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UNIABEU CENTRO UNIVERSITÁRIO

GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

ELIADABE LUIZ DOS SANTOS

ROLE PLAYING GAME (RPG), UM JOGO DE REPRESENTAÇÃO: UMA


AVENTURA ENTRE MUNDOS.

BELFORD ROXO
2021
ELIADABE LUIZ DOS SANTOS

ROLE PLAYING GAME (RPG), UM JOGO DE REPRESENTAÇÃO: UMA


AVENTURA ENTRE MUNDOS.

Monografia apresentada à Banca


Examinadora como exigência parcial
para obtenção do Título de
Graduação em Psicologia pela
UNIABEU Centro Universitário.

Orientador: Edmilson Duarte de Lima

BELFORD ROXO
2021.2
ELIADABE LUIZ DOS SANTOS

ROLE PLAYING GAME (RPG), UM JOGO DE REPRESENTAÇÃO: UMA


AVENTURA ENTRE MUNDOS.

Monografia apresentada à Banca


Examinadora como exigência parcial
para obtenção do Título de
Graduação em Psicologia pela
UNIABEU Centro Universitário.

Aprovada em: ___ / ___ 2021.2

Banca avaliadora:

_______________________________________
Orientador: Prof. Dr. Edmilson Duarte de Lima
UNIABEU Centro Universitário

_______________________________________
Prof. Dr. Diogo Cesar Nunes
UNIABEU Centro Universitário

_______________________________________
Profª. Ma. Maria de Fátima Antunes Alves Costa
UNIABEU Centro Universitário

BELFORD ROXO, 2021


Estenor Fagiaga, se você está lendo isso é porque o enigmático percurso
das palavras te alcançou em um amanhã que nos acostumamos chamar de
futuro. Não seja incrédulo! Coloquei as palavras em uma cápsula para que elas
chegassem a você. Talvez você deva estar se perguntando, o que ele sabe
que eu não sei. Um dos grandes empecilhos para o que eu não sei é o que eu
já sei. Você ficaria surpreso ao se lembrar que somos constituídos por nossas
memórias e apesar de poderosas são frágeis como uma embarcação à deriva
navegando em meio a corais. É curioso que o que me trouxe aqui em boa
medida foi encenar a minha realidade. Não sei se isso é bom, não sei se
deveria achar. O que sei é que quando um lado da moeda se mostra o outro
lado se esconde e foram em momento assim que nossa relação começou.

Dedicado à Estenor Fagiaga


Agradecimentos

Quero agradecer a minha companheira que foi ao longo desses anos um


apoio sem o qual eu não teria chegado até aqui, aos meus familiares.
Quero agradecer aos meus amigos de jornada que vivenciaram ao seu
modo esse percurso de alegrias e angústias, que compartilharam sorrisos e
sofrimentos.
Quero agradecer aos professores(as) que me ensinaram o que não fazer.
E mais ainda aqueles(as) que foram um referencial de ética, de compromisso
com o processo formativo, que foram um convite ao pensamento, por vezes
doloroso, mas que formaram bases capazes de suportar as vicissitudes do que
estar por vir, que foram ouvido acolhedor aos meus gritos de socorro.
Foram muitas desconstruções, reformas, ressignificações provocadas
pelo fazer de vocês. Marcaram essa minha trajetória, foram uma companhia
nesta trilha assustadora e a mim desconhecida chama ciência e tradição.
Pude me apropriar de uma chave que levarei comigo pra vida: a de
inventar outras formas de ver o mundo.
“O Brincar é a mais alta forma de pesquisa”.
(axioma atribuído a Albert Einstein)
RESUMO

Este estudo tem por objetivo apresentar nossa compreensão do que seria
o role playing game (RPG) a partir das fontes bibliográficas que nos serviram
de base, que em síntese é um jogo de representar uma personagem, num
mundo imaginário, em uma estória improvisada e narrada coletivamente.
Desenvolvendo uma articulação dessa nossa compreensão sobre RPG e os
postulados de Huizinga (2019) em sua obra Homo Ludens: O jogo como
elemento da cultura. Em que ele visa determinar até que ponto a própria cultura
possui um caráter lúdico, objetivando integrar o conceito de jogo no de cultura.
Investigando o jogo a partir de uma perspectiva histórica. De maneira que foi
possível localizar consonância entre suas ideias e a compreensão que fomos
construindo do que seria o RPG. Por fim, nos debruçamos sobre as possíveis
reverberações que o jogo narrativo presente no RPG pode produzir para além
da fronteira do jogo.

Palavras-chave: role playing game; jogo de representação; jogo narrativo;


jogo; lúdico
ABSTRACT

This study aims to present our understanding of what role playing game (RPG)
would be from the bibliographical sources that served as our basis, which in
short is a game of representing a character, in an imaginary world, in an
improvised and narrative story collectively . Developing an articulation of our
understanding of RPG and the postulates of Huizinga (2019) in his work Homo
Ludens: The game as an element of culture. In which it aims to determine the
extent to which culture itself has a playful character, aiming to integrate the
concept of game with culture. Investigating the game from a historical
perspective. So it was possible to find consonance between their ideas and the
understanding that we were building on what RPG would be. Finally, we
focused on the possible reverberations that the narrative game present in RPG
can produce beyond the game's borders.

Keywords: role playing game; narrative game; play; ludic


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Imagem da série Stranger Things (netflix) na qual as personagens

jogam uma sessão de RPG ............................................................................ 16

Figura 2 – Imagem das personagens da animação Caverna do Dragão ....... 21

Figura 3 – Imagem que ilustra personagem realizando um rastreamento ...... 24

Figura 4 – imagem ilustrando a cosmologia de Dungeons & Dragons ........... 31


SUMÁRIO

Prólogo .......................................................................................................... 10
Introdução ..................................................................................................... 14
Capítulo 1 – O que é Role Playing Game (RPG)? ...................................... 16
1. 2 Cenários de Campanha ......................................................................... 21
Capítulo 2 – Aventura na trilha do lúdico no RPG ..................................... 24
Capítulo 3 – O jogo narrativo: além do círculo mágico ............................. 31
Considerações finais ................................................................................... 36
Referências bibliográficas ........................................................................... 38
10

Prólogo1

O nascimento...
Os gritos anunciavam uma dor alucinante, eles vinham de dentro de um quarto
simples, iluminado com algumas poucas velas postas na única janela do cômodo
pela qual se via uma elfa deitada sobre uma cama improvisada e diante dela uma
parteira, que com um semblante preocupado a examina e deixa escapar:

– Por Yondalla são gêmeos! Isso pode explicar muita coisa – completa a
pequena senhora halfling. Em pé, ao lado dela sua assistente, uma jovem humana,
aparentemente trêmula e assustada lhe diz:

– Ela está muito fraca não deveria ter andado tanto estando tão perto da hora
do parto. O que ela estava pensando, por que ela faria isso senho...? -

E antes de concluir sua pergunta a iluminação quente e amarelada das velas


no pequeno quarto são engolidas por um azul cintilante que entra pela janela. Ao se
aproximar da janela a jovem humana pode ver a lua de uma forma que ela nunca viu
antes, uma grande lua nova no seu esplendor em um tom azul oceano lhe causou
espanto e temor.

–Ajude-me menina, Lolth levou uma das crianças, está querendo levar a outra
e a mãe também. Diz a parteira.

Seguindo de profundo esforço, dores e contrações, finalmente, Levinory a elfa


visivelmente abatida sobre a cama ensopada de sangue, deu à luz ao seu sétimo
filho, diferente dos seus antecessores, este sobreviveu ao nascimento. Pouco antes
de dar seu suspiro final Levinory voltou seu olhar para seu filho como se pudesse
contemplar sua alma e enquanto o acariciava com sua mão disse:

– Viva meu pequeno Orion!

A parteira sabia que parto de gêmeos têm, quase sempre, muitas


complicações, um dos gêmeos já estava sem vida mesmo antes de sair do ventre

1
Este pequeno conto criado pelo autor desta monografia trata-se de um background, ou seja, uma
história criada para um personagem de roleplaying game que narra os acontecimentos que
antecedem o início da campanha que se pretende jogar.
11

de sua mãe, o último, todavia, resistiu por muito pouco. A estranha marca de
nascença vista por ela no corpo do tenro bebe se somava a lista de coisas exóticas
que se seguiram naquela noite.

A principal preocupação da parteira era com o destino daquele indefeso bebê,


ela não fazia ideia da origem de sua família, quem seria o pai ou parentes a quem
recorrer. Sabia, entretanto, que os moradores da região estavam eufóricos, pois a
notícia se espalhou rapidamente que um parto de gêmeos ocorreu sob uma lua
nova, coberta por um manto azul celeste e isso prenunciava que um tempo de
dádivas dos deuses se aproximava, ou pelos menos era isso em que acreditavam.

Realizaram um grande banquete comemorando o dia da lua azul e estavam


ansiosos por colheitas fartas. Outros, porém, diziam que isso era um mau presságio
e que uma iminente calamidade estava para acontecer.

A partida...

Após completar 1462 dias desde seu nascimento uma fome intensa se abateu
sobre a região, foi exatamente neste período que o meio-elfo Orion recebeu a visita
dos que seriam seus novos tutores e mestres. Sacerdotes do norte de uma
longínqua e remota cordilheira de montanhas sem cerimônias ou maiores
explicações chegaram na cabana na clareira do bosque, onde vivia Orion sob os
cuidados da parteira, e levaram o menino.

Goldra, a parteira, portadora de uma intuição que dificilmente a decepcionava


sabia que mais cedo ou mais tarde esse dia chegaria, que o destino de Orion
tomaria rumos que o afastariam dela e não havia o que ela pudesse fazer. Em
alguma medida havia se afeiçoado ao menino. No fundo ela estava com uma sutil
sensação que um fardo estava saindo de sobre seus ombros, era tão supersticiosa
quanto o povo daquela região, entretanto, diferente deles ela gostava de pensar que
os deuses sempre cobram caro por suas “dadivas”.

O despertar...

Orion não era um aprendiz extraordinário, a não ser por sua personalidade
marcante não havia muito que o destacava dos demais. Estudou muitos temas como
12

religião, história, idiomas exóticos, porém eram os treinamentos de combate os que


lhe tiravam o fôlego, sentia que não seria apenas através de meditações e leitura de
pergaminhos que serviria os deuses e nas missões de campo se aplicava como
ninguém. Muitas vezes seu ímpeto o colocava em situações complicadas de vida e
morte, mas por muito pouco escapava dessas adversidades. Por vezes ouvia de
alguns dos outros acólitos:

- Mestiço, um dia sua sorte acaba!

Por volta de seu vigésimo primeiro ano de vida Orion e alguns companheiros
de sua ordem estavam em uma missão simples, viajar alguns dias até um vale, ao
sudeste das cordilheiras de montanhas para coletar os materiais para produção de
um unguento especial, que fora encomendado para realização de um ritual
misterioso. Orion não estava liderando a missão, não era o mais experiente da
expedição, entretanto, já tinha passado por alguns desafios que sem o devido
preparo levaria a morte de bons guerreiros.

Ao chegarem à região designada seu grupo se dividiu em duplas, Perséfone foi


orientada pelo líder da expedição a acompanhar Orion. Era a primeira missão desta
sacerdotisa dos deuses e simpatizante de Kord, divindade da tempestade e o senhor
da batalha. A audaciosa humana, da ilustre família Nesimonem, queria provar seu
valor e não desperdiçaria nenhuma oportunidade para isso. O destino, entretanto,
transformaria uma simples missão de coleta em uma prova de vida ou morte.

Após amarrar cordas no topo de um desfiladeiro coberto por densas brumas


por onde precisavam descer alguns metros a dupla se esgueirava para retirar as
raras ervas que cresciam entre as rochas. Foi quando da escuridão lhes
surpreendeu uma aranha tão grande quando um cavalo, sem muito opção para se
defender contra a criatura por estarem pendurados pelas cordas, Perséfone e Orion
precisavam lutar por suas vidas e tentar evitar seu fim. Desviar e contra-atacar como
fosse possível devido às desfavoráveis circunstâncias. A ardilosa criatura usou sua
teia para imobilizar Orion e em seguida se voltou para sua outra vítima. Enquanto
resistia aos ataques a corda de Perséfone resvalava contra as rochas e se rompeu e
ela caiu, Orion lamentou não ser capaz de estender a mão para segurá-la. Enquanto
ela cai, ele vê o olhar de medo em seus olhos e Orion fica desolado.
13

Por um instante pensou o pior, porém, por sorte ou pela vontade dos deuses,
alguns metros abaixo havia uma rocha que ressaltava das paredes do desfiladeiro e
foi ali que ela caiu, evitando assim que ela despencasse até o chão, já estava ferida
dos ataques da criatura e agora com a queda a aliada de Orion está extremamente
vulnerável.

Imobilizado vendo a implacável criatura se aproximar de sua companheira para


dar cabo de sua vida, lamentando não poder se aproximar para defender Perséfone
desse fim trágico. Ele grita:

– Acorda!

É quando repentinamente Orion sentiu uma força percorrer seu corpo, seu
cabelo envolto pelas tramas da magia começa a subir como se estivesse
mergulhado em água, uma espécie de chama azul cintilante surge em seus olhos e
a marca de nascença em seu braço direito brilha tão intensamente que ficou visível
mesmo através das teias que lhe envolveu.

Então Orion começou a pronunciar num dialeto antigo do idioma primordial


algumas palavras e à medida que ele falava sua voz se materializava em forma
runas místicas que se dirigiam na direção da sua aliada. Ao encontrar em seu corpo
provocaram um efeito curativo poderoso, forte o bastante para tirá-la daquela
posição vulnerável e reagir. De maneira que se esticou até sua espada e ainda
deitada Perséfone a ergueu contra o peito da criatura penetrando até o punho. A
criatura emite um grunhido de dor, enquanto se apoia sobre as patas traseiras e cai
no desfiladeiro, desaparecendo por entre as brumas. Perséfone se levanta, e só
agora percebe que caiu sobre um ninho ainda repleto de ovos.
14

INTRODUÇÃO

Este estudo é produto de algumas indagações que ocorreram durante o


percurso na graduação, neste caso em particular a de psicologia. Percurso esse em
que somos postos diante de inúmeras questões, e uma delas é o que vamos abordar
em nossa monografia. No terceiro ano da graduação essas indagações foram
tomando forma e o desejo de pesquisar sobre role playing game (RPG) foi
amadurecendo.
Nossa intenção, inicialmente, seria algum momento realizar entrevistas, fazer
uso do método etnográfico que a partir da observação do RPG sendo jogado na
prática dariam outros rumos a este estudo. Todavia, as circunstâncias adversas,
ampliadas pelo contexto pandêmico entre 2020 e 2021 foram empecilhos deste
desejo. O que nos levou a realizar uma pesquisa mais vertical na discussão teórica e
que se deu a partir do método bibliográfico.
Parte do entusiasmo de propor o RPG como objeto de estudo, no meu caso, se
deu em razão da minha história pessoal ter se encontrado com RPG no período da
minha adolescência e intuí que esse contato acabou por produzir uma impressão em
minha formação, como por exemplo ter sido um incentivo ao ato de ler, com todos os
benefícios que a leitura pode proporcionar. De acordo com Fortuna:
[...] a função do jogo, o ato de brincar desenvolveria a imaginação e a
criatividade, beneficiaria a aquisição de leitura e escrita, a reflexão, a lógica
e o raciocínio, além de contribuir para o desenvolvimento dos aspectos
figurativos do pensamento (FORTUNA, 2001 s/p, apud SALDANHA;
BATISTA 2009, p. 702).

Podendo, ainda, citar “a expressão oral e corporal, cooperação de equipe,


planejamento e tomada de decisão, resolução de problema, habilidades e
competências interpessoais” (RIYIS, 2004, s/p), só para citar alguns dos elementos
que presumo que o contato com RPG proporcionou.
Não foi surpresa ao verificar em algumas pesquisas produções que vieram
corroborar com que havia inferindo a partir dessa vivência com o RPG.
Embora os exemplos acima citados tenham contribuído para esse entusiasmo
em investigar o RPG na monografia, vale ressaltar que jogar RPG se mostrou uma
experiência divertidíssima, as horas jogando passavam sem se sentir, era instigante,
15

prazeroso, e talvez diria Huizinga2: lúdico. Escrever sobre um objeto que está
atrelado a estas memórias marcantes parece algo como bolsões de ar que
encontramos no percurso de uma gruta submersa que precisamos atravessar.
Abrimos a discussão no primeiro capítulo visando situar o leitor sobre o que é
roleplaying game, doravante RPG, haja visto, sua especificidade e por ser conhecido
por um público relativamente segmentado. RPG, grosso modo, é um jogo de
representar uma personagem, num mundo imaginário, em uma estória improvisada
e narrada coletivamente. Nesta apresentação falamos de seu surgimento, alguns
dos aspectos que lhe compõe que julgamos relevantes salientar, passamos pela
organização do jogo, os papéis dos narradores e jogadores, até uma breve
descrição de possíveis ambientações.
No início do segundo capítulo expomos como o interesse acadêmico em
estudar o RPG veio aumentando ao longo dos anos, sobretudo, nos últimos 10 anos.
Em seguida elucidamos as motivações de trazer Huizinga, autor que em sua obra
Homo Ludens vai discorrer sobre o conceito de jogo. Para nosso debate
apresentamos algumas das suas postulações que entendemos como mais
essenciais, às articulando com a proposta do nosso estudo. Entre outras coisas,
Huizinga vai dizer que o jogo se baseia na manipulação de certas imagens, numa
certa "imaginação" da realidade, que no caso de RPG nos parece fazer muito
sentido.
Por fim, no último capítulo levantamos a discussão sobre as possíveis
reverberações para além do próprio jogo, isso é, no cotidiano dos narradores e
jogadores de RPG, sobretudo, na possibilidade de reflexões produzidas no encontro
do jogo, bem como o encontro de seus referenciais simbólicos de seus participantes.
Pois entendemos que o RPG foca a construção de uma narrativa, pode-se assumir
que a narrativa tem a potencialidade de, assim como o jogo, transmitir valores para
aquele que com ela se relaciona.

2
Johan Huizinga foi um historiador holandês, reconhecido como um dos mais influentes pensadores
da história da cultura moderna. Autor de obras essenciais como O outono da idade média, que é um
dos seus trabalhos mais relevantes, Nas Sombras do Amanhã e claro, Homo Ludens, que bem nos
serviu nas bases desse trabalho (HUIZINGA, 2019, s/p).
16

CAPÍTULO 1 – O QUE É, O QUE É RPG?

Figura 1 - Imagem da série Stranger Things (Netflix) na qual as personagens jogam uma sessão de
RPG
Fonte: https://super.abril.com.br/cultura/o-que-aprendi-jogando-o-rpg-de-stranger-things/.

Role-Playing Games, “sua sigla vem do inglês e significa jogo de interpretação


de papéis; foi criado nos Estados Unidos no ano 19753 e desenvolvido a partir de
jogos estratégicos de guerra que simulavam batalhas em tabuleiros.” (SALDANHA;
BATISTA, 2009, p. 702). Tendo como “criadores, David Arneson e Gary Gygax, fãs
do universo fantástico criado por J.R.R. Tolkien4 em O Senhor dos Anéis, projetaram
um cenário similar a esta aventura para as primeiras versões de RPG que criaram”
(PEREIRA, 2004, p. 8).

3
Parece não haver um consenso referente ao ano de criação do RPG. Enquanto certas fontes
apontam que em 1973 publica-se o primeiro RPG, nos Estados Unidos, intitulado DUNGEONS &
DRAGONS, um jogo de fantasia medieval, que usava elementos básicos dos wargames (VASQUES,
2008, p. 1). Outras indicam que o RPG surgiu em 1974 como uma mistura de teatro com jogos de
tabuleiro (BOTREL; DEL DEBBIO, 2006, p.6 apud IUAMA, 2015, p.2)
4
TOLKIEN, J.R.R. The Lord of the Rings. Trilogia de livros (The Fellowship of the Ring; The Two
Towers; The return of the King). Os dois primeiros foram publicados em 1954 e o terceiro em 1955 na
Inglaterra. O livro descreve uma história épica em que heróis de diferentes raças (humanos, elfos,
anões e hobbits) se unem para enfrentar o maligno Sauron. A trilogia foi adaptada para o cinema em
três filmes nos anos de 2001, 2002 e 2003 (PEREIRA, 2004, p. 8).
17

Também chamado RPG de mesa, ou ainda jogos de representação, teatro da


mente, entre outros. O RPG é um jogo de faz-de-conta, de protagonizar uma
aventura, de superar conflitos e desafios presentes na narrativa e fortalecer-se no
processo, estando desse modo em condições de enfrentar desafios maiores. Outro
ponto relevante é a improvisação.
Para ilustrar, usaremos o exemplo dos filmes no qual as personagens e mesmo
o diretor seguem um roteiro. Porém, no RPG não ocorre da mesma forma, pois tanto
o narrador quanto os jogadores não estão submetidos a um script, o
desenvolvimento da narrativa, ações e diálogos se desenrola de forma espontânea.
Como vemos em Del Debbio citado por Iuama:
[...] jogar RPG significa interpretar um papel. Você finge ser outra pessoa,
age como ela agiria e pensa como ela pensaria. Uma espécie de teatro, só
que não existe um roteiro pronto: a história apenas vai acontecendo, como
na vida real. RPG é um jogo de faz-de-conta, um jogo de contar histórias
(DEL DEBBIO, 1996, p. 1, apud IUAMA 2015b, p. 1).

O grupo que pretende jogar RPG se encontra “em local e hora específicos para
jogar um devido “Sistema” de RPG escolhido e aceito por todas as partes”
(DE OLIVEIRA; ROCHA, 2020, P.117). Havendo, portanto, um acordo entre os
participantes sobre o tipo de campanha que desejam jogar, sentam-se à volta de
uma mesa, anotando em papéis e lançando dados, eles experimentam aventuras
heróicas, viagens pitorescas, charadas e enigmas capciosos, batalhas gloriosas e
desafios apavorantes (IUAMA, 2015, p.1).
“Um jogo de RPG apresenta-se, invariavelmente, através de um livro que traz
todas as informações necessárias para dar início a uma partida” (VASQUES, 2008,
p.12). Narradores consultam esses guias para construírem os cenários, NPC’s 5,
desafios, etc. Para então propor os encontros e conflitos, descrevendo por
intermédio da narrativa os cenários e desafios a serem superados pelos jogadores.
Esses conflitos quase sempre exigem do grupo de personagens uma união [sic]
(DURAZZO e BADIA, 2011, p. 144, colchete nosso), pois, frequentemente, a
complexidade dos conflitos postos demandará múltiplas habilidades, o que vem a
ser possível com que preferimos chamar de uma ação coletiva do grupo de

5
Non Player Character - personagem não jogador
18

aventureiros. Isso faz, ao nosso ver, que a cooperação seja um elemento chave no
RPG.
O mundo imaginário no qual se desenrola a narrativa não é habitado apenas
pelos jogadores e é papel do narrador representar os personagens não interpretados
pelos jogadores (NPC’s), ou seja os habitantes desse cenário, como por exemplo, os
antagonistas, os aliados, e até os encontros casuais que eventualmente podem
acontecer.
O livro também oferece aos jogadores um sistema de regras para construírem
seus personagens. As características das personagens ficam dispostas em uma
ficha, ou planilha de personagem e estão sujeitas a esse sistema de regras. Sua
história, desde aspectos da sua personalidade, seus objetivos, motivações,
fraquezas, etc, até suas características mecânicas como atributos, habilidades,
perícias, poderes, etc. Estas submetidas a um sistema de regras que consta no livro.
Não importa se a ambientação aproxima-se o quanto possível da realidade,
ou oferece um cenário totalmente fantástico, o importante é que os dados
sejam verossímeis, que se criem possibilidades condizentes com este
universo ficcional (VASQUES, 2008, p.13).

Dito de outro modo, se um jogador deseja que sua personagem realize uma
determinada ação, suas características devem possibilitar tal ação6.
Consideremos que no universo ficcional escolhido pelo grupo o uso da magia é
uma possibilidade, um personagem poderia conjurar fogo pelas mãos. Ainda que
seja possível, o personagem seria capaz de projetar suas chamas um número de
vezes, a uma determinada distância e intensidade determinados pelo sistema de
regras. Bem como os efeitos que essa conjuração irá causar.
Cada personagem possui acesso a uma ficha de jogo, em que as
informações sobre seu personagem, de habilidades a recursos disponíveis,
são sistematizadas, orientando jogadas envolvendo dados e, desse modo, o
sucesso ou fracasso das ações realizadas dentro do enredo conduzido[sic]
pelo mestre (VASQUES, 2008, s/p, apud MENDES E BOECHAT², 2019, p.
110-110).
Podemos dizer, portanto, que o RPG, não é uma disputa de imaginação. Para
realizar uma ação no jogo, os participantes verificam em sua planilha/ficha de

6
Por exemplo, um jogador descreve que seu personagem irá de um edifício a outro por uma corda,
pois no processo de criação de personagem decidiu que seu personagem seria perito em acrobacia.
O narrador com base no sistema de regras aponta um nível de dificuldade para realização da ação. O
jogador em seguida lança os dados. Caso o resultado nos dados, somados a pontuação em
acrobacia do personagem que consta na ficha superem a dificuldade estabelecida, o personagem tem
sucesso na realização da ação.
19

personagem se dispõem dos recursos para completar tal tarefa, sejam capacidades,
objetos, poderes, etc. Em alguns casos, essa ação é mediada por uso de dados
multifacetados, como aqueles de seis faces usados em inúmeros jogos. Uma vez
que o resultado da rolagem seja favorável, a personagem tem sucesso em completar
a ação. De acordo com Vasques citado por Mendes e Boechat,
[...] um dos participantes, denominado “mestre” (ou “narrador”), conduz [sic]
uma história e descreve o cenário na qual ela se passa, enquanto os
“jogadores” interpretam personagens como em papéis teatrais, realizando
testes para superar os desafios preparados pelo mestre ao longo do enredo,
seguindo um conjunto pré-definido de regras (VASQUES, 2008, s/p, apud
MENDES E BOECHAT, 2019, p. 110-110, colchete nosso).

Pensamos que vale elucidar que essa “condução” pode soar como uma
centralização da narrativa por parte do narrador, porém a narrativa se dá também
pelos jogadores, suas ações afetam o rumo da narrativa. E quando não é o caso
pode suprimir um elemento fundamental do RPG: contar história coletivamente.
Como vemos nas próprias palavras de Vasques:
[...] o RPG apresenta características que o diferenciam dos produtos típicos
da Indústria Cultural, pois sua interatividade permite aos jogadores
participarem da elaboração e desenvolvimento da história de forma ativa e
participativa, produzindo a narrativa, fugindo da passividade do simples
espectador, que se torna cada vez mais distante de qualquer atividade
criativa (VASQUES, 2008, p.3)

Como já mencionamos, esses aspectos mecânicos do jogo são apresentados


nos chamados livros básicos. Neles, encontram-se informações sobre o sistema de
regras do jogo, instrução para criação de personagem, equipamentos, bem como
possibilidades de cenários, ambientação, antagonistas, etc. Alguns sistemas
oferecem suplementos que
reúnem, de certa forma, um compacto de todo um universo ficcional, com
tudo o que lhe é devido, desde a sua geografia, história, economia e
religião, até a descrição de seus habitantes, com características bastante
detalhadas (VASQUES, 2008, p.12).

Essas orientações podem ser uma base para os narradores criarem seus
próprios cenários.
É no interior de um universo ficcional, “também conhecido por ambientação, o
qual constitui o cenário onde os personagens atuarão” (VASQUES, 2008, p.13).
20

“Esse ambiente criado pelas mentes do grupo é um cenário, que passa a existir
apenas na imaginação” (DURAZZO e BADIA, 2011, p. 144). “A história se desenrola
enquanto os jogadores tomam suas decisões, vivendo papéis’’ (IUAMA, 2015, P. 1)
neste mundo de faz-de-conta.
Neste universo ficcional, um campo imaginário criado pelos jogadores, os
mundos de cada um dos jogadores se encontram, fazendo com que as pessoas se
relacionem por intermédio de seus papéis (IUAMA, 2015, p. 2). Pretendemos
aprofundar a discussão desse encontro no terceiro capítulo.
Os jogadores interpretam as ações das suas personagens, os diálogos nos
quais se envolvem, produzindo consequências na narrativa, sendo, assim, ativos na
construção e nos rumos da estória. É, portanto, um jogo narrativo e colaborativo, não
competitivo. Vemos isso ser corroborado em Marcato citado por Nunes:
[...] A diversão não está em vencer ou derrotar os outros jogadores, mas em
utilizar o conhecimento, a inteligência e a imaginação para, em cooperação
com os demais participantes, buscar alternativas que permitam encontrar as
melhores respostas para as situações propostas pela aventura. É um
exercício de diálogo, de decisão em grupo, de consenso (MARCATO, 2002,
apud NUNES, 2004, p.79).

A contação de estória é um elemento fundamental nos jogos de RPG e


fomenta ao seu modo a oralidade (DE OLIVEIRA; ROCHA, 2020, p.118), todavia,
sua “forma de narrativa se diferencie das narrativas lineares tradicionais”(PEREIRA,
2004, p. 8), uma vez que a narrativa é compartilhada entre os participantes.
A característica atuante do RPG seria, dessa forma, um dos seus principais
destaques, uma vez que ele permitiria a oportunidade de fugir da narrativa
tradicional, oferecendo uma base sobre a qual os jogadores construíssem
coletivamente suas próprias estórias (KLIMICK; BETTOCCHI 2003, s/p,
apud SALDANHA; BATISTA, 2009, p. 703) .

Formar uma roda, viajar por intermédio da imaginação a mundos antigos,


futurísticos, místicos ou pavorosos através da contação de estórias pode ser uma via
de encontro com lendas e mitos.
O mito é compreendido, aqui, como herança comum a toda humanidade.
Dessa herança, variável e presente sob as mais diversas formas em todos
os exemplos sociais, derivam todas as significações humanas, todo seu
substrato simbólico e cultural (DURAZZO e BADIA, 2011, p. 148).
21

Ora inspirados pela literatura, cinema, histórias reais, etc, outras vezes como
fruto da criatividade dos jogadores e narradores.
[Trazendo] para o presente a arte ancestral de contar histórias; esse antigo
ato de nos reunirmos frente ao fogo e utilizar a arte oral de narrativa dos
antigos mitos ancestrais, as experiências dos antigos, valoriza a
compreensão de nossas raízes culturais. (DE OLIVEIRA; ROCHA, 2020, P.
115-116, colchete nosso)

Sendo essa estória contada uma releitura de nossas memórias do passado, de


eventos históricos, obras literárias, da cultura pop, etc ou o produto da imaginação
dos participantes, ainda que atravessada pela cultura dos mesmos, ela se dá na
oralidade.
Cabe ainda mencionar que assim como a cultura pop afetou o RPG, ele afetou
a cultura pop. Inúmeras séries, filmes, livros, sobretudo, jogos eletrônicos beberam
na fonte do RPG

1.2 CENÁRIOS DE CAMPANHA

Figura 2 - Imagem das personagens da animação Caverna do Dragão


Fonte: https://xvcuritiba.com.br/caverna-do-dragao-ganha-poster-e-teaser-revelado-o-misterio-
sobre-a-adaptacao/
22

Uma aventura de RPG pode se dar nos mais diversos cenários de campanha,
como por exemplo, a fantasia medieval, sendo esse um dos gêneros mais populares
entre os rpgistas, com criaturas fantásticas, magias, artefatos encantados, etc.
“Fantasia medieval” é um jargão do meio do RPG. Refere-se a um cenário
em que existem povos de diferentes raças (normalmente humanos, elfos,
anões e halflings/pequeninos) em que heróis como cavaleiros, magos,
sacerdotes, bardos e ladinos, enfrentam monstros e outros seres malignos.
O ambiente é inspirado no imaginário da Idade Média européia, com
castelos, tavernas, nobres, dragões etc. Foi o primeiro tipo de cenário dos
RPGs e até hoje é um dos mais populares (PEREIRA, 2004, p. 8).

Gênero que foi “muito influenciado pela literatura de Tolkien e que se espalhou
pelo mundo rapidamente” (PAVÃO, 2000, p. 18). Tendo como uma das principais
referências o RPG Dungeons & Dragons. Que tem, não por acaso, o mesmo nome
na versão inglês da animação Caverna do Dragão, que estreou no Brasil na década
de 80, inspirado nesse livro-jogo, contendo na animação múltiplos aspectos do RPG
Dungeons & Dragons, e que foram produzidos pela mesma empresa (MENDES;
BOECHAT, 2019 p. 111).
Na animação há uma campanha, uma “luta” (HUIZINGA, 2019, p. 16) que os
personagens precisam vencer: voltar para casa, sendo também esse objetivo em
comum que contribui para a coesão do grupo. Essa campanha é composta por
aventuras intermediárias, em um cenário fantástico, que direta ou indiretamente
abrem caminho para a campanha principal.
Temos ainda o grupo com suas habilidades diversificada “representadas”
(HUIZINGA, 2019, p. 16) como: o arqueiro, o cavaleiro, o bárbaro, o mago etc. e que
juntas lhes permitem superar os desafios propostos pelo mestre dos magos, que
seria uma representação de mestre/narrador.
Igualmente popular é GURPS Generic and Universal Role Playing System,
criado por Steve Jackson no final dos anos 80 foi um dos primeiros sistemas de RPG
que permitia os participantes adaptar o enredo da estória em ambientações
futuristas, cyberpunk, medieval, horror, etc. Pois como o próprio nome indica,
GURPS tem um seu sistema de regras genérico e universal permitindo essa
versatilidade (VASQUES, 2008).
23

No gênero de horror pessoal daremos o exemplo de Vampiro: a máscara,


publicado aqui no Brasil pela editora Devir em 1994, que explora uma ambientação
que é uma versão do mundo contemporâneo punk gótica, com uma atmosfera
densa, onde “[...]o mundo é mais corrupto, mais decadente e menos humano [...]”
(HAGEN, 1992, p.29, apud VASQUES, 2008), cheio de intrigas políticas e eventos
sobrenaturais.
Os jogadores interpretam vampiros que, ao nosso modo de ver, lidam
constantemente com os jogos de poder de uma sociedade vampírica divididas em
clãs, que formam alianças e facções. Lidam também com a sede de sangue, com
uma força interior bestial que os impulsionam e lhes quer dominar, o que
eventualmente acontece. Ele possui uma ênfase na interpretação e na narrativa a
despeito dos elementos mecânicos, ainda que esses não sejam simplesmente
ignorados.
Visamos fazer uma breve descrição do que seria RPG e dos sistemas e
ambientações mais populares entre os rpgistas, RPGista: bem como RPGístico,
trata-se de um neologismo que designa alguém/algo referente ao universo que
participa e compartilha da cultura comum do RPG (DURAZZO e BADIA, 2011, p.
144), apesar de não se esgotarem nos acima citados. Outros títulos gozam de
semelhante impacto e influência no universo rpgístico, inclusive títulos nacionais,
porém suprimimos sua apresentação aqui para não estender esse assunto mais do
que o necessário para esse momento.
24

CAPÍTULO 2 – AVENTURA NA TRILHA DO LÚDICO NO RPG

Figura 3 - Imagem que ilustra personagem rastreando pistas


Fonte: https://www.artstation.com/artwork/4A3N1

Durante a pesquisa deste trabalho voltamos com frequência às nossas fontes e


nas bibliografias nelas presentes, que por sua vez foram nos levando a novas
leituras. O que culminou por nos fazer considerar, naquele momento, como pensar o
RPG enquanto lúdico. Partindo dos postulados de Huizinga (2019), autor de Homo
Ludens: o jogo como elemento da cultura, obra na qual vai discorrer sobre uma visão
de homem e de mundo intrinsecamente relacionada ao jogo.
Esse recorte se deu, principalmente, pelo fato de nos parecer ser um caminho
de investigação que nos permitiria maior ampliação no discorrer deste estudo, no
sentido de não se deter em barreiras disciplinares e ainda por sua característica, ao
nosso modo de ver, interdisciplinar, característica essa que imaginamos ser
fundamental para nossa investigação, haja visto, que o RPG e os aspectos que lhe
compõe se mostram a nós de forma interdisciplinar.
25

E ainda pelo fato de termos visto diferentes campos de saber envolvidos com a
temática do RPG, como por exemplo, educação, pedagogia, medicina, jornalismo,
etc. Ademais, podemos acrescentar a relevância do Huizinga na discussão do lúdico
e sua presença recorrente quando o assunto é jogo, inclusive o RPG.
Concomitantemente, intuímos questionar como estaria se dando o interesse
em investigar o RPG ao longo dos anos. E percebemos que houve um aumento do
volume de trabalhos acadêmicos produzidos sobre RPG.
Tendo a intenção de dimensionar a produção acadêmica sobre o RPG e
satisfazer nossa curiosidade a respeito, fomos ao Google Acadêmico e pesquisamos
Role Playing Game no período de 1975 a 1999 é apareceram aproximadamente 100
trabalhos em sua maioria em língua estrangeira e muitos desses trabalhos não era
sobre RPG, mas sobre game, playing e outros. Incluindo aspas, ou seja, “Role
Playing Game” a busca reduziu a 4 trabalhos, porém o RPG não era exatamente o
objeto de estudo desses trabalhos, apenas um elemento secundário.
Avançamos o período para 2000 e 2010 com a mesma palavra chave: Role
Playing Game e o resultado foi exponencialmente maior, sendo mais de 1.600
trabalhos. Muitos dos quais abordavam o RPG mais diretamente. Quando
adicionamos aspas “Role Playing Game” no mesmo período o número de trabalhos
foi de mais de 700 trabalhos. Por fim, pesquisamos entre 2011 e 2021 da mesma
forma que as duas vezes anteriores e obtivemos os seguintes resultados: Role
Playing Game, quase 8.000 trabalhos e incluído aspas, “Role Playing Game”
obtivemos aproximadamente 3.270 resultados.
Isso nos parece um indicativo que o RPG como objeto de estudo está atraindo
cada vez mais pesquisadores curiosos com essa temática. Sendo tema mais central
com passar dos anos nos trabalhos acadêmicos nos quais ele aparece.
Nas buscas realizadas nos indexadores Google Acadêmico e SciELO foi mais
comum ver o RPG sendo abordado a partir de campos da pedagogia e da educação
e suas possibilidades de contribuições no processo de ensino-aprendizagem, apesar
de não serem os únicos. Um número expressivo desses trabalhos traziam Huizinga
no seu referencial teórico.
Johan Huizinga foi um historiador holandês, reconhecido como um dos mais
influentes pensadores da história da cultura moderna. Autor de obras essenciais
26

como O outono da idade média, que é um dos seus trabalhos mais relevantes, Nas
Sombras do Amanhã e claro, Homo Ludens, que bem nos serviu nas bases desse
trabalho (HUIZINGA, 2019, s/p).
Huizinga (2019) critica a ideia de homo sapiens, pois com “passar do tempo,
acabamos por compreender que afinal de contas não somos tão racionais quanto a
ingenuidade e o culto da razão do século XVIII nos fizeram supor”, viu certo sentido
nas ideias de homo faber, porém diz ser “ainda menos apropriada do que esta [homo
sapiens], visto poder servir para designar grande número de animais” Vai então
propor uma terceira visão de homem, “que se verifica tanto na vida humana como na
animal, e é tão importante como o raciocínio e o fabrico de objetos: o jogo”, sendo,
portanto, o homem de Huizinga representado pela expressão Homo ludens
(HUIZINGA, 2019 s/p, colchete nosso).
Em Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura o autor busca “determinar
até que ponto a própria cultura possui um caráter lúdico” objetivando integrar o
conceito de jogo no de cultura. Investigando o jogo a partir de uma perspectiva
histórica (HUIZINGA, 2019).
Huizinga defende o “jogo como um fenômeno da cultura” HUIZINGA, 2019,
s/p), mas não só isso, ele vai dizer que o jogo é mais antigo que a cultura
(HUIZINGA, 2019, p. 2; 5), diz inclusive que o jogo tem um papel na formação da
cultura. O autor porém adverte que:
O fato de apontarmos a presença de um elemento lúdico na cultura não
quer dizer que atribuamos aos jogos um lugar de primeiro plano, entre as
diversas atividades da vida civilizada, nem que pretendamos afirmar que a
civilização teve origem no jogo através de qualquer processo evolutivo, no
sentido de ter havido algo que inicialmente era jogo e depois se transformou
em algo que não era mais jogo, sendo-lhe possível ser considerado cultura.
A concepção que apresentamos nas páginas que se seguem é que a cultura
surge sob a forma de jogo, que ela é, desde seus primeiros passos, como
que "jogada" (HUIZINGA, 2019, p. 59).

Ele sugere que mesmo em “suas formas mais simples, mesmo no nível
animal”, como o brincar/jogar dos cães que não são “ensinados a atividade lúdica”, o
jogo revela-se nesse brincar de maneira que “experimentam imenso prazer e
divertimento” e “ultrapassa os limites da atividade puramente física ou biológica”.
Abrindo através desse exemplo que há no jogo uma função significante, isto é, que
27

encerra determinado sentido [...] e isso implica a presença de um elemento não


material em sua própria essência” (HUIZINGA, 2019, p. 2).
Isso, grosso modo, seria dizer que a observação do jogo no nível animal indica,
como apontou Huizinga, que o jogo é anterior à cultura. Pois “a existência do jogo
não está ligada a qualquer grau determinado de civilização, ou a qualquer
concepção de universo”.
Se a tensão, alegria e divertimento do jogo nos foi “dado pela natureza”, se os
animais tem o seu jogo, “se nós brincamos e jogamos, e temos consciência disso, é
porque somos mais do que simples seres racionais, pois o jogo é irracional”
(HUIZINGA, 2019, p. 2-4), uma vez que a despeito da razão se mostra sem a
necessidade da mesma.
Para melhor compreensão da defesa de jogo como fator cultural transcrevemos
algumas das próprias palavras de Huizinga:
Encontramos o jogo na cultura, como um elemento dado existente antes da
própria cultura, acompanhando-a e marcando-a desde as mais distantes
origens até a fase de civilização em que agora nos encontramos. Em toda a
parte encontramos presente o jogo, como uma qualidade de ação bem
determinada e distinta da vida "comum"[...] o jogo como forma específica de
atividade, como "forma significante", como função social (HUIZINGA, 2019,
p. 5).

Diz ainda que:


[...] Se verificarmos que o jogo se baseia na manipulação de certas
imagens, numa certa "imaginação" da realidade (ou seja, a transformação
desta em imagens), nossa preocupação fundamental será, então, captar o
valor e o significado dessas imagens e dessa "imaginação". Observaremos
a ação destas no próprio jogo, procurando assim compreendê-lo como fator
cultural da vida (HUIZINGA, 2019, p. 5).

A afirmação de Huizinga que o jogo se baseia na manipulação de certas


imagens, numa certa "imaginação" da realidade e ainda que ele possui uma função
social, nos parece muito cara, sobretudo, quando se tem no horizonte a articulação
que pretendemos fazer com o RPG.
Outro exemplo apresentado pelo autor é que “na criação da fala e da
linguagem, jogando com essa maravilhosa faculdade de designar”, e que “por detrás
de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, é toda metáfora é jogo de
palavras.” (HUIZINGA, 2019, p. 6). Essa nos parece uma afirmação ousada, pois,
coloca que a linguagem é marcada pelo jogo. Exemplo esse que nos cabe bem,
visto que de forma embrionária já abre caminho para pensar o jogo narrativo
28

presente no RPG, pois como completa o autor: “ao dar expressão à vida, o homem
cria um outro mundo poético, ao lado do da natureza”(HUIZINGA, 2019, p. 6).
O autor segue apresentando diversos aspectos da cultura que tem “suas raízes
no solo primevo do jogo, a saber, o mito, culto, o direito e a ordem, o comércio e o
lucro, a indústria e a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência”.
Visando desse modo, “mostrar que o puro e simples jogo constitui uma das
principais bases da civilização” (HUIZINGA, 2019, p. 6). Sendo apropriado, a partir
dos exames por ele mostrado, a concepção de homem representada pela expressão
homo ludens.
Não é o propósito desta apresentação trazer de forma pormenorizada toda
discussão examinada por Huizinga a este respeito, recorremos à sua tentativa de
resumir:
as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividade
livre, conscientemente tomada como “não séria” [pois seriedade opõem-se
ao jogo] e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver
o jogador de maneira intensa ou total, [...] desligada de todo e qualquer
interesse material, com a qual não de pode obter qualquer lucro, praticada
dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem
e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a
rodearem-se de segredo e a sublinharem a sua diferença em relação ao
resto do mundo[...] (HUIZINGA, 2019, p. 16).

Tais características, com maior ou menor ênfase, podem com o devido cuidado
serem articuladas com o RPG.
Como já vimos, o RPG é um jogo de representação, de imaginar mundos, de
brincar com a narrativa contando estórias. É, ainda, um hobby para se divertir e
passar o tempo vivendo por intermédio da narrativa, da imaginação e da
interpretação dessas estórias fantásticas. Reunir-se com amigos em volta da mesa
para jogar RPG pode-se dizer que é uma experiência lúdica? É o que seguimos
investigando, todavia, quanto mais nos debruçamos sobre os postulados de
Huizinga mais encontramos consonâncias na sua relação ao RPG.
E segundo Huizinga “a função do jogo nas formas mais elevadas pode, de
maneira geral, ser definido por dois aspectos fundamentais: uma luta por alguma
coisa ou a representação de alguma coisa” (HUIZINGA, 2019, p. 16) e parece-nos
que esses aspectos se mostram de algum modo no RPG.
29

Incorrendo na possibilidade de sermos redundante, insistimos dizendo que o


RPG é sobre representação, é esse fazer-de-conta nele presente que firmam suas
bases.
Como já mencionamos no primeiro capítulo e falaremos aqui de passagem
para não deixar dúvidas, os aventureiros de uma campanha de RPG,
invariavelmente, serão colocados diantes de conflitos e precisaram travar uma luta,
seja em combates temerários, em uma disputa política, ou uma implacável luta pela
sobrevivência em uma ambiente hostil, desvendar enigmas, etc. Seja qual for o
enredo, uma vez imersos nesse mundo inventado e cheio de desafios, haverá luta e
com todo o esse “imaginário montado, o processo lúdico de interação entre os
participantes se inicia” (DURAZZO e BADIA, 2011, p. 144).
Embora o RPG seja cooperativo, existe nele uma tensão, uma disputa, que
não necessariamente ocorre entre os jogadores, ou entre narrador/mestre contra
jogador. Ela se dá contra o desafio a ser superado pelo grupo. Huizinga vai dizer que
“tensão significa incerteza, acaso” (HUIZINGA, 2019, p. 13) e no RPG esse
elemento de tensão também se faz presente no uso dos dados multifacetados, que
introduzem esse aspecto de acaso. Ser ou não bem sucedido em determinada ação,
viver ou morrer, pode depender de superar o dado, isso é, conseguir no lance de
dado em questão um resultado satisfatório.
Podemos dizer com isso que mesmo o RPG sendo um jogo cooperativo se faz
presente nele alguma tensão. Principalmente, ao nosso ver, por essa aleatoriedade
com uso dos dados e suas repercussões na narrativa que “cria suspense e promove
ludicidade” (ALVES e CASTRO, 2018, p. 31). Ademais, a não existência de um
roteiro, o improviso presente na narrativa parece nos servir como exemplo, pois a
cada interpretação, a cada intervenção dos jogadores a narrativa pode assumir
novos rumos.
É importante mencionarmos que Huizinga diz que: “a essência do espírito
lúdico é ousar, correr riscos, suportar a incerteza e a tensão. A tensão aumenta a
importância do jogo, e esta intensificação permite ao jogador esquecer que está
apenas jogando” (HUIZINGA, 2019, p. 66). Ele vai abordar o “espaço do jogo como
um espaço fechado em si mesmo e ressalta que a atividade do jogar corre em
paralelo à experiência fora do jogo” (SANTOS, 2017, p. 35). Entendemos que se
30

refere à uma imersão dos jogadores. O RPG, especificamente, nos parece um tipo
de jogo com grande potencial para essa imersão.
Durazzo e Badia dizem que “a imersão no que pode ser chamado de tempo
mítico, já que se trata de um rito primariamente narrativo e poiético, criativo, faz com
que os praticantes do RPG re-atualizam suas próprias estórias, num bricolage de
significações e novos conceitos re-elaborados” (DURAZZO; BADIA, 2011, p. 149), o
que abre caminho para nosso discussão no próximo capítulo.
31

CAPÍTULO 3 – RPG, O JOGO NARRATIVO: ALÉM DO CÍRCULO


MÁGICO.

Figura 4 - Imagem ilustrando a cosmologia de Dungeons & Dragons.


Fonte: http://dcosmologia.blogspot.com/

O RPG enquanto jogo de “narrativa oral e coletiva, realiza incessante troca de


informações, experiências e referenciais simbólicos” (DURAZZO e BADIA, 2011, p.
151). Uma questão que se coloca aqui é a distinção entre informação e experiência.
Com nossa leitura afetada por Benjamin (1994) em sua obra O narrador:
considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura, obra que a propósito compõe a
bibliografia de Durazzo e Badia. Nela lemos que para Benjamin informação seria
uma “forma de comunicação7”, que tem sua ênfase nos “acontecimentos próximos”,
que “inspira a verificabilidade”, chega dizer que ela é “incompatível com o espírito
narrativo” e que a difusão da informação seria a “responsável pelo declínio da
7
Em nota, Cardozo e Carvalho vão elucidar que o termo utilizado no original é Mitteilung, referente ao conceito
kantiano de comunicabilidade [Mitteilung] CAYGILL, H. Dicionário Kant, p. 60-61) A comunicabilidade é um
conceito central na antropologia e filosofia da história de Kant, assim como em sua exposição sobre o juízo
estético do gosto. Em Conjunturas sobre o início da história humana, ele descreve o "desejo irrefreável de
comunicar", do primeiro homem, expresso em sons que tinham a intenção de "anunciar sua existência a criaturas
vivas que lhe são estranhas" [...] (BENJAMIN, 1994, s/p)
32

narrativa”. Isso porque ela busca apresentar uma explicação, vem pronta, serve para
aquele instante, e logo se torna obsoleta. Não provoca experiência em seus
ouvintes.
Todavia, segundo Durazzo e Badia diz que além de informar, a narrativa oral e
coletiva realiza também a troca de experiência. Pensamos que para tal os
participantes devem ocupar o lugar de narrador, que retira da experiência o que ele
conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas
narradas à experiência dos seus ouvintes (BENJAMIN, 1994, p.201).
A experiência nos parece ser um conceito muito caro na obra de Benjamin e
debruçar-se sobre ele exigiria o tempo de algumas vidas. Nos atrevemos aqui, de
maneira breve, a tentar expor nossa compreensão.
Mas antes vamos a Benjamin em Experiência e pobreza onde apresenta uma
parábola:
Um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um
tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem
qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas
produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que
o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no
ouro, mas no trabalho (BENJAMIN, 1994, p.114).

Ao nosso ver, mesmo que o texto terminasse “o pai lhes havia transmitido uma
certa experiência" estaria de bom tom. Já teria sido capaz de provocar a reflexão do
leitor, de expressar uma sabedoria. Sendo ou não o caso, colocamos-nos a
pergunta: qual experiência? A resposta pode suscitar inúmeras compreensões que
não necessariamente será a que os filhos do homem morimbundo chegaram. A
experiência é um tesouro, ela é um valor do qual alcançamos quando tomamos
consciência, é uma herança passada de boca a boca, de geração a geração.
Provoca movimento, se dá no campo da ação, é útil, e promove transformação,
reflexão. Os filhos que enriqueceram com a farta colheita já não são os mesmos
que cavaram o terreno da vinha.
Benjamin tece sua crítica ao empobrecimento da experiência, que elas estão
deixando de ser comunicáveis. Porque estamos esquecendo de como contar
histórias. Sobre essa preocupação, vai dizer:
Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde
quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque
33

ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte
se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é
ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias
de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las (ibidem, p.
205)

Como já mencionamos, o RPG tem uma narrativa não linear, os participantes


atuam nela o tempo todo. Se entendermos isso como esse fiar e tecer do qual fala
Benjamin, ou ainda, que sua possibilidade de imersão faz com que se “esqueça” que
estão apenas jogando, “esquecendo de si mesmo”, na medida em que vivem sua
personagem. Nele há uma abertura pela qual a experiência se transmite na
narrativa.
De modo que
essa prática narrativa, além de unir esses participantes num coletivo físico,
presencial, denotando sua unidade, ainda que temporária, enquanto grupo
social”, faz a união do que Durazzo e Badia colocam como “suas
constelações simbólicas, possibilitando as re-flexões tão necessárias à vida
(DURAZZO e BADIA, 2011, p. 151).

O arcabouço que estruturam tais afirmações dos autores tem sua origem na
teoria do imaginário a partir dos estudos de Durand, na obra As estruturas
antropológicas do imaginário. Recorremos a Lima que sintetiza com precisão como a
teoria sobre o imaginário se organiza, sob o método da convergência, isto é, os
símbolos se (re)agrupam em torno de núcleos organizadores, as constelações, as
quais são estruturadas por isomorfismos, que dizem respeito à polarização as
imagens. O que nos ajuda compreender o que seriam as constelações simbólicas
apresentadas por Durazzo e Badia. Lima ainda acrescenta que os símbolos
constelam porque são desenvolvidos de um mesmo tema arquetípico, porque são
variações sobre um arquétipo (LIMA, 2009, p. 33).
Araújo e Teixeira citando Durand vão considerar o imaginário como o “museu”
de todas as imagens passadas, possíveis, produzidas e a produzir, nas suas
diferentes modalidades da sua produção, pelo homo sapiens (DURAND, 1994, p. 3
apud ARAÚJO; TEIXEIRA, 2009, p. 8). Sintetizam que o trabalho de Durand consiste
em estudar o modo como as imagens se produzem, como se transmitem, bem como
a sua recepção. De modo que o imaginário implica, portanto, um pluralismo das
34

imagens, e uma estrutura sistêmica do conjunto dessas imagens infinitamente


heterogéneas, mesmo divergentes (TEIXEIRA, 2009, p. 8).
O RPG aparece, portanto, como um jogo que mobiliza tensões paradigmáticas
e símbolos, por meio de ritos narrativos responsáveis por atualizações de conteúdos
imaginários. Considerando que a interpretação de personagens, aspecto
fundamental do RPG como uma narrativa mítica 8, um ritual, e ainda, mobilizadora de
referenciais simbólicos e imaginários (DURAZZO; BADIA, 2011, p. 157).
Quando aponta-se que RPG foca a construção de uma narrativa, pode-se
assumir que a narrativa tem a potencialidade de, assim como o jogo, transmitir
valores para aquele que com ela se relaciona (IUAMA, 2015, p. 2).
Sobre esse encontro Faeti e Calsa vão argumentar que existe uma íntima
relação entre o jogo e o processo de construção e organização cultural.
Acrescentam, que o caráter lúdico e criativo está presente em nossa forma de
interagir com o mundo, imerso sob a forma de saberes e fazeres que dão sentido e
moldam a nossa vida coletiva (FAETI; CALSA, 2015, p.11).
Há exemplo disso, Barbosa vai apontar que a relação entre jogador e
personagem está atrelada ao seu modo de ser e afeta não só a sua forma de
pensar, mas de agir, de modo que possibilita ou não uma abertura de sentido e
significados que vão além do jogo, repercutindo na vida real (BARBOSA, 2017,
p.11).
Mais do que ouvir a estória narrada, o RPG proporciona estar presente,
representar uma personagem na estória e agir nos rumos que ela pode tomar, esse
é um dos elementos fascinantes do RPG, sendo um convite ao protagonismo, uma
provocação para ser ativo na busca de alternativas aos problemas postos.
Neste universo ficcional, um campo imaginário criado pelos jogadores, os
mundos de cada um dos jogadores se encontram, fazendo com que as pessoas se
relacionem por intermédio de seus papéis (IUAMA, 2015, p. 2). São chamados a se
implicar com as crises colocadas na narrativa.
[...] por estar imerso no universo do jogo e na vivência do personagem, o
RPG, em algum momento, pode vir a ser um instrumento através do qual o
8
narrativa mítica é constituída por re-atualizações constantes, nas quais os indivíduos envolvidos
exercitam a experimentação de significados que os ultrapassam não nos esquecendo de que as
formas mais tradicionais de transmissão de mitos e lendas foram, originalmente, as narrativas grupais
(Durazzo; Badia, 2011, p. 142-143)
35

jogador entra em contato com o seu poder-ser mais, próprio sendo levado a
refletir sobre essas possibilidades para além do jogo (BARBOSA, 2017,
p.91).

Arriscamos dizer que o encontro no RPG e a narrativa da qual ele depende


possibilita levar-se para a fronteira9 do jogo. Mas também trazer dele as
impressões10 desse encontro e que isso é favorecido por seu aspecto lúdico. De
modo que se torna possível intercambiar suas experiências (BENJAMIN, 1994). Dito
de outro forma, assim como os participantes afetam a narrativa levando para ela o
que lhes é próprio, bem como ela, a narrativa, também os afeta, produz efeitos que
os acompanha mesmo depois do jogo ter chegado ao fim.
Neste sentido, essa fronteira que margeia o mundo dos participantes e o
interior do mundo por eles criados nesse encontro, para o que Huizinga vai dar o
nome de “círculo mágico" (2019, p. 12) seria uma intersecção desses mundos.
Entendemos o mundo dos seus participantes, como tudo que lhes constituem
em sua inteireza. Por essa margem permeável, esse entre-lugar transita essa troca,
essa negociação, essas afetações, da qual viemos falando. Sendo o jogo narrativo
do RPG por nós aqui compreendido a partir do pensamento de jogo de Huizinga que
cabe aqui retomar que mesmo depois de o jogo ter chegado ao fim, ele permanece
como uma criação nova do espírito, um tesouro a ser conservado pela memória. É
transmitido, torna-se tradição (HUIZINGA, 2019, p. 12).

9
A ideia de fronteira como entre-lugar expressa a fluidez dos processos sociais cosmopolitas: no
entre-lugar, a justaposição de diversas influências permite a emergência de novas configurações de
identidade[...] Os sujeitos, simultaneamente emissores e receptores, precisam de se deslocar para o
entre-lugar fronteiriço, despindo-se do conforto das relações de poder já cristalizadas para se
lançarem no território instável e surpreendente da interseção de mundos (ÁGUAS, 2013, p. 8; 9)
10
A narrativa [...] mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se
imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso (Benjamin, 1994,
p. 205).
36

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo tem sua gênese no desejo de abordar o tema do RPG nesta
monografia. O ato de escolher um objeto de estudo para monografia parece
encharcado de um sentido simbólico sobre o qual este trabalho não se debruçou,
porém sinto agindo em mim em alguma medida. Entretanto nos esforçamos para
não fazer desse estudo apenas um elogio ao nosso objeto de estudo.
Começo esse texto na terceira pessoa e por mais que me esforce para manter
a escrita nesse ritmo, em alguns momentos a primeira pessoa surge neste diálogo,
sobretudo quando faço referência a alguma vivência pessoal. Porém mesmo quando
digo eu, sinto, percebo, ou penso, que não faço isso sozinho. Faço isso
acompanhando dos meus encontros com orientadores, professores, colegas,
cuidadores, familiares, da minha cultura, do meu tempo, de cada conexão que
configurou minha existência no jogo da vida até o momento em que escrevemos
esse texto.
Adotamos o método bibliográfico para realização deste estudo. No início tudo
estava bastante nebuloso. Não havíamos definido um roteiro de antemão, não
sabiamos qual arcabouço teórico lhe daria base. A partir das bibliografias que foram
pertinentes a nossa investigação, pois abordavam o RPG que foram emergindo a
partir das leituras as alternativos de percurso, com uma proposta embrionária, com
algumas ideias e perguntas provisórias, com caminhos abertos, estando dispostos a
ir onde quer que nossas perguntas nos levassem, a saber:
Como lançar mão do RPG como um instrumento que favorece o trabalho
psicoterapêutico, manejando conflitos, tabus, temas sensíveis, sendo o jogo como
um lugar para lidar com desejos de modo socialmente aceitável, só para citar
algumas das possibilidades? Ou ainda, quanto a construção de personagem de
RPG, a história criada para esse personagem e suas características como
temperamentos, personalidade, defeitos e qualidades e etc., examinar esse
conteúdo pode contribuir para compreensão do sujeito no processo
psicoterapêutico? O protagonismo do grupo de RPG na produção coletiva de
narrativas é uma seara para investigação? Poderia o RPG ser potente para o ensaio
de narrativas de novos mundos, abrindo caminho para dar outros contornos ao real,
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ensaiando no jogo outras alternativas de modos de existência? Ou trata-se de um


lugar para onde foge-se para esvaziar-se, despejando no encontro do RPG as
afetações com a realidade?
Todavia, não havia tempo hábil para nos debruçarmos sobre todas essas
questões, nem tão pouco viabilidade prática, porém pensamos ser importante
elenca-las uma vez que estiveram presentes no processo de elaboração.
Começamos apresentando o que seria RPG, vale dizer que é, metaforicamente
falando, “um dado multifacetado" com diferentes faces. Neste estudo
circunscrevemos, principalmente, ao RPG de mesa. Nossa descrição do que seria
RPG é, portanto, uma das faces de “dado”. Em se tratando de dado uma face se
mostra à medida que outras são suprimidas. Mas estão lá, embora a perspectiva não
permitisse mostrar-se.
Desenvolvemos em seguida uma articulação entre RPG e as contribuições de
Huizinga sobre o conceito de jogo. O que nos permitiu verificar que o RPG apresenta
aspectos que estão em consonância com o carácter lúdico sugerido pela obra Homo
Ludens do autor.
Por fim, enfatizamos o quanto a narrativa da qual RPG depende é potente no
sentido de produzir a partir dos encontros de seus participantes uma troca, uma
impressão que os acompanha para além da fronteira do jogo.
Desde o surgimento do RPG já se somam quase 50 anos, muito para estudar
sobre esse tema. Há muito o que se aprender sobre suas contribuições. Chegamos
ao fim deste estudo com mais perguntas a se fazer do que respostas realizadas. O
desejo de ir a campo estudar o RPG sendo jogado, ouvir o que os rpgistas tem a
dizer sobre o jogo segue nos acompanhando. O que pode vir a ser uma caminho
para um passo adiante, após este encerra aqui seu movimento.
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