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Allan Christyan Sousa de Almeida

Roger Silva Aguiar

(Orgs.)

ANAIS
XI CONGRESSO INTERCONTINENTAL DE
DIREITO CIVIL

Salamanca - ES
16 e 17 de novembro de 2023
COMISSÃO ORGANIZADORA

Roger Silva Aguiar


Allan Christyan Sousa de Almeida
Iara Gessica Rios
Vitória Dávila Ferreira Rocha

REALIZADORES

Academia Brasileira de Direito Civil


Grupo Notorium

APOIO

Academia Sino-Lusófona da Universidade de Coimbra


Notorium Play Cursos Online

LOCAL DO EVENTO

Universidade de Salamanca | Hospederia Fonseca

COMITÊ CIENTÍFICO

Roger Silva Aguiar


Allan Christyan Sousa de Almeida

BANCA EXAMINADORA

Bruno Torquato Zampier Lacerda


Daniel Dias
Daniel Assumpção Neves
Carlos Maia

DIAGRAMAÇÃO

Allan Christyan Sousa de Almeida

ARTE E DESIGN

Allan Christyan Sousa de Almeida


Evento aprovado e financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Congressos do
Grupo Notorium

XI Congresso Intercontinental de Direito Civil


16 e 17 de novembro de 2023 | Salamanca-Espanha
Coordenador geral
Roger Silva Aguiar

Coordenador executivo
Allan Christyan Sousa de Almeida

Coordenador de banca
Bruno Torquato Zampier Lacerda

Assessoria
Iara Gessica Rios
Vitória Dávila Ferreira Rocha

XI Congresso Intercontinental de Direito Civil (11. 2022: Coimbra, PT)


Anais / XI Congresso Intercontinental de Direito Civil, 16 e 17 de novembro de
2023, em Salamanca, Espanha. Organizadores: Allan Christyan Sousa de Almeida, Roger
Silva Aguiar.

Vários autores
ISSNe 2595-1602

1. Ensino. 2. Saberes. 3. Políticas. I. SETEPE. II. Silva, Antônia Bruna da. III. Nascimento, Débora
Maria do. IV. Cavalcante, Maria da Paz.

Todos os arquivos aqui publicados são de inteira responsabilidade dos autores e coautores,
e pré-autorizados para publicação pelas regras que se submeteram ao XI Congresso
Intercontinental de Direito Civil. Os artigos assinados refletem as opiniões dos seus autores
e não os da equipe que integra a Comissão Organizadora ou Comissão Científica do evento.
PROGRAMAÇÃO DO EVENTO

Quinta – 16 de novembro (quinta-feira)


09h00 – Início do credenciamento e entrega de material

10h00 – Solenidade de abertura oficial – Eugenio Llamas Pombo (Professor Catedrático


de Direito Civil da Faculdade de Derecho da Universidad de Salamanca), Rosa Maria de
Andrade Nery (Presidente Científica da Academia Brasileira de Direito Civil), João Nuno
Calvão da Silva (Vice-reitor para relações internacionais da Academia Sino-lusófona da
Universidade de Coimbra), Roger Silva Aguiar (Presidente Administrativo da Academia
Brasileira de Direito Civil) e Allan Christyan Sousa de Almeida (Coordenador executivo
do evento e Diretor Geral do Grupo Notorium).

10h30 – Conferência Magna – Eugenio Llamas Pombo – Descodificación, recodificación y


diálogo de fuentes

11h00 – Relações privadas e a dimensão existencial


Roger Silva Aguiar – Direitos do Idoso: Proteção ou Tirania
André Dias Pereira - “A gestação de substituição em Portugal e os desafios ao direito da
filiação” (palestra virtual)
Pedro Maia - O mundo digital e a vulnerabilidade

12h30 – Intervalo para almoço

15h00 – Conferência – António Pinto Monteiro - A utilização abusiva da cláusula penal e


o seu controle

15h30 – Efetividade das relações privadas e segurança jurídica.


Rosa Nery - A atualização do Código Civil Brasileiro: evolução e estabilidade do Direito
Privado
Bruno Miragem - Desafios Atuais da Interpretação dos Contratos
Rodrigo Toscano de Brito – Extrajudicialização e o Direito Civil no Brasil

17h00 – Coffee Break

17h30 – Relações Privadas e a Dimensão Patrimonial I


Márcio Guimarães - A Natureza Contratual do Acordo de Acionistas e sua Repercussão na
Arbitragem
Flávio Tartuce - Os Problemas de Invalidade das “Holdings Familiares” no Brasil

19h00 – Encerramento do primeiro dia

Sexta – 17 de novembro (sexta-feira)


09h00 – Relações Privadas e a Dimensão Patrimonial II
Daniel Dias – Mitigação dos Danos na Responsabilidade civil
Daniel Assumpção Neves - Relação do direito material e dos procedimentos especiais em
Portugal, Brasil e Espanha
Carlos Maia – Doação e Testamento como forma de Planejamento Sucessório

10h15 – Relações privadas, desenvolvimento tecnológico e sustentabilidade


Jésica Delgado Sáez – Relaciones privadas tecnológicas en el derecho de bienes
Felisa María Corvo López - La conformidad en la compraventa de bienes y el suministro
de contenidos y servicios digitales
Bruno Zampier – Neurodireitos e as novas camadas de proteção da personalidade.

11h30 – Conferência – Silvio de Salvo Venosa – Reflexões sobre o direito digital e o juiz

12h00 – Intervalo para almoço

13h30 – Apresentação de artigos aprovados

15h30 – Relações privadas e vulnerabilidade


Fernanda Paes Leme – Desafios da cobertura em saúde suplementar
Angélica Carlini – Inovação na Gestão de Custos em Saúde.
José António Martin Perez – Tema a definir

17h00 – Coffee Break

17h30 – Conferência de encerramento – Nelson Nery Jr. - Proteção dos direitos difusos e
coletivos no Brasil

18h30 – Encerramento do evento e entrega dos certificados dos autores que apresentaram
artigos no Congresso
APRESENTAÇÃO

É com grande honra e entusiasmo que apresentamos o anuário do XI Congresso


Intercontinental de Direito Civil, promovido pela renomada Academia Brasileira de Direito
Civil em colaboração com o Grupo Notorium e com o valioso apoio da Academia Sino-
Lusófona da Universidade de Coimbra e Notorium Play Cursos Online.

Este evento, que se tornou um marco na comunidade jurídica internacional,


representa um fórum único de intercâmbio de ideias, conhecimentos e pesquisas no âmbito
do Direito Civil. Os anais científicos desse congresso são mais do que uma mera compilação
de trabalhos; são um testemunho do comprometimento global com a excelência acadêmica
e a busca incessante pelo aprimoramento do Direito Privado em todo o mundo.

A submissão e apresentação de trabalhos neste congresso desempenham um papel


crucial no enriquecimento da comunidade acadêmica dedicada aos estudos do Direito Civil.
Ao compartilhar pesquisas inovadoras, perspectivas críticas e análises aprofundadas, os
participantes não apenas contribuem para o corpo de conhecimento existente, mas também
inspiram e instigam seus pares a pensar de forma criativa e desafiadora.

O intercâmbio de ideias entre acadêmicos, profissionais e estudantes neste cenário


internacional propicia um ambiente propício ao crescimento intelectual e à construção de
redes duradouras. As diferentes perspectivas culturais e jurídicas presentes no congresso
ampliam horizontes, proporcionando uma compreensão mais abrangente e global do Direito
Civil.

Ao submeter seus trabalhos aos anais científicos do XI Congresso Intercontinental


de Direito Civil, os participantes não apenas compartilham suas descobertas, mas também se
unem a uma comunidade apaixonada que busca incessantemente a evolução e a excelência
no campo jurídico. Estamos confiantes de que as contribuições apresentadas durante este
evento deixarão um legado duradouro, influenciando positivamente as futuras gerações de
estudiosos do Direito Privado.

Agradecemos a todos os envolvidos por sua dedicação e entusiasmo, e estamos


ansiosos para explorar, aprender e crescer juntos ao longo deste XI Congresso
Intercontinental de Direito Civil.

Bem-vindos ao futuro do Direito Civil global!

Roger Silva Aguiar


Allan Christyan Sousa de Almeida
(Membros da Comissão Científica do Congresso Penal)
SUMÁRIO

PEDIATRIA E TOMADA DE DECISÃO EM FINAL DE VIDA DA CAPACIDADE


DE ASSENTIR A EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA
PROGRESSIVA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 0011
Hortência Santos Rocha

EMPREGO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NA SELEÇÃO DE EMBRIÕES


HUMANOS DESDE A PERSPECTIVA DA RESPONSABILIDADE À
PRIVACIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 0027
Bruna Guesso Scarmagnan Pavelski
Mário Furlaneto Neto
Teófilo Marcelo de Ârea Leão Junior

A PROTEÇÃO DO DIREITO DA PERSONALIDADE À IMAGEM E OS IMPACTOS


CAUSADOS PELA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL GENERATIVA: ESTUDO
COMPARADO NORMATIVO ENTRE BRASIL E PORTUGAL . . . . . . . . . . . . . . . 0047
Maíra Feltrin Alves
Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti

A NEGAÇÃO AO DIREITO À EDUCAÇÃO INCLUSIVA UMA APROXIMAÇÃO


HISTÓRICA E O VIÉS JURISPRUDENCIAL DE REPARAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . 0062
Néllio Silva Resende
Rômulo Renato Cruz Santana

ANÁLISE PANORÂMICA DA LEI 14.28621 A NOVA LEI DO MARCO CAMBIAL . .


. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 0084
Lucilaine Braga Luciano Candido Martins

FAKE NEWS E LIBERDADE DE EXPRESSÃO - OS DESAFIOS DAS GARANTIAS


CONSTITUCIONAIS NA ERA DA PÓS-VERDADE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 0100
Fábio de Santana Martins dos Santos

O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA E A REVELÂNCIA DA


FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 0116
Evelyn Moreira Mota

O REGISTRO EXTRAJUDICIAL DOS ATOS DECLARATÓRIOS DA UNIÃO


ESTÁVEL -UMA ANÁLISE DA LEI 14382.2022 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 0133
Karina Pinheiro de Castro

O DIVÓRCIO JUDICIAL COMO NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL . . . . . . . 0151


Glorya Maria Oldemburg de Miranda
Daniela Braga Paiano

RESPONSABILIDADE CIVIL POR PERDA DE CHANCE NO USO DE


INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL EM DISCRIMINAÇÃO ÀS MULHERES . . . . . . . . 0165
Luciana Cristina de Souza
A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PLANOS DE SAÚDE NA OCORRÊNCIA DE
VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA (Resumo) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .0179
Cintia Pinto de Souza
Gressiely Garcez Soares
Stheffany Annie Nonato Batista dos Santos
PEDIATRIA E TOMADA DE DECISÃO EM FINAL DE VIDA: DA
CAPACIDADE DE ASSENTIR À EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA
AUTONOMIA PROGRESSIVA

Hortência Santos Rocha1

Resumo: O fim da vida, certeza única e absoluta de todos os seres, talvez seja também o
evento mais temido pelas pessoas. Em se tratando de crianças, a questão é ainda mais
polêmica, tendo em vista que o processo de tomada de decisões referentes a cuidado de fim
de vida em pediatria deve contemplar compartilhamento de responsabilidades entre equipe
de saúde e responsáveis legais, com a participação da criança sempre que possível. Desse
modo, o presente estudo busca discutir os aspectos relativos à tomada de decisão médica em
pediatria. Foram considerados princípios bioéticos e do cuidado paliativo, além de questões
jurídicas relacionadas a capacidade e autoridade parental, sob a perspectiva do ordenamento
jurídico brasileiro, da Doutrina do Menor Maduro e da efetivação do princípio da autonomia
progressiva. Concluindo-se que a tomada de decisão de final de vida em pediatria deve se
pautar na autonomia progressiva, ratificando a ideia de que o paciente é o ator principal,
necessitando, pois, de assistência humanizada e digna.

Palavras-chave: Cuidados paliativos; Pediatria; Capacidade Civil; Autonomia; Bioética.

1 INTRODUÇÃO

Com o aumento do conhecimento técnico-científico nas últimas décadas, todos os campos


das ciências da saúde presenciaram desenvolvimento equivalente. Na pediatria, tal fato aliou-
se à implementação de políticas públicas que levaram à redução da taxa de mortalidade
infantil em todo o país, porém alguns problemas persistem.
No sentido oposto ao da medicina superespecializada e focada em diagnóstico e cura de
doenças, associada ao uso irrestrito de recursos tecnológicos para suporte artificial de vida,
surgem com crescente importância os cuidados paliativos.
O fim da vida, certeza única e absoluta de todos os seres, talvez seja também o evento mais
temido pelas pessoas. Não raro, a humanidade e suas ferramentas históricas, como a ciência
e a medicina, objetivam a todo custo combatê-lo e até mesmo descobrir meios de vencê-lo.

1
Especialista em Direito Médico, Bioética e Biodireito pela UCSal. Membro da Comissão de Direito
Médico e da Saúde da OAB/BA. Defensora Dativa no Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/BA. Graduada
em Direito pela Faculdade Baiana de Direito. Professora de Ética, Deontologia, Direito Médico e Medicina
Forense da UNIME. Professora da Universidade Corporativa da Associação de Hospitais e Serviços de
Saúde do Estado da Bahia - AHSEB. Advogada. Sócia do Oliveira e Rodrigues Advogados Associados.
Endereço eletrônico: hortencia_rocha@outlook.com.

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Em se tratando de crianças, a questão é ainda mais sensível. Na pediatria, o avanço
tecnológico trouxe inegáveis progressos em todas as especialidades, entretanto, apesar do
aparato tecnológico, algumas crianças ainda vivem em condições que ameaçam a vida.
Lidar com esse novo perfil de paciente exige do pediatra uma abordagem diferente. Mesmo
quando há tratamento curativo, cuidados paliativos devem e necessitam ser implementados,
com o objetivo central de proporcionar melhor controle dos sintomas e melhor qualidade de
vida para a criança e sua família.
Desse modo, o cuidado paliativo infantil deve ser focado na criança, orientado a toda família
e construído com uma boa relação médico-paciente-família. Deve-se avaliar individualmente
cada criança, e respectiva família, respeitando suas crenças e valores e oportunizando, quando
possível, que o menor participe da tomada de decisão sobre a sua saúde.
Assim, este trabalho foi construído com objetivo de analisar o direito à participação do
paciente pediátrico no contexto médico-clínico no fim de vida.
O método científico utilizado foi o hipotético-dedutivo, desenvolvido por meio da pesquisa
bibliográfica e científica nas áreas do Direito e da Medicina.

2 A CRIANÇA COMO PACIENTE TERMINAL: BREVES CONSIDERAÇÕES


SOBRE OS CUIDADOS PALIATIVOS AO FINAL DE VIDA NA PEDIATRIA

Geralmente, a ideia de terminalidade está associada ao esgotamento de técnicas curativas e,


consequentemente, de uma falsa ideia de que não há mais o que ser feito.
Conceitua-se paciente terminal como o portador de uma doença em estágio que evolui
irremediavelmente para o óbito, independente dos esforços empregados, que causa grande
sofrimento e não apresenta possibilidades terapêuticas que possam melhorar a qualidade de
vida, por mais curta que seja (PIVA; CARVALHO,1993, p. 130).
“Pode ser considerado como paciente terminal aquela pessoa cujo estado de saúde está tão
prejudicado que não há mais nenhum tratamento para a recuperação de seu bem-estar”
(DOMINGUES et al, 2013). Em regra, essa situação se apresenta como momento de grande
sofrimento, físico e psíquico, o qual pode ter se desencadeado em momento anterior a
doença ou em momento posterior ao diagnóstico.
Os cuidados se sustentam na assistência ativa e integral, prestada a pacientes com doença
grave, progressiva e irreversível que não respondem a tratamentos curativos, buscando
controlar a dor e outros sintomas, bem como a prevenção precoce e o alívio do sofrimento
nas dimensões física, emocional, social e espiritual (MEDEIROS et al, 2020, p. 129).
Existe, pois, um quadro de fragilidade e vulnerabilidade do paciente nessas circunstâncias, o
qual pode impactar de maneira direta no exercício da sua autonomia. Para Taciana Cervi
(2018, p. 99), “o processo que conduz a esse momento final de extinção da personalidade
denota momento ímpar da vulnerabilidade humana”.

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No entanto, importa destacar que, a partir do estudo e implemento dos cuidados paliativos
existem diversas condutas que podem ser oferecidas ao paciente e sua família, como por
exemplo, o uso de medicamentos para o alívio da dor, diminuição do desconforto e
atenuação de sintomas, mas sobretudo é importante reconhecer, sempre que possível, a
autonomia e o respeito às escolhas do paciente, fazendo com que ele decida aspectos
relevantes no momento de possível “partida” (GUTIERREZ, 2001).
Segundo definição da Organização Mundial da Saúde cuidado paliativo é área de atuação
médica que busca melhora à qualidade de vida dos pacientes (adultos ou crianças) e de seus
familiares que enfrentam problemas associados a doenças que ameaçam a vida. Além disso,
busca prevenir e aliviar o sofrimento por meio da investigação precoce, avaliação correta e
tratamento da dor e de outros problemas físicos, psicossociais ou espirituais.
Portanto, trata-se de assistência interdisciplinar que envolve cuidados integrados,
implementados quando a doença não responde a tratamentos curativos (ANDRADE et al,
2014, p. 127).
No âmbito da pediatria, os cuidados paliativos pediátricos (CPP) são iniciados quando a
doença é diagnosticada, progredindo de acordo com a evolução do quadro clínico. Desse
modo, torna-se necessário avaliar individualmente cada criança e sua família, respeitando
crenças e valores e facilitando a comunicação.
A definição de cuidados paliativos da OMS, anteriormente citada, abrange o cuidado ativo e
total promovido por uma equipe multidisciplinar visando a melhoria da qualidade de vida do
paciente e sua família (CARVALHO; PARSONS, 2012, p. 592). Estes cuidados são
direcionados aos pacientes com alguma doença ameaçadora à vida e busca a prevenção e o
alívio da dor total.
A implementação dos cuidados paliativos também busca oferecer condições para que o
paciente tenha uma morte digna e sem sofrimentos. Para tanto, é importante que a equipe
de saúde seja capaz de reconhecer a terminalidade, bem como reconhecer a morte como mais
uma etapa da vida humana (RODRIGUES; ZAGO, 2003, p. 89-92) e, assim, respeitar sua
dignidade dentro dos parâmetros éticos (OLIVEIRA, 2020, p. 22).
Nessa linha, necessário se faz o estudo do regime jurídico da capacidade civil em vigor, no
tocante às crianças e adolescentes. Esmiuçando o Código Civil (CC) e o Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA), bem como os critérios etários diversos adotados, explicitando que
não há coincidência entre as categorias “criança” e “adolescente” e as categorias
“absolutamente incapaz” e “relativamente incapaz”.

3 CAPACIDADE CIVIL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: DISCIPLINA


JURÍDICA NO DIREITO BRASILEIRO

Essencial para o negócio jurídico é a capacidade. A capacidade civil é manifestação da


personalidade jurídica e atributo conferido pelo ordenamento jurídico, sendo classificada em
capacidade de direito e capacidade de fato (AGUIAR; BARBOZA, 2017, p. 20).

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A primeira, titularizada por toda e qualquer pessoa de acordo com o art. 1º do Código Civil,
se refere à aptidão para ser titular de direitos e obrigações (AGUIAR; BARBOZA, 2017, p.
20). A segunda, por sua vez, corresponde à habilidade de exercício dos direitos e
cumprimento das obrigações de que se é titular diretamente, de forma livre e consciente.
A incapacidade é uma restrição legal ao exercício dos atos da vida civil (MUNHOZ, 2014, p.
44).
Em relação à criança e ao adolescente, a determinação da incapacidade relativa ou absoluta
obedece a um critério etário. De acordo com o art. 3º do Código Civil, é absolutamente
incapaz para a prática dos atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. Serão
relativamente incapazes, por outro lado, aqueles com idade entre 16 (dezesseis) e 18 (dezoito)
anos, como disciplina o art. 4º, I do CC.
Já o Estatuto da Criança e do Adolescente adota definição diferente de criança e de
adolescente, conforme dispõe o seu art. 2º.
De acordo com este dispositivo, será considerada criança a pessoa com até 12 (doze) anos
incompletos e será considerada adolescente, por sua vez, aquele que tiver entre 12 (doze) e
18 (dezoito) anos incompletos.
Importante observar, portanto, que a criança e o adolescente com até 16 (dezesseis) anos
incompletos são considerados absolutamente incapazes para a prática dos atos da vida civil,
enquanto adolescentes com idade entre 16 (dezesseis) e 18 (dezoito) anos incompletos são
considerados relativamente incapazes para tanto.
O instituto da incapacidade se justifica pelo seu intuito de proteger pessoas que não têm
aptidão para agir juridicamente, graduando a forma de proteção em absolutamente incapazes
(art. 3, Código Civil) e relativamente incapazes (art. 4, Código Civil) e, subsequentemente,
suprindo a incapacidade por meio de representantes aos absolutamente incapazes e
assistentes aos relativamente incapazes (MUNHOZ, 2014, p. 44).
Os deveres de representação e de assistência à prática dos atos da vida civil, conforme se
trate de um menor absoluta ou relativamente incapaz respectivamente, emanam do poder
familiar, conforme dispõem os arts. 21 e 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente
combinado com o art. 1.634 do CC.
Embora o termo “poder” sugira a noção de autoridade, é preciso destacar que o instituto
está permeado por uma série de deveres e deve ser concebido à luz do princípio da proteção
integral de crianças e adolescentes (DIAS, 2013, p. 436).
Nota-se que a legislação vigente transfere aos pais ou ao tutor a competência para tomar
decisões a respeito da saúde do menor (criança ou adolescente), “transferência esta que é
completa no caso das crianças e adolescentes com menos de 16 anos, e parcial para os
adolescentes com idade entre 16 e 18 anos” (AGUIAR; BARBOZA, 2017, p. 22).
Fato é que ao final de vida de uma criança em cuidados paliativos emerge questões
conflituosas que dizem respeito à postura autônoma (ou não) do menor, dos pais e da equipe
clínica frente aos tratamentos que serão empreendidos.

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Diante dessa premissa, no tópico subsequente será abordado a autonomia como um fator
preponderante na relação médico-paciente e nos cuidados de fim de vida, ratificando a ideia
de que o paciente é o ator principal das decisões que tangem a sua saúde, necessitando, pois,
de assistência humanizada e digna.

4 A AUTONOMIA COMO REFERENCIAL NORTEADOR DA RELAÇÃO


MÉDICO-PACIENTE

A transformação da relação médico-paciente permitiu a alteração de um modelo autoritário


e vertical para a construção de uma relação mais democrática e horizontal que pressupõe o
respeito aos diferentes códigos morais. Na origem desta mudança foi preciso reconhecer que
a especialização do exercício da medicina foi determinante de uma forte desumanização da
sua prática, a qual vem sendo corrigida a partir de um processo constante de humanização
(PEREIRA, 2004, p. 29).
Outra questão importante a ser enfrentada no âmbito do consentimento médico é debatida
por Walter Osswald em artigo intitulado “Toda a verdade ao doente?”, no qual questiona os
limites da informação e da verdade ao paciente. Incialmente o autor destaca a impossibilidade
de compreensão de toda a verdade em algumas situações clínicas. Alguns quadros
apresentam-se difíceis, incertos e lacunosos, devendo o médico ter cuidado ao transmitir essa
verdade por ser eventualmente truncada. No entanto, conclui o autor que sendo essa verdade
incompleta o que a Medicina permitiu atingir, deve a mesma ser repassada ao doente
(OSSWALD, 2008, p. 318).
Fato é que os pacientes deixaram de ser excluídos decisionais aos quais não se questiona a
vontade ou ignora-se os seus sentimentos (TIMBÓ, 2020, p. 26). A relação entre médico e
paciente, pilar do cuidado médico, abandonou a assimetria e a verticalidade para se tornar
horizontal e privilegiar o paciente como sujeito de seu processo terapêutico e decisório
(GAZZOLA et al, 2020, p. 39).
Mesmo que timidamente, observa-se um gradativo fenômeno de superação do paternalismo
médico, defendido por Hipócrates, cujo enfoque era tomar decisões no lugar do paciente,
dando espaço a uma relação dialógica, na qual o paciente protagoniza a tomada de decisão a
respeito da sua vida e da sua saúde (SCHULMAN; ALMEIDA, 2020, p. 27).
Importante pressuposto da relação médico-paciente é a autonomia. De forma semântica,
autonomia vem do grego autos, que significa “o mesmo”, “ele mesmo” e ainda, “por si
mesmo” (SEGRE et al, 1998, p.17); e, nomos, que tem o sentido de “compartilhamento”,
“lei do compartilhar”, “instituição”, “lei”, “uso”, “convenção” (SEGRE et al, 1998, p.17).
Autonomia denota, portanto, o governo pessoal do eu (MUNHOZ, 2014, p. 20).
A autonomia é colocada por Beauchamp e Childress (2013) como um dos quatro princípios
morais que regem a bioética, juntamente com beneficência, não maleficência e justiça.
Na perspectiva do principialismo bioético norte-americano, corrente da ética biomédica
surgida na década de 1970, reflete a permanência do protagonismo do profissional da saúde
na relação. No entanto, segundo Timbó (2020), o produto final da doutrina principialista,

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inegavelmente, coloca o princípio da autonomia do paciente em uma situação de
protagonismo, em relação aos demais princípios.
Tal princípio foi apresentado junto ao Relatório de Belmont, em 1978, elaborado pela
Comissão Nacional para Proteção dos Interesses Humanos de Biomédica e Pesquisa
Comportamental dos Estados Unidos (SÁ; NAVES, 2018, p. 8). Além disso, o princípio da
autonomia também é previsto na Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos da
UNESCO de 2005, que buscou adicionar a dimensão social como intrínseca à Bioética,
trazendo um novo referencial para a efetivação dos direitos humanos.
Verifica-se que o princípio da autonomia na Bioética representa a liberdade das pessoas na
autodeterminação e na prerrogativa de escolher as intervenções que serão realizadas em seu
corpo e é fundamento para autonomia privada no biodireito, que concede poderes de atuação
ao titular (SÁ; SOUZA, 2020, p. 59).
Além disso, para a Bioética, o princípio tem por fim sempre respeitar as decisões dos
pacientes de acordo com suas capacidades, levando em conta as suas decisões
substancialmente autônomas (MUNHOZ, 2014, p. 33).
A autonomia, ou respeito à autonomia, associa-se à privacidade, à voluntariedade, à
possibilidade de escolha e à responsabilidade decorrente das escolhas (ASHCROFT et al,
2007).
Em razão da autonomia que o indivíduo pode exercer suas próprias escolhas, livres de
determinações exógenas e endógenas, o que não significa um pleno entendimento da ação
escolhida ou uma ausência completa de influências sobre sua ação (MUNHOZ, 2014, p. 20).
Como referencial nortear da relação médico-paciente, a autonomia proporciona ao paciente
conhecer as possibilidades existentes para enfrentar a doença e ser livre para escolher sem
qualquer coação (GAZZOLA et al, 2020, p. 40).
Tal princípio legitima a atuação médica beneficente e não maleficente no paciente, além de
se congregar a uma atuação justa no universo da Saúde (MUNHOZ, 2014, p. 16).
Portanto, verifica-se que a autonomia ocupa hoje um lugar de destaque na conformação geral
das relações sociais, na medida em que a história caminhou para o alcance gradativo de
proteção ao exercício das liberdades individuais e da pluralidade cultural (AGUIAR;
MEIRELES, 2018, p. 134).
Ocorre que, a julgar pelo discurso conservador que envolve as discussões no Brasil, é possível
verificar a dificuldade de exercício da autonomia no tocante a proximidade e as escolhas
referentes ao fenômeno morte. A partir da implementação da Resolução nº 1.995/2012, do
CFM, foi possível perceber um tímido avanço nos procedimentos de consentimento e
negativa de procedimentos em situações de terminalidade.
No que tange aos cuidados paliativos, existe um quadro de fragilidade e vulnerabilidade do
paciente, o qual pode impactar de maneira direta no exercício da sua autonomia. Para Taciana
Cervi (2018, p. 99) “o processo que conduz a esse momento final de extinção da
personalidade denota momento ímpar da vulnerabilidade humana”.

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No entanto, é impossível afirmar de maneira determinante que as pessoas vulneráveis não
têm capacidade de consentir. É preciso, por isso, que o profissional de saúde compreenda o
estado precário de saúde e utilize estratégias para contornar essa situação, dentre as quais se
destaca a transmissão de uma informação clara (RAGAZZO, 2009, p. 55-57).
Independentemente do grau de seriedade da doença se impõe a responsabilidade médica de
transmitir a informação de forma que seja compreendida, devendo, inclusive, ter em mente
que mesmo enfermidades que não apresentam grave risco podem interferir na capacidade de
discernimento do paciente, a qual deve ser resgatada a partir de uma comunicação mais
apurada e abrangente entre médicos e pacientes (RAGAZZO, 2009, p. 55-57).
É preciso que o médico esteja preparado para ouvir aquilo que o paciente em situação de
terminalidade tem a dizer, até mesmo porque o seu conhecimento sobre si desafia muitas
vezes o conhecimento médico, promovendo um verdadeiro entendimento sobre a condição
do outro (ARMSTRONG, 2009, p. 85).
Importa, pois, reconhecer que “mesmo a mais perturbada das pessoas constrói um saber e
um conhecimento sobre suas condições e, por isto, diálogos que apostam neste saber têm
muita chance de serem compreendidos pelos pacientes” (FELÍCIO; PESSINI, 2017, p. 67).
Isso significa que mesmo aqueles que se descontrolam e se desestabilizam frente ao evento
(próximo ou não) da morte, podem e devem ser ouvidos nos procedimentos posteriores ao
diagnóstico.
No entanto, do âmbito da autonomia, para efeitos deste estudo, se faz necessário analisar as
pessoas com capacidade reduzida, por incapacidade jurídica, que os impeça de tomar
decisões substancialmente autônomas (MUNHOZ, 2014, p. 29).

4.1 AUTONOMIA DAS CRIANÇAS: O RECONHECIMENTO DA CAPACIDADE


DE ASSENTIR

Pessoas com a autonomia reduzida normalmente têm um responsável que decide por elas,
mas isso não as impede de tomar decisões autônomas, como, por exemplo, qual o tipo de
alimentação ela deseja comer ou não, qual roupa ela vestirá.
No caso das pessoas com deficiências intelectuais ou de alguma forma incapazes,
temporariamente ou não, por exemplo, geralmente têm um responsável que lhes ajuda a
decidir ou decidem por elas questões substanciais, mas o que determina o que é substancial
é o contexto em que a pessoa se encontra e não significa que ela não poderia tomar a decisão
sozinha ou acompanhada (MUNHOZ, 2014, p. 22).
Após receber as informações necessárias, sendo essas prestadas de forma compreensível, o
consentimento fornecido pelo paciente, constitui requisito indispensável da relação médico-
paciente, “por ser uma decisão que leva em consideração os objetivos, os valores, as
preferências e necessidades do paciente e por ele tomada depois da avaliação dos riscos e
benefícios” (DINIZ, 2002. p. 580).

ISSNe 2595-1602 17
Nessa direção, indiscutível que o consentimento informado, previsto de forma simplista no
art.15 do Código Civil (“Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida,
a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”) e afirmado em diversas Resoluções dos
Conselhos profissionais, é o vetor para intervenções médicas, cirúrgicas ou não.
Da leitura do referido artigo, poderia levar ao entendimento de que somente as intervenções
que acarretassem risco de morte é que deveriam ser precedidas de consentimento informado
do paciente. Todavia, uma leitura constitucional desse dispositivo, com ênfase no princípio
da autonomia da vontade, leva à compreensão de que todo e qualquer procedimento médico
deve ser precedido de consentimento do paciente, mesmo que do mesmo não decorram
maiores riscos.
Para Heloisa Helena Barboza (2004, p. 10), o “consentimento é a expressão máxima do
princípio da autonomia, constituindo um direito dos pacientes e um dever do médico”.
Portanto, a autonomia é o princípio basilar do consentimento informado.
Para que um paciente participe das decisões que lhe interessem é imprescindível, portanto,
que tenha informações sobre todos os aspectos de sua enfermidade e das intervenções que
lhe são propostas (QUINTANA TRÍAS, 1996, p. 164).
Nesse ponto, importante informar que, apesar da interpenetração dos campos do Direito e
da Bioética, o princípio do respeito à autonomia e o princípio da autonomia da vontade são
distintos. O primeiro encontra-se no âmbito bioético, enquanto o segundo compõe-se no
meio jurídico.
Desse modo, a autonomia da vontade, ou autonomia privada, como descreve Perlingieri
(2002, p. 17), pode ser definida como “o poder, reconhecido ou concebido pelo
ordenamento estatal a um indivíduo (...), de determinar vicissitude jurídicas como
consequência de comportamentos – em qualquer medida – livremente assumidos”.
No tocante às crianças e adolescentes, a figura que permite que o indivíduo incapaz participe
da decisão é o assentimento informado. Esse instituto foi criado no âmbito clínico pediátrico
como uma maneira de respeitar o posicionamento de crianças, que não possuem capacidade
para consentir. A premissa do assentimento baseia-se no entendimento de que as crianças
possuem uma capacidade progressiva (MUNHOZ, 2014, p. 43).
O assentimento alicerça-se na capacidade de direito e na capacidade progressiva. A primeira,
a capacidade de direito, ou de gozo, Tepedino (2003) ensina que é atribuído a todo ser
humano, como explicita o artigo 1, do Código Civil, ou seja, refere-se à possibilidade de
usufruir de um negócio jurídico, mesmo sem poder estabelecê-lo (MUNHOZ, 2014, p. 43).
Já a segunda se encontra em uma lacuna jurídica, pois o Estatuto da Criança e do
Adolescente, em seu artigo 15, determina que a criança e o adolescente são pessoas em
desenvolvimento, o que significa que eles têm capacidade progressiva, que os permitiria
tomar decisões dependendo do seu estágio de desenvolvimento, no entanto, o Código civil
determina de modo estanque quem possui capacidade de fato, impedindo a ação autônoma
deles (MUNHOZ, 2014, p. 43).
Segundo Luciana (2014) esse debate é essencial para a compreensão do que é o assentimento
informado, tendo em vista que os pediatras não devem tratar as crianças como pequenos

ISSNe 2595-1602 18
adultos, que têm plena autonomia, mas devem enxergar que há um desenvolvimento
progressivo da capacidade de consentir e, portanto, a criança deve ser tratada de acordo com
seu desenvolvimento moral na situação em que se encontra.
O reconhecimento da capacidade de assentir de uma criança, portanto, é o empoderamento
dela como ser humano, é reconhecer a dignidade humana que a criança tem por ser membro
da espécie humana. Além de que envolvê-la em decisões sobre seu tratamento de saúde pode
estimular resultados melhores.
Observa-se que, a expressão de autonomia que o assentimento se fundamenta está baseada,
além da autonomia, baseada no princípio da dignidade humana – que a bioética prega –, no
direito de personalidade de liberdade (MUNHOZ, 2014, p. 48-49).
Desse modo, a participação das crianças nas decisões sobre sua própria saúde deve ser
considerada desde que sejam identificadas pela equipe multiprofissional como capazes de
avaliar o problema. Idade, capacidade intelectual, cognitiva e emocional estão envolvidas na
habilidade em contribuir para as decisões.
A criança, portanto, tem direito a fazer opções sobre os procedimentos diagnósticos e
terapêuticos, embora, em situações entendidas como de risco e frente à realização de
procedimentos de alguma complexidade, torna-se sempre necessária a participação e o
consentimento dos pais ou responsáveis. No entanto, se a criança recusar o tratamento
deverá ser ouvida, especialmente se os benefícios desejados são pouco prováveis.
Deve haver relação de confiança, boa comunicação e respeito mútuo entre o médico, o
paciente e seus responsáveis – os pais, na maioria das vezes.
Detalhes sobre a doença, prognóstico e opções terapêuticas devem ser explicados
claramente, para que todos lidem com a situação de crise de forma racional.

5 TOMADA DE DECISÃO EM PEDIATRIA: NOVOS PARÂMETROS DE


ANÁLISE DA TOMADA DE DECISÃO

Conforme foi abordado no capítulo anterior, o pensamento acerca do papel da criança na


tomada de decisões médicas evoluiu, de modo que, sempre que possível, a criança e o
adolescente devem ser previamente ouvidos por equipe multiprofissional e seus
representantes legais sobre as implicações da medida clínica a ser empreendida, respeitado,
sempre que possível, o seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão.
No entanto, de acordo com Martins et al. (2009, p. 311-312), a capacidade de decidir sobre a
própria vida e saúde pressupõem, a rigor, a presença de três habilidades: a) compreender o
diagnóstico, opções de tratamento, riscos associados e prognóstico; b) apreciar o impacto
dessas ações sobre si próprio; c) formular e comunicar a decisão, pautada em seus valores
individuais. Todos esses requisitos começam a se desenvolver nas crianças e podem ser
verificadas concretamente nos adolescentes.
Entretanto, no Brasil, há limitação imposta pela lei, através da teoria das incapacidades, que
estabelece que a capacidade jurídica estipulada é de 18 (dezoito) anos.

ISSNe 2595-1602 19
Dentro dessa limitação legal, a criança e o adolescente perdem a possibilidade de agir de
forma autônoma, já que não podem firmar o consentimento informado.
Em relação às crianças, a saber, pessoas com menos de 12 (doze) anos, são escassas na
doutrina considerações a respeito do exercício da autonomia, talvez porque se compreenda
que as crianças em geral, de fato, não possuem tal capacidade (AGUIAR; BARBOZA, 2017,
p. 29).
Em contrapartida, nasce nos Estados Unidos, nos anos setenta, a teoria do menor maduro.
A partir dessa acepção, “a sociedade e as leis americanas reconheceram a existência de um
estado de maturidade cognitiva independente da idade cronológica, conhecido como mature
minor status” (LOCH, 2012, p. 353).
De acordo com a teoria, um indivíduo será considerado maduro quando possui “uma
capacidade natural de juízo ou suficiente maturidade para compreender a natureza e
transcendência do ato ao qual consente e as consequências mais relevantes que se derivarão
dele” (CASABONA, 2005, p. 150).
Ainda, segundo a Doutrina do Menor Maduro, é permitido ao menor consentir ou se opor
a um procedimento ou tratamento médico, se ficar comprovado que a criança é
suficientemente madura para entender, discernir e apreciar os benefícios e os riscos do
tratamento médico proposto (MUNHOZ, 2014, p. 132).
Essa Doutrina reconhece, portanto, que as crianças e os adolescentes são sujeitos de direitos
e concede-lhes a capacidade processual de exercer e reivindicar seu direito à autonomia
(MUNHOZ, 2014, p. 133).
Assim como a Doutrina do Menor Maduro efetiva a possibilidade dos adolescentes de
tomarem decisões autônomas no âmbito da saúde, o princípio da autonomia progressiva
concede à criança essa mesma possibilidade, bem como expande a compreensão de que, da
mesma maneira o adolescente é um menor maduro que poderá consentir, a criança tem
desenvolvimento cognitivo e moral que se aperfeiçoa, podendo fazer parte da decisão
médica, por meio do assentimento informado.
O princípio da capacidade progressiva é um princípio interpretativo da Convenção sobre os
Direitos da Criança, de 1989, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 99.710/1990.
De acordo com o art. 12 da Convenção, deve ser assegurado aos menores de 18 (dezoito)
anos o direito de expressar livremente as suas opiniões sobre os assuntos relacionados a si,
as quais devem ser levadas em consideração em função de sua idade e maturidade.
O artigo 12 promove uma verdadeira mudança na abordagem acerca da criança, que
anteriormente era tida como um recipiente passivo de proteção do adulto e agora é
reconhecida como agente ativo mediante o exercício do direito de participar da tomada de
decisões que afetem suas vidas.
No entanto, o artigo 12 assevera o direito da criança de estar envolvida no processo de
tomada de decisão em todos os assuntos que afetem sua vida, mas é o adulto que terá a
responsabilidade pelo resultado. O resultado, portanto, será decidido por adultos, mas
informado e influenciado pelas opiniões da criança (MUNHOZ, 2014, p. 135).

ISSNe 2595-1602 20
Percebe-se que tanto a Doutrina do Menor Maduro quanto o princípio da capacidade
progressiva, conferem a capacidade decisória para os menores decidirem a respeito de sua
própria saúde.
A efetivação da autonomia progressiva e da Doutrina do Menor Maduro é o reconhecimento
de que os direitos de personalidade da criança e do adolescente não estão sujeitos ao pátrio
poder e que progressivamente eles adquirem capacidade para participar da tomada de
decisões e finalmente realizam-na sozinhos.
A partir do momento em que se admite que as crianças são sujeitos de direitos, é possível
enxergá-las como indivíduos cuja capacidade evolui progressivamente, podendo quando
criança fazer parte do processo de decisão e quando adolescente tomar a decisão.
Ao fazer parte do processo de decisão no âmbito médico-clínico, essa capacidade progressiva
ganha a roupagem de autonomia progressiva. Isso significa que o princípio do respeito à
autonomia de Beauchamp e Childress (2009), que deve ser percebido em conjunto com os
princípios da igualdade, da beneficência e da não maleficência, se torna progressivo,
conformados e, portanto, no princípio da autonomia progressiva.
Desse modo, a partir do momento em que se constrói a autonomia progressiva é possível o
envolvimento da criança e do adolescente no processo de tomada de decisão.
O adolescente, devido ao seu desenvolvimento cognitivo e moral, poderá, se desejar, tomar
a decisão. A possibilidade de entregar a responsabilidade ao adolescente sobre seus direitos
de personalidade não o sobrecarrega, pois ele agirá na medida de seu desenvolvimento,
podendo recorrer aos responsáveis legais, se ainda não se sentir capaz de tomar a decisão ou
se o médico em sua avaliação entender que ele não está preparado para tomar a decisão
(HARRISON, 1997).
No entanto, a criança, por sua vez, quando ainda muito pequena não participará de decisões
efetivamente importantes, mas poderá realizar pequenas escolhas, de acordo com cada caso
em específico.
Quando a criança acredita não ter capacidade de decidir é preciso definir e apoiar o papel
dela, por meio do equilíbrio entre o desejo dos representantes legais, do médico pediatra,
bem como o envolvimento da criança na tomada de decisão.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cuidados paliativos proporcionam assistência transversal nos diversos níveis de atenção por
meio de equipes preparadas para atuar de forma interdisciplinar, apoiando os familiares e
melhorando a qualidade de vida do paciente ao lhe garantir mais autonomia no processo de
saúde-doença e fim de vida.
Se percebe a necessidade de pesquisas que abordem a perspectiva da criança sobre os
diversos assuntos relacionados à qualidade de vida e ao adoecimento, a fim de melhorar o
cuidado prestado.

ISSNe 2595-1602 21
Este estudo buscou dar um passo nesse sentido, de modo que as propostas analisadas ao
longo do trabalho podem ser reunidas em correntes distintas, qual seja, de um lado, aquelas
que indicam um critério etário, a partir do qual a capacidade decisória será presumida e, de
outro, os estudiosos que sustentam uma aferição casuística do discernimento ou competência
do menor, desvinculando-o dos parâmetros jurídicos, baseando-se na Doutrina do Menor
Maduro e autonomia progressiva.
A partir da capacidade progressiva, que reconhece a evolução da capacidade de crianças e
adolescentes no exercício dos direitos de participação dos atos que lhe envolvem, buscou-se
desenvolver os delineamentos do princípio da autonomia progressiva.
De acordo com tal princípio, o adolescente tem desenvolvimento cognitivo e moral
suficiente para tomar decisões no âmbito médico clínico e que a criança deverá estar
envolvida no processo de tomada de decisão acerca de procedimentos médicos.
Resta, portanto, continuar atentos ao cuidado diário de pacientes e familiares em um dos
momentos mais delicados da vida, e seguir progredindo para melhor estudar, compreender
e modificar a rotina assistencial, especialmente no que tange à autonomia do menor.

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ISSNe 2595-1602 26
EMPREGO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NA SELEÇÃO DE
EMBRIÕES HUMANOS DESDE A PERSPECTIVA DA
RESPONSABILIDADE À PRIVACIDADE

Bruna Guesso Scarmagnan Pavelski1


Mário Furlaneto Neto2
Teófilo Marcelo de Ârea Leão Junior3

RESUMO
Este artigo objetiva investigar os cenários legais em torno do uso de inteligência artificial (IA)
na seleção de embriões humanos no contexto do direito civil. Assim, mediante o método
hipotético-dedutivo e por meio de revisões bibliográficas, ao examinar as estruturas jurídicas
existentes, buscou-se abordar questões de responsabilidade, explorar questões de proteção
de dados e privacidade, fornecendo informações importantes para profissionais do direito e
formuladores de políticas na interseção de IA e seleção de embriões humanos. A análise visa
facilitar discussões significativas e promover a compilação e sistematização de estruturas
legais eficazes diante da integração tecnológica da IA na reprodução humana assistida (RHA),
nomeadamente, a seleção embrionária.
Palavras-chave: Embriões humanos; Inteligência artificial; Privacidade; Responsabilidade.

1
Doutoranda em Direito na área de concentração: Teorias da Justiça (justiça e exclusão); linha de pesquisa:
direito e vulnerabilidades - Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP. Bolsista CAPES/PROSUP.
Doutoranda em Cotutela - Universidad Pública de Navarra - UPNA. Mestra em Direito pelo Centro
Universitário Eurípides de Marília - UNIVEM (2018). Graduada em Direito pelo Centro Universitário
Eurípedes de Marília - UNIVEM (2015). Professora Pesquisadora na Universidad Pública de Navarra -
UPNA. Advogada. E-mail: bruna.guesso@gmail.com. Lattes CV: http://lattes.cnpq.br/9701756143903023.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1881-3961
2
Doutor em Ciência da Informação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2008),
Mestrado (2003) e graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Marília, Fundação Eurípides Soares
da Rocha (1990). Atua como Delegado de Polícia da Polícia Civil do Estado de São Paulo e professor da
Academia da Polícia Civil do Estado de São Paulo, principalmente, nos seguintes temas: crimes
informáticos, furto mediante fraude, inquérito policial eletrônico e biobancos. E-mail:
mariofurlaneto1@gmail.com. Lattes CV: http://lattes.cnpq.br/2788979685888836 ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-8453-3848
3
Pós-doutor em Direito pelo Ius Gentium Conimbrigae da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra (2015). Doutor em Direito pela Instituição Toledo de Ensino - ITE, Bauru-SP (2012). Mestre em
Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP (2001). Graduado
pela Faculdade de Direito de Marília, hoje Curso de Direito do Centro Universitário Eurípides de Marília,
UNIVEM, mantida pela Fundação Eurípides Soares da Rocha (1995). Líder do Grupo de Pesquisa: Direitos
Fundamentais Sociais na era digital, DIFUSO. Autor de obras e artigos científicos. Professor da Graduação
(1999), Mestrado (2012), Coordenador do Curso de Direito (2020) do UNIVEM e Advogado (1996). E-
mail: teofiloleaojr@gmail.com. Lattes CV: http://lattes.cnpq.br/4869509829074146 ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-1983-4967

ISSNe 2595-1602 27
1. INTRODUÇÃO

A crescente integração da IA em procedimentos de seleção de embriões humanos


apresenta desafios legais significativos no contexto do direito civil. Este artigo tem como
objetivo investigar e analisar estes cenários, fornecendo lampejos para profissionais do direito
e formuladores de políticas. Para isso, utiliza-se o método hipotético-dedutivo, mediante
revisões bibliográficas a fim de examinar as estruturas legais atuais e abordar questões
fundamentais de responsabilidade, de proteção de dados e de privacidade.
Com efeito, a rápida evolução da IA tem impulsionado sua aplicação em diversos
campos e, a área de RHA não é exceção. A seleção de embriões humanos é um aspecto
fundamental nesse contexto, com o potencial de melhorar as taxas de sucesso de tratamentos
e aumentar a probabilidade de gestações bem-sucedidas. A capacidade da IA de analisar
dados genéticos e informações clínicas dos embriões oferece uma perspectiva promissora
para melhorar os resultados dos tratamentos de fertilidade que atingem milhões de pessoas
ao redor do mundo.
Todavia, essa integração tecnológica também apresenta desafios significativos em
relação à privacidade dos dados, responsabilidade legal e proteção dos direitos dos indivíduos
envolvidos. Neste processo suscitam-se questões jurídicas complexas, que demandam análise
sob a ótica do direito civil.
Ocorre que, um dos principais desafios legais é determinar a responsabilidade em
caso de resultados desfavoráveis decorrentes do uso da IA na seleção de embriões. Com a
tomada de decisões automatizadas pela IA, surge a questão de quem será responsável por
eventuais erros ou consequências adversas. Isso requer a revisão cuidadosa das
responsabilidades legais de todas as partes envolvidas, incluindo clínicas de reprodução
assistida, profissionais de saúde e desenvolvedores de sistemas de IA.
Outrossim, a proteção da privacidade dos dados genéticos e informações médicas
dos indivíduos é uma preocupação central. A IA requer um acesso extenso a dados sensíveis
para realizar análises precisas, o que pode levantar questões sobre o uso e compartilhamento
ético dessas informações. É imperativo estabelecer medidas adequadas de proteção de dados
e garantir que os padrões de privacidade sejam respeitados durante todo o processo de
seleção de embriões.
No contexto atual, é imperativo que o direito civil acompanhe a rápida evolução da
tecnologia, garantindo a aplicação precisa e responsável da legislação relacionada à utilização
da IA na seleção de embriões humanos. A legislação vigente aborda questões cruciais, como
a responsabilidade dos envolvidos, a proteção da privacidade dos dados e a garantia dos
direitos reprodutivos.
A utilização da IA na seleção de embriões humanos traz perspectivas promissoras
para aprimorar a eficiência dos tratamentos de RHA, razão pela qual é fundamental encontrar
equilíbrio adequado entre a inovação tecnológica, a proteção dos direitos individuais e a
responsabilidade, a fim de que a sociedade possa se beneficiar da maximização dos benefícios
da IA na RHA. Paralelamente, é essencial assegurar a proteção dos valores e princípios
fundamentais dos envolvidos, resguardando seus direitos e garantindo a privacidade.

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Assim, propõe-se contribuir para a compilação e sistematização de estruturas legais
eficazes, que permitam uma integração responsável e legal da IA no emprego da seleção de
embriões. Considera-se a complexidade do tema proposto que está em constante evolução
e, espera-se que esta pesquisa estimule uma reflexão aprofundada, promovendo o
desenvolvimento de abordagens regulatórias equitativas e sustentáveis.

2. MARCO LEGAL: ANALISANDO A APLICABILIDADE DO DIREITO CIVIL


FRENTE A REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

O presente tópico aborda inicialmente sobre a RHA mediante a técnica de


fertilização in vitro (FIV), visando melhor compreensão do tema proposto, para após
trabalhar o marco legal e a aplicabilidade do direito civil no contexto da seleção de embriões
humanos na RHA por emprego de IA.
A FIV é uma avançada técnica de RHA, na qual ocorre o encontro do
espermatozoide com o ovócito em um ambiente laboratorial, daí o termo in vitro. A partir
desse marco inicial, os embriões são cuidadosamente formados e cultivados em laboratório
até o momento propício para serem transferidos para o útero da mulher (STARIOLO, 2023,
p. 01).
A notável realização dessa técnica ocorreu pela primeira vez em 1978, graças aos
esforços dos ingleses Patrick Steptoe e Robert Edwards. No Brasil, o pioneirismo foi
protagonizado pela paranaense Anna Paula Bettencourt Caldeira, nascida em 1984,
tornando-se o primeiro "bebê de proveta" do país. Desde então, a FIV tem sido objeto de
incessantes estudos e aprimoramentos, impulsionando a busca por taxas de sucesso cada vez
mais elevadas (STARIOLO, 2023, p. 01). Esses avanços têm permitido a realização do sonho
da maternidade e da paternidade para inúmeros casais que enfrentam desafios reprodutivos.
Segundo a Associação Brasileira de Reprodução Assistida, a taxa de sucesso da FIV
pode alterar conforme circunstâncias de cada caso, sendo que quanto maior a idade, menor
é a chance de sucesso. “A taxa média de gravidez é de, aproximadamente, 18 a 25% por
tentativa até os 35 anos de idade, no caso da IIU, e de 50 a 60% na FIV”. Após os 37 anos,
“a probabilidade de sucesso da Inseminação Intrauterina diminui para 5 a 15%” (SBRA,
2023, p. 01).
Os dados do Relatório do Sistema Nacional de Produção de Embriões de 2022
apontam que em 2021, no Brasil, foram transferidos 91.962 embriões, que deram origem a
27.861 gestações4 (ANVISA, 2022, p. 01).
Desta maneira, a primeira e mais essencial é considerar a amplitude do assunto em
questão, seu sentido e significado. A infertilidade faz muitas pessoas sofrerem. No mundo,
“existem aproximadamente mais de 200 milhões de casais inférteis. Estima-se que cerca de

4
Nota-se que pode ser realizada a transferência de mais de um embrião simultaneamente, visando aumentar
as chances da gravidez, consequentemente este fato influencia a obtenção de estatísticas mais precisas sobre
a porcentagem de gestações geradas por FIV (STARIOLO, 2023, p. 01).

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12-14% dos casais tenham problemas de infertilidade ao longo da vida” (TORRE DÍAZ,
2015, p. 183, tradução nossa). A Sociedade Espanhola de Fertilidade (SEF), em várias
publicações, indica que a prevalência de infertilidade estaria entre 15 e 25% dos casais (SEF,
2023). Além disso, em alguns países desenvolvidos, 2 a 4% dos nascimentos já ocorrem por
meio da RHA (na Dinamarca, ultrapassa 4%) (TORRE DÍAZ, 2015, p. 183, tradução nossa).

Já existem mais de quatro milhões de crianças nascidas como resultado


dessas técnicas. Por trás desses dados simples existem muitas ilusões e
muitas dores de muita gente de carne e osso que devem ser levadas em
conta, que devem ser ouvidas com atenção e cuidadas com humanidade.
Ser pais é, para muitas pessoas, uma meta essencial em suas vidas e o fato
de descobrir em seu horizonte vital a possibilidade de não sê-lo gera
profunda dor, profundo sofrimento e, claro, a necessidade de reformular
sua própria identidade e seus sonhos mais acalentados. A esterilidade é,
portanto, uma profunda deficiência e limitação em muitas vidas, não só
no campo biológico, mas também psicológico e social (TORRE DÍAZ,
2015, p. 183, tradução nossa).

Observa-se com estes dados a crescente a demanda frente o uso das técnicas de
RHA mediante a FIV no Brasil e no mundo, o que motiva a busca de aprimoramento da
técnica em relação aos embriões que serão implantados no útero materno. Nesta esfera, a IA
foi recentemente introduzida neste processo de seleção. Hoje também é possível usar a
inteligência artificial para selecionar o embrião com maior capacidade de implantação para
cada caso e poder otimizar os resultados do RHA (DIMITRIADIS; ZANINOVIC;
BADIOLA; BORMANN, 2022, p. 189, tradução nossa).
Os métodos usados para selecionar embriões de alta qualidade para procedimentos
de transferência em FIV vale-se de abordagem tradicional baseando-se na análise
morfológica, usando observação visual e avaliação subjetiva por embriologistas. Vários
sistemas de pontuação foram propostos para auxiliar na seleção de embriões, mas esses
métodos são limitados em sua eficácia e podem estar sujeitos a restrições legais em alguns
países (MANNA, 2013, p. 43, tradução nossa).

As técnicas de inteligência artificial (IA) podem oferecer uma solução


potencial para melhorar a seleção de embriões. São discutidos exemplos
de métodos de IA aplicados a programas de fertilização in vitro,
especificamente para pontuação/seleção de embriões e oócitos. Esses
métodos envolvem algoritmos de reconhecimento de padrões e sistemas
de aprendizado de máquina para classificar e analisar imagens de embriões
(MANNA, 2013, p. 43, tradução nossa).

Kottow (2022, p. 5, tradução nossa) afirma que “a agilidade e a velocidade das


interações digitais, elevadas ao status de Inteligência Artificial (IA), permitem milhões de

ISSNe 2595-1602 30
combinações interativas em um denso emaranhado de dados, formando uma biologia
sistêmica” que revela todas as “dobras que compõem cada pessoa”.
A IA é aplicada na seleção de embriões por meio de algoritmos e análises complexas
que processam dados genéticos e informações clínicas dos embriões. Esses algoritmos
podem ajudar a identificar embriões com maior probabilidade de sucesso de implantação e
desenvolvimento saudável, aumentando assim as chances de uma gravidez bem-sucedida em
tratamentos de fertilidade, como a FIV.
O processo de seleção de embriões com IA envolve etapas como a análise do
genoma dos embriões, avaliação de características específicas e identificação de anomalias
genéticas ou cromossômicas que podem afetar o desenvolvimento fetal. A partir dessas
informações, a IA pode classificar os embriões em termos de viabilidade e potencial de
sucesso, auxiliando os profissionais de saúde na tomada de decisões sobre quais embriões
devem ser transferidos para o útero da mulher receptora (KRAGH; KARSTOFT, 2021, p.
1, tradução nossa).

A qualidade dos embriões é o fator mais crítico para o sucesso da FIV,


mas ainda faltam métodos para julgar a qualidade não só deles, como dos
espermatozoides e óvulos com precisão. Portanto, é difícil prever a
probabilidade de uma gravidez bem-sucedida para cada paciente e
entender completamente a causa de cada falha. Os procedimentos
baseados em IA na medicina reprodutiva podem se tornar uma solução
para os impasses atuais. O principal impulsionador para o
desenvolvimento dessas aplicações é o desejo de melhorar o tratamento e
o prognóstico de pacientes com infertilidade, usando a grande quantidade
de dados fornecidos por modalidades diagnósticas e terapêuticas
complexas (CAMBIAGHI, 2022, p. 01).

O uso de IA na seleção de embriões oferece várias vantagens, incluindo a


possibilidade de aumentar as taxas de sucesso dos tratamentos de RHA e reduzir o risco de
gestações múltiplas, que podem ser associadas a complicações para a mãe e os bebês.

Uma variedade de estratégias tem sido proposta para avaliar e selecionar


óvulos com o melhor potencial de desenvolvimento, mas tipos de
limitações, como a possibilidade de que o óvulo ou embrião de aparência
normal ainda possa ocultar aneuploidia pedem mais pesquisas para obter
padrões e métodos precisos. Assim, a utilização de métodos de IA para
seleção de óvulos na FIV pode trazer novas oportunidades. Além disso,
alguns pesquisadores utilizaram abordagens não invasivas para prever o
potencial de desenvolvimento do óvulo humano. O método ideal de
seleção de óvulos seria não invasivo, barato e capaz de ser incorporado ao
fluxo de trabalho da embriologia com impacto mínimo e ainda há espaço
para melhorias, como as tecnologias para uma previsão mais confiável da
qualidade do óvulo e quantificação mais precisa da competência de
desenvolvimento dos gametas (CAMBIAGHI, 2022, p. 01).

ISSNe 2595-1602 31
A análise do sêmen é o primeiro passo na avaliação de casais inférteis:

A morfologia do esperma reflete tipos de anomalias. Atualmente, os


sistemas de análise de esperma auxiliado por computador são utilizados
para pesquisas e análises de rotina em humanos ou animais. O sistema
pode relatar a porcentagem móvel e os parâmetros cinemáticos e
identificar as subpopulações de células espermáticas. Devido à inerente
falta de objetividade e à dificuldade na avaliação manual da morfologia
espermática e ao alto grau de variação entre laboratórios, métodos
automáticos baseados em análise de imagens devem ser desenvolvidos
para obter resultados mais objetivos e precisos. A seleção de recursos pode
melhorar o desempenho, visualizar os dados para seleção do modelo e
reduzir a dimensionalidade (CAMBIAGHI, 2022, p. 01).

Assim, nos últimos anos, com desenvolvimento das tecnologias de sequenciamento


genético e à evolução dos algoritmos de IA na análise de grandes volumes de dados
genômicos, os avanços nessas áreas tornaram viável a aplicação da IA na RHA, permitindo
que clínicas e centros de fertilidade utilizem essas tecnologias para aprimorar a seleção de
embriões e melhorar os resultados dos tratamentos.
O uso de IA na seleção de embriões humanos é uma área da RHA que tem
avançado significativamente no século XXI, impulsionada pelo rápido desenvolvimento de
tecnologias de IA e de biotecnologia, inclusive a técnica foi recentemente empregada no
Brasil.
Em outubro do ano de 2022 é anunciado que chega na seara brasileira a primeira
máquina capaz de avaliar e selecionar, por meio de inteligência artificial automatizada (IAA),
embriões de forma automática e, assim, melhorar as taxas de gravidez, segundo a notícia
“Clínica Fertilidade&Vida, de Campinas, é a primeira no país a disponibilizar a incubadora
inteligente que entrega precisão na escolha dos melhores embriões e chance de gravidez pode
chegar em 80%”, explicando os especialistas que “o algoritmo da inteligência artificial dispõe
de mais assertividade na escolha do embrião do que o olho humano. A máquina é capaz de
fazer muito mais avaliações e interpretações que o embriologista, mesmo com a lupa, não
conseguiria enxerga” (LAMIM, 2022, p. 01).
De outro modo, a crescente integração da IA com a técnica de RHA traz consigo
desafios jurídicos significativos que requerem análise sob a ótica do direito civil. Desta
maneira, passa-se a analisar os regulamentos existentes de direito civil relacionados às
tecnologias de reprodução assistida, avaliando a adequação dos quadros jurídicos atuais e
identificando eventuais lacunas legais específicas que surgem com a integração de tecnologias
de IA na seleção de embriões humanos.
Na seara brasileira, a legislação não possui regulamentação específica quanto a
RHA, sendo a matéria apenas regulamentada por Resoluções do Conselho Federal de
Medicina (CFM). Cumpre informar que, a primeira resolução no país que tratou de

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reprodução humana assistida foi a Resolução CFM nº 1358/92 e, a atual trata-se da
Resolução nº 2.320/22 que atualizou as regras da reprodução humana assistida no Brasil e
foi publicada pelo CFM em 20 de setembro de 2022. As resoluções estabelecem as normas
éticas e técnicas para a utilização das técnicas de reprodução assistida.
A Resolução nº 2.320/22 estabelece as indicações, critérios e limitações para a
realização dos procedimentos de RHA, incluindo a fertilização in vitro (FIV), a inseminação
artificial e a transferência de embriões. A resolução também aborda questões de
consentimento informado, descarte de embriões e anonimato do doador de gametas.
Deveras, há idade limite para a utilização das técnicas, bem como obrigatoriedade
de acompanhamento médico adequado durante todo o processo. Por sua vez, o número
máximo de embriões que pode ser transferido durante um procedimento de RHA varia
conforme a faixa etária da mulher receptora e a técnica utilizada (BRASIL, 2022).
Os critérios e limitações são estabelecidos para garantir a segurança e a eficácia dos
tratamentos, evitando gestações múltiplas que possam apresentar riscos tanto para a mãe
quanto para os fetos. Para a FIV, os critérios de transferência de embriões são: Mulheres de
até 37 anos podem implantar até dois embriões, acima desta idade, cada uma poderá
transferir até três. Em caso de embriões euplóides5 (com 46 cromossomos), a resolução
delimita a implantação em até dois embriões, independentemente da idade. Em caso de
gravidez múltipla, a redução embrionária é proibida (BRASIL, 2022).
Quanto à idade limite para a utilização das técnicas de reprodução assistida, a
resolução estabelece que mulheres com até 50 anos podem se submeter aos procedimentos
de FIV e outras técnicas de reprodução assistida. No entanto, é importante destacar que a
decisão de aceitar pacientes com mais de 50 anos fica a critério da equipe médica, levando
em consideração a saúde geral da paciente e a possibilidade de complicações associadas a
gestações em idades avançadas (BRASIL, 2022).
Por outro lado, o consentimento informado também é uns pontos principais da
resolução do CFM que enfatiza a importância do instituto por parte dos pacientes antes de
iniciar qualquer procedimento de reprodução assistida. O consentimento informado deve ser
obtido de forma clara e compreensível, garantindo que os pacientes estejam plenamente
cientes dos procedimentos, riscos, benefícios, limitações e implicações legais e éticas
envolvidas. É fundamental que os pacientes sejam informados de todas as opções
disponíveis, permitindo-lhes fazer escolhas esclarecidas de acordo com suas circunstâncias e
valores (BRASIL, 2022).
A resolução também estabelece diretrizes claras em relação ao descarte de embriões
excedentes após os procedimentos de RHA. O número total de embriões gerados em
laboratório não é mais limitado, devendo os pacientes decidir sobre quantos serão
transferidos a fresco. Os excedentes viáveis devem ser criopreservados. Antes da geração
dos embriões, os pacientes devem informar por escrito o destino a ser dado aos

5
Embrião com mais potencial para se implantar no útero e com mais probabilidades de evoluir para uma
criança saudável.

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criopreservados em caso de divórcio, dissolução de união estável, falecimento de uma das
partes ou de ambas, sendo a doação uma possibilidade (BRASIL, 2022).
No que diz respeito ao anonimato do doador de gametas (óvulos ou
espermatozoides), a resolução determina que a doação deve ser realizada de forma voluntária
e anônima. O doador não deve ter conhecimento da identidade do receptor e vice-versa.
Esse anonimato visa preservar a privacidade e os direitos de ambas as partes envolvidas,
protegendo a identidade do doador e a autonomia do receptor (BRASIL, 2022).
É importante ressaltar que a resolução também aborda outras questões relacionadas
à reprodução assistida, como a utilização de técnicas de FIV por pessoas solteiras e casais
homoafetivos, a proibição da seleção de sexo do embrião (salvo por indicação médica) e as
normas para a realização de procedimentos de doação de gametas e embriões (BRASIL,
2022).
Outrossim, além da resolução supramencionada, existem outras legislações que
também são relevantes para a aplicabilidade jurídica da RHA no Brasil. Os principais
regulamentos de direito civil em RHA, pode ser encontrado diretamente no Código Civil que
estabelece os princípios gerais do direito civil, incluindo questões relacionadas ao direito à
vida e à proteção dos direitos da personalidade.
Além disso, a Lei nº 11.105/2005 (Lei de Biossegurança) aborda questões
relacionadas à utilização de técnicas de reprodução assistida, manipulação genética e
utilização de células-tronco embrionárias, estabelecendo as normas para a pesquisa e
aplicação de tecnologias reprodutivas no Brasil (BRASIL, 2005). Esses são alguns dos
principais regulamentos em RHA no país.
Conquanto, cumpre destacar que o uso de IA na seleção de embriões ainda é uma
área em constante evolução e pesquisa, questões legais, nomeadamente relacionadas a seara
civil, também devem ser consideradas para garantir que essa tecnologia seja aplicada de forma
responsável e em conformidade com os preceitos jurídicos que envolvem a medicina
reprodutiva.
E assim chega-se a um dos pontos centrais deste artigo: a responsabilidade civil. A
questão fundamental da responsabilidade legal no contexto da seleção de embriões assistida
por IA deve examinar quem são os agentes envolvidos neste processo, como clínicas de
reprodução assistida, profissionais de saúde e desenvolvedores de sistemas de IA. A
atribuição de responsabilidade em casos de resultados desfavoráveis ou falhas decorrentes
do uso da IA na seleção de embriões e a importância de estabelecer padrões claros para
garantir a integridade e segurança dos procedimentos.
Portanto, para aprofundamento da temática proposta, passa-se trazer à baila análise
de possíveis questões de responsabilidade civil envolvendo sistemas de IA na seleção de
embriões.

3. ANÁLISE DE POSSÍVEIS QUESTÕES DE RESPONSABILIDADE


ENVOLVENDO SISTEMAS DE IA NA SELEÇÃO DE EMBRIÕES HUMANOS

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Atualmente, com o impulso da nova revolução tecnológica, enfrenta-se uma série
de desafios legais, o que exige cuidadosamente análise da situação fática e jurídica.
Definida por Klaus (2016, p. 14) esta revolução tem o potencial de transformar
completamente a humanidade, impactando vidas, trabalho e relacionamentos de maneira
profunda. A quarta revolução industrial é algo sem precedentes, em termos de sua escala,
escopo e complexidade, e promete mudanças radicais nunca experimentadas pela
humanidade, razão pela qual essencial a análise jurídica da temática proposta.
Inobstante, a responsabilidade civil decorrente de danos resultantes do emprego de
IA na seleção de embriões humanos pode estar sujeita às regras dispostas tanto no Código
Civil quanto no Código de Defesa do Consumidor (CDC), dependendo do contexto
específico em que ocorre o dano.
O Código Civil é a principal fonte de normas que regula a responsabilidade civil no
Brasil. No âmbito da reprodução assistida com o uso de IA na seleção de embriões, o Código
Civil pode ser aplicado em várias situações, como a responsabilidade profissional, se assim
ocorrer um erro ou negligência por parte de profissionais de saúde, como médicos,
embriologistas ou outros envolvidos nos procedimentos de RHA com IA, as regras de
responsabilidade civil do Código Civil podem ser aplicadas para responsabilizar o
profissional ou a clínica por danos causados aos pacientes.
De acordo com Nogaroli (2023, p. 02, grifo nosso):

Sistemas decisionais automatizados têm um imenso potencial de melhorar


a experiência dos pacientes nos seus cuidados de saúde, proporcionando
diagnósticos, prognósticos e propostas de tratamento com maior rapidez,
precisão e eficácia. Por outro lado, surgem novos desafios para o setor
da saúde, sobretudo pelos riscos de algoritmos imprecisos,
discriminatórios, mal utilizados e com processos decisórios
obscuros. Atualmente, ao redor do mundo, não se tem notícia de
jurisprudência sobre responsabilidade civil médica envolvendo um sistema
de IA. Todavia, há uma tendência de que surjam litígios, tendo em
vista a maior frequência, nas últimas décadas, de utilização de
sistemas autônomos para apoiar decisões clínicas.

As regras de responsabilidade civil do Código Civil Brasileiro estão principalmente


estabelecidas nos artigos 186 a 188. Esses artigos tratam da responsabilidade por ato ilícito,
que é quando alguém, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, causa
dano a outra pessoa. O artigo mais relevante para a responsabilidade civil é o artigo 186, que
estabelece o seguinte: "aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou
imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete
ato ilícito" (BRASIL, 2002).
O artigo 186 fundamenta a responsabilidade civil no caso de um profissional de
saúde ou uma clínica de reprodução assistida cometerem atos ilícitos que resultem em danos
aos pacientes. Caso um erro, negligência ou imprudência no uso de IA na seleção de embriões

ISSNe 2595-1602 35
cause danos aos pacientes, eles podem recorrer ao Código Civil e seus artigos relacionados
para buscar reparação pelos danos sofridos.
Além do artigo 186, outros dispositivos do Código Civil também podem ser
relevantes para a responsabilidade civil em casos específicos, como o artigo 927, que trata da
obrigação de indenizar, e o artigo 942, que estabelece a responsabilidade solidária em casos
de atividades de risco (BRASIL, 2002).
Por outro lado, há a responsabilidade contratual, se houver um contrato entre as
partes (pacientes e clínica de reprodução assistida, por exemplo), o Código Civil também
pode ser aplicado em caso de descumprimento do contrato ou falha na prestação de serviços,
incluindo danos decorrentes do uso de IA na seleção de embriões.
O artigo do Código Civil que trata da responsabilidade contratual é o artigo 389,
estabelecendo a obrigação de reparação dos danos causados pela parte que não cumprir ou
cumprir de forma inadequada com suas obrigações contratuais. In verbis: "Não cumprida a
obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária
segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado" (BRASIL,
2002).
Portanto, se em um contrato relacionado aos procedimentos de reprodução
assistida com o uso de IA na seleção de embriões, houver falha no cumprimento das
obrigações estabelecidas no contrato, o devedor (neste caso, o prestador de serviços ou
clínica) poderá ser responsabilizado pelos danos causados ao paciente, além de arcar com
perdas e danos, juros e atualização monetária, conforme estabelecido no artigo 389.
Todavia, o CDC, também pode ser aplicado para proteger os pacientes
(considerados consumidores) em caso de danos decorrentes da prestação de serviços, desde
que danos sejam causados por defeitos ou falhas nos procedimentos de seleção de embriões
com IA. O artigo do CDC que pode ser aplicado é o artigo 14:

O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de


culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos
relativos à prestação dos serviços, bem como por informações
insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos (BRASIL,1990).

O artigo 14 do CDC estabelece a responsabilidade objetiva do fornecedor de


serviços, o que significa que o prestador de serviços de reprodução assistida, como uma
clínica de fertilidade que utiliza IA na seleção de embriões, é responsável pelos danos
causados aos pacientes, independentemente de existir culpa ou negligência comprovada
(BRASIL,1990).
Se ocorrerem defeitos relativos à prestação dos serviços, como falhas no uso de IA
que resultem em danos ao paciente, ou, se informações fornecidas aos pacientes sobre o
procedimento forem insuficientes ou inadequadas, o fornecedor de serviços (a clínica ou
prestador) pode ser responsabilizado pelos danos causados.

ISSNe 2595-1602 36
A aplicação do CDC é importante quando o paciente se enquadra como
consumidor nos termos da lei, ou seja, quando ele contrata um serviço ou produto para uso
pessoal ou familiar. Nesse contexto, a relação entre a clínica de reprodução assistida e o
paciente é considerada uma relação de consumo, e o CDC é aplicado para proteger os direitos
e interesses do consumidor.
Nesta perspectiva, com base no Código Civil e CDC passa-se analisar eventuais
hipóteses dos danos causados pelo emprego de IA na seleção de embriões humanos,
elencando a responsabilidade de cada uma delas:
Os desenvolvedores e fornecedores de sistemas de IA podem ser responsabilizados
caso ocorram erros ou falhas nos algoritmos utilizados na seleção de embriões. Nesse caso,
a responsabilidade é subjetiva, pois depende de comprovar a culpa ou negligência dos
desenvolvedores ou fornecedores. Se a IA apresentar falhas devido a erros no
desenvolvimento do software ou negligência na sua implementação, os responsáveis podem
ser considerados responsáveis pelos danos resultantes.
Todavia, se a IA for incapaz de fornecer resultados precisos e confiáveis, o
desenvolvedor ou fornecedor do software pode ser considerado responsável por danos
resultantes de tais falhas. Neste caso, a responsabilidade é objetiva, ou seja, independe da
comprovação de culpa ou negligência. Mas, se a IA não cumprir sua função adequadamente,
o desenvolvedor ou fornecedor pode ser responsabilizado pelos danos causados, mesmo que
não tenham agido com culpa, nos termos do artigo do Código Civil 927 (NOGAROLI, 2023,
p. 2).
No que concerne aos profissionais de saúde e clínicas de reprodução assistida que
utilizam a IA na seleção de embriões podem ser considerados responsáveis se não cumprirem
os padrões adequados de cuidados e diligência, ao propor a IA uma solução deve haver a
avaliação do profissional, caso siga a proposta de tratamento bastante fora do padrão trazido
pela IA, a aferição da culpa médica se torna, de certa forma, menos complexa, pois o
profissional age em evidente falta de diligência (erro grosseiro) (NOGAROLI, 2023, p. 2).
Neste caso, a responsabilidade é subjetiva, pois depende de comprovar a culpa ou
negligência dos profissionais ou clínicas. Se eles não adotarem os devidos cuidados na
implementação e monitoramento da IA podendo evitar resultados adversos, podem ser
considerados responsáveis pelos danos causados, de acordo com os artigos 186 e 927.
De acordo com Nogaroli (2023, p. 2) para verificar “se um médico agiu
culposamente em um caso específico, devem ser analisados os padrões de conduta
profissional exigidos no momento da atuação médica”. Corroborando, Price (2023, tradução
nossa) aduz que o médico, “caso não seja diligente na utilização da IA, pode ser
responsabilizado”. Nesta perspectiva, Molnár-Gábor (2020, p. 350-35, tradução nossa)
preleciona que “se os médicos reconhecerem, com base em suas expertises, que as
informações fornecidas pela IA estão incorretas naquele caso específico, não devem
considerá-las como base para sua decisão”.

O médico, diante do resultado diagnóstico ou prognóstico trazido pelo


algoritmo de IA, estará na complexa posição de justificar: (i) porque ele

ISSNe 2595-1602 37
seguiu o diagnóstico ou tratamento sugerido pela IA; ou (ii) porque - e
com base em quais fatores - ele se desviou da recomendação algorítmica.
O médico é livre para escolher seus meios de diagnóstico e propostas de
terapia, mas também é responsável por suas escolhas. De todo modo, há
uma premissa básica na avaliação da culpa médica, que será sempre uma
constante na análise jurídica dos eventos adversos ocorridos por ato
essencialmente médico: a álea terapêutica, os fatores aleatórios da prática
da Medicina tornam impossível impor ao médico uma obrigação de
infalibilidade ou absoluta exatidão (NOGAROLI, 2023, p. 3).

Outrossim, é dever do profissional da saúde, prestar esclarecimento, isto significa


que “além do dever que o médico possui de informar que, por exemplo, utilizou um
algoritmo de IA para apoiar a sua avaliação de determinado quadro clínico, ele precisa
também explicar o funcionamento da tecnologia utilizada, de acordo com o grau de
compreensão de cada paciente”, sob pena de incorrer na denominada "`opacidade
explicativa´” (NOGAROLI, 2023, p. 4).
Observa-se que o dever de conduta médica de informação, esclarecimento
e conselho, decorrente da boa-fé objetiva contratual, está intimamente
relacionado com dois princípios éticos próprios da IA: i) proteger a
autonomia humana, e ii) garantir a transparência, explicabilidade e
inteligibilidade (NOGAROLI, 2023, p. 4).

No mesmo sentido, dimensiona Coeckelbergh (2021, p. 86, tradução nossa):

Um uso ético da IA requer que os dados sejam coletados, processados e


compartilhados de uma forma que respeite a privacidade dos indivíduos e
seu direito a saber o que ocorre com eles, o acesso dos mesmos, a se opor
a coleta ou processamento e saber se estão coletando e processando e (se
procede) que estão expostos a decisão tomada por uma IA.

Indubitavelmente, conforme explica Nogaroli (2023, p. 4) deve ser considerado as


“peculiaridades da situação concreta para aferir a possibilidade de exigir do médico
determinada conduta diante de eventual condição precária de trabalho ou, ainda, outras
questões relacionadas à própria estrutura da entidade hospitalar onde ocorreu o
atendimento”.
Portanto,
é deveras inviável adotar a responsabilidade sem culpa no âmbito da
atividade médica, mesmo para ser aferida a violação a um dever de conduta
na prestação de serviços médicos com IA, não apenas como mandamentos
éticos, mas especialmente em razão da sua força jurídica cogente.
Tratando-se o contrato firmado entre médico e paciente de negócio
jurídico de natureza existencial, alguns deveres são preenchidos com
novos e diferenciados significados, conduzindo a uma tutela distinta com

ISSNe 2595-1602 38
uma lógica diversa daquela tradicional visão da responsabilidade civil
contratual (NOGAROLI, 2023, p. 7).

Conclui Nogaroli (2023, p. 7) que a “violação positiva do contrato médico pautada


em uma análise subjetiva se justifica porque os deveres de conduta apresentam-se de maneira
qualificada na relação contratual médico-paciente, comportando-se quase que como
obrigação principal”. E, assim, nesse contrato existencial, “encontra-se na culpa o
fundamento jurídico da responsabilidade do profissional. De igual modo, a violação positiva
do contrato médico (por meio do descumprimento dos deveres de conduta) deve ser aferida
subjetivamente”, por fundamento e imperativo legal, “nos termos do art. 951 do CC e do §
4º do art. 14, do CDC, sob pena de inviabilizar a profissão e despersonalizar a relação médico
paciente” (NOGAROLI, 2023, p. 7).
Em contrapartida, em alguns casos, os próprios pacientes e usuários também
podem ser considerados responsáveis por danos causados pelo uso da IA na seleção de
embriões, especialmente se não fornecerem informações precisas ou omitirem informações
relevantes que poderiam afetar o processo de seleção. Nesse caso, a responsabilidade é
subjetiva, pois depende também de comprovação de culpa ou negligência, artigos 186 e 927.
Ademais, no que concerne a atribuição de responsabilidade em sistemas de levanta-
se a dificuldade de identificar o sujeito responsável pelas decisões tomadas pelos algoritmos
e como distribuir a responsabilidade entre os participantes do processo de desenvolvimento
e aplicação da IA. Ressalta-se que as máquinas não são conscientes nem possuem
intencionalidade, portanto a responsabilidade recai sobre os seres humanos que projetam,
programam e utilizam a IA. É imprescindível a supervisão humana e é discutida a
possibilidade de atribuir autonomia e responsabilidade a sistemas inteligentes com
inteligência geral no futuro (RUIZ BLÁZQUEZ, 2022, p. 269-271).
Por fim, cumpre salientar que a aplicação das regras de responsabilidade civil pode
ser complexas e dependerá das circunstâncias específicas de cada caso, especialmente no que
tange a identificação de responsabilidades legais de desenvolvedores de IA, profissionais de
saúde e clínicas de reprodução.
Neste diapasão, além da égide da responsabilidade civil far-se-á necessário o exame
do dever por parte dos profissionais da proteção de dados e da privacidade na seleção de
embriões humanos empregados por IA.

4. EXAME DA PROTEÇÃO DE DADOS E CONSIDERAÇÕES DE


PRIVACIDADE NA SELEÇÃO DE EMBRIÕES HUMANOS MEDIANTE
EMPREGO DE IA

A crescente utilização de IA na seleção de embriões humanos traz consigo a


necessidade de analisar cuidadosamente as garantias legais e os requisitos para lidar com
dados genéticos e pessoais sensíveis. O manuseio dessas informações requer estrita
observância às leis de proteção de dados e privacidade, garantindo que a coleta,

ISSNe 2595-1602 39
armazenamento e utilização desses dados sejam realizados em conformidade com as
regulamentações vigentes.
Byung-Chul Han (2018, p. 57) já alertava que “a comunicação automática entre as
coisas, que ocorre sem qualquer intervenção humana, fornecerá novo sustento para
fantasmas”, segundo ele, “ela é como que conduzida por mãos fantasmagóricas. Os
fantasmas digitais cuidariam talvez para que tudo em algum momento saísse de controle”.
Nesse cenário, informações altamente sensíveis são coletadas e processadas para a
tomada de decisões cruciais na reprodução assistida. A proteção desses dados deve ser
encarada como uma prioridade, assegurando que os pacientes tenham controle sobre o uso
de suas informações genéticas e pessoais, bem como que os fornecedores de serviços e
desenvolvedores de sistemas de IA estejam em conformidade com as normas legais e éticas
aplicáveis (SOCIEDADES DEL GRUPO QUIRÓNSALUD, p. 01, 2023, tradução nossa).
A implementação de medidas de segurança tecnológicas e a adoção de protocolos
rigorosos de privacidade são essenciais para garantir que essas informações sejam tratadas
com confidencialidade e respeito à dignidade dos pacientes.
Para assegurar a transparência e segurança nesse cenário, é essencial que os
pacientes sejam devidamente informados sobre o propósito, extensão e potenciais riscos do
uso de suas informações para a seleção de embriões. Ademais, é imprescindível fornecer
informações claras sobre como a IA será empregada no processo, as etapas envolvidas e as
medidas de segurança implementadas para proteger os dados. O consentimento informado
deve ser obtido de forma livre e esclarecida, permitindo que os pacientes tomem decisões
informadas e tenham controle sobre o uso de suas informações.
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil é o marco legal essencial a ser
considerado nesse contexto. A LGPD, Lei nº 13.709, foi promulgada em 14 de agosto de
2018, regulamentando o tratamento de dados pessoais por entidades públicas e privadas e,
estabelecendo regras para proteger a privacidade e os direitos dos titulares dos dados no país.
A LGPD entrou em vigor em setembro de 2020 e trouxe importantes mudanças no cenário
de proteção de dados, garantindo maior controle e segurança sobre as informações pessoais
dos cidadãos.
Na seara da reprodução assistida, a coleta e o processamento de dados genéticos e
informações médicas dos pacientes são comuns durante os procedimentos de seleção de
embriões. A utilização de IA para analisar e tomar decisões com base nesses dados intensifica
a necessidade de proteção da privacidade e da segurança dos dados.
Isto porque, “as novas vulnerabilidades tecnológicas nunca são apenas tecnológicas:
também se convertem em vulnerabilidades humanas, existenciais” (COECKELBERH, 2021,
p. 93, tradução nossa).
A LGPD impõe alguns princípios e requisitos importantes que devem ser
observados no contexto da reprodução assistida com IA sendo o consentimento, a finalidade,
a transparência, a segurança, direito dos titulares e transferência internacional de dados.
Nessa dimensão, a LGPD exige que o tratamento de dados pessoais seja realizado
com o consentimento dos titulares dos dados. Isso significa que os pacientes devem ser

ISSNe 2595-1602 40
informados sobre como seus dados serão utilizados, com quem serão compartilhados e para
quais finalidades. O consentimento deve ser livre, informado e inequívoco, conforme
previsto no inciso I do artigo 7º (BRASIL, 2018).
A coleta e o processamento de dados pessoais devem ter uma finalidade específica
e legítima. No caso da reprodução assistida com IA, os dados devem ser utilizados somente
para a seleção de embriões e outros procedimentos relacionados à saúde reprodutiva, de
acordo com o princípio da finalidade, disposto no artigo 6°, inciso I, da lei em comento
(BRASIL, 2018).
A LGPD exige que os pacientes sejam informados de forma clara e acessível sobre
o tratamento de seus dados pessoais. As clínicas e profissionais de saúde devem fornecer
informações detalhadas sobre o tratamento dos dados durante os procedimentos de
reprodução assistida, promovendo o princípio da transparência, disposto no artigo 6°, inciso
VI, da lei em comento.
Destaca-se a importância da transparência e explicabilidade em sistemas de IA e
como essas características podem afetar a confiança dos cidadãos na tecnologia e em seus
criadores. Menciona-se que os cidadãos têm o direito de saber as razões por trás das decisões
tomadas pelos algoritmos de IA e que essa explicação deve ser compreensível para eles.
Transparência não significa revelar todo o código do software, mas fornecer explicações
razoáveis sobre as decisões tomadas pela IA sem precisar revelar seu funcionamento
detalhado. Ressalta-se que a prestação de contas e a rastreabilidade são essenciais para
garantir a confiança na IA e evitar possíveis vieses discriminatórios em suas decisões (RUIZ
BLÁZQUEZ, 2022, p. 265-267, tradução nossa).
Ruiz Blázquez (p. 267-268, 2022) se refere à falta de transparência nos algoritmos
de IA como opacidade, destacando que funcionam como "caixas pretas" cujo funcionamento
interno é desconhecido para os usuários, criando uma sociedade cada vez mais tecnológica e
desconectada das decisões tomadas. De acordo com o autor, reconhece-se que o risco zero
no desenvolvimento de tecnologias emergentes não é possível, mas enfatiza-se a importância
de determinar e regular o limite de risco que a sociedade está disposta a assumir. A falta de
conhecimento e responsabilidade em relação à IA é um problema ético e legal. Destaca-se a
necessidade de analisar as decisões tomadas pelos algoritmos de IA e evitar a opacidade para
evitar vieses que possam afetar a sociedade.
Dworkin (2000, p. 5-32) defende uma teoria de igualdade que reconhece a
importância da responsabilidade individual e da igual consideração dos indivíduos. No
contexto da seleção de embriões com o uso de IA, a aplicação dessa teoria requer uma
abordagem que considere as particularidades de cada paciente e suas responsabilidades na
tomada de decisões. Ao utilizar IA na seleção de embriões, é essencial que os pacientes
tenham acesso transparente e informado ao processo, e que suas escolhas e circunstâncias
individuais sejam adequadamente consideradas. A aplicação de IA deve garantir que as
informações fornecidas pelos pacientes sejam precisas e que os algoritmos de seleção levem
em conta a diversidade das circunstâncias individuais.
Portanto, a correlação com os ideais de responsabilidade preceituados por Dworkin
no uso de IA na seleção de embriões envolve encontrar um equilíbrio entre a igual

ISSNe 2595-1602 41
consideração e respeito pelos pacientes e o reconhecimento de suas responsabilidades
individuais na tomada de decisões no contexto da reprodução assistida.
Ademais, as entidades que realizam a reprodução assistida com IA devem adotar
medidas de segurança adequadas para proteger os dados pessoais dos pacientes contra
acessos não autorizados, perdas ou vazamentos, nos termos do artigo 47 da LGPD (BRASIL,
2018).
A LGPD concede, mediante seu artigo 18 e incisos, aos pacientes uma série de
direitos em relação aos seus dados pessoais, incluindo o direito de acesso, correção, exclusão
e portabilidade das informações (BRASIL, 2018).
E, a norma em testilha também estabelece regras, disposta em seu artigo 33 e
incisos, para a transferência internacional de dados pessoais. Caso os dados dos pacientes
sejam compartilhados com entidades fora do Brasil, devem ser observadas as exigências
legais para essa transferência (BRASIL, 2018).
Denota-se que a LGPD é aplicável ao tema da reprodução empregados por IA
garantindo a proteção da privacidade e da segurança dos dados pessoais dos pacientes
envolvidos nesses procedimentos. Indubitavelmente, o cumprimento da LGPD é essencial
para assegurar que o uso da IA na seleção de embriões seja realizado de forma legal
respeitando os direitos e a privacidade dos indivíduos.
Portanto, as abordagens normativas apontadas e analisadas oportunizam a
compilação e a sistematização de estruturas legais eficazes visando melhores práticas por
profissionais antes, durante e após o emprego de IA na seleção de embriões humanos.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao aprofundar as dimensões legais da IA na seleção de embriões humanos dentro


do direito civil, este artigo visa promover discussões entre profissionais do direito e
formuladores de políticas. Buscou-se a realização de uma análise abrangente das
considerações normativas, incluindo a aplicabilidade das estruturas existentes, questões de
responsabilidade, proteção de dados e questões de privacidade e abordagens regulatórias.
Com efeito, conclui-se que o rápido desenvolvimento da IA mostrou seu potencial
no aprimoramento dos métodos de FIV, principalmente na seleção de embriões com maior
probabilidade de sucesso. Essa capacidade aprimorada de analisar dados genéticos e clínicos
oferece oportunidades promissoras para aumentar o sucesso dos tratamentos de fertilidade
e aumentar a probabilidade de gestações bem-sucedidas.
Ocorre que, simultaneamente, é indispensável analisar esta integração tecnológica
também sob as lentes das demandas legais, restando evidente que um dos maiores desafios
legais é determinar a responsabilidade se o uso de IA na seleção de embriões levar a
resultados adversos. Na tomada de decisão automatizada com inteligência artificial, é
necessário definir claramente quem é o responsável por possíveis erros ou consequências
danosas, levando em consideração as diversas partes do processo.

ISSNe 2595-1602 42
A determinação da responsabilidade civil no contexto do uso da IA na seleção de
embriões humanos é multifacetada, podendo recair sobre diferentes atores envolvidos no
processo, dependendo das circunstâncias específicas e das leis aplicáveis em cada jurisdição.
Os desenvolvedores e fornecedores de sistemas de IA podem ser responsabilizados caso
ocorram erros ou falhas nos algoritmos utilizados na seleção de embriões. Se a IA for incapaz
de fornecer resultados precisos e confiáveis, o desenvolvedor ou fornecedor do software pode
ser considerado responsável por danos resultantes de tais falhas.
Outra banda, profissionais de saúde e clínicas de RHA que utilizam a IA na seleção
de embriões podem ser considerados responsáveis se não cumprirem os padrões adequados
de cuidados e diligência. Isso inclui garantir que a IA seja corretamente calibrada,
implementada e monitorada para evitar resultados adversos. Em alguns casos, os próprios
pacientes e usuários também podem ser considerados responsáveis por danos causados pelo
uso da IA na seleção de embriões, especialmente se não fornecerem informações precisas ou
omitirem informações relevantes que poderiam afetar o processo de seleção.
Assim, a responsabilidade civil no contexto da seleção de embriões com o uso da
IA depende de diversos fatores, incluindo a natureza das falhas ou danos ocorridos e o papel
desempenhado por cada agente envolvido no processo. É fundamental que haja uma análise
detalhada das circunstâncias de cada caso para determinar com precisão a responsabilidade
civil. É crucial reconhecer que o julgamento profissional e o diagnóstico clínico definitivo
não podem ser automatizados, pois haverá situações em que o médico, com base em
fundamentos sólidos e científicos, não deverá convalidar os resultados da IA.
Outro aspecto fundamental a ser destacado é a proteção da privacidade das
informações genéticas e médicas dos indivíduos. A IA requer acesso a dados sensíveis para
realizar análises precisas, levantando preocupações sobre o uso ético e compartilhamento
seguro desses dados. Garantir medidas apropriadas de proteção de dados e adesão estrita aos
padrões de privacidade durante o processo de seleção de embriões são essenciais para
proteger os direitos individuais dos pacientes, observando os ditames da LGPD.
Portanto, diante destes cenários desafiantes, é fundamental que a lei civil
acompanhe e adapte constantemente suas estruturas regulatórias para inibir resultados
danosos da IA na seleção de embriões humanos. A legislação trazida à baila, nomeadamente
o Código Civil, o CDC e a LGPD abrangem temas como responsabilidade das partes,
proteção de dados pessoais, além da Resolução nº 2.320/22 do CFM resguardando os
direitos reprodutivos individuais.
Um equilíbrio cuidadoso entre a inovação tecnológica e a proteção dos direitos
individuais e da privacidade é crucial. A maximização dos benefícios da IA na RHA deve ser
sempre acompanhada de um firme compromisso com a ética, a integridade e o respeito às
normas vigentes e aos valores fundamentais dos envolvidos.
Indubitavelmente, a presente pesquisa conclui que seus resultados servem como
base para a compilação e a sistematização de estruturas legais eficazes visando melhores
práticas por profissionais antes, durante e após o emprego de IA na seleção de embriões
humanos, garantindo conformidade, responsabilidade e proteção dos direitos individuais.

ISSNe 2595-1602 43
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tratamentos e procedimentos médicos, tornando-se o dispositivo deontológico a ser seguido pelos
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art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de
atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o
Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de
Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei nº
8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória nº 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts.
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ISSNe 2595-1602 46
A PROTEÇÃO DO DIREITO DA PERSONALIDADE À IMAGEM E
OS IMPACTOS CAUSADOS PELA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
GENERATIVA: ESTUDO COMPARADO NORMATIVO ENTRE
BRASIL E PORTUGAL

Maíra Feltrin Alves1


Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti2

RESUMO: O presente estudo tem como objetivo verificar como a legislação brasileira e
portuguesa vêm evoluindo e tratando os impactos causados pela inteligência artificial, em
especial a generativa, que tem capacidade de produzir novos dados, imagens e voz, com o
intuito de analisar se a legislação existente no Brasil e Portugal se encontram adequadas para
a proteção dos direitos da personalidade de imagem. A metodologia utilizada foi a dedutiva,
descritiva e comparativa, com pesquisa bibliográfica e qualitativa, partindo-se dos novos fatos
sociais e tecnológicos que impactam os direitos à imagem como direito da personalidade
expressamente previsto pelas legislações brasileira e portuguesa. Para tanto, parte-se da
Teoria Tridimensional do Direito, no Brasil, amplamente estudada e defendida por Miguel
Reale, para demonstrar a importância da análise adequada dos novos fatos sociais.

Palavras-chave: Inteligência Artificial; Direitos da Personalidade; Direito à imagem.

1. INTRODUÇÃO

O avanço tecnológico tem gerado mudanças comportamentais e sociais significativas


na sociedade informatizada e líquida que se hoje se apresenta como realidade. Neste
contexto, a inteligência artificial – IA, tem levantado questionamentos éticos e jurídicos
importantes.

1
Advogada. Professora Universitária. Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. Professora de graduação e pós graduação na Escola de Direito das
Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) e Professora convidada de pós graduação na
Universidade Presbiteriana Mackenzie. Autora de livros e artigos jurídicos. E-mail:
maira.alves@feltrinalves.com.br .
2
Doutora e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
PUC/SP. Professora da Graduação em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e das
Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU em São Paulo. Pesquisadora e Advogada. E-mail:
aelwc@terra.com.br

ISSNe 2595-1602 47
Na Sociedade da Informação, tida como a sociedade moderna e fundamentada na
tecnologia, considerada como resultado da evolução humana, revoluções sociais e científicas
pós industrialização, um novo ambiente jurídico e de consumo se apresenta.
É fato que esse novo ambiente tecnológico impactou a forma como se estudam e se
observam as relações jurídicas modernas. Por exemplo, o avanço tecnológico propiciou que
as tratativas de consumo ficassem mais fáceis, mais acessíveis, por outro lado, o marketing
digital como mecanismo impulsionador das relações de consumo, tornou-se ferramenta
valiosa para estratégias de publicidade e captação de interesses. Contudo, percebe-se que o
uso dessas novas tecnologias, como o caso a inteligência artificial generativa vêm
contribuindo para violação de direitos, em especial, os pessoais, da personalidade.
Note-se que inteligência artificial generativa é aquela que tem capacidade de aprender
padrões de comportamento a partir de uma base de dados, utilizando-se da técnica conhecida
como machine learning3, resultando, por exemplo, na ferramenta conhecida como ChatGPT
que consegue reproduzir e criar conteúdos novos (escrito, por imagens ou músicas) a partir
de um extenso banco de dados.
Portanto, a inteligência artificial generativa, proporciona reprodução do
conhecimento e da linguagem humana, em deep learning4, possibilitando experiências que
reproduzem ou mesmo criam imagem, voz e condutas das pessoas. Neste sentido, mister
entender como este novo evento fático enquadra-se ou é enquadrado sob a tutela e proteção
jurídica, bem como se, nessa esfera as normas vigentes são suficientes e adequadas à sua
própria incidência.
Neste sentido, tendo por base a análise das normas de direito da personalidade e de
regramento de ética para a inteligência artificial em estudo comparado normativo de Brasil e
Portugal, o presente estudo tem como objetivo verificar como a legislação brasileira e
portuguesa vêm evoluindo e tratando do assunto, com o intuito de analisar se a legislação
existente se encontra adequada e suficiente, ou mesmo se seria necessária nova formação
legislativa.
A metodologia para o desenvolvimento deste estudo baseia-se em método dedutivo,
descritivo, e comparativo, com pesquisa bibliográfica e qualitativa, de modo a compreender,
a partir dos novos fatos sociais de geração e utilização de inteligência artificial, como, dentro
do ordenamento jurídico vigente em Brasil e em Portugal, se pode considerar a imediata
tutela jurídica do direito da personalidade.
Dessa feita, preliminarmente analisa-se a dinâmica social e valorativa que enseja a
necessidade de tutela jurídica. Pondera-se, a seguir, acerca do direito à imagem, direito da

3
Machine learning (aprendizado de máquina ou aprendizagem de máquina) é um método de
análise de dados que automatiza a elaboração de modelos analíticos, indicando uma ideia de que
os sistemas podem aprender através dos dados que lhes são fornecidos, indicar padrões e tomar
decisões mediante reduzida intervenção humana.
4
Deep learning (aprendizagem profunda) baseia-se no machine learning para que, a partir de uma
base de dados significativa e com diversas camadas de algoritmos em processamento, possa
permitir que um computador aprenda por si mesmo e execute tarefas muito semelhantes às
executadas por humanos.

ISSNe 2595-1602 48
personalidade, que justifica essa guarida, analisando-o de acordo com a perspectiva normativa
comparada brasileira e lusitana, para, então, identificar dentro do espectro das fontes
normativas vigentes nos dois Países e que, de maneira imediata, são adequadas e suficientes
à proteção de tais direitos, diante dessa nova perspectiva fático-tecnológica.

2. DO VALOR SOCIAL-NORMATIVO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Em uma perspectiva de ponderação de incidência normativa acerca dos fatos que


ensejam a inteligência artificial generativa, adota-se como premissa, dada a sua importância
para a compreensão das novas regras de conduta que surgem socialmente, a Teoria
Tridimensional do Direito.
Miguel Reale é certamente uma das personalidades mais destacadas do pensamento
filosófico brasileiro com a proposição da Teoria Tridimensional do Direito, que ganhou
destaque no meio acadêmico no Brasil e também na América Latina. A afirmação, partir da
formulação dessa Teoria, é a de que o Direito tem uma tríplice face – o fato social, o valor e
a norma.
Reale (2003) não foi o primeiro filósofo a postular uma teoria tríplice do direito.
Outros autores como Emil Lask, Gustav Radbruch, Roscoe Pound Wilhelm Sauer e Werner
Goldschmidt já haviam abordado, de alguma forma, a ideia de tridimensionalidade jurídica.
Contudo, a proposição de Reale, à época de sua publicação, em 1968, demonstrou-se um
pensamento bastante disruptivo e inovador de pensar e entender as questões da Ciência
Jurídica.
Importa ressaltar que a Teoria Tridimensional do Direito é um conceito de Ciência Jurídica
e, também, de espécie sociológica. Surgiu ao se perceber que o Direito não pode ser
considerado meramente como positivo e jurisdicional. Em verdade essa perspectiva relegava
a sua existência a algo parcial, incompleto e, portanto, ineficiente. Assevera-se, então, a partir
da construção teórica tridimensional do Direito, que é inviável ver o Direito simplesmente
como norma bruta, mas que há três aspectos que o compõem e que estão sempre
relacionados, unidos e indissociáveis: o primeiro é o sociologismo jurídico, vinculado
diretamente os fatos sociais e, assim, à eficácia do direito; em segundo lugar está o moralismo
jurídico, vinculado aos valores e fundamentos para o direito; e o último é o normativismo
abstrato, associado às normas e à vigência do direito.
Forma-se, assim, uma estrutura triangular clássica, entre FATO [social]-VALOR-
NORMA, representativa, exatamente, dessa tridimensionalidade proposta por Reale (2003).
Segundo a teoria tridimensional (REALE, 2002, p. 64-65) extrai-se, portanto, que o
Direito é composto pela conjugação harmônica dos três aspectos básicos e primordiais: 1. o
aspecto fático (fato), ou seja, seu âmbito social e histórico; 2. o aspecto axiológico (valor), ou
seja, os valores almejados e contemplados como essenciais pela sociedade, tal como a Justiça;
e 3. o aspecto normativo (norma), ou seja, a proteção, a tutela pelo ordenamento jurídico.
A conjugação proposta por Reale (2002, p. 65) pressupõe uma comunicação

ISSNe 2595-1602 49
constante entre o primeiro e o segundo aspectos, que originam e também se relacionam com
o terceiro. Essa comunicação é chamada pelo próprio autor de "dialética da implicação-
polaridade", ou seja, "dialética da complementaridade". Essa dialética consiste na percepção
de que fatos e valores estão constantemente relacionados na sociedade de forma irredutível
(polaridade) e em dependência mútua (implicação).
Onde quer que haja um fenômeno jurídico, há sempre e necessariamente um fato
implicado e contido (econômico, geográfico, técnico, ou de qualquer outra espécie.) e, por
fim, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um desses
elementos ao outro: o fato ao valor, o valor à necessidade normativa. De tal modo, tais
elementos ou mesmo fatores do Direito não se dissociam e, ao revés, necessariamente
coexistem em uma unidade concreta, em reciprocidade e interação dialética e incidentemente
dinâmica, fazendo resultar daí o próprio Direito.
Pensando sobre a inteligência artificial generativa, é notório que contemporâneo fato
social rápida e intensamente emergente, com utilização frequente e disseminada, tendo
assumido relevância social, compreende o primeiro e o segundo aspectos (fático-social e
axiológico) proposto pela Teoria Tridimensional do Direito. Assim sendo, especialmente em
países cuja estrutura normativa é primordialmente positivista, exsurge a necessidade de uma
norma jurídica de correspondência, fazendo-se contemplar o terceiro aspecto (normativo)
da referida teoria.
E, neste mister, relevante é analisar o ordenamento jurídico já vigente, a fim de
verificar se há norma que possa se aplicar de maneira adequada a essa nova realidade.
Importante dizer que a inteligência artificial generativa passa por uma estrutura que
permite que as redes neurais [artificiais] adversariais (Generative Adversarial Networks – GANs)
estejam aptas a gerar novos conteúdos e novos dados, a partir de um acervo de dados em
que foram insertas. Essa técnica faz parte do chamado campo de aprendizagem profundo
(deep learning), composta de redes generativas5 e redes discriminadoras6 e que interagem entre
si nas múltiplos intercâmbios que realizam.
O papel da rede generativa nesse contexto é o de, mediante informações iniciais,
aprender e criar conteúdos novos com a simulação dos dados de entrada que tenha recebido.
Por sua vez, a rede discriminadora permite identificar e diferenciar os dados fornecidos [e
criados] pela rede generativa dos dados de realidades que serviram de entrada.
Ora, tal complexa atividade tecnológica abre inúmeras possibilidades de geração de dados,
interagindo, necessariamente, no campo da proteção à pessoa, como regula o Direito Civil.
Neste estudo, a proposta é considerar, em específico, a incidência e influência da
inteligência artificial generativa em relação ao direito à imagem, porquanto direito da
personalidade, analisando a perspectiva normativa de sua proteção jurídica no Brasil e em
Portugal.

5
Redes generativas são arquiteturas neurais complexas, compostas normalmente por duas redes
adversárias (GANs), capazes de aprender, imitar, criar qualquer distribuição de dados.
6
Redes discriminadoras fazem a análise de dados da rede, para tentar discernir entre o que é real
e o que é criado.

ISSNe 2595-1602 50
Isto faz passar pela análise dos normativos gerais existentes nos dois países acerca
dessa seara de direitos e de sua tutela jurídica, bem como avaliar se é suficiente à proteção
mediante a implementação e utilização da inteligência artificial.

3. DIREITOS DA PERSONALIDADE E SUA PROTEÇÃO NORMATIVA NO


BRASIL E EM PORTUGAL

O surgimento dos direitos da personalidade ainda é tema discutido. Apura-se que,


com o advento do cristianismo e o surgimento da escola do direito natural, os direitos
individuais tomaram vulto e, consequentemente, os direitos da personalidade. Verifica-se na
formação embrionária dos direitos da personalidade elementos de institutos existentes na
Grécia antiga e na clássica Roma com a dike kakegoria e actio injuriarum que resguardavam os
direitos morais da pessoa humana à época. Mas, foi a doutrina jusnaturalista a responsável
pela ideia de que ao homem deve-se reconhecer direitos natos, pensamento que contribuiu
para o reconhecimento dos direitos humanos, sacramentados pela Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão de 1789, marco das liberdades públicas e precursor de diversos
outros documentos de defesa dos direitos da pessoa humana. Daí a importância dos direitos
humanos e fundamentais para o estudo dos direitos da personalidade, que, por outro lado,
com aqueles não se confundem. Uma vez que os direitos da personalidade defendem a pessoa
na sua seara particular de proteção, nas relações privadas, diferentemente dos direitos
humanos e fundamentais que protegem a pessoa no seu aspecto público, ou seja, em relações
sociais e com o Estado, como cidadão (CAVALCANTI, 2020, p. 16-28).
Percebe-se, portanto, que os direitos da personalidade, historicamente, passam por
um despertar (ainda no Direito Grego), formação (como nascedouro nos direitos humanos e
fundamentais, para, então, passarem à legislação civil) e consolidação (através de sua formulação
teórica e jurisdicional). E estes elementos se deram tanto na legislação brasileira, quanto na
lusitana.
De fato, os direitos da personalidade começam realmente a se consolidar no fim do
século XIX, quando países europeus como, por exemplo, Suíça (Código Civil de 1907),
Alemanha (BGB de 1900), Itália (Código Civil de 1942) e Portugal (Código Civil de 1966)
previram em suas legislações, proteções específicas aos direitos à pessoa como nome, imagem
e autoria. No Brasil, a proteção expressa foi tardia, somente em 2002 com o Código Civil em
vigor, protegendo diretos que já eram, de certa forma, protegidos pela doutrina,
jurisprudência e pela Constituição Federal ao proteger a dignidade da pessoa humana.
Neste particular, pondera António Menezes Cordeiro (2001) ao tratar dos direitos da
personalidade na civilística portuguesa, indicando papel fundamental dos casos in concreto e
do relevante papel dos Tribunais nesse processo de formação e consolidação da tutela jurídica
correspondente, completando: “a defesa da pessoa foi, todavia, assegurada mais eficazmente
através do Direito constitucional e o instituto dos direitos fundamentais.”
Os direitos da personalidade constituem-se, assim, uma tutela aos direitos mais

ISSNe 2595-1602 51
inerentes e naturais das pessoas naturais e, no que couber, das pessoas jurídicas7, lastreando-
se em uma classificação física e psíquica. De fato, parte da doutrina, nomeadamente indica
também a existência de direitos morais da personalidade.
Assumem, deveras, características cuja identidade brasileira e lusitana pode ser
apontada e que acabam por tornar-se poderes jurídicos daqueles que os detém per si ou por
legitimidade de representação (inter vivos ou post mortem)8.
São, assim, os direitos da personalidade oponíveis erga omnes, tornando-os absolutos,
mas não ilimitados, haja vista não se subordinarem a uma necessidade premente de
tipificação, posto que inerentes, em princípio, à condição de pessoa humana. São inalienáveis,
intransmissíveis e irrenunciáveis, igualmente, e pelas mesmas razões. Aqui se poderia
ponderar acerca da obtenção de valor econômicos do direito autoral, v.g.. E justamente assim
deve ser encarada: como uma repercussão econômica do direito, este anterior, invalorável,
inalienável e extrapatrimonial, dado que não está na esfera de acervo patrimonial da pessoa,
mas notadamente de direito eminentemente pessoal. Cite-se que são tratados, por vezes,
como inatos, aparecendo como bom exemplo dessa condição a previsão constitucional
italiana de “direitos invioláveis ao homem”9. Por serem absolutamente vinculados e
indissociáveis ao indivíduo, não podem ser transmitidos e nem renunciados à existência e à
tutela, embora possam sofrer limitação voluntária – desde que temporária – e que não ofenda
a ordem pública (tal qual asseverado pelo art. 81º do Código Civil Português). A legitimidade
de sucessores em relação aos direitos da personalidade de um indivíduo não contraria essas
regras, haja vista que permanece em virtude da existência daquela pessoa sucedida.
Assumindo, ainda, as características da perpetuidade e da imprescritibilidade.
Nota-se que pelos sistemas jurídicos brasileiro e português, estabelecem-se cláusulas
gerais, complementadas pela produção teórica – tal qual a que designa as características
apontadas – quanto pela análise casuística e produção jurisprudencial.
A legislação nos dois países lusófonos traz preceitos mais gerais, que perpassam por suas
Constituições – no Brasil, em especial o artigo inaugural em seu inciso III - e por seus
Códigos Civis – arts. 11 a 21 na versão brasileira e arts. 70º a 81º na versão portuguesa -,
embora em relação aos temas nomeados tratados nos dispositivos se distingam em algumas
espécies.
Dessa dialeticidade entre Constituição e legislação civil exsurge a consequente ilação de que
se constituem inerentemente à pessoa e relacionam intrinsecamente com seus preceitos de
dignidade.

7
O Código Civil Brasileiro indica a incidência da tutela aos direitos da personalidade à pessoa
jurídica, no que couber, em seu art. 52. No Direito Português essa proteção exsurge muito mais
da atividade jurisprudencial casuística.
8
Neste particular, podem ser mencionados como referências normativas, embora não exclusivas,
classificando as características dos direitos da personalidade: Roberto Senise Lisboa, no Brasil e
Capelo de Sousa, em Portugal.
9
Art. 2º da Constituição Italiana

ISSNe 2595-1602 52
4. PRODUÇÃO GENERATIVA DE CONDUTA HUMANA PELA
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E A TUTELA AO DIREITO À IMAGEM

Ao se tratar de produção generativa da inteligência artificial e ao se entender os


direitos da personalidade, muitas questões podem exsurgir, a exemplo de debates sobre
direitos autorais (sua titularidade e direito à repercussão patrimonial que atinge), direito ao
nome, direito à confidencialidade das missivas (tipificação própria do Direito Português no
Código Civil e que corresponde a uma proteção do sigilo de correspondência do Direito
Constitucional Brasileiro), de criação de “novas pessoas” (não tipificada em nenhuma das
legislações estudadas neste artigo), dentre tantos outros.
Notadamente, a proposição deste estudo é ponderar acerca do direto à imagem (e às
vezes como consequência do direito à voz) e aqui se está diante da possibilidade de a
inteligência artificial produzir dados de simulação de reprodução ou de criação de conduta
de uma pessoa que exista ou que já tenha falecido. Adverte-se que neste ponto há uma espécie
de similaridade com debates previamente existentes em outra seara jurídica: o biodireito e a
bioética. Parece tratar-se de um mesmo radical axiológico normativo e ético, em uma
impressão inicialmente instintiva.
De maneira que axiologicamente e deontologicamente, não se pode considerar
distanciamento da preservação aos direitos inatos humanos da produção tecnológica,
estimulando-se um retorno a princípios filosóficos anteriores neste sentido. Citando Kant,
partindo-se da ideia de que o homem deve ser considerado como um fim em si mesmo,
Santos (2016, p.1) diz que:

[...] portanto, não pode ser coisificado, nem reificado, ao ponto de ser
submetido às quaisquer vontades de seus semelhantes. É uma situação que
denota a magnitude do ser humano pelo simples fato de assim o ser,
estando, desta feita, tutelado e elevado ao fim maior de atenção da norma,
tendo em conta a dignidade da pessoa humana.

Em virtude disso, quando assim se prospecta a possibilidade de que as pessoas criem


(ou autorizem a terceiros criar) uma personificação telemática de si ou de a quem seja
sucessor em prerrogativa de proteção aos direitos da personalidade, forma-se uma
possibilidade de reificação, permitindo que a partir das entradas de dados base, a inteligência
artificial promova novas atitudes, situações, fatos e circunstâncias da pessoa, em paralelo à
sua existência real.
Quando isto ocorre, está-se utilizando do seu direito de imagem – típico direito da
personalidade – exteriorizado através de uma autoimagem reproduzida, um avatar, e que tem
condições, em tese, de gerar relações de repercussão jurídica.
Não se está aqui tratando do metaverso e dos avatares ali existentes, com relações a
que se pode inferir sejam de certa forma sociais e gerando interações que também ensejam
soluções jurídicas. A proposta ali é bem peculiar e objetiva no sentido de um mundo

ISSNe 2595-1602 53
telemático, próprio, ínsito em si e limitado e que não se confunde à vida concreta e humana.
O que se pondera neste estudo é justamente a exteriorização dessa possibilidade de
criação de autoimagem e de imagem de pessoas já falecidas, legitimamente – ao menos em
tese – representadas por sucessores que autorizem sua reprodução. Nesta seara a vontade
pode ser até a de proporcionar uma presença dos entes queridos já falecidos, lastreadas por
uma afetuosidade e com intenções puras neste sentido. No entanto, não se pode
desconsiderar que tal produção telemática pode ofender direitos personalíssimos dos
envolvidos e de terceiros.
Como se viu anteriormente, os direitos da personalidade não são inicialmente
passíveis de limitação, invocando-se neste ponto sua oponibilidade erga omnes, ademais. Pois
bem. A esta premissa significaria dizer que o indivíduo e seus sucessores podem defender
seus direitos da personalidade, dentre eles o direito à imagem, de maneira irrestrita, do
mesmo modo que podem exercê-lo com a mesma qualidade. Tal premissa é verdadeira,
porém submetida a pressupostos de atenção à ordem pública – diga-se, aqui, limites éticos e
outros direitos fundamentais – e à atuação em defesa, ressalte-se, em defesa de direitos da
personalidade ofendidos.
Assim sendo, se em pleno exercício de seu direito à imagem uma pessoa solicita a
criação à inteligência artificial de sua autoimagem telemática ou a daquele a quem
legitimamente representa, não pode esperar que esse viés do direito à imagem seja
absolutamente irrestrito.
Este argumento se sustenta por algumas razões jurídicas, pautadas por regramento
ético igualmente. Promover a interação humana com a imagem telemática e generativa de
uma pessoa gera um paralelismo de “seres” e a possibilidade de interações que não são reais,
que criam circunstâncias e memórias não produzidas efetivamente por aquele indivíduo
representado. Isto macula a própria existência do ser e macula fundamentalmente as relações
que se estabeleçam com terceiras pessoas. A autonomia da telemática para a geração de novas
experiências daquele avatar pessoalizado é, ao momento da redação deste estudo, já possível
e eficiente para, a partir de uma base de dados muito bem alimentada e estruturada, realizar
interações novas, tal como se a pessoa fosse. No entanto, não é a pessoa.
Tanto para os terceiros que conheceram, como para aqueles que tomam contato com
essa “paralela” pessoa telemática, baseada em uma pessoa real, podem criar novas memórias
e relações baseadas em uma invenção tecnológica. Muito eficiente e apurada, mas não real.
A titularidade do direito à imagem, porquanto direito da personalidade, da pessoa em si e de
legitimados sucessores é garantida pela lei civil brasileira e lusitana. Esta titularidade autoriza
a sua defesa e não a sua utilização absoluta em algumas excepcionais circunstâncias, como é
o caso em estudo. Situação ainda mais questionável é a do sucessor que realiza ou autoriza a
criação de uma autoimagem do indivíduo sucedido, falecido, e que, em verdade, extrapola o
seu direito que, neste caso, é de defesa, de tutela e de oponibilidade. Ao revés, promove uma
utilização inadequada e não autorizada, em princípio, de direito da personalidade alheio.
Diferente seria se houvesse apenas o compilado de imagens e voz, para um arquivo de
memórias, tão somente. Ou mesmo se o titular houvesse autorizado a automatização de sua
imagem e de sua voz à criação de novos fatos, como tem promovido em contratos a indústria

ISSNe 2595-1602 54
cinematográfica hollywoodiana. E, neste caso, estar-se-ia novamente às voltas com o debate
a que se propõe. Afinal, essa promoção irrestrita da perpetuidade do indivíduo e com novas
condutas e atuações também se subsumiria a certos limites.
Por isso, o indivíduo, em nome do princípio da dignidade – se não a sua, a de terceiros
que se relacionem com o ser telemático – resta limitado da utilização da imagem com esse
propósito. Igualmente, pode-se inferir tratar-se de uma limitação pautada pela ordem pública,
afinal, há que se promover a atenção ao cunho social, antropológico e filosófico que a
inteligência artificial generativa, sob esse viés, está a ser produzida e utilizada.

5. DOS LIMITES ÉTICOS À UTILIZAÇÃO DO DIREITO À IMAGEM


TELEMÁTICA GENERATIVA DE UMA IDENTIDADE DE PESSOA

A inteligência artificial tem sido capaz de promover tantas interações que repercutem
social e juridicamente, que diversos Estados de Direito passaram a promover certa
normatização, como uma espécie de carta de princípios éticos a fim de nortear essa atividade
telemática.
É certo que não apenas a atividade generativa é aquela proveniente de inteligência
artificial, de modo que os parâmetros éticos que vão surgindo prestam-se à tutela elementar
e de pauta de diversas vertentes à inteligência artificial.
Como neste estudo o enfoque está na produção telemática generativa e, mais
especificamente, no direito à imagem, as ponderações acerca das premissas éticas por esse
viés são aqui abordadas.
A União Europeia vem se preocupando em tratar e normatizar parâmetros éticos há
alguns anos, não sendo de momento imediato o enfrentamento da questão. No Brasil, os
debates ainda são incipientes e a produção normativa específica nesta seara ainda não
alavancou para além de algumas poucas disposições administrativas, em atos normativos
como Portaria ou Resolução.
Na Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece
regras harmonizadas em matéria de inteligência artificial (regulamento inteligência artificial)
e altera determinados atos legislativos da UE, na parte de “Práticas de Inteligência Artificial
Proibidas”, na Exposição de Motivos do documento, enaltecem-se os seguintes aspectos na
linha deste estudo:

O título II estabelece uma lista de práticas de IA proibidas. O regulamento


segue uma abordagem baseada no risco e diferencia entre as utilizações de
IA que criam: i) um risco inaceitável, ii) um risco elevado, iii) um risco
baixo ou mínimo. A lista de práticas proibidas do título II inclui todos os
sistemas de IA cuja utilização seja considerada inaceitável por violar os
valores da União, por exemplo, por violar os direitos fundamentais. As
proibições abrangem práticas com potencial significativo para manipular
as pessoas por meio de técnicas subliminares que lhes passam

ISSNe 2595-1602 55
despercebidas ou explorar as vulnerabilidades de grupos específicos, como
as crianças ou as pessoas com deficiência, para distorcer substancialmente
o seu comportamento de uma forma que seja suscetível de causar danos
psicológicos ou físicos a essa ou a outra pessoa. Outras práticas
manipuladoras ou exploratórias que são possibilitadas pelos sistemas de
IA e que afetam os adultos podem ser abrangidas pela legislação em
matéria de proteção de dados, de defesa dos consumidores e de serviços
digitais, que garante que as pessoas singulares sejam devidamente
informadas e tenham a liberdade de decidir não se sujeitar a uma definição
de perfis ou a outras práticas que possam afetar o seu comportamento. A
proposta também proíbe a classificação social assente na IA para uso geral
por parte das autoridades públicas. Por último, é igualmente proibida a
utilização de sistemas de identificação biométrica à distância «em tempo
real» em espaços acessíveis ao público para efeitos de manutenção da
ordem pública, a não ser que se apliquem determinadas exceções limitadas.
(UNIÃO EUROPÉIA, 2021)

Essas diretrizes pautam a normativa indicada pelos itens 1 e 2 artigo 5º do Título II,
bem como pela alínea a do artigo 7º. do mencionado regramento europeu.
No Brasil, a Portaria GM nº 4.617, de 6 de abril de 2021, do Ministério da Ciência,
Tecnologia e Inovações, pretendeu instituir a estratégia brasileira de inteligência artificial e
seus eixos temáticos, o que se denota muito menos pelos seus três artigos do que pela sua
Exposição de Motivos, que assim delineia:

Esta Estratégia assume o papel de nortear as ações do Estado brasileiro


em prol do desenvolvimento das ações, em suas várias vertentes, que
estimulem a pesquisa, inovação e desenvolvimento de soluções em
Inteligência Artificial, bem como, seu uso consciente, ético e em prol de
um futuro melhor. É preciso entender a conexão da Inteligência Artificial
com várias tecnologias e deixar claro os limites e pontos de conexão e de
conceitos como: machine learning, big data, analytics, sistemas
especialistas, automação, reconhecimento de voz e imagens, etc.
Para tanto, a Estratégia estabelece nove eixos temáticos, caracterizados
como os pilares do documento; apresenta um diagnóstico da situação atual
da IA no mundo e no Brasil; destaca os desafios a serem enfrentados;
oferece uma visão de futuro; e apresenta um conjunto de ações estratégicas
que nos aproximam dessa visão.
[...]
LEGISLAÇÃO, REGULAÇÃO E USO ÉTICO
O desenvolvimento tecnológico da Inteligência Artificial tem sido
acompanhado de intensas discussões acerca da necessidade de
desenvolvimento de parâmetros jurídicos, regulatórios e éticos para
orientar o desenvolvimento e aplicação da tecnologia. No centro de tais
debates encontra-se a preocupação em estabelecer um ponto de equilíbrio

ISSNe 2595-1602 56
entre (i) a proteção e a salvaguarda de direitos, inclusive aqueles associados
à proteção de dados pessoais e à prevenção de discriminação e viés
algorítmico; (ii) a preservação de estruturas adequadas de incentivo ao
desenvolvimento de uma tecnologia cujas potencialidades ainda não foram
plenamente compreendidas; e (iii) o estabelecimento de parâmetros legais
que confiram segurança jurídica quanto à responsabilidade dos diferentes
atores que participam da cadeia de valor de sistemas autônomos.
[...]
Além disso, é frequente a afirmação de que os sistemas devem ser
projetados de maneira a respeitar os direitos humanos, os valores
democráticos e a diversidade, impondo-se a inclusão de salvaguardas
apropriadas que possibilitem a intervenção humana, sempre que
necessária, para garantir uma sociedade justa. Para promover um ambiente
institucional e regulatório propícios à inovação e ao desenvolvimento
tecnológico, dada sua natureza de rápida evolução, tem-se um cenário no
qual a regulamentação é complexa e propensa a se tornar obsoleta
rapidamente. Sendo assim, cabe aos governos avaliar esse cenário e refletir
antes de adotar novas leis, regulações ou controles que possam impedir o
desenvolvimento e uso responsáveis da IA.

Em que pese a preocupação de consecutir diretrizes normativas específicas a respeito


da ética para a utilização da inteligência artificial, a dinâmica com que a produção telemática
ocorre, impõe que tal formulação normativa seja muito mais próxima a uma carta de
princípios e de regras norteadoras do que, efetivamente, acerca de tipicidades, que
rapidamente podem ficar obsoletas e defasadas.
A tarefa de formular esses parâmetros éticos, ainda que gerais, encontra obstáculos
exatamente nesse dinamismo fático que existe na tecnologia, tornando o debate sempre
renovado e, por muitas vezes, podendo constituir-se um fator dificultador à concretização da
redação normativa.
Este ciclo pode, desta feita, configurar-se um entrave e o regramento positivado
acerca da ética à inteligência artificial postergar-se em um outro país.
Nesta circunstância, estaria, então, a inteligência artificial desprovida de premissas
éticas ou de princípios basilares? A resposta há de ser negativa, haja vista todo o consolidado
programa de direitos fundamentais e de direitos humanos existente. Estes pilares, por si só,
são capazes de impor limites jurídicos necessários e não arbitrários à produção generativa da
inteligência artificial.
Como se pode observar no item anterior deste artigo, a dignidade da pessoa humana,
o interesse social e a legitimação de defesa dos direitos da personalidade, constituem-se, para
o momento, bastantes para evitar o uso absolutista, indiscriminado e ofensivo da inteligência
artificial, em especial, como em estudo, da utilização da autoimagem telemática.
Com base nestes postulados constitucionais (direitos fundamentais) e extraterritoriais

ISSNe 2595-1602 57
(direitos humanos), não se torna imprescindível absolutamente a formulação de normas
específicas para a inteligência artificial, sob o argumento de que não haveria, então, um
parâmetro especial, objetivo e evidente. Ao revés, ademais, a identificação de uma ofensa,
um ato ilícito, segundo os parâmetros já vigentes em cada ordenamento jurídico promove a
possível tutela de salvaguarda dos direitos da personalidade, mesmo em esfera
infraconstitucional. Assim é pelo Código Civil Brasileiro (arts. 186 e 18710, como regra geral
de reparação civil, inclusive apontando como solução uma obrigação de fazer ou de não
fazer) e pelo Código Civil Português art. 70º11, como regra específica à proteção de danos
aos direitos da personalidade).
Diante desse contexto normativo já presente, pode-se inferir que a geração telemática de
autoimagem, em verdade, não se constitui prerrogativa do direito personalíssimo do
indivíduo à imagem, haja vista que, em uma interpretação sistêmica, ofende diversos outros
preceitos constitucionais e infraconstitucionais, promovendo ofensa, ato ilícito e dano (ao
menos em potencial).

CONCLUSÃO

Imaginar que os direitos da personalidade possam ser limitados, é, certamente, uma


proposição controversa. A história da criação, da formulação e da consecução dessa espécie
de direitos, por si só, brada por seu não cerceamento. No entanto, não se pode olvidar, que
o direito é fato social, que, com uma axiologia relevante, gerou a criação de uma norma
jurídica que se voltou ao próprio fato que a ensejou e a demais fatos correlatos, justamente
para tutelá-los.
O advento da inteligência artificial e suas diversas possíveis nuances contempla
muitos aspectos que ensejam a atenção e a tutela jurídica, pautada por preceitos firmes,
sólidos e basilares dos ordenamentos jurídicos, tais como os direitos humanos e
fundamentais, complementados, em alguns países por regramentos próprios de ética para as
relações provenientes da atividade e da produção telemática.

10
Código Civil Brasileiro:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito
e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes.
11
Código Civil Português:
Art. 70º (Tutela Geral da Personalidade) - 1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa
ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. 2. Independentemente da
responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as
providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça
ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.

ISSNe 2595-1602 58
Tais premissas são suficientes para orientar a interpretação sistemática e conforme as
atividades generativas da inteligência artificial, de modo a colocar-lhe limites, quando
necessário.
Ao se tratar da possibilidade de um indivíduo promover a criação ou a produção
generativa de sua autoimagem ou a de outro indivíduo já falecido em relação ao qual detenha
direitos sucessórios de tutela, esbarra-se em um limite a que se deve ater o ordenamento
jurídico. A indicação desse limite pode, inicialmente, aparentar uma antinomia entre o inato
direito da personalidade à imagem e, ao mesmo nível de relevância protetiva, direitos
fundamentais, humanos, ordem pública e interesse social. Essa antinomia, no entanto, não
existe, à medida em que se considera, em verdade, a produção de autoimagem telemática.
Esta vem aí dotada de certa “autonomia”, dada a criação a partir de metadados dispostos
numa base a que a inteligência artificial promoverá correlações, de modo a ser capaz de criar
novas atitudes daquele avatar, críveis como se da pessoa fossem, porém, não concretas e não
reais. Isto é suficiente para ofender preceitos máximos e fundamentais de um Estado de
Direito, impondo uma certa fantasia, que causa falsas experiências, irreais impressões e
potenciais (ao menos) danos a terceiros.
Dado isto, não se pode considerar como exercício mesmo de direito à imagem a
produção generativa da autoimagem telemática, sendo suficientemente presentes os
regramentos de direitos fundamentais e humanos, ao mesmo de início, não servindo de
escusa para a livre atuação a ausência de parâmetros normativos próprios à inteligência
artificial, nem mesmo em se tratando de uma carta geral de princípios e valores éticos
positivados.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 26 out.
2020.

BRASIL. Lei nº 10.406, de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm. Acessado em: 18
jul. 2023.

BRASIL. Portaria GM nº 4.617, de 6 de abril de 2021. Institui a Estratégia Brasileira de


Inteligência Artificial e seus eixos temáticos. Disponível em:
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-gm-n-4.617-de-6-de-abril-de-2021-*-
313212172. Acesso em: 18 jul. 2023.

ISSNe 2595-1602 59
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ISSNe 2595-1602 60
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ISSNe 2595-1602 61
A NEGAÇÃO AO DIREITO À EDUCAÇÃO INCLUSIVA: UMA
APROXIMAÇÃO HISTÓRICA E O VIÉS JURISPRUDENCIAL DE
REPARAÇÃO

Néllio Silva Resende1


Rômulo Renato Cruz Santana2

Resumo: A educação inclusiva gera debates em diversos contextos, apesar de ser


incipiente em relação a história da humanidade, tem-se grande volume de documentos em
tempos hodiernos que norteiam a sociedade nesse sentido. Inclusive, a inovadora
Declaração de Salamanca foi força-motriz para quebra de paradigma e trouxe impulso para
a adequação rumo a inclusão de pessoas com deficiência em âmbito educacional, contudo,
restava a inquietação sobre como os tribunais tem entendido a situação colocado como
resposta frente aos litígios quando há negação à educação inclusiva. Com isso, o presente
trabalho procurou investigar o contexto histórico em conjunto com alguma legislação para
elucidação da evolução até o período, para depois vislumbrar como a jurisprudência tem
firmado posicionamento. A metodologia foi a de construção documental e bibliográfica. O
resultado encontrado foi de que existe na jurisprudência ponto favorável na defesa dos
direitos das pessoas com deficiência, com reparação, inclusive com danos morais.

Palavras-chave: Direito a Educação Inclusiva. Reparação. Responsabilidade Civil.

1 INTRODUÇÃO

A temática da educação inclusiva usualmente é pauta de discussão no cenário


privado e público. Questionamentos, avanços e retrocessos são situações que compõem a
evolução da matéria. No aspecto documental/legal de modo geral, nos tempos hodiernos, a
educação inclusiva está como norte para alinhamento da práxis com algum aspecto
retrógrado pontual, como ocorrido no segundo semestre de 2020, que houve a publicação
de uma nova Política de Educação Especial, com grande volume de notas de repúdio e
repercussão negativa do teor (EQUIPE INCLUSIVE, 2020), resultando até em sua
revogação. Mas fato é que, por vezes tal direito não é respeitado, esperando-se a reparação
por ferir um direito do ser.

1
Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Mineiros/GO. E-mail:
nelliosresende@gmail.com.
2
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Jataí – UFJ e Docente Adjunto do curso de
Direito do Centro Universitário de Mineiros – UNIFIMES, endereço eletrônico:
romulo@unifimes.edu.br

ISSNe 2595-1602 62
Nesse contexto, a discussão perpassa por diversas nuances e é deveras antiga. Por
grande parte da história, as pessoas com deficiência estiveram alheias à participação social,
como acesso aos estudos e tratamento digno. E só no Século XX, houve algum tipo de
alteração, ainda que superficial e tímida. Nesta pesquisa, de forma breve, será vislumbrado
como se deu a gradação até o período de inclusão.
Sobre a temática, desperta no escriba o anseio de verificar na jurisprudência, a
apreciação de casos práticos de negação ao direito à educação inclusiva e como tem se dado
a reparação de tais danos. E com fito de recrudescer as inquietações tenta-se verificar nos
documentos a formação do ideal de educação inclusiva. Após isso, irá ser realizado um
apanhado jurisprudencial, conjuntamente com verificação bibliográfica do que for
encontrado.
Em se tratando de um aspecto da abstração, não se tem por ora a intencionalidade
de consolidação de algum produto ou viés essencialmente prático, não tendo característica
de pesquisa aplicada.
Desse modo, o objetivo geral desta pesquisa é analisar como se dá a reparação de
casos de negação ao direito à educação inclusiva no Brasil. Como objetivos específicos
propõe-se: compreender brevemente sobre a evolução até a educação inclusiva em
conjunto com principais documentos e pontos de destaque. Também, analisar a
jurisprudência em conjunto à bibliografia nos casos de negação a uma educação inclusiva.

2 DO DESENVOLVIMENTO
2.1 DA METODOLOGIA APLICADA

Por meio de uma aproximação metodológica baseada em pesquisa documental e


bibliográfica, obteve-se elementos que demonstram os caminhos até o estabelecimento de
um viés inclusivo documental, e o tratamento dado pela jurisprudência para casos de recusa
de cumprimento de direitos.
O viés de tal trabalho verifica-se como dedutivo, já que parte de uma verificação de
casos práticos documentados e com base na concatenação e investigação, a finalização
surge como consequência. Por Prodanov e Freitas (2013, p. 27) a origem de tal, se relaciona
a alguns racionalistas, de expressiva relevância, como Descartes e Spinoza, em que o
conhecimento mais primoroso viria com a razão.
Ainda, a pesquisa pode tomar rumo documental, e as vezes pode se confundir com
a pesquisa bibliográfica, e sobre a matéria Gil (2008, p. 51):

A pesquisa documental assemelha-se muito à pesquisa bibliográfica. A


única diferença entre ambas está na natureza das fontes. Enquanto a
pesquisa bibliográfica se utiliza fundamentalmente das contribuições dos
diversos autores sobre determinado assunto, a pesquisa documental vale-
se de materiais que não receberam ainda um tratamento analítico, ou que

ISSNe 2595-1602 63
ainda podem ser reelaborados de acordo com os objetivos da pesquisa.
(Ibidem, p. 51).

Além disso, a perspectiva é qualitativa, em que:

[...] há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, isto é, um


vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito
que não pode ser traduzido em números. A interpretação dos fenômenos
e a atribuição de significados são básicas no processo de pesquisa
qualitativa. (PRODANOV; FREITAS, 2013, p. 70).

3 DOS RESULTADOS E DISCUSSÕES


3.1 DA GRADAÇÃO ATÉ A EDUCAÇÃO INCLUSIVA COM APANHADO DA
LEGISLAÇÃO DA ÉPOCA

Este procura demonstrar como as normas se comportaram no que tange ao direito


à educação de pessoas com deficiência, para só assim, poder compreender de forma lúcida
complicações presentes.
Em 1857, pela Lei nº 839, houve a criação do Imperial Instituto de Surdos – Mudos
e depois com novo nome Instituto Nacional de Educação dos Surdos – INES (HISTÓRIA
DO ENSINO DE LÍNGUAS NO BRASIL, [20--?]). Seria interessante para a análise
verificar o documento na integra, mas mesmo após incansáveis pesquisas, não foi possível
encontrar. Contudo, pelo que foi consultado, sua importância foi grandiosa para a
educação das pessoas com surdez.
Em seguida, verificou-se se na Constituição da República (1891), havia alguma
mudança substancial, todavia, não ocorreu. Há semelhança dos termos da Constituição
antecedente, no Artigo 71, §1º: “Art 71 - Os direitos de cidadão brasileiro só se suspendem
ou perdem nos casos aqui particularizados. § 1º - Suspendem-se: a) por incapacidade física
ou moral; b) por condenação criminal, enquanto durarem os seus efeitos.” (BRASIL, 1891).
Para Flávia Piovesan “a própria Constituição “legitimava” a discriminação das pessoas com
deficiência.” (PIOVESAN, 2018, p. 553)
Antes da Constituição seguinte a de 1934, houve a expedição do Decreto nº 19.402
de 1930, que criou uma Secretaria própria nominada “Ministério dos Negócios da
Educação e Saúde Pública”, nesse documento inclusive há a incorporação dos dois
institutos supra como sendo pertencidos ao Ministério, além de outros, como se pode
observar no Artigo 5º:

Art. 5º Ficarão pertencendo ao novo Ministério os estabelecimentos,


instituições e repartições públicas que se proponham à realização de
estudos, serviços ou trabalhos especificados no art. 2º, como são, entre

ISSNe 2595-1602 64
outros, o Departamento do Ensino, o Instituto Benjamim Constant, a
Escola Nacional de Belas Artes, o Instituto Nacional de Música, o
Instituto Nacional de Surdos Mudos, a Escola de Aprendizes
Artífices, a Escola Normal do Artes e Ofícios Venceslau Braz, a
Superintendência dos Estabelecimentos do Ensino Comercial, o
Departamento de Saude Pública, o Instituto Osvaldo Cruz, o Museu
Nacional e a Assistência Hospitalar. (BRASIL, 1930, grifos nossos).

Chegando ao próximo documento regente enquanto Brasil República, a


Constituição de 1934, propunha esforço dos entes federativos para incentivar uma
educação eugênica, e fala-se em tutelar apoio a “desvalidos” através de serviços
especializados. (BRASIL, 1934)
Com base no exposto, a influência dos ideais eugenistas foi grande, e a título de
ênfase, e que também acaba servindo para mostrar o que era, insiro citação de trechos dos
chamados “Boletins de Eugênia”, especificamente o de Setembro de 1929, número 9, cujo
título era “EDUCAÇÃO E EUGENIA”:

Cada vez mais me inclino a acceitar como axioma o velho ditado ‘quem é
bom já nasce feito’ e, assim considerando, avançar, talvez, um paradoxo,
dizendo que a humanidade se compõe de tres especies de gente: gente
innata e intrinsecamente humana, gente domesticavel e gente doente ou
inodomavel, esta ultima intangível a todos os processos e esforços
educativos.
A grande maioria, certamente, pertence ás duas ultimas especies.
Dentro deste criterio, terá a pedagogia moderna de encarar os seus
problemas do mesmo modo por que são tidos na medicina os problemas
therapeuticos: - considerar o doente antes da doença, e, do mesmo
modo, considerar o educando antes da educação que se lhe pretende dar.
[...]
Os methodos educativos modernos baseam-se nas indicações fornecidas
pela psychologia. Isto não nos parece sufficiente. Torna-se necessario
tambem os seus caracteres somaticos e constitucionaes. A
individualidade, como a personalidade, - o modo de sentir, de agir, as
tendencias, os costumes, a capacidade intellectual ou physica são reflexos
desses caracteres innatos.
Eis, porque, a educação esbarra, impotente, em muitos casos, não
conseguindo domesticar um indocil, cuja constituição é resultante da um
processo hereditário irremovível.
‘Quem é bom já nasce feito!...’. (KEHL, 1929, p. 1).

Em seguida veio o Estado Novo em 1937, com nova Constituição. E no que está
expresso sobre a União realizar, houve uma ampliação em relação ao anterior, que

ISSNe 2595-1602 65
simplesmente se falava que a União traçaria orientações na educação nacional. Nessa
Constituição conhecida como “polaca”, no inciso IX, do Artigo 15, se fala que: “Art 15 -
Compete privativamente à União: [...] IX - fixar as bases e determinar os quadros da
educação nacional, traçando as diretrizes a que deve obedecer a formação física, intelectual
e moral da infância e da juventude;” (BRASIL, 1937).
Em sequencia, com a gestão de Eurico Gaspar Dutra, em 1946, inaugura-se uma
nova carta maior. O documento retoma a questão da educação ser um direito de todos
presente na Constituição de 1934, também insere princípios norteadores quais sejam o da “
[...] liberdade e nos ideais de solidariedade humana [...]” (BRASIL, 1946). E, direcionando,
para o objeto deste, pode-se afirmar que aqui o legislador inseriu força motriz, quando
dissertou o Artigo 172: “Art 172 - Cada sistema de ensino terá obrigatoriamente serviços de
assistência educacional que assegurem aos alunos necessitados condições de eficiência
escolar.” (Ibidem). Percebe-se que em tese o Estado determinou parcela de
responsabilidade em relação à tutela de direitos daqueles à margem, até o presente
momento.
Na cronologia, surge documento importantíssimo, no contexto internacional. A
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948, que nos Artigos
1º, 2º e 26, conta a tendência da época, do pós-guerra, de valorização do ser humano pelo
ser humano, nesse meio, o direito a educação é para a universalidade:

Artigo 1
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos
outros com espírito de fraternidade.
Artigo 2
1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as
liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer
espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de
outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
qualquer outra condição.
2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição
política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença
uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem
governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.
[...]
Artigo 26
1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita,
pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução
elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível
a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da
personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do

ISSNe 2595-1602 66
ser humano e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a
compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos
raciais ou religiosos e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em
prol da manutenção da paz.
3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução
que será ministrada a seus filhos. (ONU, 1948).

E apesar que essa Declaração seja mais recente, muito do que contém em seu teor,
já estava presente na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.
Contudo, como se pode constatar as disposições elencadas são muito semelhantes as
dispostas nas Constituições de 1934 e 1946 do Brasil, mas na prática o “todo ser humano”
era mais limitado, até porque consoante o suscitado a seguir sobre as Políticas que o Estado
tentou implantar após a Constituição de 1946, de atendimento às pessoas com deficiência o
caráter era predominantemente terapêutico na análise de uma das “Campanhas” (ROSSY,
2001, p. 1 apud GUIMARÃES, 2008, p. 4). Nesse sentido as medidas, foram instituídas
por intermédio de Decretos e o pano de fundo é o assistencialismo e há incidência da fase
segregacionista. O primeiro foi o Decreto nº 42.728/57, que estatuiu a Campanha para a
Educação do Surdo Brasileiro (CESB). (BRASIL, 1957)
Em seguida veio o Decreto nº 44.236/58 estreando a Campanha Nacional de
Educação e Reabilitação dos Deficitários Visuais (BRASIL, 1958) com nome substituído
em breve futuro por Campanha Nacional de Educação de Cegos – CNEC, pelo Decreto nº
48.252/1960 (BRASIL, 1960a).
Por fim o Decreto nº 48.961/60 que trouxe a tona a Campanha Nacional de
Educação e Reabilitação de Deficientes Mentais – Cademe.3 (BRASIL, 1960b)
Um ano depois, é publicada a Lei nº 4.024, Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDBEN), nesse diploma legal, o título X, nomeado “Da Educação de
Excepcionais”, colocava:

Art. 88. A educação de excepcionais, deve, no que for possível,


enquadrar-se no sistema geral de educação, a fim de integrá-los na
comunidade.
Art. 89. Toda iniciativa privada considerada eficiente pelos conselhos
estaduais de educação, e relativa à educação de excepcionais, receberá
dos poderes públicos tratamento especial mediante bolsas de
estudo, empréstimos e subvenções. (BRASIL, 1961, grifos nossos)

No começo pode-se notar primeiramente o uso da nomenclatura “excepcionais”, o


que vai de encontro aos preceitos da inclusão, inclusive mais ao final do artigo se fala em
“integração”. Além disso, no Artigo 89, o legislador trouxe regulamentação incentivando os

3
Essa foi a análise realizada por Rossy, aludida anteriormente.

ISSNe 2595-1602 67
demais entes que realizam a atividade-fim “educação” no contexto dos ditos
“excepcionais”, visto que os excepcionais deveriam ser educados no “sistema geral de
educação” e verificando todo o teor da Lei, apenas nesse momento há previsão de
estímulos aos estabelecimentos privados nessa Constituição.
Em ato contínuo, com a chegada do Regime Militar, em 1967 houve nova
Constituição, essa é silente em relação às pessoas com deficiência, e apenas reproduz
fielmente a redação do Artigo 172 da Constituição de 1946, no artigo 169, §2º. A Emenda
Constitucional nº 1/69, que em muito alterou a Constituição de 1967, há repetição
mencionada só que no artigo 177, §2º, mas acrescenta o seguinte, no artigo 175, §4º: “§ 4º
Lei especial disporá sôbre a assistência à maternidade, à infância e à adolescência e sôbre a
educação de excepcionais.” (BRASIL, 1969). Insta salientar que na Constituição de 1967, a
redação no artigo 167, §4º era bem semelhante, alterando a qualificação da lei e “incluindo”
excepcionais: “§ 4º - A lei instituirá a assistência à maternidade, à infância e à adolescência.”
(BRASIL, 1967).
Seguidamente em 1971, vem a tona a segunda Lei de Diretrizes e Bases, há avanço
na nomenclatura, passando a ser “deficientes”, contudo o disposto não é na toada da
realização da inclusão, em realidade o artigo não é muito específico, todavia olhando todo o
teor da Lei e sua organização, talvez o que aponte para a construção de uma sala especial
em rede de ensino regular, é o fato do artigo estar no mesmo título que regula o ensino de
1º e 2º grau:

Art. 9º Os alunos que apresentem deficiências físicas ou mentais, os que


se encontrem em atraso considerável quanto à idade regular de matrícula
e os superdotados deverão receber tratamento especial, de acôrdo com
as normas fixadas pelos competentes Conselhos de Educação. (BRASIL,
1971).

Por amor ao debate, é válido considerar o que em noticia de Organização sem Fins
Lucrativos – Todos pela Educação, coloca sobre: “Ou seja, a lei não promovia a inclusão
na rede regular, determinando a escola especial como destino certo para essas crianças.”
(TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020).
Antes de partir para a Constituição Cidadã, em 1978 houve a Emenda
Constitucional nº 12 em relação àquela em vigor (Constituição de 1967). O objetivo era
trazer melhorias para os deficientes4:

Artigo único - É assegurado aos deficientes a melhoria de sua condição


social e econômica especialmente mediante:
I - educação especial e gratuita;

4
Essa, não é nomenclatura mais adotada e aceita na atualidade.

ISSNe 2595-1602 68
II - assistência, reabilitação e reinserção na vida econômica e social do
país;
III - proibição de discriminação, inclusive quanto à admissão ao trabalho
ou ao serviço público e a salarios;
IV - possibilidade de acesso a edifícios e logradouros públicos. (BRASIL,
1978).

Grande ponto a destacar, é o elencado no inciso IV, que versa sobre a


acessibilidade nos ambientes públicos, ponto até o momento não posto em evidência.
Ademais, a vedação a discriminação até o momento não era relacionada às pessoas com
deficiência, também uma inovação. Na perspectiva negativa, de acordo com Flávia
Piovesan: “[...] a eficácia desta norma ficou comprometida pelo regime ditatorial, que
limitou significativamente os direitos e garantias individuais.” (PIOVESAN, 2018, p. 548).
Em tempos atuais, a Constituição em vigor é a de 1988, a ser analisado neste
trabalho. As disposições sobre o tema estão dispostas nos Artigos 205, 206, inciso I e 208,
incisos I, III e VII:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família,


será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando
ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; [...]
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a
garantia de:
I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17
(dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para
todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; [...]
III - atendimento educacional especializado aos portadores de
deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;5 [...]
VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica,
por meio de programas suplementares de material didático escolar,
transporte, alimentação e assistência à saúde. (BRASIL, 1988, grifo
nosso).

É incipiente a Inclusão, contudo chama-se atenção, para a palavra


“preferencialmente”, ou seja, não era algo obrigatório, ainda estava ao arbítrio. Ainda no

5
Essa, não é nomenclatura mais adotada e aceita na atualidade.

ISSNe 2595-1602 69
mesmo documento, em discussão tratada no capítulo seguinte, vem à superfície o Princípio
da Isonomia, estampado no Art. 5º, caput:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer


natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] (Ibidem).

Mas que acaba sendo melhor elucidado em outros dizeres, consoante o que a
jurisprudência trouxe:

A desigualação em favor dos estudantes que cursaram o ensino médio


em escolas públicas e os egressos de escolas privadas que hajam sido
contemplados com bolsa integral não ofende a Constituição pátria,
porquanto se trata de um descrímen que acompanha a toada da
compensação de uma anterior e factual inferioridade ('ciclos cumulativos
de desvantagens competitivas'). Com o que se homenageia a
insuperável máxima aristotélica de que a verdadeira igualdade
consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os
desiguais, máxima que Ruy Barbosa interpretou como o ideal de
tratar igualmente os iguais, porém na medida em que se igualem;
e tratar desigualmente os desiguais, também na medida em que se
desigualem. (BRASIL, 2012, p. 2-3, grifo nosso).

No ano seguinte, em 1989, lançou-se a Lei 7.853, que tratou da integração das
pessoas com deficiência, inaugurou a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa
Portadora de Deficiência – Corde, também colocou atribuição à Secretaria Especial dos
Direitos Humanos da Presidência da República para gestão e estabelecimento de ações no
que toca as pessoas “portadoras de deficiência”6. Direcionando à educação, nota-se o uso
da palavra “inclusão” no artigo 2º, inciso I, alínea “a”, mas por todo o exposto, o rumo era
o da integração, nesse caso, a referência é no sentido de incluir a Educação Especial no
sistema de educação e o apontado fica transparente na alínea “f” no mesmo local, mas
também é nesse mesmo ponto, que há um grande benefício, que é a obrigatoriedade da
matrícula em rede regular de ensino, seja particular ou público:

Art. 2º Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas


portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos,
inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à
previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros
que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu bem-estar
pessoal, social e econômico.

6
Essa, não é nomenclatura mais adotada e aceita na atualidade.

ISSNe 2595-1602 70
Parágrafo único. Para o fim estabelecido no caput deste artigo, os órgãos
e entidades da administração direta e indireta devem dispensar, no
âmbito de sua competência e finalidade, aos assuntos objetos esta Lei,
tratamento prioritário e adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de
outras, as seguintes medidas:
I - na área da educação:
a) a inclusão, no sistema educacional, da Educação Especial como
modalidade educativa que abranja a educação precoce, a pré-escolar, as
de 1º e 2º graus, a supletiva, a habilitação e reabilitação profissionais,
com currículos, etapas e exigências de diplomação próprios;
b) a inserção, no referido sistema educacional, das escolas especiais,
privadas e públicas;
c) a oferta, obrigatória e gratuita, da Educação Especial em
estabelecimento público de ensino;
d) o oferecimento obrigatório de programas de Educação Especial a
nível pré-escolar, em unidades hospitalares e congêneres nas quais
estejam internados, por prazo igual ou superior a 1 (um) ano, educandos
portadores de deficiência;
e) o acesso de alunos portadores de deficiência aos benefícios conferidos
aos demais educandos, inclusive material escolar, merenda escolar e
bolsas de estudo;
f) a matrícula compulsória em cursos regulares de estabelecimentos
públicos e particulares de pessoas portadoras de deficiência capazes de
se integrarem no sistema regular de ensino; (BRASIL, 1989, grifo
nosso).

Ainda no mesmo documento, houve a extensão do atendimento às pessoas com


deficiência em outros departamentos do Governo, consoante o artigo 15:

Art. 15. Para atendimento e fiel cumprimento do que dispõe esta Lei,
será reestruturada a Secretaria de Educação Especial do Ministério da
Educação, e serão instituídos, no Ministério do Trabalho, no Ministério
da Saúde e no Ministério da Previdência e Assistência Social, órgão
encarregados da coordenação setorial dos assuntos concernentes às
pessoas portadoras de deficiência. (Ibidem).

Em 1990, tem-se 2 (dois) documentos de relevo a Declaração Mundial de Educação


para Todos e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas em 1994, tem-se
extremos, aqui é proclamada a Declaração que mudou o rumo da situação e também,
ocorre a publicação da Política Nacional de Educação Especial, esses documentos estão em
desarmonia entre si. Internacionalmente, já se inicia o debate e nesse caso o compromisso
de mudança para a fase da Inclusão, e internamente, o Brasil está com dificuldades de

ISSNe 2595-1602 71
implantar a fase anterior, inclusive isso foi evidenciado no próprio Plano. Importante
destacar que pelo acostado houve colaboração de estados e municípios, além de recintos
destinados ao atendimento especializado das pessoas com deficiência para elaboração.
A Declaração de Salamanca – Marco Internacional Legal no âmbito da tutela do
direito das pessoas com Deficiência em relação à educação – traz em seu bojo a atual e
última fase, a inclusão. O documento é fruto da Conferência Mundial de Educação
Especial: acesso e qualidade, realizada em Salamanca, município da Espanha, com
impulsionamento pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura – UNESCO – que segundo o Ministério da Educação e Cultura: “é uma agência
especializada das Nações Unidas (ONU)” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, c2018). Em
se tratando de demonstrar o teor exato da Declaração, caberia grandiosa extensão, já que
esta envolve não só o comando positivo, mas também a motivação, o basilar,
principiológico. Algumas passagens importantes do documento:

REAFIRMANDO o direito à educação de todos os indivíduos, tal como


está inscrito na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, e
renovando a garantia dada pela comunidade mundial na Conferência
Mundial sobre Educação para Todos de 1990 de assegurar esse direito,
independentemente das diferenças individuais,
RELEMBRANDO as diversas declarações das Nações Unidas que
culminaram, em 1993, nas Normas das Nações Unidas sobre a Igualdade
de Oportunidades para as Pessoas com Deficiência, as quais exortam os
Estados a assegurar que a educação das pessoas com deficiência faça
parte integrante do sistema educativo, NOTANDO com satisfação o
envolvimento crescente dos governos, dos grupos de pressão, dos
grupos comunitários e de pais, e, em particular, das organizações de
pessoas com deficiência, na procura da promoção do acesso à educação
para a maioria dos que apresentam necessidades especiais e que ainda
não foram por ela abrangidos; e RECONHECENDO, como prova
deste envolvimento, a participação activa dos representantes de alto nível
de numerosos governos, de agências especializadas e de organizações
intergovernamentais nesta Conferência Mundial. [...]
2.Acreditamos e proclamamos que:
•cada criança tem o direito fundamental à educação e deve ter a
oportunidade de conseguir e manter um nível aceitável de aprendizagem,
•cada criança tem características, interesses, capacidades e necessidades
de aprendizagem que lhe são próprias,
•os sistemas de educação devem ser planeados e os programas
educativos implementados tendo em vista a vasta diversidade destas
características e necessidades,
•as crianças e jovens com necessidades educativas especiais devem ter
acesso às escolas regulares, que a elas se devem adequar através duma
pedagogia centrada na criança, capaz de ir ao encontro destas
necessidades,

ISSNe 2595-1602 72
•as escolas regulares, seguindo esta orientação inclusiva, constituem os
meios mais capazes para combater as atitudes descriminatórias, criando
comunidades abertas e solidárias, construindo uma sociedade inclusiva e
atingindo a educação para todos; além disso, proporcionam uma
educação adequada à maioria das crianças e promovem a eficiência,
numa óptima relação custo-qualidade, de todo o sistema educativo.
3.Apelamos a todos os governos e incitamo-los a:
•conceder a maior prioridade, através das medidas de política e através
das medidas orçamentais, ao desenvolvimento dos respectivos sistemas
educativos, de modo a que possam incluir todas as crianças,
independentemente das diferenças ou dificuldades individuais,
•adoptar como matéria de lei ou como política o princípio da educação
inclusiva, admitindo todas as crianças nas escolas regulares, a não ser que
haja razões que obriguem a proceder de outro modo,
•desenvolver projectos demonstrativos e encorajar o intercâmbio com
países que têm experiência de escolas inclusivas,
•estabelecer mecanismos de planeamento, supervisão e avaliação
educacional para crianças e adultos com necessidades educativas
especiais, de modo descentralizado e participativo,
•encorajar e facilitar a participação dos pais, comunidades e organizações
de pessoas com deficiência no planeamento e na tomada de decisões
sobre os serviços na área das necessidades educativas especiais,
•investir um maior esforço na identificação e nas estratégias de
intervenção precoce, assim como nos aspectos vocacionais da educação
inclusiva,
•garantir que, no contexto duma mudança sistémica, os programas de
formação de professores, tanto a nível inicial como em-serviço, incluam
as respostas às necessidades educativas especiais nas escolas inclusivas.
(UNESCO, 1994, p. 2-3).

Na contramão do apresentado, a Política Nacional de Educação Especial, o mote é


a integração, exatamente nos moldes da forma exposta no capítulo I, no texto traça-se as
modalidades no que tange a Educação Especial, e quando se fala na classe comum, ponto
chave para confrontar à inclusão, coloca-se expressamente processo nominado de
“integração instrucional”, em que pese uma das modalidades “classe especial” se aproximar
também da fase de segregação, segue exposição:

Classe comum
Ambiente dito regular de ensino/aprendizagem, no quai também estão
matriculados, em processo de integração instrucional, os portadores de
necessidades especiais que possuem condições de acompanhar e

ISSNe 2595-1602 73
desenvolver as atividades curriculares programadas do ensino comum,
no mesmo ritmo que os alunos ditos normais.
Classe especial
Sala de aula em escolas de ensino regular, organizada de forma a se
constituir em ambiente próprio e adequado ao processo
ensino/aprendizagem do alunado da educação especial. Nesse tipo de
sala especial, os professores capacitados, selecionados para essa função,
utilizam métodos, técnicas e recursos pedagógicos especializados e,
quando necessário, equipamentos e materiais didáticos específicos.
(BRASIL, 1994, p. 19).

No mesmo documento, relata-se do fundamento da integração, o princípio da


normalização, de modo que o arranjo do desenvolvimento para pessoas com deficiência
seriam semelhantes das outras pessoas, além disso, há uma separação na nomenclatura,
pessoa portadora de deficiência e pessoa portadora de necessidades especiais,
representariam contextos diferentes, aquela seria um conceito maximizado, no qual a
deficiência seria considerável, inerente e na última a deficiência seria transitória ou
permanente, além de que mecanismos próprios poderiam alavancar o desenvolvimento
individual. (BRASIL, 1994, p. 21-22).
Em 1996, ocorre a chegada da terceira Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a Lei
nº 9.394, é apresentado capítulo dedicado à Educação Especial, se vê traços da integração,
pois no Artigo 58, §1º, CF, é colocado que a depender da situação, haverá emprego de
apoio capacitado, para o atendimento das nuances “da clientela de educação especial”, além
disso, quando não fosse possível realizar a integração, o ensino será conduzido por classes,
instituições de ensino próprias (BRASIL, 1996). Apesar disso, coloca que “Em síntese,
podemos dizer que, no conjunto de seus 92 artigos, a LDBEN mostra coerência com as
propostas da Declaração mundial sobre educação para todos: satisfação das necessidades
básicas de aprendizagem e da Declaração de Salamanca.” (LOURENÇO, 2010, p. 26).
Importante destacar, também, quais são as deficiências expressas no documento, além de
“deficiência” genérica: “transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou
superdotação.” (Ibidem). Ponto positivo foi a questão do preparo dos professores, em que
o sistema de ensino deve conter em seu interior professores hábeis, para tentar integrar em
“classes comuns”. Além disso, essa Lei foi alterada em 2015, para cadastramento “de
alunos com altas habilidades ou superdotação”, em vista do potencial percebido.
Em 1999, tem-se o Decreto nº 3.298, que regulamenta a Lei nº 7.853/89, e
consoante o Artigo 24, inciso I, em Seção própria é notado ainda à perspectiva da
integração. E é inserida a inclusão da Educação Especial em todos os espectros do ensino,
no inciso II do mesmo artigo: “II - a inclusão, no sistema educacional, da educação especial
como modalidade de educação escolar que permeia transversalmente todos os níveis e as
modalidades de ensino;” (BRASIL, 1999).
Com isso, nota-se que a quantidade acordada e legislada está em grande volume,
inclusive faltam muitos a se mencionar, mas foi possível vislumbrar ainda que brevemente
um pouco das nuances até a chegada do cenário da educação inclusiva.

ISSNe 2595-1602 74
3.2 DA JURISPRUDÊNCIA NOS CASOS DE NEGAÇÃO A UMA
EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Pode-se constatar que a Jurisprudência tem decidido de forma favorável na defesa


da educação inclusiva de pessoas com deficiência. Exemplo:

APELAÇÃO – AÇÃO INDENIZATÓRIA – RECUSA NA


MATRÍCULA DE CRIANÇA COM NECESSIDADES ESPECIAS –
NÚMERO MÁXIMO DE ALUNOS POR SALA – DANOS MORAIS
VERIFICADOS - O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei
13.146/15) estabelece que a matrícula de pessoas com deficiência é
obrigatória pelas escolas particulares e não limita o número de alunos
nessas condições por sala de aula; - As provas dos autos denotam que
havia vaga na turma de interesse da autora, mas não para uma criança
especial, pois já teriam atingido o número máximo de 2 alunos por
turma; - Em que pese a discricionariedade administrativa que a escola
tem para pautar os seus trabalhos, a recusa em matricular a criança
especial na sua turma não pode se pautar por um critério que não está
previsto legalmente. A Constituição Federal e as leis de proteção à
pessoa com deficiência são claras no sentido de inclusão para garantir o
direito básico de todos, a educação; - Não há na lei em vigor qualquer
limitação do número de crianças com deficiência por sala de aula, a
Escola ré sequer comprovou nos autos que na turma de interesse da
autora havia outras duas crianças com deficiência – e também o grau e
tipo de deficiência – já matriculadas, - Dano moral configurado –
R$20.000,00. RECURSO PROVIDO

(TJ-SP 10160379120148260100 SP 1016037-91.2014.8.26.0100, Relator:


Maria Lúcia Pizzotti, Data de Julgamento: 08/11/2017, 30ª Câmara de
Direito Privado, Data de Publicação: 20/11/2017)

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. SENTENÇA DE PARCIAL


PROCEDÊNCIA. APELAÇÃO DA RÉ DESPROVIDA COM
DETERMINAÇÃO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
EDUCACIONAIS. AUTORA VÍTIMA DE BULLYING. AUTORA
PESSOA COM DEFICIÊNCIA. DANOS MORAIS
CONFIGURADOS. VALOR DA INDENIZAÇÃO MANTIDO. A
ação de indenização fundada na omissão da ré para solução da situação
de "bullying" contra a autora, no ambiente escolar. A autora portadora
de necessidades especiais advindas da Síndrome Moebius. Prova de que,
mesmo ciente, de que os outros alunos praticaram atos discriminatórios
em face da autora, a ré se omitiu na prevenção e tratamento do
problema. Vídeo que veiculou lamentável cena em que os demais alunos

ISSNe 2595-1602 75
zombaram da aparência física da autora, utilizando-se de filtros de
aplicativo de celular para alterarem os próprios rostos em alusão à última.
Situação que se situou num prática de Intimidação Sistemática (Bullying).
Ré que não agiu para impedir ou alterar as marginalização, discriminação
e ridicularização sofridas pela autora. Omissão descabida e que
representou violação de direitos fundamentais e de normas previstas em
diversas leis - Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência),
Lei º 9.394/96 ( Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/96),
Lei nº Lei nº 13.185/2015 (introduziu o "Programa de Combate à
Intimidação Sistemática (Bullying)"). Ré que se limitou a suspender os
alunos, diante do vídeo, que não se cuidava de um fato isolado, mas
demonstrava, isto sim, uma prática de bullying. Tanto que o Ministério
Público terminou por ajuizar ação civil pública para obrigar a ré a
promover educação inclusiva, até então negada em favor da autora, a
qual se viu compelida a mudar de escola. Defesa que alterou a verdade
dos fatos, não só ao qualificar o fato como isolado, mas também ao
negar o bullying. Danos morais configurados. Situação que ultrapassou o
mero aborrecimento. Autora que teve frustrada a expectativa de ter um
ambiente escolar saudável, inclusivo e integralmente adequado às suas
necessidades. Valor da indenização de R$ 30.000,00, que se revelou
módico para as circunstâncias do caso concreto. Reconhecimento de
litigância de má-fé, de ofício, na fase recursal. Ré que alterou a verdade
dos fatos e apresentou recurso manifestamente protelatório. Ação
parcialmente procedente. Aplicação de multa processual de 9,5% sobre o
valor da causa (atualizado) para sanção da litigância de má-fé da ré
apelante. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO COM
DETERMINAÇÃO.

(TJ-SP - AC: 10014634020188260224 Guarulhos, Relator: Alexandre


David Malfatti, Data de Julgamento: 30/05/2023, 12ª Câmara de Direito
Privado, Data de Publicação: 31/05/2023)

Observa-se que no primeiro, há recusa infundada de matrícula de pessoa com


deficiência, e no segundo é caso de “bullying” e a responsabilização ficou caracterizada pela
omissão no intuito resolver o caso.
Outro escriba traz relato do caso (TJMG - Apelação Cível 1.0512.10.001322-0/004,
Relator(a): Des.(a) Roberto Vasconcellos, 17ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em
07/06/2018, publicação da súmula em 19/06/2018) em que:

[...] que embora não reconhecido pelo juízo de primeiro grau, o Tribunal
deu provimento ao recurso de Apelação proposta, condenando a
instituição que negou a matrícula de aluno com paralisia cerebral ao
pagamento de uma indenização por dano moral na quantia R$20.000,00,
além de arcar com multa diária de R$1.000,00 pelo descumprimento de
determinação contida na decisão. (FREIRE NETO, 2020, p. 100)

ISSNe 2595-1602 76
Como se pode notar, no âmbito da responsabilidade civil há respaldo
jurisprudencial. Porquanto trata-se de uma afronta legal, ou seja, a negativa de acesso ou
outro aspecto que permute a educação inclusiva por outra que traga segregação ou
tratamento indigno, é ato ilícito, passível de reparação. Como mencionado por Cavalieri
Filho (2023, p. 11):

Em apertada síntese, responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo


que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever
jurídico originário.
Destarte, só se cogita de responsabilidade civil onde houver violação de
um dever jurídico e dano. Responsável é a pessoa que deve ressarcir o
dano decorrente da violação de um precedente dever jurídico. E assim é
porque a responsabilidade pressupõe um dever jurídico preexistente,
dever este que o agente podia conhecer e observar.
Daí ser possível dizer que toda conduta humana que, violando dever
jurídico originário, causa prejuízo a outrem é fonte geradora de
responsabilidade civil.

Além disso, o Código Civil é patente em colocar a definição de ato ilícito no Art.
186: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,
violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”
(BRASIL, 2002) e estabelecer o regime de responsabilidade se objetiva ou subjetiva mais a
frente no corpo de leis.
Fica muito bem retratado no seguinte julgamento, o aspecto do dano moral, que é
não é por conta da condição, mas sim de uma ofensa:

DIREITO CIVIL. POSSIBILIDADE DE ABSOLUTAMENTE


INCAPAZ SOFRER DANO MORAL.
O absolutamente incapaz, ainda quando impassível de detrimento
anímico, pode sofrer dano moral. O dano moral caracteriza-se por uma
ofensa, e não por uma dor ou um padecimento. Eventuais mudanças no
estado de alma do lesado decorrentes do dano moral, portanto, não
constituem o próprio dano, mas eventuais efeitos ou resultados do dano.
Já os bens jurídicos cuja afronta caracteriza o dano moral são os
denominados pela doutrina como direitos da personalidade, que são
aqueles reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas
projeções na sociedade. A CF deu ao homem lugar de destaque, realçou
seus direitos e fez deles o fio condutor de todos os ramos jurídicos. A
dignidade humana pode ser considerada, assim, um direito constitucional
subjetivo - essência de todos os direitos personalíssimos -, e é o ataque a
esse direito o que se convencionou chamar dano moral. REsp 1.245.550-

ISSNe 2595-1602 77
MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 17/3/2015, DJe
16/4/2015.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No fluir desta Pesquisa foi possível perceber que houve um vasto período de
exclusão de pessoas com deficiência, e que é deveras inicial a ideia de inclusão em relação a
toda a história. Não obstante, nota-se que já existem documentos que visam a assegurar em
algum grau a inclusão e sobretudo no aspecto educacional.
Também, constata-se que há um grande volume de documentos, legislações que
versam sobre a educação e pessoas com deficiência. Não é possível concluir com a presente
pesquisa sobre o retorno da prática em cada alteração da legislação. Contudo, vislumbra-se
que foi com a Declaração de Salamanca que o contexto brasileiro começou a se alterar, ao
ponto de gerar várias regulações posteriores.
Nesse ínterim, verifica-se ainda que superficialmente a presença de julgados
favoráveis à reparação de danos para pessoas com deficiência que se viram lesadas com a
negação a uma educação inclusiva, e essa veio de diversas ordens, até mesmo da omissão
escolar em combater “bullying”.
Em relação à metodologia aplicada, essa se mostrou suficiente, com apanhado
documental e bibliográfico, e em resumo, a pesquisa realizada em razão da motivação
exposta, trouxe uma discussão prévia. E, evidentemente, que pode ser ainda utilizada como
embasamento para demais estudos por outros pesquisadores entusiastas do assunto.
É temática ampla e sugestiona-se a realização de estudos posteriores, por quem se
entusiasma pelo assunto da educação inclusiva, sobretudo no âmbito que envolve o Direito
Civil.

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ISSNe 2595-1602 80
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RÉ DESPROVIDA COM DETERMINAÇÃO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
EDUCACIONAIS. AUTORA VÍTIMA DE BULLYING. AUTORA PESSOA COM
DEFICIÊNCIA. DANOS MORAIS CONFIGURADOS. VALOR DA INDENIZAÇÃO
MANTIDO. Relator: Alexandre David Malfatti, Data de Julgamento: 30/05/2023, 12ª

ISSNe 2595-1602 81
Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 31/05/2023. Disponível em: <
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ISSNe 2595-1602 83
ANÁLISE PANORÂMICA DA LEI 14.286/21 - A NOVA LEI DO
MARCO CAMBIAL

Lucilaine Braga Luciano Candido Martins1

RESUMO
O estudo denominado Análise panorâmica da Lei 14.286/21 brasileira, assunto esse que
tange a nova Lei do Marco Cambial tem como objetivo explanar as principais alterações da
Lei, assim como seus pontos positivos e negativos e efeitos da mesma, trazendo ainda as
mais aparentes características da recente norma, os impactos possíveis que virão à tona tanto
a brasileiros residentes no país e não residentes. Qual será o meio regulador, quais serão as
sanções em casos de fraudes, contratos e meios de pagamentos. Quais as consequências para
o mercado nacional e internacional. A metodologia usada foi a de pesquisas bibliográficas e
digitais.
Palavras-chave: Lei; câmbio; características; impactos; moeda estrangeira

1 – INTRODUÇÃO

Sancionada em dezembro de 2021, a nova lei do Marco Cambial entrou em vigor a partir de
31 de dezembro de 2022, sendo essa o objeto do presente estudo. Trouxe mudanças
substanciais para o mercado de câmbio, sendo esse um dos motivos ensejadores da
necessidade desse estudo.
O objetivo do estudo é de extrema relevância para apresentar as características da nova
norma, as mudanças, os efeitos na vida dos brasileiros e da economia pós alterações.
A lei moderniza, simplifica e consolida a legislação do mercado de câmbio e de capitais
internacionais no país. A lei busca desburocratizar o mercado cambial brasileiro, prestando
informações ao Banco Central. A revisão de regras promovida pelo Marco de Câmbio vem
facilitar operações que envolvam câmbio, tínhamos descritas regras arcaicas, com normas
que tinham quase um centenário, totalmente descabidas para o contexto mundial, na qual
nos últimos anos houve um aumento descomunal em negociações financeiras internacionais,
gerando movimentações em que nossa antiga lei de câmbio já não mais fazia jus.

1
Lucilaine Braga Luciano Candido Martins, graduada em Direito, pós-graduada em direito empresarial,
conciliadora e mediadora, coautora de obras jurídicas, email: luciluciano@gmail.com

ISSNe 2595-1602 84
Nessa toada, o novo regimento, trará mudanças importantes para os agentes financeiros,
importadores, exportadores e todas as pessoas (físicas e jurídicas) que desejam operar em
moeda estrangeira.

2. ESCOPO LEGAL E CARACTERÍSTICAS

A revisão de regras promovida pelo Marco de Câmbio vem facilitar operações que envolvam
câmbio e trará mudanças importantes para os agentes financeiros, importadores,
exportadores e todas as pessoas (físicas e jurídicas) que desejam operar em moeda estrangeira.
Nelson Abrão define o termo “câmbio” de 2 maneiras:
A primeira, por um ponto de vista genérico:

“Genericamente, câmbio significa a troca de 2 ou mais moedas entre si,


sentido este ligado às origens medievais da operação: esse (negócio de
câmbio) toma o seu nome, como negócio de câmbio da antiguidade,
dapermuta de somas de dinheiro, a qual, naturalmente, sendo na idade
média
os valores diversas moedas nos vários lugares, é ao mesmo tempo uma
permuta de espécies de dinheiro (moeda)”. (ABRÃO, 2018 Ed)2

E a segunda:
“Já num sentido específico, “câmbio” vem a ser a troca de moeda estrangeira
pela nacional. Compra-se e se vende a moeda como se mercadoria fosse dando a estrangeira
denominação de “divisa”, seja ela representada por bilhetes, peças metálicas, ou mesmo
escritura”. (ABRÃO, 2018 Ed)
Tais definições trazem não somente as bases do mercado cambial em seus
primórdios, mas também institutos surgidos na modernidade, facilitadores de seu
funcionamento, que são amplamente utilizados nas operações cambiais atualmente
no Brasil e no mundo.
A Lei dispõe sobre fluxos, estoques e prestação de informações de capitais brasileiros no
exterior, entendidos como os valores, os bens, os direitos e os ativos de qualquer natureza
detidos fora do território nacional por residentes.
Nessa esteira, são considerados também como capitais brasileiros no exterior os
financiamentos, empréstimos diretos e créditos comerciais concedidos no País a não
residentes.

2
ABRÃO, Nelson; Direito bancário, 18 Ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2018

ISSNe 2595-1602 85
O novo texto legal anseia um maior alinhamento das operações de câmbio realizadas no
sistema financeiro, permitindo maior liberdade nas transações e maiores esclarecimentos de
informações junto ao Banco Central.
A nova legislação equipara o tratamento das movimentações de contas dos residentes no
Brasil e os não residentes, se tratando apenas das contas pessoas físicas e jurídicas, e não
contas de instituições financeiras estrangeiras, pois essas operações se igualam à
movimentação do mercado de cambio.
A classificação das operações que antes contavam com mais de cento e oitenta códigos, passa
a estabelecer apenas dez códigos, ocorrendo assim uma simplificação.
Com as novas regras, se espera impactar de forma positiva a atração de capitais estrangeiros,
tanto para investimento no mercado financeiro e de capitais como para investimento direto,
inclusive investimentos de longo prazo e em projetos de infraestrutura e de concessões.
Além do maior ingresso internacional, a lei contribui para o maior uso internacional da nossa
moeda corrente do país, o real, ajudando a utilização da moeda brasileira em operações
financeiras fora do país, permitindo a entrada e remessa de ordens de pagamento em reais a
partir de contas em reais de instituições do exterior mantidas em bancos no país.
A recente legislação é concisa e tem linguagem atual, o que trará maior nível de segurança
jurídica para os assuntos discutidos.
Há também alterações das regras de transações realizadas por pessoas naturais, podendo
haver negociação de moeda estrangeira entre pessoas físicas de forma eventual e não
profissional, com limite de até US$500. Antes, esse tipo de operação era proibido. Houve
ampliação para US$10.000, ou equivalente em outras moedas, o limite a partir do qual o
viajante que ingressar ou sair do Brasil deve declarar o porte de valores em espécie.
Na atual lei cambial, o Banco Central do Brasil permite a criação de contas em reais em
outros países. A grande novidade está em uma das funções programadas para o Pix, a
transferência internacional.
Com a globalização, o mercado de câmbio se expandiu e a atual norma entendeu a
necessidade de simplificar entrada e saída de moedas internacionais do Brasil e diminuir
restrições para exportadores usarem livremente seus recursos, podendo assim ampliar o
espaço para a atuação de fintechs no mercado de câmbio, entre outras medidas.
A lei vem para diminuir a burocracia desse segmento e atender uma necessidade imposta por
mudanças tecnológicas e pelo tráfego das relações internacionais. Além disso, possibilitarão
novos participantes no mercado e contribuirá para o maior uso internacional do real.
Assim sendo, várias atribuições do Conselho Monetário Nacional (CMN) passam para o
Banco Central, tais como a de regular operações de câmbio, contratos futuros de câmbio
usados pelo Banco Central para evitar especulação com o real (swaps) e a organização e
fiscalização de corretoras de valores, de bolsa e de câmbio.
Os ganhos de eficiência no mercado trazidos com essa nova legislação acabam atraindo
também o capital estrangeiro.

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3. CARACTERÍSTICAS NA NOVA LEI DE CÂMBIO.

A nova lei remete às autoridades monetárias a competência necessária para o estabelecimento


de regulamentação mais específica acerca de vários aspectos relevantes do mercado de
câmbio.
Assim, quase certo que ao longo deste e dos próximos anos, surgirão importantes inovações
no cenário regulatório cambial brasileiro.
De qualquer modo, as regras gerais trazidas pelo novo marco alinham o mercado de câmbio
com as melhores práticas internacionais e, com isso, dá ensejo a maior eficiência do mercado
local, impactando positivamente a capacidade de atração de capitais estrangeiros.
A nova lei tem características na maioria de suas linhas positivas, sendo essas:

DESBUROCRATIZAÇÃO

A atual lei de câmbio vem para proporcionar uma menor exigência de apresentação de
documentos por parte das empresas para as operações, com a redação no sentido de que a
instituição autorizada a operar no mercado de câmbio não poderá exigir do cliente
documentos, dados ou certidões que estiverem disponíveis em suas próprias bases de dados
ou em bases de dados públicas e privadas de acesso amplo. Isso deve facilitar o processo e
diminuir a burocracia atual do fluxo de documentos físicos e/ou digitais.
Mises destaca expressamente seu ponto de vista em sua obra “Burocracia”:

“É ainda verdade que a burocracia está penetrada de um ódio implacável


aos negócios privados e à livre iniciativa. Mas os defensores do sistema
consideram ser esta, precisamente, a característica que nela há de mais
louvável. Longe de envergonhar esse de suas políticas anti-negócios,
orgulham-se delas. Visam ao controle total dos negócios pelo governo e
vêem um inimigo público em todos os empresários que tentam escapar-
lhe
às garras.” (MISES, 2018, pag 20, )3
Tendo em vista que a burocracia tem o ímpeto de perpetuação e
manutenção de poder, e que a livre iniciativa é pautada pela divisão de funções,
bem como, não somente pela independência econômica do Estado, mas também
pelo fato de as políticas estatais visarem ao incremento e desenvolvimento da livre
iniciativa, fica claro que a crescente burocratização impede o desenvolvimento da economia
nacional.

3
MISES, Ludwig von. Burocracia/ Ludwig von Mises; tradução de Raul Martins- Campinas,SP: Vide edit.
2018

ISSNe 2595-1602 87
Com a nova Lei, a instituição financeira autorizada tem autonomia para dispensar
informações e documentos comprobatórios, considerando a avaliação de risco do cliente e
as características da operação.
Importante ressaltar que a autorização para a atuação no mercado de câmbio só
é concedida pelo Banco Central do Brasil quando a instituição financeira está realmente
qualificada para tal.
As operações entre pessoas físicas, independentemente do valor, eram feitas através de uma
instituição financeira autorizada, com o advento da nova norma, será permitida a troca
eventual de moeda estrangeira em espécie entre pessoas físicas, com valor máximo de USD
500 (ou o equivalente em outra moeda).

MODERNIZAÇÃO

A nova lei vem em tempo para desobstruir a burocracia desse segmento e atende uma
necessidade imposta por mudanças tecnológicas e pelo tráfego das relações internacionais.
Tínhamos um arcabouço regulatório muito antigo, com normas com quase cem anos.
Com o advento da Nova Lei, ocorre também sua modernização, pois como já descrito, a Lei
consolida mais de 40 normativos que vinham dispondo, desde o longínquo ano de 1920,
sobre aspectos relativos a esses temas se oferece maior segurança jurídica para o mercado,
haja vista contemplar as recentes inovações tecnológicas e apoiar as necessidades da
economia brasileira; compatibiliza a legislação brasileira com as necessidades operacionais
decorrentes das cadeias globais de produção, facilitando o comércio exterior e o fluxo de
recursos de investimentos; e favorece investimentos estrangeiros no Brasil, bem como
investimentos brasileiros no exterior, de modo proporcional ao valor do negócio e aos riscos
envolvidos.
As empresas brasileiras ou suas offshores poderão receber financiamento e empréstimos
com recursos captados no país ou no exterior.
Houve a disrupção e a inovação na nova Lei cambial no que tange aos bancos poderem
financiar empresas no exterior, mesmo que não tenham vínculo com empresas brasileiras,
por exemplo, um banco no Brasil poderá financiar um importador americano que não tenha
nenhum capital brasileiro em sua empresa, que esteja importando do Brasil.
A nova lei prevê a modernização do mercado de câmbio, com destaque para agilidade na
cadeia global de valores e flexibilização nos pagamentos de dívidas. Além disso, foca na
ampliação das instituições que prestam serviço de câmbio incentivando a concorrência e
inserindo novos participantes que atenderão pequenos valores.

CONCISA

ISSNe 2595-1602 88
Houve uma diminuição dos códigos de classificação cambial, gerando uma simplificação para
as empresas no processo de enquadramento das operações de câmbio.
Existiam mais de 200 códigos cambiais para enquadramento da operação, com a nova Lei
Cambial, as naturezas cambiais passaram por alterações:
Para operações até USD 50 mil, por exemplo, passa a ser possível realizar a classificação em
apenas 8 códigos.
Para operações com valores acima de USD 50 mil, valem os códigos atuais mais 4 novos
(ativos virtuais, jogos e apostas, reembolso por serviços prestados ou recebidos
e Indenização não relacionada a seguros), e fica facultado ao cliente utilizar esses códigos de
classificação também para operações até USD 50 mil ou seu equivalente em outra moeda.

LIBERDADE DE MERCADO

Com a recente Lei de câmbio, as empresas inseridas no mercado internacional, deverão ter
processos operacionais mais modernos e, portanto, reduzir a distância para as grandes
economias globais.
O exportador brasileiro sempre enfrentou burocracia e complexos processos para inserir
seus produtos ou serviços no mercado global. Finalmente, agora a resiliência do empresário
será parcialmente compensada com o novo marco cambial que entrou em vigor.
Eros Grau, leciona:
“Esse poder autônomo, no capitalismo moderno, seria a livre iniciativa, ou seja,
“a possibilidade de os agentes econômicos entrarem no mercado sem que o Estado
crie obstáculos.” (GRAU)4
Amplia assim a liberdade de pessoas físicas e pessoas jurídicas, aumenta o espaço para bancos
brasileiros atuarem no exterior, desburocratiza as operações com moeda estrangeira e eleva
o limite de dinheiro autorizado para porte de quem viaja ao exterior, passando de R$ 10 mil
para US$ 10 mil ou o equivalente em outra moeda que não o dólar.
Essa liberdade regulatória ainda carece de certa timidez e poderia ter ido mais além, mas já é
um bom início para um país que historicamente se inibiu a abrir sua economia para o exterior,
fato esse que tem grande parte de culpa no atraso brasileiro e pela dificuldade de retomar o
crescimento econômico.
Deve a lei assegurar de fato, a liberdade sem que se perca
a ordem, deve, portanto, o fazer sem retirar ou mitigar a liberdade, algo natural do
ser humano.
A nova Lei proporcionará uma abertura maior de mercado
através, por óbvio, da desburocratização cambial, para que o Brasil tenha acesso a
novos conhecimentos, técnicas, maquinários e matérias primas o que desenvolverá

4
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 2018

ISSNe 2595-1602 89
nosso mercado interno e externo, bem como poderá futuramente elevar o país a categoria
de nação de primeiro mundo.

PARIDADE ENTRE RESIDENTES E NÃO RESIDENTES NO PAÍS.

As contas em reais de não residentes (pessoas físicas ou jurídicas residentes, domiciliadas ou


com sede no exterior), conhecidas como CDE – Contas de Domiciliados no Exterior são
mantidas em instituições autorizadas exigindo diversos requisitos para serem abertas e
movimentadas.
A nova lei prevê que essas, terão tratamentos análogos as contas dos residentes no País, o
que torna o processo de abertura e movimentação bem menos burocrático.
No entanto, existem exceções: essas contas dos não residentes devem ser mantidas em
instituição autorizada a operar no mercado de câmbio, tendo a necessidade de prestação de
informação mensal para as movimentações acima de R$ 1 milhão (um milhão de reais), para
as operações sujeitas a registro de capitais estrangeiros e para as contas de embaixadas e
legações estrangeira, há limite de R$ 100mil (cem mil reais) por movimentação no caso de
conta de pagamento e há o impedimento ao uso para movimentação de terceiros, somente
legalizado no caso de conta de instituição não residente sujeita à regulação e à supervisão
financeira no país de origem.

4. O PAPEL DO ÓRGÃO REGULADOR

Com a nova lei, várias atribuições do Conselho Monetário Nacional (CMN) passam a ser
atribuições do Banco Central, como regular operações de câmbio, contratos futuros de
câmbio usados pelo Banco Central para evitar especulação com o real (swaps) e a organização
e fiscalização de corretoras de valores, de bolsa e de câmbio.
A nova lei atribui ao Banco Central do Brasil, a competência para regulamentar o mercado
de câmbio e suas operações e dispor sobre os tipos e as características de produtos, formas,
limites, taxas, prazos e outras condições.
Na letra da Lei 14.286/21, descreve que:

Art. 3º As operações no mercado de câmbio podem ser realizadas somente


por meio de instituições autorizadas a operar nesse mercado pelo Banco
Central do Brasil, na forma do regulamento a ser editado por essa
autarquia.
Art. 4º A instituição autorizada a operar no mercado de câmbio é
responsável:
I - pela identificação e pela qualificação de seus clientes;

ISSNe 2595-1602 90
II - por assegurar o processamento lícito de operações no mercado de
câmbio.
§ 1º A instituição de que trata o caput deste artigo adotará medidas e
controles destinados a prevenir a realização de operações no mercado de
câmbio para a prática de atos ilícitos, incluídos a lavagem de dinheiro e o
financiamento do terrorismo, nos termos da Lei nº 9.613, de 3 de março
de 1998, observado o regulamento a ser editado pelo Banco Central do
Brasil.

O Banco Central elaborou um regulamento do mercado de câmbio e capitais internacionais,


que trata sobre o mercado de câmbio brasileiro, o capital brasileiro no exterior, o capital
estrangeiro no país e a prestação de informações ao Banco Central.
O órgão regulador disciplina a constituição, operações de reorganização societária,
transferência de controle, e o cancelamento de instituições autorizadas a operar no mercado
de câmbio, inclusive quanto a participação de não residentes;
Segundo o regulamento do Banco Central do Brasil, instituições autorizadas a operar no
mercado de câmbio estão elencadas no capítulo único do artigo 29:

As autorizações para operar no mercado de câmbio podem ser concedidas


para as instituições abaixo indicadas realizarem as seguintes operações:
I - bancos e a Caixa Econômica Federal: todas as operações do mercado
de câmbio;
II - sociedades corretoras de títulos e valores mobiliários, sociedades
distribuidoras de títulos e valores mobiliários, sociedades corretoras de
câmbio, sociedades de crédito, financiamento e investimento e agências de
fomento.
§ 3º As instituições autorizadas a operar no mercado de câmbio, exceto as
instituições de pagamento, podem conduzir operações de câmbio por
meio de posto de atendimento, observada a regulamentação sobre o
assunto.

Uma vez concedida tal autorização para operar no mercado de câmbio, não a torna
irrevogável, o Banco Central do Brasil poderá rever a decisão de autorização, considerando
a relevância dos fatos, tendo por base as circunstâncias de cada caso e o interesse público,
conforme artigo 33 da Resolução, caso verifique:

I - falsidade ou omissão nas declarações e nos documentos apresentados


na
instrução dos processos ou discrepância entre eles e os fatos ou dados
apurados; ou

ISSNe 2595-1602 91
II - circunstâncias preexistentes à decisão capazes de afetar a avaliação
relativa ao atendimento aos requisitos para as autorizações.

5. INTEGRAÇÃO DOS MERCADOS E RISCOS

As mudanças propostas no novo marco cambial promovem benefícios, como redução de


burocracia, modernização, agilidade nas operações, otimização das taxas e o cliente passará
a ser o responsável pela classificação da operação. O que se espera é o que mercado de
cambial tenha mais estímulo à concorrência, com redução de custos operacionais.
Com a modernização da legislação, objetiva ainda, equipará-la às leis de outros ambientes
financeiros no que se refere ao fomento das transações comerciais e negócios.
Além da maior inserção internacional, a Lei Cambial contribui para o maior uso internacional
do real, facilitando a utilização da moeda brasileira em operações monetárias internacionais.
A revisão de regras promovida pela lei vem facilitar operações que envolvam câmbio e trará
mudanças importantes para os agentes financeiros, importadores, exportadores e todas as
pessoas (físicas e jurídicas) que desejam operar em moeda estrangeira.
Um dos focos da lei, é a ampliação das instituições que prestam serviço de câmbio,
incentivando a concorrência e inserindo novos participantes, que atenderão pequenos
valores. Sendo assim, os bancos e corretoras deixam de ser os únicos autorizados a realizar
compra e venda de moeda estrangeira.
Dentre as novidades, está o recebimento em conta de pagamento do próprio exportador em
instituição financeira no exterior e em conta de instituição não bancária autorizada a operar
em câmbio. Estas alternativas trazem mais flexibilidade e facilidade às empresas, facilitando
o desenvolvimento de negócios.
O fato do Banco Central do Brasil concentrar maiores poderes, agilizou a evolução da
regulamentação do câmbio, fomentando a concorrência, desburocratizando e
proporcionando um ambiente propenso à inovação e criação de novos modelos de negócios.
Com a nova legislação, as empresas terão mais liberdade para gerir e alocar as suas receitas
de exportação que mantêm no exterior.
Outro ponto importante sobre o comércio exterior, é o fato de se adequar o mercado cambial
brasileiro às recomendações da OCDE (Organização para a Cooperação e o
Desenvolvimento Econômico), principalmente nos padrões de flexibilização burocrática,
isso facilitará o fluxo de dinheiro no mercado nacional, e amplia os serviços financeiros para
exportadores brasileiros.
Além da visibilidade internacional, o país também angariará diversas opções de
investimentos, o que aumentará as possibilidades de financiamento para as empresas no
Brasil, tanto em investimentos diretos, de longo prazo ou até mesmo em projetos de
infraestrutura e de concessões.

ISSNe 2595-1602 92
Nessa esteira, trará benefícios para ao setor que contará com a redução de custos com
operações que preveem a mitigação de risco cambial e de liquidez, o qual decorre da taxa de
câmbio referente ao momento da contratação até a operação efetivamente.
Nesse momento em que a nova Lei começa a despontar, ainda não se tem um retorno do
mercado como os participantes gostariam, mas se espera que a lei impactará de forma
positiva na atração de capitais estrangeiros, não apenas com relação aos investimentos no
mercado financeiro e de capitais, mas também para os investimentos de longo prazo,
especialmente em projetos de infraestrutura.

RISCOS

Além da ampla mudança no âmbito comercial no texto legal, notam-se disposições no


combate a delitos praticados no mercado de câmbio, incluindo a lavagem de dinheiro e o
financiamento do terrorismo.
A nova legislação salienta, por parte das instituições autorizadas que irão operar nesse
mercado, adotando medidas e controles preventivos.
No contexto das relações bancárias internacionais em reais, exigiu-se atribuições mais severas
por parte dos bancos, devendo estes obter informações sobre a instituição no exterior para
entender plenamente a natureza de sua atividade, sua reputação e a qualidade da supervisão
financeira a que está sujeita.
No contexto dos riscos, sobrevieram alterações significativas na lei dos crimes contra o
sistema financeiro nacional (7492/86), no tocante aos delitos de evasão de divisas (art. 22,
§1º) e operação de instituição financeira sem autorização (art. 16)
A Lei de Cambio aprovada, aumenta substancialmente as possibilidades de abertura de
contas bancárias e aplicação de recursos em moeda estrangeira no país, com possibilidade da
liberalidade da conversibilidade da moeda, embute riscos de potencializar turbulências e
volatilidades do câmbio.

PREVENÇÃO À LAVAGEM DE DINHEIRO E COMBATE AO TERRORISMO


(ARTIGO 4, §1º)

No compasso da Lei de cambio e a prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao


financiamento do terrorismo, o texto legal prevê a adoção de medidas e controles destinados
a prevenção de operações no mercado de câmbio para a prática de atos ilícitos, como a
lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo, adotando cautelas em relação a
cadastro, registro e monitoramento, observada a regulamentação a ser editada pelo Bacen.
Nessa toada, especialistas chamam atenção que poderá surgir desestabilização do câmbio se
esse fluxo financeiro não ocorrer de forma equilibrada.

ISSNe 2595-1602 93
Sobre o risco, o real sendo depreciado perante várias outras moedas internacionais, a nova
Lei incentiva os não-residentes se endividarem em reais para comprar dólares e revendê-los
em seguida, e ataques especulativos contra a moeda brasileira, o que aumentaria a variação
do câmbio.
Existem também os riscos de que o novo marco cambial poderá incentivar a migração do
real para o dólar em momentos de incertezas.
Dessa forma o país pode seguir por um caminho sem volta em direção à dolarização e à
situação de instabilidade como vimos em vários países latino-americanos.

6. CONTRATOS E PAGAMENTOS EM MOEDA ESTRANGEIRA

A formalização da operação por meio de contrato de câmbio era exigência legal, com a nova
Lei Cambial, a forma de celebração da operação de câmbio passa ter liberdade, desde que a
instituição autorizada seja capaz de comprovar que as partes têm conhecimento das
informações referentes e que comungam com as condições estabelecidas.
Os dispositivos legais, em seus núcleos, ditavam a regra de que contratos celebrados e
executados no Brasil apenas poderiam prever pagamento em moeda nacional, proibindo
pagamentos expressos ou vinculados a ouro ou a qualquer tipo de moeda estrangeira,
ressalvadas as exceções previstas no Decreto-Lei 857/1969, em seu artigo 2º, que descrevia
cinco exceções em que contratos poderiam estipular obrigação de pagamento em moeda
estrangeira.
Essas exceções foram atualizadas pela Lei de câmbio, que, além de ter revogado o Decreto-
Lei nº 857/1969 e o artigo 6º da Lei nº 8.880/1994, em seu artigo 13º aumenta para nove as
situações de exceções.
Diante da nova redação, nos casos de obrigações exequíveis em território nacional, será
admitida a estipulação de pagamento em moeda estrangeira, principalmente:

I- nos contratos referentes ao comércio exterior de bens e serviços, o que


envolve, especialmente, contratos de importação e exportação;
II- nos contratos em que o credor ou devedor seja "não residente" no
território nacional, exceto em contratos de locação de imóveis situados em
território nacional;
III- nos contratos de arrendamento mercantil celebrados entre pessoas
físicas ou jurídicas consideradas "residentes" no Brasil, porém que tenham
captação de recursos provenientes do exterior;
IV- na cessão, na transferência, na delegação, na assunção ou na
modificação das obrigações referidas nos incisos I, II e III do caput deste
artigo, inclusive se as partes envolvidas forem residentes;
V- nos contratos de compra e venda de moeda estrangeira;

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VI- a exportação indireta de que trata a Lei nº 9.529, de 10 de dezembro
de 1997;
VII- nos contratos celebrados por exportadores em que a contraparte seja
concessionária, permissionária, autorizatária ou arrendatária nos setores de
infraestrutura;
VIII- nas situações previstas na regulamentação editada pelo Conselho
Monetário Nacional, quando a estipulação em moeda estrangeira puder
mitigar o risco cambial ou ampliar a eficiência do negócio;
IX- em outras situações previstas na legislação.

O artigo 13º da lei de câmbio, também deixa espaço para a criação de novas exceções
mediante regulamentação a ser editada pelo Conselho Monetário Nacional, quando o
pagamento em moeda estrangeira puder mitigar o risco cambial e, especialmente, ampliar a
eficiência do negócio.
Tal disposição é muito interessante, considerando que a regulação pelo Conselho Monetário
Nacional, além de trazer maior segurança jurídica e contratual, também poderá abarcar os
novos modelos de negócios e tecnologias que vêm surgindo como, por exemplo, marketplaces
e facilitadores de pagamento que preveem maior eficiência mediante o recebimento de
valores em outro tipo de moeda, ou até mesmo em criptomoedas.
Salienta-se que tal fato não macularia no todo o contrato, não tendo como efeito a nulidade
de todo o contrato, mas traria dificuldade nas negociações e tratativas sobre a forma de
pagamento dos valores devidos.
Nesse tocante, outras cláusulas, com o tema financeiro do contrato, poderiam ser declaradas
nulas, o que poderia assim, denotar a total impossibilidade de cumprimento do contrato e a
necessidade de sua alteração, formatação de um novo contrato ou até mesmo a rescisão.
Todavia, importante ressaltar que a jurisprudência brasileira já reconhece a possibilidade de
estipulação de pagamento em moeda estrangeira, desde que o respectivo valor seja pago em
reais, convertido pela cotação da moeda na data da efetiva contratação e celebração do
contrato.
Concluindo assim, sobre as formas de pagamentos trazidos pela nova lei cambial existe a
ampliação de possibilidades de pagamento em moeda estrangeira de obrigações devidas no
país. Isso será possível, por exemplo, em contratos de comércio exterior, em que uma das
partes envolvidas for oriunda de outro país, ou, então, em contratos de arrendamento
mercantil (leasing) feitos entre residentes no Brasil, se os recursos forem captados no
exterior.
A Nova Lei de câmbio pode ser considerada uma porta que se abre para a implementação
do chamado PIX internacional. A operacionalidade do sistema estará subordinada às regras
próprias do Banco Central e do Conselho Monetário Nacional.

7. MEIOS DE PAGAMENTO NA REGRA DE CÂMBIO

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Antes do advento da atual lei de câmbio, quando era necessário fazer pagamento ou
recebimento envolvendo moedas de países diferentes, seja para viagem internacional, doação,
compra de produtos ou outro motivo qualquer, era necessário trocar a moeda de um país
pela moeda de outro país, caracterizando uma operação de câmbio.
Hoje não é mais necessário qualquer tipo de autorização governamental para fazer remessas
do Brasil para o exterior e nem para receber recursos vindos de fora do país.
O Conselho Monetário Nacional e o Banco Central, alteraram a regulamentação cambial e
de capitais internacionais para alinhá-las às inovações tecnológicas e aos novos modelos de
negócios sobre pagamentos e transferências internacionais, as novas regras buscam
promover um ambiente mais competitivo, inclusivo e inovador para a prestação de serviços
aos cidadãos e empresas que enviam ou recebem recursos do exterior.
As novas medidas permitirão que as instituições de pagamento (IPs), as fintechs, autorizadas
a funcionar pelo Banco Central, também possam operar no mercado de câmbio, atuando
exclusivamente em meio eletrônico.
No artigo 14 da Lei Cambial, descreve que:

Art. 14. O ingresso no País e a saída do País de moeda nacional e


estrangeira devem ser realizados exclusivamente por meio de instituição
autorizada a operar no mercado de câmbio, à qual caberá a identificação
do cliente e do destinatário ou do remetente.

O Artigo 15 descreve:

As instituições financeiras e as demais instituições autorizadas a funcionar


pelo Banco Central do Brasil, observadas as atividades que lhes são
permitidas pela legislação, poderão alocar, investir e destinar para
operação de crédito e de financiamento, no País e no exterior, os recursos
captados no País e no exterior, observados os requisitos regulatórios e
prudenciais estabelecidos pelo Conselho Monetário Nacional e pelo
Banco Central do Brasil.

Novos meios de pagamentos foram inseridos na Nova lei Cambial:

I- serão autorizadas transferências em reais para fora do Brasil.


Atualmente, as pessoas físicas ou empresas têm de fechar um contrato de
câmbio em outra moeda, para enviar os recursos ao exterior. O objetivo
do Banco Central é estimular o uso internacional do real.

ISSNe 2595-1602 96
II- pessoas e empresas poderão pagar contas no Brasil em moeda
estrangeira, em algumas situações. Isso será possível em contratos de
comércio exterior; quando uma parte envolvida for de outro país, ou em
contratos de "leasing", entre outros.
III- bancos brasileiros poderão financiar no exterior a compra de
exportações brasileiras, com isso, argumenta o BC, haverá maior
competitividade dos produtos brasileiros no mercado internacional.
IV- importações poderão ser pagas mesmo sem o ingresso dos bens no
Brasil.
V- será reduzida a burocracia para entrada de investidores estrangeiros no
Brasil. Atualmente, o pequeno e médio investidor estrangeiro não
consegue, por exemplo, investir no Tesouro Direto (programa de compra
e venda de títulos públicos por pessoas físicas pela internet).
VI- um exportador brasileiro que receba recursos no exterior poderá
emprestá-los a uma subsidiária da empresa fora do país. Antes da atual lei,
era proibido. O objetivo é aumentar a competitividade das empresas
brasileiras.
VII- o pagamento em moeda estrangeira de obrigações exequíveis em
território nacional, tem amparo legal no artigo 13 da Lei 14.286/21, elenca
as situações nas quais obrigações exequíveis em território nacional podem
ser pagas em moeda estrangeira. Dentre elas, destaca-se o inciso VII, que
dispõe sobre contratos celebrados por exportadores em que a contraparte
seja concessionário, permissionário, autorizatário ou arrendatário nos
setores de infraestrutura.
VIII- a compensação privada entre residentes e não residentes, é descrita
no artigo 12 da nova lei de câmbio, na qual autoriza a realização de
compensação privada de créditos ou de valores entre residentes e não
residentes, nas hipóteses previstas em regulamento do BCB. Na legislação
atual, tais compensações são vedadas.
IX- existe também a necessidade de declaração de valores superiores a
US$ 10.000,00 (dez mil dólares dos Estados Unidos da América) em
moeda estrangeira em espécie, na entrada e saída do país. O artigo 14, §1º
da Lei 14.286/21 eleva o valor que deve ser declarado em moeda
estrangeira em espécie, no ato de entrada ou saída do país, de R$ 10.000,00
(dez mil reais) para US$ 10.000,00 (dez mil dólares dos Estados Unidos da
América).

A atual legislação sobre o câmbio, com maior liberalidade, também favorece a


implantação do real digital, cujas diretrizes foram divulgadas em maio de 2021.
De acordo com regulamentação do Banco Central do Brasil, os bancos autorizados a
operar no mercado de câmbio poderão cumprir ordens de pagamento em reais recebidas
do exterior ou enviadas para o exterior, através de contas mantidas em real em bancos,
de titularidade de instituições domiciliadas ou com sede no exterior e que estejam sujeitas
à regulação e à supervisão financeira em seu país de origem.

ISSNe 2595-1602 97
No procedimento das operações de câmbio, o cliente assinará um termo de adesão à
instituição mediadora, na qual declara sob as penas da lei, ter conhecimento de todos os
pontos ali descritos.
Sobre o enquadramento das operações, o cliente tem ciência que é o responsável por
informar a instituição a finalidade das operações de câmbio cursadas, compreendidas
como o conjunto de códigos que a partir da classificação indicada na regulamentação.
O cliente também prestará compromissos com a Instituição mediadora em relação às
movimentações de câmbio, sempre que for solicitado pelos reguladores.
O cliente é contribuinte da IOF (imposto sobre operações financeiras), aplicável às
operações de câmbio objeto da transação, o recolhimento do imposto será recolhido
sobre o agente de câmbio conforme legislação aplicável.
O cliente é o responsável pelo cálculo e pagamento de qualquer outro tributo adicional
ao IOF, como exemplo o (IRRF) imposto de renda, como por demais obrigações
exigidas em decorrência da lei ou transação quanto ao recolhimento de tributos.
Produtos específicos deverão ser informados pelo cliente que possivelmente receberá
um SMS na qual será informado sobre a existência de ordem de pagamento recebida em
moeda estrangeira e será questionado sobre a autorização para liquidação da operação
de câmbio nas condições informadas pelo próprio SMS que deverá ser respondido com
a palavra-chave descrita na mensagem, a OPR será liquidada de forma automática, e o
crédito dos reais será disponibilizado no mesmo dia na conta do cliente.
Nessa toada o §2º do artigo 14, em seu inciso II, dispõe que o BCB regulamentará quais
os tipos de instituições autorizadas a operar no mercado de câmbio que não poderão
efetuar o ingresso no país e a saída do país de moeda nacional ou estrangeira,
considerados o porte, a natureza e o modelo de negócio das instituições, em linha com
o princípio da proporcionalidade regulatória.

7. CONCLUSÃO

Com o presente estudo se nota que o objetivo da lei de câmbio é simplificar as


transferências internacionais que são realizadas no país com o intuito de aumentar a
presença brasileira no mercado de câmbio estrangeiro. Além de a nova regra ter impacto
direto nas exportações e importações, para quem costuma viajar para o exterior ou envia
dinheiro para outros países através de remessas internacionais, também sentirá os
favoráveis resultados já a partir de 2023.
A Nova Lei de Câmbio foi revisitada, atualizada e modernizada no sentido de simplificar
as transações em moeda estrangeira, sendo aplicável tanto para pessoas físicas, mas
também para pessoas jurídicas. A regulamentação anterior que tratava sobre as
operações de câmbio estava defasada e essa iniciativa surge com o objetivo de tornas as
transações mais rápidas e competitivas, tornando o mercado de câmbio mais acessível.

ISSNe 2595-1602 98
Nessa toada haverá estímulo à redução de estruturas operacionais e jurídicas dos
participantes do mercado de câmbio, com maior eficiência no procedimento das
operações e no envio de informações determinadas pelo Banco Central.
Na prática, tudo isso tem como principal objetivo tornar as transações internacionais
mais simples, o que beneficiará principalmente a atuação do Brasil no comércio exterior.
De forma geral, o novo marco legal do câmbio se mostra como uma alternativa para
melhorar o ambiente de negócios do Brasil, à medida que visa promover o
fortalecimento do real. Para isso, simplificará as transações em moeda estrangeira, desde
as mais simples (como entre pessoas físicas) até as de comércio exterior, facilitando a
inserção de mais empresas nas cadeias globais.
Com mais visibilidade no cenário externo, espera-se maior fluxo de capital estrangeiro
no Brasil, tanto para investimentos no mercado financeiro quanto na própria estrutura
produtiva das empresas.
Outro impacto das novas normas diz respeito aos custos para os usuários. Com novos
players nesse mercado, a expectativa é de que os custos das operações de câmbio sejam
reduzidos ao longo dos anos. Isso sem falar na evolução tecnológica, que agilizará as
transações com outros países, contribuindo também para a maior eficiência do comércio
internacional.
Todos esses pontos levam a crer que o novo marco cambial poderá contribuir
positivamente para o fortalecimento do real frente a outras moedas. No entanto,
especialistas chamam atenção para o fato de que poderá haver desestabilização do
câmbio se esse fluxo financeiro não ocorrer de forma equilibrada.

BIBLIOGRAFIA
ABRÃO, Nelson. Direito bancário. 18a ed. São Paulo: Saraiva, 2018

MISES, Ludwig von. Burocracia/ Ludwig von Mises; tradução de Raul Martins-
Campinas, SP: Vide edit. 2018, p. 20

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988:


(interpretação e crítica)/ Eros Roberto Grau – 19 ed. Atual. – São Paulo: Malheiros,
2018

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FAKE NEWS E LIBERDADE DE EXPRESSÃO: OS DESAFIOS DAS
GARANTIAS CONSTITUCIONAIS NA ERA DA PÓS-VERDADE.

Fábio de Santana Martins dos Santos1

RESUMO

O presente estudo aborda questões atuais acerca da disseminação das fake news, o uso da
liberdade de expressão e a forma com a qual elas têm sido veiculadas, podendo trazer
resultados nocivos e prejudiciais à sociedade contemporânea. Objetiva-se, analisar os efeitos
dessas notícias e suas consequências, a responsabilidade dos cidadãos no tocante a essa
prática levando em conta os aspectos da era da pós-verdade e compreender a aplicabilidade
da liberdade de expressão enquanto uma garantia constitucional tendo em vista a
possibilidade de violações dessa liberdade e a probabilidade de intervenção jurídica por meio
da criação de uma norma específica. Justifica-se o presente por sua discussão séria e atual,
tendo em vista que as notícias falsas podem interferir nas relações sociais gerando graves
consequências. Questionou-se: o que fazer quando o discurso propagado pelas fake News
pode violar direitos? Lastreado na metodologia da pesquisa qualitativa, por meio do método
referencial bibliográfico, exploração de estudo descritivo cujo referencial teórico se ancora
no Código Civil, bem como na Carta Magna e autores como Cunha Jr (2016), Moraes (2016),
Silva (2021), jurisprudências que abordam o assunto, além de artigos científicos, revistas e
notícias de periódicos de grande credibilidade. Em suma, é importante buscar equilíbrio entre
a Liberdade de expressão, a Liberdade individual e o incentivo à veracidade dos fatos
noticiados. Estar consciente dos perigos da desinformação dessas notícias é reafirmar o valor
da verdade dos fatos a fim de que medidas sejam tomadas com o escopo de combater
condutas ilícitas atreladas a esse fenômeno.

Palavras-chave: Fake News; Liberdade de expressão; Pós-verdade; Desinformação.

1 INTRODUÇÃO
A discussão entre Direito e sociedade se dá com a premissa de, sendo o Direito
estático, garantir que sua manifestação somente ocorra quando há a necessidade de
intervenção na sociedade. Em um contexto sociológico, é comum expressar que a sociedade
se modifica e sempre há diversas mudanças no seio social ao longo do tempo. Premissa muito

1
Licenciado em Letras-Inglês, Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Bacharel em Direito – Faculdade
Anísio Teixeira- FAT. Pós-graduado em Ciências Criminais – CERS. Pós-graduando em Direito Penal e
Processo Penal – FACIBA. Oficial de Justiça Avaliador TJBA – Servidor lotado na Comarca de Conceição
do Coité – Ba. binocoite@hotmail.com

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bem utilizada por Bruhl (1998) que aduz em sua concepção que o Direito está presente na
sociedade para interferir nas relações sociais, quando necessário ou provocado, obviamente.
Com isso, não seria diferente no tocante à tecnologia, ao uso da internet e ao acesso
às informações advindas dessa ferramenta, visto que é quase impossível falar de mudanças e
avanços sociais e não mencionar o papel da tecnologia como meio de ajudar no processo de
formação e obtenção de conhecimento de uma sociedade e de seus indivíduos na atualidade.
Daí, surge a discussão acerca de como a informação tem se estruturado e se realmente o
papel da sua propagação tem sido, de fato, um motivador de causas relevantes e de impacto
social.
Denota-se, desse ponto de partida, diante do ocorrido nos últimos anos na sociedade
brasileira, que há a possibilidade de haver um contexto errôneo no uso e disseminação de
informações e notícias, e o modo com o qual estas têm sido veiculadas. Daí, entende-se que
a veiculação de notícias falsas – as fake news - podem exercer um papel que carrega consigo
traços nocivos com graves resultados na sociedade.
Delas se extrai que a liberdade de expressão aparentemente vem sendo usada como
um meio de legitimar o cometimento reiterado de violações de direitos, pautados no contexto
da era da pós verdade. E nesse ínterim, encarrega-se o Direito de exercer seu papel e atuar
no que for pertinente.
Em face do supramencionado, justifica-se o presente artigo por tratar-se, no âmbito
social, de uma discussão séria e atual em que a sociedade brasileira tem vivenciado, precisa-
se, portanto, transpor essa barreira, tendo em vista os dissabores que tal circunstância possa
trazer para a sociedade.
Na esfera jurídica impera a mobilização do Direito acerca do tema com o fito de
buscar meios para identificar o problema que interfere nas relações sociais e o papel do
Direito nessa relação a fim de trazer harmonia jurídica, bem como a justificativa deste
pesquisador que é um modo de discutir para além de um congresso, mas agregar outras falas
e saberes ao que já se discute acerca do tema e a possibilidade de se combater uma conduta
ilícita reiterada pelo uso dos meios de comunicação aqui aventados.
Questionou-se, portanto, o motivo pelo qual, a partir dessa ótica, se utiliza o conceito
constitucional da liberdade de expressão para violar direitos e garantias fundamentais, bem
como legitimar atentados antidemocráticos, política armamentista desenfreada, beligerância
contra grupos específicos e tantos outros problemas causados por notícias falsas veiculadas
na mídia e outros meios de comunicação. E se há a possibilidade de reparação às vítimas e
responsabilizando aos praticantes de tais atos.
No campo das hipóteses entende-se que a prática da disseminação de notícias
reiteradamente falsas pode trazer muitos dissabores a quem dela é vítima podendo, inclusive,
fazer com que muitas pessoas sejam vítimas por conta dessa postura; algo que precisa ser
analisado, com a finalidade de que direitos e garantias fundamentais sejam respeitados e que
nenhum direito dos cidadãos venha a ser violado.
Portanto, objetiva-se com este artigo, analisar o discurso que é propagado pelas Fake
News nas redes sociais, tendo como pressuposto os seus efeitos e consequências no seio
social brasileiro, a responsabilidade civil do cidadão no tocante a essa prática, bem como

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compreender a partir da aplicabilidade da liberdade de expressão como meio equivocado de
poder/fazer o que apraz ao ser social cuja premissa é advinda da era da pós verdade que
aparenta estar presente de modo contundente nas discussões individuais e coletivas nos seres
sociais da atualidade.

2 OBJETO DE ESTUDO

Imprescindível se caracteriza este estudo, tendo em vista que é necessário entender


o fenômeno das notícias falsas e sua nocividade ao disseminar tais notícias por meio da
internet, que pode ter resultados irreversíveis. Como se vê dos meios de comunicação há um
crescimento exponencial e que demanda medidas normativas e punitivas urgentes.

3 REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLÓGICO

A partir do fenômeno em estudo, importa levar em consideração os estudos de


Gustav Le Bon (2018) em sua obra Psicologia das Multidões, como meio de entender a forma
de pensar da modernidade em consonância com o autor supra, vale ressaltar o pensamento
Freudiano no que tange à Psicologia das Massas e as influências sofridas, a acriticidade das
massas e sua impulsividade na disseminação de notícias falsas.
Para tanto buscar aqui, à luz de D´Ancona (2018) o contexto da disseminação das
fake news e o debate no que concerne ao entendimento do que é a Era da Pós-verdade.
Coadunando com o exposto, Silva (2021) com o Irracionalismo da Conveniência, que com
criticidade expõe o modo com o qual a era da pós-verdade e das fake news são evidentemente
veiculadas e o índice de violência que pode ser gerado como resultado desse tipo de atitude
dos seres sociais que delas se apoderam na atualidade.
Além dos autores supra relatados importa ressaltar que Cunha Júnior (2016),
Alexandre de Moraes (2016) que abrangem seus entendimentos acerca da aplicabilidade da
liberdade de expressão sem que direitos sejam violados ou preteridos.
No que tange à metodologia, esta faz jus à pesquisa qualitativa, revisão bibliográfica
, em que cada particularidade do tema será estudado, levando como esteio os aspectos
jurídicos aplicados ao tema, os autores supramencionados, a responsabilidade civil dos
cidadãos em relação a seus atos, a lei de combate a esse fenômeno que está em debate no
congresso e discute a regularização do marco da internet no Brasil e a possibilidade de como
combater as fake news em solo brasileiro, artigos da Constituição Federal relacionado ao tema,
a melhor doutrina, artigos de grande repercussão e afins.
Destarte, a busca não se perfaz tão somente sobre a análise alhures, mas também pela
reflexão trazida pelo que aqui se discute com a primazia de que se investigue o fenômeno
estudado, busque intervenção utilizando a criação e utilização da norma que venha gerir o
caso concreto de modo efetivo e que não tragam prejuízos àqueles que são tutelados pelo
Estado.

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4 ORIGEM DAS FAKE NEWS

Embora a prática de propagar informações falsas não seja algo tão recente, a presente
nomenclatura oriunda do inglês "fake news" teve notoriedade em larga escala e
internacionalmente durante as eleições presidenciais dos Estados Unidos. Nesse ínterim, a
expressão se evidenciou e ganhou mais amplitude pelos meios de comunicação e pela
população que começaram a utilizar tal termo.
O termo "fake news" ou notícia falsa, tem se tornado vastamente conhecido e muito
utilizado na atualidade, no entanto, no que concerne à sua origem, vê-se que foi em 2016.
Um neologismo que, segundo Foster et al (2021), faz alusão a uma desordem informacional
que gera desinformação, informação enganosa, ou informação falsa exibida como sendo
verdadeira e sem qualquer vestígio de questionamento de sua inveracidade.
A disseminação de informações por intermédio das redes sociais e a facilidade ao
compartilhá-las contribuíram para um aumento expressivo do fenômeno das fake news, pois
“agem na subjetividade dos indivíduos, a partir de suas visões de mundo construídas em seus
processos de sociabilidade.” (ALMADA,2021, p. 121)
Os meios digitais foram os meios mais eficientes no que concerne à propagação de
informações enganosas, que em muitas das vezes foram utilizadas com o fim de manipulação
da opinião pública, na perspectiva do viés ideológico, bem como para poder influenciar
eleições, prejudicar a reputação de pessoas e instituições.
Denota-se que a expressão adquiriu uma carga negativa, sendo utilizada para
credibilizar informações notadamente falsas que circulam amplamente e que podem gerar
danos à sociedade. Conforme o entendimento de D’Ancona (2018), existe uma estratégia por
traz dessas mentiras, um planejamento para que verdades sejam ocultadas e traga confusão
para o receptor dessas informações. Para o referido autor é um meio de criar controvérsias
em lugares em que anteriormente não existiam. Um modo de dar o crédito ao que é falso e
inverídico em detrimento do fato e da verdade.
Impera destacar que a palavra "fake news" é um termo que conglomera diferentes tipos
de desinformações e notícias criadas sem qualquer responsabilidade que levaram, inclusive,
muitas pessoas a serem prejudicadas e vítimas de tal comportamento. Seu uso desenfreado
tornou-se tão comum que muitos países, inclusive o Brasil, passaram a discutir maneiras de
combater as Fake News, promovendo o que se chama de alfabetização midiática, por meio
de agências de checagem da verdade, a fim de que se possa promover o pensamento crítico
como meio de lidar e frear tal prática que se difunde a passos largos.
Para Silva (2021), espalhar notícias falsas se evidencia que não há comprometimento
com a verdade ou com a veracidade da informação. Para o referido autor, o que importa é a
forma de impacto que aquela notícia causará e qual o estrago como resultado esperado e suas
consequências. Um meio de justificar uma mentira por meio de um discurso perverso que
gera violência.
Em suma, a palavra "fake news" surgiu para descrever a propagação de informações
falsas, sobretudo no contexto digital e sua origem está ligada ao aumento considerável da

ISSNe 2595-1602 103


presença da internet e das redes sociais na sociedade hodierna; algo que gera uma proporção
maior de velocidade e de alcance na disseminação dessas informações.

4.1 Consequências da disseminação das notícias falsas no Brasil

Tornando-se um fenômeno a cada dia mais comum e bem presente na sociedade


brasileira atual, as notícias falsas permeiam pelos mais diversos cenários, tais como o
sociocultural, pela política, a religião etc. Amparado pelo avanço da tecnologia e o crescente
uso das redes sociais, a disseminação das fake News se tornou além do acesso fácil, a rapidez
com a qual elas se espalham é motivo de preocupação, pois há um impacto
consideravelmente negativo na maneira com a qual se consome tais notícias, visto que esta
afeta a real percepção da realidade.
Dito isso, entende-se do exposto acima que, essas notícias têm como finalidade
influenciar a opinião pública, disseminar desinformação e promover interesses particulares
por meio da manipulação de emoções, visto que, por serem enganosas e imprecisas,
apresentam-se com vestes de verdade, embora não sejam e abrangem uma vasta gama de
assuntos ligados à saúde, política, ciência e afins com o intuito de promover a desinformação
e mudanças de opiniões.
De acordo com o entendimento Freudiano há um sentimento um tanto quanto
primitivo nesse contexto, visto que no que tange à psicologia das massas que as pessoas:
[...]cedem com tanto mais facilidade a esses sentimentos, por que sendo a
massa anônima, e por conseguinte irresponsável, desaparece por completo
o sentimento de responsabilidade que sempre retém os indivíduos.”
(FREUD, 2011, p.20).

O psicanalista deixa claro que há um senso de irresponsabilidade dos cidadãos que


atuam na ampliação dessas notícias pelo fato de que, por se acharem anônimos, no âmbito
da internet, pode ocorrer outro fenômeno concernente a isso: a dificuldade de ser
identificado e, com isso, mais difícil se torna de ser responsabilizado por seus atos. Le Bon
(2018) explica que estando em multidões, ou seja, em maior número, as massas detém mais
poder e tomando consciência disso o indivíduo cederá com mais facilidade aos seus
sentimentos. E ainda acrescenta que “se o organismo humano permitisse a perpetuidade do
furor, poder-se-ia dizer que estado normal da multidão é o furor.” (Le Bon, 2018, p. 41)
Com isso, verifica-se que não existindo meios para mudar tal ótica haverá
consequências infindas, tendo em vista que uma vez lançada uma notícia, esta pode
influenciar em decisões importantes no ramo da política, a exemplo das eleições
presidenciais. A distorção causada pelo impacto dessa informação muda a percepção dos
eleitores e traz danos a um país, que assim como o Brasil, adota como forma de governo, a
democracia. Além do mais, a veiculação dessas notícias notadamente falsas pode agravar
conflitos sociais, o discurso de ódio contra grupos específicos como: LGBTQIAPN+ e

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outras minorias, mulheres e estrangeiros, o aumento do racismo, a polarização, dentre outros
aspectos prejudiciais para uma sociedade democrática.
No que concerne à saúde, pode-se depreender que, ao disseminar tais notícias, vê-se
que muitas pessoas deixaram de se vacinar por conta de tal situação, bem como outras que,
envolvidas nesse contexto sem qualquer senso crítico, adotaram comportamentos em que
passaram a valer-se de métodos de tratamentos sem eficácia comprovada. A exemplo disso
destaca-se: “É melhor ser imunizado pela doença do que pela vacina”; “Imunizante contém
mercúrio, que é perigoso para a saúde.”; “Não é necessário tomar vacina contra doenças que
já foram controladas”. (KATO, 2021)
Exemplos como os supra relatados, ocorrem pelo fato de que as fake News
destorcem a realidade e minam a confiança nas instituições que são sérias e,
consequentemente fragmentam a sociedade. Com isso, comprometem todo processo
daquela informação acessada que é séria, verdadeira e dotada de precisão e confiabilidade.
Ante o explicitado, vê-se que é um desafio a ser enfrentado e que demanda esforço
conjunto de governo e sociedade, instituições das mídias, redes sociais e dos indivíduos.
Todos têm a responsabilidade de implementar soluções viáveis que reduzam tal prática e que
não venham a trazer tantas mazelas por meio da educação digital, algo essencial tanto para
que sejam questionadas as informações de cunho duvidoso com o fito de se prezar pelo
desenvolvimento crítico do cidadão.

4.2 Efeitos jurídicos e a Responsabilidade Civil na disseminação de fake News

A crescente preocupação que o Brasil tem vivido nos últimos anos no que tange às
notícias falsas não é em vão, uma vez que tal conduta resulta em impactos sociais. Por esta
razão, imprescinde refletir acerca dos efeitos jurídicos que também podem acarretar. Nesse
aspecto é imperioso destacar como o Direito tem atuado na responsabilização do indivíduo
que propaga notícias notadamente falsas, primordialmente quando se configuram os danos
causados às vítimas. Importa, portanto, explorar os efeitos jurídicos de tais notícias no Brasil
à luz do Direito Civil, com base na responsabilidade civil e quais os caminhos a serem
percorridos a partir dessa perspectiva do Direito e suas relações de intervenção na sociedade.
O Código Civil, no Art. 186, aduz que “Aquele que, por ação ou omissão voluntária,
negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente
moral, comete ato ilícito”. (Brasil, 2002,).
Ao tratar do referido tema é de suma relevância mencionar o que diz Carlos Roberto
Gonçalves quando ele afirma que “a obrigação de indenizar decorre, pois, da existência da
violação de direito e do dano, concomitantemente”. (Gonçalves, 2022, p. 65). Aquele que
divulga ou dissemina notícia falsa, a partir do pensamento do referido civilista não deixa
dúvidas de que há a possibilidade de indenizar quem dela foi vítima. Em outras palavras fica
clarividente que quem disseminar tais notícias, pode ser responsabilizado por seus atos. Vale
ressaltar que além do aspecto apresentado no contexto cível – objeto desse estudo - também
há a correlação com o Direito Penal e com o Direito Eleitoral.

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Por violar um bem jurídico a conduta de espalhar notícias falsas pode permear pela
esfera penal e cível, visto que na esfera cível, viola-se o interesse privado e por isso necessita-
se de reparação ao dano. Por isso entende-se que “[...] o direito civil é menos rigoroso, parte
de pressupostos diversos, pois a culpa, mesmo levíssima, induz à responsabilidade e ao dever
de indenizar”. (FARIAS et al., 2020, p. 157).
O exposto acima coaduna com o entendimento de que “A responsabilidade tem por
elemento nuclear uma conduta voluntária violadora de um dever jurídico, toma-se, então,
possível dividi-la em diferentes espécies, dependendo de onde provém esse dever e o
elemento subjetivo”. (CAVALIERI, 2012, p.15).
Com tantos acontecimentos referentes à conduta mencionada acima, debates
importantes foram levantados acerca de como combater tais atos nos moldes legai. Algo que
será analisado a seguir.

4.3 Aspectos legais na regulamentação do combate às notícias falsas

“Essa mobilidade das multidões se torna muito difícil de governar,


sobretudo quando uma parte dos poderes públicos caiu em suas mãos. Se
as necessidades da vida cotidiana não constituíssem uma espécie de
regulador invisível dos acontecimentos, as democracias não poderiam
subsistir.” (LE BON, 2008, p. 41)

Ao iniciar um capítulo tão importante citando Gustave Le Bon é justamente por sua
imprescindibilidade para a psicologia social. Ocorre que, pelo aumento exponencial da
disseminação das notícias falsas há a possibilidade de tal fenômeno se tornar difícil de
combater. Não obstante o uso da liberdade de expressão, algo que será discutido a posteriori,
para além disso, discutir, além da responsabilidade outrora mencionada, como a Lei, no seu
contexto mais específico de combate às notícias falsas, tem se comportado diante da situação.
Na citação alhures fica evidente que se não houver um posicionamento por parte
das autoridades há a possibilidade, inclusive, conforme Le Bon (2018) menciona de
democracias ruírem pelo poder das massas. Por essa razão, existe a necessidade de
desenvolver marcos legais e regulatórios adequados à situação vigente que tem sido abordada
para combater a desinformação e que promova transparência das plataformas nas redes
sociais. Uma parceria imprescindível no fortalecimento da democracia que juntem esforços
com o fim de desacelerar e combater a proliferação das notícias falsas.
Em virtude dos constantes debates tanto no âmbito acadêmico como sociopolítico
o Projeto de Lei (PL) nº 2630/2020 tem como ementa:

“Estabelece normas relativas à transparência de redes sociais e de serviços


de mensagens privadas, sobretudo no tocante à responsabilidade dos
provedores pelo combate à desinformação e pelo aumento da

ISSNe 2595-1602 106


transparência na internet, à transparência em relação a conteúdos
patrocinados e à atuação do poder público, bem como estabelece sanções
para o descumprimento da lei. (Senado Federal, 2023)

Conforme o citado anteriormente, entende-se da referida ementa, a importância da


regulamentação daquilo que é disseminado e o destaque que é dado às notícias falsas, embora
seja muito importante que, ao levar em conta os aspectos da criação de uma lei, não sejam
retirados ou violados direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, tai como sua liberdade
de se expressar, o seu direito à privacidade, estando nos limites das suas responsabilidades
nas plataformas digitais.
Impera ressaltar os motivos pelos quais se discute a Proposta de Lei em comento
criada pelo Senador Alessandro Vieira, visto que tal condução se dá em detrimento do
potencial danoso que as fake News podem gerar na sociedade. Isso se dá, pelo fato de que,
segundo Silva (2021) a falsificação de histórias por meio das fake News é uma reprodução
da farsa do cotidiano.
De acordo com o referido autor “essas mensagens perduram num tempo efêmero e
se desmancham no ar, após causar alguns estragos, emocionais, políticos e financeiros”
(SILVA, 2021, p. 145). Dito isto, entender a necessidade da regulamentação e da criação de
uma lei que esteja intimamente ligada ao combate de tais circunstâncias é prementemente
válido, afinal a não manifestação legal nesse contexto fraudulento é manter a possibilidade
de gerar impactos irrefreáveis e ainda maiores na sociedade.
A busca pela aplicabilidade da lei nesse quesito é uma forma, no pensar deste
pesquisador, de estabelecer mecanismos sérios de combate e que moderem o que está sendo
veiculado, sem retirar garantias constitucionais. Contudo, depreende-se que estar em uma
sociedade complexa sempre existirá desafios a serem contornados. “É perceptível que os
governos de diversas nações, incluindo o Brasil diante das instabilidades atuais e vindouras,
estão optando por tomar ações preventivas/repressivas para o combate às fake news”.
(ALMADA, 2021, p. 124)
De acordo com a Agência Senado (2023) e os representantes ligados aos diversos
setores da economia, telecomunicações e portais de notícias no Brasil, “apontaram o combate
às fake news como um dos principais desafios da imprensa e da democracia.”
É de suma importância a clareza da Lei na identificação e combate dos aspectos
desenfreados das fake news, tendo em vista que a aplicação da lei criada é um meio de,
devidamente, suprimir conteúdos ilegítimos e culpabilizar a quem se deve. Esta é uma forma
precisa de distinguir o que é verídico e intencionalmente legítimo em detrimento do que é
impreciso, tendencioso e inverossímil. É utilizar os meios certos para tentar frear a
disseminação de uma prática que tem se reiterado e crescido exponencialmente Brasil afora.

“[...] a repressão do excesso não é incompatível com a democracia. A


garantia de não censura prévia não significa a impossibilidade de controle
e responsabilização a posteriori contra condutas não protegidas jurídico-

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constitucionalmente, que, na verdade se contrapõem à liberdade de
expressão e à vulnerabilidade da honra.” (BRASIL,2020)

No tocante ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) exposto acima,


um ponto importante é a responsabilidade das plataformas digitais e os critérios que serão
utilizados para determinar quais conteúdos devem ser removidos e sinalizados como falsos.
Por conta dessa necessidade de transparência e de não ultrapassar os limites que sejam
moderados, razoáveis e ponderados e que resultem em censura prévia, tendo em vista que a
legislação brasileira não admite tal proceder, mas entende-se necessário a repressão daquilo
que é excessivo.
Dito isto, embasado no exposto pela Câmara Legislativa do Senado (2020), o projeto
que já foi aprovado, visa, como meio limitador de muitas dessas práticas delituosas, a
identificação das contas e seus usuários por meio de RG e confirmação de identificação;
proibição de contas falsas e uso de robôs, publicidade de conteúdos com identificação da
conta do responsável, tudo com a máxima transparência, a fim de criar um ambiente seguro
e saudável para os usuários.
Destarte, por mais que haja as mais diversas intencionalidades nos resultados da
divulgação de notícias falsas, há a necessidade de uma legislação que lide com tais questões
que são preocupantes. A busca pelo equilíbrio entre a proteção dos indivíduos e instituições
contra a desinformação e a manutenção de direitos e a garantia da liberdade de expressão é
imprescindível. É uma modelagem de um ambiente que preze pelo diálogo eficaz e que
coopere com o enfrentamento desses desafios da atualidade. Afinal, a democracia precisa se
manter viva!

5 LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A LIVRE MANIFESTAÇÃO DO


PENSAMENTO

Conforme já dito outrora, na contemporaneidade é muito comum o uso da


tecnologia para a obtenção do conhecimento e com isso, as pessoas tendem a ter ainda mais
acesso a informações. Mas há um contraponto, visto que o crescimento em larga escala de
problemas advindos desse acesso se dá, pelo fato de que muitas pessoas são expostas a
diversas narrativas distorcidas, prejudiciais e eivadas de desinformação.
É o caso do uso do termo liberdade de expressão que nos tempos da internet trouxe
uma revolução digital que reverbera na sociedade. As pessoas têm facilidade de expor seus
pensamentos, suas opiniões e tem as mais diferentes formas de se comunicar e de se
expressar por conta dessa revolução que a era digital proporciona. Mas com isso, vêm
diversos imbróglios que ultrapassam os limites geográficos em que esses indivíduos estão
inseridos e ganham dimensão inimaginável.
Ter a possibilidade de usar a liberdade de expressão é garantir o direito constitucional
de falar, se expressar, dar opinião acerca de assuntos diversificados sem ser censurado ou ter
o Estado tolhendo sua voz. Mas ao conceituar liberdade de expressão tem que ter como

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pressuposto o que está definido na Carta Magna em seu artigo 5º, inciso IV: “É livre a
manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.”
O próprio Superior Tribunal de Justiça aduz que “o direito de expressão consiste na
liberdade básica de expressar os pensamentos, ideias, opiniões, crenças[...]” (BRASIL, 2020),
enfatiza ainda o referido Tribunal que as pessoas têm o poder de se manifestar contra ou a
favor de uma ideia, afinal essa é uma forma legítima de participação dos cidadãos partícipes
de uma democracia institucionalizada.
Fica evidente que, numa sociedade democrática como a nossa, por se tratar de um
direito e uma garantia fundamental, todo cidadão tem, e deve ter, acesso a essa garantia. No
entanto, enquanto dever constitucional individual e coletivo, há limites que não podem ser
ultrapassados. O próprio inciso IV aduz isso quando diz que “é vedado o anonimato.”
Mais adiante, ainda no artigo constitucional é garantida a liberdade de expressão
através de atividades intelectuais, artísticas, cientifica e de comunicação independente de
censura ou licença. E esse é um dos desafios dos dias atuais: a liberdade de expressão não
pode ser palco para propagação desenfreada de notícias falsas e prejudiciais à sociedade.

“A Constituição Federal não protege as informações levianamente não


verificadas ou astuciosas e propositalmente errôneas, transmitidas com
total desrespeito à verdade, pois as liberdades públicas não podem prestar-
se à tutela de condutas ilícitas. (MORAES, 2016, p. 889)

Por mais que nos seja garantido esse direito, Moraes (2016) enfatiza que ter liberdade
para se expressar não é premissa para certificar que condutas ilícitas devam ser reiteradas.
Fica claro e veemente que ao agir de modo errôneo com desrespeito à dignidade do outro
não é uma garantia constitucional. Nenhum discurso que contrapões o inciso IV e IX no
artigo 5º da Constituição Federal tem amparo jurídico.
Em consonância com o exposto o STJ afirma que o fato de se ter liberdade de
expressão, principalmente em um ambiente democrático é diferente de se veicular conteúdos
notadamente falsos e que coadunam com alteração da verdade factual. Na verdade, para o
referido tribunal, essa é uma maneira de se alcançar uma finalidade criminosa incondizente
com a verdade.,
Não é proibido publicar nenhum conteúdo, até porque as leis brasileiras não admitem
censura prévia. Mas admite a proibição posterior como bem explana Moraes (2026) no texto
citado anteriormente. “Apesar da vedação constitucional da censura prévia, há a possibilidade
de compatibilizar a comunicação social com os demais preceitos constitucionais [...]”
(MORAES, 2016, p. 887).
Mas o que o autor supra quer intensificar é o fato de que ao desproteger um cidadão
e violar seus direitos, trazendo com isso situação vexatória e humilhante, retira-se desse
indivíduo, aspectos importantes de sua dignidade enquanto ser social isso garante, inclusive
o dever de indenizar.

ISSNe 2595-1602 109


“[...]4.Quando, a pretexto de se expressar o pensamento, invadem-se os direitos da
personalidade, com lesão à dignidade de outrem, revela-se o exercício de um direito em
desconformidade com o ordenamento jurídico[...]” (BRASIL,2020). Ao analisar o exposto
acima, vê-se que, a partir do momento que alguém é vulnerabilizado, sua vida está em risco
e essa pessoa é exposta a condições de desumanidade, evidencia-se que não é liberdade de
expressão. É uma conduta delituosa que viola e agride o direito do outro de ser quem é.
Ao consagrar a liberdade de expressão como um direito fundamental, a CF/88
reconhece a importância desse fator no crescimento de uma sociedade diversa, inclusiva e
democrática. Mas é necessário que fique entendido que esta mesma liberdade não é absoluta
e precisa seguir o seu exercício nos moldes dos limites estabelecidos pela Constituição
Federal. Não se deve ter em mente a confusão entre liberdade de expressão e legitimação de
impunidade. Exercer um direito tão importante para a sociedade não é premissa para violar
o direito dos demais.

5 A ACRITICIDADE, A REJEIÇÃO DO CIENTÍFICO E A ERA DA PÓS


VERDADE

É comum na era da modernidade que a nossa sociedade esteja cercada por uma gama
de informação e conhecimento propiciada pelo acesso rápido e amplo que a internet,
enquanto tecnologia da informação e comunicação proporciona. Mas o que esperar de todo
esse aparato de informações fáceis, rápidas e imediatas na relação das pessoas em sociedade?
Pode-se esperar um fenômeno que tem crescido e se destacado nas últimas décadas, com o
advento das redes sociais: pós-verdade (post truth).
Almada (2021) afirma que o imediatismo é uma característica comum nos tempos
atuais e a velocidade com a qual chegam essas informações, visto que em minutos uma pessoa
pode lançar uma notícia aqui no brasil e chegar a diversos locais distantes do país de origem
em que tal texto ou imagem fora enviada.
O supramencionado autor ainda aduz que isso se faz pelo poder dos avanços
científicos e tecnológicos que se demonstra na utilização de smartfone, tablet ou outro meio
comunicador semelhante aos exemplificados, pois isso é suficiente “para ter acesso a bancos
ou serviços públicos, usar um streaming para ouvir músicas e ver vídeos ou navegar nas
famosas redes sociais, como Facebook, Twitter ou Instagram (ALMADA, 2021, p. 120).
De acordo com o explicitado acima, entende-se que além dos já mencionados,
existem diversos outros meios de obtenção de informação produzidas pelo ambiente virtual;
o que proporciona às pessoas uma quantidade enorme e surpreendente de informação. Com
isso, Almada (2021) relaciona essa quantidade exacerbada de informação com os aspectos
dos individualismos dos sujeitos consumidores dessas informações, para ele, fica claro que
existem seus anseios e subjetividades que não podem ser descartados.
Isso se dá, conforme o ainda mencionado autor, que como meio de satisfazer as
individualidades de terceiros, sem se importar com a responsabilidade do que é veiculado,

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sem levar em conta se aquela notícia é verdade ou não, “nasceu assim, a pós-verdade”.
(ALMADA, 2021, p. 120).
A pós-verdade é esse fenômeno inicialmente falado que se caracteriza pelo
predomínio de emoções, se vincula a crenças pessoas, religiosas, cria narrativas acerca de
fatos, ideias, ideologias, evidências objetivas e desafia a noção tradicional da verdade de algo
baseado em evidências irrefutáveis e de fatos comprovados e abre espaço para que haja
questionamentos, pois manipula a verdade tradicional e dissemina, ambientada nas notícias
falsas, a disseminação do contexto da desinformação.
Para coadunar com o exposto importa ressaltar o que D’Ancona (2018) pensa acerca
da pós verdade, tendo em vista que:

“[...] essa é a característica que define a pós-verdade. A questão não é


determinar a verdade por meio de um processo de avaliação racional e
conclusiva. [...] Também seleciona sua mentira, de modo não menos
arbitrário”. (D’Ancona, 2018, p. 57).

No contexto de uso das fake News aliado às características da pós-verdade houve a


ascensão do negacionismo. Consoante mencionado anteriormente, denota-se que a
enxurrada de informações imediatas, sem tempo ou desinteresse dos indivíduos pela busca
de refletir se aquela notícia é, de fato, verdade, gerou um mar de convicções, conforme o
próprio (Almada, 2018) menciona que cresceu a convicção das pessoas de que não se deve
crer na ciência, não está andando em favor da humanidade. Não importa a verdade da notícia,
mas a repercussão que ela causa. “Tudo o que importa é que as histórias pareçam verdadeiras,
que elas repercutam.” (D’Ancona, 2018, p. 56)
Com esse tipo de informação recheada de equívocos, tendo em vista que o viés da
logicidade e até mesmo da razoabilidade foram deixados em segundo plano, aumentou assim,
como consequência, manifestações contrárias a campanhas de vacinação de suma
importância, assim como a BBC News que alertou a população para o uso de remédios sem
comprovação científica, dentre outras diversas manifestações.
As pessoas passaram a dar opiniões sem embasamento científico plausível e
convincente. A sua visão e ideologias eram suficientes para construir uma verdade. Não
importa se o fato é incontroverso. Não há checagem se a informação é verdadeira, pois a
mentira com vestes de opinião é lançada como sendo verdade; o que importa são os seus
resultados e o impacto causado por essa inverdade é a primazia.
Segundo, Silva (2021) existe um jogo de encenação nesse processo de sociabilidade e
há consequências no que tange à falta de veracidade da informação, para o autor, “[...] nesse
jogo da pós-verdade o que não importa não é a verdade ou o contexto da veracidade da
informação, mas o impacto e consequentemente o estrago que é proposto pela informação
falsa[...].” (SILVA, 2021, p. 197).
Um outro fator preponderante enquanto consequência é o enfraquecimento de
instituições e da própria democracia. A perspectiva de credibilizar crenças e situações

ISSNe 2595-1602 111


emocionais leva os seres sociais a não considerar a veracidade dos fatos. Em outras palavras,
importa dizer que essas pessoas adotam a acriticidade, ou seja, a não capacidade de criticar
ou discernir esses eventos, como papel moldador de uma realidade social. Algo severamente
criticado por Lippmann (2021) quando ele afirma acerca da importância de se analisar uma
opinião. Para o autor em comento, não analisar o que se fala, o que se lê, resulta-se na
dificuldade de suspeitar de uma das ideias lançadas e teríamos problemas na prevenção de
uma possível manipulação.
Percebe-se que essa relativização da verdade é incorporada à situação
comportamental moderna dos indivíduos adeptos da pós-verdade e isso é um perigo, pois
em conformidade com o pensamento de D’Ancona (2018) se a verdade, enquanto valor
social vier a ruir e desabar, práticas sociais que são amparadas por essa verdade ficam em
perigo.
Ao analisarmos a sociedade brasileira atual pode-se notar diversos exemplos do
impacto da pós verdade; o que gerou muitos debates, uma vez que narrativas polarizadas
ganharam força, o espaço político com o enorme avanço do fenômeno das fake News e a
tratativa de obtenção de domínio e poder relacionada a essa questão e a forma com a qual
isso foi conduzido. Vê-se que a opinião pessoal, sem fundamentação ou amparo científico, e
as narrativas de cunho emocional, conforme destacado por Silva (2018), tiveram papel
preponderante na tentativa de prevalecer e vencer os dados científicos de evidência
comprovados.
Com isso, entende-se a importância de fortalecer a educação e a alfabetização
midiática, buscar capacitação dos cidadãos na tentativa de distinguir informações confiáveis
daquelas que são inverídicas. Importa que haja transparência e responsabilidade dos meios
de comunicação e das redes sociais, com o fim de incentivar a veracidade dos fatos com
informações concisas e precisas.
Destarte, entende-se que a era da pós-verdade apresenta um caminho de desafios
significativos para a sociedade e para a democracia brasileira. Disseminar notícias e
informações falsas, manipulá-las e fazer com que se prevaleça as narrativas baseadas em
crenças e nas emoções comprometem a busca real pela verdade e resulta em prejuízos na
tomada de decisões informadas e sérias.
Contudo, não obstante os problemas e desafios a serem enfrentados, é possível
combater esse fenômeno por meio da educação. Transparência e responsabilidade são
instrumentos irrefutáveis para se valorizar o pensamento crítico que vise obter a primazia da
verdade. Esse é o caminho, ainda que árduo e cheio de intempéries, que se deve pavimentar
para a construção de uma sociedade consciente e capaz de enfrentar tais desafios e os
problemas causados pelas fake News e a era da pós-verdade.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, foi explorado o complexo e controverso cenário das fake news, a
liberdade de expressão e o surgimento da pós-verdade. Ao longo do referido estudo, foi

ISSNe 2595-1602 112


possível compreender as implicações, os desafios e consequências que esses fenômenos
representam para a sociedade contemporânea.
As notícias falsas ou fake news são um fenômeno alarmante que tem o potencial de
prejudicar a nossa democracia e minar a confiança pública. Ao disseminar de informações
falsas deliberadas cria-se um ambiente de desinformação, confusão e divisão na sociedade. É
essencial, portanto, atenção e desenvolvimento de estratégias eficazes para combater tais
notícias falsas, promovendo a educação digital, a verificação de fontes e responsabilizando
aqueles que têm suas condutas pautadas na ilegalidade.
Para tanto, vê-se quão importante é reconhecer que a liberdade de expressão
desempenha um papel crucial na sociedade democrática. É um direito fundamental que
permite a livre circulação de ideias, opiniões e informações, mas que não pode ser
comprometida por conta das fake news. Ao invés disso, é preciso buscar um equilíbrio entre
esta liberdade e a responsabilidade individual, incentivando a transparência e a ética na
divulgação de informações.
Além disso, restou identificado que a ascensão da pós-verdade adiciona uma camada
adicional de complexidade ao debate. Por se viver em uma era em que os fatos são muitas
vezes eclipsados pela emoção e pela narrativa a era da pós-verdade coloca em xeque a
objetividade dos fatos e enfatiza a importância das percepções subjetivas. Como sociedade,
devemos buscar maneiras de promover um discurso informado e baseado em evidências,
reafirmando a importância dos fatos e a busca pela verdade objetiva.
Em conclusão, o fenômeno da disseminação de notícias falsas, a liberdade de
expressão e a pós-verdade representam desafios significativos para a sociedade
contemporânea. É fundamental à população, deixando-a consciente dos perigos das fake news
e tomar medidas para combatê-las, ao mesmo tempo em que deve ser preservada a liberdade
de expressão como um valor fundamental. Promover a educação digital, a responsabilidade
individual e o acesso a fontes confiáveis de informação é o caminho viável para navegar nesse
ambiente complexo para se construir uma sociedade democrática e informada, que se baseia
em fatos, transparência e diálogo honesto.

REFERÊNCIAS

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ISSNe 2595-1602 114


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Jornal do Senado. Senado Federal, 2023. Disponível em: 15 jun. 2023. disponível em: PL
2630/2020 - Senado Federal. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-
/materia/141944#:~:text=Estabelece%20normas%20relativas%20%C3%A0%20transpar
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SILVA, S. L. P. de. A nova guerra contra fatos em tempos de fake news. 1. ed. Faro
Editorial, pg. 175-196, 2018.

ISSNe 2595-1602 115


1

O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA E A REVELÂNCIA DA


FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Evelyn Moreira Mota1

RESUMO
O presente artigo tem por finalidade discorrer acerca da filiação socioafetiva, abordando seus
fundamentos constitucionais com a promulgação da Constituição Federal de 1988, bem
como o relevante papel que a multiparentalidade desempenha nos vínculos sociais ao atender
os princípios da função social da família e primazia dos interesses da criança e do adolescente,
estabelecendo vínculos pautados no afeto com igual relevância, obrigações e deveres à
filiação biológica. Desse modo, o trabalho parte das seguintes indagações: Qual é a relevância
da filiação socioafetiva no ordenamento jurídico brasileiro? O ordenamento jurídico
brasileiroreconhece a filiação socioafetiva e a multiparentalidade? É possível a coexistência
da filiação biológica e socioafetiva? Para responder esses questionamentos, assim como
alcançar os objetivos estabelecidos, a metodologia selecionada trata-se da pesquisa
qualitativa, com objetivo descritivo e exploratório, tendo como abordagem o estudo
bibliográfico. As principais fontes utilizadas são artigos, livros, doutrina e jurisprudência. Os
resultados obtidosdemonstram que na atualidade existem variados modelos de famílias na
sociedade brasileira, sendo a família construída a partir dos laços afetivos e da convivência
contínua, um modelode família reconhecido perante o ordenamento jurídico. Além disso,
os direitos, as garantias e deveres são assegurados as famílias multiparentais e socioafetivas,
não existindo hierarquias, tampouco discriminação por parte do âmbito jurídico diante desses
modelos de famílias.

Palavras-chave: Direito de Família; Função social; Filiação socioafetiva; Filiação biológica;


Multiparentalidade.

ABSTRACT

The purpose of this article is to discuss socio-affective affiliation, addressing its


constitutional foundations with the enactment of the Federal Constitution of 1988,
as well as the relevant role that multi-parenting plays in social bonds by meeting the
principles of the social function of the family and the primacy of the interests of the
child and adolescent, establishing bonds based on affection with equal relevance,
obligations and duties to biological filiation. Thus, the work starts from the following

1
Advogada, graduada em Direito pelo Centro Universitário Católica de Quixadá – UNICATÓLICA,
graduada em Administração, e-mail: evelynmadvocacia@gmail.com

ISSNe 2595-1602 116


2

questions: What is the relevance of socio-affective affiliation in the Brazilian legal


system? Does the Brazilian legal system recognize socio- affective affiliation and
multiparentality? Is the coexistence of biological and socio-affective affiliation
possible? To answer these questions, as well as achieve the established objectives, the
selected methodology is about qualitative research, with a descriptive and exploratory
objective, having as an approach the bibliographical study. The main sources used are
articles, books, doctrine and jurisprudence. The results show that currently there are
different models of families in Brazilian society, with the family being built from
affective ties and continuous coexistence, a family model recognized by the legal
system. In addition, rights, guarantees and duties are ensured for multiparental and
socio-affective families, with no hierarchies or discrimination on the part of the legal
sphere in the face of these family models.

Keywords: Family Law; Social role; Socio-affective affiliation; Biological affiliation;


Multiparentality.

1 INTRODUÇÃO
A promulgação da Constituição da República de 1988 significa mudança de
paradigma das relações familiares, visto que, até então eram reconhecidos como filhos
somente aqueles dentro do casamento, ficando desamparadas do ordenamento jurídico
aqueles cujas relações foram constituídas pelo tempo com envolvimento de afeto e zelo, em
especial, aquelas que existem no contexto de novas configurações familiares.
Contudo, uma vez presente os elementos constituintes do que se denomina como
filiação socioafetiva, estes filhos passaram a ocupar status como tal, sendo detentores de
direitos e deveres tais como filhos biológicos. Os elementos primordiais são a conivência
continua, o afeto solidificado dia a dia, como relações de cuidado, amor, proteção e efetiva
participa da vida do filho em todos os aspectos.
Com o reconhecimento da filiação socioafetiva e a multiparentalidade no
ordenamento jurídico, é possível visualizar-se grandes modificações na sociedade, sobretudo,
nos lares desses pais e filhos, corroborando com os preceitos constitucionais instituídos pelos
princípios da dignidade da pessoa humana, uma vez que, a função social da família na
sociedade tem se cumprindo ao atender o melhor interesse da criança e do adolescente.
Nesse ínterim, o objetivo do presente trabalho trata-se de demonstrar com julgados
como a filiação socioafetiva possui a mesma relevância e direitos tais como a filiação
biológica, sendo possível a coexistência de ambas as filiações em razão do convivo contínuo,
além disso, o artigo busca apontar que a filiação socioafetiva pode se sobrepor à biológica,
bem como propõe refletir acerca da importância de tal instituto na função social da família.
O método utilizado para a elaboração deste trabalho consiste na pesquisa qualitativa,
com objetivo descritivo e exploratório, mediante a realização do estudo bibliográfico. Sendo
utilizadas como principais fontes para o arcabouço teórico: livros, artigos, legislações,

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3

doutrina e jurisprudência.
Para alcançar os objetivos elencados acima, discorrer-se-á inicialmente sobre a
evolução do conceito de família no ordenamento jurídico brasileiro e o status de soberania
dos princípios constitucionais da CF/88. Ademais, aborda-se o instituto da filiação
socioafetiva nocenário nacional tendo como base questões como definição, aplicabilidade,
requisitos para suaconstituição, assim como os efeitos jurídicos decorrentes.
Por fim, serão contempladas questões oportunas como a coexistência da filiação
socioafetiva e a biológica em perspectiva com o princípio da função social da família, com
apresentação de julgados e como a jurisprudência tem se portado frente a existência
concomitante dos dois institutos.

2 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA NO ORDENAMENTO


JURÍDICOBRASILEIRO E A FUNÇÃO SOCIAL

O Direito de Família brasileiro e a acepção jurídica de entidade familiar passa no


período compreendido entre 1916 e 1988, por um imensurável processo de transformação.
Inicialmente, a família era compreendida como o agrupamento de pessoas com a mesma
origem biológica a qual pautava-se no casamento. Na legislação, especificamente, na
Constituição de 1916 a família era tida como hierarquizada, patriarcal, onde garantia-se a
proteção somente à família legítima, entendida como aquela havida dentro do matrimônio.
Contudo, com o decorrer dos anos, com as mudanças sociais decorrentes dos
processosde industrialização crescentes e as inúmeras formas de relacionar-se em sociedade,
considerar tão somente o laço sanguíneo não era/é suficiente para determinar um vínculo
familiar. Com as transformações ocorridas no seio social, o afeto passa a ser a base na qual
constituía e constitui as relações contemporâneas. Constata-se que os afetos são criados e
decorrem para além do vínculo consanguíneo/biológico.
Para Maria Helena Diniz 2(2010, p. 9) a família é formada por todos os indivíduos
que estiverem ligados pelo vínculo da consanguinidade ou da afinidade, chegando a incluir
“estranhos”, com a entrada dos cônjuges e seus parentes, que se agregam à entidade familiar
pelo casamento ou união estável.
Tal mudança da construção familiar na sociedade é substanciada com advento da
Constituição Federal de 1988, onde torna-se possível verificar definições, que consagram
proteção a família contemporânea, constituída pelo matrimônio ou não, com ampla a
pluralidade, a igualdade e afeto efetivados no ordenamento brasileiro. Em seu art. 226, a
Carta Magna3 assegura a proteção estatal da pessoa humana e o desenvolvimento de sua
personalidade.

2
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 6 ed. ver., atual e ampl. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2010.
3
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF:
Presidente da República, [2016].

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4

Buscando a realização pessoal, o ordenamento foi posto em segundo


plano e os sujeitos se impuseram como prioridade. Formaram-se novas
famílias, marginais e excluídas do mundo jurídico, mas ainda assim se
formaram. A verdade social não se ateve à verdade jurídica e os fatos
afrontaram e transformaram o Direito4

Seguindo nessa linha de raciocínio, Tepedino (1997, p. 197) leciona que:

A regulamentação legal da família voltava-se, anteriormente, para a


máxima proteção da paz doméstica, considerando-se a família fundada no
casamento como um bem em si mesmo, enaltecida como instituição
essencial. Hoje, ao revés, não se pode ter dúvida quanto à funcionalização
da família para o desenvolvimento da personalidade de seus membros,
devendo acomunidade5

Com a promulgação do texto constitucional de 1988, observa-se também


intervenções nas relações de direito privado vez que foi estabelecido por meio dos princípios
constitucionais critérios de interpretação de cada uma das leis especiais tais como a própria
organização familiar, delineou porquanto. Sob esse prisma, José Sebastião de Oliveira (2002,
p. 273) elenca alguns dos princípios:

Proteção de todas as espécies de família (art. 226, caput); reconhecimento


expresso de outras formas de constituição familiar ao lado do casamento,
como as uniões estáveis e as famílias monoparentais (art. 226, §§ 3º e 4º);
igualdade entre os cônjuges (art. 5º, caput, I, e art. 226, §5º); dissolubilidade
do vínculo conjugal e do matrimônio (art. 226, § 6º); dignidade da pessoa
humana e paternidade responsável (art. 226, § 5º); assistência do Estado a
todas as espécies de família (art. 226, § 8º); dever de a família, a sociedade
e o Estado garantirem à criança e ao adolescente direitos inerentes à sua
personalidade (art. 227, §§ 1º, 2º, 4º, 5º, 7º); igualdade entre os filhos
havidos ou não do casamento, ou por adoção (art. 227, § 6º); respeito
recíproco entre pais e filhos; enquanto menores é dever daqueles assisti-
los, criá-los e educá-los, e destes o de ampararem os pais na velhice,

4
CARBONERA, Silvana Maria. O Papel Jurídico do Afeto nas Relações de Família. In: FACHIN, Luiz
Edson. (coord.). Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de
Janeiro : Renovar, 1998, p. 281.
5
TEPEDINO, Gustavo. A Disciplina Civil-Constitucional das Relações Familiares. In: BARRETO,
Vicente (org.). COMMAILLE, Jacques et al. A Nova Família: Problemas e Perspectivas. Rio de Janeiro :
Renovar, 1997, p. 56 apud BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Novos Contornos do Direito de Filiação: a
Dimensão Afetiva das Relações Parentais. Revista da AJURIS, Porto Alegre : Associação dos Juízes do
Rio Grande do Sul, v. 26, n. 78, p. 197-250, jun. 2000.

ISSNe 2595-1602 119


5

carência ou enfermidade (art. 229); dever da família, sociedade e Estado,


em conjunto, ampararem as pessoas idosas, velando para que tenham uma
velhice digna e integrada à comunidade (art. 230, CF)6.

Por conseguinte, os princípios constitucionais são a base do ordenamento jurídico


brasileiro e cumprem papel de orientar e iluminar a interpretação de todas as outras normas
jurídicas em geral. Bonavides (2001, p. 229) afirma a generalidade e força normativa dos
princípios: “Princípios são verdades objetivas, nem sempre pertencentes ao mundo do ser,
senão do dever-se, na qualidade de normas jurídicas, dotadas de vigência, validez e
obrigatoriedade”.
Em paralelo, Reale (2006, p. 303)7 salienta que se trata de:

[...] verdades fundantes de um sistema de conhecimento, como tais


admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas
tambémpor motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como
pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da práxis.

Dos princípios constitucionais há de ser ressaltado o princípio dignidade da pessoa


humana e da paternidade responsável inserido no art. 226, § 5º da CF/88, dos quais subtrai-
sea função social da família, cuja função precípua é a proteção da vida familiar, bem como
da socialização de seus membros, provendo-os de afeto e de segurança, modificando
paradigmas postos anteriormente na qual os membros familiares, sobretudo, os filhos, eram
tidos como propriedades de seus genitores. Ademais, o seio familiar, conforme determinação
da Carta Magna deve fornecer o desenvolvimento da personalidade dos seus integrantes,
além de viabilizar a formação e socialização do indivíduo.
Conforme Leonardo Barreto Alves (2007, p. 3) “o grupo familiar tem sua função
social e é determinado por necessidades sociais. De modo que a organização familiar muda
no decorrer da história, é alterada em função das mudanças sociais”, razão pela qual que
atualmente existem inúmeras configurações familiares pautadas pelo afeto e desejo de
estarem juntas, proporcionado proteção, cuidado e zelo, assumindo a função de proteção da
criança, visualiza-se tal concepção no artigo 1.593 do Código Civil, quando dispõe que “o
parentesco é natural ou civil8” (BRASIL, 2002).
Dentre as inúmeras configurações familiares atualmente existentes, destaca-se a
família monoparental, quando é constituída somente por um de seus genitores e filhos, ou
seja, por mãe e filho, ou pai e filho. Ainda há as famílias ampliadas, formada pela família
nuclear mais outros parentes, por exemplo: pais, filhos, netos, avós.
Outrossim, há as compostas pelos homossexuais e as famílias comunitárias, estas

6
OLIVEIRA, José Sebastião de. Fundamentos Constitucionais do Direito de Família. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002, p. 273.
7
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
8
BRASIL. Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Código Civil.

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6

compostas por muitas pessoas que moram juntas e dividem a criação das crianças, não sendo
uma obrigação apenas dos pais, assim todos os membros adultos que constituem o agregado
familiar são responsáveis pela educação da criança, além daquelas, cuja configuração se dá
com inserção do padrasto e/ou madrasta, ocupando verdadeiro papeis de cuidar e zelar.
Mediante o exposto, verifica-se assim que presentes os pressupostos basilares de uma
relação de afeto, constitui-se tão logo a função social da família na sociedade, uma vez que a
paternidade decorre mais do amor e do cuidado, de modo que tais vínculos merecem a tutela
pelo direito de família contemporâneo.

3 A FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA NO BRASIL: EFEITOS JURÍDICOS

Ante as mudanças das configurações familiares, com o postulado do princípio da


dignidade da pessoa humana inserido na CF/88, logo abre-se espaço para relativizar a
máxima do núcleo familiar formado apenas por pessoas ligadas pelo vínculo biológico
registral, passando a conceber outra configuração familiar e recebendo proteção pelo
direito pátrio o que se denomina como filiação/parentalidade socioafetiva, ou
multiparentalidade, a qual configura-se em decorrência da existência de famílias
reconstituídas, que recriam novos elos familiares provenientes do vínculo afetivo.
Como dito, a filiação socioafetiva não decorre na consanguinidade/laços
biológicos, mas sim nas relações de afeto constituídas entre filhos e pais não
biológicos, por meio da convivência contínua. Nas palavras de Christiano Cassettari9
(2017, p. 7): "[…] a parentalidade socioafetiva pode ser definida como o vínculo de
parentesco civil entre pessoas que não possuem entre si um vínculo biológico, mas
que vivem como se parentes fossem, em decorrência do forte vínculo afetivo existente
entre elas". Em virtude disso, Madaleno (2000, p. 40) assevera que:

(...) a paternidade tem um significado mais profundo do que a verdade


biológica, onde o zelo, o amor paterno e a natural dedicação ao filho
revelamuma verdade afetiva, uma paternidade que vai sendo construída
pelo livre desejo de atuar em interação paterno-filial, formando
verdadeiros laços de afeto que nem sempre estão presentes na filiação
biológica, até porque, a paternidade real não é biológica, e sim cultural,
fruto dos vínculos e das relações de sentimento que vão sendo cultivados
durante a convivência coma criança10

Há de se mencionar que a filiação socioafetiva cumpre firmemente o importante

9
CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: efeitos jurídicos. 3. ed.
rev., atual.e ampl. São Paulo: Atlas, 2017, p. 17.
10
MADALENO, Rolf Hanssen. Novas Perspectivas no Direito de Família. Porto Alegre : Livraria do
Advogado, 2000, p. 40.

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7

princípio do melhor interesse da criança, e essa é a razão pela qual cada vez mais os
julgadores têm valorizado o critério socioafetivo em detrimento do biológico ou registral, a
fim de proteger os filhos, bem como os seus direitos, no âmbito da convivência família.11
Muito embora a filiação socioafetiva/multiparentalidade não esteja prevista de forma
expressa no texto legal, pode ser compreendida no art. 1.593 do Código Civil Brasileiro pela
expressão “outra origem”, de modo que não há dúvidas de que a multiparentalidade, assim
como a filiação biológica, confere direitos e obrigações às partes, tendo o Instituto Brasileiro
de Direito de Família disposto no Enunciado nº 09 que: A multiparentalidade gera efeitos
jurídicos.12
Nos termos do atual ordenamento jurídico, a filiação socioafetiva pode ser
reconhecida de forma judicial ou extrajudicialmente. A medida judicial para o
reconhecimento da multiparentalidade é aquela em que os interessados ajuízam ação própria
para tanto, insta salientar que pouco importa a nomenclatura utilizada para propor esta ação,
haja vista que, o que estará em questão e que será efetivamente considerado para o
reconhecimento da filiação socioafetiva é a comprovação da posse de estado de filho e o
vínculo afetivo decorrente da relação.
Em decorrência da ausência legislativa sobre a temática dos operadores do Direito
devem se amparar no disposto pelo Conselho Nacional de Justiça, que em agosto de 2019
instituiu o Provimento 83, determinando em seu artigo 10-A que:

Art. 10-A. A paternidade ou a maternidade socioafetiva deve ser estável e


deve estar exteriorizada socialmente.
§ 1º O registrador deverá atestar a existência do vínculo afetivo da
paternidade ou maternidade socioafetiva mediante apuração objetiva por
intermédio da verificação de elementos concretos.
§ 2º O requerente demonstrará a afetividade por todos os meios em direito
admitidos, bem como por documentos, tais como: apontamento escolar
comoresponsável ou representante do aluno; inscrição do pretenso filho
em plano de saúde ou em órgão de previdência; registro oficial de que
residem na mesma unidade domiciliar; vínculo de conjugalidade –
casamento ou união estável – com o ascendente biológico; inscrição como
dependente do requerente em entidades associativas; fotografias em
celebrações relevantes; declaração de testemunhas com firma reconhecida.
3º A ausência destes documentos não impede o registro, desde que
justificada a impossibilidade, no entanto, o registrador deverá atestar como
apurou o vínculo socioafetivo.
4º Os documentos colhidos na apuração do vínculo socioafetivo deverão

11
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A Nova Filiação: O Biodireito e as Relações Parentais: O
Estabelecimento da Parentalidade-Filiação e os Efeitos Jurídicos da Reprodução Assistida Heteróloga.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 482-483.
12
BRASIL. Instituto Brasileiro de Direito de Família. Enunciado 09. Disponível em:
<http://www.ibdfam.org.br/conheca-o-ibdfam/enunciados-ibdfam> Acesso em: 17 jun, 2023.

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8

ser arquivados pelo registrador (originais ou cópias) juntamente com o


requerimento13

No que diz respeito, ao reconhecimento na via extrajudicial, houve uniformização


nacional dos procedimentos com a edição do Provimento 63/2017 pelo Conselho Nacional
de Justiça (CNJ), posteriormente alterado pelo Provimento 83/2019.
De acordo com estes provimentos, é permitido o reconhecimento extrajudicial da
filiação socioafetiva apenas de maiores de doze anos, devendo haver sua anuência pessoal,
sendo obrigatória uma diferença de dezesseis anos entre o pai/mãe e o filho. O requerimento
deve ser feito pelo ascendente socioafetivo maior de dezoito anos. Ademais, é requisito
essencial para que seja possível o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva que
haja a anuência pessoal dos pais biológicos, caso o filho seja menor de dezoito anos.
Com efeito, do reconhecimento da multiparentalidade também decorre os efeitos
jurídicos já previstos no ordenamento brasileiro, àqueles inerentes ao vínculo de filiação,
sendo os mais significativos o direito ao nome, à guarda, aos alimentos e à herança.
É certo que uma vez reconhecida a filiação socioafetiva não é admitida qualquer
discriminação, os filhos possuem o direito ao sobrenome dos pais, o sobrenome representa
umdireito personalíssimo, que nos distingue dos demais perante a coletividade.
Nessa linha de raciocínio, o direito a guarda da criança também vem sendo atribuída
aogenitor afetivo, isso ocorre, porque a jurisprudência entende que deve prevalecer esse laço
afetivo em função do melhor interesse do menor. Em recente decisão, o Tribunal de Justiça
deSão Paulo determinou que:

GUARDA DE MENOR. DECISÃO QUE CONCEDEU A GUARDA


PROVISÓRIA DO MENOR EM FAVOR DO AGRAVADO, PAI
AFETIVO. RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE
SOCIOAFETIVA. MENOR QUE DESDE O SEU NASCIMENTO
RESIDIU COM O AGRAVADO E SUA GENITORA.
INSURGÊNCIA DO AGRAVANTE, PAI BIOLÓGICO DA
CRIANÇA. FALECIMENTO DA GENITORA DO MENOR.
PRESERVAÇÃO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA.
(...) não há como afastar o laço afetivo mantido entre o menor e o
agravado. Durante quase quatro anos o agravado, cônjuge da genitora da
criança, dispensou ao menor, diariamente, os cuidados decorrentes do
poder familiar. Nesse período foi estabelecida a rotina da criança, a qual,
a cada quinze dias, deixava a residência na cidade de São Pedro para
conviver com seu pai biológico e retornava ao convívio com o agravado,
sua genitora e sua irmã materna.

13
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Provimento 83/2019 do Conselho Nacional de Justiça.
Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files//provimento/provimento_83_14082019_15082019095759.pdf
Acesso em: 17 jun, 2023.

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9

Paternidade socioafetiva que deve ser levada em consideração na


atribuição da guarda do menor.
Recurso não provido.14

Da mesma forma, a sucessão se equipara exatamente àquela da biológica, haja vista


que, após reconhecido o vínculo afetivo, para fins hereditários, tanto o filho, quanto os pais
afetivos serão considerados herdeiros necessários, na forma do artigo 1.845 do Código Civil.
Ademais, o Enunciado nº 33 editado em 2019 pelo Instituto Brasileiro do Direito de Família
dispõe que:

O reconhecimento da filiação socioafetiva ou da multiparentalidade gera


efeitos jurídicos sucessórios, sendo certo que o filho faz jus às
heranças, assim como os genitores, de forma recíproca, bem como
dos respectivosascendentes e parentes, tanto por direito próprio como
por representação15

Ante o exposto, observa-se que o ordenamento jurídico brasileiro por meio de suas
decisões reconhece não apenas a legitimidade da filiação socioafetiva ou da
multiparentalidade, como também define direitos, garantias e deveres para esses modelos de
famílias e formas de filiação.

4 A COEXISTÊNCIA DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA E A BIOLÓGICA EM


PERSPECTIVA COM O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA

Conforme explicitado neste trabalho, é inegável que o afeto é elemento essencial para
configurar a relação de pais e filhos, sobretudo, quando se fala em reconhecimento da filiação
socioafetiva, no entanto insta explanar como se dá a relação da criança ou adolescente com
a sua família biológica em concomitância com os entes socioafetivos, uma vez que, a
coexistência desses vínculos tampouco era cogitada no passado. Todavia, atualmente a
multiparentalidade é uma realidade entendida como um “fenômeno típico da
contemporaneidade”, arquitetada sob valores plurais, desconstituída das leviandades do
passado” (GHILARD16, 2017, p. 93). Em convergência, Dias (2022, p. 241) afirma que:

14
BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. Agravo de Instrumento nº 2225968-
92.2015.8.26.0000; Relator: Carlos Alberto Garbi; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro
de São Pedro - 2ª Vara; Data do Julgamento: 10/08/2016.
15
BRASIL. Instituto Brasileiro de Direito da Família. Disponível
em: < http://www.ibdfam.org.br/conheca-o-ibdfam/enunciados-ibdfam>. Acesso em: 2, jun,
2023.
16
GHILARDI, Dóris. Economia do afeto: Análise Econômica do Direito no Direito de Família. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2017.

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10

O afeto, elemento identificador das entidades familiares, passou a servir de parâmetro para a
definição dos vínculos parentais. Se de um lado existe averdade biológica, de outro lado há uma
verdade que não mais pode serdesprezada: a filiação socioafetiva, que decorre da estabilidade
dos laços familiares.
Para o reconhecimento da filiação pluriparental, basta flagrar a presença do vínculo de filiação com
mais de duas pessoas. A pluriparentalidade é reconhecida sob o prisma da visão do filho, que passa a
ter dois ou mais novos vínculos familiares.
Coexistindo vínculos parentais afetivos e biológicos, mais do que apenas um direito, é uma obrigação
constitucional reconhecê-los, na medida em que preserva direitos fundamentais de todos os
envolvidos, sobretudo o direito à afetividade. […]17
Ampliando a discussão, é necessário tecer considerações acerca da
multiparentalidade. Em relação esse termo, depreende-se que a multiparentalidade é
entendida como “a possibilidade de concomitância” (FARIAS, ROSENVALD, 2017, p. 615)
de diferentes tipos de parentalidade por uma mesma pessoa. Ou seja, a viabilidade de
um indivíduo “possuirmais de um pai e/ou mais de uma mãe simultaneamente, produzindo
efeitos jurídicos em relação a todos eles a um só tempo” (FARIAS, ROSENVALD, 2017, p.
615).
Ainda assim, concebe-se que a configuração de uma filiação socioafetiva não elimina
apossibilidade de concomitante filiação biológica, ou ainda jurídica. Em verdade, “cuida-se
de critérios completamente distintos, originários de circunstâncias próprias e específicas e,
por esta razão podem coexistir simultaneamente” (FARIAS, ROSENVALD, 2017, p. 616).
Destarte, no âmbito da configuração da filiação socioafetiva/multiparentalidade
imensaé a relevância do princípio da aparência. Segundo Maria Berenice Dias18 (2022, p. 50)
“a aparência faz com que todos acreditem existir situação não verdadeira, fato que não pode
ser desprezado pelo direito”. O princípio da aparência, pois diz respeito à posse de estado
de filho, seria a demonstração perante a sociedade de relação paterno-filial com a
exteriorização da convivência familiar afetiva, independentemente de vínculo biológico.
Insta mencionar a temática da coexistência dos vínculos é divergente na doutrina.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2017, p. 615) defendem que diante dos
“diferentes critérios constitutivos de cada filiação (legal, biológico e socioafetivo), apenas um
deles deve “avultar”, viabilizando a relação paterno-filial”. Nesse mesmo sentido, Flávio
Tartuce (2017, p. 263) alega que “a afetividade prevalece sobre o vínculo biológico, razão
pela qual, comprovada a convivência duradoura entre pai e filho, a descoberta da verdadeira
ascendência genética não justificaria a “perda” da parentalidade socioafetiva já constituída”.
Similarmente, o professor Rolf Madaleno (2018, p. 651) aduz que seria expressamente
necessário demonstrar que nenhuma das modalidades de parentalidade possui mais peso do
que a outra, o que seria difícil em seu julgamento pelos “fortes laços socioafetivos

17
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 15. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Editora
JusPodivm, 2022.
18
DIAS, Maria Berenice. Filhos do Afeto: questões jurídicas. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2022.

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11

impregnados pela convivência do passado, e que jamais serão superados pelos frágeis
vínculos biológicos reclamados para o futuro”.
No entanto, na jurisprudência, na Repercussão Geral 622, de 2017, Supremo Tribunal
Federal (STF), os ministros entenderam o afeto como vínculo de parentesco, sem nenhuma
hierarquia entre a filiação originada da consanguinidade, possibilitando inclusive ser
concomitante. Posteriormente ao entrar em vigor o provimento nº 63 do CNJ, a incerteza
jurídica de qual paternidade/maternidade merece prevalecer em registro vem sendo
superada, isso porque o novo modelo registral traz o campo filiação com espaço para se
registrar atédois (02) pais, duas (02) mães e até oito (08) avós.

Recurso Extraordinário. (…) Conflito entre paternidades socioafetiva e


biológica.
(...) A tipicidade constitucional do conceito de entidades familiares. (...)
Multiplicidade de vínculos parentais. Reconhecimento concomitante.
Possibilidade.
Pluriparentalidade. Princípio da paternidade responsável (art. 226, § 7º,
CRFB). (...) 13. A paternidade responsável, enunciada expressamente no
art. 226, § 7º, da Constituição, na perspectiva da dignidade humana e da
busca pela felicidade, impõe o acolhimento, no espectro legal, tanto dos
vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos,
quanto daqueles originados da ascendência biológica, sem que seja
necessário decidir entre um ou outro vínculo quando o melhor interesse
do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos [...].19

Como mencionado, os tribunais optam por incluir o duplo registro da filiação da


criança, denominando-se multiparentalidade, o reconhecimento jurídico da existência do
direito à convivência familiar da paternidade biológica em conjunto a paternidade
socioafetiva, visto que, não se pode excluir toda relação de afeto já construída ao longo do
tempo.
Em consonância com o exposto, se destaca a apelação nº 0013384-
47.2013.8.19.0203, 20na qual o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro reconheceu a
dupla paternidade:

19
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 898.060. Relator: Ministro Luiz Fux. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+
E+898060%2ENUME%2E%29+OU+%28RE%2EACMS%2E+ADJ2+898060%2EACMS%2E%29&
base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/oxbmklf>. Acesso em: 13 jul. 2023.
20
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação nº 0013384-
47.2013.8.19.0203. Relator: Desembargador Fernando Cerqueira Chagas.
Disponível em:
<http://www4.tjrj.jus.br/EJURIS/ImpressaoConsJuris.aspx?CodDoc=3348824&PageSeq=0>. Acesso em:
14 jun. 2023.

ISSNe 2595-1602 126


12

[…] AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE C/C


ANULAÇÃO PARCIAL DE REGISTRO. (...) EXPEDIÇÃO DE
MANDADO AO RCPN PARA ACRESCENTAR A PATERNIDADE
DO
AUTOR SEM EXCLUSÃO DA DO RÉU. (…) 1. À luz de recente
julgado do STF, consolidou-se o entendimento de que o vínculo
socioafetivo está emigual grau de hierarquia jurídica com o biológico, além
de se admitir a multiparentalidade. (...) 3. No caso dos autos, ficou
evidenciada a paternidade socioafetiva do segundo apelado, que
registrou a menor acreditando ser sua filha e, posteriormente, ao saber
que o pai biológico era oapelante, continuou a exercer a função de pai.
Ademais, há que se considerarque (...) a menor afirma ter dois pais e se
relaciona bem com cada um deles.

Levando em consideração as informações expressas, é visível que o ordenamento


jurídico brasileiro tem preservado o vínculo derivado de uma filiação socialmente pré-
constituída, sendo certo que em diversos julgados provenientes de ações negatória de
paternidade, foi afirmado que os filhos possuem o direito da manutenção da parentalidade
socioafetiva. In verbis:

DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE


PATERNIDADE.EXAME DE
DNA NEGATIVO. RECONHECIMENTO DE
PATERNIDADESOCIOAFETIVA.
IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. (…) 2. No caso, as instâncias
ordinárias reconheceram a paternidade socioafetiva [ou a posse do estado
de filiação],desde sempre existente entre o autor e as requeridas. Assim,
se a declaração realizada pelo autor por ocasião do registro foi uma
inverdade no queconcerne à origem genética, certamente não o foi no que
toca ao desígnio deestabelecer com as então infantes vínculos afetivos
próprios do estado defilho, verdade em si bastante à manutenção do
registro de nascimento e aoafastamento da alegação de falsidade ou erro.
3. Recurso Especial não provido.21

Tendo em vista que a origem genética não assegura necessariamente a construção de


elos afetivos sólidos, assim decidiu o acórdão:

21
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.059.214. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão.
Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21399240/recurso-especial-resp-1059214- rs-
2008-0111832-2-stj/inteiro-teor-21399241>. Acesso em: 29 jun. 2023.

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13

APELAÇÃO CÍVEL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE


CUMULADA COM ANULAÇÃO DE REGISTRO.
PREPONDERÂNCIA DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA
ESTABELECIDA ENTRA A MENOR E
O PAI REGISTRAL. 1. A moderna noção de família, fundada no afeto,
não admite a preponderância absoluta da verdade biológica sobre a
situaçãosocioafetiva consolidada entre a investigante e o pai registral, o
único que ela conhece e que muito a ama, que tem a sua guarda e é
responsável exclusivo por todos os cuidados dispensados à menina desde
os oito meses de vida. 2. Não há nenhuma vantagem em alterar o registro
civil da menor para desconstituir a filiação socioafetiva, tirando dela um
pai que mesmo sabendonão possuir vínculo biológico, segue lhe amando,
cuidando e protegendo, para atribuí-la ao pai biológico, que, mesmo ciente
do vínculo genético, já manifestou que não a quer como filha,
tampouco desejando assumir as obrigações inerentes à paternidade.
NEGARAM PROVIMENTO.UNÂNIME (RIO GRANDE DO SUL,
2006)22

Ante o apresentado, é notório que o afeto tem pautado as decisões judiciais e por essa
razão se mostra de grande valor a figura da multiparentalidade para crianças e adolescentes
como meio de possuir uma criação pautada no acolhimento e estima, bases para uma criação
sólida, sabe-se que não basta a menção na certidão de nascimento para criar laços de afeto.
Como bem salienta Brauner (2000, p. 194): “Ora, não se pode negar que o vínculo relacional
entre pai e filho não se cria através de um documento, é preciso querer ser pai ou ser mãe
e,de parte da criança, é necessário se sentir como filho”23
O reconhecimento dado pelo ordenamento jurídico brasileiro aquelas relações, onde
o cuidado, o permanente convivo se estabeleceu, concedo-lhes o poder familiar, colaborou
com a construção de uma sociedade brasileira mais justa. Ao possibilitar o reconhecimento
da parentalidade socioafetiva em concomitância com a filiação biológica no seio dos registros
públicos, efetivou-se os princípios da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da
criança e do adolescente, além da solidariedade familiar, a paternidade responsável e
igualdade da filiação.

5 CONCLUSÃO

Ante o exposto no presente estudo, pode-se verificar que o conceito de família sofreu

22
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Cível Nº 70016894719, Sétima Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS. Relator: Luiz Felipe Brasil Santos. RS, 29 nov. 2006.
23
BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Novos Contornos do Direito de Filiação: a Dimensão Afetiva das
Relações Parentais. Porto Alegre: Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, 2000.

ISSNe 2595-1602 128


14

grandes alterações no decorrer da história diante das modificações que a sociedade


implementou ao longo dos anos, visto que o direito é uma ciência social, sendo viva e se
renovando de acordo como a sociedade se constitui.
Desse modo, careceu por muitos anos de respaldo jurídico a proteção da entidade
familiar apresentada e constituída com base na convivência contínua sendo limitada e
deficitária o entendimento da família unicamente como a biológica. Nessa acepção, visualiza-
se que CF/88 trouxe consigo uma imensa e basilar revolução no ordenamento jurídico ao
estabelecer os princípios da dignidade da pessoa humana, bem como orientar por meio
desses princípios as leis especiais, como o Código Civil e por consequência o direito de
família e privilegiar assim o direito de família com nova interpretação do que é família.
Atualmente a filiação os tribunais superiores ao elencam a filiação sociafetiva como
relevante tal como a família criada a partir do laço sanguíneo, não devendo haver
diferenciações, quanto aos filhos. Sendo estabelecido ainda os meios de reconhecimento
dessa filiação, de modo judicial ou extrajudicial e definido que seus efeitos jurídicos são os
mesmo da filiação registral.
Incontestavelmente a filiação socioafetiva trouxe consigo a implantação cada vez mais
visível da função social da família, ao estabelecer novos requisitos e parâmetros para vincular-
se os pais de seus filhos, devendo a relação familiar estar sempre pautada na segurança que
a família oferece, cuidado, zelo, integridade e dignidade, conforme também prevê o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA).
Por fim, quando verificado que coexistência de laços sanguíneos e familiares, os
tribunais brasileiros têm dado incentivo às crianças usufruírem da multiparentalidade,
podendo conter nome de dois pais ou duas mães na certidão de nascimento, afinal todo
cuidado despendido as crianças é fundamental para a sua constituição como ser humano
íntegro.
Contudo, de modo algum a jurisprudência desprivilegia a filiação socioafetiva em
detrimento da biológica, deixando claro que embora haja laço biológico, no fim o que é
relevante é quem cria a criança e fornece os meios para sua edificação. De modo que é
possível a coexistência dos institutos, mas sempre prevalecendo aquele que comporta o afeto,
haja vista que, muitas das vezes em uma paternidade biológica, onde existe o vínculo jurídico
e o vínculo natural, também existe a marca viva da rejeição, faltando aspectos essenciais
como amor, compreensão e dedicação.

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família:o artigo 5º, II, parágrafo único, da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Revista
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O REGISTRO EXTRAJUDICIAL DOS ATOS DECLARATÓRIOS DE
RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL:
UMA ANÁLISE DA LEI 14.382/2022

Karina Pinheiro de Castro1

RESUMO

O objetivo central do trabalho, desenvolvido por meio de pesquisa doutrinária, legislativa e


jurisprudencial, é apresentar e discutir as inovações e consequências mais relevantes
promovidas pela Lei 14.382/2022 que dispõe sobre o Sistema Eletrônico de Registros
Públicos cuja vigência teve, como termo inicial, o dia 28 de junho de 2002, data de sua
publicação. Destacaram-se as alterações da Lei de Registros Públicos no que tange ao
instituto da união estável, notadamente à faculdade de registro de títulos declaratórios,
escrituras públicas e decisões judiciais de seu reconhecimento ou extinção no Registro Civil
de Pessoas Naturais, bem como as disposições do Provimento 141 do CNJ, de 16 de março
de 2023. Foram apresentadas, ainda, algumas ponderações acerca da eficácia perante terceiros
relativamente ao registro dos referidos títulos.

Palavras-chave: União estável; Registro; Constituição e eficácia.

1. INTRODUÇÃO

Em 28 de junho de 2022 foi publicada no Diário Oficial da União a Lei nº


14.382/2022 (assinada em 27 de junho de 2022) conhecida pela Lei do Sistema Eletrônico
de Registros Públicos. Dentre as diversas disposições, ela trata de tema relevante ao Direito
das Famílias, eis que alterou a Lei de Registros Públicos (Lei. 6.015/1973) ao prever a
possibilidade de registros de títulos declaratórios e extintivos da união estável no Registro
Civil das Pessoas Naturais.
O objetivo da lei, que entrou em vigor na data da sua publicação, foi promover a
transparência e segurança jurídica – das quais depende a veracidade das informações registrais
- aos fatos, atos e negócios jurídicos, inclusive relativos à união estável.
A união estável, uma das espécies de entidades familiares, tem natureza de fato
jurídico do qual decorrem múltiplos efeitos jurídico-sociais, assim como o casamento;
contudo, em um contexto fático-probatório, a problemática revela-se pela dificuldade de se
aferir e definir seus marcos inicial e final e, consequentemente, sua eficácia interna e externa.
É significativa a importância das inovações trazidas pela lei em comento e sua
contribuição para a publicidade e segurança jurídica da união estável como garantia de
efetivação dessa espécie de família, porém, ainda remanescem lacunas e dúvidas
interpretativas relativas a atos pretéritos ao registro facultativo de seus títulos declaratórios.

1 Mestre e doutoranda em Direito Privado - karinapinheiro2000@gmail.com

ISSNe 2595-1602 133


Nesta perspectiva, buscou-se apresentar algumas considerações acerca da natureza e
eficácia do referido registro no que tange à sua positivação, efeitos jurídicos, sociais e
patrimoniais.
O desenvolvimento da pesquisa baseou-se em uma análise bibliográfica, legislativa e
jurisprudencial, como métodos de pesquisa científica, visando-se, assim, a atingir o objetivo
de análise crítica da Lei 14.382/2022 que passa a integrar a arquitetura legal do instituto da
união estável, ressaltando-se seus aspectos positivos para os conviventes e para sociedade em
geral, bem como os problemas e dúvidas que ainda permeiam sua constituição e eficácia, a
despeito das disposições constantes do Provimento 141 CNJ, tendo como pano de fundo os
princípios norteadores do Direito-Civil Constitucional.

2. O CASAMENTO E A UNIÃO ESTÁVEL COMO ESPÉCIES DE


ENTIDADES FAMILIARES: EVOLUÇÃO HISTÓRICA E AS
DIFERENÇAS E SIMILITUDES

O Direito Civil do século XXI é marcado por características oriundas da teoria dos
direitos fundamentais, da prioridade das situações existenciais em relação às patrimoniais,
pela força normativa dos princípios constitucionais e, inclusive, pela funcionalização de seus
conceitos e categorias. Nesse contexto, a consagração do Estado Democrático de Direito
pela Constituição Federal de 1988 teve, como um dos pilares, o reconhecimento de outras
entidades familiares para além do tradicional e formal casamento.
Com a evolução social e o prestígio ao elemento afetivo, à liberdade e
autodeterminação, outras espécies de família passaram a ter seu reconhecimento e a merecer
a tutela estatal, dentre elas, a união estável que integra o rol exemplificativo do art. 226 da
Carta Maior.
Conforme dispõe o art. 1.723 CC/02, a união estável se constitui quando verificados
os pressupostos de natureza objetiva, quais sejam, a convivência pública, contínua e
duradoura; bem como um pressuposto de cunho subjetivo, de natureza volitiva, a intenção
mútua de constituição de família. Assim sendo, descortina-se uma multiplicidade de núcleos
familiares com o advento da CF/88, surgindo a consequente e adequada alteração na
nomenclatura deste ramo do Direito Civil para o plural: Direito das Famílias.
Nas últimas décadas, a família patriarcal e formada apenas pelo casamento,
indissolúvel até 1977, foi perdendo seu espaço exclusivo como entidade familiar digna de
tutela jurídica.
Oportuno mencionar que, no projeto do Código Civil de 1916, o que se propunha
como forma de dissolução da sociedade conjugal sem, contudo, romper o vínculo
matrimonial, era o desquite, conforme já defendido por Clóvis Bevilaqua, segundo o qual:

o desquite põe termo à vida em comum, separa os cônjuges, restitui-lhes a


liberdade, permite-lhes dirigir-se, como entenderem, na vida, sem que dependa
um do outro, no que quer que seja; mas conserva íntegro o vínculo do
matrimônio. Podendo governar, livremente, a sua pessoa, e, livremente, gerir os
seus bens, não podendo qualquer dos cônjuges casar-se, enquanto viver o outro,

ISSNe 2595-1602 134


porque o casamento é um laço perpétuo e indissolúvel, que só com a morte se
rompe. (BEVILAQUA, 1960, p. 208).

No mesmo caminho, a paternidade, pautada exclusivamente na presunção legal


conferida ao marido da genitora ao longo do século XX, foi mudando de paradigmas.
Com a chegada ao Brasil do DNA, em meados da década de 90 e início dos anos
2000, tal presunção foi perdendo força, sendo substituída por uma nova visão da paternidade,
a biológica ou científica.
Ainda em evolução, o Direito brasileiro passou a admitir a paternidade socioafetiva,
com base nos reclamos de João Batista Villela e sua tese da desbiologização do Direito de
Família, consagrada pelo STF no ano de 2016, através do RE 898.060, admitindo-se a
multiparentalidade em decorrência da paternidade socioafetiva.
A união estável, igualmente, passou por evolução legislativa e jurisprudencial.
Inicialmente, foi constitucionalmente reconhecida como núcleo familiar em 1988 e, após,
regulamentada pelas Leis 8.971/94 e 9.278/96. O Código Civil de 2002 dedicou-lhe um
regramento específico, embora enxuto e restrito às uniões heteroafetivas. Posteriormente,
em maio de 2011, foi reconhecida a união homoafetiva pelo STF, em controle concentrado
de constitucionalidade, por meio da ADI 4277.
Toda essa evolução é lastreada pelo princípio da dignidade da pessoa humana em
seus múltiplos desdobramentos.
Somente em maio de 2017, em sede de controle difuso de constitucionalidade (RE
646.721) e (RE 878.694), o STF, no exercício do seu papel ativista, declarou a
inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/02 para equiparar os direitos sucessórios entre
cônjuges e companheiros.
Atualmente, para além dessas circunstâncias, remanescem algumas diferenças entre
casamento e união estável apontadas adiante.
Em relação às similitudes, ambas são entidades formadas entre duas pessoas unidas
por laços afetivos com o objetivo de constituição de família em comunhão plena de vida.
Equiparam-se, notadamente, os efeitos pessoais, como os direitos e deveres internos; os
efeitos sociais; os efeitos patrimoniais; como os regimes de bens, direito aos alimentos e
usucapião familiar; os direitos assistenciais, como a curatela; os direitos sucessórios; o
parentesco por afinidade; as causas que obstam, impedem ou interrompem a prescrição; e os
impedimentos matrimoniais (exceto, quanto à união estável, o inciso VI do art. 1.521 CC/02
relativamente às pessoas casadas, mas separadas de fato ou judicialmente).
Relativamente ao nome como um efeito pessoal, importante consignar que a Lei
14.382/2022, objeto central do presente trabalho, passou a determinar em seu art. 57 § 2º, a
possibilidade de o convivente incluir o sobrenome do seu companheiro, nos mesmos moldes
das pessoas casadas.

§ 2 Os conviventes em união estável devidamente registrada no registro civil de


pessoas naturais poderão requerer a inclusão de sobrenome de seu companheiro,
a qualquer tempo, bem como alterar seus sobrenomes nas mesmas hipóteses
previstas para as pessoas casadas (BRASIL, 2022).

ISSNe 2595-1602 135


Quanto às diferenças entre casamento e união estável, apontam-se, dentre outros, o
estado civil (até então sem previsão específica aos companheiros), a forma de constituição e
a eficácia externa. Sobre as duas últimas diferenças debruça-se o objeto central do presente
estudo, conforme se passa a expor.

3. A LEI 14.382/2022 E A POSSIBILIDADE DE REGISTRO EXTRAJUDICIAL


DA UNIÃO ESTÁVEL

Após a categorização histórico-conceitual da união estável, adentra-se à temática ora


enfrentada acerca do registro extrajudicial dos atos declaratórios da união estável.
A Lei 14.382/2022 é oriunda da Medida Provisória n. 1.085, de dezembro de 2021,
e foi publicada em 28 de junho de 2022, tratando principalmente do Sistema Eletrônico dos
Registros Públicos (SERP), sendo a extrajudicialização uma das características mais
marcantes.
Dentre as inovações legislativas, destaca-se o art. 94-A inserido na Lei de Registros
Públicos (Lei no. 6.015/73) com a seguinte redação:

Art. 94-A. Os registros das sentenças declaratórias de reconhecimento e


dissolução, bem como dos termos declaratórios formalizados perante o oficial de
registro civil e das escrituras públicas declaratórias e dos distratos que envolvam
união estável, serão feitos no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que
os companheiros têm ou tiveram sua última residência, e dele deverão constar:
(Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)
I - data do registro; (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)
II - nome, estado civil, data de nascimento, profissão, CPF e residência dos
companheiros; (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)
III - nome dos pais dos companheiros; (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)
IV - data e cartório em que foram registrados os nascimentos das partes, seus
casamentos e uniões estáveis anteriores, bem como os óbitos de seus outros
cônjuges ou companheiros, quando houver; (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)
V - data da sentença, trânsito em julgado da sentença e vara e nome do juiz que a
proferiu, quando for o caso; (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)
VI - data da escritura pública, mencionados o livro, a página e o tabelionato onde
foi lavrado o ato;(Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)
VII - regime de bens dos companheiros; (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)
VIII - nome que os companheiros passam a ter em virtude da união estável.
(Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022). (BRASIL, 1973)

Infere-se que são quatro os títulos inseridos na permissibilidade normativa de registro


extrajudicial da união estável: as escrituras públicas, as sentenças declaratórias de
reconhecimento ou dissolução, os distratos e os termos declaratórios formalizados perante
o registro civil. Mas apenas os termos declaratórios são considerados novidade regulatória,
pois os demais já estavam previstos no art. 2º do Provimento 37/2014 do CNJ que já
autorizava o registro facultativo dos referidos títulos.
Quanto ao distrato previsto como um dos títulos inscritíveis, merece atenção o
entendimento de Carlos Elias de Oliveira e Flávio Tartuce, em obra dedicada ao tema:

ISSNe 2595-1602 136


Nesse ponto, consideramos atécnico o termo “distrato” utilizado pelo caput do
art. 94-A da LRP para se referir à extinção da união estável por consenso dos
companheiros. Isso, porque não se trata propriamente de um “distrato, assim
entendido o negócio jurídico bilateral por meio do qual as partes, por comum
acordo, extinguem um contrato (art. 472 do CC). Cuida-se, na verdade, de um
mero ato declaratório de ambos os companheiros, expressando que os requisitos
fáticos do art. 1.723 do CC desapareceram, o que acarretou automaticamente a
extinção da união estável. (OLIVEIRA; TARTUCE, 2022, p. 97-98)

As escrituras públicas são títulos extrajudiciais lavradas em qualquer Cartório de


Notas, conforme escolha dos companheiros. Têm natureza declaratória da existência ou
extinção da união estável. De certa forma, já é comum sua prática, eis que nada mais é que o
conhecido contrato de convivência revestido da forma pública, por questões de segurança
jurídica.
A possibilidade do registro da mencionada escritura pública no Livro E (assim como
os demais títulos ora discutidos) no Registro Civil em que os companheiros têm ou tiveram
sua última residência, confere, além da publicidade, eficácia em relação a terceiros, conforme
abordado adiante.
As sentenças que reconhecem a existência ou declaram sua extinção são títulos
judiciais que integram o rol dos títulos inscritíveis do art. 94-A LRP em comento.
Evidentemente que, assim como os demais, têm natureza declaratória, exatamente como
ratificado pelo próprio dispositivo, o que não poderia deixar de ser.
Dentre os títulos extrajudiciais, a maior novidade, como dito, refere-se ao termo
declaratório acerca da existência ou extinção da união estável, coletado diretamente pelo
próprio oficial diretamente dos companheiros que, facultativamente, possam optar em
comparecer perante o Registro Civil das Pessoas Naturais.
Nesse contexto, diante da necessidade de uniformizar normas e diretrizes gerais para
a formalização do termo declaratório de reconhecimento e de dissolução de união estável,
conforme o caso, perante os oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais, bem como o
registro dos atos declaratórios (inclusive dos referidos termos) no Livro E, o CNJ expediu,
em 16/03/2023, o Provimento 141 para regulamentar o art. 94-A, alterando o Provimento
37/2014 a fim de atualizá-lo à luz da Lei 14.382/2022; para tanto, além de dispor sobre o
referido termo declaratório, o Provimento 141 passou a dispor também sobre a alteração do
regime de bens na união estável e sua conversão extrajudicial em casamento.
De fato, todos os títulos previstos no art. 94-A supratranscrito não têm natureza
constitutiva da união estável, mas tão somente declaratória, o que não poderia ser diferente,
eis que, conforme dispõe o art. 1.723 CC/02, a união estável, ao contrário do casamento,
constitui-se por meio de uma relação fática duradoura, construída ao longo do tempo,
presentes os demais requisitos.
A opção em celebrá-los ou não e, caso positivo, registrá-los, depende da vontade dos
companheiros. Trata-se de uma faculdade que, caso exercida, acarreta reflexos quanto à
eficácia da união estável. Realmente, a previsão normativa se justifica, eis que os títulos e seus
respectivos registros visam a conferir maior segurança jurídica aos próprios companheiros e
a terceiros, além de seguir a atual tendência de desjudicialização.

ISSNe 2595-1602 137


Contudo, exatamente por não serem títulos de natureza constitutiva, remanescem
dúvidas acerca dos marcos temporais iniciais e finais da união estável e os efeitos que são
produzidos desde a sua efetiva e real constituição, assunto que ora se passa a enfrentar.

4. CONSTITUIÇÃO E EFICÁCIA PERANTE TERCEIROS. MARCOS


TEMPORAIS

Enquanto o casamento tem como característica a formalidade que reveste o ato da


celebração, o processo de habilitação que o precede, bem como o registro; a união estável é
caracterizada pela informalidade, como regra geral.
Contudo, defende-se que essa informalidade foi relativizada com a entrada em vigor
da Lei 14.382/2022 uma vez que, optando os companheiros por registrarem um dos títulos
nela previstos no Livro E do Registro Civil de Pessoas Naturais, a união estável acaba por
receber uma roupagem igualmente formal e se aproximar ainda mais do casamento.
Caberá ao Oficial do Registro Civil aferir a veracidade das informações, a legalidade
dos títulos que lhe forem apresentados, a ausência de impedimentos matrimoniais, vale dizer,
uma análise prévia nos mesmos moldes do casamento.
Vale ressaltar que, por ser facultativo, o requerimento de registro do termo
declaratório deve ser feito necessariamente em conjunto pelos companheiros, conforme
disposto no § 3º do art. 1º -A do Provimento 141 do CNJ, sendo que a dissolução será
necessariamente via judicial havendo nascituro ou filhos incapazes, a teor do que dispõe o §
6º do mesmo dispositivo.
Ressalte-se que, nos termos do § 1º do art. 94-A LRP, é vedado o registro no Livro
E dos títulos declaratórios da união estável de pessoas casadas, mesmo que separadas de fato,
salvo se separadas judicialmente ou extrajudicialmente ou se a declaração da união estável
decorrer de sentença judicial transitada em julgado.

§ 1º Não poderá ser promovido o registro, no Livro E, de união estável de pessoas


casadas, ainda que separadas de fato, exceto se separadas judicialmente ou
extrajudicialmente, ou se a declaração da união estável decorrer de sentença
judicial transitada em julgado. (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022) (BRASIL,
2022)

Outra disposição proibitiva está prevista no § 5º do art. 1º-A do Provimento que é a


vedação de lavratura de termo declaratório de união estável se houver outro termo anterior
lavrado com os mesmos companheiros, devendo o oficial consultar a CRC (Central de
Informações de Registro Civil das Pessoas Naturais) previamente à lavratura.
O ponto central do presente trabalho converge-se na análise da eficácia da união
estável, internamente e externamente perante terceiros com quem os companheiros celebrem
negócios jurídicos e, inclusive, eventuais herdeiros legítimos ou testamentários.
Nesse sentido, destaca-se a doutrina de Walsir Edson Rodrigues Júnior em artigo
dedicado ao tema, de cujo teor se extrai o seguinte trecho:

ISSNe 2595-1602 138


O fato de o casamento ser uma união formal e a união estável, informal, interfere
sobremaneira no momento da constituição da entidade familiar e na geração ou
não de um novo estado civil para os seus integrantes.
Eis, então, a grande diferença entre casamento e união estável: a existência e a
inexistência, respectivamente, da prova pré-constituída da entidade família. Este
fato, portanto, é que determinará a produção de alguns efeitos jurídicos
patrimoniais distintos entre as duas famílias, especialmente em relação a terceiros.
(RODRIGUES JÚNIOR, p. 421)

E continua:

Percebe-se que toda a formalidade que gravita em torno do casamento contribui


para que o regime de bens produza efeitos erga omnes. Resta, então, verificar a
possibilidade de tais efeitos na união estável. (RODRIGUES JÚNIOR, p. 431)

Verifica-se que, relativamente aos efeitos da união estável, há zonas cinzentas, pontos
obscuros que merecem ser discutidos. Destacam-se aqui os efeitos patrimoniais. As dúvidas
pairam notadamente sobre o termo inicial e final dessa modalidade de família e os respectivos
efeitos. Seriam eles inter partes ou erga omnes?
O art. 94-A da Lei 14.382/2022 possibilita o registro lato sensu dos títulos declaratórios
do reconhecimento da união estável ou de sua extinção, previstos no rol do § 3º do art. 1º
do Provimento 141, ora transcrito:

§ 3º Os títulos admitidos para registro ou averbação na forma deste Provimento


podem ser:
I – sentenças declaratórias do reconhecimento e de dissolução da união estável;
II – escrituras públicas declaratórias de reconhecimento da união estável;
III – escrituras públicas declaratórias de dissolução da união estável nos termos
do art. 733 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil);
IV – termos declaratórios de reconhecimento e de dissolução de união estável
formalizados perante o oficial de registro civil das pessoas naturais, exigida a
assistência de advogado ou de defensor público no caso de dissolução da união
estável nos termos da aplicação analógica do art. 733 da Lei nº 13.105, de 2015
(Código de Processo Civil) e da Resolução nº 35, de 24 de abril de 2007, do
Conselho Nacional de Justiça. (original não grifado)

Ressalte-se, porém, que o efetivo início dessa relação e seu fim normalmente não
coincidem com o mencionado registro. Na prática, o que ocorre é que, mesmo vivendo em
união estável, a decisão de tornar pública em cartório essa união ocorre tempos depois, mas
ela teve um marco inicial a partir do qual gerou, validamente, todos os efeitos que lhe são
próprios.
Nessa conjuntura, o Provimento 141 do CNJ de 16/03/2023, na tentativa de
delimitação desse lapso temporal da união estável e visando a evitar incertezas e conflitos,
regulamentou, nos §§ 4º e 5º do supracitado art. 1º, a previsão de inserção da data inicial e
final da união estável nos títulos inscritíveis acima descritos, nos seguintes moldes:

ISSNe 2595-1602 139


§ 4º O registro de reconhecimento ou de dissolução da união estável somente
poderá indicar as datas de início ou de fim da união estável se estas constarem de
um dos seguintes meios: I – decisão judicial, respeitado, inclusive, o disposto no
§ 2º do art. 7º deste Provimento;II – procedimento de certificação eletrônica de
união estável realizado perante oficial de registro civil na forma do art. 9º-F deste
Provimento; ouIII – escrituras públicas ou termos declaratórios de
reconhecimento ou de dissolução de união estável, desde que:a) a data de início
ou, se for o caso, do fim da união estável corresponda à data da lavratura do
instrumento; e b) os companheiros declarem expressamente esse fato no próprio
instrumento ou em declaração escrita feita perante o oficial de registro civil das
pessoas naturais quando do requerimento do registro. § 5º Fora das hipóteses do
§ 4º deste artigo, o campo das datas de início ou, se for o caso, de fim da união
estável no registro constará como “não informado”. (CNJ,2023)

Infere-se, pois, das disposições acima, que é possível inserir as datas que marcam o
início e fim da união estável tão somente em caso de decisão judicial ou certificação eletrônica
cujo procedimento está previsto no art. 9º-F do Provimento 141 em comento.
Já quanto aos termos declaratórios e escrituras públicas, a delimitação temporal pelos
companheiros está condicionada à mesma data de lavratura do respectivo instrumento e à
declaração expressa de ambos os companheiros dessa fixação de limites temporais.
O §5º do art. 1º acima transcrito é enfático ao restringir a possibilidade de inclusão
de datas de início e fim da união estável apenas nas hipóteses taxativas do § 4º do supracitado
art. 1º do Provimento. Portanto, a contrario sensu, a celebração e registro de termos
declaratórios e escrituras públicas sem observância dessas condições, a despeito de
conferirem a desejada publicidade, mantêm a problemática dos efeitos jurídicos pretéritos ao
registro e supervenientes à data da efetiva dissolução, mormente se precedida de separação
de fato.
No que tange aos efeitos patrimoniais, o Provimento 141 do CNJ passou a
estabelecer também a faculdade de alteração formal do regime de bens, conforme se infere
do art. 9º-A, ora transcrito, desde que sejam atendidos os requisitos do art. 9º-B dessa mesma
espécie normativa:

“Art. 9º-A. É admissível o processamento do requerimento de ambos os


companheiros para a alteração de regime de bens no registro de união estável
diretamente perante o registro civil das pessoas naturais, desde que o
requerimento tenha sido formalizado pelos companheiros pessoalmente perante
o registrador ou por meio de procuração por instrumento público. (CNJ,2023)

Pensando na eficácia dessa alteração formal, o CNJ previu, nos §§ 1º, 4º e 5º do


mencionado art. 9º-A, que a alteração do regime de bens não prejudicará terceiros de boa-fé
e que o novo regime produzirá efeitos prospectivos a contar da respectiva averbação na qual
deverá haver, inclusive a informação do regime anterior.
A dificuldade, portanto, permanece nas provas. Se houver mudança no regime de
bens, até então regido pela comunhão parcial, isso pode acarretar impactos em eventual
partilha decorrente da dissolução e, até mesmo, em relação à sucessão causa mortis. De fato, a
possível alteração de regime de bens, ou ainda que permaneça o mesmo regime após o

ISSNe 2595-1602 140


facultativo registro, caberão aos companheiros o ônus de provar a existência da união estável
e seu respectivo regime em relação ao período retroativo a tal registro.
A título de exemplo, imagine-se a hipótese de um casal que viva efetivamente uma
união estável sem contrato de convivência e que, portanto, seja regida pela comunhão parcial.
Após algum tempo os companheiros celebram o contrato no qual estipulam um regime de
comunhão universal e, tempos depois, transmudam o contrato em escritura pública e
registram-na, oportunidade na qual, inclusive, alteram o regime para separação convencional
de bens. Passados alguns anos, rompem de fato o relacionamento, situação que não lhes
obrigam, igualmente, a registrar atos declaratórios de sua dissolução.
Durante toda essa trajetória temporal produziram-se efeitos patrimoniais distintos
aos próprios companheiros (eficácia interna), aos seus eventuais herdeiros legítimos e/ou
testamentários, bem como a terceiros (eficácia externa). Uma situação fática permeada por
múltiplas dificuldades probatórias.
É a mesma controvérsia gerada no período de separação de fato no casamento,
quando cessam-se seus efeitos.
O fundamento sobre o qual se baseiam a doutrina e a jurisprudência é que a separação
de fato por longo tempo põe fim a todos os efeitos do casamento, isso é inconteste.
Realmente, não remanesce a finalidade de mantença da entidade familiar, mas, a partir de
quando os efeitos do casamento foram interrompidos com a separação de fato? O que seria
longo tempo? E na união estável, aplica-se o mesmo entendimento?
A análise, certamente, será casuística e contextual. O eventual registro de quaisquer
títulos inscritíveis é facultativo. E ainda que seja inserida a data de dissolução - o que se
permite apenas nas hipóteses taxativas do § 4º do supracitado art. 1º do Provimento 141 CNJ
– ela terá que ser a mesma data do registro, o que, na realidade fática, nem sempre serão
coincidentes.
Contudo, não se pode descurar que, em que pesem tais questionamentos, a Lei
14.382/2022, seguindo a intelecção do mencionado Provimento 37/2014 CNJ, foi um
avanço em relação à eficácia erga omnes. De fato, não se pode confundir publicidade conferida,
por exemplo, pela escritura pública de união estável (ou averbação do contrato de
convivência) com eficácia erga omnes. Ressalva-se, porém, o fato de a escritura pública poder
ser lavrada em qualquer Tabelionato de Notas do Brasil, o que também dificulta a ciência a
terceiros.
De fato, o registro no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais da declaração
da união estável ou da sua dissolução por meio dos títulos acima apontados confere
publicidade em relação a terceiros, pois estes terão ciência que os companheiros com quem
contratar vivem em união estável e sobre qual regime de bens é regida essa relação.
Nesse sentido, merece destaque o posicionamento de Renata Barbosa de Almeida e
Walsir Edson Rodrigues Júnior acerca da eficácia erga omnes do registro dos títulos inscritíveis
previstos na Lei 14.382/2022 no Livro E do Registo Civil das Pessoas Naturais:

A medida permitida assegura, então importante publicidade e eficácia “erga


omnes” do vínculo de companheirismo havido e, nesse ponto, muito aproxima a
situação à do matrimônio. Dessa forma, qualquer pessoa que solicitar a certidão
de nascimento ou de casamento de um ou de ambos os companheiros, encontrará
no respectivo documento a anotação da união estável constituída, bem como o

ISSNe 2595-1602 141


regime de bens que vigora naquela entidade familiar. (ALMEIDA; RODRIGUES
JÚNIOR, 2023, p. 398)

Diante do exposto, entende-se que, com a entrada em vigor da Lei 14. 382/2022, a
união estável deu mais um importante passo no percurso da equiparação com o casamento
no que tange ao aspecto formal, bem como à prova de sua eficácia interna e externa, mas,
devem permanecer os cuidados e atenção relativamente ao período precedente ao registro
(que, repita-se, é facultativo) e posterior ao eventual rompimento dessa relação, mesmo
considerando as restritas e, igualmente, facultativas hipóteses de inclusão das datas de início
e fim.
Não se pode descurar que, sendo facultativo o registro e a própria feitura dos títulos
declaratórios, a união estável de muitos casais continuará desprovida de qualquer formalidade
e publicidade, sem deixar, contudo, de existir e produzir todos os efeitos que lhe são próprios.
Inevitavelmente, muitos conflitos e injustiças continuarão a existir, a exemplo do que ocorreu
nos seguintes e recentes julgados, um do STJ e dois oriundos do TJMG:

EMENTA: CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE TERCEIRO.


UNIÃO ESTÁVEL.INSTRUMENTO PARTICULAR ESCRITO. REGIME
DE SEPARAÇÃO TOTAL DE BENS. VALIDADE INTER PARTES.
PRODUÇÃO DE EFEITOS EXISTENCIAIS E PATRIMONIAIS APENAS
EM RELAÇÃO AOS CONVIVENTES. PROJEÇÃO DE EFEITOS A
TERCEIROS, INCLUSIVE CREDORES DE UM DOS CONVIVENTES.
OPONIBILIDADE ERGA OMNES. INOCORRÊNCIA. REGISTRO
REALIZADO SOMENTE APÓS O REQUERIMENTO E O
DEFERIMENTO DA PENHORA DE BENS MÓVEIS QUE
GUARNECIAM O IMÓVEL DOS CONVIVENTES. POSSIBILIDADE.
REGISTRO EM CARTÓRIO REALIZADO ANTERIORMENTE À
EFETIVAÇÃO DA PENHORA. IRRELEVÂNCIA. INOPONIBILIDADE
AO CREDOR DO CONVIVENTE NO MOMENTO DO DEFERIMENTO
DA MEDIDA CONSTRITIVA. 1- Ação de embargos de terceiro proposta em
12/02/2019. Recurso especial interposto em 22/10/2021 e atribuído à Relatora
em 06/04/2022.2- O propósito recursal é definir se é válida a penhora, requerida
e deferida em junho/2018 e efetivada em agosto/2018, de bens móveis
titularizados exclusivamente pela convivente, para a satisfação de dívida judicial
do outro convivente, na hipótese em que a união estável, objeto de instrumento
particular firmado em abril/2014, mas apenas levado a registro em julho/2018,
previa o regime da separação total de bens. 3- A existência de contrato escrito é
o único requisito legal para que haja a fixação ou a modificação, sempre com
efeitos prospectivos, do regime de bens aplicável a união estável, de modo que o
instrumento particular celebrado pelas partes produz efeitos limitados aos
aspectos existenciais e patrimoniais da própria relação familiar por eles mantida.
4- Significa dizer que o instrumento particular, independentemente de qualquer
espécie de publicidade e registro, terá eficácia e vinculará as partes e será relevante
para definir questões interna corporis da união estável, como a sua data de início, a
indicação sobre quais bens deverão ou não ser partilhados, a existência de prole
concebida na constância do vínculo e a sucessão, dentre outras. 5- O contrato
escrito na forma de simples instrumento particular e de conhecimento limitado
aos contratantes, todavia, é incapaz de projetar efeitos para fora da relação jurídica
mantida pelos conviventes, em especial em relação a terceiros porventura
credores de um deles, exigindo-se, para que se possa examinar a

ISSNe 2595-1602 142


eventual oponibilidade erga omnes, no mínimo, a prévia existência de registro e
publicidade aos terceiros. (BRASIL, 2022) (original não grifado)

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. PRELIMINAR DE NULIDADE DA


SENTENÇA POR CERCEAMENTO DE DEFESA. APRECIAÇÃO DA
PROVA. ARTS. 370 A 372 DO CPC/15. LIVRE CONVENCIMENTO
MOTIVADO DO JUIZ. REJEIÇÃO. AÇÃO ANULATÓRIA DE NEGÓCIO
JURÍDICO. VENDA DE ASCENDENTE A ASCENDENTE. OUTORGA
UXÓRIA. COMPANHEIRA. ART. 1.647 DO CÓDIGO CIVIL. AUSÊNCIA.
REGISTRO DA EXISTÊNCIA DA UNIÃO ESTÁVEL NA SERVENTIA
IMOBILIÁRIA COMPETENTE. DESNECESSIDADE, IN CASU.
ALIENAÇÃO FEITA AOS PRÓPRIOS FILHOS DO FALECIDO.
ALEGAÇÃO DE BEM EXCLUSIVO DO VARÃO, ADQUIRIDO
MEDIANTE SUB-ROGAÇÃO. PROVA. AUSÊNCIA. PREJUÍZO AO
DIREITO DE MEAÇÃO EVIDENCIADO. SENTENÇA MANTIDA.
RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. 3. Em conformidade com a
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a necessidade de autorização de
ambos os companheiros (art. 1.647 do Código Civil) para a validade da alienação
de bens imóveis adquiridos no curso da união estável é consectário do regime da
comunhão parcial de bens, estendido à união estável por força do art. 1.725 do
Código Civil, além do reconhecimento da existência de condomínio natural entre
os conviventes sobre os bens adquiridos na constância da união, nos termos do
disposto no art. 5º da Lei n 9.278/96. 4. Todavia, segundo aquele mesmo
Sodalício, "a invalidação de atos de alienação praticado por algum dos
conviventes, sem autorização do outro, depende de constatar se existia: (a)
publicidade conferida a união estável, mediante a averbação de contrato de
convivência ou da decisão declaratória da existência união estável no Ofício do
Registro de Imóveis em que cadastrados os bens comuns, a época em que firmado
o ato de alienação, ou (b) demonstração de má-fé do adquirente" (AgInt no REsp
1706745/MG). 5. Ausente prova de que os imóveis rurais alienados pelo finado
aos filhos do primeiro casamento se constituíssem de bens exclusivos ou tenham
sido adquiridos mediante sub-rogação de outros de igual natureza (art. 1.659,
inciso I e II, do Código Civil), forçoso o reconhecimento de que integram a
meação para todos os efeitos. 6. Não socorre aos réus, ainda, a alegação de
ausência de registro da existência da união havida entre o genitor e a autora na
serventia imobiliária, na medida em que tal providência, consoante entendimento
do Superior Tribunal de Justiça, visa resguardar terceiros adquirentes de boa-fé, o
que, evidentemente, não é o caso, eis que conhecedores da situação de fato. 7.
Constatada a nulidade das avenças por faltar-lhes requisito de validade (outorga
uxória da companheira), a confirmação da sentença que julgou procedente o
pedido inicial é medida que se impõe. (MINAS GERAIS, 2021)

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DECLARATÓRIA DE


NULIDADE PARCIAL DE NEGÓCIO JURÍDICO - IMÓVEL DADO EM
GARANTIA EM CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO
- UNIÃO ESTÁVEL NÃO INFORMADA QUANDO DA CONTRATAÇÃO
- VALIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO.
Em que pese a ausência, no contrato de empréstimo (cédula de crédito bancário),
da "outorga uxória", dele não constando mesmo a anuência da autora, não se há
de falar em nulidade do ato, pois, ao omitir a existência de união estável quando
da celebração do contrato, agiu o companheiro da autora de má-fé, ensejando o
afastamento da preservação da meação da mesma autora sobre o imóvel dado em
garantia. (MINAS GERAIS, 2022)

ISSNe 2595-1602 143


5. FUNDAMENTOS PRINCIPIOLÓGICOS DO REGISTRO EXTRAJUDICIAL
DA UNIÃO ESTÁVEL

A compreensão de uma norma jurídica não é possível sem situá-la no tempo, no


espaço e no contexto social da qual ela surgiu. Os fatos humanos e sociais são substratos que
orientam a sua criação e inserção no ordenamento jurídico.
Sob tal raciocínio, o registro extrajudicial da união estável ora regulamentado pela lei
ordinária em âmbito federal nº 14.382/2022 se revela como consequência de um processo
de desburocratização e de desjudicialização do Direito Privado. Isso já ocorre não apenas no
âmbito do Direito das Famílias, com o divórcio via administrativa; haja vista o inventário,
ambos desde a entrada em vigor da Lei 11.441/2007; como também a usucapião extrajudicial
prevista no CPC/2015 e, para corroborar a atual tendência, a adjudicação compulsória e o
registro facultativo da união estável ora em comento, ambos oriundos da Lei 14.382/2022.
O reconhecimento da filiação socioafetiva, por sua vez, é um dos direitos mais
emblemáticos dentre todos aqueles cujo reconhecimento passou a ser possível pela via
extrajudicial.
De acordo com Flávio Tartuce:

[A] redução de burocracias ou desburocratização do Direito Privado mantém íntima


relação com essa tendência de se buscar soluções e resolução de disputas fora da
jurisdição.
No âmbito do Direito de Família e das Sucessões tem-se ampliado muito essa
tendência, podendo ser citadas duas decisões de regulamentação administrativa
importantes para casos pontuais, emergentes nos últimos meses no âmbito do
Poder Judiciário. A primeira delas é o Provimento n. 63 do Conselho Nacional de
Justiça, de 14 de novembro de 2017, que, entre outros temas, trata do
reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva diretamente no
Cartório de Registro Civil. (TARTUCE, 2018, s/p)

A desjudicialização tem suporte, inclusive, nos princípios da afetividade e da


dignidade da pessoa humana como fundamentos das relações familiares. Ambos os
princípios são fundamentos constitucionais sobre os quais se baseiam (ou pelo menos devem
se basear) todas as relações familiares. Para Gustavo Tepedino:

[A] família deixou de ser objeto de proteção autônoma – colocada como uma
realidade baseada em si mesma – e tornou-se funcional, ou seja, instrumento de
promoção e desenvolvimento dos seus membros, realçando a dignidade da pessoa
humana em suas relações. (TEPEDINO, p. 352)

Não se pode olvidar que um dos princípios que compõe os pilares do Direito das
Famílias contemporâneo é o princípio da Intervenção Mínima do Estado, também
conhecido como direito mínimo das famílias. Nesse sentido, transcreve-se o entendimento
de Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto:

ISSNe 2595-1602 144


A Constituição nos assegura amplo espaço de escolha nas opções íntimas,
existenciais [...] É certo que todos têm liberdade existencial de escolher a entidade
familiar que melhor realize suas opões individuais (e há igualdade entre as
entidades familiares, não podendo o legislador definir essa ou aquela como sendo
a melhor. (FARIAS; NETTO; ROSENVALD, p. 107-108)

Conforme irretocável ilação de Ronald Dworkin, os princípios são considerados


como “a razão que conduz o argumento em uma certa direção, mas [ainda assim] necessita
uma decisão particular”. (DWORKIN, 2002, p. 41). O que o ilustre filósofo nos ensina é que
os princípios visam a uma decisão adequada e casuística, eis que se tratam de normas jurídicas
de conteúdo aberto que comportam uma interpretação e aplicabilidade de acordo com o caso
concreto.
Assim deve ser considerado o princípio da afetividade, um dos inúmeros
desdobramentos do princípio da dignidade da pessoa humana que perpassa por todo o rol
dos direitos fundamentais individuais, além de ser o fundamento da República Federativa do
Brasil, nos termos do art. 1º, III da CF/88.
O afeto é a razão pela qual duas pessoas se unem e, uma vez revelado por meios de
atos que demonstrem o objetivo de constituição de família, passa a ser considerado como
um requisito indissociável do casamento e da união estável, como mostra Karina Pinheiro
de Castro (2022). Nesse sentido, merecem destaque as palavras de Rolf Madaleno:

[O] afeto é a mola propulsora dos laços familiares e das relações familiares e das
relações interpessoais movidas pelo sentimento e pelo amor, para ao fim e ao cabo
dar sentido e dignidade à existência humana. (MADALENO, 2008, p. 66)

O Direito das Famílias, na atual conjuntura, é baseado no princípio da afetividade,


em outras palavras, a realidade fática é admissível e preponderante em detrimento da
realidade formal. Assim, a affectio maritalis é o fator que deflagra uma união estável, como
também a sua extinção diante da sua ausência e da vontade de não mais manter a relação.
Portanto, o afeto é o elemento fático definidor do início e fim da eficácia da união
estável nos seus múltiplos aspectos e que, juntamente com os demais requisitos do art. 1.723
do Código Civil, deve ser provado para delimitação temporal da incidência de todos os seus
efeitos jurídicos.
Nesse sentido, a formalização em registro dos atos declaratórios da existência e
dissolução da união estável, a fim de conferir segurança jurídica aos próprios companheiros,
a seus possíveis herdeiros e a terceiros com quem celebram negócios jurídicos, é o que se
propõe como medida hábil a garantir o verdadeiro escopo da Lei 14.382/2022. Mas, na
prática, é um desiderato difícil de ser alcançado por vários motivos: o desconhecimento legal,
a onerosidade, o tempo, o comodismo, o receio, a relativa burocracia e a própria autonomia
privada. Todos eles culminam na característica mais elementar da união estável: a
informalidade.
Assim sendo, mesmo que registrados os atos declaratórios de existência não significa
que, necessariamente, os atos de dissolução sejam também registrados. Dessa forma, vigora-
se, a presunção de veracidade conferida pelo registro dos títulos que declaram a existência,

ISSNe 2595-1602 145


até novo registro facultativo - que pode não ocorrer - ou eventual decisão judicial. Durante
esse lapso temporal, como ficam os efeitos internos e externos da união estável?
Dessa forma, no caso concreto, a efetividade da lei em comento não é simples de ser
alcançada. A definição do termo inicial e final da união estável e a consequente eficácia
produzida nesse interregno temporal continuarão sendo uma questão tormentosa, indefinida
e difícil de ser perquirida. A análise deverá ser casuística e lastreada em um contexto
probatório.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

De todo o exposto, pode se afirmar que a evolução legislativa passou por inúmeros
avanços com o objetivo de, cada vez mais, concretizar a subsunção dos fatos sociais às
normas, bem como atender aos anseios do bem-estar nas relações afetivas.
Portanto, é coerente e consentânea com a realidade atual a edição da Lei 14.382/2022
que inseriu o art. 94-A na Lei de Registros Públicos, cuja vigência iniciou-se em 28 de junho
de 2022, data de sua publicação.
De fato, em atendimento à tendência de desjudicialização de determinados atos e
negócios de direito privado, passou a regulamentar e permitir o registro extrajudicial dos
títulos declaratórios da existência e dissolução da união estável, quais sejam, escrituras
públicas, distratos, sentenças judiciais e termos declaratórios confeccionados diretamente
perante o oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais.
Uma vez registrados tais atos no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais, essa
união de fato torna-se pública e, mais que isso, eficaz perante terceiros.
Contudo, uma interpretação crítico-reflexiva nos permite concluir que alguns
problemas remanescem mesmo diante do permissivo legal conferido pela Lei. 14.382/2022.
Efetivamente, os registros no Livro E dos atos de declaração da existência da união estável
ou da sua extinção por meio dos títulos acima apontados delimitam e comprovam a união e
seus efeitos; contudo, períodos retroativos e prospectivos a esse interregno temporal, durante
os quais os mesmos efeitos são produzidos, continuarão demandando dilação fático-
probatória.
Não se procura rechaçar a finalidade da norma jurídica delineada no art. 94-A LRP,
mas tão somente discutir acerca da efetiva demarcação temporal nas quais seus devidos
efeitos jurídicos são produzidos, a fim de que se possa resguardar os direitos dos próprios
companheiros, de seus possíveis herdeiros e terceiros com quem estabeleçam relações
jurídicas.
Neste momento, e por fim, parece pertinente ressaltar as palavras de Jones Figueirêdo
Alves:

Agostinho Alvim, jurista fundador da PUC/SP, afirmava: “O Direito de Família


começa onde termina o amor”. E, em paráfrase, mesmo a dizer, então, que “a
separação de fato começa quando termina o amor”, impõe-se a identificar o
“quando”. (ALVES, 2022, s/p)

ISSNe 2595-1602 146


Dessa forma, o tratamento jurídico do instituto da união estável deve-se amparar em
uma interpretação lógico-sistemática da legislação a ela pertinente: o Código Civil com seus
princípios e suas regras definidoras dos pressupostos da união estável; a Lei de Registros
Públicos de modo que o sistema registral alcance seu principal escopo, qual seja, a eficácia e
a capacidade de exprimir de forma fidedigna todos os atos nele consignados; e, sem dúvida,
os princípios da Constituição Federal de 1988, notadamente o princípio da afetividade que
fundamenta as relações familiares como elemento preponderante na interpretação e
aplicação dos textos legais aos casos concretos, como forma de efetiva concretização do
Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, R.; RODRIGUES JÚNIOR, W. E. Direito Civil - Famílias. 2 ed. São Paulo:
Editora Atlas, 2012.

ALMEIDA, R.; RODRIGUES JÚNIOR, W. E. Direito Civil - Famílias. 3 ed. São Paulo:
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Jesus, Gabriel Gonçalves de Mesquita, João Mesquita Junior. Apelação cível. Preliminar de nulidade
da sentença por cerceamento de defesa. apreciação da prova. arts. 370 a 372 do cpc/15. Livre
convencimento motivado do juiz. rejeição. ação anulatória de negócio jurídico. Venda de
ascendente a ascendente. Outorga uxória. Companheira. art. 1.647 do Código Civil.
Ausência. Registro da existência da união estável na serventia imobiliária competente.
Desnecessidade, in casu. Alienação feita aos próprios filhos do falecido. Alegação de bem
exclusivo do varão, adquirido mediante sub-rogação. Prova. Ausência. Prejuízo ao direito de
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O DIVÓRCIO JUDICIAL COMO NEGÓCIO JURÍDICO
PROCESSUAL: LIMITES E POSSIBILIDADES.
JUDICIAL DIVORCE AS A PROCEDURAL LEGAL BUSINESS: LIMITS AND
POSSIBILITIES.

Daniela Braga Paiano1


Glorya Maria Oldemburg de Miranda2

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar a natureza jurídica do divórcio judicial como uma
espécie de negócio jurídico processual, indicando os limites e as possibilidades do acordo
para que não haja infringência a direitos indisponíveis e de ordem pública. Nesse sentido,
sob o prisma dos princípios da autonomia privada (art. 190 do CPC) e da cooperação das
partes (art. 6º do CPC) identificou-se a possibilidade de as partes alterarem o rito da ação do
divórcio e estabelecerem deveres e obrigações que serão cumpridas após à homologação do
acordo submetido à apreciação judicial, podendo ser incluso nas cláusulas os alimentos
compensatórios entre os cônjuges, prazo para a partilha de bens e regulamentação de guarda
e convivência dos filhos incapazes. Como forma de alcançar o resultado inicialmente
pretendido, a pesquisa científica se orientou pelo método dedutivo e se instrumentalizou a
partir da análise exploratória na bibliográfica pertinente e na consulta ao entendimento
jurisprudencial emanado pelo Superior Tribunal de Justiça, sem prejuízo da consulta na
legislação.

Palavras-chaves: Negócio jurídico; Relação processual; Divórcio consensual; Autonomia


privada; Limites e possibilidades.

ABSTRACT

This work aims to analyze the legal nature of judicial divorce as a kind of procedural legal
business, indicating the limits and possibilities of the agreement so that there is no

1
Pós-doutora e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Professora da graduação e do
Programa de Mestrado e Doutorado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-
mail: danielapaiano@hotmail.com.
2
Mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Bolsista Capes por
Demanda Social. Pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Universidade Estadual de
Londrina (UEL). Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade Legale (FALEG). Graduada
em Direito pela Universidade Positivo (UP). Bolsista Capes por Demanda Social. E-mail:
gloryaoldemburg@gmail.com.

ISSNe 2595-1602 151


infringement of unavailable rights and public order. In this sense, under the prism of the
principles of private autonomy (art. 190 of the CPC) and cooperation of the parties (art. 6 of
the CPC), it was identified the possibility for the parties to change the rite of the divorce
action and establish duties and obligations which will be suspended after the approval of the
agreement under judicial supervision, and may even be in the clauses of compensatory
maintenance between the spouses, term for the sharing of assets and regulation of custody
and coexistence of incapable children. To achieve the initially intended result, the scientific
research was guided by the deductive and was instrumentalized from the exploratory analysis
in the relevant bibliography and in the consultation of the jurisprudential understanding
issued by the Superior Court of Justice, without prejudice to the consultation in the
legislation.

Key-words: Legal business; Procedural relationship; Consensual divorce; Private autonomy;


Limits and possibilities.

INTRODUÇÃO

O divórcio consensual tem sido uma modalidade cada vez mais adotada no âmbito
do direito de família, por oferecer uma alternativa mais rápida, amigável e menos onerosa
para o término de um casamento.
Este artigo tem como objetivo analisar a natureza jurídica do divórcio consensual
como uma espécie de negócio jurídico processual, destacando os limites e as possibilidades
desse acordo, a fim de evitar infringências aos direitos indisponíveis das partes envolvidas.
Nesse contexto, são examinados os princípios da autonomia privada e da cooperação das
partes, que fundamentam a possibilidade de as partes alterarem o rito da ação de divórcio e
estabelecerem deveres e obrigações a serem cumpridos após a homologação dos termos.
O problema central abordado neste estudo diz respeito à compatibilidade entre a
autonomia privada e a proteção dos direitos indisponíveis no divórcio consensual como
negócio jurídico processual. A partir dessa problemática, busca-se compreender até que
ponto as partes podem exercer sua liberdade contratual e estabelecer acordos que afetam
questões como alimentos compensatórios, prazo para partilha de bens e regulamentação de
guarda e convivência dos filhos, sem desrespeitar os limites impostos pelo ordenamento
jurídico brasileiro.
Para alcançar o objetivo proposto, a pesquisa científica adota o método dedutivo,
partindo de premissas teóricas e chegando a conclusões específicas. Além disso, utiliza-se de
uma análise exploratória na bibliografia pertinente, a fim de embasar o estudo com
fundamentação teórica sólida. Também se recorre ao entendimento jurisprudencial emanado
pelo Superior Tribunal de Justiça, considerando a relevância das decisões judiciais para a
compreensão e aplicação do direito no contexto dos negócios jurídicos processuais. Não se
negligencia, igualmente, a consulta à legislação nacional e estrangeira, de modo a obter uma
visão ampla e comparativa sobre o tema em estudo.

ISSNe 2595-1602 152


Por fim, o presente artigo pretende contribuir para o campo do direito negocial ao
oferecer reflexões e diretrizes acerca da natureza jurídica do divórcio consensual como
negócio jurídico processual. Ao analisar os limites e as possibilidades desse acordo, busca-se
fornecer subsídios teóricos e práticos que possam auxiliar os profissionais do direito na
orientação e na tomada de decisões, bem como promover discussões relevantes sobre a
autonomia privada, a proteção dos direitos indisponíveis e os desafios enfrentados no âmbito
do divórcio consensual.
Ao final, serão apresentadas as conclusões da presente pesquisa e espera que estas
consigam contribuir para uma reflexão do divórcio consensual como um negócio jurídico
processual, bem como para estimular novos debates sobre o tema.

1 NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL

O artigo 190, caput, do Código de Processo Civil, instituiu a possibilidade de as


partes celebrarem negócios jurídicos processuais ao prescrever que:

Art. 190: Versando o processo sobre direitos que admitam


autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças
no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar
sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou
durante o processo.

Em sua concepção clássica, José Joaquim Calmon de Passos (2009, p. 43)


compreende os negócios jurídicos processuais como “aquele que é praticado no processo,
pelos sujeitos da relação processual ou do processo, com eficácia no processo e que somente
no processo pode ser praticado”.
Ao passo que a concepção moderna deste instituto pode ser classificada, segundo
Helder Moroni Câmara (2018, p. 74) como um ato jurídico que envolve todas as
características (elementos, condições que tais) dos negócios jurídicos tradicionais, contudo
sua peculiaridade reside no art. 190, caput, do Código de Processo Civil, que limita sua
validade aos direitos que admitem autocomposição, criando assim a definição moderna deste
instituto.
Por oportunidade do julgamento do EDcl no REsp n. 1.810.444/SP, de relatoria
do Ministro Luiz Felipe Salomão, o Superior Tribunal de Justiça fixou a tese que os negócios
jurídicos processuais objetivam promover o direito material ora discutido e ainda que habite
o autorregramento das partes há atuação específica no múnus público da jurisdição, conforme
se lê pela ementa abaixo colacionada:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. (...)


LIBERDADE NEGOCIAL CONDICIONADA AOS

ISSNe 2595-1602 153


FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS. CPC/2015. NEGÓCIO
JURÍDICO PROCESSUAL. FLEXIBILIZAÇÃO DO RITO
PROCEDIMENTAL. REQUISITOS E LIMITES.
IMPOSSIBILIDADE DE DISPOSIÇÃO SOBRE AS FUNÇÕES
DESEMPENHADAS PELO JUIZ. (...) 2. A liberdade negocial deriva do
princípio constitucional da liberdade individual e da livre iniciativa,
fundamento da República, e, como toda garantia constitucional, estará
sempre condicionada ao respeito à dignidade humana e sujeita às
limitações impostas pelo Estado Democrático de Direito, estruturado para
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais e a Justiça. 3. O
CPC/2015 formalizou a adoção da teoria dos negócios jurídicos
processuais, conferindo flexibilização procedimental ao processo,
com vistas à promoção efetiva do direito material discutido. Apesar
de essencialmente constituído pelo autorregramento das vontades
particulares, o negócio jurídico processual atua no exercício do
múnus público da jurisdição. 4. São requisitos do negócio jurídico
processual: a) versar a causa sobre direitos que admitam autocomposição;
b) serem partes plenamente capazes; c) limitar-se aos ônus, poderes,
faculdades e deveres processuais das partes; d) tratar de situação jurídica
individualizada e concreta. 5. O negócio jurídico processual não se sujeita
a um juízo de conveniência pelo juiz, que fará apenas a verificação de sua
legalidade, pronunciando-se nos casos de nulidade ou de inserção abusiva
em contrato de adesão ou ainda quando alguma parte se encontrar em
manifesta situação de vulnerabilidade. 6. A modificação do procedimento
convencionada entre as partes por meio do negócio jurídico sujeita-se a
limites, dentre os quais ressai o requisito negativo de não dispor sobre a
situação jurídica do magistrado. As funções desempenhadas pelo juiz no
processo são inerentes ao exercício da jurisdição e à garantia do devido
processo legal, sendo vedado às partes sobre elas dispor. 7. Embargos de
declaração rejeitados. (EDcl no REsp n. 1.810.444/SP, relator Ministro
Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 13/12/2021, DJe de
15/12/2021.) grifo nosso.

Pautando-se no princípio da liberdade, essa modalidade negocial possui como


finalidade assegurar o exercício da autonomia privada em processos judiciais de forma a
fomentar a autocomposição das partes, afastando-as da cultura do litígio que assola e
assombra a atual realidade do Poder Judiciário.
Na relação processual contemporânea a autonomia privada se perfaz mediante o
autorregramento da vontade, sendo a aptidão das partes em submeterem aspectos contratuais
onde as partes criarão regras processuais privativas que ocasionará reflexos positivos no
procedimento judicial que será regido a partir dessas normas privadas (CÂMARA, 2018, p.
28).
Em igual sentido, Antônio do Passo Cabral (2023, p. 147) conceitua a expressão da
vontade processual no curso do processo como:

ISSNe 2595-1602 154


O autorregramento da vontade no processo decorre da superposição
lógica de duas normas: uma ‘norma de atribuição de competência’
(Ermächtigungsnorm) ou ‘norma de habilitação’, que justifica o poder de
disposição dos sujeitos privados com primazia sobre a aplicação da regra
legislada; e uma norma legal, que terá aplicação subsidiária (na ausência de
disposição das partes). O art. 190 do CPC/2015 é a norma de habilitação
que atua empoderando as partes, autorizando que sua vontade
convencional seja fonte de juridicidade (Op. Cit).

Dessa forma, o exercício da autonomia privada nas relações processuais integra o


princípio da cooperação processual (art. 6º do CPC) e fazer com que as partes de obtenham,
em prazo razoável, a solução integral do mérito e da atividade satisfativa (art. 4º do CPC),
atingindo os fins a que se destina o Código de Processo Civil.
Nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2021), a
negociação processual se limita para processos que: (a) versar a causa sobre direitos que
admitam autocomposição; (b) serem partes plenamente capazes; (c) limitar-se aos ônus,
poderes, faculdades e deveres processuais das partes; (d) tratar de situação jurídica
individualizada e concreta, sob pena de não homologação do acordo pelo Juiz.
A ausência de qualquer um dos requisitos consignados pelo art. 190 do CPC ou
pela jurisprudência fará com que o negócio jurídico celebrado entre as partes encontre óbice
no plano da validade, com isso o processo seguirá o rito regimental previsto pelo Código de
Processo Civil ou pela legislação competente.
Paula Sarno Braga (2008, p. 103-112) defende que a autonomia privada possui
limites e que deverá ser exercido nos limites legais impostos pelo art. 190, caput, do CPC, e
caso desrespeitadas as negociações não serão chanceladas pela ordem jurídica, pois são
incapazes de produzir quaisquer efeitos na órbita jurídica.
Ainda que o ordenamento jurídico brasileiro possibilite que as partes criem normas
e procedimentos especiais, a autonomia processual deverá observar os conceitos de ordem
pública, os regimes especiais/excepcionais e tutelar a parte hipossuficiente da relação
contratual que ora se instaura (NEGREIROS, 2006, p. 5).
Importa ressaltar que as considerações iniciais apresentadas são necessárias para a
compreensão da problemática proposta neste estudo, sendo: o divórcio consensual como
uma espécie de negócio jurídico processual e indicando as limitações desta modalidade
negocial, ainda mais pelo fato que o direito de família apresenta temas que envolvem direitos
individuais e indisponíveis que não admitem transação.

2 O DIVÓRCIO JUDICIAL COMO NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL

Na vigência do Império Romano, todo o arcabouço jurídico foi concebido segundo


os ditames da igreja católica apostólica romana, também conhecido como Direito Canônico.
Durante este período a entidade familiar se compreendia como um vínculo sagrado contraído

ISSNe 2595-1602 155


unicamente através do matrimônio que somente teria validade quando realizado pela
autoridade religiosa e na presença da comunidade, ali era jurado compromisso de lealdade e
fidelidade até que a morte os separasse.
Marcus Vinicius Leão (2019, p. 160) explica que para a Igreja Católica representa
muito mais que a união afetiva de duas pessoas que nutrem o sonho de formar uma entidade
familiar, mas também é um sacramento e seu ato gozará de validade se realizado na frente de
três figuras importantes: o noivo, a autoridade religiosa e a comunidade para testemunhar
que o compromisso matrimonial estava sendo contraído de forma livre, desimpedida e
consensual.

O sacramento do matrimônio é um ato natural dos fiéis, sendo um ritual


antigo na Igreja Católica Apostólica Romana. Neste sacramento, existem
três figuras importantes: o celebrante, o casal e os convidados, todos com
suas devidas obrigações para efetivação e publicidade do ato. O celebrante
tem o dever de instruir o ritual e invocar a bênção divina para o novo casal,
enquanto os convidados têm a obrigação de ser testemunhas da união, que
deve ser realizada de forma livre, desimpedida e consensual pelo casal
(Ibidem).

No mesmo sentido, enquanto perdurou a colonização portuguesa no território


brasileiro e no Brasil-Imperial o casamento se manteve como a principal entidade familiar,
uma vez que as disposições familiares do Direito Canônico tiveram aplicação conservada até
1890, tendo seu caráter indissolúvel inalterado até 1977 (QUEIROZ, 2010, p. 13).
Muito embora o art. 316 do Código Civil de 19163 (tendo vigência revogada pela
Lei n. 6.515/1977) permitisse a separação de corpos (chamado de desquite à época) a
condição do matrimônio se mantinha indissolúvel impedindo que se contraíssem novas
núpcias, fomentando a crescente dos concubinatos. Sobre o assunto, discorre Pablo Stolze
Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2018, p. 42):

Nessa fase, há apenas o desquite, instituto de influência religiosa que


gerava somente a dissolução da sociedade conjugal, com a manutenção do
vínculo conjugal e a impossibilidade jurídica de contrair formalmente
novas núpcias, o que gerava tão só “famílias clandestinas”, destinatárias
do preconceito e da rejeição social (Ibidem).

A Lei n. 6.515/1977 rompe com o caráter indissolúvel do casamento e passou a


permitir o divórcio como meio voluntário de extinção do vínculo matrimonial (art. 267, inc.

3
Art. 318. Dar-se-á também o desquite por mútuo consentimento dos cônjuges, se forem casados por mais
de dois anos, manifestado perante o juiz e devidamente homologado.

ISSNe 2595-1602 156


IV, do Código Civil de 1916)4, mas a sua concessão estava condicionada ao decurso de prazo
de três anos após a separação judicial.
A redação original do art. 226, § 6º, da Constituição Federal de 19885, reconheceu
o direito ao divórcio desde que comprovada a separação de fato por mais de dois anos ou
quando concedido a separação judicial por mais de um ano nos casos expressos por lei, sendo
que a aludida exigência apenas decaiu no ordenamento jurídico pátrio com a vigência da
Emenda Constitucional 66/2010 que alterou a redação para:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.


§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.

Em razão da atual redação do art. 226, § 6º, da Constituição Federal, reconhece o


divórcio como um direito potestativo e não exige mais lapso temporal para que ele seja
concedido ou tampouco a necessidade da separação judicial para comprovar a separação de
fato, isso ocorre porque ninguém é obrigado a permanecer casado com quem não deseja.
Como consequência do aperfeiçoamento legislativo ocorrido ao longo dos anos,
subsistem três espécies de divórcio no Direito Brasileiro: (a) divórcio consensual judicial; (b)
divórcio consensual extrajudicial, e; (c) divórcio litigioso, o qual é possível a realização de
acordo a qualquer tempo como causa extintiva do processo (art. 487, inc. III, alínea “c”, do
CPC)6.
Quando o divórcio é realizado na modalidade judicial (consensual ou litigioso) o
acordo é um negócio jurídico processual, ao passo que o extrajudicial é tido como um
contrato especial de direito de família, tal como ocorre com os pactos antenupciais e os
contratos de convivência.
Na visão de Paulo Lobo (2019, p. 160) “o acordo de divórcio consensual, ainda que
veiculado em pedido de homologação judicial, como no caso em exame, é negócio jurídico
bilateral. No negócio jurídico bilateral há duas declarações e o acordo delas resultantes”.
Corroborando com esse entendimento, Silvio de Salvo Venosa (2022, p. 162)
preconiza que “o acordo para a separação conjugal, bem como para o divórcio, é, portanto,
um negócio jurídico bilateral no qual as partes, além de decidirem o desenlace, regulam

4
Art. 267. Dissolve-se a comunhão:
IV - Pelo divórcio. (Incluído pela Lei nº 6.515, de 1977)
5
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado
§ 6o O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um
ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.
6
Um dado interessante trazido à baila por Paulo Lobo (2021, p. 149) é sobre a força dos acordos realizados
no curso do divórcio litigioso, uma vez que “Levantamentos feitos das separações judiciais demonstram
que a grande maioria dos processos de separação litigiosa era concluída amigável, sendo insignificantes os
que resultaram em julgamentos de causas culposas imputáveis ao cônjuge vencido. Por outro lado, a
preferência dos casais era nitidamente para o divórcio direto”.

ISSNe 2595-1602 157


também as consequências da dissolução conjugal tanto sob o prisma pessoal quanto o prisma
patrimonial”.
Portanto, diante das evidências apresentadas, fica claro que o acordo judicial de
divórcio incorpora as características distintivas do negócio jurídico processual, conferindo
aos envolvidos a capacidade de moldar o procedimento de acordo com suas necessidades e
conveniências.
Ao permitir que as partes ajustem as etapas do divórcio de maneira personalizada,
o acordo judicial proporciona maior autonomia e liberdade na definição dos direitos e
obrigações dos cônjuges, essa flexibilidade possibilita a criação de soluções mais eficientes e
adequadas às circunstâncias específicas de cada caso, promovendo a agilidade e a efetividade
na resolução dos conflitos familiares.
Além disso, o acordo judicial do divórcio contribui para a redução da sobrecarga
do sistema judiciário, uma vez que permite a solução consensual das questões, evitando a
judicialização desnecessária.
Nesse sentido, é indubitável que o acordo judicial de divórcio desempenha um
papel fundamental na busca por relações familiares mais harmoniosas e equilibradas, ao
empoderar as partes envolvidas na definição de seus próprios destinos. Assim, a capacidade
de adaptar o procedimento do divórcio de acordo com a conveniência e oportunidade das
partes reforça a importância e a eficácia do acordo judicial como um valioso instrumento
para a promoção da autonomia privada nas relações familiares.

3 LIMITES E POSSIBILIDADES DO ACORDO DE DIVÓRCIO

Como visto anteriormente, o divórcio consensual quando realizado no curso do


processo judicial se converte em negócio jurídico processual, enquanto aqueles firmados em
cartório não poderão ser considerados como tal.
Alexander Perazo Nunes de Carvalho e Gabriela Martins Carmo (2019, p. 316)
ressaltam que diante da importância da temática as ações de família o legislador optou por
estabelecer nos arts. 694 a 696 do Código de Processo Civil um procedimento específico
para essas ações, afastando assim a aplicação do procedimento comum ordinário usualmente
aplicadas nas ações cíveis.
Inicialmente, destaca-se que o contrato de divórcio consensual deverá ser exercido
nos limites legais e não poderão, em nenhuma hipótese, ser pactuados: (a) suspensão do
processo por prazo superior há seis meses; (b) prever hipóteses de cabimento de recursos
como agravo de instrumento ou apelação; (c) afastar a atuação do Ministério Público quando
há interesse de menores (MORAES; DEPIERI, 2021, p. 351).
O art. 695, caput, do Código de Processo Civil, prevê a possibilidade de o julgador
determinar a realização de audiência inaugural de mediação ou conciliação, na concepção de
Carvalho e Carmo (Op. Cit) é possível que as partes se comum acordo entenda pela dispensa

ISSNe 2595-1602 158


deste ato e de todos aqueles voltados para promover a solução pacífica do conflito, fazendo
a flexibilização do procedimento instituído por Lei.7
Nada obstante, Carvalho e Carmo (Op. Cit) acenam positivamente para a validade
dos negócios jurídicos processuais formalizado no bojo de ações de família, haja vista que o
Código de Processo Civil não proibiu expressamente sua celebração, apenas a jurisprudência
ressalta a necessidade de resguardar e tutelar os interesses de incapazes.
Por sua vez, no campo das possibilidades é possível que o acordo de divórcio
aborde temas como: (a) aceitação ou renúncia de alimentos compensatórios e
remuneratórios; (b) a penhorabilidade do bem de família; (c) partilha tardia dos bens (art.
1.511 do CC); (d) divisão se aluguéis de bens móveis e imóveis que integre o acervo
patrimonial do casal; (e) regime de convivência de guarda dos filhos; (f) a possibilidade de
inseminação artificial e a presunção de filiação destes filhos; (g) o rateio de gastos com
animais de estimação, e; (h) demais temas voltados à criação dos filhos menores, prezando
sempre pela condição peculiar da pessoa em desenvolvimento (VENOSA, 2022, p. 162)8.
Quanto à possibilidade de renúncia de alimentos, Silvio de Salvo Venosa (Ibidem)
alerta para um importante detalhe: apenas será válido quando a renúncia dos alimentos
ocorrer entre os cônjuges, uma vez que a sua aceitação pressupõe manifestação de vontade,
inexistindo matéria de ordem pública a ser observado, enquanto os alimentos que se derivam
da relação de parentesco integram os direitos da personalidade e não são passíveis de
renúncia em contrato.
Em consonância, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina entende que o
dever de mútua assistência (art. 1.566, inc. III, do Código Civil) se desfaz com o divórcio
fazendo com que a obrigação de prestar alimentos instituído no acordo de divórcio se
classifique como negócio jurídico bilateral.

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE ALIMENTOS - RENÚNCIA EM


AÇÃO PRETÉRITA DE SEPARAÇÃO CONSENSUAL -

7
Art. 695. Recebida a petição inicial e, se for o caso, tomadas as providências referentes à tutela
provisória, o juiz ordenará a citação do réu para comparecer à audiência de mediação e conciliação,
observado o disposto no art. 694.
§ 1º O mandado de citação conterá apenas os dados necessários à audiência e deverá estar
desacompanhado de cópia da petição inicial, assegurado ao réu o direito de examinar seu conteúdo a
qualquer tempo.
§ 2º A citação ocorrerá com antecedência mínima de 15 (quinze) dias da data designada para a audiência.
§ 3º A citação será feita na pessoa do réu.
§ 4º Na audiência, as partes deverão estar acompanhadas de seus advogados ou de defensores públicos.
8
“Como apontamos, necessariamente deve conter normas disciplinadoras acerca da manutenção,
subsistência e convivência dos filhos menores. Quanto ao mais, em linha geral, como manifestação de
vontade negocial emanada de pessoas maiores e capazes, os cônjuges gozam de ampla liberdade quanto ao
conteúdo do acordo. Desse instrumento não devem constar, contudo, as causas da separação, nem
reconhecimento de culpa de qualquer dos cônjuges ou qualquer ponto de constrangimento para as partes.
Apresentando-se o acordo com cláusulas nesse patamar, deve o juiz repelir a homologação. Em síntese, não
pode ser admitida qualquer cláusula que implique ofensa à dignidade dos cônjuges” (VENOSA, 2022, p.
162).

ISSNe 2595-1602 159


VIABILIDADE - NECESSIDADE ALIMENTAR - MÍNGUA DE
PROVAS SOBRE O ACOMETIMENTO DE DOENÇA E DE
DESEMPREGO DA AUTORA - REIVINDICAÇÃO APÓS 11 ANOS
DA SEPARAÇÃO - DEVER ALIMENTAR AFASTADO -
SENTENÇA REFORMADA - RECURSO PROVIDO. "Não há
dúvida de que a renúncia aos alimentos pelo cônjuge é manifestação de
vontade válida, pois apenas os alimentos derivados do parentesco são, em
princípio, irrenunciáveis. O dever de mútua assistência entre os cônjuges
rompe-se quando é desfeito o casamento. Ademais, o acordo firmado na
separação por mútuo consentimento é negócio jurídico bilateral com
plenitude de efeitos. Se as vontades se manifestaram livremente, não há
aspecto de ordem pública a ser preservado na renúncia aos alimentos"
(Sílvio de Salvo Venosa). Para o êxito da ação de alimentos, deve o
postulante pôr à mostra a necessidade e apresentar elementos hábeis na
comprovação da sua penúria, sob pena de indeferimento. (TJSC, Apelação
Cível n. 2007.054525-1, de Itapema, rel. Fernando Carioni, Terceira
Câmara de Direito Civil, j. 11-12-2007).

O acordo de divórcio, quando celebrado no decorrer do processo, se conecta como


valioso instrumento para efetivar o exercício da autonomia privada nas relações familiares,
podendo estipular cláusulas e condições que atendam às necessidades específicas dos
envolvidos.
Através do acordo de divórcio, as partes têm a oportunidade de deliberar sobre
questões como guarda dos filhos, pensão alimentícia, partilha de bens e outras questões
relevantes, de modo a estabelecer um consenso mútuo que promova a harmonia e a equidade
entre os ex-cônjuges. Além disso, o acordo de divórcio também desempenha um papel
fundamental na redução da sobrecarga dos tribunais e na agilidade do processo de separação,
proporcionando uma alternativa mais rápida e menos dispendiosa em comparação com
litígios prolongados.
Ao permitir que as partes definam suas próprias regras e condições, o acordo de
divórcio possibilita a adaptação às necessidades e circunstâncias particulares de cada família,
promovendo uma solução mais personalizada e flexível. Portanto, a celebração do acordo de
divórcio durante o processo representa um avanço significativo no sistema jurídico,
principalmente para o campo negocial, fortalecendo a autonomia das partes envolvidas e
contribuindo para a construção de relações pós-divórcio mais saudáveis.

CONCLUSÃO

Com base nas informações apresentadas, conclui-se que o divórcio consensual tem
se tornado uma opção cada vez mais popular no campo do direito de família. Ele é visto
como uma alternativa mais ágil, amigável e econômica para o fim de um casamento. Este
artigo científico tem como objetivo analisar a natureza jurídica do divórcio consensual como

ISSNe 2595-1602 160


um negócio jurídico processual, examinando os limites e as possibilidades desse acordo, a
fim de evitar violações aos direitos indisponíveis das partes envolvidas.
O estudo aborda a questão central da compatibilidade entre a autonomia privada e
a proteção dos direitos indisponíveis no divórcio consensual como um negócio jurídico
processual. Ele busca compreender até que ponto as partes podem exercer sua liberdade
contratual e estabelecer acordos que afetam questões como alimentos compensatórios,
partilha de bens e regulamentação da guarda e convivência dos filhos, sem desrespeitar as
limitações impostas pela legislação brasileira.
Para atingir o objetivo proposto, a pesquisa adota um método dedutivo, partindo
de premissas teóricas e chegando a conclusões específicas. Além disso, realiza uma análise
exploratória da bibliografia relevante, fundamentando o estudo com embasamento teórico
sólido. Também considera o entendimento jurisprudencial emanado pelo Superior Tribunal
de Justiça, reconhecendo a importância das decisões judiciais na compreensão e aplicação do
direito no contexto dos negócios jurídicos processuais. A consulta à legislação nacional e
estrangeira é igualmente considerada para obter uma visão ampla e comparativa sobre o tema
em estudo.
Em suma, o artigo busca contribuir para o campo do direito negocial, oferecendo
reflexões e diretrizes sobre a natureza jurídica do divórcio consensual como um negócio
jurídico processual. Ao examinar os limites e as possibilidades desse acordo, pretende-se
fornecer embasamento teórico e prático que possa auxiliar os profissionais do direito na
orientação e tomada de decisões, além de estimular discussões relevantes sobre a autonomia
privada, a proteção dos direitos indisponíveis e os desafios enfrentados no contexto do
divórcio consensual.
Ao final, espera-se que as conclusões apresentadas nesta pesquisa contribuam para
uma reflexão mais aprofundada sobre o divórcio consensual como um negócio jurídico
processual e estimulem debates adicionais sobre o tema.

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ISSNe 2595-1602 164


RESPONSABILIDADE CIVIL POR PERDA DE CHANCE NO USO
DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL EM DISCRIMINAÇÃO ÀS
MULHERES
CIVIL LIABILITY FOR LOSS OF OPPORTUNITY IN THE USE OF ARTIFICIAL
INTELLIGENCE DISCRIMINATING WOMEN

Luciana Cristina de Souza1

RESUMO

O texto analisa o impacto do uso de inteligência artificial nas relações humanas cotidianas,
em especial como a discriminação algorítmica afeta as mulheres. Acredita-se que a
complexidade tecnológica e os conflitos de jurisdição internacional podem dificultar a defesa
de direitos fundamentais dos usuários desses serviços. Como resultado desse cenário, o
instituto civilista da perda de chance terá uma defesa mais complexa e que pode frustrar os
interesses da parte ofendida. A resposta seria o fortalecimento dos meios de cooperação
entre os Estados e a elaboração de legislações mais rigorosas sobre o uso da inteligência
artificial no Brasil. Para desenvolver essa hipótese se aplicou o método dedutivo em uma
pesquisa documental sobre dois projetos de lei atualmente em tramitação no Congresso
Nacional com vistas a criar um novo marco tecnológico no país, considerando-se questões
de direito interno e estrangeiro. Também se realizou uma análise comparativa com as normas
que estão sendo implementadas recentemente na União Europeia, continente em que esse
debate já está mais adiantado do que no Brasil. Conclui-se que a promulgação do marco legal
brasileiro é urgente, tendo em vista que sem esse normativo se torna precária a
responsabilização dos gestores dos sistemas de inteligência artificial pelas oportunidades
perdidas pelos usuários dos sistemas digitais, em especial quando os servidores não se
localizam em território nacional.

Palavras-chave: Inteligência Artificial. Perda de Chance. Responsabilidade Civil.

ABSTRACT

The text analyzes the impact of the use of artificial intelligence on everyday human
relationships, in particular how algorithmic discrimination affects women. One believes that
1
Doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestrado em Sociologia
pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora da Faculdade de Políticas Públicas da Universidade
do Estado de Minas Gerais. Professora do Programa de Mestrado em Direito da Faculdade Milton Campos.
Líder do grupo de pesquisa Cidades Inteligentes e Desenvolvimento Humano (CNPq). E-mail:
profalucianacsouza@gmail.com

ISSNe 2595-1602 165


technological complexity and conflicts of international jurisdiction can make it difficult to
defend the fundamental rights of users of these services. As a result of this scenario, the
civilist institute of the loss of chance will have a more complex defense that can frustrate the
interests of the offended party. The answer would be to strengthen the means of cooperation
between States and the elaboration of stricter legislation on the use of artificial intelligence
in Brazil. One applied the deductive method to develop this hypothesis through documentary
research on two bills currently being discussed in the National Congress with a view to
creating a new technological framework in the country, considering issues of internal and
foreigner law. A comparative analysis was also carried out with the rules that are being
implemented recently in the European Union, a continent where this debate is already more
advanced than in Brazil. It is concluded that the enactment of the Brazilian legal framework
is urgent, given that without this regulation, the accountability of managers of artificial
intelligence systems for opportunities lost by users of digital systems becomes precarious,
especially when servers are not located in National territory.

Keywords: Artificial Intelligence. Loss of Opportunity. Civil Liability.

1 INTRODUÇÃO

O instituto da responsabilidade civil permite que se responsabilize a culpa e, em


alguns casos, mais objetivamente, pessoa física ou jurídica sobre a qual pende o dever de zelo
sobre alguém ou alguma coisa. No caso dos algoritmos de funcionamento das chamada
Inteligência Artificial (IA), a responsabilidade civil recai sobre a pessoa jurídica à qual a
legislação ou o contrato atribua o ônus de supervisioná-la. O princípio da supervisão humana
nasceu de entendimento da comunidade internacional (UNESCO, 2022; EUROPEAN
COMISSION, 2019). No ordenamento jurídico brasileiro há previsão de inserir-se esse
princípio por meio da aprovação do Marco Legal da Inteligência Artificial, ainda em
tramitação no Congresso Nacional. Há três projetos de lei guiando esse debate no
parlamento nacional: o PL 21-A/2020, na Câmara dos Deputados; o PL 5.051/2019 e PL
2.338/2023, ambos no Senado Federal. Em junho de 2023, a União Europeia aprovou o
Artificial Intelligence Act, documento que agora passará pelo crivo dos Estados-membros da
comunidade com vistas à sua publicação definitiva até o final do mesmo ano (EUROPEAN
PARLIAMENT, 2023).
A preocupação com a regulamentação da IA se justifica ante o elevando e, em alguns
casos, até irreparável dano que a utilização indevida desse sistema pode acarretar para a vida
humana. O problema é de tal gravidade que, também em junho de 2023, o Presidente da
Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres defendeu que os Estados
integrantes desse organismo internacional criem uma agência internacional de alto nível para
supervisionar o desenvolvimento da inteligência artificial, assim como tem sido feito com a
energia nuclear (JORNAL ECONÔMICO, 2023).
A regulamentação da responsabilidade civil dos atos danosos resultantes de interação
com IA enfrenta alguns desafios significativos:

ISSNe 2595-1602 166


a) a wide world web, ambiente em que têm sido utilizadas muitas IAs, é uma área
desterritorializada em certa parte, não são raros conflitos de jurisdição, visto que os
servidores computacionais em que as informações estão registradas nem sempre se situam
no país em que o usuário do dano vive, fazendo com que a responsabilização dos culpados
dependa de cooperação internacional para o devido processo legal e para a execução desse,
recaindo a disputa na seara do soft law;
b) ainda considerando a questão da desterritorialidade, há, no momento um
fenômeno ocorrendo quanto ao uso do modelo atual de navegação digital, a splinternet, que
consiste na criação de redes regionais e muitas vezes pouco interativas com o padrão do
restante dos países, como a Runet (Rússia) e Great Cannon (China, chamada externamente de
Great Firewall), iniciativa que está sendo adotada por outros governos;
c) quanto à IA generativa, esses algoritmos produzem novas informações novas por
si mesmos a partir de modelos linguísticos que servirão de modelo indicando vetores que
classificam o contexto de interpretação que a IA tomará por referência, o que significa que
se a fase de inserção e referenciação para o algoritmo for marcada por ideologias, elas serão
aos poucos “aprendidas” e poderão servir para “gerar” novas respostas com essas tendências,
o que ressalta ainda mais o risco das splinternets;
d) no aspecto técnico, a imputação de responsabilidade passa pela descrição do ato
delituoso, o que pode ser ainda um obstáculo para usuários e mesmo juristas visto o alto grau
de conhecimento especializado que essa tecnologia envolve, o que pode ser utilizado por
pessoas agindo de má-fé para se eximirem de culpa.
Diante dessas questões, que não são as únicas atualmente provocando debates na
área jurídica e política sobre o uso de IA, reflete-se sobre os impactos que a
desresponsabilização civil possa acarretar na vida das pessoas, físicas ou jurídicas, que
dependerem da interação ser humano-máquina em algum momento. Optou-se pelo recorte
do instituto da perda de chance, cuja definição utilizada no Brasil é

Código Civil - Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei,


as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele
efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.

Enunciado 444 da V Jornada de Direito Civil: A responsabilidade civil pela


perda de chance não se limita à categoria de danos extrapatrimoniais, pois,
conforme as circunstâncias do caso concreto, a chance perdida pode
apresentar também a natureza jurídica de dano patrimonial.

A perda de chance decorrente de utilização de IA pode ocorrer por má


conduta de organizações que ao inserirem tendências discriminatórias nos algoritmos
prejudicam a visibilidade da qualidade do trabalho de algum grupo social ou, ainda, que
apresentam imagens ou comentários falsos (fake) cujo conteúdo afeta direitos fundamentais
das vítimas dessa violência. Pode privar indivíduos da plena fruição de oportunidades ao

ISSNe 2595-1602 167


atacarem sua imagem, reputação profissional ou outro direito da personalidade, por isso deve
ser coibida, como assevera o Guia de Boas Práticas da Lei Geral de Proteção de Dados (2020, p.16).
E considerando a dificuldade extrema em se retirar um conteúdo uma vez posto na internet,
o dano pode perdurar por muitos anos. Em razão disso foi apresentado o PL 320/2023, o
qual acrescenta à Lei nº 10.406/2002, Código Civil brasileiro, o seguinte dispositivo:

Art. 927-A. É admissível a reparação civil pela perda de chance real ou com alto
grau de probabilidade e séria, que não ficará adstrita à indenização por danos de
natureza extrapatrimonial conforme as circunstâncias do caso.

Ante o que foi dito, indaga-se sobre como efetivamente reparar ou indenizar pessoa
física ou jurídica que tenha perdido oportunidade devido à ato decorrente de interação com
IA considerando-se os desafios acima expostos.

2 O QUE É PERDA DE CHANCE

A perda de chance, ou oportunidade, é um instituto com valor jurídico tanto no setor


privado, quanto na administração pública. Mainguy (2023, p. 40) explica que a indenização
no caso de ser privado de uma oportunidade é devida porque prejudica a expectativa que se
tem sobre a realização de um direito, diferente de contratos aleatórios, como seguro, em que
a possibilidade de perda perante um fato incerto que porventura aconteça é da própria
natureza do negócio jurídico. Mainguy destaca que para configurar la perte du chance é
fundamental que exista efetivamente boas expectativas de que o ato, se não interrompido ou
impedido, traria aquela circunstância benéfica ansiada. Igualmente alerta para o fato de que
o grau indenizatório é afetado pelo ponto a que chegaram as negociações entre as partes. Há
fases contratuais nas quais ainda é permitida a liberdade de desistir e o dano pela perda da
chance é menor, posto ser também menor a expectativa sobre a conclusão do negócio
jurídico (MAINGUY, 2023, p. 82).
Outro aspecto a ser considerado, segundo Marina Teller (2013), é que a indenização
pela perda de chance está no limiar entre o dano real e o dano eventual. A jurista explica que
é preciso delimitar em que consiste o dano reparável decorrente da privação sofrida e sugere
que seja medido pelo acaso perdido, não podendo ser igual à vantagem que teria se esta
chance se tivesse se tornado realidade (TELLER, 2013, p. 2). Tendo sido expostos esses
apontamentos introdutórios, afirma-se que em relação ao uso de IA se deve perquirir sobre
qual é o nível de expectativa esperada em relação ao serviço prestado pela empresa que
responde por ela. Logo:
a) os responsáveis são sempre pessoas no sentido legal, físicas ou jurídicas, visto que
a IA não tem personalidade jurídica;
b) ao acessar um aplicativo para utilização do algoritmo, está-se contratando uma
prestação de serviços cujo termo firmado entre as partes contém as cláusulas que estabelecem
os ônus e direitos de cada uma delas;

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c) esse contrato não é, por natureza, aleatório, portanto, as expectativas consignadas
contratualmente devem ser indenizadas se não cumpridas;
d) a legislação disporá sobre outros direitos e obrigações aos quais as partes
contratantes se obrigam, respeitado o foro escolhido por elas;
e) visto que o tipo de prestação de serviço prestado possa ser trasnacional, é crucial
que sejam firmados acordos multilaterais sobre a regulação do uso de IAs a serem respeitados
internacionalmente;
f) considerando que é alto o risco de que um conflito entre as partes envolvidas se
torne transnacional, é necessária uma autoridade internacional para dirimir esses conflitos ou
mediar uma solução entre os contratantes
g) os elementos que caracterizam a perda de chance a serem observados serão, a priori,
as cláusulas contratuais; aplicar-se-á, de modo complementar, a norma internacional; e sendo
definido o foro entre as partes, cumprir-se-á a legislação que esse país determinar.
Os maiores desafios para a punição dos responsáveis no caso de perda de chance
vinculada ao uso de uma IA são: a) se a causa houver sido falha técnica, como identificar
nitidamente em que parte o defeito ocorreu, tendo em vista o complexo aparato tecnológico
que conecta usuário, rede, satélite e o servidor onde o algoritmo está armazenado e
funcionando, para assim delimitar a jurisdição aplicável? b) se a causa for falha na supervisão
humana sobre o desempenho da IA, além da questão da jurisdição, como imputar tal
responsabilidade se as normas sobre esse princípio ainda estão em elaboração na maior parte
dos países?
Coibir essas posturas discriminatórias é dever do Estado para evitar o que prescreve
a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher,

Artigo 1º: Para os fins da presente Convenção, a expressão “discriminação contra


a mulher” significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que
tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou
exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na
igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades
fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em
qualquer outro campo (UNITED NATIONS, 1979)

Regulamentar o uso das tecnologias, entre elas as inteligências artificiais, consiste em


tomar as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher praticada por
qualquer pessoa, organização ou empresa. Inclui-se nesse rol o dever da autoridade pública
de coibir não somente o preconceito que agride física ou psicologicamente, assim como
aquele que impacta negativamente nas oportunidades educacionais, profissionais e políticas
às quais as mulheres almejam por deturpar a imagem, a honra ou outra forma de ferir seus
direitos da personalidade. Em tal cenário ainda inóspito à equidade, são significativos os
projetos de lei propostos, sendo mister aprová-los o quanto antes para garantir a devida
proteção às cidadãs, uma vez que o país ainda carece de políticas públicas de empoderamento

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das mulheres e de combate às diversas formas de violência por elas sofridas (SOUZA et al.,
2022).

3 OS PROJETOS DE LEIS BRASILEIROS SOBRE IA

No caso brasileiro, o Projeto de Lei 21-A (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2020) e


os Projetos de Lei 5.051 e 2.338 (SENADO FEDERAL, 2019; 2023), propõem um Marco
Legal para a Inteligência Artificial no Brasil em consonância com a Estratégia Brasileira de
Inteligência Artificial (2021). Porém ainda estão em tramitação sem perspectiva de quando
as normas estarão vigentes. Igualmente aguarda apreciação pelo Poder Legislativo nacional a
extensão da teoria da perda de uma chance à Lei Geral de Proteção de Dados, inclusão
proposta pelo Projeto de Lei 320 (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2023). A tecnologia está
avançando mais depressa do que os parlamentos conseguem refletir e legislar sobre questão.
E tal demora resultará, muito provavelmente, no aumento do número de processos judiciais
para dirimir conflitos sobre essa temática. À parte o conflito Judiciário e Legislativo quanto
à judicialização, como dito, tem-se o desafio da desterritorialidade. Qual jurisdição invocar?
Que protocolos devem ser criados internacionalmente para facilitar a execução das sentenças
em território estrangeiro? O que fazer se um país que seja sede de empresas de tecnologia e
seus servidores se recusar a cumprir tais decisões oriundas de um Estado diferente?
Analisemos os projetos.
O PL 21-A/2020 dispõe:

Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se sistema de inteligência artificial


o sistema baseado em processo computacional que, a partir de um
conjunto de objetivos definidos por humanos, pode, por meio do
processamento de dados e de informações, aprender a perceber e a
interpretar o ambiente externo, bem como a interagir com ele, fazendo
predições, recomendações, classificações ou decisões
(...)
Art. 9º Para os fins desta Lei, sistemas de inteligência artificial são
representações tecnológicas oriundas do campo da informática e da
ciência da computação, competindo privativamente à União legislar e
normatizar a matéria para a promoção de uniformidade legal em todo o
território nacional, na forma do disposto no inciso IV do caput do art. 22
da Constituição Federal.

Quanto ao conceito de IA, o Art. 2º segue a terminologia que tem sido aplicada em
âmbito global, em consonância com os debates de outros Estados sobre o tema. O Art. 9º
aponta uma estratégia que diversos países também seguem, de apontar qual a legislação
aplicada em seus territórios. Estabelecer a competência privativa da União, como faz esse
último artigo, é importante porque, para além do prediz a Constituição da República do Brasil

ISSNe 2595-1602 170


de 1988 sobre a forma de organização de seu sistema federalista, ressalva-se que apenas este
ente federado poderá participar internacionalmente dos pactos que vierem a ser firmados
com o objetivo de proteger direitos potencialmente e efetivamente afetados pelo uso de IAs.
Assim determinam o Art. 1º e o Art. 4º da mesma Constituição.
No caso brasileiro, de sistema federalista mais centralizado, normas de alcance
nacional e de maior impacto ficam sempre a cargo da União, por representar o conjunto das
unidades federativas. In casu, também porque é a Presidência da República a entidade
autorizada a pactuar externamente normas de proteção e de punição dos responsáveis. E,
agindo enquanto Estado soberano, pode orientar o uso das tecnologias e exigir que os
responsáveis assumam seu ônus com os impactos conhecidos e desconhecidos que essas
possam acarretar à sociedade, aos seres humanos e ao meio ambiente.
No Senado Federal, o Art. 2º do PL nº 5.051/2019 propõe como princípios:
dignidade humana; liberdade; democracia; igualdade; respeito aos direitos humanos;
diversidade; garantia de privacidade; transparência; confiabilidade; auditorias internas;
supervisão humana. Também determina que os sistemas decisórios baseados em Inteligência
Artificial deverão ser apenas auxiliares à tomada de decisão humana, motivo pelo qual a
responsabilidade civil por danos decorrentes da utilização de sistemas de Inteligência
Artificial será de seu supervisor (Art. 4º).
O mais recente, o PL 2.338, submetido em maio de 2023, é o mais completo
apresentado pelo Poder Legislativo brasileiro, contendo 45 artigos. O projeto se subdivide
em: fundamentos da IA; direitos das pessoas afetadas pela IA; indicação de categorias de
riscos; modelo de governança; avaliação de impacto algorítmico; normas sobre direitos
autorais; responsabilidade civil dos fornecedores e operadores de IAs; sistema de
comunicação de incidentes graves; autoridade competente para supervisão e fiscalização;
sanções; e, muito relevante, a criação de uma base acessível ao público para controle societal,
da qual constarão os documentos públicos das avaliações de impacto sobre o uso de IA no
país.
Esse último, em particular, ajusta-se às diretrizes estabelecidas pela Estratégia
Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA) publicada em 2021, criada Decreto 9.319, de 21
de março de 2018. A EBIA tem por diretriz um modelo de governança democrática,
prevendo o engajamento permanente com a comunidade científica, o setor produtivo e a
sociedade civil e fortalecimento da articulação e da cooperação entre os diferentes órgãos e
entidades (Art. 3º, Dec. 9.319/2021). Dessa forma, como evidenciam os dispositivos a seguir
do PL 2.338/2023, a defesa da pessoa humana e seus direitos devem ser assegurados pelo
modelo de governança de IA adotado:

Art. 19 Os agentes de inteligência artificial estabelecerão estruturas de governança


e processos internos aptos a garantir a segurança dos sistemas e o atendimento
dos direitos de pessoas afetada, nos termos previstos no Capítulo II desta Lei e
da legislação pertinente, que incluirão, pelo menos:
I – medidas de transparência quanto ao emprego de sistemas de inteligência
artificial na interação com pessoas naturais, o que inclui o uso de interfaces ser
humano-máquina adequadas e suficientemente claras e informativas

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II – transparência quanto às medidas de governança adotadas no
desenvolvimento e emprego do sistema de inteligência artificial pela organização
III – medidas de gestão de dados adequadas para a mitigação e prevenção de
potenciais vieses discriminatórios

Contudo, como mencionado, embora a EBIA aponte diretrizes importantes e os


projetos de lei apresentados sejam cruciais, a responsabilidade civil aguarda a aprovação
dessas normas regulatórias para melhor proteção aos usuários. Logo, é urgente que se acelere
o processo de tramitação dessas legislações, notadamente o PL 2.338/2023, para imputar-se
responsabilidade aos supervisores das IAs. Sem essas normas, a defesa de garantias das
pessoas frente a erros e manipulações decorrentes da forma como uma IA é supervisionada
continuará a provocar a perda de chance de segmentos mais vulneráveis e discriminados da
sociedade.

4 DISCRIMINAÇÃO CONTRA MULHERES

Os desafios acima apontados por si só criam obstáculos à proteção de direitos


fundamentais dos seres humanos. Todavia, o uso de IAs nos últimos anos têm acrescentado
para as mulheres um problema a mais provocado pela discriminação algorítmica. A postura
antiética e desrespeitosa das Big Techs em relação ao tema tem chamado a atenção há mais de
cinco anos e, mesmo assim, nenhuma norma brasileira sobre tecnologia prevê remédio legal
para garantir a proteção do Estado aos segmentos que mais sofrem com manipulação de
informações e imagens na internet. Aqui, a perda de chance atinge nível exponencial, porque
uma imagem na rede mundial de computadores dificilmente é retirada e oportunidades de
emprego, acadêmicas e mesmo de bem estar podem ser perdidas.
Pensando nisso, em 2021 a UNESCO publicou a Recomendação sobre Ética para a
Inteligência Artificial, apresentando o seguinte conceito de IA:

Os sistemas de IA são tecnologias de processamento de informações que


integram modelos e algoritmos que produzem a capacidade de aprender e
realizar tarefas cognitivas, as quais levam a resultados como a previsão e a
tomada de decisões em ambientes reais e virtuais. Os sistemas de IA são
projetados para operar com vários graus de autonomia por meio da
modelagem e da representação de conhecimento e pela exploração de
dados e cálculo de correlações.
(UNESCO, 2021, p. 10)

Em complemento, no ano de 2023 foi publicado o relatório Os efeitos da inteligência


artificial na vida profissional das mulheres, tendo em vista os diversos casos concretos que já foram
identificadas em que ocorreram discriminação algorítmica, prejudicando direitos devido à

ISSNe 2595-1602 172


privação de oportunidades por causa do recorte de gênero feito nos algoritmos utilizados
por algumas organizações (UNESCO, 2023). Para tanto, a supervisão humana é essencial:

Supervisão humana e determinação 35. Os Estados-membros devem


garantir que sempre seja possível atribuir responsabilidade ética e legal em
qualquer estágio do ciclo de vida dos sistemas de IA, assim como em casos
de recursos judiciais relacionados a esses sistemas, a pessoas físicas ou a
entidades existentes. A supervisão humana se refere, portanto, não apenas
à supervisão humana individual, mas também à supervisão pública
inclusiva, como for apropriado. (UNESCO, 2023, p. 22)

Entre os exemplos que se pode citar estão o caso mundialmente conhecido é o da


empresa Amazon cuja IA indicava apenas homens como qualificados (DASTIN, 2018) –
ainda hoje, se você fizer uma pesquisa de livros no Amazon Books, verá que as obras
publicadas por mulheres pouco aparecem. Outra denúncia, mais recente, foi feita pelos
jornalistas do jornal inglês The Guardian, Gianluca Mauro e Hilke Schellmann, publicada em
08 de fevereiro de 2023: “AI tools rate photos of women as more sexually suggestive than those of men,
especially if nipples, pregnant bellies or exercise is involved” (As ferramentas de IA classificam as fotos
de mulheres como mais sexualmente sugestivas do que as de homens, especialmente se
mamilos, barrigas de grávida ou exercícios estiverem envolvidos). A denúncia envolve
grandes empresas como Google e Microsoft.
Em 19 de junho de 2023, a BBC publicou a reportagem O trauma devastador de quem
teve imagem usada em 'deepfakes' pornôs, em que foram relatados casos reais de mulheres cujas
fotos foram indevidamente colocadas em outros corpos, em situações violentas ou
sexualmente abusivas, por meio do uso de IA (BUSHBY, 2023). A tecnologia atual permite
que direitos da personalidade invioláveis, como imagem, sejam deturpados e ofendidos. Tais
desvios discriminatórios no comportamento das IAs são devidos à maneira como seus
responsáveis as gerenciam, por isso devem existir punições efetivamente aplicáveis para
evitar que, como no caso da Amazon, a IA contribua para a perda de chance pelas mulheres.
A responsabilidade e a prestação de contas são sempre humanas.
Por isso é crucial identificar quem são os atores eticamente responsáveis pelas
decisões e ações que geram, por exemplo, os casos de discriminação algorítmica. E esse
monitoramento das responsabilidades deve perdurar por todo o ciclo de vida desses sistemas
para evitar a exclusão e a violência contra as mulheres como exige a Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (UNITED NATIONS, 1979;
SOUZA et al., 2022). Nesse sentido caminha, o PL 2.338/2023 do Senado Federal, que elenca
como princípios e diretrizes essenciais ao desenvolvimento e aplicação da inteligência
artificial no Brasil e formas de responsabilização e punição dos supervisores humanos das
IAs. Mais importante, com evidente compromisso com a dignidade humana e o combate à
discriminação algorítmica:

Art. 2º O desenvolvimento, a implementação e o uso de sistemas de inteligência


artificial no Brasil têm como fundamentos:

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I – a centralidade da pessoa humana
II – o respeito aos direitos humanos e aos valores democráticos
III – o livre desenvolvimento da personalidade
(...)

Art. 12. As pessoas afetadas por decisões, previsões ou recomendações de


sistemas de inteligência artificial têm direito a tratamento justo e isonômico, sendo
vedadas a implementação e o uso de sistemas de inteligência artificial que possam
acarretar discriminação direta, indireta, ilegal ou abusiva, inclusive:
I – em decorrência do uso de dados pessoais sensíveis ou de impactos
desproporcionais em razão de características pessoais como origem geográfica,
raça, cor ou etnia, gênero, orientação sexual, classe socioeconômica, idade,
deficiência, religião ou opiniões políticas; ou
II – em função do estabelecimento de desvantagens ou agravamento da situação
de vulnerabilidade de pessoas pertencentes a um grupo específico, ainda que se
utilizem critérios aparentemente neutros.
Parágrafo único. A vedação prevista no caput não impede a adoção de critérios
de diferenciação entre indivíduos ou grupos quando tal diferenciação se dê em
função de objetivos ou justificativas demonstradas, razoáveis e legítimas à luz do
direito à igualdade e dos demais direitos fundamentais.

Esse artigo precisa com urgência entrar em vigência no Brasil para evitar posturas
eivadas de preconceito que migram a discriminação que acontece nas relações presenciais
para as que se desenvolvem no ambiente virtual. Não há um hiato entre essas realidades. Os
instrumentos digitais e as novas tecnologias podem ser empregados para reduzir direitos, o
que deve ser fiscalizado e punido pela autoridade pública, visto ofender a Constituição da
República de 1988 e a Agenda 2030, a qual tem por metas mitigar a desigualdade de gênero,
a qual com frequência prejudica chances de desenvolvimento humano das mulheres em
sociedade. Assim dispõe o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5 – Igualdade de
gênero: a) Meta 5.1, acabar com todas as formas de discriminação contra mulheres e meninas;
b) Meta 5.5, garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de
oportunidades; c) Meta 5.b, aumentar o uso de tecnologias para promover o empoderamento
das mulheres (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015).
Para fiscalizar ações discriminatórias, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e o
seu Guia de Boas Práticas preveem que a Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD)
poderá realizar auditoria para verificação de aspectos discriminatórios em tratamento
automatizado de dados pessoais. (BRASIL, 2020, p. 20). Todavia, essa previsão normativa é
insuficiente para responsabilizar os supervisores de IAs para casos como perda de chance,
em razão de a LGPD não oferecer meios sancionatórios adequados que efetivem a proteção
das mulheres e outros grupos discriminados perante ações das Big Techs. Para isso, o PL
2.338/2023 contribuirá mais do que as estratégias atuais da ANPD.

ISSNe 2595-1602 174


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como refletimos, a complexidade tecnológica e os conflitos de jurisdição


internacional podem dificultar a defesa de direitos fundamentais dos usuários desses serviços,
destacando-se negativamente a real discriminação que as mulheres têm sofrido devido à
forma como os algoritmos são feitos e à falta de punição aos seus supervisores. Para mudar
esse cenário de impunidade é crucial a elaboração de legislações mais rigorosas sobre o uso
da inteligência artificial no Brasil. O novo marco tecnológico pode responsabilizar os
gestores que se omitem no dever de mitigar a discriminação no ambiente tecnológico, e,
ainda, combater a cultura de violência contra as mulheres que, infelizmente, continua
presente no Brasil e em outros Estados.
A partir das reflexões apresentadas, conclui-se que o desconforto que as Big Techs
sentem com o aumento do número de normas pelos Estados é causado pelo fato de muitas
delas refletirem em sua cultura organizacional os preconceitos que se denunciou nesse artigo
e pretenderem, pela falsa escusa de liberdade ou autonomia da vontade, reproduzir esse viés
particular em toda a sociedade por meio da interação dos usuários via sistemas de algoritmos.
Por isso, o papel do Estado Democrático de Direito é mais relevante ainda, visto ser a
autoridade pública aquela que pode se interpor entre os mais vulneráveis e as organizações
tecnológicas de grande porte para defender os direitos humanos.

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A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PLANOS DE SAÚDE NA OCORRÊNCIA
DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Cintia Pinto de Souza1


Gressiely Garcez Soares2
Stheffany Annie Nonato Batista dos Santos3

RESUMO

A presente pesquisa tem por objetivo analisar a Responsabilidade Civil e a possibilidade da


responsabilização dos planos de saúde nos casos de violência obstétrica. Para tal fim, utilizou-
se o método dedutivo. Inicialmente foi abordado o conceito de violência obstétrica através
de atos dos profissionais de saúde, bem como instituições hospitalares privadas, contra as
gestantes retirando e restringindo sua autonomia, ou impedindo-as da tomada de decisões
sobre seus partos. Em um segundo momento foi realizado uma análise da Responsabilidade
Civil para que seja apurada a responsabilidade civil médica nos casos de violência obstétrica,
com o enfoque da Constituição Federal de 1988, legislações, tratados internacionais e caso
prática e doutrinas. Por último se analisou a Lei 9.656/98, conhecida como a lei dos planos
de saúde, traçando um paralelo com o Código de Defesa do Consumidor nos contratos de
plano de saúde bem como suas práticas abusivas, para então analisar eventual
Responsabilidade Solidária dos Planos de Saúde com os profissionais de saúde credenciados
junto a eles.

1
Graduada em Direito pela Faculdade Doctum. Capacitada em: advocacia para mulheres pela
EBDM - Escola Brasileira de Direitos das Mulheres. Capacitação Técnica para assistência
jurídica em Vítimas de Violência Doméstica, pela ESA OAB SP., militante pela humanização do
parto e violência obstétrica. Contato: Sousapintoadv@gmail.com
2
Advogada inscrita na OABRJ nº 142.047. Graduada em Direito pelo Centro Universitário da
Cidade do Rio de Janeiro – UNIVERCIDADE. Especialista em Direito do Consumidor pela
Universidade Cândido Mendes - UCAM. Especialista em Direito Médico Universidade Cândido
Mendes - UCAM. Especialista em Processo Civil Universidade Cândido Mendes - UCAM.
Especialista Direito Penal e Processo Penal Universidade Cândido Mendes - UCAM. Delegada
da Comissão de Prerrogativas – CDAP/ OABRJ. Membro da Comissão de Direito médico da 13ª
subseção Teresópolis/RJ. Membro da Comissão de direito médico e da saúde ABA RJ. Contato:
g.garcezadvoabrj@yahoo.com.br
3
Advogada inscrita na OABSP nº 420.740, Especialista em Direito e Processo Civil pela Escola
Paulista de Direito, Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie, Pós-graduanda em Responsabilidade Civil e Contratos pela Verbo Juridico. Graduada
em Direito pela Universidade Anhembi Morumbi. Contato: Stheffany.santos@hotmail.com

ISSNe 2595-1602 179


Ao final dos estudos, conclui-se que a configuração da responsabilidade subjetiva e objetiva
tem sido os meios utilizados pelos tribunais para responsabilização de equipes médicas e
hospitais pelos danos causados com a prática da Violência Obstétrica, e quanto a
Responsabilidade Civil dos Planos de Saúde, a operadora não pode se quedar inerte, devendo
ser responsabilizada pelo hospital conveniado, e este será responsabilizado pela atuação do
profissional de saúde que de caso a Violência Obstétrica.

Palavras-Chave: Violência Obstétrica; Responsabilidade Civil; Danos; Plano de Saúde.

ABSTRACT

This research aims to analyze civil liability and the possibility of making health plans liable in
cases of obstetric violence. For this purpose, the deductive method was used. Initially, the
concept of obstetric violence through acts of health professionals, as well as private hospital
institutions, against pregnant women, withdrawing and restricting their autonomy, or
preventing them from making decisions about their deliveries, was satisfactory. In a second
moment, an analysis of Civil Liability was carried out in order to determine medical civil
liability in cases of obstetric violence, with a focus on the Federal Constitution of 1988,
legislation, international treaties and practical case and doctrines. Finally, Law 9.656/98,
known as the law of health plans, was analyzed, drawing a parallel with the Consumer
Defense Code in health plan contracts as well as its abusive practices, to then analyze possible
Joint Liability of Health Plans Health Health with health professionals accredited with them.
At the end of the studies, it is concluded that the configuration of subjective and objective
responsibility has been the means used by the courts to hold medical and hospital teams
accountable for the damage caused by the practice of Obstetric Violence, and regarding the
Civil Liability of the Health, the operator cannot remain inert, and must be held responsible
by the contracted hospital, and this will be held responsible for the performance of the health
professional who deals with Obstetric Violence.

Keywords: Obstetric Violence ; Civil responsability; Damage; Health insurance.

ISSNe 2595-1602 180

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