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Cadernos de Arte e Antropologia

Vol. 8, No 2 | 2019
Ensaios visuais: etno-artes, desenho, fotografia

Tecendo Conexões: Fios de Flores no Culto à Deusa


Hindu Kali na Guiana
Weaving Connections: Flower Strands in the Worship of the Goddess Kali in
Guyana

Marcelo Moura Mello

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/cadernosaa/2378
DOI: 10.4000/cadernosaa.2378
ISSN: 2238-0361

Editora
Núcleo de Antropologia Visual da Bahia

Edição impressa
Paginação: 50-56

Refêrencia eletrónica
Marcelo Moura Mello, « Tecendo Conexões: Fios de Flores no Culto à Deusa Hindu Kali na Guiana »,
Cadernos de Arte e Antropologia [Online], Vol. 8, No 2 | 2019, posto online no dia 01 outubro 2019,
consultado o 16 setembro 2019. URL : http://journals.openedition.org/cadernosaa/2378 ; DOI :
10.4000/cadernosaa.2378

© Cadernos de Arte e Antropologia


CADERNOSAA
Tecendo Conexões: Fios de Flores no Culto à Deusa Hindu Kali na
Guiana

Marcelo Moura Mello1


UFBA, Salvador-BA, Brasil

Esta série fotográfica acompanha as conexões tecidas entre devotos e devotas da


deusa hindu Kali e divindades em um templo localizado na Guiana. Enfocando
o processo de confecção e circulação de guirlandas de flores, objetiva-se destacar
a permeabilidade de devotos e divindades hindus. Guirlandas não são objetos
imaterais inanimados. Resultam de participações mútuas, pois ligam as ações das
pessoas às divindades e suas extensões: manifestações divinas em corpos de huma-
nos, em formas esculpidas de divindades (“murtis”) e em altares.
Palavras-chave: culto à Kali, flores, hinduísmo, Guiana

As flores têm um papel fundamental nas transações entre pessoas e divindades no culto
à deusa hindu Kali na Guiana, antiga Guiana Inglesa. Flores prefiguram adornos de altares e
corpos, manifestam disposições íntimas, conectam e renovam, com seu desabrochar, conexões
entre humanos e não-humanos. A combinação de diversas flores resulta em uma oferta apre-
ciada sobremaneira pelas deotas [divindades]:2 maalas [guirlandas], que são distribuídas em uma
ambiência e entre diversos corpos.

O culto à Kali [Kali Mai worship] é uma vertente hindu recriada por descendentes de in-
dianos que se deslocaram para a Guiana na condição de trabalhadores contratados [indentured
labourers], entre 1838 e 1917. Nos templos de Kali, divindades hindus, em suas distinas formas,
são cultuadas por meio de preces, cantos devocionais, ofertas de frutas, alimentos, doces, bebidas
e animais, que eventualmente são sacrificados. Se devotos e devotas de Kali realizam ofertas, as

1 Departamento de Antropologia e Etnologia. A pesquisa de campo que deu origem a este ensaio, bem
como a aquisição de equipamento fotográfico, tornou-se possível graças à Universidade Federal da Bahia,
por meio do edital 004/2016 – Programa de Apoio a Jovens Doutores PROPESQ. Agradeço à gestão da
Universidade, em especial à equipe da Pró-Reitoria de Ensino de Pós-Graduação, por tão importante ação. A
Luiz Fernando Caldas Fagundes agradeço pelo estímulo, pelo olhar e por suas palavras. Contato do autor: mm-
mello@gmail.com.
2 Termos nativos estão grifados em itálico neste texto.

Cadernos de Arte e Antropologia, Vol. 8, n° 2/2019, pag. 50-56


divindades, por seu turno, conduzem tratamentos terapêuticos para curar doenças de origem fí-
sica e/ou espiritual, além de servirem como oráculos. Ao se manifestarem nos corpos de especia-
listas religiosos, deuses e deusas participam da vida das pessoas, em especial a deusa Mariamma,
a principal divindade do panteão de Kali, também conhecida, de forma singela, como Mother.

As imagens aqui apresentadas foram capturadas em curtas saídas de campo realizadas em


junho e outubro de 2018 no templo de Blairmont, localizado no litoral da Guiana, na região de
Berbice. Blairmont está localizado em um terreno de aproximadamente 500m², no qual estão
distribuídos onze templos, onde se encontram os altares de dezessete divindades. A configu-
ração espacial de Blairmont é fruto de uma série de intervenções realizadas desde a década de
1960. Ao longo do tempo, diversas árvores foram plantadas no local, dentre as quais neem (ár-
vore sagrada), cajueiros, caramboleiras, coqueiros, limoeiros e mangueiras. Além desses frutos,
arbustos de tulsi (espécie de manjericão), de bétel e pimenteiras fornecem, de um solo consi-
derado sagrado, diversos itens utilizados nos rituais. Dada a importância de se ofertar guirlan-
das aos deuses e às deusas, árvores e trepadeiras das quais se colhem flores recebem cuidados
especiais. Em Blairmont, há alamandas, calotropis, hibiscos, flores de lis, flor de lótus, jasmins,
oleandros e calêndulas.
Veja a galeria de fotos aqui:
https://journals.openedition.org/cadernosaa/2378

A cada semana, rituais de adoração e consagração às divindades [pujas] são performados,


congregando sobretudo indo-guianenses que se declaram hindus. Sob a liderança de sacerdotes
e membros permanentes do templo, cada qual responsável por funções rituais específicas, pes-
soas de várias partes da Guiana buscam auxílio das divindades para se curar de doenças, e/ou
para que elas revelem as causas e as possíveis soluções de seus problemas. Embora Blairmont seja
definido, por seus membros, enquanto um templo de tradição Madrasi (isto é, originário do sul
da Índia), qualquer pessoa, independentemente de sua filiação religiosa ou identidade étnica,
pode participar dos ritos e buscar ajuda. Essas pessoas via de regra são economicamente desfa-

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vorecidas, trabalhadores do corte de cana-de-açúcar, trabalhadoras domésticas, funcionários(as)
de estabelecimentos comerciais, de repartições públicas ou de negócios próprios.

Neste ensaio, retrato principalmente flores e os fios tecidos com elas pelas pessoas.
Hospedado na residência de um sacerdote durante a semana, acompanhei, no templo, cultos se-
manais [service], realizados aos domingos, e um festival religioso, o Navratri [Festival das Nove
Noites]. A pedido de meus interlocutores, retirei tantas fotos quanto possível de diferentes eta-
pas das pujas. Utilizei-me de uma máquina digital Canon T6i para captar não apenas resultados
finais, isto é, guirlandas acabadas. Se a imagem-ato fotográfica imobiliza e captura, temporal
e espacialmente, apenas instantes únicos (Cf. Dubois 1993), busquei, com a série ordenada de
fotografias, reter relances da duração e da extensão da composição de fios emaranhados às flores.

As imagens capturadas ligam-se à tentativa de evocar lembranças e imagens mentais de


minha familiaridade prévia com o culto à Kali, decorrente de pesquisa de doutorado conduzida
entre 2010 e 2012 pelo período de 10 meses (ver Mello 2014). Longe de descrever, mecani-
camente, a sequência de ritos, de forma distanciada e opaca, o ensaio busca retratar vínculos,
ligações, acompanhando o processo de confecção e distribuição de guirlandas de flores frescas
nos rituais do culto à Kali. Objetiva-se reter a permeabilidade de devotos e divindades hindus,
pessoas cujas fronteiras não estão encerradas em um corpo unitário, sendo antes atravessadas
por conexões, pela transferência de substâncias e materiais, pela fluidez de relações de troca (Cf.
Busby 1997; Daniel 1984; Marriott 1976) que se desdobram ao longo do tempo, no transcurso
de atos de devoção levados a cabo no espaço do templo.

As fotografias aqui reunidas têm enquadramentos ora mais abertos, ora mais fechados.
Buscou-se produzir efeitos visuais atentos ao amalgamento de devotos(as) com árvores e arbus-
tos de onde se extraem flores, com as formas esculpidas de divindades (murtis), com as manifes-
tações divinas nos corpos de especialistas religiosos e com artefatos rituais. A atenção conferida
às mãos aponta para as dimensões da troca, da transmissão de afetos e do cuidado. Mãos não
imobilizam; antes, fazem convergir relações de cuidado. Com efeito, homens e mulheres an-
seiam por serem cuidados pelas divindades. Cabe aos humanos, da mesma forma, zelar altares
e murtis, que são ornamentadas não só com guirlandas de flores, mas também com joias, dhotis
(longos tecidos amarrados aos quadris dos homens) e sáris.

O cuidado com as flores – cuja natureza essencialmente efêmera requere atenção ao re-
bento e ao definhamento daquilo que floresce – dá mostras da preocupação em torno do belo
entre os devotos(as) de Kali. Divindades devem ser adornadas, inclusive com guirlandas. Sem
adentrar no longo debate sobre a noção de estética em antropologia (ver, contudo o debate
sobre a categoria na coletânea organizada por Ingold 1996 e, mais especificamente, Goody
1993), a captura de imagens dos circuitos de flores tenta se mostrar atenta a concepções locais
de beleza. As guirlandas de flores são um índice do que há de mais belo, requerendo, para meus
interlocutores, repetidos registros imagéticos. Por mais que o odor, o formato e as cores desper-
tem sensações prazerosas, isoladamente as flores não são atrativas. São os arranjos com outras
coisas, artefatos rituais, corpos e imagens divinas que compõem o belo. Registros fotográficos,
por definição, não captam sensações associadas, por exemplo, ao olfato, embora possam inebriar
até mesmo o olhar de quem contempla guirlandas. Sobrepostas em camadas com outros ador-
nos das divindades, como vestimentas de cores vibrantes, guirlandas de flores dão mostras do
ardor da devoção e da potência criativa divina, resultando em cenas belas.

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Por isso, o pano de fundo de algumas das fotos aqui dispostas inclui altares (antes e de-
pois de serem preenchidos com outras ofertas), devotos(as) em momentos íntimos e parte do
recinto. Embora os membros de Blairmont se utilizem do termo jardim, recinto [compound] é a
palavra mais empregada para se referir ao terreno onde se localiza o templo. O termo, compound,
tem outro significado em inglês: composição. O solo de Blairmont é considerado fértil não tan-
to porque naturalmente o seja, mas sim porque a realização continuada de rituais e o cuidado
com árvores, arbustos e outras plantas possibilitam a expansão, ou mesmo explosão, de fluxos
vitais. Tal como flores, as coisas germinam em Blairmont.

Guirlandas não são objetos imaterais inanimados. Resultam de participações mútuas, pois
ligam as ações das pessoas – a urdidura da devoção mobilizada pelas mãos que entrelaçam mate-
riais diversos para criar guirlandas – às divindades e suas extensões: manifestações em corpos de
humanos, formas esculpidas das divindades [murtis] e altares. Se, efetivamente, o culto semanal
segue uma sequência (a invocação de deuses e deusas deve, necessariamente, ser precedida de
uma série de atos rituais porquanto não seria eficaz), destacar o uso e a presença de flores nos ri-
tuais constitui um caminho analítico para se pensar relações, conexões, arranjos e composições.

***

A coleta de flores tem início ao raiar do sol, no domingo (ver foto 1). O ar refrescante da
madrugada logo dará lugar à intensidade luminar do sol. Gotas de orvalho escorrem pelas fo-
lhas e feixes de luz embrenham e atravessam, pouco a pouco, as brechas entre os galhos, ilumi-
nando progressivamente todo o templo. Colher flores às centenas não deixa de ser monótono,
embora permita acompanhar de perto pequenas modificações e minúsculos detalhes – preâm-
bulo, e relance, das transformações do (e no) templo em dias de puja. Cada árvore se rebantará
e expandirá com o desabrochar das flores. Branco, rosa, fúcsia, vermelho, lilás, roxo, amarelo,
laranja, dourado, tons indefinidos sobejados por luz e sombra: cada pétala transforma-se à sua
maneira (ver foto 2).

Várias flores não serão colhidas, não resplandecerão, ou darão sinais de esmorecimento.
Algumas estarão relativamente murchas, mas dentro de minutos reluzirão. Outras tantas já
refletem beleza e vivacidade, prefigurando a composição da guirlanda, esse todo maior do qual
farão parte. Já aquelas em número escasso, ainda que belas, talvez não convenham para uma
composição harmônica. Deve-se obter quantidade abundante e diversificada de flores, mas não
a esmo. A forma final da guirlanda, sua composição, tamanho e proporção, devem ser prefigu-
radas por quem as apanhará. Por vezes há jasmins em abundância, porém poucos oleandros, ou
vice-versa. Como conciliar escassez com a fartura? (ver foto 3).

Oleandros são indispensáveis, sendo amarrados, junto a um punhado de folhas da ár-


vore sagrada neem, a um dos braços das murtis [formas esculpidas] de divindades que irão se
manifestar nos corpos de especialistas religiosos no decorrer do dia para conduzir tratamentos
terapêuticos. A neem é a própria Divindade, ou, citando meus interlocutores, Mariamma toma a
forma de neem para curar. Esse instrumento/veículo de cura é utilizado pela Deusa desde tempos
imemoriais, quando a varíola assolou vilarejos da Índia. E do subcontinente os antigos trouxe-
ram a árvore sagrada, pois não é possível fazer puja [ofertar] sem neem. A íntima conexão entre
o culto à Kali e a Índia seria incompleta se limitada fosse à manutenção, de um lado a outro
do oceano, do panteão de divindades. Uma árvore nativa do subcontinente faz parte do ser de
Mariamma. Sua transplantação seria inacabada sem a neem e apesar das distâncias, a geografia

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sagrada da Índia, para parafrasear Eck (2012), se materializa nas árvores de neem plantadas no
templo de Blairmont.

Murtis nunca deixam de ser adonardas com guirlandas, ainda que artificiais e de plástico.
A rotina não permite sua confecção diária – sonho acalentado por sacerdotes, mas de difícil
concretização por conta das necessidades práticas de devotos. Ainda assim, murtis nunca estão
nuas, e anseiam, elas próprias, por serem preenchidas com diversas camadas de guirlandas de
flores frescas, ou ao menos receberem um punhado de flores. Ofertar é zelar (ver foto 4).

Deixar de ofertar e/ou fazer puja não é um ato livre de consequências. As divindades pre-
cisam ser glorificadas sempre. Ao mesmo tempo, elas têm ciência das dificuldades de seus filhos,
mostrando-se compreensivas caso alguém não tenha recursos para fazer pujas mais elaboradas.
Contudo, mesmo um mendigo faminto pode regalar as deotas com flores. Quem se furta até
mesmo de depositá-las nos altares não tem direito de queixar-se da vida e de pleitear algo dos
deuses. Não é possível dar tudo às divindades; mas sempre há flores (ver foto 5).

Árvores floríferas exigem dedicação. Devem ser regadas frequentemente, não apenas nos
dias de domingo, do contrário desbotam e desfalecem. Intempéries climáticas não são, entre-
tanto, os únicos agentes de esmorecimento das árvores. Pessoas impuras podem gerar efeitos
irreversíveis e há uma constante vigilância sobre quem pode, ou não, ter contato com as flores. É
indispensável se abster do consumo de alcool, de fibra animal e de relações sexuais para adentrar
em um templo. Do contrário, não só a presença, mas incluso o contato com itens rituais, murtis
e ofertas deve ser evitado.

Por essa razão, é preferível que apenas membros assíduos do templo colham flores, em es-
pecial aqueles que têm por incumbência zelar por altares. Frequentadores do local trazem suas
flores de casa, mas nunca guirlandas prontas. Aos poucos, as pessoas afluem ao local e antes de
rezar estendem tecidos no chão, onde preparam ofertas e guirlandas. Uma vez prontas, depo-
sitam-as no altar, sem ter contato direto com as murtis. São os assistentes que, após girarem
esse artefato em volta do fogo (para eliminar eventuais impurezas), colocam as guirlandas no
pescoço das murtis, que são meras representações das divindades, objetos inertes, mas as divin-
dades em si mesmas (Mello 2018). O templo igualmente oferta suas guirlandas, que devem ser
particularmente majestosas, demorando horas para serem feitas. Indivíduos que manifestarão
tal ou qual divindade devem, necessariamente, ofertar ao menos uma guirlanda (ver foto 6).

Outrossim, a disposição de espírito das pessoas também produz efeitos. Falta de foco e
concentração pode arruinar todo o trabalho envolvido na confecção da guirlanda, regalo bem ao
gosto das divindades. A destreza das mãos, com seus gestos ligeiros e harmônicos, de crianças
a idosos com dificuldade de locomoção, impressiona ao observador externo. Sobretudo porque
não se toma flores de qualquer jeito, seja para colhê-las, dispô-las em guirlandas, alcançá-las a
outrem ou ofertá-las às divindades. Rápidos em palavras e em suas lides no templo, devotos da
deusa Kali como que intercalam pequenas pausas em seus afazeres quando depositam ofertas
como flores aos pés das murtis, em seus altares. Antes de serem entregues, essas ofertas são apro-
ximadas do corpo – dos sentimentos e pensamentos – de quem faz a devoção. As mãos fazem
um movimento de dentro para fora, transbordam algo de si para as divindades (ver foto 7).

Um fio de cor branca é enlaçado à agulha. Flores são apanhadas em número simétrico. A
agulha é posta em ação de forma cadenciada, atravessando caules, como se dançasse lentamente,

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um passo por vez. O fio é preenchido; torna-se carregado de sequências de flores amalgamadas
com folhas; ganha corpo, se alarga, brota, germina. Mais do que um simples objeto, é um ema-
ranhado das linhas de interconexões múltiplas entre divindades e humanos (ver foto 8).

Fazer puja, ofertar, é mais do que um ato mecânico. Demanda envolvimento, empenho e
comprometimento, inclusive mental. Assim, não é apenas no momento das rezas que os pen-
samentos devem estar enfocados nas divindades. Ofertar é dar algo de si, é transmitir sentimen-
tos, afetos, estados de espírito. Fazer guirlandas de flores frescas é, portanto, um dos atos mais
singelos e verdadeiros de devoção: exige tempo, paciência, concentração, habilidade, senso de
beleza e harmonia, cuidado (lindos ornamentos podem ser arruinados em dias de calor inten-
so), circunspeção, talento, gentileza e certo despreendimento: tal como o odor exalado de cada
pétala, guirlandas têm existência relativamente fugidia (ver foto 9).

Durante a realização da puja – oferta semanal às divindades conduzida por sacerdotes em


nome do templo – alguns corpos chacoalham. A sonoridade dos cânticos, rezas, tamborins,
tambores invocatórios, sinos e demais instrumentos convoca a presença divina, que produz
vibrações em devotos(as). A manifestação irrompe então, e a depender da ocasião, guirlandas
serão colocadas nessas pessoas-divindades. Os movimentos corporais, animados pelo poder
divino [shakti], ressoam, lançando ao ar flores despedaçadas por gestos intensos. Manifestações
requerem água, para esfriar a temperatura de seus veículos. Essa torrente, primeiramente, dá
maior vivacidade às flores – dá cor a pétalas ressecadas; ao cabo, entretanto, as torna murchas
(ver fotos 10 e 11).

É fundamental ressaltar: não se trata de mero acessório decorativo ou de uma troca uni-
direcional. Todas as murtis devem ser adornadas com ao menos uma guirlanda. As deotas que
se manifestam nos corpos de humanos contam com um número extra de guirlandas, visto que
antes da invocação parte delas é retirada das murtis e posta em volta do pescoço das pessoas que
servirão de veículos aos deuses e às deusas. Não à toa, marlos [médiuns, em tradução literal] se
encarregam de zelar os altares das divindades que se manifestam em seus corpos (ver foto 12).

Ofertas de devotos e de devotas são preparadas ao longo dia. Dispostas em altares, arruma-
das [pack] por assistentes, as ofertas têm sua matéria espiritual consumida pelos deuses e deusas,
por meio das murtis (ver, dentre outros, Babb 1981; Eck 1981; Mello 2018; Stephanides &
Singh 2000). Guirlandas estão em contato com as divindades – dispostas nos altares, envoltas
nas murtis ou então redistribuídas entre marlos. Durante as sessões oraculares e tratamentos
terapêuticos, as divindades que se manifestam transmitem seu poder [shakti] e sua energia aos
devotos; concedem-lhes bençãos, alimentam-os com folhas de neem, oferecem regalos, como
pétalas de flores. Objetos de veneração e devoção, deuses e deusas tornam os corpos de devotos
mais permeáveis a parte de suas próprias essências. A Mother está em tudo; em pequenas e grandes
coisas, costuma-se dizer em Blairmont (ver foto 13).

Do solo às árvores, da ornamentação das guirlandas às murtis, das murtis às manifestações,


das divindades em corpos humanos a devotos. Guirlandas entrelaçam flores e folhas, seus fios
vinculam, constituem um circuito de comunicação. Movimentos das mãos enlaçam, interligam,
atam e unem flores, sentimentos, divindades e pessoas. Guirlandas estão imersas em ciclos
vitais, fazendo emergir, e renovando, os fios que ligam os humanos às divindades (ver foto 14).

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Referências Bibliográficas

Babb, Lawrence. 1981. “Glancing: visual interaction in Hinduism”. In: Journal of Anthropological
Research, v. 37, nº 4, p. 387-401.
Busby, Cecilia. 1997. “Permeable and partible persons: a comparative analysis of gender and
body in South India and Melanesia”. In: JRAI (New Series), nº 3, p. 261-278.
Daniel, Valentine. 1984. Fluid signs. Being a person the Tamil way. Berkeley: University of
California Press.
Dubois, Philippe. 1993. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus.
Eck, Diana. 1981. Darsan. Seeing the divine image in India. New York: Columbia University
Press.
_____. 2012. India. A sacred geography. New York: Harmony Books.
Goody, Jack. 1993. The culture of flowers. Cambridge: Cambridge University Press.
Ingold, Tim (ed.). 1996. Key debates in anthropology. London: Routledge.
Marriott, McKim. 1976. “Hindu transactions: diversity without dualism”. In: Kapferer, Bruce
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behavior. Philadelphia: Institute for the Study of Human Issues, p. 109-142.
Mello, Marcelo. 2014. Devoções manifestas. Religião, pureza e cura em um templo hindu da deusa
Kali – Berbice, Guiana. Tese de Doutorado (Antropologia Social). Rio de Janeiro: Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
_____. 2018. “Murtis em movimento. Relações entre pessoas, coisas e divindades em um templo
hindu na Guiana”. In: Mana – Estudos em Antropologia Social, 24(1): 103-130. Disponível
em: http://www.scielo.br/pdf/mana/v24n1/1678-4944-mana-24-01-103.pdf
Stephanides, Stephanos & Singh, Karna. Translating Kali’s feast. The goddess in Indo-Caribbean
ritual and fiction. Amsterdam: Rodopi, 2000.

Weaving Connections: Flower Strands in the Worship of the


Goddess Kali in Guyana
This photographic essay explores the relations between devotees of the Hindu goddess Kali and dei-
ties in a temple located in Guyana. Focusing on the process of creation and circulation of garlands of
flowers, the essay aims to highlight the permeability of devotees and Hindu deities. Garlands are not
inanimate immaterial objects. They result from mutual participation, since they connect people’s ac-
tions to deities and their extensions: divine manifestations in human bodies, sculpted forms of divinity
(“murtis”) and altars.
Keywords: Kali worship, flowers, Hinduism, Guyana

Recebido em: 2018-12-21


Aceitado em: 2019-02-17

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