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Personagens:

A Mulher
O Marido

MARIDO. O que estás a fazer? Não estás a conseguir dormir?

MULHER. Sim.

MARIDO. Sim, o quê?

MULHER. Sim, estou a conseguir dormir.

MARIDO. Então porque é que te levantaste?

MULHER. Para dizer a verdade, estou a ir-me embora.

MARIDO. Vais onde?

MULHER. Para a casa do meu irmão.

MARIDO. Para a casa do teu irmão?

MULHER. Sim.

MARIDO, Para fazer o quê?

MULHER. Vou morar com ele. Nós não vamos voltar a ver-nos. Estou a deixar-te.

MARIDO. Estás a deixar-me? O que é que está a acontecer? Isto é uma


brincadeira?

MULHER. Não.

MARIDO. Não aconteceu nada! Nós nem discutimos!

MULHER. Não.

MARIDO. E então? Estás louca ou quê? Que história é esta? Estás a deixar-me?

MULHER. Estou.

MARIDO. Quando é que tomaste essa decisão?


MULHER. Não sei.

MARIDO. És louca.

MULHER. Não, de maneira nenhuma, pensei muito.

MARIDO. Em quê?

MULHER. Nisto. Em nós, no amor, no nosso amor… E tenho a certeza!

MARIDO. Certeza de quê?

MULHER. O amor não basta.

MARIDO. Como?

MULHER. O amor não basta.

MARIDO. Repete, por favor.

MULHER. Nós amamo-nos, mas isso não basta.

MARIDO. Isso é um disparate!

MULHER. De maneira nenhuma.

MARIDO. Então que te falta?

MULHER. Eu não sei.

MARIDO. Encontraste alguém?

MULHER. Não.

MARIDO. E estás a deixar-me?

MULHER. Estou.

MARIDO. Tens a certeza?

MULHER. Não.

MARIDO. Não… Sim… Não… Explica-te!


MULHER. Os nosso filhos!

MARIDO. A ama disse-me que eles estavam agitados.

MULHER. A ama?

MARIDO. A ama!

MULHER. A ama esteve cá em casa?

MARIDO. Sim.

MULHER. Hoje?

MARIDO. Sim, hoje.

MULHER. Como hoje? Eu despedi-a!

MARIDO. Tu despediste a ama dos nosso filhos?

MULHER. Claro que despedi a ama dos nosso filhos! (Foge por um corredor da
casa e volta apavorada). Onde é que estão as crianças?

MARIDO. Como?

MULHER. Onde é que estão as crianças a esta hora?

MARIDO. Que história é essa?

MULHER. As crianças não estão nos quartos delas, estou a perguntar-te onde estão
as crianças!

MARIDO. Não estão no nosso quarto?

MULHER. Não, não estão no nosso quarto. Não estão na cama deles. Não estão
em lado nenhum! Onde é que a ama colocou os nosso filhos? Ela é louca, aquela
mulher…

MARIDO. Não, eles não estão lá. O quê que está a acontecer? Eu vou tornar-me
violento… O quê que aconteceu aos nossos filhos?

MULHER. Não quero imaginar que alguma coisa de mal lhes aconteceu.

MARIDO. Fica calma!


MULHER. Chama a polícia!

MARIDO. O quê que está a acontecer, merda!?

MULHER. Não estou a entender nada! Não brinques comigo.

MARIDO. Eu não estou a brincar contigo! Eu não sei dos nossos filhos!

MULHER. Liga à ama!

MARIDO. À ama?

MULHER. Porra, eu ligo à ama! … Onde é que estão os meus filhos, louca?! Sim,
os meus filhos. Estou a perguntar onde estão as crianças a esta hora? O meu
marido disse-me que esteve em minha casa, hoje! Ai confirma que esteve cá?

MARIDO. Fica calma.

MULHER. Onde é que estão os meus filhos, sostra? Se não responder


imediatamente, estou a avisá-la, vou telefonar à polícia.

MARIDO. Fica calma.

MULHER. Calma? Calma quando os teus filhos desapareceram?

MARIDO. (pegando no telefone) Boa noite, onde estão os nossos filhos? Não
estamos para brincadeiras e estamos assustados! Não existem filhos? Como não
existem? Você é louca? Quero que diga o que fez aos meus filhos! Não havia filhos?

MULHER. Liga à polícia!

MARIDO. Vou ligar à polícia, pindérica.

MULHER. Liga.

MARIDO. Vou ligar. Merdamerdamerdamerdamerdamerdamerdamerda.

MULHER. Merdamerdamerdamerdamerdamerdamerdamerda.

MARIDO. Boa noite, senhor! Saímos e deixámos os nossos filhos com a nossa ama.

MULHER. Ex-ama! Já não faz parte desta casa!


MARIDO. Ex-ama, perdão. Acabámos de voltar, as crianças desapareceram e a
ama recusa-se a responder. Responde de uma maneira incoerente. Não sabe dizer
onde estão os nossos filhos e chama-nos de louco. Riu-se e desliguei,
ameaçando-a! Não senhor, estou a dizer-lhe que esta mulher não nos está a dar
nenhuma explicação sensata.

MULHER. Eu?

MARIDO. (baixo tom) Não, cala-te. A ama!

MULHER. Ela é louca! Se tiver acontecido alguma coisa aos meus filhos, eu mato-a!

MARIDO. Avenida da Separação, nº15, 7º andar esquerdo.

MULHER. Desligaste? E então? Já sabem dos nossos filhos?

MARIDO. Aconteceu alguma desgraça com os nossos filhos…

MULHER. Aconteceu alguma desgraça com os nossos filhos? Meu amor!


Aconteceu alguma desgraça com os nossos filhos?

MARIDO. Não, claro que não… Calma!

MULHER. Tu disseste!

MARIDO. Não era bem…

MULHER. Tu disseste!

MARIDO. Claro que não.

MULHER. Por quê, por quê, por quê, por quê, por quê, diz-me!

MARIDO. Para! Vamos encontrar uma solução. Vamos encontrá-los e rápido! (Liga
novamente à ama) Boa noite… Não os magoou, pois não? Diga-me! Não magoou
os nossos filhos, pois não? Gosta de crianças, não é? Tem algum problema de
saúde? Faz algum tratamento específico! Responda! Responda, idiota! (Respira).
Agora vamos acalmar-nos e vai explicar-nos tudo tranquilamente. Vai contar-nos…
o que aconteceu esta noite… COMECE! Não aconteceu nada? Estava à espera que
voltássemos e a sentir-se desconfortável?

MULHER. Desconfortável porquê?


MARIDO. Porque é que estava a sentir-se desconfortável. Porque não deveria ter
aceite o que nós lhe pedimos para fazer.

MULHER. Quer dizer o quê com isso?

MARIDO. Quer dizer o quê com isso? Tomar conta de crianças, quando não havia
crianças.

MULHER. Não havia crianças?

MARIDO. Não havia crianças?

MULHER. Como é que consegues ficar tão calmo?

MARIDO. Como é que consegues…

MULHER. Isso não é para dizer!

MARIDO. Ah, desculpa! Nós não temos filhos?

MULHER. A polícia vai chegar, é melhor encontrar uma boa explicação, sua maluca!

MARIDO. Fica calma!

MULHER. Estamos a perder tempo… Não percebes que os nossos filhos estão
perdidos nalgum lugar e que estamos aqui sem tomar nenhuma atitude?

MARIDO. Tens outra solução? Queres fazer o quê? Queres descer…? Correr que
nem uma desesperada pelas ruas, por toda a cidade? Devemos tentar entender o
que esta mulher tem dentro da cabeça… Temos de tirar uma conclusão do que ela
fez! Ajuda-me, por favor.

MULHER. A polícia vai chegar… daqui a pouco… a polícia vai chegar!

MARIDO. Está a dizer que nós não temos filhos? E porque teríamos confiado em si
para tomar conta deles, esta noite? Nós agimos como se tivéssemos filhos? Ah, é?
Mas porque faríamos isso?

MULHER. Não aguento mais ouvir a voz dessa mulher. Porquê que este polícias
estão a demorar tanto?

MARIDO. Ao sair de casa, após lhe ter contado tudo isso, quando estávamos na
porta… você estava desconfortável… eu a sorrir disse-lhe, com um olhar estranho,
“cuide bem dos nossos filhos”... e você disse “ok, pode ficar descansado”... Eu
disse-lhe “peço encarecidamente”! Eu disse-lhe isso? E ainda acrescentei “não
deixe que nada lhes aconteça”.

MULHER. Mas ela deixou! Eles desapareceram! Ela é uma desvairada, estou com
muito, muito medo.

MARIDO. Por favor, não nos leva a lado nenhum ficar a discutir consigo, é louca…
Estou a implorar-lhe… Devolva os nossos filhos vivos, por favor, estou a
implorar-lhe, só isso! Não tem como?

MULHER. Não tem como? Eu não posso acreditar… A senhora, no fundo é uma
boa pessoa… talvez também seja mãe, não é? Pouco importa o que a levou a fazer
isto, diga onde é que eles estão e se estão bem.

Ouvem-se batidas na porta, vozes: “polícias, abram!”...

MULHER. É a polícia!

MARIDO. Faça um esforço, conte-nos tudo! Tenha piedade, simplesmente… Os


nossos filhos são o que temos de mais caro e precioso nas nossas vidas…

Desliga. Ouvem-se batidas na porta, vozes: “polícias, abram!”...

MARIDO. Desligou.

MULHER. Faz uma última negociação. Eu vou abrir a porta!

MARIDO. Ouça, por favor!

MARIDO E MULHER. Se nos tirar os nossos filhos, a nossa vida vai parar. Não
existiremos mais. A nossa história perderia todo o sentido, tudo se destruiria. A
nossa vida não teria mais nada de real, nenhuma justificação e acabaríamos por
nos perder um ao outro. Primeiro, iríamos afastar-nos, depois, iríamos perder-nos
completamente. A nossa história iria destruir-se por isso só, pouco a pouco, como
pó. Pois no fundo, temos de confessar, não temos nada de importante a dizer-nos,
nada a compartilhar… Nada em comum. Nada de importante para fazermos juntos,
nada de verdadeiramente necessário e crucial sem os nossos filhos. E então vamos
tornar-nos dois estranhos, dois fantasmas e isso nós não queremos… Tememos
isso como a morte… Não queremos acabar com o nosso casamento… Isto é o que
nos mantém vivos. Sabe que um casamento é como um ser vivo. Ocupa um lugar
na vida, é um parâmetro essencial, como um farol que ilumina a vida, a nossa vida.
Um casamento também é uma luz que chama a atenção dos outros para a sua
existência. É o que nos explicou o psicoterapeuta que nos acompanha. O nosso
casamento construiu-se com base nos nossos filhos… Então sem filhos nós
desaparecemos, não temos identidade própria, zero… Então? Isso não lhe causa
nenhuma compaixão? Por favor. Responda. Devolva os nossos filhos, devolva!

(Respiram juntos).

MARIDO. Desculpe.

MULHER. Desgraçado!

MARIDO. Desculpa.

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