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O Santo

e a Porca
Obra de Ariano Sussuna em 1964, Recife.

Personagens:

Euricão - "Engole Cobra", Eurico Arábe; é pai de Margarida e irmão de Paloma; personagem avarento.

Porca - Oposição do profano frente ao religioso (Santo Antônio); é o objeto de cobiça; para a avareza de Euricão.

Santo Antônio - santo casamenteiro e "achador", santo de devoção de Euricão; representação do sagrado e da fé.

Margarida - "flor bucólica"; filha de Euricão, e noiva de Dodó.

Paloma - Irmã de Euricão, ex-noiva de Deodoro; representa os pudores e os recatos.

Carola - "árvore grande e forte"; empregada de Euricão e noiva de Pinhão.

Pinhão - "fruto rústico"; empregado de Deodoro; é noivo de Carola; representa a busca da liberdade.

Deodoro - bom e generoso; pai de Dodó; ex-noivo de PALOMA e pretendente de Margarida; representa a
burguesia (burguês).

Dodó - Redução do nome Deodoro (indica a submissão do filho ao pai); é filho de Deodoro e noivo de Margarida.

Resumo da Obra:

Tudo começa quando Deodoro Vicente manda uma carta a Eurico Arábe dizendo que lhe pedirá o seu bem
mais precioso.

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Na casa do comerciante, moram sua filha Margarida, sua irmã Paloma e a empregada Carola e, já há 2
meses, Dodó, filho do rico fazendeiro Deodoro. Dodó vive disfarçado, finge-se de torto, deformado e sovina.
Assim conquistou Eurico, que lhe atribuiu a função de guardião de sua filha (quem Dodó namora às escondidas).

O desenrolar dos fatos se desencadeia com a carta enviada por Pinhão, empregado de Deodoro e noivo de
Carola, empregada de Euricão. Deodoro informa que fará uma visita para pedir esse bem tão precioso a Eurico,
que fica apreensivo, pois pensa que lhe pedirá dinheiro emprestado. Eurico insiste em se dizer pobre, repetindo as
frases: "Ai a crise, ai a carestia".

Na sala da casa de Eurico, onde as cenas se desenrolam, há uma estátua de Santo Antônio, de quem Eurico
é devoto, e uma antiga porca de madeira, a quem ele dedica especial atenção e que logo o público saberá que
esconde maços de dinheiro.

Carola, muito esperta, percebe que Deodoro pedirá margarida em casamento, é assim que ela entende o
bem mais precioso de Eurico que o fazendeiro, pai de Dodó, quer saber. Então ela arma um circo para alcançar
alguns objetivos: ganhar algum dinheiro, pois quer casar com Pinhão, casar Dodó e Margarida além de Deodoro e
Paloma, que já tinham sido noivos há muitos anos. Deodoro, viúvo, quer Margarida, mocinha; Paloma, solteirona,
quer Deodoro, fazendeiro; Margarida quer Dodó, pois o ama; Carola e Pinhão se querem; Euricão quer a porca, ou
será que quer a proteção de Santo Antônio para a porca?

Carola negocia uma comissão com Eurico para ajudá-lo a tirar vinte contos de Deodoro Vicente, antes que
este peça dinheiro a Eurico. Acertam-se. Aí Carola convence Paloma que Deodoro virá pedi-la em casamento e se
dispõe a ajudá-la. São então tramas de Carola: fazer Eurico pedir vinte contos a Deodoro para o casamento (na
realidade, para um jantar); convencer Paloma de que Deodoro viria pedi-la em casamento; fazer Deodoro Vicente
mandar uma carta a Eurico dizendo que lhe pedirá o seu bem mais precioso. E mais, fazer Deodoro acreditar que
pede Margarida; fazer Eurico crer que Deodoro pede Paloma; armar um encontro entre Deodoro e Margarida na
penumbra; e ficar no lugar de Margarida, com o vestido dela.

Conseqüências das armações de Carola: Dodó sente ciúme de Margarida, pois pensa que ela irá
encontrar-se com Deodoro; Pinhão sente ciúme de Carola quando sabe que ela irá em lugar de Margarida; Euricão
desconfia que querem roubar sua porca recheada, pois ouve falarem em devorar porca e pensa ser a sua, quando é
a do jantar que se encomendou para receber Deodoro; Pinhão desconfia de Eurico e o observa, porque este age
estranhamente.

Na hora do encontro entre Margarida e Deodoro, Carola tranca Margarida no quarto, manda Paloma permanecer
também no seu e vai, vestida de Margarida, receber Deodoro. Dodó vê Carola e pensa ver Margarida, pois está
com o vestido dela. Para não ter que se explicar, Carola o empurra e tranca no quarto com Margarida. Carola então
veste roupa de Paloma e esta a de Margarida. Carola então recebe Deodoro vestida de Paloma. Ele é enganado:
pensa estar conversando com a antiga noiva, que se insinua a ele, na penumbra não percebe que é Carola. Ela o
leva ao quarto de Paloma e o tranca com a ex-noiva, por quem agora já está novamente interessado.

Pinhão ao sair do esconderijo onde estivera observando a cena, vê Carola e pensa ser Paloma e tenta
seduzí-la. Ela reage e bate em Pinhão e o manda esperar por Carola, que tira as roupas de Paloma e diz que
acompanhou toda a cena, bate outra vez em Pinhão, mas na confusão começam a se beijar. Aí destrancam as portas
dos quartos de Margarida e Dodó, Paloma e Deodoro, e entram em outro.

Dodó e Margarida saem do quarto e pensam ter sido surpreendidos por Eurico, que entra em casa dizendo
estar perdido.Na verdade Eurico havia saído para enterrar sua porca recheada dentro do cemitério. A conversa
entre Eurico e Dodó é engraçada, pois ambos se enganam: Dodó fala de Margarida, enquanto Eurico fala da porca
que desapareceu. Eurico pensa que o rapaz lhe roubou a porca, já que este o traiu. No desespero, Eurico finalmente
revela que a porca estava cheia de dinheiro guardado há tantos anos.

Com os gritos da discussão, Pinhão e Carola saem do quarto. Depois Deodoro e Paloma do seu. A cena é
divertida: são três casais que de repente estão juntos e felizes ante Euricão lamentando a perda da porca. Graças a

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Carola os casais se entendem sem Euricão nem Deodoro perceberem o engano de que foram vitimas. Margarida
desconfiou de Pinhão e afirmou que ele pegara a porca. Eurico lhe salta no pescoço e Pinhão acaba contando, mas
exige vinte contos para dizer onde escondeu a porca, os vinte contos que Eurico conseguiu emprestados de
Deodoro com a ajuda de Carola. Com o vale do dinheiro na mão, mostra a porca que estava na casa mesmo.

Então, Deodoro faz Eurico perceber que aquele dinheiro era velho e havia perdido o valor. Eurico se
desespera. Tentam dissuadi-lo da importância do dinheiro, mas ele manda todos embora e fica só, com a porca e o
Santo, tentando entender o que aconteceu, qual o sentido de tudo que houvera.

Enredo da Peça:

O material que o autor utiliza para inventar sua história denomina-se fábula, que na concepção latina, é
uma narrativa de caráter mítico. Aristóteles chama de fábula a reunião das ações, dos acontecimentos que
estruturam uma obra. Portanto, a fábula é o enredo, o material narrativo de que se origina o texto dramático.

A imagem de Santo Antônio e da porca de madeira são representativas no enredo. Santo Antônio, além de
ser o santo casamenteiro e estar associado aos diversos casamentos que acontecem na obra, está relacionado à
procura de objetos perdidos. Quando Euricão perde sua porca, é para Santo Antônio que ele pede ajuda e é
atendido. Mas o santo dá uma lição em Euricão por este ter preferido a porca a ele, e faz com que o avarento fique
sem dinheiro ao final da peça.

Dentro do enredo, encontra-se a intriga e o conflito central da intriga. A intriga é a seqüência dos
acontecimentos. Ao dispor os fatos numa determinada ordem, o autor revela gradativamente suas intenções. O
conflito central é aquele em que o(s) protagonista(s) depara(m)-se com um obstáculo, seja ele uma ou mais
personagens ou uma força abstrata, como o sistema social ou os valores da consciência. Na peça de Suassuna
temos como conflito central:

1. a avareza de Euricão;
2. seu apego demasiado à porca e sua dedicação a ela como substituta da esposa que o abandonou;
3. seu medo de perdê-la;
4. sua devoção a Santo Antônio como protetor de seu lar e de sua porca;
5. colocação da porca no socavão da escada;
6. a retirada da porca do socavão para a sala e para a proteção de Santo Antônio;
7. a retirada da porca de casa, dos cuidados do santo para o cemitério, “onde tudo se perde e não se acha nada”;
8. a colocação da porca no socavão ao lado do túmulo da esposa;
9. o roubo da porca (primeira perda);
10. a devolução da porca; e
11. a grande decepção (segunda e derradeira perda).

Percurso espaço e tempo:

Na peça O Santo e a Porca, a ação se passa na sala da casa de Euricão, o que pode ser comprovado nas
indicações cênicas. Estas indicações devem ser confrontadas com o texto interpretado pelos atores, pois a
linguagem está relacionada com a demarcação espacial e ambas se unem pela ação dramática. No texto, a casa do

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protagonista é vista por ele próprio como o seu território, protegido pelo seu santo de devoção, e como sua
fortaleza, onde ele guarda seus dois tesouros: a filha e a porca.

Os espaços utilizados por Suassuna estão relacionados aos de sua fonte inspiradora, a Aulularia, de Plauto:

Casa de Euricão / Templo de Santo Antônio = Templo de Bona Fides

Festa de São João = Festa de Ceres

Cemitério = Bosque de Silvano

Hotel de Dadá = Mercado (Fórum)

O tempo intervém na ação de várias formas: estabelecendo uma cronologia que reconstitui o desenrolar dos
acontecimentos; fornecendo um tempo próprio para cada personagem; através de marcas temporais que aparecem
no texto ou tomando uma dimensão metafórica. O próprio diálogo das personagens fornece indicações que
inscrevem a ação dentro de um tempo real e juntamente com a divisão em atos (separados por intervalos), cenas e
quadros (marcados pelas entradas e saídas das personagens) compõem as principais marcações temporais no
momento da representação. O tempo da ficção obedece à concepção clássica das unidades e da verossimilhança. A
ação se passa num período de 24 horas dividido entre os três atos da peça. O tempo da representação é
caracterizado pela continuidade.

Na peça de Ariano Suassuna, o tempo da representação é marcado da seguinte forma:

Primeiro Ato: Tempo da espera por Deodoro (as ações se passam no período da manhã.)
Segundo Ato: Tempo da espera pela entrevista (as ações se passam no período da tarde).
Terceiro Ato: Tempo das entrevistas e das revelações (as ações se passam no período da noite).

Estas marcações ficam muito claras nas falas das personagens. Concluí-se então que, na representação da
peça, o fato da "entrevista" é o marcador temporal que a divide em dois grandes momentos:

Antes da entrevista: clima de tensão, espera, expectativa que culminará na reconciliação dos casais Carola e
Pinhão, Margarida e Dodó e Deodoro e Paloma.

Depois da entrevista: reencontro de Dodó com seu pai Deodoro, os pedidos de casamento, a descoberta do
segredo de Euricão (a porca) e a sua decepção.

Pode-se ver nessa peça um claro caráter moralizante, típico dos textos católicos. O maniqueísmo é marcado
pela criação de extremos e representado quando Euricão sente-se obrigado a escolher entre o material (dinheiro) e
o espiritual (Santo Antônio).

O Autor:
Será que uma obra de arte precisa mesmo de explicações do autor para enfrentar o público? Será que a
visão que o autor tem de sua obra não é a mais deformada de todas? Não sei, mas acredito que é muito difícil, sem
traição a ela, explicar ou ordenar os múltiplos aspectos e sentidos que tem — ou pelo menos deve ter — uma peça
de teatro. O fato é que a peça é um tumulto, e as opiniões que se formam em torno dela é outro; o que, de certa
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forma, nos autoriza a procurar, na medida do possível, um sentido para aquilo que talvez nenhum sentido claro
possua.
Com isso, não quero dizer que, ao escrever a peça, tenha conseguido fazer tudo o que pretendi ao
imaginá-la. E quem o consegue? A obra que se apresenta ao público, qualquer que seja ela, é o resultado de duas
derrotas: a primeira, porque o artista jamais conseguirá se equiparar à mobilidade, à vida, à riqueza, à contínua
invenção da realidade; a segunda, porque depois de inventar sua obra — que não é senão uma tentativa de resposta
domada, clarificada e ordenada ao que o mundo contém de feroz, de disperso e selvagem — nunca consegue ele
imprimir na obra tudo o que desejou e entreviu no momento da criação.
Mal saído dessas duas derrotas, o artista entrega a obra ao público e à crítica. E ei-lo diante de algo
misterioso, terrível e perturbador, porque absolutamente imprevisível. Às vezes, a obra é aceita pelo público e
recusada pela crítica, às vezes acontece o contrário, às vezes ambos se juntam, a favor ou contra. Às vezes, depois
de um julgamento que parecia definitivo, ambos se arrependem.
Na maioria dos casos, porém — e isso é, para mim, o mais incompreensível —, tanto o público como a
crítica se dividem. Uma vez, um amigo me mandou um recorte de jornal com o resultado de uma estatística dessas
que certas organizações costumam fazer com inquéritos, junto ao público, na saída dos espetáculos. O resultado
foi, para mim, algo surpreendente e terrificante. Eu nunca vira nenhuma delas; aceitaria de bom grado que
as opiniões fossem unânimes, contra ou a favor. Mas nada disso acontecia. A peça considerada melhor pela
estatística apresentava o seguinte resultado: 58 pessoas tinham dito que ela era ótima, 34 que era boa, três que era
simplesmente regular e cinco que era decididamente ruim. Da peça considerada estatisticamente pior, o resultado
era o seguinte: 18 pessoas tinham-na considerado má, 31 regular, 33 boa e 18 ótima.
Meu Deus, que misterioso critério de julgamento levou aquelas cinco pessoas a considerarem mau um
espetáculo que outras 58 diziam ser ótimo e outras 34 diziam ser bom? E que outra imprevisível escala de
apreciação levou, no segundo caso, aquelas 18 pessoas a acharem ótima uma peça que outras 18 achavam
decididamente má?
É para nos desanimar, é mesmo para tirar conclusões pouco democráticas, no domínio da arte. Mas assim
vai o mundo, e, ao que parece, pior do que o escuro em que nos debatemos é a mania de ser dono da luz. Assim,
confessando que talvez esteja ainda mais no escuro do que os outros sobre o que faço, tento aqui a ordenação —
ou uma das ordenações possíveis — para o mundo tumultuoso que inventei, não sei bem por que nem para quê.
Para isso, gostaria de esclarecer que, em certo sentido — e somente assim, porque, no fundo, isto é uma simples
história —, O santo e a porca apresenta a traição que a vida, de uma forma ou de outra, termina fazendo a todos
nós. A vida é traição, uma traição contínua. Traição nossa a Deus e aos seres que mais amamos. Traição dos
acontecimentos a nós, dentro do absurdo de nossa condição, pois, de um ponto de vista meramente humano, a
morte, por exemplo, não só não tem sentido, como retira toda e qualquer possibilidade de sentido à vida.
É desta traição que Euricão Arábe subitamente se apercebe, é esta visão perturbadora e terrível que lhe
aponta os homens como escravos — como escravos fundamentais e não só do ponto de vista social, como um
crítico entendeu que eu apontava —, isto é, como eles próprios se veriam a cada instante, não fossem as
preocupações, a cegueira voluntária e involuntária, as distrações e divertimentos, a covardia, tudo enfim que nos
ajuda a “ir levando a vida” enquanto a morte não chega e que faz desta aventura — que se fosse sem Deus era sem
sentido — um aglomerado suportável de cotidiano.
Para indicar isso, aproveitei, entre outras coisas, a circunstância de ser Euricão Engole-Cobra um
estrangeiro, um “arábe”, como se diz, no sertão, dos sírios, árabes e turcos enraizados, e insinuei, através disso,
nossa própria condição de desterrados: “Não temos, aqui, cidade permanente” (Hebreus 13,14). Detesto os
símbolos: quando Euricão fala nisso, não está simbolizando nada nem ninguém, o que prejudicaria, a meu ver,
sua vida de personagem de teatro; está aludindo a uma circunstância real, pelo que me permiti essa exceção que,
não prejudicando a vida e a verdade do personagem Euricão, pôde servir para dar à perda da porca o sentido do
absurdo de toda a vida. Porque a perda da porca é muito grave no caso particular dele. Euricão sacrificou toda a
existência a ela — ao mundo, portanto, à segurança, à vida tranquila, feliz e rotineira —, furtando a sua
própria alma, como ele mesmo diz repetindo seu modelo Euclião, personagem de Plauto; e o ídolo termina por
traí-lo, deixando-o solitário e abandonado diante da morte. Como afinal acontece a todos nós, quando perdemos

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nossa casa, nossa fábrica, nosso automóvel, nosso nariz — como aconteceu ao personagem de Gogol —, nossa
amante ou nossas pernas.
Isto, quanto à porca. Ela apresenta a vida como um impasse, cuja única saída é Deus. “Se Deus não existe,
tudo é permitido”, dizia Ivan Karamázov, isto é, o mundo moral ficaria inteiramente destituído de sentido. E claro
que não sou nenhum Dostoiévski nem estou, nem de longe, comparando as duas obras, mas sim comentando uma
semelhança de situações; pois o que Euricão descobre, de repente, esmagado, é que, se Deus não existe, tudo é
absurdo. E, com esta descoberta, volta-se novamente para a única saída existente em seu impasse, a humilde
crença de sua mocidade, o caminho do santo, Deus, que ele seguiria num primeiro impulso, mas do qual fora
desviado aos poucos, inteiramente, pela idolatria do dinheiro, da segurança, do poder, do mundo.
Mas, se possível, olhem esta peça — assim como o conjunto de meu trabalho de escritor, dentro do qual ela, como
todas as outras, deve ser entendida — antes de tudo como uma história, contada por uma pessoa, mas que mantém
um contato profundo e amoroso com a vida. Considero-me um realista, mas sou realista não à maneira
naturalista — que falseia a vida — mas à maneira de nossa maravilhosa literatura popular, que transfigura a vida
com a imaginação para ser fiel à vida. Não tem sentido, portanto, dadas as características de meu teatro, dizer
como disseram alguns críticos ilustres, que é inverossímil que um avarento ignorasse uma operação bancária e
perdesse, assim, seu tesouro. Em primeiro lugar, mesmo que isso fosse impossível na vida, não o seria em
meu teatro, onde um cangaceiro se deixa enganar por uma flauta e um conto do vigário — no caso, o Padre Cícero
— e onde os anjos se vestem de judeus e os diabos de frades ou de vaqueiros; e em segundo lugar, mesmo na vida,
o caso é tão possível que aconteceu; foi em Taperoá, com uma pessoa avarenta, por sinal pertencente à minha
família. Na agência do Banco do Brasil, em Campina Grande, onde ela foi trocar seu dinheiro, avisada por um
tio meu, juntou gente para ver aquelas notas, guardadas durante tanto tempo que ninguém as conhecia mais.
O que eu procuro atingir, portanto, é, se não a verdade do mundo, a verdade de meu mundo, afinal inapreensível
em sua totalidade, mas mesmo assim, ou por isso mesmo, tentador e belo, com seu sol luminoso e selvagem, tão
selvagem que não podemos vê-lo. Procuro me aproximar dele com as histórias, os mitos, os personagens, as
cabras, as pedras, o planalto seco e frio de minha região parda, pedregosa e empoeirada. Esta visão ardente —
grosseira e harmoniosa, ao mesmo tempo — é o cerne para onde se dirige meu trabalho de escritor. Admito, a
exemplo do que acontece com o público e com a arte popular de minha região — o mamulengo, o romanceiro —,
a mentira geral do teatro para que isso me possibilite comunicar aos outros, na medida de minhas forças, a
substância deste mundo. Nunca o teatro conseguirá reproduzir a vida, que se reinventa a cada instante. Assim, sem
exageros que acabem a ilusão consentida do público, é melhor não apelar para as muletas do verismo nem
esconder as traves da arquitetura teatral — sejam as do autor, as do encenador ou as dos atores, pois todos nós
temos as nossas; assim o público, vendo que não pretendemos enganá-lo, que não queremos competir com a
vida, aceita nossos andaimes de papel, madeira e cola e pode, graças a essa generosidade, participar de nossa
maravilhosa realidade transfigurada. A vida e o mundo são os motivos, que aparecem transfigurados, no teatro.
Meu teatro procura se aproximar da parte do mundo que me foi dada; um mundo de sol e de poeira, como o que
conheci em minha infância, com atores ambulantes ou bonecos de mamulengo representando gente comum e às
vezes representando atores, com cangaceiros, santos, poderosos, assassinos, ladrões, palhaços, prostitutas, juízes,
avarentos, luxuriosos, medíocres, homens e mulheres de bem — enfim, um mundo de que não estejam ausentes —
se não no teatro, que não é disso, mas na poesia ou na novela — nem mesmo os seres da vida mais humilde, as
pastagens, o gado, as pedras, todo este conjunto de que o sertão está povoado.
Isto é o que venho procurando fazer. Sei que é um plano ambicioso, mas não posso estar pensando nisso,
nem em se venho ou não conseguindo pô-lo em prática: terminaria ficando desesperado.
Assim, tendo dito o que quis fazer, entrego a peça aos leitores: que eles a julguem novamente, como já aconteceu
com o público que a viu no palco. E, se o que disse aqui contribuiu para um maior entendimento entre nós, dou-me
por satisfeito.

Ariano Suassuna.

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PRIMEIRO ATO
Cena 1
O pano abre na casa de EURICO ARÁBE, mais conhecido como EURICÃO ENGOLE-COBRA. Cinco portas e
duas janelas. Cada porta com sua característica: A porta da frente da a casa a direita do palco, a dos fundos a
esquerda do palco, a do quatro de EURICÃO no centro ao fundo do palco, a do quarto de MARGARIDA ao fundo
a direita, a do quarto de PALOMA no fundo a esquerda e duas janelas uma de cada lado do palco.

CAROLA — Então Seu Deodoro Vicente disse: "Pinhão, você sele o cavalo e vá na minha frente procurar
Euricão..."

EURICÃO — Eurico!

CAROLA — "Vá procurar Euríquio..."

EURICÃO — Ah!... Chame Euricão mesmo.

CAROLA — "Vá procurar Euricão Engole-Cobra..."

EURICÃO — Engole-Cobra é a mãe! Não lhe dei licença de me chamar de Engole-Cobra, não! Só de Euricão!

CAROLA — "Vá na minha frente procurar Euricão para entregar essa carta a ele."

EURICÃO — Onde está a carta? Dê cá! Que quererá Deodoro Vicente comigo?

PINHÃO — Eu acho que é dinheiro emprestado.

EURICÃO — Hein?

PINHÃO — Toda vez que ele me manda assim na frente, a cavalo, é para isso.

EURICÃO — E que idéia foi essa de que eu tenho dinheiro? Você andou espalhando isso! Foi você, Carola
miserável, você que não tem compaixão de um pobre como eu! Foi você, só pode ter sido você!

CAROLA — Eu? Eu não!

EURICÃO — Ai, meu Deus, com essa carestia! Ai a crise, ai a carestia! Tudo que se compra é pela hora da morte!

CAROLA — E o que é que o senhor compra? Só falta matar a gente de fome!

EURICÃO — E é tudo querendo me roubar! Mas Santo Antônio me protege!

PINHÃO — O senhor pelo menos leia a carta!

EURICÃO — Eu? Deus me livre de ler essa maldita! Essa amaldiçoada! Ai a crise, ai a carestia! Santo Antônio
me proteja, meu Deus!

Cena 2
Entra MARGARIDA acompanhada de DODÓ.
DODÓ disfarçado com uma barbicha, a boca torta, uma corcova e coxeando.

MARGARIDA — Que foi, meu pai? Ouvi o senhor gritar! Está sentindo alguma coisas?

EURICÃO — Ai minha filha, me acuda! Ai, ai! Os ladrões, minha filha, os ladrões!

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MARGARIDA — Socorro! Socorro! Pega o ladrão!

EURICÃO — Ai minha filha, não grite assim não! Senão vão pensar que a gente tem o que roubar aqui em casa. E
vem nos roubar mesmo! Santo Antônio, Santo Antônio! Ai a crise, ai a carestia! (fala para ser escutado como
pobre)

MARGARIDA — Mas o que foi que houve?

EURICÃO — Ainda não houve nada, mas está para haver, minha filha!

MARGARIDA — O que foi, papai?

EURICÃO – Ai a crise, ai a carestia!

MARGARIDA — Que foi que houve, Carola? Pinhão, você aqui? Ah, já sei o que houve, papai soube de tudo! É
melhor então que eu confesse logo.

CAROLA — Que a senhora se confesse?! Deixe para a sexta-feira, Dona Margarida, a senhora aproveita e
comunga! Que coisa, Dona Margarida só quer viver na igreja!

EURICÃO — Ai a crise, ai a carestia!

MARGARIDA — Mas afinal de contas, o que foi que houve? Meu pai, eu vou contar...

TODOS – Não!

DODÓ — Não!

PINHÃO — Dona Margarida, o que houve é que meu patrão escreveu uma carta ao senhor seu pai.

MARGARIDA — Uma carta? Dizendo o quê?

EURICÃO — Você ainda pergunta? Só pode ser para pedir dinheiro emprestado! Aquele ladrão!

CAROLA — Mas Seu Euricão, Seu Deodoro é um homem rico!

EURICÃO — E é por isso mesmo que eu estou com medo. Você já viu pobre pedir dinheiro emprestado? Só os
ricos é que vivem com essa safadeza! Santo Antônio, Santo Antônio!

MARGARIDA — Mas papai já leu a carta?

EURICÃO — Não! Nem quero ler! Nem quero que você leia! Afaste-se, não toque nessa amaldiçoada!

MARGARIDA — Então tome.

EURICÃO — Não tomo!

MARGARIDA — Leia o senhor mesmo!

EURICÃO — Não leio!

MARGARIDA — Não pode ser coisa ruim, papai!

EURICÃO — Só pode ser coisa ruim, minha filha!

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CAROLA — Mas se for dinheiro emprestado, é só o senhor não emprestar, Seu Euricão!

EURICÃO — É mesmo! É mesmo, Carola! Eu nem me lembrei disso, no meu aperreio!

CAROLA — Leia a carta, Seu Euricão!

MARGARIDA — É, papai, leia! Que mal faz?

PINHÃO — Se for dinheiro emprestado...

EURICÃO — (Jogando a carta no chão.) Ai!

MARGARIDA — (Apanhando-a.) Deixe eu ver... Não é nada demais, está vendo? Olhe, veja o senhor mesmo!

EURICÃO — Não fala em dinheiro não?

MARGARIDA — Não.

EURICÃO — Nem pede para eu avalizar alguma letra?

MARGARIDA — Não.

EURICÃO — Você jura?

MARGARIDA — Juro.

EURICÃO — Então eu leio. Mas Santo Antônio, veja lá! Não vá ser essa safadeza de me pedir dinheiro
emprestado!

MARGARIDA — Papai, leia a carta pelo amor de Deus!

EURICÃO — Então eu leio. Meu caro Eurico: espero que esta vá encontrá-lo como sempre com os seus, gozando
paz e prosperidade! Ai! Margarida!

MARGARIDA — Que é, papai?

EURICÃO — Você passou o São João na fazenda de Deodoro Vicente.

MARGARIDA — É verdade, papai.

EURICÃO — Você foi dizer, lá, que eu era rico?

MARGARIDA — Eu? E eu ia dizer uma coisa dessa, meu pai? Nós somos tão pobres!

EURICÃO — E como é que ele fala em prosperidade, aqui? Isso é dinheiro emprestado, não tem pra onde!

MARGARIDA — É um modo de falar, papai, todo mundo diz isso nas cartas!

EURICÃO — É?

MARGARIDA — É!

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EURICÃO — Então eu leio. Gozando paz e prosperidade. Sobretudo, espero que esteja passando bem sua
encantadora filha Margarida, cuja estada em minha casa ainda não consegui esquecer. Ah, isso aí ele tem que
reconhecer, minha filha é um patrimônio que possuo. Hei de casá-la com um homem rico e ela há de amparar a
velhice do paizinho dela. Deodoro, com todo o dinheiro que tem, não tem uma filha como a minha!

CAROLA — E o senhor, com toda a filha que tem, não tem uma riqueza como a dele!

EURICÃO — Como foi?

CAROLA — Nada!

EURICÃO — “Mando na frente meu criado Pinhão, homem de toda confiança...”

PINHÃO — Obrigado!

EURICÃO — “...para avisá-lo de minha chegada aí.” Aí aonde? Deodoro Vicente pensa que, pelo simples fato de
ter hospedado minha filha, eu estou obrigado a hospedá-lo? Ele convidou Margarida porque quis, eu não convidei
ninguém!

MARGARIDA — Mas papai, ele foi tão generoso comigo!

EURICÃO — Mas eu não o convidei, esse é que é o fato! E o que é isso aqui? O que é isso aqui?

EURICÃO — Está vendo? Minha filha, você ainda causará minha perdição, meu assassinato! Ai a crise, ai a
carestia!

MARGARIDA — Que foi, meu pai?

EURICÃO — A carta amaldiçoada! Bem que eu estava com um pressentimento ruim!

MARGARIDA —Dê cá, deixe eu ver! Onde é?

EURICÃO — Aí onde diz "de minha chegada aí". Ai a crise, ai a carestia!

MARGARIDA — “De minha chegada aí, mas quero logo avisá-lo: pretendo privá-lo de seu mais precioso
tesouro!”

EURICÃO — Está vendo? Esse ladrão! Esse criminoso! Meteu na cabeça que eu tinha dinheiro escondido e quer
roubá-lo. Mas vou tomar minhas providências! Saiam, saiam imediatamente! Vou trancálos, entrem aqui
imediatamente! Entrem, entrem!

Empurra os quatro num quarto qualquer, e tranca por fora. Tranca também as portas e janelas com barras
de madeira e pega uma grande porca de madeira, velha e feia, que está em cena, atirada num canto, como se
fosse coisa sem importância Dentro dela, pacotes e pacotes de dinheiro. EURICÃO, enquanto ergue e deixa cair
amorosamente os pacotes, e vai falando, ora consigo mesmo, ora com Santo Antônio, cuja imagem também deve
estar em cena.

Cena 3

EURICÃO — Ladrões! É preciso ver, é preciso vigiar! Vivem de olho no meu dinheiro, Santo Antônio! Dinheiro
conseguido duramente, dinheiro que juntei com os maiores sacrifícios. Eurico Arábe, Eurico Engole-Cobra! Pois
sim! Mas é rico e os que vivem zombando dele não têm a garantia de sua velhice. Ah, está aqui, os ladrões ainda
não conseguiram furtar nada. Ah, minha porquinha querida, que seria de mim sem você? Se eu pudesse, comia
você inteirinha! Ai, mas é impossível! Senão, desconfiam! (Abre as portas, numa alegria satânica). Venham!

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Venham! Ra, ra! Então vocês queriam roubar o velho, hein? Euricão Engole-Cobra! Hein! Mas, se eu não cuido,
são as cobras é que vão me engolir.

PINHÃO — É por isso que o povo diz que cobra que não anda não engole sapo.

EURICÃO — Acabe com esses ditados! Trabalhei com as cobras, é verdade, vendendo meus remédios por todo o
sertão. Mas hoje... Vocês pensam que sou rico, não é?

MARGARIDA — Mas papai, quem vai pensar uma coisa dessas?

EURICÃO — Vivo cercado de inimigos. E agora, ainda mais esse DEODORO Vicente, querendo roubar o que é
meu! Esse ladrão, esse criminoso! E você, Seu Dodó, não diz nada? O senhor ouve essa desgraça, vê que estão
querendo me depenar e fica calado?

DODÓ — O senhor vá ao hotel de Dadá e reserve quarto para o fazendeiro. Quando ele chegar, paga a conta!

EURICÃO — É mesmo! Dodó Boca-da-Noite! Que talento, que gênio! É a única pessoa que sabe me
compreender! Se você não fosse tão pobre e tão feio, iria te querer como genro. Eu vou, sua idéia é boa. Mas
cuidado, todo cuidado é pouco. Você fica aqui, de olho. Não deixa entrar ninguém. Margarida, minha filha, você
jura que fica aqui?

MARGARIDA — Juro.

EURICÃO — Você também jura, Dodó Boca-da-Noite?

DODÓ — Juro.

EURICÃO — Você vigia minha filha e ela vigia você! Vou reservar o quarto para DEODORO. E se ele chegar na
minha ausência, vão logo esclarecendo tudo. Eu não convidei ninguém e não tenho dinheiro nenhum. E que Santo
Antônio me proteja dos ladrões! (Sai.)

Cena 4
Imediatamente MARGARIDA abraça DODÓ.

MARGARIDA — Meu amor, o que é que se pode fazer para evitar isso? Espere, tire essa barba horrível, não
consigo me convencer de que é você! Estamos perdidos, vão descobrir tudo.

DODÓ — A que horas meu pai chega, Pinhão?

PINHÃO — Chega já. Pelo menos foi o que ele disse na carta.

MARGARIDA — Que foi que deu em seu pai de repente? Terá desconfiado de que você está aqui?

DODÓ — Ele estava zangado, Pinhão?

PINHÃO — Não, pelo contrário, estava até alegre.

DODÓ — Falou alguma coisa a meu respeito? A respeito de eu ter ou não ter ido para o Recife estudar?

PINHÃO — Não. Ele não tem a menor idéia de que o senhor está aqui.

MARGARIDA — O melhor é a gente confessar tudo. Não agüento mais essa agonia. A todo instante penso que
meu pai vai reconhecer você.

11
DODÓ — Não está vendo que é impossível, meu bem? Quando seu pai me viu pela última vez, eu era um menino.
E com esta corcova, essa roupa, essa barba... Não é Possível de jeito nenhum!

MARGARIDA — Mas e o seu pai? Ele vai chegar e vai reconhecê-lo. Não seria melhor dizer tudo?

DODÓ — Mas dizer tudo como, meu bem? Não tenho um tostão meu, o meu pai é contra a idéia de eu me casar
sem estudar e seu pai só deixa você casar com um homem rico... O que é que eu posso fazer contra este inferno?

MARGARIDA — Talvez se seu pai soubesse que a noiva sou eu, permitisse o casamento e lhe desse terra para
você trabalhar. Ele gostou tanto de mim quando estive lá!

DODÓ — E eu mais ainda, tanto assim que abandonei meu estudo e vim me meter nesse armazém por sua causa.

MARGARIDA — Mas com a chegada de seu pai, tudo se complica! Ele vai descobrir!

DODÓ — Talvez você tenha razão, é melhor confessar. Quando ele chegar, descobrimos tudo e ficamos de joelhos
diante dos dois, pedindo consentimento para nos casar.

CAROLA — O senhor quer um conselho?

DODÓ — Quero, Carola, estou completamente cego.

CAROLA — Então não revele nada!

MARGARIDA — Por quê? Você fala de um jeito tão misterioso!

CAROLA — É porque estou maldando um negócio... Vou dizer uma coisa aos dois: não revelem a história de
vocês, porque o pai do senhor vem é para pedir Dona Margarida em casamento.

DODÓ e MARGARIDA — O quê?!

DODÓ — Você está doida, mulher?

CAROLA — Seu pai não é viúvo?

DODÓ — É.

CAROLA — A senhora não passou um tempo lá?

MARGARIDA — Passei.

CAROLA — Ele não simpatizou com a senhora?

MARGARIDA — Simpatizou.

CAROLA — Ele não disse, na carta, que vinha roubar o tesouro mais precioso de Seu Euricão?

PINHÃO — Disse.

CAROLA — Então o que é que vocês querem mais?... É casamento no duro!

DODÓ — Não é possível?

CAROLA — Por que não, Seu Dodó? É proibido casar?

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MARGARIDA — Mas assim, sem aviso, sem nenhum xaveco!...

CAROLA — Dona Margarida, isso é na primeira vez, na segunda, vai direto! Casamento de viúvo é feito
depressa, sem muita conversa!

MARGARIDA — Você acha que é possível?

DODÓ — Ouvi papai falar em casamento mais de uma vez, para sondar minha opinião.

MARGARIDA — E se for, o que é que a gente faz, meu Deus?

CAROLA — É deixar as coisas como estão. Se o senhor tiver habilidade, pode ser que seu pai não o reconheça.
Quando ele chegar, já é quase noite. Com a corcova, a perna curta, a barbicha e a boca torta, o senhor bem que
pode passar por outro. Então a gente vê o que faz, vê se é casamento mesmo, e então partir daí resolve tudo.

MARGARIDA — Resolve como?

CAROLA — Eu sei lá, na hora a gente vê.

DODÓ — Está bem, Carola, vou seguir seu conselho. E se tudo se resolver saberei mostrar minha gratidão.

PINHÃO — Como?

DODÓ — Não sei, eu descobrirei um modo.

CAROLA — O senhor não tem uma terrinha que seu padrinho lhe deu?

DODÓ — Tenho, mas é uma terrinha pequena, não dá para nada.

CAROLA — Para o senhor, para mim vale muito. A coisa que eu mais desejo na vida é casar com Pinhão e ter
uma terrinha para trabalhar. Se a história se resolver, e eu conseguir ajustar seu casamento, o senhor passa a
escritura dessa terra para nós dois?

DODÓ — Passo.

CAROLA — Prometido?

DODÓ — Prometido.

PINHÃO — Quem vive de promessa é santo.

CAROLA — Mas aí é pegar ou largar.

PINHÃO — Vou arranjar uma promissória. O senhor assina no valor da terra. Aí quando nos passar a escritura, eu
devolvo a promissória que o senhor assinou, certo?

DODÓ — Está bem, homem desconfiado!

PINHÃO — O seguro morreu de velho. O velho dobrou na esquina.

CAROLA — Saiam, eu enfrento Seu Euricão. É preciso preparar o terreno. Pinhão, fique, preciso de ajuda!

Cena 5

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DODÓ põe o disfarce e sai atrás de MARGARIDA. Entra EURICÃO.

EURICÃO — Ladrões, só vejo ladrões! Mas Santo Antônio me protege. Carola, você sozinha aqui? Que é isso?
Onde estão os outros? Onde está Dodó Boca-da-Noite?

CAROLA — Para falar com franqueza, não prestei atenção. Deve ter saído.

EURICÃO — Que conversa é essa? Você andou remexendo no que é meu?

CAROLA — Que interesse eu teria em remexer nessas troçarias?

EURICÃO — Deixe ver os bolsos.

CAROLA — Veja.

EURICÃO — Sacuda o vestido.

CAROLA — (Obedecendo.) Está quente hoje, hein, Seu Euricão?

EURICÃO — Vire-se de costas.

CAROLA — Pois não.

EURICÃO — Deixe de manejos e abra as mãos.

CAROLA — Aqui estão.

EURICÃO — Não terá escondido nada embaixo da saía?

CAROLA — Epa, sai pra lá! Que molecagem é essa?

EURICÃO — Sua palerma, eu sou um velho. Minha intenção é outra.

CAROLA — Sei lá, isso é você quem diz!

CAROLA, se aproxima da porca e coloca a mão descuidadamente em seu dorso.

EURICÃO — (Aterrado.) Saia daí!

CAROLA — Que foi?

EURICÃO — Uma aranha, aí!

CAROLA — Ai! (Esconde-se atrás da porca, abraçando-se com ela.)

EURICÃO — Saia daí!

CAROLA— O que é?

EURICÃO — Uma lacraia enorme! Saia! Olhe a lacraia, Carola!

CAROLA — Ai! Aonde?!

EURICÃO — Aí na porca!

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PINHÃO — Ah! Aonde, que eu não estou vendo?!

EURICÃO — Desapareceu, deve ter fugido!

CAROLA — É capaz de estar embaixo da porca.

Carola abaixa-se e procura abaixo da porca com as mãos sobre ela.

EURICÃO — Carola! Olhe a barata!

CAROLA — Ai! Esta casa está cheia de bichos, Seu Euricão!

PINHÃO — Sabe por que é isso, Seu Euricão? São essas velharias que o senhor guarda aqui. Só essa porca já tem
mais de duzentos anos.

CAROLA — Por que o senhor não joga isso fora? Outro dia eu e Dona Margarida quisemos fazer uma surpresa ao
senhor. A gente ia jogar fora essa porca velha e comprar uma nova para lhe dar.

EURICÃO — (Arriando na cadeira.) Ai, ai! Miseráveis, miseráveis, assassinas, bandidas! Toque nela e quem vai
embora é você, está ouvindo? Sou louco por essa porca! Herança de meu avô... Ai Santo Antônio, querem me
roubar, e ainda por cima comprar uma porca nova que deve custar uma fortuna! Ai a crise, ai a carestia! Santo
Antônio, Santo Antônio!

CAROLA — Está certo, Seu Euricão, está certo! Diabo duma agonia danada! Deixe a porca de lado, ninguém toca
mais nela! De que é que vale uma porca? O negócio agora é evitar a facada que o tal do Deodoro Vicente vem lhe
dar.

EURICÃO — A facada?!

CAROLA — Pinhão me contou como ele faz. Chega cheio de delicadezas. A essa hora, já se informou de sua
devoção por Santo Antônio. Ele chega e faz que é devoto do mesmo santo. Elogia o senhor, elogia sua filha,
pergunta como vão os negócios, todo amável, e vai amolando a faca. Deve ser uma faca enorme, assim desse
tamanho. E depois... TCHA! (Dá a facada com a mão na barriga de EURICÃO, que cai desfalecido na cadeira.)

EURICÃO — Ai! Quanto você calcula que vai ser a facada, Carola?

CAROLA — Pelo tamanho da faca, calculo aí nuns vinte contos.

EURICÃO — Ai! Carola! Tenha compaixão de um pobre velho.

CAROLA — Mas é claro que tenho, Seu Euricão! Já pensei em tudo e vou defendê-lo contra esse urubu.

EURICÃO — Vai me defender como, Carola? Como?

CAROLA — O meio é contra-atacar com as mesmas armas. O senhor lhe oferece jantar, dá-lhe vinho, cerveja, e
quando ele estiver bem entusiasmado para dar o golpe, o senhor dá um golpe nele primeiro.

EURICÃO — E como?

CAROLA — Pedindo vinte contos emprestados.

EURICÃO — Ra, ra! Ra, ra! Grande idéia, Carola, idéia genial! Mas como é que se paga o jantar?

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PINHÃO — O senhor tira dos vinte contos!

EURICÃO — Ladrão, miserável! Já quer gastar meus vinte contos que eu arrancarei daquele criminoso com tanto
trabalho!

CAROLA — Mas Seu Euricão, o dinheiro não é seu. É de Seu Deodoro Vicente.

EURICÃO — Ai, é mesmo! Mas e se ele não emprestar, Carola?

CAROLA — Ele emprestará!... Vou dar um jeito nisso. E o senhor me dá uma comissão...

EURICÃO — Se você arranjar os vinte contos eu dou.

CAROLA — Quanto?

EURICÃO — Eu lhe dou metade daquele jerimum que o vizinho cego me deu ontem.

CAROLA — É pouco! Eu quero é dinheiro, Seu Euricão!

EURICÃO — Ai, ai! Ainda não tenho os vinte contos e já querem me roubar! Não dou, não dou de jeito nenhum.

CAROLA — Então, estou fora do negócio.

EURICÃO — Não! Preciso de você, Carola, não me abandone!

CAROLA — Então me dê minha comissão.

EURICÃO — Quanto é que você quer?

CAROLA — Quinhentos.

EURICÃO — Dou cinqüenta.

CAROLA — Estou fora!

EURICÃO — Cem.

CAROLA — Estou fora!

EURICÃO — Cento e cinqüenta.

CAROLA — Estou fora!

EURICÃO — Duzentos.

CAROLA — Estou fora!

EURICÃO — E eu também! Estou fora, porque daí não passo de jeito nenhum! Estou fora!

CAROLA — Então eu entro! Fica pelos duzentos. Vou encomendar o jantar no hotel de Dadá.

EURICÃO — E como é que ele vai pagar, se sou eu que encomendo?

CAROLA — O senhor tira dos vinte contos.

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EURICÃO — E se ele não emprestar?

CAROLA — Ai, pelo menos a gente ganha o jantar.

EURICÃO — E com que é que se paga o jantar? Com meu dinheiro?

CAROLA — O jantar não vai ser pago com os vinte contos, Seu Euricão?

EURICÃO — Ai, é mesmo. Assim, eu quero!

CAROLA — Então, Pinhão, vá e encomende o jantar que hoje aqui se come bem. Vá, Pinhão.

PINHÃO — (saindo, avista Deodoro Vicente) Meu patrão!

CAROLA — Seu patrão?

PINHÃO — Sim, chegou. Dona Paloma Arábe está recebendo meu patrão aí fora, na calçada.

CAROLA — (para Pinhão) Saia por aqui, então. É preciso que ele pense que você está do lado dele. Senão ele
desconfia, fica de sobreaviso e não empresta os vinte contos.

EURICÃO — É, Pinhão, saia por ali! Nessas coisas, a surpresa é tudo.

Cena 6
PINHÃO sai ao mesmo tempo que PALOMA entra.

PALOMA — Eurico, Deodoro Vicente está lá fora e quer falar com você.

EURICÃO — Minha irmã, eu sei que ele está lá fora, mas não quero falar com ele.

PALOMA — Mas Eurico, nós lhe devemos certas atenções.

EURICÃO — Você, que foi noiva dele. Eu, não!

PALOMA — Isso são coisas passadas.

EURICÃO — Passadas para você, mas o prejuízo foi meu. Esperava que Deodoro, com todo aquele dinheiro, se
tornasse meu cunhado. Era uma boca a menos e um patrimônio a mais. Agora, parece que ouviu dizer que eu
tenho um tesouro. E vem louco atrás dele, sedento. Vem farejando ouro, como um cachorro da molesta, como um
urubu, atrás do sangue! Mas ele está muito enganado. Santo Antônio há de proteger minha pobreza e minha
devoção.

CAROLA — Mas enquanto Santo Antônio não ajuda, vamos ajudá-lo um pouco. Seu Euricão, saia por um
momento.

EURICÃO — Você se encarrega de preparar tudo?

CAROLA — É claro.

EURICÃO — Então eu saio. Traga o cachorro, Paloma, traga o urubu. Santo Antônio há de me ajudar, e o feitiço
se vira contra o feiticeiro. Estarei por perto e, assim que o terreno estiver preparado, me chame. (Sai.)

Cena 7

17
CAROLA — Dona Paloma, espere um instante. Quero lhe dizer um negócio, em caráter confidencial.

PALOMA — Que é, Carola?

CAROLA — Pinhão está desconfiado de que Seu Deodoro vem pedir a senhora em casamento.

PALOMA — Que?!

CAROLA — É verdade, Dona Paloma! A senhora não foi noiva dele?

PALOMA — Fui, mas briguei por uma besteira e ele se casou com outra.

CAROLA — Mas o fato é que está viúvo e arrependido! Ele mandou dizer a Seu Euricão que vinha privá-lo de
seu tesouro e Pinhão acha que só pode ser a senhora.

PALOMA — Não é possível!...

CAROLA — A senhora mesmo vai ver, daqui a pouco no jantar. Mas parece que ele está meio envergonhado,
depois de tanto tempo. É natural, mas é preciso ajudá-lo.

PALOMA — (Faceira.) Ele está acanhado porque quer, eu nunca o esqueci.

CAROLA — Pois eu vou ajudar Seu Deodoro a sair do acanhamento. A senhora me deixe só com ele que eu vou
me certificar. Se for verdade, pode deixar que eu puxo a conversa na frente de Seu Euricão e a senhora será noiva.

PALOMA — Ai, Carola, estou tão confusa! Assim de repente, de surpresa, sem me dizer nada! Mas Deodoro
sempre foi meio doidinho!

CAROLA — É casamento na certa! A senhora saia e deixe tudo comigo!

PALOMA — E vai ter jantar hoje? Graças a Deus! Está certo, fale com ele e que Santo Antônio nos proteja.

Cena 8
Entra DEODORO VICENTE. PALOMA lança-lhe um olhar provocante e terno.

PALOMA — Deodoro, meu irmão vem já. Com licença, malvado! (Sai.)

DEODORO — Que foi que houve aqui, meu Deus, para Paloma me olhar assim. Que coisa esquisita!

CAROLA — O senhor ainda não soube de nada não?

DEODORO — Não, o que foi que houve?

CAROLA — Seu Deodoro, o povo daqui está desconfiado de que o senhor veio noivar.

DEODORO — E por que estão pensando nisso?

CAROLA — O senhor disse na carta que queria roubar o tesouro de Seu Euricão e todo mundo está pensando que
isso quer dizer "casar com Dona Margarida".

DEODORO — Pois estão pensando certo, Carola. Desde que Dodó saiu de casa para estudar, estou me sentindo
muito só. Simpatizei com a filha de Euricão e resolvi pedi-la em casamento, apesar da diferença de idade.

CAROLA — O senhor está parecendo meio encabulado de pedir.

18
DEODORO — É verdade, Carola. Não sei como vou começar. Minha idade não permite mais certas coisas que
agradam às moças, de modo que...

CAROLA — Então deixe comigo. Seu Euricão é louco pela filha. Não gosta nem de falar em casamento para ela,
com medo de perdê-la. Mas, ao mesmo tempo, quer casá-la, pois considera a moça uma espécie de patrimônio. O
senhor agrade o velho, seja delicado, diga que ele vai bem de saúde, fale sobre os negócios, fale em Santo
Antônio, que é a devoção dele, e deixe o resto comigo. Depois que eu tocar no assunto, estiver encaminhado, aí o
senhor faz o pedido de casamento, está bem?

DEODORO — Está ótimo, Carola. Para animá-la eu... (Remexe no bolso procurando dinheiro)

CAROLA — Nada disso, a única coisa que me interessa é a estima que sempre lhe tive. Mas já que o senhor
insiste...

DEODORO — Puxe o assunto. Creio que Euricão não criará dificuldade. Ele gosta da filha, mas se bem o
conheço, gosta ainda mais de dinheiro, e, sabendo que tenho bastante... Mas o que é isso?

CAROLA — É uma das velharias de Seu Euricão. Ele herdou essa porca do avô e não há quem faça ele jogá-la
fora.

DEODORO — Do tempo do avô, é? Interessante, muito interessante! Gosto muito de antiguidades!

CAROLA — Então eu vou chamá-lo. Seu Euricão! Seu Euricão! Seu Euricão Engole-Cobra!

Cena 9

EURICÃO — (Entrando.) Engole-Cobra é a mãe. Bom dia, Deodoro Vicente.

DEODORO — Bom dia, Eurico Arábe. Santo Antônio o guarde, Santo Antônio o proteja a você e a toda a sua
família.

EURICÃO — (À CAROLA) Se não for dinheiro emprestado, que eu me exploda! Que Santo Antônio também o
proteja, Deodoro Vicente.

DEODORO — Então, seu Eurico Arábe, sempre com saúde e prosperidade, hein?

EURICÃO — (À CAROLA) É dinheiro, não tem outra! (À DEODORO) Prosperidade, eu? Você sim, pode dizer
que vai bem com todas aquelas fazendas!

DEODORO — Que é que adianta as terras, seu Eurico? Vem a seca e morre tudo. A felicidade é que tenho amigos
e são eles que me valem nas horas de aperto.

EURICÃO — Falei! É dinheiro emprestado, filha da... Você gosta de contar desgraça para esconder a fortuna. Eu é
que só tenho miséria para contar. Os ricos, como você, contam dinheiro, os pobres, como eu, desgraça.

DEODORO — Que nada, isso é modéstia! E quanto à crise, se puder fazer alguma coisa para ajudá-lo...

EURICÃO — (À parte) Está faminto, sedento por dinheiro.

DEODORO — Que tal lhe parece minha família?

EURICÃO — Parece boa.

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DEODORO — E meu caráter?

EURICÃO — Parece bom.

DEODORO — E meus atos?

EURICÃO — Nem maus nem desonestos. (À parte) Ainda!

DEODORO — Qual é a opinião que você tem de mim?

EURICÃO — Sempre o considerei um cidadão honrado. (À parte) Até este momento...

DEODORO — Também acho o senhor um cidadão sem defeitos.

EURICÃO — (À parte) Prepare que o urubu vai atacar! (À Deodoro) O que é que você quer?

CAROLA — Seu Euricão, o senhor sabe perfeitamente que Seu Deodoro gostou de uma pessoa de sua família.

EURICÃO — Sei, mas isso já é passado.

CAROLA — Ora passado (ri de nervoso), foi agora que começou!

Carola dá um tapa nas costas de Deodoro, que grita “É!”

CAROLA — A simpatia que essa pessoa inspirou a Seu Deodoro só fez aumentar com a separação inesperada.
Portanto, Seu Deodoro veio pedi-la em casamento.

DEODORO – (erguendo-se) Sim, eu vim!

EURICÃO — Está dada, pode se considerar noivo. Porém eu preciso de vinte contos emprestados para fazer a
festa de casamento.

DEODORO — Mas eu ainda não sei se ela aceita!

EURICÃO — A responsabilidade é minha, pode se considerar noivo, seu Deodoro! E eu preciso dos vinte contos,
esse é que é o fato.

DEODORO — Então tá, mande chamar Margarida.

EURICÃO — Margarida? Pra quê?

CAROLA — Seu Deodoro quer vê-la depois de tanto tempo, é perfeitamente natural, Seu Euricão. Ele já viu Dona
Paloma, agora quer ver Dona Margarida!

EURICÃO — Ah, sim. Mas quero logo lhe dizer, Deodoro, Margarida esteve lá a convite seu. Eu não convidei
ninguém, você vai para o hotel de Dadá!

DEODORO — Está bem, mas posso ver Margarida?

EURICÃO — Pode, por que não?

DEODORO — Diziam que você era tão cheio de coisas com ela!

20
EURICÃO — Ah, sou. Mas confio em você por causa de sua idade e porque agora você é noivo. Você promete ir
para o hotel?

DEODORO — Prometo, homem cuidadoso! Não fica bem eu, noivo, hospedado em casa da noiva, não é?

EURICÃO — Ah é, nessas coisas eu sou inflexível! Pense você que eu mantenho um guarda pago com meu
dinheiro, só para tomar conta de Margarida. Ele tem ordem de não deixá-la um só instante.

DEODORO — Você paga um guarda? Um homem?

EURICÃO — Sim, mas é tão feio que não há perigo. Margarida tem ódio dele. Mas eu gosto, porque ele é
prudente e econômico, chega a me dar lições. Chama-se Dodó.

DEODORO — Meu filho tem esse mesmo apelido de Dodó!

CAROLA — Mas seu filho é coxo?

DEODORO — Você já o viu quando pirralho e sabe que não.

CAROLA — É corcunda?

DEODORO — Não.

CAROLA — Tem uma barbicha?

DEODORO — Não.

CAROLA — Se veste que nem um mendigo?

DEODORO — Não.

CAROLA — É amarrado?

DEODORO — Não.

CAROLA — Tem a boca torta?

DEODORO — Não.

EURICÃO — Então não é ele, porque Dodó Boca-da-Noite tem tudo isso e mais um pouco. Vou chamar os dois.
Margarida! Dodó Boca-da-Noite!

Cena 10
Entra MARGARIDA.

DEODORO — Oi, Dona Margarida, é um prazer imenso em revê-la.

MARGARIDA – Agradecida, senhor Deodoro.

DEODORO — Você não disse que ela é sempre vigiada?

EURICÃO — Margarida, você quer me desmoralizar? Sustente o pudor! Olhe o recato! Onde está Dodó?

MARGARIDA — Seu Dodó sentiu-se mal e ficou na dispensa, papai.

21
EURICÃO — Sentiu-se mal o quê? Empregado meu tem lá licença para se sentir mal! Dodó, Dodó! Dodó
Boca-da-Noite!

DODÓ entra, exagerando a corcova, com o andar de costas, para não ser reconhecido.

EURICÃO — Cumpra com sua obrigação, está ouvindo?

DODÓ — Estou.

EURICÃO — É um bom servidor, gosto muito dele! Venha cá conhecer meu amigo.

DODÓ — Ai!

EURICÃO — Que foi?

MARGARIDA — Eu não disse que ele estava passando mal...

DODÓ — Ai! Seu Eurico, estou me sentindo tão mal.

DEODORO — Quer ajuda, moço?

DODÓ — (Dando-lhe as costas.) Não! Não! Já passou! Já passou!

CAROLA — Seu Euricão mandou chamar a senhora, Dona Margarida, porque Seu Deodoro Vicente fez o pedido
de casamento.

EURICÃO — E já que ele vai entrar na família, minha filha...

MARGARIDA — É verdade?!

DEODORO — É, Margarida. (encabulado) Ainda não tive tempo de ir ao hotel... Nem mudar de roupa... mas
quero logo pedir uma entrevista a você para conversarmos.

EURICÃO — Outra entrevista..., Não. A entrevista é essa!

DEODORO — Mas Eurico, eu...

MARGARIDA — (cortando Euricão que iria respondendo) Não precisa nem o senhor falar, meu pai. Prefiro ir
para um convento.

EURICÃO — Também não precisa ser assim, Margarida. Está vendo o que é recato, Deodoro? Aí, Margarida!
Sustente o pudor, olhe o recato. Trata-se de Deodoro, é uma pessoa séria e de mais idade, e que vai fazer parte da
nossa família. Mas recato é recato! Entrevista, sozinha, com ninguém!

DEODORO — Mas Eurico, eu...

MARGARIDA — Já disse que prefiro ir para um convento. Vá marcar entrevista com gente de sua idade, está
ouvindo? E saia daqui com o seu casamento! Saia daqui senão eu...

Cena 11
CAROLA põe o dedo nos lábios de Margarida e faz-lhe sinal para que ela saia. MARGARIDA se interrompe
bruscamente e sai chorando, saindo arrebatadamente da sala, acompanhada por DODÓ.

22
DODÓ – Ai, meu Santo Antônio!

TODOS – Ãh...

DODÓ – (voltando a personificar-se de Dodó-Boca-da-Noite) Ai, meu Santo Antônio! (Sai)

DEODORO — Mas Eurico, eu...

CAROLA — Coitada, foi pega de surpresa pela notícia. Margarida é muito apegada com a família, principalmente
com Dona Paloma, e está com medo de perdê-la.

EURICÃO — É isso mesmo. Não se ofenda, Deodoro, vou acalmá-la. Uma conversa comigo e em dois tempos ela
vai ser a primeira a apoiar a idéia. (Sai.)

DEODORO — A apoiar que idéia? A da entrevista?

CAROLA — Não, a do casamento.

DEODORO — Bem que eu não queria fazer isso, assim de repente... Agora a moça está nervosa.

CAROLA — Isso passa, deixe comigo! Ela faz isso porque está na frente do pai. Mas quando ela falar com o
senhor a sós, há de ver que ela quer o casamento.

DEODORO — Mas o fato é que não vou poder falar com ela a sós. Pois o Senhor Boca da Noite...

CAROLA — Ah, vai sim, e quem vai arranjar a entrevista sou eu.

DEODORO — Você? Como? Onde?

CAROLA — Aqui e de noite, depois que o velho estiver dormindo.

DEODORO — E se alguém acordar?

CAROLA — É fácil disfarçar. Dona Margarida levanta-se às vezes à noite, para rezar escondido pela mãe.

DEODORO — Escondido por quê?

CAROLA — Seu Euricão não gosta, pois sua mulher o abandonou e, depois que ela morreu, ele mandou buscar o
corpo e a enterrou aí. Mas não gosta nem que se fale dela. E se Dona Paloma acordar, ela diz que foi por isso.
Dona Paloma é mais perigosa, tem mania de recato. É a conselho dela que Seu Euricão fica tão rigoroso com a
filha.

DEODORO — Paloma sempre foi assim... Mas enfim, você arranja a entrevista?

CAROLA — Arranjo. Depois do jantar, quando todo mundo estiver deitado, eu destranco essa porta. Aí o senhor
volta e pode falar com Dona Margarida.

DEODORO — Mas será que ela aceita?

CAROLA — Aceita, a paixão dela pelo senhor é grande, vai vencer de uma vez só o pudor e o recato.

DEODORO — Está bem, mas cale a boca. O homem vem aí.

Cena 12

23
Entra EURICÃO.

EURICÃO — A moça se trancou e não houve jeito. É o recato, coitada. Mas você compreende isso, não é?

DEODORO — Compreendo perfeitamente.

EURICÃO — Então adeus, Deodoro Vicente, não quero retê-lo mais aqui, você deve estar com fome e lá no
hotel...

CAROLA — Patrão!

EURICÃO — Que é?

CAROLA — E o jantar?

EURICÃO — Cale a boca, miserável!

CAROLA — O senhor não prometeu um jantar? Para celebrar o noivado.

DEODORO — Um jantar? Ah, eu aceito, por que não? Virei para jantar e depois volto para dormir no hotel.

EURICÃO — Está bem, está bem. (À CAROLA) Essa você me paga! E a respeito dos vinte contos?

DEODORO — Tenha calma, no jantar nós falaremos.

EURICÃO — Ótimo, tudo bem. Então até o jantar. (estira a mão para Deodoro)

DEODORO — (aperta a mão de Euricão) Então, até já! E preparem o espírito da noiva! (Sai.)

CAROLA — Seu Euricão, espero que o senhor não se esqueça de minha comissão.

EURICÃO — Que comissão?

CAROLA — A que o senhor prometeu, se eu arranjasse os vinte contos.

EURICÃO — E quem disse que você me arranjou vinte contos? Ninguém me arranjou vinte contos. Deodoro
Vicente que prometeu pra mim. Mesmo assim ainda não arranjou nada ainda. Vai arranjar!

CAROLA — Mas quem planejou tudo fui eu!

EURICÃO — Mente, ordinária! Você tinha planejado tudo para o jantar, e se eu não fosse esperto, talvez a essa
hora já estivesse esfaqueado por ele. Quem pressentiu o perigo fui eu! Quem pediu o dinheiro fui eu e quem vai
arranjar o dinheiro sou eu! Você não tem direito à comissão nenhuma!

CAROLA — Mas Seu Euricão, eu...

EURICÃO — Adeus. Carola, já basta o prejuízo do jantar.

CAROLA — Mas Seu Euricão...

EURICÃO — Dê o fora, Carola. Sai! Sai! Sai!

Cena 13
CAROLA sai de má vontade. EURICÃO vai até a porca e alisa-a carinhosamente.

24
EURICÃO — Ai minha porquinha do coração, a luta é grande contra os ladrões. Mas arranjei mais vinte contos
para seu buchinho.

Entra DEODORO.

DEODORO — Eurico...

EURICÃO — (De susto) Ai Santo Antônio! (Cai no chão) Que negócio é esse de sair da casa dos outros e voltar
no mesmo pé?

DEODORO — Eurico, me desculpe, eu...

EURICÃO — Você notou alguma coisa?

DEODORO — Alguma coisa de quê?

EURICÃO — Pensa que sou idiota, para te dizer? Notou ou não notou?

DEODORO — Não notei nada!

EURICÃO — E que veio fazer aqui, entrando de emboscada? Como um ladrão?

DEODORO — O que é que você quer dizer com isso? Voltei porque vim lhe oferecer preço por essa porca que
você guarda aí.

EURICÃO — Preço por minha porca? Ai! Socorro! Ladrão! Pega o ladrão!

DEODORO — Que é isso, homem?!

EURICÃO — Ai a crise, ai a carestia! Ai Santo Antônio! Veja o que querem fazer comigo!

DEODORO — Mas afinal de contas...

EURICÃO — Ai minha porquinha! Esse criminoso quer me tomar! Ai minha porquinha! (Cai desfalecido).

DEODORO — Está bem, homem de Deus! Se não quer vender, não venda! Precisa essa agonia toda? Diabo duma
esquisitice danada! Vá ser esquisito assim no inferno!

Cena 14
DEODORO segue saindo, quando encontra PALOMA.

PALOMA — Oi, Eudoro...

DEODORO — (Formal) Minha senhora!

PALOMA — Que minha senhora que nada, malandrinho! Já soube de tudo e vim lhe dizer que concordo de todo
coração! E que está tudo esquecido.

DEODORO — Fico muito contente com isso, Paloma.

PALOMA — E eu mais ainda, meu Dodósão. Olhe como estou! Desde que você apareceu que meu coração
começou a bater. Você acha que eu devo lhe dar um beijo?

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DEODORO — Quê?! Como assim Paloma? Você acha que isso seria prudente?

PALOMA — Deixe de preconceitos, homem! Agora estou diferente, a vida me ensinou a ser menos tola! (tenta
beijar DEODORO) Não quer agora? Bem, então fica para mais tarde. Vou me vestir para o jantar. Mas não saio
daqui sem lhe dar um beliscão no espinhaço quero me lembrar dos velhos tempos. Chegue aqui, safado!

DEODORO — Paloma!

PALOMA — Ai meu Deus, quanta timidez, como é lindo isso!... Ai! Esse Dodó sempre foi doidinho! Agora
comigo não tem isso não... Que venha o amasso!

DEODORO — Por Deus, Paloma! Que Diabo de povo mais esquisito! Paloma! Calma! Paloma! (Sai correndo,
com PALOMA atrás.)

Cena 15

EURICÃO — Ai minha porquinha adorada! Querem roubá-la! Querem levar meu sangue, minha carne, meu pão
de cada dia, a segurança de minha velhice, a tranquilidade de minhas noites! Tá parecendo que Santo Antônio me
abandonou por causa da porca. Que santo mais ciumento, é "ou ele ou nada"! É assim? Pois eu fico com a porca.
Fui seu devoto a vida inteira: Quando minha mulher me deixou, a porca veio para seu lugar. E nunca nem ela nem
você me deram a sensação que a porca dá! Ah, minha bela, ah, minha amada! Aqui você fica muito à vista de
todos, todo mundo deseja a sua beleza, e seu valor. É melhor levá-la para um lugar escondido. A mala do porão!
Lá você ficará em segurança e eu poderei dormir de novo.

Entra num porão com a grande porca de madeira, e volta sem ela.

EURICÃO — Agora, sim! E você, Santo Antônio, deve se contentar com minha pobreza e minha devoção. Não
deixe que esses urubus descubram meu dinheiro! Faça isso, meu santo, e a banda de jerimum que eu ia dar a
Carola será sua. Menos as sementes, viu? As sementes eu quero para fazer xarope e vender no armazém. Ganha-se
pouco, mas sempre é alguma coisa para se enfrentar a crise e a carestia! (Persigna-se* e sai.)

Observação: Persigna-se significa fazer o gesto: “Pelo Sinal da Santa Cruz” com o sinal da cruz cristã na testa;
“Livre-nos Deus Nosso Senhor” com o sinal da cruz cristã na boca; “Dos Nossos Inimigos” com o sinal da cruz
cristã no peito; e por fim “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém!” com o sinal da cruz cristã.

SEGUNDO ATO
Cena 16
Mesma sala. Entram CAROLA, MARGARIDA e DODÓ.

CAROLA — Mas que jeito eu podia dar? Ele queria a entrevista, e eu precisava agradá-lo para ele confiar em
mim, o jeito foi marcar!

DODÓ — Que jeito que nada! O que há é que você se acostumou a agradar meu pai e ficou contra mim!

CAROLA — Deixe de ser ingrato, Seu Dodó. Eu estou tentando arranjar seu casamento!

MARGARIDA — É, amor, que mal faz? Eu vou, e, se achar um modo de afastar seu pai sem mágoa, afasto.

DODÓ — E ainda por cima, o perigo que você nos fez correr! Imagine se Margarida não visse o gesto que você
fez! Era capaz de deixar tudo a perder.

CAROLA — Que é que eu podia fazer? Era preciso que seu pai acreditasse que a noiva era ela. Agora, que já está
tudo encaminhado, o senhor fica aí atravancando. Queria ver era você na hora, inventar tudo isso de repente,
noivar seu pai com Dona Paloma, quando ele pensava que era com Dona Margarida, noivar Dona Paloma no

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pedido da sobrinha, fazer Seu Euricão acreditar que o candidato a genro queria ser cunhado... O senhor ainda acha
pouco?

MARGARIDA — É, meu bem, Carola já fez até demais! Por que você não concorda com essa entrevista?

DODÓ — Não concordo porque não gosto de ver você metida nisso!

MARGARIDA — Mas meu bem, trata-se de seu pai!

DODÓ — Não tenho nada com isso, agora ele é candidato a se casar com você.

CAROLA — A entrevista é que vai resolver tudo, Seu Dodó!

DODÓ — Resolver tudo o quê? Ela vai é complicar tudo, isso sim! Na hora, papai pode entender a história de
repente e a gente está desgraçado. Porque, se Seu Euricão descobrir que papai quer casar é com Margarida, desfaz
o noivado de Dona Paloma na mesma hora e faz o que meu pai quer! Seu Euricão faz qualquer acordo, contanto
que não perca o dinheiro!

MARGARIDA — Ou! Isso também não é certo! Zombar da pobreza de meu pai! Ele é pobre, mas não vê nada no
mundo além de mim!

DODÓ — (Duvidoso.) Eu sei!

MARGARIDA — Você é quem parece de repente cheio de dureza para com ele! Você não já sabia como ele era?
Por que, então, esses modos, de repente? Parece é que você quer me deixar de lado e está procurando um pretexto!

DODÓ — E você? Parece estar ansiosa por essa entrevista! Pois vá! Vá, siga os conselhos de Carola, e quando
voltar, jogue fora a aliança que lhe dei. Pois não quero casar com uma mulher que marca entrevista com outro!
(Sai, MARGARIDA chora.)

CAROLA — Não precisa chorar, Dona Margarida. Quando Seu Dodó chegar à conclusão de que tudo está bem,
ele acaba com essa besteira.

MARGARIDA — Eu sei lá, Carola! Que complicação, meu Deus! E essa palhaçada de entrevista... Olha... Eu não
vou, Carola, eu não vou de jeito nenhum. Afinal, quem marcou a entrevista foi você. Pois vá você, foi você quem
marcou, então é você quem tem que ir!

CAROLA — Mas Dona Margarida...

MARGARIDA — Vai! Vá e não adianta discutir!

CAROLA — Mas Dona Margarida, eu...

MARGARIDA — Eu lhe dou um vestido meu e você vai em meu lugar! Com meu vestido, de noite, no escuro,
pode passar por mim, perfeitamente!

CAROLA — Ai meu Deus... Tem que ser um vestido que Seu Deodoro conheça, senão não dá certo!

MARGARIDA — Eu lhe dou este, antes da hora!

CAROLA — Mas Dona Margarida...

MARGARIDA — Não admito discussão! É isso e é isso mesmo. Prepare-se, na hora eu lhe dou o vestido e você
vai à entrevista! (Vai saindo.)

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CAROLA — Mas é claro que vou à entrevista. (À parte) Até porque o meu plano todo era esse!

Cena 17
PINHÃO, que vem entrando, ouve a frase. MARGARIDA sai.

PINHÃO — Que história é essa, Carola? É a entrevista que o patrão marcou com Dona Margarida?

CAROLA — É, eu vou no lugar dela!

PINHÃO — Não quero você com o patrão aqui, ouviu bem?! Aquilo é um viúvo sonso dos seiscentos diabos.

CAROLA — Espere lá, Pinhão, você não entendeu nada!

PINHÃO — Não entendi, nem quero entender, e aliás, você foi ao hotel falar com ele?

CAROLA — Fui. Precisava esclarecer certas coisas.

PINHÃO — E por que não me disse que ia?

CAROLA — Como é que é?

PINHÃO — Você foi para falar sobre a entrevista?

CAROLA — Fui!

PINHÃO — E vai a essa entrevista com ele, de noite?

CAROLA — Vou!

PINHÃO — Vai como?

CAROLA — Vou do jeito que entender!

PINHÃO — Pois quero lhe dizer logo que é essa entrevista ou eu! Trate de escolher!

CAROLA — Já escolhi!

PINHÃO — E quem ganhou?

CAROLA — A entrevista! Você quer mandar em mim, é? Que desconfiança é essa, se nunca lhe dei um motivo?
Eu vou quer você queira, quer não!

PINHÃO — Pois adeus, Carola. Quem gosta de bagunça é o feirante. (Sai).

CAROLA — (chorando, mas logo enxuga as lágrimas) Assim fica difícil! Ninguém deixa eu falar e está todo
mundo contra mim!

Cena 18
Entra PALOMA.

PALOMA — CAROLA, estava precisando falar com você. O que é isso? Que é que você tem?

CAROLA — Cada um sabe de suas agonias, Dona Paloma!

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PALOMA — Ah, isso é verdade, Carola. Eu mesma estava tão contente e já começo a ficar inquieta.

CAROLA — Inquieta? Por quê?

PALOMA — É Deodoro, Carola! Achei Deodoro tão esquisito para uma pessoa que veio reatar um noivado!

CAROLA — É o tempo que passou, Dona Paloma!

PALOMA — Você acha?

CAROLA — Não tenho dúvida... Ele continua como mesmo entusiasmo! Chegou até a pedir que eu arranjasse
uma entrevista dele com a senhora!

PALOMA — Uma entrevista? Quando?

CAROLA — À noite, quando o povo estiver dormindo.

PALOMA — Eurico vai estranhar.

CAROLA — Para estranhar, ele vai ter que saber, e Seu Euricão não vai saber de nada.

PALOMA — E se alguém acordar?

CAROLA — A senhora vem disfarçada. Veste um vestido de Dona Margarida. E se alguém acordar, a senhora
finge que é ela, finge que veio rezar, e ninguém desconfia. De noite, é fácil.

PALOMA — E como é que eu vou arranjar o vestido de Margarida?

CAROLA — Pode deixar que disso eu me encarrego. Depois do jantar, deixo a porta destrancada e Seu Deodoro
vem. Quando tudo estiver preparado, lhe entrego o vestido e a senhora fala com ele.

PALOMA — Foi Deodoro quem pediu isso?

CAROLA — Foi.

PALOMA — Então eu vou.

CAROLA — Mas não vá falar com ele sobre isso antes, não! Alguém pode ouvir e vai tudo por água abaixo.

PALOMA — Quando a isso, podes ficar tranquila. Mas e Pinhão, já encomendou o jantar?

CAROLA — Encomendou, já chegaram alguns dos Pratos.

PALOMA — Então vamos ajeitar tudo, porque meu noivo chega já.

Cena 19
Saem. PINHÃO e DODÓ entram, vindos de lados opostos, ambos arrependidos.

DODÓ — Margarida... Margarida... Margarida... Pinhão! Que há?

PINHÃO — Nada, Seu Dodó. Briguei com Carola e vinha fazer as pazes.

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DODÓ — Eu também briguei com Margarida e vinha para isso mesmo!

PINHÃO — Terá sido um negócio de uma entrevista, Seu Dodó?

DODÓ — Foi, Pinhão.

PINHÃO — Eu fiquei danado porque Carola disse que ia no lugar de Dona Margarida.

DODÓ — Como, se Margarida me disse que ia à entrevista?

PINHÃO — Pois então seu pai marcou entrevista com as duas, Seu Dodó.

DODÓ — O que você acha dessa entrevista, Pinhão?

PINHÃO — De sua noiva quem sabe é o senhor, mas a minha, não quero que vá de jeito nenhum.

DODÓ — Aí há alguma coisa, logo as duas deram de repente para querer ir à entrevista... O que será?

PINHÃO — Eu sei lá!

DODÓ — Não custa nada esclarecer. Vamos fazer o seguinte: quando Carola abrir a porta, a gente vem e se
esconde aqui. Assim, assiste à entrevista e pode saber, afinal de contas, o que é isso. Está certo?

PINHÃO — Certo, Seu Dodó. (estira a mão e acorda com Dodó).

DODÓ — E o jantar? Você já arranjou?

PINHÃO — Arranjei, os pratos já começaram a chegar.

DODÓ — (avistando) Chegaram uns homens aí fora.

PINHÃO — São os dois empregados do hotel, certamente vêm com a porca. Arranjei uma porca assada para nós.

DODÓ — Ah!... Então, pelo menos, hoje se tira a barriga da miséria! Estou aqui há dois meses, e é a segunda vez
que vou comer de noite. Vá receber a porca. Homem de Deus!

Cena 20

PINHÃO — (Saindo, gritando para fora) É a porca? Levem lá para trás, nossa alegria hoje é essa porca. É a
porca? (Sai)

EURICÃO — (Cruza a cena, transtornado.) Ai, a porca! Pega, pega o ladrão! (Sai no encalço de PINHÃO.)

Ouvem-se gritos, som de pancadas. PINHÃO entra correndo, com EURICÃO ameaçador atrás. EURICÃO vai
atacar sobre PINHÃO, que puxa uma faca.

EURICÃO — Pega, pega o ladrão! Assassino, ladrão!

DODÓ — O que é isso, Seu Eurico?! Que é isso, Pinhão?! Guarde essa faca imediatamente!

EURICÃO — Não, deixe ele assim, quero que a polícia veja! Pega! Pega o ladrão! Vou denunciá-lo à polícia!

PINHÃO — Por que?

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EURICÃO — Porque você anda com uma faca.

PINHÃO — Aqui todo mundo anda com uma faca!

EURICÃO — Mas você me ameaçou.

PINHÃO — Ameacei para não apanhar, Seu Dodó é testemunha.

EURICÃO — Dodó não é testemunha de coisa nenhuma, que o patrão dele sou eu!

PINHÃO — Por que o senhor bateu em mim?

EURICÃO — Ainda pergunta? Quer mais?

PINHÃO — Venha pra você ver!

EURICÃO — (Avançando, PINHÃO recua.) O que é que você veio fazer em minha casa sem minha ordem?

PINHÃO — (Mesmo tom, mesmo ritmo, EURICÃO recua.) Vim trazer o jantar que o senhor encomendou.

EURICÃO — (Idem.) E é de sua conta, que se coma ou não se coma em minha casa?!

PINHÃO — (Idem.) O que eu quero saber é se é para: trazer o jantar ou não!

EURICÃO — (Idem.) E eu, o que quero saber é se minha casa se salvará!

PINHÃO — (Idem.) E eu, o que quero é me empanturrar com essa porca!

EURICÃO — Com a porca? Ai minha porca, pelo amor de Deus! Santo Antônio, Santo Antônio! Saiam, saiam
daqui imediatamente. Entrem aí que eu vou trancar vocês dois, seus ladrões! Seus criminosos! Entrem já. (Vai
trancá-los no porão, mas lembra-se de que a porca está lá.) Não, aqui não entra ninguém! Fiquem de costas, todos
dois. Tapem os olhos. Já! Se tirarem as mãos, denuncio vocês dois ao Delegado como ladrões! (Pega a porca no
porão, entra no quarto para deixar a porca) Fiquem aí. Não se virem! Olhe a denúncia, boto todos dois na cadeia.
Você se virou, Dodó?!

DODÓ — Não, Seu Eurico.

EURICÃO — E você, ladrão?

PINHÃO — Sou eu, é?

EURICÃO — Quem mais havia de ser?! (Euricão volta aliviado) Você se virou?

PINHÃO — Eu não!

EURICÃO — Fiquem como estavam, não se virem.

EURICÃO — Está bem agora, podem se virar. Afinal, o que foi que houve aqui?!

DODÓ — Nada!

EURICÃO — Eu ouvi esse tal de Pinhão gritar.

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PINHÃO — E eu gritei mesmo, Seu Euricão.

EURICÃO — E o que foi que você gritou?

PINHÃO — Eu gritei pela porca!

EURICÃO — Está vendo? Ele é um ladrão, criminoso! Um bandido que quer sugar meu sangue. O que você quer
com minha porca?!

PINHÃO — Quero me saciar, Seu Euricão!

EURICÃO — Você quer devora-la, não é?!

PINHÃO — Sim, eu quero comer a porca que Seu Dadá mandou para o jantar.

EURICÃO — Hã!...

PINHÃO — A que acabou de chegar, seu Euricão!

EURICÃO — A porca era?... O jantar (entendendo e disfarçando.) Ah, sim, naturalmente, a porca! Assada ou
cozida, Pinhão?

PINHÃO — Eu sei lá!

EURICÃO — Está bem, o certo é que é preciso ter cuidado! Todo cuidado é pouco, Santo Antônio, todo cuidado é
pouco! E é melhor eu me certificar. Se não existir essa tal porca, vou fazer uma denúncia e o Delegado prenderá
você como ladrão. (Sai.)

Cena 21
PINHÃO, desconfiado, vai até a porta do quarto e fica olhando, pensativo.

PINHÃO — O senhor entendeu alguma coisa, Seu Dodó?

DODÓ — Isso é um louco! Você não imagina até onde vai a avareza dele. Desde que estou aqui, só se jantou uma
vez. E ele exige que a gente pague a refeição, porque diz que comer mais de uma vez por dia é luxo!

PINHÃO — E quem não tem para pagar, como Carola?

DODÓ — Quem não tem, ele desconta no valor no ordenado.

PINHÃO — Aí é que quero saber como! Ela me disse que desde que chegou aqui não recebeu um tostão!

DODÓ — O golpe dele é esse! Dá o jantar e cobra o preço. Carola não pôde pagar porque não recebeu o
ordenado. Aí quando Carola cobra o ordenado, ele diz a ela para primeiro pagar o jantar. E como Carola não tem
dinheiro para pagar o jantar, ele não lhe paga o ordenado. E assim, por conta do jantar que ele cobra a cada mês,
economiza o salário dos empregados.

PINHÃO — Que ladrão! Filho da...

DODÓ — Ladrão nada, Pinhão, ele é louco.

PINHÃO — Seu Dodó, eu só acredito que uma pessoa é doida quando ela começa a rasgar dinheiro. Com fama de
maluco, Raul Seixas enriqueceu.

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DODÓ — Felicidade nossa que deixei um rapaz vivendo lá no Recife me passando pelo correio a mesada que meu
pai me dá todo mês. E assim, vamos vivendo, eu e Carola. Mas já estou ficando cansado de ter que suportar as
loucuras desse velho, todo esse fingimento, essas mentiras, este disfarce... Sabe de uma coisa, Pinhão?... Não estou
mais disposto a suportar isso. (DODÓ tira o disfarce) Eu vou revelar tudo!

PINHÃO — Mas, Seu Dodó...

Cena 22
Entram MARGARIDA, emburrada, e CAROLA, conduzindo DEODORO VICENTE.

CAROLA — Venha por aqui, Seu Deodoro.

PINHÃO acena para CAROLA, o DODÓ sem o disfarce, ela não entende e dá-lhe as costas, zangada.

DODÓ — Margarida...

CAROLA — Ai! Um ladrão!

TODOS – Um ladrão?!

CAROLA — (Agarra-se à Deodoro) Um ladrão, Seu Deodoro! Ai, um ladrão! (Empurra DEODORO, saem)

MARGARIDA – (avista DODÓ e sai atrás de CAROLA) Ai meu Santo Antônio!...

DODÓ — (desesperado) Um ladrão?! Pega! Pega o ladrão! Pega o ladrão!

PINHÃO — (Avisando.) Seu Dodó! Seu Dodó!

PINHÃO sai atrás de DODÓ. PINHÃO e MARGARIDA dão uma volta na casa e voltam cada qual por um lado.

PINHÃO — Onde estão eles?

MARGARIDA — Não sei. Pinhão, veja se acha Dodó e avisa a ele!

PINHÃO — E a senhora, leve Seu Deodoro para a outra sala!

MARGARIDA — Está bem, vá por lá que eu vou por aqui. (Saem PINHÃO e MARGARIDA)

Entram DODÓ e DEODORO, cada um por um lado, procurando o ladrão. Caminham de costas e vão se
encontrar, mas na hora exata, cada um vira o rosto para o lado oposto. Se cruzam. Vão ao limiar da cena e param
ambos.

DEODORO e DODÓ — Escondeu-se! Será que está por aqui?

DEODORO E DODÓ — Não vi nada, é melhor voltar! (Ambos se voltam, dão-se um encontrão.)

DEODORO — Ai, o ladrão!

DODÓ — Ai meu Santo Antônio! (cobre o rosto com as mãos e tenta fugir)

DEODORO — (agarra DODÓ pelo pescoço, por trás e chama) Carola! Pinhão! Agarrei! Peguei o ladrão!

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PINHÃO, CAROLA E MARGARIDA entram para acudir. CAROLA dá um salto e agarra-se no lombo de
DEODORO. PINHÃO desengalfinha DODÓ com um puxão. PALOMA entrando para acudir, é agarrada por
DEODORO na retaguerda.

DEODORO – Volta aqui, que eu te peguei e não solto mais!

PINHÃO — Ah, ladrão safado! (À Dodó) Tome, pegue! (Entrega os adereços de Dodó-Boca-Da-Noite à Dodó)

MARGARIDA — Ah, bandido! (À Dodó) Bote a barba, Dodó!

PINHÃO — Ah ladrão da peste! (À Dodó) Bote a barba, desinfeliz!

MARGARIDA — Ah, ladrão lesado! (À Dodó) Bote logo esta merda! (Dá um tapa na cabeça de Dodó)

CAROLA — (Aos sopapos com DEODORO) Ladrão, ladrão safado!

PALOMA — O que é isso?!

DEODORO — Espere aí, sou eu!

CAROLA — Eu o quê, safado?! Roubando a casa do meu patrão! (Dá-lhe umas tapas na cara.)

PALOMA — Carola, você está doida?!

CAROLA — Ele é o ladrão, Dona Paloma! (DODÓ acaba de pôr o disfarce)

DEODORO — Não! Sou eu, Carola! Deodoro Vicente. (aponta para DODÓ) Ele é que é o ladrão!

DODÓ — Espere, seu Deodoro, sou eu! O segurança de margarida.

PINHÃO — Era o senhor, Seu Dodó?

CAROLA — Espere, é o senhor Seu Deodoro? Ah, mentira...

DEODORO — Claro que sou eu, criatura! Você está doida?! Que confusão é essa?

CAROLA — É Seu Dodó Boca-da-Noite com essa cara de fantasma, assombrando a gente! Fui entrando, pensei
que era um ladrão!

DEODORO — Pois trate de olhar em quem dá, supapos, Por acaso, eu tenho cara de ladrão?

PALOMA — De ladrão pode não ter, mas é um safado, bandido!

DEODORO — Eu?

PALOMA — Sim, considero você um bandidão bem perigoso.

DEODORO — Eu, Paloma?

PALOMA — Sim, você! Seu atrevidinho...

DEODORO — Minha senhora...

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PALOMA — Minha senhora o quê, malandro?! Planeja suas histórias e depois vem de fingimento! Mas eu
concordei com tudo e quero que saiba que a noiva estará presente.

DEODORO — (Inocente) Estará presente onde?

PALOMA — Que fingido, que malandro!

DEODORO — Malandro, eu? Por quê?

PALOMA — Ora por quê! Marca suas entrevistas, vem com suas audácias e depois ainda se admira quando a
gente o chama de safado! (ri)

DEODORO — E você sabe?

CAROLA — Sabe, Seu Deodoro, ela sabe de tudo! Mas felizmente fez uma exceção e está inteiramente de
acordo, eu consegui convencê-la, não foi, Dona Paloma?

PALOMA — Foi, ora se foi!

CAROLA — Então vamos saindo para o jantar?

DEODORO — Mas tinham me dito que você era tão severa!

PALOMA — Com os outros, com você nunca mais! Quero recuperar o...

MARGARIDA — Pega o ladrão!

PINHÃO — Pega! Pega o ladrão!

PALOMA — Ai, socorro, Deodoro! (Abraça DEODORO)

DEODORO — Mas não vejo ladrão nenhum! (Ao abraço de PALOMA) Que negócio é esse? (À TODOS) Vocês
estão loucos? Quem foi que gritou?

MARGARIDA — Fui eu, mas estava somente me lembrando de agora! Foi tão engraçado! (Todos riem
forçadamente)

CAROLA — É... Eu vinha entrando, vi Seu Dodó e de repente gritei "Pega ladrão!". Foi tão engraçado! (Ri
forçadamente)

DEODORO permanece de cara fechada.

PINHÃO — Foi! A Carola vinha entrando, viu Seu Dodó e gritou "Pega ladrão!". Foi tão engraçado! (Ri
forçadamente)

DODÓ — Eu vinha entrando, Carola me viu e gritou "Pega ladrão!". Foi tão engraçado! (Ri forçadamente)

PALOMA — Que coisa, não?! A Carola vinha entrando, avistou o seu Dodó e gritou "Pega ladrão!". Deve ter sido
tão engraçado! (Ri espontaneamente) (Somente então DEODORO ri.)

CAROLA— "Pega ladrão!" Ai ai... Foi tão engraçado! E então vamos? Vamos, senão, ai, meu Deus, hoje eu me
acabo de tanto rir! (Sai empurrando todo mundo e todo mundo “rindo”. PINHÃO fica pensativo, olhando a sala).

Cena 23

35
VOZ DE EURICÃO — Ai, meu Deus! Pega! “Pega esse ladrão!” Estão me roubando!

PINHÃO se esconde e EURICÃO entra, aterrorizado.

EURICÃO — Gritaram "Pega ladrão!". Quem foi? Onde está? Pega, pega ele! Santo Antônio, Santo Antônio, que
diabo de proteção é essa?! Ai, a porca, ai meu sangue, minha vida, ai minha porquinha! Ai... Não, está aqui, graças
a Deus!... O que terá acontecido, minha Nossa Senhora?!... Terão desconfiado do porquê tirei a porca do lugar?...
Deve ter sido isso, desconfiaram e começaram a rondar minha casa. É melhor deixá-la aqui, à vista de todos, assim
ninguém lhe dará importância! Ou não? Que é que eu faço, Santo Antônio? Deixo a porca lá, ou a trago para cá,
sob sua proteção? Desde que ela saiu daqui que começaram as ameaças!... É melhor trazê-la. E com uma manta.
Santo Antônio, faça com que não apareça ninguém! Vou buscar minha porquinha e não quero ninguém aqui.
(Entra no sotão e volta com a porca.)

DEODORO entra e EURICÃO imediatamente cobre a porca com uma manta.

EURICÃO — Oh! Santo Antônio! Que safadeza é essa? Isso é lá coisa que se faça?

DEODORO se aproxima e olhar EURICÃO, examinando-o com um misto de curiosidade, desgosto e compaixão.
Chega a tocar na roupa de para inspecioná-la. EURICÃO, desconfiado, se afasta, aos arrancões, mas sem querer
sair dali para não despertar suspeitas.

DEODORO — Euricão, não repare de eu dizer isso, mas você bem que podia ter se vestido melhor para o jantar.

EURICÃO — A aparência depende da fortuna e a fortuna depende do que se tem. Eu não tenho nada. Os ricos,
como você, é que têm essa obrigação. Os pobres, como eu, não!

DEODORO — Pois não há quem me convença de que você é tão pobre quanto vive dizendo! Com essa cara e
com essa modéstia, tem, no mínimo, uma botija escondida. (ri)

EURICÃO — (exaltado) Ai!

DEODORO — Que é?

EURICÃO —Você vem com suas insinuações e depois se admira!

DEODORO — Mas foi uma brincadeira, Eurico!

EURICÃO — Não gosto dessa qualidade de brincadeira!

DEODORO — Está bem, desculpe. Porém vou entrar na família, e posso me permitir a certas intimidades!

EURICÃO — Por falar nisso, você pode me emprestar logo os vinte contos! Preciso deles para fazer a festa.

DEODORO — Está bem, no jantar, trataremos disso.

EURICÃO — No jantar, não! No jantar a gente começa a comer, a beber, o coração afraca, a vontade se abranda, o
tempo vai passando, e daqui a pouco a oportunidade passa! Você quer casar ou não quer?

DEODORO — Quero!

EURICÃO — Com festa ou sem festa?

DEODORO — Bem, ela merece uma...

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EURICÃO — Então passe os vinte contos pra cá. Agora! Já!

DEODORO — E quem lhe disse que eu tenho os vinte contos aqui?

EURICÃO — Tem papel e caneta aí! Faça um vale!

DEODORO — Mas eu... Está bem, vou fazer. (Assina o vale) Está aí. (Entrega o vale à EURICÃO).

EURICÃO — Obrigado, obrigado, muito obrigado! Agora sinto-me seguro! (Saindo) Até o jantar.

DEODORO — E o que é isso?

EURICÃO — Isso o quê?

DEODORO — Isso que guarda embaixo da capa.

EURICÃO — (obsessivo) Saia daí!

DEODORO — Meu Deus, que homem mais esquisito!

EURICÃO — Você não tem nada que investigar atrás do que é meu!

DEODORO — Calma, eu não sabia que era segredo.

EURICÃO — Segredo o quê?! Quem vive escondendo o que tem são os ricos, como você. O que eu trago aqui é
somente uma cachacinha para o jantar.

DEODORO — Ah, Eurico, que delicadeza a sua! Uma cachacinha no jantar seria ótimo!

EURICÃO — Ei! Sai pra lá!

DEODORO — Que é isso, homem? Quero somente ver a cachaça!

EURICÃO — Sai pra lá, pelo amor de Deus! Eu tenho horror de mostrar a cachaça que vou beber!

DEODORO — Por que, homem de Deus?

EURICÃO — Porque não gosto, e pronto! Não gosto de mostrar a cachaça! É proibido ter esquisitice, é?

DEODORO — Não!

EURICÃO — Então, pronto, vá esperar o jantar na sala!

DEODORO — Está bem. (À parte) Que homem mais esquisito, minha Nossa Senhora! (Sai).

EURICÃO — Foi-se, com todos os diabos! Pronto, a porca vai voltar a ficar aqui. Santo Antônio, fica sob sua
proteção, eu estou muito arrependido de tudo o que eu lhe disse! Ai, meu Deus, entre santo e a porca? Não há
necessidade de escolher, eu fico com os dois! Santo Antônio, fique aí guardando o que é meu. Vou confiar a você o
que não confiaria nem a minha mãe. Mas veja como corresponde a esta confiança! Eu confio em você: retribua-me
dando toda sua proteção. (Sai persignando-se).

Cena 24

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PINHÃO — (saindo do esconderijo.) O que é que há com essa porca que ele defende com tanta raiva? Por que
esse cuidado todo? Vou apurar tudo isso direitinho! Essa peste não pode ter esse amor todo por uma porca só
porque ela pertenceu a seu avô! Esclareça tudo, Santo Antônio! (Vendo EURICÃO já a seu lado) Santo Antônio,
esclareça a vida a um pobre pecador, a um órfão que não tem ninguém! Quero aproveitar e rezar pela segurança
das pessoas que contratam Carola! Seu Euricão, aquele santo, a irmã de Seu Euricão, aquela santa, a filha de Seu
Euricão, aquela santinha...

EURICÃO — Que Diabo é isso?! Pra fora daqui, conversador! Que devoção foi essa que lhe deu de repente? Você
pensa que me engana, mas eu sei quem você é! E agora você me paga! (Agarra PINHÃO pelo pescoço.)

PINHÃO — A todo instante é pancada e bofete! Que diabo o senhor tem?

EURICÃO —E o que é que você tem com isso, seu ladrão?

PINHÃO — Ladrão por quê? O que foi que eu roubei?

EURICÃO — Bote aí! Ponha já aí!

PINHÃO — O senhor pensa que eu sou galinha?! O que é que eu posso botar? O que é que eu posso pôr? O que é
que o senhor quer?!

EURICÃO — (Irônico.) Você não sabe!?

PINHÃO — Como é que posso saber, se não roubei nada?

EURICÃO — Mas está com as mãos para trás! Mostre as mãos!

PINHÃO — Veja. (Mostra as mãos) O senhor está é doido!

EURICÃO — Eu deveria era ter lhe dado um tiro! E é o que hei de fazer se você não confessar!

PINHÃO — Mas confessar o quê?

EURICÃO — Que você roubou daqui!

PINHÃO — Que Santo Antônio me cegue se eu roubei alguma coisa!

EURICÃO — Sacuda o paletó.

PINHÃO — Como quiser. (Sacode-se).

EURICÃO — Uhm... É capaz de estar no fundo das calças.

PINHÃO — Quer ver?! (Ri com desgosto e compaixão)

EURICÃO — Você está rindo para parecer que é de confiança, “cheio de boas intenções”. Mostre as mãos outra
vez.

PINHÃO — Meu Deus! (Mostra as mãos)

EURICO — Agora me dê aquilo.

PINHÃO — Aquilo o quê?

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EURICÃO — Ra, ra! Você gosta de brincar, mas tenho certeza de que você pegou!

PINHÃO — Peguei o quê?!

EURICÃO — Você queria é saber, não é?... Está bem, saia. Afinal de contas, já o revistei todo. Fora daqui! E que
Santo Antônio lhe cegue os olhos e lhe dê paralisia nos braços e nas pernas.

PINHÃO — É muita bondade sua!

EURICÃO — Fora, fora daqui! (Faz que sai por um lado, PINHÃO faz o mesmo pelo outro lado e os dois voltam
ao mesmo tempo.)

EURICÃO — (Cruzando os braços.) E aí? Vai ou não vai?!

PINHÃO — (Dando meia-volta rápida e saindo.) Vou! (Mesmo movimento anterior de ambos.)

EURICÃO — Saia! Não quero mais vê-lo! (gritando à porta) Fora daqui! Safado! Malandro! Ladrão! Cafajeste de
uma figa! (E mais ofensas do tipo).

Saem, sendo que PINHÃO na carreira dá uma volta por fora da cena; subentende-se que ele rodia a casa; então,
pula uma janela, novamente para dentro de casa, e esconde-se. EURICÃO volta por onde saiu.

Cena 25

EURICÃO — Ah, agora estou só. Estará escondido? O quarto está vazio. E aqui? Ninguém. Agora, nós, Santo
Antônio!... Isso é coisa que se faça?! Pensei que podia confiar em tua proteção! Dizem ser o santo achador! “Santo
Antônio é achador” e esta ajudando a achar minha porca! Eu deveria ter me apegado era com um santo perdedor!
Não deixo mais meu dinheiro aqui de jeito nenhum! O cemitério da igreja!... É aqui perto, e é lugar seguro... Entre
o túmulo de minha mulher e o muro, há um socavão. Prefiro a companhia dos mortos do que dos vivos, e ali
minha porca ficará em segurança. (Vai pegar a porca, sob a capa) Ao cemitério! Escondo a porca no socavão e à
noite, quando todos estiverem dormindo, cavo a terra (volta à cena) e hei de enterrá-la o mais fundo que puder! E
você, Santo Antônio, fique com sua proteção e seu poder de encontrar. Lá, meu ouro, meu sangue, estará em
segurança.

EURICÃO segue saindo e encontra CAROLA entrando. EURICÃO imediatamente volta-se de costas.

EURICÃO — Assim também é demais, Deus!

CAROLA — Ah, está aí, Seu Euricão! Te procurei por toda parte. O jantar demorou, mas agora vai sair. O senhor
deve estar com fome. Coitado, chega está de barriga vazia! (Bate com a mão na barriga de Euricão, que vai se
livrando para evitar que ela descubra a porca).

EURICÃO — (À parte) Isso é que é um azar da peste!

CAROLA — Não se incomode não, Seu Euricão. (Volta a pôr a mão na barriga) Essa barriga hoje se enche, mais
ainda!

EURICÃO — Ai! Vá pra lá! Diabo de mulher enxerida!

CAROLA — Que é isso, Seu Euricão? Parece até que o senhor engoliu cobra!

EURICÃO — Engole-Cobra é a mãe! Sai pra lá!

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CAROLA — Calma, calma! O que é isso aí? De capa, todo misterioso, antes do jantar? Hum... (Tenta pegar) Para
onde é que eu boto?

EURICÃO — Para a casa da mãe!

CAROLA — Ra, ra! O que é que o senhor está escondendo aí nesse bucho?

EURICÃO — Ai! Ai! Ladrona! Assassina! Ai! (Sai na carreira).

Cena 26

CAROLA — Está doido, o diabo do velho! (PINHÃO sai do quarto).

PINHÃO — Doido nada! E você, que intimidade é essa com ele? Estava disposto a lhe pedir desculpas, mas agora
mantenho o que disse. Que diabo de intimidade é essa com o velho?

CAROLA — Mas Pinhão, um velho daquele?!

PINHÃO — É! Ele é um velho, mas não gosto de mulher que fica batendo no bucho dos outros! Boa romaria faz
quem em sua casa fica em paz!

CAROLA — Não me venha com ditado!

PINHÃO — O seguro morreu de velho e o desconfiado ainda está vivo. E de testa limpa!

CAROLA — Ah!... Você quer saber, Pinhão? Vá se danar! Comecei a lhe dar muito valor, e você ficou
convencido demais. Dê o fora! Eu ia lhe contar tudo sobre a entrevista, mas você vem com essa desconfiança de
minuto em minuto, vá pro inferno! Dou-lhe somente uma explicação: brinco com o velho Euricão porque eu gosto
dele, está ouvindo? Nada na vida dele deu certo, casou-se, e a mulher o deixou e toda a esperança dele agora é essa
filha que nós lhe vamos lhe tirar. Com toda a avareza e com toda a ruindade, é um dos homens mais sofredores que
conheço. Por isso e muitas coisas mais, tenho pena do velho, de quem ninguém gosta! Eu queria lhe dizer isso.
Mas não para me justificar, vai pro inferno, com sua mania de mandar e sua desconfiança!

PINHÃO — Mas Carola...

CAROLA — Vá se danar, Pinhão!

PINHÃO — Está bem, (Saindo) Você não sabe o que está perdendo, principalmente agora.

CAROLA — Por que principalmente agora?

PINHÃO — Por tudo que eu descobri, dos lugares, dos planos, dos sonhos e desejos desse velho por quem você
está estragando sua compaixão.

CAROLA — O que é que você sabe?!

PINHÃO — Nada.

CAROLA — Vai, Pinhão, diga!

PINHÃO — Não posso, estou sem tempo e sem vontade. Vou me danar, Carola. Adeus!

CAROLA – Ah! Vá cavar um buraco! (Sai CAROLA)

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PINHÃO - Pois eu vou mesmo! O velho disse que o sangue dele está em segurança. Mas não há sangue que não se
possa derramar! Ao cemitério! Desta vez eu enriqueço, nem que seja à custa de minha caveira! (Sai.)

TERCEIRO ATO
Cena 27

Mesma sala. Entram CAROLA, que aponta um lugar qualquer para Margarida, onde ela deve se esconder.
MARGARIDA se esconde. Então CAROLA coloca o vestido (que depois virá a precisa), atrás de um móvel
qualquer. Barulho de fim de jantar e vozes se aproximam. CAROLA se esconde com MARGARIDA. Entram
EURICÃO, PALOMA e DEODORO.

EURICÃO — Meu caro Deodoro, espero que o jantar lhe tenha agradado.

DEODORO — Muito, Eurico, muito. Se não fosse pelo jantar, a companhia.

PALOMA — Sempre delicado!

EURICÃO — Infelizmente tenho que me recolher. Não tome isso como uma desatenção, é apenas um velho
hábito.

DEODORO — Desatenção nenhuma, Eurico, também durmo cedo. Ainda assim, ela está aqui.

EURICÃO —Você tem razão, Paloma lhe fará as honras da casa muito melhor do que eu. Mas vocês não demorem
muito aqui.

PALOMA — Não seja tão severo, Eurico.

EURICÃO — Todo cuidado é pouco, todo cuidado é pouco!

DEODORO — Mas sendo eu noivo...

EURICÃO — Mesmo assim, Deodoro, mesmo assim! Eurico Arábe dorme hoje tranqüilo, finalmente livre da
tirania desse santo falso, que ia causando minha desgraça. (Saindo) Até amanhã.

PALOMA — Não diga isso, meu irmão!

EURICÃO — Digo sim, minha irmã, digo porque é verdade. Eu vou esperá-la, venha arrumar meus lençóis, como
sempre fez desde que minha mulher se foi e comecei a precisar de Santo Antônio. Não demore muito, ou eu venho
lhe chamar. Boa noite, Deodoro.

DEODORO — Boa noite, Eurico. (Sai EURICÃO.)

Cena 28

DEODORO — O que ele quis dizer quando disse que começou a precisar de Santo Antônio?

PALOMA — Quando a mulher dele nos deixou. Ainda se lembra dela?

DEODORO — Quando comecei a freqüentar sua casa ela já tinha fugido.

PALOMA — É verdade, foi no começo do nosso namoro.

DEODORO — Melhor nem tocarmos nesse assunto. Você mesma não disse que tudo estava enterrado?

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PALOMA — É verdade, mas com o que aconteceu hoje...

DEODORO — O mundo dá muitas voltas!

PALOMA — Em outras circunstâncias, era um assunto muito doloroso para mim. Mas agora...

DEODORO — Talvez você tenha razão. É melhor do que ficar com essa história pendente entre nós.

PALOMA — Eu era tão moça, tão sem conhecimento das coisas! Lembra da noite que passei em sua fazenda?

DEODORO — Como eu poderia me esquecer? Foi naquele dia que você me deixou. Por que foi aquilo, Paloma?
Nunca me conformei com o silêncio, sem nenhuma explicação!

PALOMA — Eu não conhecia o mundo, não conhecia você direito, não conhecia nada! Naquela noite em sua
casa... Ah! Você sabe... Eu fiquei com medo de você.

DEODORO — E só por causa daquilo, estragar nosso casamento? Se eu soubesse disso, teria vindo conversar
contigo, e talvez você me perdoasse, e teríamos casado.

PALOMA — Jura?!...

VOZ DE EURICÃO — Paloma!

PALOMA — É Eurico, tenho que ir. Até mais tarde, Deodoro.

DEODORO — Até amanhã, Paloma.

PALOMA — Até amanhã? É verdade, você tem razão, é mais prudente dizer assim.

VOZ DE EURICÃO — Paloma! Paloma!

PALOMA — Já vou! Até amanhã... Fingido! (Sai).

DEODORO – Paloma tem andando muito estranha, meu Deus!

Cena 29
CAROLA sai do esconderijo, pelas costas de DEODORO, e fala de uma porta, como se tivesse entrado por ela.

CAROLA — Seu Deodoro!

DEODORO — Carola! Como está o combinado? Margarida já sabe de tudo?

CAROLA — Sabe e está de acordo.

VOZ DE EURICÃO — Carola! Tranque as portas, a rua está cheia de ladrões!

CAROLA — (Para dentro) Está certo, Seu Euricão! Vou trancar tudo! (À DEODORO) Vou trancar as portas e
depois destrancar somente a da entrada.

DEODORO — Você estará aqui também?

CAROLA — Eu? Por que? Quem vai estar é gente muito melhor do que eu. Tudo vai dar mais certo do que o
senhor imagina!
DEODORO – Está bem, obrigado, Carola, mais tarde estarei de volta. (Sai).

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Sai DEODORO, MARGARIDA sai do esconderijo.
Cena 30

MARGARIDA — Por que você não deixa as portas trancadas e aproveita a oportunidade pra desistir disso,
mulher?

CAROLA — Logo agora que tudo vai dar certo?

MARGARIDA — Não suporto mais essa agonia. Que jantar mais angustiante! De vez em quando Tia Paloma
dizia uma frase perigosa, outrora papai dizia outra... Aí Seu Deodoro também, aí Papai, aí Titia, Seu Deodoro! Ai!
Eu vi a hora de se descobrir tudo! E Dodó nem olhava na minha cara!

CAROLA — Tenha calma, Dona Margarida. Com o casamento de Seu Deodoro e Dona Paloma dando derto, o
resto vem na bucha, o seu com Seu Dodó, e o meu com o patife do Pinhão.

MARGARIDA — Você gosta muito dele, não é?

CAROLA — Sim, gosto muito desse traste. Agora, por que, não sei, aquilo é autoritário que fede!

MARGARIDA — Entendi... Mas você assuma a responsabilidade disso tudo! E se essa confusão toda acabar meu
casamento, você me paga!

CAROLA – Como?

MARGARIDA - Eu me vingo de você!

CAROLA — Que isso, Dona Margarida?!

MARGARIDA — Depois não diga que não lhe avisei. Espero que tudo dê certo pra mim e pra você

CAROLA — Vai dar! Santo Antônio vai me ajudar e todos vamos casar! Mas agora é melhor eu trancá-la no
quarto. Não confio em homem nenhum nesse mundo, muito menos em Seu Deodoro. (Brincando) A senhora sabe
o que aconteceu com Dona Paloma.

MARGARIDA — (Rindo) Ai! Que nojo! Está bem. Vou indo. Boa sorte.

MARGARIDA entra no quarto e CAROLA tranca a porta, guardando a chave.

Cena 31

CAROLA — (À parte) É agora que a chapa vai esquentar! O vestido já está aqui. (À parte) Falta a vítima! Dona
Paloma! Dona Paloma!

Entra PALOMA.

PALOMA — Já estou aqui. E então?

CAROLA — Tudo como combinado. E Seu Euricão?

PALOMA — Dormindo como uma pedra.

CAROLA — Dona Margarida também já se deitou.

PALOMA — Você conseguiu o vestido dela?

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CAROLA — Ainda não, estava esperando todo mundo dormir.

PALOMA — E o que devo fazer agora?

CAROLA — A senhora fica em seu quarto. Eu vou escutar na porta de Seu Euricão, e depois na de Dona
Margarida. Se eles estiverem agarrados no sono, eu tiro o vestido de Dona Margarida e entrego à senhora. Aí
destranco a porta de entrada e fico esperando Seu Deodoro. Quando ele vier, chamo a senhora. E por fim,
desapareço.

PALOMA — Mas não desapareça para muito longe não.

CAROLA — Está certo, eu fico por perto. Se precisar, grite que eu venho; Entre, se embeleze. E deixe que o resto
eu garanto.

PALOMA — Então eu vou. E que Santo Antônio nos proteja.

CAROLA — Amém, Dona Paloma. Amém!

Sai PALOMA.

CAROLA — O que eu não sei é se Santo Antônio vai querer se meter numa história dessas! (Entra atrás de algum
móvel, ou biombo, e veste o vestido de MARGARIDA, por cima do seu, para tornar possíveis mudanças rápidas.
Abaixa as luzes e ajeita o cabelo, tudo enquanto fala e muda a roupa) — Me ajuda, Santo Antônio! Deixa eu ver...
Acho que vai dar sim. (À parte) Estou uma Dona Margarida apreciável. (Destranca a porta de entrada e escuta no
quarto de EURICÃO) Até já, Santo Antônio, veja o que pode fazer por nós. Não estou metendo o senhor em
molecagem! Assim que Seu Deodoro entrar no quarto de Dona Paloma, eu dou um alarme geral na casa e ele se
compromete, uma simples entrada no quarto basta. O Senhor leve em consideração o bem da maioria e trate de me
ajudar. Amém. (Sai.)

Cena 32
(Entra PINHÃO, com um grande saco de estopa, velho e sujo, no qual carrega a porca)

PINHÃO — (Irradiante) Santo Antônio, meu querido, vida boa como é? Bom almoço, boa janta, boa ceia e bom
café! Da roseira eu quero o galho, do craveiro eu quero o pé! Agora, é assim, Santo Antônio, "bom almoço, boa
janta, boa ceia e bom café"! Mas onde diz "da roseira eu quero o galho, do craveiro eu quero o pé", agora é: "da
porquinha eu quero as tripas, quero pá, bucho e pé". (Gargalha) Sou o homem mais rico do mundo, Santo
Antônio! Nada como um dia após o outro. O velho Engole-Cobra terminou achando uma cobra que o engolisse.
Ra, ra! Plantou o roçadinho dele, mas quem arrancou o milho foi eu! (ri)

VOZ DO DODÓ — (De fora.) Pinhão, é você?

PINHÃO — (Trancando rapidamente a porta.) (Para fora) Calma lá, Seu Dodó! Seu Dodó o quê? (Para fora)
Deve ser Dodó, Dodó Boca-da-Noite! (À parte) A partir de agora é assim! (Para fora) Espere, Dodó
Boca-da-Noite! É melhor guardar o saco! (Beija a Porca e esconde-a no socavão.)

DODÓ — (De fora.) Pinhão!

PINHÃO — Já vou, já vou! Por causa de pressa, morreu zé apressado. (Destranca a porta. Entra DODÓ.)

DODÓ — E então?

PINHÃO — E então o quê?

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DODÓ — Vai tudo bem, Pinhão?

PINHÃO — Tudo ótimo.

DODÓ — Margarida apareceu?

PINHÃO — E ela agora deu para aparecer, feito alma penada, foi?

DODÓ — Deixe de brincadeira. Cadê Margarida? Onde está Carola?

PINHÃO — Eu vou lá perder meu tempo com o que essas mulheres andam fazendo!

DODÓ — O que é que você está dizendo, Pinhão?

PINHÃO — Isso que você está ouvindo, Dodó!

DODÓ — Você bebeu?

PINHÃO — Não, mas comi!

DODÓ — Comeu o quê?

PINHÃO — Uma porca!

DODÓ — Deve ter lhe feito mal, Pinhão!

PINHÃO — Pelo contrário, me fez um bem danado!

DODÓ — Você pode me dizer o que foi que você meteu nessa cabeça?

PINHÃO — E você pode me dizer o que é que tem a ver com isso?

DODÓ — Como é que é?!

Um barulho de movimentação na coxia.

PINHÃO - Chi, ouvi um barulho!

DODÓ - Esconda-se, deve ser o velho! (Tranca a porta de entrada)

Cena 33
Entra EURICÃO, de camisão, com um candeeiro e uma pá.

EURICÃO —Ai ai... Que sono, não deu nem pra tirar um cochilo direito (boceja) Mas é preciso ir enterrar a
porca. Ué! Carola esqueceu a porta aberta. E eu ainda alertei, ôh rapariga desatenta!... (Sai e tranca a porta de
entrada.)

Voltam DODÓ e PINHÃO.

DODÓ — Entendeu alguma coisa?

PINHÃO — Não lhe disse que esse velho era maluco?

DODÓ — Sair a essa hora, de camisola, para o cemitério, atrás de uma porca? Que diabo de porca é essa?

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PINHÃO — Uma porca que fugiu do quintal.

DODÓ — Mas o velho não tem porca.

PINHÃO — Então é capaz dele estar dormindo ainda. Além de todas as qualidades ruin, esse peste ainda é
sonâmbulo!

DODÓ — Pinhão, sinceramente, estou certo de que você está com algum problema. (barulho de dentro na coxia)

PINHÃO — Ouviu isso? Vem gente aí, deve ser sua noiva. Ou melhor, sua candidata a madrasta.

DODÓ — Esconda-se, idiota! (Escondem-se.)

Cena 34
Entra CAROLA, vestida de MARGARIDA.

CAROLA — Tudo pronto. (À parte) Agora, só falta o noivo.

DODÓ — (sai do esconderijo) O noivo está aqui!

CAROLA — Seu Deodoro?

DODÓ — Não, sou eu! Vim me certificar de sua traição!

CAROLA — (Trancando a porta.) Mas Seu Dodó...

DODÓ — Não me chame assim, pelo amor de Deus!

CAROLA — O senhor não sabe de nada e veio atrapalhar tudo!

DODÓ — (sofrendo) Rapariga de uma figa!...

VOZ DE DEODORO — (Fora.) Margarida!

CAROLA — Ai Meu Deus do céu, deve ser seu pai. O que é que eu faço agora, meu Santo Antônio? Com esta eu
não esperava!... Entre aqui neste quarto mesmo, é o jeito.

DODÓ — (sofrendo) Não! Eu vou ficar e contar tudo para o meu pai!

CAROLA — Cala a boca, homem! E entre logo aqui! Vai! Vai! Vai! Vai! Vai! Vai logo! (Empurra DODÓ no
quarto de MARGARIDA e tranca a porta. Enquanto fala, tira o vestido de MARGARIDA.) Santo Antônio, o
senhor vai me desculpar, mas foi um imprevisto! No quarto de Dona Paloma é que eu não podia empurrá-lo. Mas
eu destranco a porta já já! E agora eles estão melhor que eu.

Cena 35

VOZ DE DEODORO — Margarida!

CAROLA — Já vou, espere um pouco! (À parte) Mas que Diabo de homem mais apressado! (Chama no quarto de
Paloma). Tia Paloma! Tia Paloma!

PALOMA — (Saindo.) Ave Maria, até que enfim. Já não me aguentava mais.

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CAROLA — Não perca tempo, que o homem está aí! Tome o vestido! E me dê o seu logo, mulher!

VOZ DE DEODORO — Margarida!

CAROLA — (Pra fora) Já vou! E isto agora... (Pra fora) Fique aí e espere! (À PALOMA) Me dê a chave do seu
quarto e fique dentro dele.

PALOMA — Pra quê?

DEODORO – Ô Margarida! Oh!

CAROLA — Não retruca, mulher de Deus! (Pra fora) Já vou abrir!

PALOMA — Está bem... (PALOMA entra no quarto, CAROLA tranca-a, e veste o vestido dela).

Cena 36

CAROLA — Nossa Senhora, hoje eu estufo de tanto mudar vestido!

VOZ DE DEODORO — (Impaciente.) Como é que é, Margarida?

CAROLA — (Para fora) Espere, homem de Deus! (Destranca a porta da entrada. Entra DEODORO)

DEODORO — Meu Deus, até que enfim... (avistando) Paloma, é você?

CAROLA — (Imitando a voz e os gestos de PALOMA.) Sou eu mesma, Deodoro.

DEODORO — Mas Margarida...

CAROLA — Margarida está dormindo, Deodoro. E eu vim esperá-lo, como fiz tantas vezes, no tempo em que
namorávamos.

DEODORO — Mas Paloma, isso não fica bem!

CAROLA — Não fica bem, por quê? Está esquecido de tudo o que aconteceu?

DEODORO — Você mesma disse que tudo aquilo estava morto e enterrado.

CAROLA — E você acha, que um amor como aquele pode morrer? Pensa que eu não vi como você ficou agora
pouco? Eu também saí com o coração apertado, Deodoro.

DEODORO — Mas Paloma... Mesmo que estivéssemos sentindo isso, agora seria tarde. Estou noivo de sua
sobrinha.

CAROLA — Deixe Margarida pra lá, homem de Deus! Não vê o ridículo em que vai cair? Ela podia ser sua filha!

DEODORO — Pensei nisso, mas você não sabe como me senti solitário! E agora, estou noivo!

CAROLA — Noivo nada! Para mim, só o que existe é nosso amor! Entre neste quarto!

DEODORO — Mas Paloma!

CAROLA — Que Paloma que nada, entre e deixe de conversa!

47
DEODORO — Paloma, podem falar de nós!

CAROLA — Falar o quê? Eu sou uma mulher séria, Deodoro, incapaz de atentar contra os viúvos honestos!

DEODORO — Realmente, você é incomparável. Paloma, como você nunca existirá outra!

CAROLA — Então entre. Entre e tudo se explicará! (Dá uma pancada nele, com o próprio traseiro
empurrando-o.)

DEODORO entra no quarto de PALOMA, CAROLA fecha a porta e deixa as chaves na fechadura.
Cena 37

CAROLA — Pronto, agora é chamar o velho Euricão. Do jeito que as coisas estão, ele terá que fazer os dois
casamentos. (Sai para o quarto de EURICÃO).

PINHÃO — (PINHÃO sai do esconderijo.) Que confusão é essa, meu Santo Antônio? Dona Margarida e Dona
Paloma a trancar homens nos quartos! Aqui há alguma coisa. Vou tirar as chaves e ver se me aproveito da
situação! (Pega as chaves) Epa, vem gente! (volta ao esconderijo)

Entra CAROLA, ainda com o vestido de PALOMA.

CAROLA — Onde diabo o velho se meteu? Vou abrir as portas! Ai meu Deus! Onde estão as chaves? O que é que
faço, meu Santo Antônio?! O jeito é gritar que tem incêndio! Aí o povo corre e o velho vai ter que fazer os
casamentos! Vou gritar, é o jeito!... Ai, ou é melhor tocar fogo nas cortinas? (PINHÃO sai do esconderijo).

PINHÃO — Dona Paloma, eu...

CAROLA — O que é que está fazendo em minha casa, espionando, de noite?

PINHÃO — Alto lá! Pensa que eu não ouvi sua conversa com Seu Deodoro?! Então a senhora se vira quando o
povo dorme, hein?

CAROLA — O que, moleque?!

PINHÃO — É isso mesmo, Dona Paloma! Mas pode confiar em mim, que por esta boca não sai nada. Afinal, acho
perfeitamente natural que a senhora queira se divertir um pouco.

CAROLA — Como?

PINHÃO — A senhora já pode ter passado da mocidade, mas é nesse tempo que acho que as mulheres ficam mais
bonitas! Pode não ser mais muito moça, mas é enxuta que da gosto!

CAROLA— (À PARTE.) Ah, safado!

PINHÃO — Estava procurando as chaves?

CAROLA — Estava!

PINHÃO — Eu tirei todas duas! Assim... A gente podia fazer um acordo. Eu lhe dava as chaves e... Já que
estamos aqui e Seu Deodoro dormiu no ponto, a gente faria passar o tempo! Que tal?

CAROLA —Eu estava deixando você falar, para ver até onde ia seu atrevimento! Mas vou gritar e você vai se
arrepender pela graça!

48
PINHÃO — (À parte) Ai meu Deus, a porca! Não grite, Dona Paloma! Não grite, eu retiro o que disse! Tome as
chaves!

CAROLA — Não quero mais as chaves! Vou chamar a polícia! Vou gritar até...

PINHÃO — Pelo amor de Deus, Dona Paloma, não grite não!

CAROLA — Então venha cá!

PINHÃO — Dona Paloma...

CAROLA – Venha cá!

PINHÃO - A senhora me interpretou mal!

CAROLA — Eu vou gritar!

PINHÃO — Ai não, eu vou! Eu vou!

CAROLA — Ajoelhe-se! Isto! Agora, tome! Tome! Tome, para deixar de ser safado! Um sujeito que deveria dar
graças a Deus por ter uma noiva como Carola, com essas molecagens para com uma senhora de respeito! Tome,
safado!

PINHÃO — Ai, ai, ai! Ai, Dona Paloma!

CAROLA — Vou parar! Vou parar! Por respeito a Carola, pois aquilo é uma santa, eu gosto tanto dela!

PINHÃO — Eu também, Dona Paloma!

CAROLA — Deveria gostar mais, seu safado! Devia beijar os pés de Carola todo dia, porque aquilo é um anjo!
Fique aí. Eu vou chamá-la.

PINHÃO — O que é que a senhora vai dizer?

CAROLA — Não tenha medo, sua sujeira ficará em segredo! Você acha que eu iria magoar aquela moça
maravilhosa que gosta de você não sei nem por quê? Fique aí. Senão eu boto a boca no trombone.

PINHÃO — Eu daqui não saio!

CAROLA — Pois então fique aí parado. Não quero ver você mexendo um músculo sequer!

PINHÃO – Sim senhora, Dona Paloma, sim senhora. (PINHÃO fica de costas, entra atrás do biombo, já tirando o
vestido. Olha rapidamente para trás, não vê ninguém e acha que está só). Em que diabo fui me meter, meu Deus?
Ia perdendo a porca!

CAROLA – (À parte) O infeliz ainda me chama de porca!...

PINHÃO - Mas ela bem que valia a pena. Pode não ser mais muito moça, mas que está enxuta, está!

Cena 38

CAROLA — (De surpresa, por trás) Muito bem, senhor meu noivo!

PINHÃO — Carola?

49
CAROLA — E quem mais havia de ser, canalha? Peste, miserável, traidor! Eu estava aqui e vi tudo, infeliz, toda
sua molecagem com Dona Paloma, seus enxerimentos, sua traição! Como teve coragem de fazer isso comigo? E
ainda levou uma surra da arábe na minha frente! Ah!... Essa você me paga!

PINHÃO — Carola, eu...

CAROLA — Cale a boca, e que fique bem caladinha. Porque agora você vai levar umas tapas!

PINHÃO — Mas Carola!...

CAROLA — Mas agora sou eu que vou lhe dar!

PINHÃO — Mas eu já levei uma surra de Dona Paloma.

CAROLA — Aquela foi a dela, agora se prepare que lá vem a minha! (Dá-lhe algumas tapas)

PINHÃO — Ai, Carola, ai! Ai! Carobinha, ai Carobinhinha do meu coração! (Consegue beijá-la por entre as
tapas, abraça-a, CAROLA vai diminuindo as tapas, retribui o beijo, depois o abraço)

CAROLA — Safado de uma figa!

PINHÃO — Calma, Carola! Agora, podemos casar! Vamos casar e você vai ser a mulher mais rica do mundo!

CAROLA — Cabra safado! Mentiroso! Me dê as chaves! (Destranca os dois quartos)


Num terceiro quarto.
PINHÃO — Venha cá! (PINHÃO puxa-a fogosamente)
CAROLA — Não! Me solta!
Cena 39
DODÓ e MARGARIDA saem do quarto.
MARGARIDA — Ah... Está aberta! Graças a Deus! Ainda está zangado comigo, amor?
DODÓ — Não, você estava certa.
MARGARIDA — Não vai mais me desprezar porque eu te reneguei?
DODÓ — Pelo contrário, irei respeitá-la mais. Eu é que devo te pedir perdão por ter perdido a cabeça e me
descontrolado. (Um barulho).
MARGARIDA — Cuidado, vem alguém. Entre no quarto, ninguém deve vê-lo. (DODÓ entra no quarto).
Entra PINHÃO, tira a porca do socavão e volta com ela para o quarto. MARGARIDA vê tudo isso e se esconde.
PINHÃO volta e entra no quarto em que estava com CAROLA, de saco nas costas. Volta DODÓ.
DODÓ — Quem era?
MARGARIDA — Era Pinhão, carregando um troço nas costas. O que ele terá vindo fazer aqui a essas horas?
DODÓ — Veio comigo, vigiar Carola. Eu e ele estávamos com ciúme, combinamos de vir, quando Carola
destrancasse a porta!
VOZ DE EURICÃO — (Fora) Ai, ai!
DODÓ — Quem é? Veja na janela!

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MARGARIDA — É papai! Meu Deus, ele viu tudo!
DODÓ — Por que diz isso?
MARGARIDA — Está com a cabeça encostada na janela de meu quarto, e agora vindo pra cá chorando!
Certamente viu você no meu quarto! Ai Meu Deus, estou perdida!
DODÓ — Acalme-se, meu amor! Entre aqui comigo e vamos apurar o que ele viu.
MARGARIDA e DODÓ se escondem. Entra EURICÃO.
Cena 40
EURICÃO — Ai, ai! Fui assassinado! Estou perdido, estou morto! Para onde correr? Pega, pega! Mas pegar a
quem? Não vejo nada, estou cego. Não sei mais para onde vou, onde estou ou quem eu sou! Ah, que dia infeliz,
dia funesto, que desgraçada, meu Santo Antônio! O que fazer da vida agora, tendo perdido aquilo que eu guardava
com tanto cuidado? Minha alma! Agora outros gozam com ela, para meu desgosto! (Cai desfalecido, chorando.
Entram DODÓ e MARGARIDA.)
DODÓ — Seu Eurico!
EURICÃO — Quem é?
DODÓ — Um desgraçado!
EURICÃO — Pois está falando com outro! Me tornei desgraçado por um acidente arrombador.
DODÓ — Pois fui eu que causei sua desgraça e vim confessar tudo!
EURICÃO — Dodó? O que é que você está me dizendo?
DODÓ — A verdade!
EURICÃO — Então foi você, cachorro, cobra que eu guardava em minha casa para me desgraçar! Que mal tinha
eu lhe feito para você me tratar assim?
DODÓ — Foi um acaso, uma necessidade, Seu Euricão!
EURICÃO — Acaso e necessidade! E isso lá justifica um ato como esse, cretino?
DODÓ — Agi mal, confesso, minha falta é grave, mas vim pedir perdão.
EURICÃO — Como é que você teve coragem de tocar naquilo que não lhe pertencia?
DODÓ — A culpa foi das circunstâncias. Seu Eurico, me desculpa.
EURICÃO — Não gosto desses criminosos que prejudicam os outros e depois vêm pedir desculpas! Você sabia
que ela não era sua, então não devia ter tocado nela!
DODÓ — Mas eu não já disse que o que aconteceu foi coisa tola?
EURICÃO — Coisa tola o quê? Você não veio confessar? E depois, de repente, começa a se desdizer, dizendo que
não tocou nela! Como é, tocou ou não tocou?
DODÓ — Bem, tocar, eu toquei, mas não foi nada que pudesse ofendê-la. Já que o senhor considera isso um
crime, por que não aceita os fatos e me dá ela de vez?
EURICÃO — Como é que é, insolente? Quer ficar com meu tesouro contra minha vontade?
DODÓ — Não, eu estou lhe pedindo. A coisa que eu mais desejo no mundo é ficar com ela!
EURICÃO — Você? Ficar com ela?
DODÓ — Sim.
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EURICÃO — Ah, não, você tem é que devolver!
DODÓ — Devolver?
EURICÃO — Aquilo que você tirou!
DODÓ — Que eu tirei?

EURICÃO — (Irônico, amargo.) Você não sabe?


DODÓ — Olha, mas eu não tirei nada!
EURICÃO — O que eu quero é minha porca de volta!
MAGARIDA — (À parte) Meu Deus! (Sai do esconderijo) Por que o senhor me insulta?!
DODÓ — Isso é coisa que se diga? Sua filha é a mais pura das moças, resistiu com toda a prudência e o senhor a
trata dessa forma!
EURICÃO — O que é que minha filha tem a ver com isso?
MARGARIDA — Papai, eu não...
DODÓ — Não é dela que o senhor está reclamando?
EURICÃO — Ladrãozinho descarado! O que eu quero é minha porca, que você confessou ter roubado!
DODÓ e MARGARIDA — Porca?
DODÓ — Que diabo de confusão é essa? Eu seria incapaz de roubar alguém!
EURICÃO — Ah, então nega!
DODÓ — Nego!

EURICÃO — (Suplicando) Me dê minha porquinha que você tirou do cemitério da igreja! Você roubou, mas eu
não vou lhe denunciar, e lhe dou a metade do dinheiro que ela tem dentro! Faça o que quiser, mas me dê minha
porquinha!
DODÓ — Eu não posso lhe dar, eu não sei onde está.
EURICÃO — Quem gosta de você é a polícia. Acordem! Acordem todos! Pega! Pega ladrão!
CAROLA e PINHÃO saem do quarto.
Cena 41
CAROLA — Que é isso, Seu Euricão?
EURICÃO — Foi esse ladrão que entrou na minha casa para me roubar!
DODÓ — Roubá-lo como, se não tenho nem notícia de sua porca!
EURICÃO — Não sabe o que, safado! Você mesmo disse agora pouco que tinha sido a causa da minha desgraça?
CAROLA — Um momento, Seu Euricão.
EURICÃO — Que foi?
CAROLA — Ele disse que foi a causa da sua desgraça porque comprometeu sua filha. Esse tal de Seu Dodó
entrou aqui na calada da noite, iludiu Dona Margarida não sei como, e trancou-se com ela no quarto. E eu vi tudo!
EURICÃO — Ai! É verdade?!...

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MARGARIDA — É, papai...
EURICÃO — Era isso que você estava confessando?
DODÓ — Era.
EURICÃO — Ainda mais essa! Canalha, safado, por que não disse logo? Por que deixou que eu confessasse meu
segredo?
DODÓ — A culpa foi sua, eu falando da sua filha e o senhor pensando na porca!
EURICÃO — Ai, a porca! Juntei dinheiro a vida inteira, para a velhice, e agora perco num dia só, a porca e a
filha!
CAROLA — E vá logo se preparando para perder a irmã também, porque a situação de Dona Paloma é muito
difícil!
EURICÃO — Paloma? O que há com ela?
CAROLA — Seu Deodoro resolveu matar saudades, e está aí trancado nesse quarto, com ela. (Abre a porta).
EURICÃO —Deodoro e Paloma aqui!
Cena 42
Entram DEODORO e PALOMA.
DEODORO — Eurico... Se você não se ofender, eu queria lhe pedir a mão de Paloma em casamento.
EURICÃO — E você não já pediu?
DEODORO — Não!
EURICÃO — Quer me levar ao ridículo é, Deodoro? Faz uma coisa dessas, compromete minha irmã e ainda vem
com molecagens, logo agora que ela foi roubada!...
PALOMA — Quem, eu?
EURICÃO — Não, a porca! A porca!
DEODORO — Mas Eurico, eu...
CAROLA — Um momento. O senhor já se explicou com Dona Paloma, não foi?
DEODORO — Já.
CAROLA — E a senhora já entendeu tudo?
PALOMA — Já!
CAROLA — Entendeu o noivado, a confusão, laralá, laralá, tudo?
PALOMA — O noivado, a confusão, laralá, laralá, tudo!
CAROLA — Amém, graças a Deus! E o senhor Seu Euricão consente no casamento de Seu Deodoro com Dona
Paloma, não é?
EURICÃO — Consinto, não! Exijo! Agora, ou ele casa, ou morre! Ai, meu Santo Antônio, ela está perdida!
MARGARIDA e PALOMA — Eu?
EURICÃO — Não! A porca! Mas vocês duas tem que casar, não tem jeito!
TODOS – Eh!

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CAROLA — Pois então, eles casam amanhã. O senhor ganhou um grande cunhado, Seu Euricão e um...
EURICÃO — Mas eu perdi a porca! E ainda por cima meu patrimônio!
PINHÃO — A porca?
Cena 42 – Parte 2
EURICÃO — Não, Margarida! Paloma está garantida, mas essa aí me arranjou um genro corcunda, um verme que
não tem nem onde cair morto! Mas ele me paga! Mato esse miserável! Tome, safado, tome! (Arranca-lhe a barba)
O quê que é isso?
DEODORO — Dodó!
DODÓ — Sou eu, meu pai. Peço-lhe que me perdoe, mas não havia outro jeito, estou apaixonado por Margarida.
O senhor não queria que eu casasse. Seu Euricão só queria casá-la com um homem rico. Então o jeito foi esse.
Ah... Larguei os estudos.
DEODORO — Você largou os estudos?!
DODÓ — Sim, meu pai. Ajudado por Carola, entrei aqui disfarçado como empregado de Seu Euricão. Aí ganhei a
confiança dele fingindo que era avarento, e fui ficando até que Margarida jurou casar comigo. E agora tenho que
casar, meu pai...
EURICÃO – Não me diga...
DODÓ - Porque apesar de não ter acontecido nada entre nós..
TODOS – Aham!....
DEODORO — Mas esse casamento assim...
MARGARIDA — (Impetuosa) Esse casamento assim o quê? É igual ao do senhor com tia Paloma! Ai, desculpa...
DEODORO — Você precisa terminar seu estudo!
DODÓ — Meu pai, eu só gosto de criar boi. Deixe eu me casar! Se eu não casar amanhã, todo mundo vai saber e
Margarida vai ficar comprometida!
DEODORO — Ninguém vai saber de nada, meu filho! Nenhum de nós vai espalhar essa história!
CAROLA — O senhor está muito enganado, eu vou espalhar tudinho! Vi tudo, assisti tudo e não estou pronta para
sofrer essas humilhações. Casa em que eu trabalho, tem que ser casa de respeito, nessas coisas eu sou dura!
DEODORO — Você tem razão, é melhor que ele case. Você fica trabalhando comigo na fazenda e eu faço uma
casa para você.
DODÓ — Obrigado, meu pai, obrigado, meu pai!
DEODORO — Pensando bem, tudo se encaminhou para melhor, eu com Paloma, e você com Margarida.
EURICÃO — Isso é o que você diz, mas o fato é que ela está perdida.
MARGARIDA — Eu, meu pai?
EURICÃO — Não! A porca! Ora bolas, não já disse que é a porca? Você está aí, sua tia está aí, quando eu digo
ela, só pode ser a porca! Serei cego, por acaso? Estou vendo vocês, mas e minha porca, onde é que está?
MARGARIDA — Eu sei quem é que está com sua porca.
EURICÃO — Você sabe?! Valha-me Deus! Quem é?! Quem é o ladrão que roubou minha porca?!
MARGARIDA — É Pinhão, papai!
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PINHÃO — Eu?
EURICÃO — Ah bandido! Agora você me paga! Onde está minha porquinha? (Agarra PINHÃO pelo pescoço.).
PINHÃO — Seu Euricão, eu...
EURICÃO — Diga, maldito!
PINHÃO — Eu não sei nem que porca é essa!
EURICÃO — Então vou apertá-lo até sua alma sair pelo fiofó!
CAROLA — O que é isso? Pinhão roubou uma porca, foi?
MARGARIDA — Foi.
CAROLA — Pare! Se o barulho todo é esse, a gente paga a porca!
EURICÃO — E aquilo é porca que se pague, danada?
DODÓ — Falamos daquela porca velha de madeira, Carola!
MARGARIDA — É, ela estava cheia de dinheiro!
EURICÃO volta a sufocar PINHÃO de novo.
Cena 42 – Parte 3
PINHÃO — Um momento, me solte! (EURICÃO solta) Vá pra lá! Eu confesso que furei sua porca.
EURICÃO – Vou mandar prender esse criminoso!
PINHÃO - Mas o senhor não vai ganhar nada me entregando à polícia. Eu morro e não digo onde ela está!
EURICÃO – Cretino!
PINHÃO - Eu furtei a porca! Sou católico, li o catecismo e sei que isso não se faz! Mas onde está o salário de
todos estes anos em que trabalhamos, eu, meu pai, meu avô, na terra de sua família, seu Deodoro? E onde é que
está o salário da família de Carola? Não restou nada! E onde está o salário de Carola, Seu Euricão Engole-Cobra?
EURICÃO — Engole-Cobra é a mãe!
PINHÃO — Nós não temos nada! Só o nosso amor. E a coisa que a gente mais deseja na vida, é casar! E até hoje,
não pudemos. “Onde está a minha porca?” Ninguém diz nada! Pois bem, proponho um acordo, Seu Deodoro não
emprestou vinte contos ao senhor, Seu Euricão? Então eu lhe entrego a porca por esses vinte contos.
EURICÃO — Não, os vinte contos são meus!
PINHÃO — Então pode chamar a polícia, porque eu não entrego a porca de jeito nenhum. E ela deve ter dentro
cem vezes esse valor! O quê que são vinte contos pra vocês?! Porém com vinte contos eu posso comprar uma
terrinha. Caso...
CAROLA – Com a bênção dos padrinhos Dodó e Margarida.
PINHÃ - E vou fazer minha vidinha com Carola.
MARGARIDA — Ceda, papai! Nós devemos tanto a Carola!
PALOMA - Deixe pelos vinte contos! Já que não tem outro jeito.
PINHÃO – E me entregue de bom grado, pra depois não falar que eu roubei o vale também.
EURICÃO — Está bem, vocês querem assistir à minha morte, a meu assassinato! Pois assistam! O vale está aqui.
(Entrega o vale).
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TODOS – Eh!
EURICÃO — Agora vá buscar minha porquinha, pelo amor de Deus.
PINHÃO — Não precisa sair, ela está aqui.
EURICÃO — Aqui?!
PINHÃO — Claro, era o último lugar do mundo de que vocês desconfiariam! (Entra no quarto).
DODÓ — E eu que pensava que Pinhão era idiota!
CAROLA — Idiota por quê?
DODÓ — Ele só vivia dizendo ditados.
CAROLA —Uma pessoa capaz de me enrolar como ele pode lá ser idiota, Seu Dodó?
PINHÃO volta com o saco.
Cena 42 – Parte 4
PINHÃO – Tome. Está aqui.
EURICÃO — Ah, Santo Antônio achador! Até que enfim você se compadeceu de seu velhinho, de seu devoto de
tantos anos! Pensei que estava fadado a escolher entre o santo e a porca! Mas Santo Antônio não podia me exigir
esse absurdo! Ai, minha porquinha, que alegria apertá-la de novo contra o meu coração! Agora que a encontrei não
te largarei nunca mais! Ó minha esperança, ó minha vida! Afastem-se todos vocês, saiam de perto de mim! A
partir de agora é assim, só minha porca e eu!
Afastam-se todos, A cena deve dar idéia da solidão de EURICÃO, solidão que vai crescendo até o fim.
DEODORO — (Abrupto) Mas espere!...
EURICÃO — Saia de perto de mim!
DEODORO — Eurico, você guarda esse dinheiro a quanto tempo?
EURICÃO — Guardei, toda a minha vida! E desde que minha mulher me deixou, tudo perde a importância diante
da porca! Saia!
DEODORO — Eurico, o dinheiro não é tudo. Você tem sua irmã, sua filha e todos nós que agora que seremos sua
família. Deixe de depositar toda a sua vida neste dinheiro! Não dê tanta importância ao que não tem valor. Até
Porque...
EURICÃO — Até por que o quê?
DEODORO — Deseja ouvir mesmo, Eurico?
EURICÃO — Ouivir o quê? Diga logo!
DEODORO — Esse dinheiro cruzado está todo recolhido, Eurico! Tudo o que você tem aí não vale nem um
tostão!
EURICÃO — Não acredito! Impossível! Valha-me Deus! Santo Antônio! Desgraçado! Você jura pelos ossos de
sua mãe que é verdade?
DEODORO — Juro, Eurico.
EURICÃO — (Em estado de cólera) Santo Antônio desgraçado! Santo infeliz! Miserável vingativo! Foi uma
cilada de Santo Antônio, para eu me apadrinhar novamente com você! Mas você se ferrou, se deu mal!
Desgraçado! Agora vou ficar sozinho. Saiam todos! E tirem-no daqui! Santo Desgraçado! Agora eu quero ficar

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aqui sozinho. Trancarei as portas e não a abrirei mais para ninguém. Não quero mais ficar num mundo onde
acontecem estas desgraçadas impossíveis de prever.
DEODORO — Eurico, o mundo não se acabou por causa disso. Você perdeu seu dinheiro, mas ganhou uma
família! Acabe com essa idéia de se enterrar vivo!
EURICÃO —A diferença entre mim e você, Deodoro, é que sua porca ainda está diante de seus olhos. Não,
saiam! Eu já estou farto disso!
MARGARIDA — Seu Deodoro tem razão, papai.
PINHÃO - O mundo não se acabou por causa disso, seu Euricão Engole-Cobra.
EURICÃO – Engole cobra é a mãe!
PALOMA - Tudo ainda pode recomeçar, mano.
CAROLA - O senhor vende esta casa e faz outro pé de meia.
DODÓ – E depois vai morar conosco na fazenda.
EURICÃO — Seus asnos! Vocês não entendem nada! E como ficaria eu? Você casa com Dodó, Paloma com
Deodoro e Carola com Pinhão. E não veem que eu inevitavelmente fico sozinho? No meio disso tudo?! Estão
todos encaminhados na vida... Então tomem seus destinos e saiam daqui. Eu quero ficar só. E aqui, hei de ficar até
tomar uma decisão. Mas agora sei que posso morrer... Estou novamente colocado diante da morte e de todos os
absurdos desta terra. Aqui cheguei como estrangeiro e como estrangeiro vou deixá-la. Um golpe do acaso abriu
meus olhos, e vocês continuam cegos! Agora vão de encontro a seus destinos que eu vou ao meu, saiam daqui.
Quero ficar só!
DEODORO — Adeus, Eurico. Até breve.
PALOMA — Adeus, meu irmão. Estarei aí se precisar.
EURICÃO — Adeus, escravos!
MARGARIDA — Adeus, meu pai. Eu venho lhe visitar.
DODÓ – Adeus, seu Eurico. Eu cuidarei bem dela.
EURICÃO — Adeus, escravos. Saiam.
CAROLA — Adeus, Seu Euricão. Vou sentir sua falta.
PINHÃO – Adeus, seu Euricão. Não vou sentir sua falta, mas se precisar de Carola é só chamá-la.
EURICÃO — Adeus, escravos! Saiam. Saiam todos daqui! Escravos! (Saem todos, menos EURICÃO) Por que?!
Por que fez isso comigo?! Que sentido tem toda essa conjuração que se abate sobre nós?! Será que tudo isso tem
sentido? Será que tudo tem sentido?! O que quer dizer isso, Santo António? Covarde! Será que só vocês tem a
resposta? Covardes! O que diabo quer dizer tudo isso?! Você me paga! Eu vou me vingar! Eu vou me vingar de
você! Santo Antônio, me aguarde. (Puxa uma arma) Vamos conversar pessoalmente...

Cai o pano. Som de um tiro.

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