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GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
BELFORD ROXO
2021
ELIADABE LUIZ DOS SANTOS
BELFORD ROXO
2021.2
ELIADABE LUIZ DOS SANTOS
Banca avaliadora:
_______________________________________
Orientador: Prof. Dr. Edmilson Duarte de Lima
UNIABEU Centro Universitário
_______________________________________
Prof. Dr. Diogo Cesar Nunes
UNIABEU Centro Universitário
_______________________________________
Profª. Ma. Maria de Fátima Antunes Alves Costa
UNIABEU Centro Universitário
Este estudo tem por objetivo apresentar nossa compreensão do que seria
o role playing game (RPG) a partir das fontes bibliográficas que nos serviram
de base, que em síntese é um jogo de representar uma personagem, num
mundo imaginário, em uma estória improvisada e narrada coletivamente.
Desenvolvendo uma articulação dessa nossa compreensão sobre RPG e os
postulados de Huizinga (2019) em sua obra Homo Ludens: O jogo como
elemento da cultura. Em que ele visa determinar até que ponto a própria cultura
possui um caráter lúdico, objetivando integrar o conceito de jogo no de cultura.
Investigando o jogo a partir de uma perspectiva histórica. De maneira que foi
possível localizar consonância entre suas ideias e a compreensão que fomos
construindo do que seria o RPG. Por fim, nos debruçamos sobre as possíveis
reverberações que o jogo narrativo presente no RPG pode produzir para além
da fronteira do jogo.
This study aims to present our understanding of what role playing game (RPG)
would be from the bibliographical sources that served as our basis, which in
short is a game of representing a character, in an imaginary world, in an
improvised and narrative story collectively . Developing an articulation of our
understanding of RPG and the postulates of Huizinga (2019) in his work Homo
Ludens: The game as an element of culture. In which it aims to determine the
extent to which culture itself has a playful character, aiming to integrate the
concept of game with culture. Investigating the game from a historical
perspective. So it was possible to find consonance between their ideas and the
understanding that we were building on what RPG would be. Finally, we
focused on the possible reverberations that the narrative game present in RPG
can produce beyond the game's borders.
Prólogo .......................................................................................................... 10
Introdução ..................................................................................................... 14
Capítulo 1 – O que é Role Playing Game (RPG)? ...................................... 16
1. 2 Cenários de Campanha ......................................................................... 21
Capítulo 2 – Aventura na trilha do lúdico no RPG ..................................... 24
Capítulo 3 – O jogo narrativo: além do círculo mágico ............................. 31
Considerações finais ................................................................................... 36
Referências bibliográficas ........................................................................... 38
10
Prólogo1
O nascimento...
Os gritos anunciavam uma dor alucinante, eles vinham de dentro de um quarto
simples, iluminado com algumas poucas velas postas na única janela do cômodo
pela qual se via uma elfa deitada sobre uma cama improvisada e diante dela uma
parteira, que com um semblante preocupado a examina e deixa escapar:
– Por Yondalla são gêmeos! Isso pode explicar muita coisa – completa a
pequena senhora halfling. Em pé, ao lado dela sua assistente, uma jovem humana,
aparentemente trêmula e assustada lhe diz:
– Ela está muito fraca não deveria ter andado tanto estando tão perto da hora
do parto. O que ela estava pensando, por que ela faria isso senho...? -
–Ajude-me menina, Lolth levou uma das crianças, está querendo levar a outra
e a mãe também. Diz a parteira.
1
Este pequeno conto criado pelo autor desta monografia trata-se de um background, ou seja, uma
história criada para um personagem de roleplaying game que narra os acontecimentos que
antecedem o início da campanha que se pretende jogar.
11
de sua mãe, o último, todavia, resistiu por muito pouco. A estranha marca de
nascença vista por ela no corpo do tenro bebe se somava a lista de coisas exóticas
que se seguiram naquela noite.
A partida...
Após completar 1462 dias desde seu nascimento uma fome intensa se abateu
sobre a região, foi exatamente neste período que o meio-elfo Orion recebeu a visita
dos que seriam seus novos tutores e mestres. Sacerdotes do norte de uma
longínqua e remota cordilheira de montanhas sem cerimônias ou maiores
explicações chegaram na cabana na clareira do bosque, onde vivia Orion sob os
cuidados da parteira, e levaram o menino.
O despertar...
Orion não era um aprendiz extraordinário, a não ser por sua personalidade
marcante não havia muito que o destacava dos demais. Estudou muitos temas como
12
Por volta de seu vigésimo primeiro ano de vida Orion e alguns companheiros
de sua ordem estavam em uma missão simples, viajar alguns dias até um vale, ao
sudeste das cordilheiras de montanhas para coletar os materiais para produção de
um unguento especial, que fora encomendado para realização de um ritual
misterioso. Orion não estava liderando a missão, não era o mais experiente da
expedição, entretanto, já tinha passado por alguns desafios que sem o devido
preparo levaria a morte de bons guerreiros.
Por um instante pensou o pior, porém, por sorte ou pela vontade dos deuses,
alguns metros abaixo havia uma rocha que ressaltava das paredes do desfiladeiro e
foi ali que ela caiu, evitando assim que ela despencasse até o chão, já estava ferida
dos ataques da criatura e agora com a queda a aliada de Orion está extremamente
vulnerável.
– Acorda!
É quando repentinamente Orion sentiu uma força percorrer seu corpo, seu
cabelo envolto pelas tramas da magia começa a subir como se estivesse
mergulhado em água, uma espécie de chama azul cintilante surge em seus olhos e
a marca de nascença em seu braço direito brilha tão intensamente que ficou visível
mesmo através das teias que lhe envolveu.
INTRODUÇÃO
prazeroso, e talvez diria Huizinga2: lúdico. Escrever sobre um objeto que está
atrelado a estas memórias marcantes parece algo como bolsões de ar que
encontramos no percurso de uma gruta submersa que precisamos atravessar.
Abrimos a discussão no primeiro capítulo visando situar o leitor sobre o que é
roleplaying game, doravante RPG, haja visto, sua especificidade e por ser conhecido
por um público relativamente segmentado. RPG, grosso modo, é um jogo de
representar uma personagem, num mundo imaginário, em uma estória improvisada
e narrada coletivamente. Nesta apresentação falamos de seu surgimento, alguns
dos aspectos que lhe compõe que julgamos relevantes salientar, passamos pela
organização do jogo, os papéis dos narradores e jogadores, até uma breve
descrição de possíveis ambientações.
No início do segundo capítulo expomos como o interesse acadêmico em
estudar o RPG veio aumentando ao longo dos anos, sobretudo, nos últimos 10 anos.
Em seguida elucidamos as motivações de trazer Huizinga, autor que em sua obra
Homo Ludens vai discorrer sobre o conceito de jogo. Para nosso debate
apresentamos algumas das suas postulações que entendemos como mais
essenciais, às articulando com a proposta do nosso estudo. Entre outras coisas,
Huizinga vai dizer que o jogo se baseia na manipulação de certas imagens, numa
certa "imaginação" da realidade, que no caso de RPG nos parece fazer muito
sentido.
Por fim, no último capítulo levantamos a discussão sobre as possíveis
reverberações para além do próprio jogo, isso é, no cotidiano dos narradores e
jogadores de RPG, sobretudo, na possibilidade de reflexões produzidas no encontro
do jogo, bem como o encontro de seus referenciais simbólicos de seus participantes.
Pois entendemos que o RPG foca a construção de uma narrativa, pode-se assumir
que a narrativa tem a potencialidade de, assim como o jogo, transmitir valores para
aquele que com ela se relaciona.
2
Johan Huizinga foi um historiador holandês, reconhecido como um dos mais influentes pensadores
da história da cultura moderna. Autor de obras essenciais como O outono da idade média, que é um
dos seus trabalhos mais relevantes, Nas Sombras do Amanhã e claro, Homo Ludens, que bem nos
serviu nas bases desse trabalho (HUIZINGA, 2019, s/p).
16
Figura 1 - Imagem da série Stranger Things (Netflix) na qual as personagens jogam uma sessão de
RPG
Fonte: https://super.abril.com.br/cultura/o-que-aprendi-jogando-o-rpg-de-stranger-things/.
3
Parece não haver um consenso referente ao ano de criação do RPG. Enquanto certas fontes
apontam que em 1973 publica-se o primeiro RPG, nos Estados Unidos, intitulado DUNGEONS &
DRAGONS, um jogo de fantasia medieval, que usava elementos básicos dos wargames (VASQUES,
2008, p. 1). Outras indicam que o RPG surgiu em 1974 como uma mistura de teatro com jogos de
tabuleiro (BOTREL; DEL DEBBIO, 2006, p.6 apud IUAMA, 2015, p.2)
4
TOLKIEN, J.R.R. The Lord of the Rings. Trilogia de livros (The Fellowship of the Ring; The Two
Towers; The return of the King). Os dois primeiros foram publicados em 1954 e o terceiro em 1955 na
Inglaterra. O livro descreve uma história épica em que heróis de diferentes raças (humanos, elfos,
anões e hobbits) se unem para enfrentar o maligno Sauron. A trilogia foi adaptada para o cinema em
três filmes nos anos de 2001, 2002 e 2003 (PEREIRA, 2004, p. 8).
17
O grupo que pretende jogar RPG se encontra “em local e hora específicos para
jogar um devido “Sistema” de RPG escolhido e aceito por todas as partes”
(DE OLIVEIRA; ROCHA, 2020, P.117). Havendo, portanto, um acordo entre os
participantes sobre o tipo de campanha que desejam jogar, sentam-se à volta de
uma mesa, anotando em papéis e lançando dados, eles experimentam aventuras
heróicas, viagens pitorescas, charadas e enigmas capciosos, batalhas gloriosas e
desafios apavorantes (IUAMA, 2015, p.1).
“Um jogo de RPG apresenta-se, invariavelmente, através de um livro que traz
todas as informações necessárias para dar início a uma partida” (VASQUES, 2008,
p.12). Narradores consultam esses guias para construírem os cenários, NPC’s 5,
desafios, etc. Para então propor os encontros e conflitos, descrevendo por
intermédio da narrativa os cenários e desafios a serem superados pelos jogadores.
Esses conflitos quase sempre exigem do grupo de personagens uma união [sic]
(DURAZZO e BADIA, 2011, p. 144, colchete nosso), pois, frequentemente, a
complexidade dos conflitos postos demandará múltiplas habilidades, o que vem a
ser possível com que preferimos chamar de uma ação coletiva do grupo de
5
Non Player Character - personagem não jogador
18
aventureiros. Isso faz, ao nosso ver, que a cooperação seja um elemento chave no
RPG.
O mundo imaginário no qual se desenrola a narrativa não é habitado apenas
pelos jogadores e é papel do narrador representar os personagens não interpretados
pelos jogadores (NPC’s), ou seja os habitantes desse cenário, como por exemplo, os
antagonistas, os aliados, e até os encontros casuais que eventualmente podem
acontecer.
O livro também oferece aos jogadores um sistema de regras para construírem
seus personagens. As características das personagens ficam dispostas em uma
ficha, ou planilha de personagem e estão sujeitas a esse sistema de regras. Sua
história, desde aspectos da sua personalidade, seus objetivos, motivações,
fraquezas, etc, até suas características mecânicas como atributos, habilidades,
perícias, poderes, etc. Estas submetidas a um sistema de regras que consta no livro.
Não importa se a ambientação aproxima-se o quanto possível da realidade,
ou oferece um cenário totalmente fantástico, o importante é que os dados
sejam verossímeis, que se criem possibilidades condizentes com este
universo ficcional (VASQUES, 2008, p.13).
Dito de outro modo, se um jogador deseja que sua personagem realize uma
determinada ação, suas características devem possibilitar tal ação6.
Consideremos que no universo ficcional escolhido pelo grupo o uso da magia é
uma possibilidade, um personagem poderia conjurar fogo pelas mãos. Ainda que
seja possível, o personagem seria capaz de projetar suas chamas um número de
vezes, a uma determinada distância e intensidade determinados pelo sistema de
regras. Bem como os efeitos que essa conjuração irá causar.
Cada personagem possui acesso a uma ficha de jogo, em que as
informações sobre seu personagem, de habilidades a recursos disponíveis,
são sistematizadas, orientando jogadas envolvendo dados e, desse modo, o
sucesso ou fracasso das ações realizadas dentro do enredo conduzido[sic]
pelo mestre (VASQUES, 2008, s/p, apud MENDES E BOECHAT², 2019, p.
110-110).
Podemos dizer, portanto, que o RPG, não é uma disputa de imaginação. Para
realizar uma ação no jogo, os participantes verificam em sua planilha/ficha de
6
Por exemplo, um jogador descreve que seu personagem irá de um edifício a outro por uma corda,
pois no processo de criação de personagem decidiu que seu personagem seria perito em acrobacia.
O narrador com base no sistema de regras aponta um nível de dificuldade para realização da ação. O
jogador em seguida lança os dados. Caso o resultado nos dados, somados a pontuação em
acrobacia do personagem que consta na ficha superem a dificuldade estabelecida, o personagem tem
sucesso na realização da ação.
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personagem se dispõem dos recursos para completar tal tarefa, sejam capacidades,
objetos, poderes, etc. Em alguns casos, essa ação é mediada por uso de dados
multifacetados, como aqueles de seis faces usados em inúmeros jogos. Uma vez
que o resultado da rolagem seja favorável, a personagem tem sucesso em completar
a ação. De acordo com Vasques citado por Mendes e Boechat,
[...] um dos participantes, denominado “mestre” (ou “narrador”), conduz [sic]
uma história e descreve o cenário na qual ela se passa, enquanto os
“jogadores” interpretam personagens como em papéis teatrais, realizando
testes para superar os desafios preparados pelo mestre ao longo do enredo,
seguindo um conjunto pré-definido de regras (VASQUES, 2008, s/p, apud
MENDES E BOECHAT, 2019, p. 110-110, colchete nosso).
Pensamos que vale elucidar que essa “condução” pode soar como uma
centralização da narrativa por parte do narrador, porém a narrativa se dá também
pelos jogadores, suas ações afetam o rumo da narrativa. E quando não é o caso
pode suprimir um elemento fundamental do RPG: contar história coletivamente.
Como vemos nas próprias palavras de Vasques:
[...] o RPG apresenta características que o diferenciam dos produtos típicos
da Indústria Cultural, pois sua interatividade permite aos jogadores
participarem da elaboração e desenvolvimento da história de forma ativa e
participativa, produzindo a narrativa, fugindo da passividade do simples
espectador, que se torna cada vez mais distante de qualquer atividade
criativa (VASQUES, 2008, p.3)
Essas orientações podem ser uma base para os narradores criarem seus
próprios cenários.
É no interior de um universo ficcional, “também conhecido por ambientação, o
qual constitui o cenário onde os personagens atuarão” (VASQUES, 2008, p.13).
20
“Esse ambiente criado pelas mentes do grupo é um cenário, que passa a existir
apenas na imaginação” (DURAZZO e BADIA, 2011, p. 144). “A história se desenrola
enquanto os jogadores tomam suas decisões, vivendo papéis’’ (IUAMA, 2015, P. 1)
neste mundo de faz-de-conta.
Neste universo ficcional, um campo imaginário criado pelos jogadores, os
mundos de cada um dos jogadores se encontram, fazendo com que as pessoas se
relacionem por intermédio de seus papéis (IUAMA, 2015, p. 2). Pretendemos
aprofundar a discussão desse encontro no terceiro capítulo.
Os jogadores interpretam as ações das suas personagens, os diálogos nos
quais se envolvem, produzindo consequências na narrativa, sendo, assim, ativos na
construção e nos rumos da estória. É, portanto, um jogo narrativo e colaborativo, não
competitivo. Vemos isso ser corroborado em Marcato citado por Nunes:
[...] A diversão não está em vencer ou derrotar os outros jogadores, mas em
utilizar o conhecimento, a inteligência e a imaginação para, em cooperação
com os demais participantes, buscar alternativas que permitam encontrar as
melhores respostas para as situações propostas pela aventura. É um
exercício de diálogo, de decisão em grupo, de consenso (MARCATO, 2002,
apud NUNES, 2004, p.79).
Ora inspirados pela literatura, cinema, histórias reais, etc, outras vezes como
fruto da criatividade dos jogadores e narradores.
[Trazendo] para o presente a arte ancestral de contar histórias; esse antigo
ato de nos reunirmos frente ao fogo e utilizar a arte oral de narrativa dos
antigos mitos ancestrais, as experiências dos antigos, valoriza a
compreensão de nossas raízes culturais. (DE OLIVEIRA; ROCHA, 2020, P.
115-116, colchete nosso)
Uma aventura de RPG pode se dar nos mais diversos cenários de campanha,
como por exemplo, a fantasia medieval, sendo esse um dos gêneros mais populares
entre os rpgistas, com criaturas fantásticas, magias, artefatos encantados, etc.
“Fantasia medieval” é um jargão do meio do RPG. Refere-se a um cenário
em que existem povos de diferentes raças (normalmente humanos, elfos,
anões e halflings/pequeninos) em que heróis como cavaleiros, magos,
sacerdotes, bardos e ladinos, enfrentam monstros e outros seres malignos.
O ambiente é inspirado no imaginário da Idade Média européia, com
castelos, tavernas, nobres, dragões etc. Foi o primeiro tipo de cenário dos
RPGs e até hoje é um dos mais populares (PEREIRA, 2004, p. 8).
Gênero que foi “muito influenciado pela literatura de Tolkien e que se espalhou
pelo mundo rapidamente” (PAVÃO, 2000, p. 18). Tendo como uma das principais
referências o RPG Dungeons & Dragons. Que tem, não por acaso, o mesmo nome
na versão inglês da animação Caverna do Dragão, que estreou no Brasil na década
de 80, inspirado nesse livro-jogo, contendo na animação múltiplos aspectos do RPG
Dungeons & Dragons, e que foram produzidos pela mesma empresa (MENDES;
BOECHAT, 2019 p. 111).
Na animação há uma campanha, uma “luta” (HUIZINGA, 2019, p. 16) que os
personagens precisam vencer: voltar para casa, sendo também esse objetivo em
comum que contribui para a coesão do grupo. Essa campanha é composta por
aventuras intermediárias, em um cenário fantástico, que direta ou indiretamente
abrem caminho para a campanha principal.
Temos ainda o grupo com suas habilidades diversificada “representadas”
(HUIZINGA, 2019, p. 16) como: o arqueiro, o cavaleiro, o bárbaro, o mago etc. e que
juntas lhes permitem superar os desafios propostos pelo mestre dos magos, que
seria uma representação de mestre/narrador.
Igualmente popular é GURPS Generic and Universal Role Playing System,
criado por Steve Jackson no final dos anos 80 foi um dos primeiros sistemas de RPG
que permitia os participantes adaptar o enredo da estória em ambientações
futuristas, cyberpunk, medieval, horror, etc. Pois como o próprio nome indica,
GURPS tem um seu sistema de regras genérico e universal permitindo essa
versatilidade (VASQUES, 2008).
23
E ainda pelo fato de termos visto diferentes campos de saber envolvidos com a
temática do RPG, como por exemplo, educação, pedagogia, medicina, jornalismo,
etc. Ademais, podemos acrescentar a relevância do Huizinga na discussão do lúdico
e sua presença recorrente quando o assunto é jogo, inclusive o RPG.
Concomitantemente, intuímos questionar como estaria se dando o interesse
em investigar o RPG ao longo dos anos. E percebemos que houve um aumento do
volume de trabalhos acadêmicos produzidos sobre RPG.
Tendo a intenção de dimensionar a produção acadêmica sobre o RPG e
satisfazer nossa curiosidade a respeito, fomos ao Google Acadêmico e pesquisamos
Role Playing Game no período de 1975 a 1999 é apareceram aproximadamente 100
trabalhos em sua maioria em língua estrangeira e muitos desses trabalhos não era
sobre RPG, mas sobre game, playing e outros. Incluindo aspas, ou seja, “Role
Playing Game” a busca reduziu a 4 trabalhos, porém o RPG não era exatamente o
objeto de estudo desses trabalhos, apenas um elemento secundário.
Avançamos o período para 2000 e 2010 com a mesma palavra chave: Role
Playing Game e o resultado foi exponencialmente maior, sendo mais de 1.600
trabalhos. Muitos dos quais abordavam o RPG mais diretamente. Quando
adicionamos aspas “Role Playing Game” no mesmo período o número de trabalhos
foi de mais de 700 trabalhos. Por fim, pesquisamos entre 2011 e 2021 da mesma
forma que as duas vezes anteriores e obtivemos os seguintes resultados: Role
Playing Game, quase 8.000 trabalhos e incluído aspas, “Role Playing Game”
obtivemos aproximadamente 3.270 resultados.
Isso nos parece um indicativo que o RPG como objeto de estudo está atraindo
cada vez mais pesquisadores curiosos com essa temática. Sendo tema mais central
com passar dos anos nos trabalhos acadêmicos nos quais ele aparece.
Nas buscas realizadas nos indexadores Google Acadêmico e SciELO foi mais
comum ver o RPG sendo abordado a partir de campos da pedagogia e da educação
e suas possibilidades de contribuições no processo de ensino-aprendizagem, apesar
de não serem os únicos. Um número expressivo desses trabalhos traziam Huizinga
no seu referencial teórico.
Johan Huizinga foi um historiador holandês, reconhecido como um dos mais
influentes pensadores da história da cultura moderna. Autor de obras essenciais
26
como O outono da idade média, que é um dos seus trabalhos mais relevantes, Nas
Sombras do Amanhã e claro, Homo Ludens, que bem nos serviu nas bases desse
trabalho (HUIZINGA, 2019, s/p).
Huizinga (2019) critica a ideia de homo sapiens, pois com “passar do tempo,
acabamos por compreender que afinal de contas não somos tão racionais quanto a
ingenuidade e o culto da razão do século XVIII nos fizeram supor”, viu certo sentido
nas ideias de homo faber, porém diz ser “ainda menos apropriada do que esta [homo
sapiens], visto poder servir para designar grande número de animais” Vai então
propor uma terceira visão de homem, “que se verifica tanto na vida humana como na
animal, e é tão importante como o raciocínio e o fabrico de objetos: o jogo”, sendo,
portanto, o homem de Huizinga representado pela expressão Homo ludens
(HUIZINGA, 2019 s/p, colchete nosso).
Em Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura o autor busca “determinar
até que ponto a própria cultura possui um caráter lúdico” objetivando integrar o
conceito de jogo no de cultura. Investigando o jogo a partir de uma perspectiva
histórica (HUIZINGA, 2019).
Huizinga defende o “jogo como um fenômeno da cultura” HUIZINGA, 2019,
s/p), mas não só isso, ele vai dizer que o jogo é mais antigo que a cultura
(HUIZINGA, 2019, p. 2; 5), diz inclusive que o jogo tem um papel na formação da
cultura. O autor porém adverte que:
O fato de apontarmos a presença de um elemento lúdico na cultura não
quer dizer que atribuamos aos jogos um lugar de primeiro plano, entre as
diversas atividades da vida civilizada, nem que pretendamos afirmar que a
civilização teve origem no jogo através de qualquer processo evolutivo, no
sentido de ter havido algo que inicialmente era jogo e depois se transformou
em algo que não era mais jogo, sendo-lhe possível ser considerado cultura.
A concepção que apresentamos nas páginas que se seguem é que a cultura
surge sob a forma de jogo, que ela é, desde seus primeiros passos, como
que "jogada" (HUIZINGA, 2019, p. 59).
Ele sugere que mesmo em “suas formas mais simples, mesmo no nível
animal”, como o brincar/jogar dos cães que não são “ensinados a atividade lúdica”, o
jogo revela-se nesse brincar de maneira que “experimentam imenso prazer e
divertimento” e “ultrapassa os limites da atividade puramente física ou biológica”.
Abrindo através desse exemplo que há no jogo uma função significante, isto é, que
27
presente no RPG, pois como completa o autor: “ao dar expressão à vida, o homem
cria um outro mundo poético, ao lado do da natureza”(HUIZINGA, 2019, p. 6).
O autor segue apresentando diversos aspectos da cultura que tem “suas raízes
no solo primevo do jogo, a saber, o mito, culto, o direito e a ordem, o comércio e o
lucro, a indústria e a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência”.
Visando desse modo, “mostrar que o puro e simples jogo constitui uma das
principais bases da civilização” (HUIZINGA, 2019, p. 6). Sendo apropriado, a partir
dos exames por ele mostrado, a concepção de homem representada pela expressão
homo ludens.
Não é o propósito desta apresentação trazer de forma pormenorizada toda
discussão examinada por Huizinga a este respeito, recorremos à sua tentativa de
resumir:
as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividade
livre, conscientemente tomada como “não séria” [pois seriedade opõem-se
ao jogo] e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver
o jogador de maneira intensa ou total, [...] desligada de todo e qualquer
interesse material, com a qual não de pode obter qualquer lucro, praticada
dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem
e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a
rodearem-se de segredo e a sublinharem a sua diferença em relação ao
resto do mundo[...] (HUIZINGA, 2019, p. 16).
Tais características, com maior ou menor ênfase, podem com o devido cuidado
serem articuladas com o RPG.
Como já vimos, o RPG é um jogo de representação, de imaginar mundos, de
brincar com a narrativa contando estórias. É, ainda, um hobby para se divertir e
passar o tempo vivendo por intermédio da narrativa, da imaginação e da
interpretação dessas estórias fantásticas. Reunir-se com amigos em volta da mesa
para jogar RPG pode-se dizer que é uma experiência lúdica? É o que seguimos
investigando, todavia, quanto mais nos debruçamos sobre os postulados de
Huizinga mais encontramos consonâncias na sua relação ao RPG.
E segundo Huizinga “a função do jogo nas formas mais elevadas pode, de
maneira geral, ser definido por dois aspectos fundamentais: uma luta por alguma
coisa ou a representação de alguma coisa” (HUIZINGA, 2019, p. 16) e parece-nos
que esses aspectos se mostram de algum modo no RPG.
29
refere à uma imersão dos jogadores. O RPG, especificamente, nos parece um tipo
de jogo com grande potencial para essa imersão.
Durazzo e Badia dizem que “a imersão no que pode ser chamado de tempo
mítico, já que se trata de um rito primariamente narrativo e poiético, criativo, faz com
que os praticantes do RPG re-atualizam suas próprias estórias, num bricolage de
significações e novos conceitos re-elaborados” (DURAZZO; BADIA, 2011, p. 149), o
que abre caminho para nosso discussão no próximo capítulo.
31
narrativa”. Isso porque ela busca apresentar uma explicação, vem pronta, serve para
aquele instante, e logo se torna obsoleta. Não provoca experiência em seus
ouvintes.
Todavia, segundo Durazzo e Badia diz que além de informar, a narrativa oral e
coletiva realiza também a troca de experiência. Pensamos que para tal os
participantes devem ocupar o lugar de narrador, que retira da experiência o que ele
conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas
narradas à experiência dos seus ouvintes (BENJAMIN, 1994, p.201).
A experiência nos parece ser um conceito muito caro na obra de Benjamin e
debruçar-se sobre ele exigiria o tempo de algumas vidas. Nos atrevemos aqui, de
maneira breve, a tentar expor nossa compreensão.
Mas antes vamos a Benjamin em Experiência e pobreza onde apresenta uma
parábola:
Um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um
tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem
qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas
produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que
o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no
ouro, mas no trabalho (BENJAMIN, 1994, p.114).
Ao nosso ver, mesmo que o texto terminasse “o pai lhes havia transmitido uma
certa experiência" estaria de bom tom. Já teria sido capaz de provocar a reflexão do
leitor, de expressar uma sabedoria. Sendo ou não o caso, colocamos-nos a
pergunta: qual experiência? A resposta pode suscitar inúmeras compreensões que
não necessariamente será a que os filhos do homem morimbundo chegaram. A
experiência é um tesouro, ela é um valor do qual alcançamos quando tomamos
consciência, é uma herança passada de boca a boca, de geração a geração.
Provoca movimento, se dá no campo da ação, é útil, e promove transformação,
reflexão. Os filhos que enriqueceram com a farta colheita já não são os mesmos
que cavaram o terreno da vinha.
Benjamin tece sua crítica ao empobrecimento da experiência, que elas estão
deixando de ser comunicáveis. Porque estamos esquecendo de como contar
histórias. Sobre essa preocupação, vai dizer:
Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde
quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque
33
ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte
se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é
ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias
de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las (ibidem, p.
205)
O arcabouço que estruturam tais afirmações dos autores tem sua origem na
teoria do imaginário a partir dos estudos de Durand, na obra As estruturas
antropológicas do imaginário. Recorremos a Lima que sintetiza com precisão como a
teoria sobre o imaginário se organiza, sob o método da convergência, isto é, os
símbolos se (re)agrupam em torno de núcleos organizadores, as constelações, as
quais são estruturadas por isomorfismos, que dizem respeito à polarização as
imagens. O que nos ajuda compreender o que seriam as constelações simbólicas
apresentadas por Durazzo e Badia. Lima ainda acrescenta que os símbolos
constelam porque são desenvolvidos de um mesmo tema arquetípico, porque são
variações sobre um arquétipo (LIMA, 2009, p. 33).
Araújo e Teixeira citando Durand vão considerar o imaginário como o “museu”
de todas as imagens passadas, possíveis, produzidas e a produzir, nas suas
diferentes modalidades da sua produção, pelo homo sapiens (DURAND, 1994, p. 3
apud ARAÚJO; TEIXEIRA, 2009, p. 8). Sintetizam que o trabalho de Durand consiste
em estudar o modo como as imagens se produzem, como se transmitem, bem como
a sua recepção. De modo que o imaginário implica, portanto, um pluralismo das
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jogador entra em contato com o seu poder-ser mais, próprio sendo levado a
refletir sobre essas possibilidades para além do jogo (BARBOSA, 2017,
p.91).
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A ideia de fronteira como entre-lugar expressa a fluidez dos processos sociais cosmopolitas: no
entre-lugar, a justaposição de diversas influências permite a emergência de novas configurações de
identidade[...] Os sujeitos, simultaneamente emissores e receptores, precisam de se deslocar para o
entre-lugar fronteiriço, despindo-se do conforto das relações de poder já cristalizadas para se
lançarem no território instável e surpreendente da interseção de mundos (ÁGUAS, 2013, p. 8; 9)
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A narrativa [...] mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se
imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso (Benjamin, 1994,
p. 205).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo tem sua gênese no desejo de abordar o tema do RPG nesta
monografia. O ato de escolher um objeto de estudo para monografia parece
encharcado de um sentido simbólico sobre o qual este trabalho não se debruçou,
porém sinto agindo em mim em alguma medida. Entretanto nos esforçamos para
não fazer desse estudo apenas um elogio ao nosso objeto de estudo.
Começo esse texto na terceira pessoa e por mais que me esforce para manter
a escrita nesse ritmo, em alguns momentos a primeira pessoa surge neste diálogo,
sobretudo quando faço referência a alguma vivência pessoal. Porém mesmo quando
digo eu, sinto, percebo, ou penso, que não faço isso sozinho. Faço isso
acompanhando dos meus encontros com orientadores, professores, colegas,
cuidadores, familiares, da minha cultura, do meu tempo, de cada conexão que
configurou minha existência no jogo da vida até o momento em que escrevemos
esse texto.
Adotamos o método bibliográfico para realização deste estudo. No início tudo
estava bastante nebuloso. Não havíamos definido um roteiro de antemão, não
sabiamos qual arcabouço teórico lhe daria base. A partir das bibliografias que foram
pertinentes a nossa investigação, pois abordavam o RPG que foram emergindo a
partir das leituras as alternativos de percurso, com uma proposta embrionária, com
algumas ideias e perguntas provisórias, com caminhos abertos, estando dispostos a
ir onde quer que nossas perguntas nos levassem, a saber:
Como lançar mão do RPG como um instrumento que favorece o trabalho
psicoterapêutico, manejando conflitos, tabus, temas sensíveis, sendo o jogo como
um lugar para lidar com desejos de modo socialmente aceitável, só para citar
algumas das possibilidades? Ou ainda, quanto a construção de personagem de
RPG, a história criada para esse personagem e suas características como
temperamentos, personalidade, defeitos e qualidades e etc., examinar esse
conteúdo pode contribuir para compreensão do sujeito no processo
psicoterapêutico? O protagonismo do grupo de RPG na produção coletiva de
narrativas é uma seara para investigação? Poderia o RPG ser potente para o ensaio
de narrativas de novos mundos, abrindo caminho para dar outros contornos ao real,
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
IUAMA, Tadeu Rodrigues. Além das Fronteiras: O RPG como Entre-Lugar. XXXVIII
CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO. 2015. Disponível
em: <https://portalintercom.org.br/anais/nacional2015/resumos/R10-3237-1.pdf>.
Acesso em: 17 maio de 2021.