela amava a emoção, as realizações, o deslumbramento. Mas às ve-
zes... presa em uma cela ou correndo para salvar sua vida... às vezes, ela so-
nhava com algo diferente.
“Seus tios?”, perguntou. “Tio Won, tia Sol, eles fazem parte dessa revi-
são. Eu li aqui dentro.”
“São falsos”, sussurrou Shai.
“Mas você os menciona o tempo todo.”
Ela apertou os olhos com força.
“Suspeito”, insistiu o grand, “que uma vida cheia de mentiras faz com
que realidade e falsidade se misturem. Mas se você usasse esse carimbo, eu
não acredito que você esqueceria tudo. Como você se manteria enganada?”
“Seria a maior Falsificação de todas”, respondeu Shai. “Uma que pre-
tende enganar até a mim mesma. Lá dentro está escrita a crença de que sem
esse selo, aplicado todas as manhãs, eu morreria. Inclui uma história de do-
ença, de visitar um resselador, como vocês os chamam. Um curandeiro que
trabalha com selos de alma. Meu falso eu receberia deles um remédio que
teria que ser aplicado todas as manhãs. Tia Sol e tio Won me enviariam
cartas, isso faz parte da farsa para me enganar. Eu já as escrevi. São cente-
nas, que, antes de aplicar a Marca de Essência, irei encomendar a um servi-
ço de entrega que as envie periodicamente em troca de uma boa quantia de
dinheiro.”
“Mas e se você tentar visitá-los?”, perguntou Gaotona. “Para investigar
sua infância...”
“Tudo está na placa. Eu ficarei com medo de viajar. Há alguma verdade
nisso, já que, de fato, quando jovem eu tinha medo quando saía da minha
aldeia. Quando esse selo estiver colocado, eu vou me manter afastada das
cidades. Vou acreditar que a viagem para visitar meus parentes é muito pe-
rigosa. Mas não importa. Eu nunca vou usá-lo.”
Esse selo a destruiria. Esqueceria seus últimos vinte anos, voltaria a
quando tinha apenas oito e começava a pensar em se tornar uma Forjadora.
Viraria uma pessoa completamente diferente. Nenhuma das outras
Marcas de Essência fazia isso: elas reescreviam partes de seu passado, mas
preservavam o conhecimento de quem ela realmente era. Não era assim
com essa última. Essa seria definitiva. E isso a assustava.
“É muito trabalho para algo que você nunca usará”, confrontou Gaoto-
na.
“Às vezes a vida é assim.”
Gaotona negou com a cabeça.
“Fui contratada para destruir o quadro”, explodiu Shai.
Ela não tinha certeza do que a tinha levado a dizer isso. Ela precisava
ser honesta com Gaotona, porque era a única maneira de seu plano funcio-
nar, mas ele não precisava saber dessa parte. Ou precisava?
Gaotona levantou a cabeça.
“ShuXen me contratou para destruir a obra”, confessou ela. “Foi por is-
so que queimei sua obra-prima em vez de apenas retirá-la da galeria.”
“ShuXen? Mas ele é o artista original! Por que ele iria contratá-la para
destruir uma de suas próprias obras?”
“Porque ele odeia o Império”, respondeu Shai. “Ele pintou esse quadro
para uma mulher que amava. Os filhos dela deram ao Império Rosa como
presente. ShuXen é velho agora, cego, mal pode se mover. Ele não queria ir
para o túmulo sabendo que uma de suas obras glorificava o Império. Ele
me implorou para queimar.”
Gaotona parecia perplexo. Ele a olhava como se estivesse tentando en-
xergar através de sua alma. Shai não entendia por que o ancião estava se es-
forçando tanto. Ela já tinha desnudado sua alma o suficiente com essa con-
versa.
“Um mestre de tal calibre é difícil de imitar”, disse Shai, “especialmente
quando não se tem o original para copiar. Se pensar bem, vai entender que
eu precisava da ajuda dele para criar essas falsificações. Ele me deu acesso
aos seus estudos e conceitos. Explicou como a pintou. Ele me guiou pince-
lada por pincelada.”
“E por que você não simplesmente devolveu o original a ele?”, pergun-
tou Gaotona.
“Ele está morrendo”, respondeu ela. “Possuir um objeto não faz mais
sentido para ele. Ele fez essa pintura para uma amante. Agora ela não existe
mais, então ele considerou que a tela também não deveria existir.”
“Um tesouro incalculável”, retrucou Gaotona. “Perdido, por causa de
um orgulho tolo.”
“Era a obra dele!”
“Já não era mais”, replicou o arbiter. “Pertencia a todos que a contem-
plavam. Você não deveria ter atendido ao pedido dele. Destruir uma obra
de arte nunca é certo.” Hesitou. “Mas, ainda assim, posso entender. O que
você fez tinha nobreza. Seu objetivo era o Cetro Lunar. Se expor para des-
truir aquela tela foi perigoso.”
“ShuXen me ensinou a pintar quando eu era jovem”, explicou ela.
“Não podia negar o pedido dele.”
Gaotona não parecia concordar, mas entendia. Noites, ela se sentia ex-
posta.
Isso é importante, pensou. E talvez...
Mas ele não devolveu as placas. Shai não esperava que o fizesse, não tão
cedo. Não até que eles tivessem concluído seu acordo, um acordo que ela
provavelmente nunca veria o final, a menos que escapasse.
Eles trabalharam com o último grupo de novos carimbos. Cada um de-
les pegou por pelo menos um minuto, como ela esperava. Já tinha a visão, a
ideia da alma final. Quando terminou o sexto carimbo do dia, Gaotona es-
perou pelo próximo.
“Está feito”, encerrou Shai.
“Terminou por hoje?”
“Está terminado para sempre”, respondeu enquanto guardava o último
carimbo.
“Você terminou?”, perguntou Gaotona, levantando-se da cadeira.
“Quase um mês antes! É...”
“Não terminei o trabalho. Agora vem a parte mais difícil. Tenho que
esculpir essas centenas de selos com minúcia de detalhes, juntando-os para
criar um carimbo único. O que vinha fazendo é como preparar todas as
tintas, criar as cores e esboçar as figuras. Agora tenho que montar tudo. Da
última vez que fiz isso, levei quase cinco meses.”
“E você só tem vinte e quatro dias.”
“E só tenho vinte e quatro dias”, repetiu Shai, mas sentiu imediatamen-
te uma pontada de culpa. Ela precisava escapar. Logo. Não podia esperar
terminar o projeto.
“Então, vou deixar você trabalhar”, disse Gaotona, levantando a man-
ga.
Dia oitenta e cinco
Ir
mão,
Es
tou qua
se ter
mi-
nan
do meu tra
ba
lho
aqui, e o di
nhei
ro que
ga
nhei ri
va
li
za
rá até
mes
mo com o de Aza
lec
pro
vín
ci
as do sul. A
pri
si
onei
ra que es
tou
guar
dan
do mal me
re
ce o
es
for
ço, mas quem sou eu
pa
ra ques
ti
onar os ra-
ci
ocí
ni
os das pes
so
as
que me pa
gam tan
to di-
nhei
ro?
Vol
ta
rei em bre
ve.
Or
gu
lho-me em di
zer que
mi
nha ou
tra mis
são
Iden
ti
fi
quei vá
ri
os
guer
rei
ros ha
bi
li
do
sos
e co
le
tei amos
tras su-
fi
ci
en
tes de
les. Ca
be-
não sen
ti
rão fal
ta.
Te
nho con
fi
an
ça de que em
bre
ve te
re
mos nos
sos
guar
das pes
so
ais.
Gaotona ouviu a garota partir, mas não se virou para vê-la fugir. Em vez
disso, fitou a porta que levava aos aposentos do imperador. Dois guardas
confusos e o caminho para... o quê?
Para o futuro do Império Rosa.
Seremos governados por alguém que não está verdadeiramente vivo,
pensou Gaotona. Esse é o resultado de nossos esforços repulsivos.
Respirou fundo, passou pelos guardas e abriu as portas para entrar e
contemplar a criatura que havia trazido ao mundo.
Apenas... por favor, que não seja um monstro.
Shai caminhava rapidamente pelos corredores do palácio, segurando a caixa
de carimbos. Arrancou a blusa com botões, revelando uma camisa de algo-
dão preta justa, e guardou a caixa no bolso. Manteve a saia e as calças por
baixo. Não era muito diferente das roupas com as quais havia sido treinada.
Os criados corriam ao seu redor. Sabiam, apenas pela sua atitude, que
precisavam se afastar. De repente, Shai se sentiu mais confiante do que ha-
via se sentido em anos.
Havia recuperado sua alma. Inteira.
Pegou uma das suas Marcas de Essência enquanto caminhava. Molhou-
a com pinceladas rápidas de tinta e voltou a guardar a caixa no bolso de sua
camisa. Selou seu bíceps direito e o carimbo pegou, reescrevendo sua histó-
ria, suas memórias, sua experiência de vida.
Por uma fração de segundo, ela se lembrou das duas histórias. Ela se
lembrou dos dois anos que passou presa, planejando, criando a Marca de
Essência, de toda uma vida como Forjadora.
E, ao mesmo tempo, ela se lembrou de ter passado os últimos quinze
anos com a tribo Teullu. Eles a adotaram e treinaram nas artes marciais.
Dois lugares ao mesmo tempo, duas vidas ao mesmo tempo.
Então, a primeira se desvaneceu e Shai se tornou Shaizan, o nome que
os Teullu deram a ela. Seu corpo ficou mais magro, mais duro. O corpo de
uma guerreira. Tirou os óculos. Seus olhos já haviam se curado há muito
tempo e ela não precisava mais deles.
Acessar o treinamento dos Teullu tinha sido difícil, porque a tribo não
gostava de estrangeiros. Quase a mataram uma dúzia de vezes durante seu
ano de formação. Mas ela obtivera sucesso.
Perdeu todo conhecimento sobre como criar selos, todo senso de incli-
nação para a erudição. Ainda era ela mesma e se lembrava de seu passado
recente: sua captura, sua reclusão forçada naquela cela. Estava ciente, logi-
camente, do que acabara de fazer com o selo em seu braço, e sabia que a vi-
da que estava lembrando era falsa.
Mas não se sentia assim. Enquanto o selo queimava seu braço, ela se
tornou a versão de si mesma que teria existido se tivesse sido adotada por
uma cultura severa de guerreiros e tivesse vivido entre eles por mais de uma
década.
Tirou os sapatos, seu cabelo encurtou e uma cicatriz atravessou seu ros-
to desde o nariz até a bochecha direita. Caminhava como uma guerreira,
observando tudo em seu caminho.
Chegou à área dos criados do palácio, logo à frente dos estábulos, dei-
xando a Galeria Imperial à esquerda.
Uma porta se abriu diante dela. Zu, alto e de lábios grossos, atravessou
a passagem. Ele tinha um corte na testa — o sangue escorria pela banda-
gem que usava — e suas roupas estavam rasgadas da queda.
Seus olhos eram uma tempestade de raiva. Ele fez uma careta ao vê-la.
“Você está perdida. O selador de sangue nos trouxe direto até você.
Vou aproveitar...”
Ele foi interrompido quando Shaizan, quase um borrão, avançou em
sua direção e bateu em seu pulso com a ponta da mão, fraturando-o e dei-
xando-o sem forças para segurar a espada entre os dedos. Então ele ergueu a
mão e desceu-a até a garganta dela com um golpe forte. Então, ela cerrou o
punho e bateu direto no peito dele. Seis costelas foram quebradas.
Zu cambaleou para trás, ofegante e com os olhos arregalados de cho-
que. Sua espada caiu no chão. Shaizan passou por ele, puxando a adaga do
seu cinto e rapidamente cortou a amarra da sua capa.
Zu caiu no chão, deixando a capa nas mãos dela.
Shai podia ter dito alguma coisa a Zu, mas Shaizan não tinha paciência
para comentários maliciosos ou provocações. Um guerreiro continuava a se
mover, como um rio. Ela não parou de andar enquanto enrolava a capa em
torno de si e entrava no corredor localizado atrás de Zu.
O capitão ofegou por ar. Ele sobreviveria, mas não empunharia uma es-
pada novamente por muitos meses.
Percebeu movimento no fim do corredor: criaturas de pernas brancas,
magras demais para estarem vivas. Shaizan se preparou com uma postura
ampla, o corpo virado de lado, encarando o corredor, joelhos levemente fle-
xionados. Não importava quantas monstruosidades o Selador de Sangue ti-
nha à sua disposição. Não importava se ela perderia ou se venceria.
O que importava era o desafio. Apenas isso.
Havia cinco deles, na forma de homens com espadas. Arrastavam-se pe-
lo corredor, barulho de ossos batendo com ossos, crânios sem olhos obser-
vando-a sem expressão e dentes pontiagudos sempre sorridentes. Algumas
partes dos esqueletos haviam sido substituídas por entalhes de madeira para
consertar fraturas de batalhas. Cada criatura ostentava um selo vermelho
brilhante na testa e sangue era necessário para que tivessem vida.
Até Shaizan nunca tinha lutado contra esses tipos de monstros. Apu-
nhalá-los seria inútil. Mas as peças que tinham sido substituídas, algumas
delas, eram pedaços de costelas ou outros ossos que os esqueletos não preci-
savam para lutar. Então, se os ossos se partissem ou fossem tirados do lugar,
a criatura deixaria de funcionar?
Parecia ser a sua melhor opção. Não pensou duas vezes. Shaizan era pu-
ro instinto. Quando as criaturas se aproximaram, ela girou a capa de Zu e a
jogou sobre a cabeça do primeiro esqueleto. A criatura lutou e se enroscou
no tecido enquanto ela atacava a segunda.
Shaizan repeliu o ataque com a lâmina da adaga de Zu, para depois se
aproximar tanto que pôde sentir o cheiro dos ossos e estender a mão logo
abaixo da caixa torácica daquela criatura. Agarrou a espinha dorsal e puxou,
soltando um punhado de vértebras. A ponta do esterno cortou o antebraço
dela. Parecia que todos os ossos dos esqueletos eram afiados.
A criatura desmoronou e os ossos caíram no chão com estrondo. Shai-
zan estava certa. Se desarticulasse os ossos do tronco, a criatura não poderia
mais se mover. Ela atirou de lado o punhado de vértebras que restou em su-
as mãos.
Sobraram quatro. Pelo que sabia, os esqueletos não se cansavam e eram
implacáveis. Precisava ser rápida, ou seria encurralada.
As três criaturas mais próximos no seu encalço atacaram. Shaizan se es-
quivou, contornando a primeira enquanto a coisa puxava sua capa. Agarrou
seu crânio pelas órbitas oculares, mas ao fazê-lo, sofreu um corte profundo
no braço pela espada inimiga. Seu sangue respingou na parede enquanto
arrancava a cabeça, e o resto do corpo da criatura desabou no chão, for-
mando uma pilha de ossos.
Continue correndo. Não pare.
Se parasse, morreria.
Ela se virou e enfrentou os outros três esqueletos, usando o crânio ar-
rancado para bloquear um golpe de espada e a adaga para deter outro. Ten-
tou se esquivar do terceiro, mas foi atingida de raspão no lado.
Não sentia a dor. Tinha sido treinada para ignorá-la em batalha. E, ain-
da bem, porque aquele último golpe teria doído muito.
Ela acertou o crânio contra a cabeça de outro esqueleto, quebrando os
dois. A criatura caiu e Shaizan girou entre as duas restantes. Os golpes que
tentaram desferir nela acertaram um ao outro. Um chute de Shaizan fez um
deles cambalear para trás e lançou seu corpo contra o outro, esmagando-o
contra a parede. Os ossos se comprimiram e ela agarrou sua espinha dorsal,
soltando algumas vértebras.
Os ossos da criatura caíram com um barulho alto. Shaizan cambaleou
ao se levantar. Tinha perdido muito sangue. Seu ritmo diminuía. Em que
momento ela havia deixado a adaga cair? Devia ter escapado de seus dedos
enquanto empurrava a criatura contra a parede. Concentração. Restava
apenas um.
O esqueleto avançou com uma espada em cada mão. Shaizan se lançou
contra ele, conseguindo se aproximar antes que ele pudesse desferir um gol-
pe, e segurou os ossos dos antebraços. Não conseguia arrancá-los, não na-
quela posição. Rosnou, mantendo as espadas afastadas. Mas com dificulda-
de, pois a cada momento ficava mais fraca.
A criatura intensificou a força do seu ataque. Shaizan urrou enquanto
sangue escorria livremente por seus braços e ao lado do seu corpo.
Então, deu uma cabeçada na coisa.
Era um recurso que funcionava pior na vida real do que nas histórias. A
visão de Shaizan ficou embaçada e, ofegante, caiu de joelhos. O esqueleto
sucumbiu diante dela, com o crânio quebrado rolando solto pela força do
impacto. O sangue jorrava do seu rosto. Tinha um corte na testa e talvez ti-
vesse fraturado o próprio crânio.
Caiu de lado e lutou para não perder a consciência.
A escuridão se dissipou aos poucos.
Ela se viu deitada entre ossos espalhados em um corredor de pedra va-
zio. A única cor era o vermelho do seu sangue.
Tinha vencido. Mais um desafio superado. Não cantou, mas uivou um
cântico da sua família adotiva e recuperou a adaga. Com ela, fez tiras da
blusa para enfaixar suas feridas. Já tinha perdido muito sangue. Nem mes-
mo uma mulher com seu treinamento poderia enfrentar mais desafios na-
quele dia. Não se demandassem força.
Ela conseguiu se levantar e pegou a capa de Zu, que ainda estava imo-
bilizado pela dor, olhando-a com olhos surpresos. Shaizan juntou os cinco
crânios dos mascotes do selador de sangue e os envolveu na capa.
Em seguida, continuou avançando pelo corredor, tentando projetar for-
ça, não a fadiga, a tontura e a dor que realmente sentia.
Ele deve estar por aqui.
Abriu a porta de um depósito no final do corredor e encontrou o sela-
dor de sangue lá dentro, com os olhos vidrados de surpresa ao ver seus ani-
mais de estimação destruídos tão rapidamente.
Shaizan agarrou-o pela camisa e o levantou de uma vez só. O movi-
mento quase a fez desmaiar outra vez. Cuidado.
O selador de sangue gemeu.
“Volte para o seu pântano”, grunhiu ela baixinho “A pessoa que espera
você não se importa se você está na capital, se está ganhando todo esse di-
nheiro, se está fazendo tudo isso por ela, ou não. Só quer que você volte pa-
ra casa. Por isso as cartas dela são escritas dessa forma.”
Shaizan disse essas palavras por Shai, que se sentiria culpada se não o fi-
zesse.
O homem a olhou, confuso.
“Como você sabe? Argh!”
Suas palavras se transformaram em um grito quando Shaizan cravou a
adaga em sua perna. O selador de sangue caiu no chão no momento que
soltou sua camisa.
“Fiz isso para ter um pouco do seu sangue”, sibilou ela quase num sus-
surro, se abaixando. “Não tente me caçar. Você já viu o que eu fiz com seus
animais de estimação. Com você será pior. Vou levar os crânios para que
não consiga enviá-los atrás de mim de novo. Volte para sua casa.”
Ele assentiu com fraqueza. Ela o deixou no chão, encolhido, assustado,
segurando sua perna ensanguentada. A aparição dos esqueletos fez com que
todos fugissem, incluindo os guardas. Shaizan continuou seu caminho em
direção aos estábulos, mas logo parou, pensativa. Não estava muito longe...
Quase morreu com todas essas feridas, disse a si mesma. Não seja idio-
ta.
Porém, decidiu ser idiota mesmo assim.
Pouco depois, Shaizan entrou nos estábulos e lá encontrou apenas dois
moços de estrebaria assustados. Escolheu a melhor montaria que encon-
trou. E assim, vestida com o manto de Zu e montada em um cavalo, Shai-
zan pôde galopar pelas portas do palácio, e nenhum homem ou mulher
tentou impedi-la.
Shai se virou para olhar a Sede Imperial. A cidade se estendia por sete gran-
des colinas, com a mansão de uma facção principal coroando cada uma das
seis exteriores e o palácio dominando a colina central.
O cavalo que esperava ao seu lado tinha pouco em comum com o que
ela havia roubado do palácio. Estava sem dentes, andava com a cabeça bai-
xa e o lombo curvado. Parecia que não era escovado há anos, e a criatura es-
tava tão desnutrida que suas costelas se destacavam como as ripas do encos-
to de uma cadeira.
Shai tinha passado os dias anteriores tentando não chamar a atenção,
usando sua Marca de Essência de mendiga para se esconder nos subterrâne-
os da Sede Imperial. Com esse disfarce, e outro para o cavalo, ela tinha es-
capado da cidade sem problemas. Mas, uma vez que se afastou o suficiente,
removeu a marca: pensar como uma mendiga era desconfortável.
Shai afrouxou a sela, sondou por baixo e arranhou com a unha o bri-
lhante selo dali. Com algum esforço, quebrou a Falsificação. O cavalo se
transformou instantaneamente: o lombo endireitou, ergueu a cabeça, a bar-
riga se encheu. Ele se agitou ansioso, balançando a cabeça de um lado para
o outro, puxando as rédeas. O cavalo de batalha de Zu era uma bela criatu-
ra, mais valiosa do que uma casinha em algumas partes do império.
Escondido entre as provisões que ela carregava nas costas estava a tela
que Shai tinha roubado, mais uma vez, do escritório de Frava, a decana dos
arbiters. Uma falsificação. Shai nunca tinha tido motivo para roubar uma
de suas próprias obras antes. Era divertido. Tinha deixado a grande moldu-
ra vazia e, atrás, no meio da parede, esculpiu uma runa Reo. Não tinha um
significado muito agradável.
Acariciou o pescoço do cavalo. Considerando tudo, não tinha sido um
mau saque. Um belo cavalo e uma tela que, embora falsa, era tão realista
que até mesmo sua proprietária havia acreditado ser a original.
Ele está fazendo o discurso agora, pensou Shai. Gostaria de ouvir.
Sua joia, sua obra-prima, ostentava o manto do poder imperial. Saber
disso a emocionava, mas tinha sido a emoção que a impulsionou a continu-
ar. Nem mesmo trazer a obra de volta à vida tinha sido a razão para seu fre-
nético trabalho. Não. No fundo, ela tinha se esforçado tanto porque queria
deixar algumas mudanças específicas impregnadas na alma. Talvez aqueles
meses de sinceridade com Gaotona a tivessem mudado.
Copie a mesma imagem várias vezes em um monte de papéis, pensou
Shai, e no final as folhas de baixo terão a mesma imagem gravada profun-
damente.
Deu meia-volta e pegou a Marca de Essência que a transformaria em
uma especialista em sobrevivência e caça. Frava esperava que ela usasse os
caminhos usuais, então planejava direcionar seus passos para o profundo
coração da floresta de Sogdian nas proximidades. Seria um bom lugar para
se esconder. Depois de alguns meses, sairia discretamente da província e se-
guiria com sua próxima tarefa: encontrar o bobo da corte imperial que a
havia enganado.
Mas, por enquanto, queria se afastar das muralhas, dos palácios e das
mentiras da corte. Shai montou no cavalo e se despediu da Sede Imperial e
do homem que agora a governava.
Viva bem, Ashravan, pensou ela. Faça eu me sentir orgulhosa.
Eu to
mei algumas liberdades, como você pode
ver. Que
r ia du
plicar a alma da maneira mais precisa
pos
sí
vel. Es
sa era a tarefa e o desafio. E foi isso que
eu fiz.
Em se
gui
da, levei a alma alguns passos adiante,
re
for
çan
do al
gu
mas memór ia s, enfraquecendo outras.
Eu as im
bui co
mo molas dentro de Ashravan, que o
fa
r i
am re
agir de maneira específica ao assassinato e à
sua re
cu
pe
ra
ção.
Is
so não é mudar sua alma. Não é transformá-lo
em uma pes
soa diferente. É apenas direcioná-lo por
um cer
to ca
mi
nho, assim como um vigar ista de rua
in
cen
ti
va seu al
vo a escolher uma carta específica. É
do.
Gaotona nunca deduziria isso por conta própria, é claro. Sua habilidade
nessa área era limitada. Mesmo que ele fosse um mestre, suspeitava que,
neste caso específico, não teria detectado o trabalho de Shai. Ela explicava
no caderno que sua intenção era ser tão sutil, tão cuidadosa, que ninguém
pudesse desvendar suas mudanças. Seria necessário conhecer o imperador
muito intimamente para sequer suspeitar do que havia acontecido.
Com as notas, Gaotona podia entender isso. Ter estado tão perto da
morte levaria Ashravan a uma fase de profunda introspecção. Ele buscaria
seu diário e releria repetidamente as crônicas do seu eu jovem. Ele veria o
que tinha sido e, finalmente, tentaria recuperá-lo com todo o coração.
Shai indicava que a transformação seria lenta. Um período de anos em
que Ashravan se tornaria o homem que parecia destinado a ser. Havia incli-
nações sutis enterradas profundamente nas interações de seus selos que o
impulsionariam em direção à excelência em vez da indulgência. Ele come-
çaria a pensar em seu legado em vez de no próximo banquete. Ele se lem-
braria de seu povo em vez de suas refeições agendadas. Por fim, ele motiva-
ria as facções a realizar as mudanças que ele e muitos antes dele haviam ad-
vertido que eram necessárias.
Em resumo, ele se tornaria um lutador. Daria aquele único passo tão
difícil para cruzar a fronteira entre o sonhador e o realizador. Gaotona po-
dia ver isso nas páginas.
Ele percebeu que estava chorando.
Não pelo futuro nem pelo imperador. Eram lágrimas de um homem di-
ante de uma obra-prima. A verdadeira arte era mais do que beleza, era mais
do que técnica. Não era apenas imitação.
Era audácia, era contraste, era sutileza. Naquele caderno, Gaotona en-
controu uma obra rara que rivalizava com as dos maiores pintores, esculto-
res e poetas de qualquer época.
Era a maior obra de arte que ele já tinha visto.
Gaotona segurou o caderno com reverência durante a maior parte da
noite. Era a criação de meses de intensa transcendência artística. Impulsio-
nada pela pressão externa, mas liberada como uma respiração contida à bei-
ra do colapso. Bruta, mas polida. Ousada, mas calculada.
Surpreendente, mas invisível.
E assim deveria continuar. Se alguém descobrisse o que Shai havia feito,
o imperador cairia. Na verdade, todo o império poderia estar em perigo.
Ninguém poderia saber que a decisão de Ashravan de finalmente se tornar
um grande líder havia sido ativada por palavras gravadas em sua alma por
uma herege.
Ao amanhecer, Gaotona se levantou lentamente, dolorido, de sua ca-
deira perto da lareira. Pegou o caderno, aquela obra de arte sem igual, e a
ergueu.
Deixou-a então cair nas chamas.
Nota do autor
Nas aulas de escrita, muitas vezes me diziam: “Escreva sobre o que você sa-
be”. É um lema frequentemente ouvido pelos escritores, mas isso me dei-
xou confuso. Escrever sobre o que eu sei? E como faço isso? Sou autor de
fantasia. Não posso saber o que é usar magia. E, além disso, não posso sa-
ber o que é ser mulher, mas quero escrever a partir de uma diversidade de
pontos de vista.
À medida que ganhava habilidade, comecei a entender o significado do
conselho. Embora neste gênero escrevamos sobre o fantástico, as histórias
funcionam melhor quando têm sólidos alicerces em nosso mundo. A magia
funciona melhor quando se ajusta a princípios científicos. A criação de
mundos funciona melhor quando se inspira em fontes do nosso mundo.
Os personagens funcionam melhor quando estão profundamente enraiza-
dos na emoção e na experiência humana.
Ser um escritor, consequentemente, envolve tanto observação quanto
imaginação.
Procuro deixar que novas experiências me inspirem. Tenho a sorte de
poder viajar com frequência. Quando visito um país novo, tento permitir
que a cultura, as pessoas e as experiências locais influenciem uma história.
Uma vez, quando estive em Taiwan, tive a sorte de visitar o Museu do
Palácio Nacional, com minha editora Sherry Wang e minha tradutora Lu-
cie Tuan como guias turísticas. Ninguém pode absorver milênios de histó-
ria chinesa em apenas algumas horas, mas fizemos o que pudemos. Feliz-
mente, eu já tinha algum conhecimento básico sobre cultura e história asiá-
tica, pois passei dois anos na Coreia como missionário dos Santos dos Últi-
mos Dias e depois estudei coreano na universidade.
Durante essa visita, as sementes de uma história começaram a germinar
em minha mente. O que mais me chamou a atenção foram os carimbos.
Em inglês, às vezes os chamamos de “chops”, mas eu sempre usei o nome
coreano, “tojang”. Em mandarim, eles são chamados de “yìnjiàn”. São ca-
rimbos de pedra, ricamente esculpidos, usados como assinatura em muitas
culturas asiáticas diferentes.
Na minha visita ao museu, notei muitos desses selos vermelhos familia-
res. Alguns deles, é claro, eram os selos de artistas... mas havia outros. Ha-
via uma exibição de caligrafia coberta por eles. Lucie e Sherry me explica-
ram que, quando eruditos e nobres da antiga China gostavam de uma obra
de arte, às vezes eles também a marcavam com seu selo. Um imperador em
particular adorava fazer isso: ele pegava esculturas belíssimas ou peças de ja-
de com séculos de idade, as selava e, às vezes, mandava que versos de seus
próprios poemas fossem esculpidos nelas.
Que forma de pensar fascinante! Imagina ser rei, decidir que adora a es-
cultura de Davi de Michelangelo e então esculpir sua assinatura no peito
dela. Em essência, era a mesma coisa.
Esse conceito me chocou tanto que comecei a brincar com a ideia de
uma magia de carimbos em minha mente. Carimbos de alma, capazes de
reescrever a natureza da existência de um objeto. Não queria me aproximar
muito da moldagem de almas do mundo de “O Arquivo das Tormentas”,
então me inspirei no museu, na história, para criar uma magia que permi-
tisse reescrever o passado de um objeto.
A história se desenvolveu a partir desse começo. Como a magia se en-
caixava bem com um sistema que eu estava desenvolvendo para Sel, o mun-
do onde se passa “Elantris”, ambientei a história lá. (Além disso, eu tinha
baseado várias culturas desse mundo nas asiáticas do nosso mundo, então
tudo se encaixava perfeitamente).
Não é sempre possível escrever sobre o que se sabe, pelo menos não
exatamente sobre o que se sabe. No entanto, é possível escrever sobre o que
se vê.
TÍTULO ORIGINAL
The emperor’s soul
TRADUÇÃO E REVISÃO
TocaDigital
ADAPTAÇÃO DE CAPA
TocaDigital
EPUB
TocaDigital
Tradução sem fins lucrativos, feita apenas para que os leitores e fãs da Cosmere
brasileiros possam ter acesso ao material extra do universo.
{1}
Em tradução livre significa árbitro. É o maior título que a raça grand (literalmente, grande) pode
conquistar dentro de uma facção no Império da Rosa, e só os grands podem ser arbiters. Arbiter é
também um trocadilho com o nome da raça striker, que significa algo como atacante em português,
ou seja, os árbitros comandam “o jogo” e os strikers. Os grands são a mente (arbiters) e os strikers os
músculos (soldados, guardas). A raça striker recebeu esse nome após ser subjugada pela raça grand,
antes se chamavam de mulla’dil. Como envolve o nome de raças, preferimos não traduzir, mas acha-
mos interessante denotar o jogo de palavras. (N.T.)