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Culinária
Na cozinha de terreiro são produzidas as iguarias que tanto seduz o visitante apreciador das
festas e do sabor da ‘comida de azeite’. Os interlocutores da pesquisa retratam a comida de
terreiro pelo seu sabor e seu poder aglutinador nas cerimônias, na construção dos vínculos e
relações comunitárias. A ‘comida de azeite’ como foi referida nas entrevistas, atrai a
comunidade pelo sabor característico que marca algumas das preparações feitas nos terreiros de
candomblé.
Lima (2010) fala do uso de termos ‘comida de azeite’, ‘comida baiana’ para designar a cozinha
ou culinária própria da região do recôncavo baiano, cujo dendê é um dos ingredientes mais
marcantes. O termo ‘dendê’ vem de ndende, em kimbundo, língua originária das regiões
chamadas banto da África Subsaariana. Assim como a nomenclatura, a palmeira (Elaeis
guineenses), cujo fruto (dendê) produz o azeite vermelho, tem também origem botânica em
terras africanas (LIMA, 2010; LOPES, 2012).
Dada à importância do uso do azeite de dendê nas preparações culinárias do recôncavo e sua
origem e uso por descendentes africanos o azeite dá nome não só à culinária, mas também às
pessoas que o utilizam, tal é a relação simbólica do dendê com a matriz cultural africana. A
relação simbólica do dendê com o povo de terreiro é direta, derivando expressões como ‘pessoa
do azeite’, ‘povo do azeite’ referindo-se aos adeptos do candomblé.
Souza Jr. discorre sobre a comida do candomblé, definindo-a como sendo “um conjunto de
‘modos de preparar’ articulados num universo religioso, reconstruído no Brasil, que obedece a
certas normas e cumpre preceitos determinados, prescritos por ritos de cada terreiro de
candomblé” (SOUZA Jr., 2009, p.18). ‘Comida de orixá’, ‘comida de santo’, ‘comida votiva’,
‘comida ritual’, ‘comida de oferenda’, ‘comida de fundamento’, ‘comida sagrada’ são
expressões utilizados pelos diversos autores que escreveram sobre o tema e pelos interlocutores
da pesquisa para designar as preparações que são dedicados ao culto religiosos em questão. As
simbologias presentes nos ritos afro-brasileiros, as quais estão fortemente relacionadas ao
alimento, dão sentido ao comer nos terreiros de candomblé, recriando vínculos desfeitos e
deslocados com a diáspora, remontam à terra de origem ainda que de maneira recriada e
ressignificada em outro território.
A muzenza Amina fala da dualidade que cerca a comida de candomblé: Rejeição, por se tratar
de uma comida que tem a marca da religiosidade afrobrasileira, dessa forma alvo do racismo
religioso, e atração, por suas características sensoriais peculiares e familiares. Ademais, a
comida de terreiro, seja a servida ao público ou ofertada aos orixás, imprime identidade a quem
faz e a quem come.
Stuart Hall (2003), teórico culturalista, escreveu sobre identidade na diáspora entre outros
estudos. Traz elementos valiosos de reflexão sobre nossa realidade com base em um
questionamento a cerca da concepção de identidade pós-diáspora diante de um processo
histórico colonial de disjuntura forjado nas relações de poder, negação e rupturas. Ele ressalta
que esse questionamento insere-se no âmbito conceitual e epistemológico, mas também
empírico, portanto pergunta “o que a experiência da diáspora causa a nossos modelos de
identidade cultural?”.
Kabengele Munanga (2012) escreve que identidade cultural de um grupo se constitui a partir da
consciência de sua distinção comparativa com o outro. Assim como Hall (2003), compreende
que as identidades na diáspora são múltiplas. Assinala alguns componentes relevantes para a
constituição de identidade coletiva, tais como a língua materna, capaz de interpretar a cultura
peculiar do grupo; a história capaz de criar um elo de continuidade com o passado nas terras de
origem comum ao grupo, além de outros fatores.
Para os grupos religiosos do candomblé, Munanga (2012) refere que há uma atenuação no
prejuízo de ruptura histórica e linguística provocada pela colonização. Isso porque, os ritos
religiosos permitem contato com línguas maternas africanas e com história oral mítica, capazes
de estabelecerem um elo com uma origem comum delineadora de sentido de pertencimento e
continuidade. As línguas africanas atravessam o ato alimentar, seja nas rezas e cantos que
acompanham os ritos de comer, seja na denominação de alimentos e utensílios de cozinha. Nos
Terreiros de tradição cultural Angola há uma predominância de termos oriundos do vocabulário
kimbundo, kicongo, ambundo e outras línguas de raiz semelhante, originárias das regiões banto.
A comida é um traço relevante de memória e identidade cultural que num contexto colonial e de
rupturas da diáspora torna-se elemento de vínculo com os antepassados. Para além do vínculo
cultural com a terra matriz africana, o alimento no terreiro de candomblé estabelece vínculo
com os ancestrais, com os inkices, fortalece os vínculos comunitários da família reconstituída
pelos laços de irmandade (a família de santo) e os laços comunitários com a comunidade
externa ao terreiro.
O Tata de inkice do terreiro em estudo expressa que o alimento ocupa múltiplas dimensões no
terreiro, seja como elemento sagrado que promove a relação entre as pessoas e os inkices, seja
como meio de recepcionar, alimentar e acolher a comunidade no terreiro, e também como forma
de reelaborar a noção de ancestralidade enquanto categoria de cultura ‘africana’.
As cerimônias festivas são eventos em que fica bem evidente a sacralização da comunhão das
pessoas com os inkices pelo alimento. Nessas cerimônias o orixá/inkice oferta sua comida para
a comunidade, firmando, dessa forma, uma relação de vínculos recíprocos entre humanos e
deuses (SOUZA Jr, 2009).
Por ser considerado sagrado, o alimento é tratado de forma respeitosa pelos integrantes do unzó.
O respeito ao alimento, por ele fazer relação direta com os inkices, condiciona a forma como o
alimento é tratado desde o momento de extração do ambiente natural, passando pelo preparo, o
comer até o descarte. O uso alimentar não pode estar dissociado do equilíbrio dos ecossistemas,
nem do bem estar dos humanos em sociedade porque todos os elementos estão vinculados e
sincronizados com a ancestralidade. A sustentabilidade ambiental e social é uma dimensão do
conceito de Segurança Alimentar e Nutricional que está entranhada na cosmovisão africana
presente no candomblé.
O alimento serve de veículo de comunicação e vínculo com os inkices e também com o coletivo
do terreiro. Essa dimensão é explicada por Denize Ribeiro (2013) a partir da cerimônia do Borí.
Borí significa adorar a cabeça. É uma cerimônia terapêutica em que se dá de comer à cabeça.
Nos terreiros de tradição angola usa-se o termo “Gudiá Mutuê”, a cabeça que come, ou kudya
(comer) mutuè (cabeça) em Kimbundo. Também significa dar de comer ao inkice/orixá de um
indivíduo com intuito de fortalecê-lo e propiciar equilíbrio e renovação de energia. Nessa
cerimônia, parte dos alimentos presentes no rito é ofertada ao orixá/inkice, outra parte é ingerida
e compartilhada em comunhão com o grupo de adeptos presentes na cerimônia. Dessa forma,
estabelece-se vínculo entre o indivíduo, orixá/inkice e a comunidade do terreiro (RIBEIRO,
2013). A makota Nizinga afirma que todo alimento guarda relação com os inkices e que na
comunhão desse alimento com as entidades o elo de vinculação como inkice é ampliado, pois,
nas palavras dela, “você tá comendo aquilo que o orixá comeu”.
Eduardo Oliveira (2006) escreve sobre a cosmovisão africana no Brasil, para tanto analisa a
estruturação de civilizações africanas, sua organização social e cultural. Um dos pontos
discutidos como característica da cosmovisão africana é a noção de universo em que todos os
seus elementos são interligados como um todo articulado.
O ser humano é totalmente dependente de tudo que compõe o universo, de todos os elementos
naturais como os vegetais, os animais, a água, as rochas, o ar, a terra, tudo. Além disso, o ser
humano traz em si também a natureza divina. Sua existência está ligada em essência ao divino e
à natureza. O humano é o resultado da interação de todos os elementos do universo, dos
elementos da natureza, das relações sociais, dos elementos sobrenaturais. A relação entre o
humano, a natureza e o sobrenatural é simbiótica e sincrônica. Dessa forma, o que afetar
qualquer um dos elementos, gera uma onda vibracional que atinge todo o resto (OLIVEIRA,
2006).
Por esse ponto de vista, o alimento, como ente que compõe o universo, é também parte do
divino, elemento sincronizado com humano e a natureza. É uma perspectiva que faz reconhecer
o alimento em seu contexto dinâmico com o universo: as circunstâncias de produção e de
consumo, as relações na cadeia de produção, o abate, as pessoas envolvidas no preparo
culinário, a oferta e com o mundo sobrenatural que perpassa tudo.
Daibert (2015) discorre sobre as características das religiões africanas banto, analisando o culto
dos Calundus no Brasil do século VIII. Em sua análise, apresenta a ‘força vital’ como elemento
estruturante presente na concepção religiosa dos povos escravizados originários da África
Central.
Na filosofia banto existe uma concepção que perpassa todos os aspectos da vida humana que é a
noção de ‘força vital’. Refere-se à energia inerente a todos os seres do universo, a vitalidade do
universo (DAIBERT, 2015; LOPES, 2011; OLIVEIRA, 2006). É o elo de ligação entre o
Homem e a natureza; entre o Homem e a ancestralidade sobrenatural e também nas relações
sociais e comunitárias. Oliveira (2006) define que força vital não é só o abstrato, mas algo que
faz parte do mais íntimo da materialização de todos os seres. Está nas relações que estruturam o
universo e na materialização deste. A polaridade de abstrato e concreto, espírito e matéria,
sagrado e profano dissolve-se numa concepção de unidade e complementaridade na cosmovisão
africana.
Para os bantos, todos os seres são dotados de força vital e há um esforço para ampliá-la. Os
alimentos são usados nesse intuito, pois eles fortalecem não só as relações comunitárias entre os
humanos como também com o divino. Lopes refere que a invocação dos ancestrais aumenta a
força vital e para isso muitos grupos bantos fazem oferendas de alimentos aos deuses (LOPES,
2011).
Nesse mesmo sentido, a Maama Kamukeenge (mãe pequena) do Unzó faz uma leitura da
agência do alimento tanto no fortalecimento da irmandade, dos elos comunitários, quanto na
troca de energia dos inkices e humanos. A comida cumpre um papel importante na revigoração
e aumento da força vital ou ngunzo, que a mãe pequena chama de ‘energia’. Essa energia
amplia-se nas relações coletivas, em suas palavras, “é a irmandade que se prospera” com a
partilha do alimento.
A palavra nguzu na língua quimbundo significa ‘força’ (LOPES, 2012; DUCORT, 2013).
Ngunzo é o termo utilizado nos terreiros angola com o sentido de força vital. É a energia citada
pela mãe-pequena, compartilhada entre a comunidade. É a força que vem dos alimentos, que
emana de todos os fundamentos de um terreiro. É a força que equilibra e harmoniza as relações
humanas e entre humanos e inkices. Ngunzo é um elemento central na dinâmica dos
candomblés, sua compreensão é relevante para entender a dinâmica alimentar nos cultos.
Referências
DAIBERT , R. A religião dos bantos: novas leituras sobre o calundu no Brasil colonial Estudos
Históricos Rio de Janeiro, vol. 28, no 55, p. 7-25, 2015
LOPES, N. Bantos, malês e identidade negra. 3.ed. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2011
LOPES, N. Novo Dicionário Banto do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2012
MUNANGA, K. Negritude: usos e sentidos 3. ed. – Belo Horizonte: Autêntic Editora, 2012.
OLIVEIRA, D. E. de , Cosmovisão Africana no Brasil: elementos para uma filosofia
afrodescendente. Curitiba:Editora Gráfica Popular, 2006
QUERINO, Manuel. A arte culinária na Bahia 3.ed. São paulo: Editora VWF Martins Fontes,
2011