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A SIMPLIFICAÇÃO DA VIDA

Thomas Kelly1

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KELLY, Thomas. A Testament of Devotion. New York: Harper and Brothers, 1941. (Tradução
livre de Paul Freston).

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O problema que examinaremos hoje carece de pouca introdução. Nossas vidas na cidade
moderna tornaram-se demasiado complexas e cheias. Mesmo as obrigações que consideramos
absolutamente necessárias, aumentam a cada dia, e quando o percebemos, já estamos
sobrecarregados de reuniões, cansados e apressados, cumprindo ofegantes uma roda viva de
compromissos. Somos muito ocupados para sermos boas esposas para nossos maridos, bons
maridos para nossas esposas, bons pais para nossos filhos, e bons amigos para nossos amigos, e
não temos tempo algum para sermos amigos para aqueles que não têm amigos. Mas se nos
retiramos desses compromissos para passarmos algumas horas com a família, as
responsabilidades da cidadania sussurram no nosso ouvido e perturbam o nosso sossego. As
escolas dos nossos filhos exigem o nosso interesse; os problemas da comunidade merecem a
nossa atenção; as questões mais amplas da nação e do mundo pesam sobre nós. Nosso status
profissional, obrigações sociais, participação em tal ou qual organização muito importante – tudo
isso reivindica nosso tempo. Com uma fidelidade frenética, tentamos cumprir o mínimo aceitável
de compromissos, mas vivemos esgotados e exaustos. Reconhecemos e lamentamos o fato de que
a nossa vida está se esvaindo, dando-nos tão pouco de paz e gozo e serenidade inabalável na santa
Presença, onde sabemos que está o nosso verdadeiro lar, porque esta semana está muito cheia.
Mas não devemos desperdiçar tempo numa mera descrição do problema. E,
embora todos gostemos de ter piedade de nós mesmos, não devemos ficar apenas lamentando a
pobreza da nossa vida causada pela superabundância de oportunidades. Nem tampouco devemos
nos agarrar apressadamente a uma solução, num impulso de fazer com que, hoje pelo menos,
tenhamos algum progresso a mostrar. Podar e aparar são precisos, mas não com precipitação,
antes de procedermos a um exâme da árvore que podamos, do ambiente em que ela vive, e da
seiva que a alimenta.
Sugiro, em primeiro lugar, que estamos dando uma explicação falsa da complexidade de
nossas vidas. Culpamos o ambiente complexo. Nossa vida complexa, dizemos, é devido ao
mundo complexo em que vivemos, que nos proporciona mais estímulos por hora do que os nossos
avós recebiam por dia. Essa explicação em termos da ordem exterior nos leva às vezes a ansiar
pela vida de uma tranqüila ilha do Pacífico, ou então pela existência lenta e bucólica dos nossos
bisavós. Mas posso assegurar-lhes: experimentei por um anoa vida de uma ilha do Pacífico, e
descobri que os ocidentais levam para lá a mesma existência impulsiva e febril que já possuíam.
A complexidade do nosso programa não é devido a complexidade do nosso ambiente, e nem a
simplificação da vida seguirá à simplificação do ambiente. Confesso que sofri terrivelmente,
aquele ano no Havaí, porque em alguns aspectos o ambiente era simples demais.

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Nós ocidentais tendemos a pensar que nossos problemas são externos,
ambientais. Não somos experimentados na vida interior, onde estão as verdadeiras raízes dos
nossos problemas. Quero sugerir que a real explicação para a complexidade do nosso programa
seja interior e não exterior. As distrções exteriores dos nossos interesses refletem a falta interior
de integração das nossas vidas. Queremos ser vários egos ao mesmo tempo, sem que todos esses
egos estejam organizados por uma única e soberana Vida dentro de nós. Todos nós temos a
tendência de ser, não um único ego, mas um comitê de egos. Há o ego cívico, o ego parteno, o
ego financeiro, o ego religioso, o ego social, o ego profissional, o ego literário. E cada um desses
egos, por sua vez é um franco individualista, não cooperando mas votando aos berros em si
mesmo quando chega a hora da votação. Muitas vezes seguimos o método eleitoral para chegar a
uma rápida decisão entre as nossas vozes interiores e conflitantes. É como se tivéssemos um
presidente do comitê, que não integra os muitos egos mas apenas conta os votos e deixa minorias
descontentes. As reclamações de cada ego não deixam de ser feitas. Se aceitamos servir na
comissão de uma obra social, continuamos a sentir remorso por não podermos também ensinar na
igreja. Não somos integrados; somos angustiados. Sentimos o clamor de muitas obrigações e
tentamos cumpri-las todas.
E, no entanto, somos infelizes, receosos, tensos e oprimidos, com medo de sermos
superficiais. Pois, desde além das margens da vida vem um sussurro, um apelo indistinto, um
presságio de uma vida mais rica que estamos deixando escapar. Contorcidos pelo ritmo louco dos
nossos afazeres exteriores, somos ainda incomodados por uma inquietação interior, pois não
deixamos de receber sugestões da existência de um estilo de vida muito mais rico e profundo do
que nossa pressa, uma vida de serenidade e paz e poder. Ah! Se pudéssemos ao menos passar para
aquele Centro! Se pudéssemos descobrir o Silêncio que é a fonte do som! Conhecemos algumas
pessoas que parecem ter descoberto esse Centro profundo, onde os clamores insistentes da vida
são integrados, onde o “não” quanto o “sim” podem ser ditos com confiança. Já vimos vidas
assim, integradas, tranqüilas no meio de decisões difíceis, vidas alegres, vigorosas, positivas. Não
são pessoas preguiçosas ou vadias, nem obviamente absortas em profundas meditações; estão
carregando um fardo tão pesado quanto o nosso, mas com passo leve, sem abatimento nem
irritação. Sua vida cotidiana é cercada por uma auréola de infinita paz e poder e júbilo. Nós
somos tão tensos e inquietos; eles, tão equilibrados e em paz.
Se a Sociedade de Amigos (os quakers) tem algo a dizer, é principalmente nesta área. A
vida deve ser vivida a partir de um Centro, o Centro divino. Cada um de nós é capaz de viver uma
vida de estupendo poder e paz e serenidade, de integração e confiança e multiplicidade
simplificada, sob uma condição – que realmente queira isso. Há em todos nós um Abismo divino,

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um Centro infinito, um Coração e uma Vida que fala em nós e através de nós para o mundo.
Todos já ouvimos este Sussurro santo. Às vezes, seguimos o Sussurro, e produziu-se em nós um
espantoso equilíbrio de vida, uma estupenda eficácia. Mas muitos de nós atendemos a esta Voz
apenas esporadicamente. Só de vez em quando submetemo-nos a sua santa orientação. Não temos
considerado esta coisa santa em nós como a coisa mais preciosa do mundo. Não temos aberto
mão de tudo mais, para atendermos a ela somente. Repito: a maioria de nós não tem abandonado
todas as outras coisas, para poder atender ao Santo que está em nós.
John Woolman (alfaiate quaker do século XVIII, cujo diário é um clássico da
espiritualidade) o fez. Ele resolveu organizar seus afazeres exteriores de tal modo que pudesse
estar, a cada momento, atento àquela voz. Simplificou a sua vida à base da sua relação com o
Centro divino. Nada mais valia tanto quanto a atenção à Raiz de todo viver que ele descobria
dentro de si mesmo. E a descoberta quaker é justamente esta: os sussurros de orientação e amor e
presença divinos, mais preciosos do que o céu e a terra. John Woolman nunca permitiu que as
exigências do seu negócio ultrapassassem suas necessidades reais. Quando vinham muitos
clientes, eles os mandava para outro lugar, para comerciantes e alfaiates mais necessitados. Sua
vida exterior tornou-se simplificada à base de uma integração interior. Descobriu que podemos
ser homens e mulheres guiados do céu, e se rendeu completamente, sem reservas, àquela
orientação, mantendo-se aquecido e próximo ao Centro.
Eu disse que sua vida exterior tornou-se simplificada, e usei de propósito a voz passiva.
Ele não precisou lutar e renunciar e se esforçar para alcançar a simplicidade. Ele rendeu-se ao
Centro, e sua tornou-se simples. Era sinótica; tinha singeleza de visão. “Se o teu olho for singelo,
todo o corpo será cheio de luz”. Seus muitos egos integravam-se num só ego verdadeiro, cujo
único objetivo era andar humildemente na presença e orientação e vontade de Deus. Nada de
derrota eleitoral de uma minoria de egos descontentes. Era como se houvesse nele um presidente
que no silêncio solene da interioridade, percebia o consenso da reunião. Eu diria que o método
quaker de conduzir reuniões administrativas aplica-se também individualmente, às nossas vidas
interiores. O Santo observava, na vida interior de John Woolman, como fez Jesus quando
observou as pessoas colocando suas ofertas na tesouraria.
E debaixo do olhar silencioso daquele que é Santo estamos todos, quer o saibamos, quer
não. No Centro, no Abismo onde habita o Eterno no fundo do nosso ser, nossos programas e
doações e oferendas de tarefas realizadas estão sendo constantemente reavaliados. Não
conseguíamos dizer “não” a eles, porque pareciam tão importantes. Mas se centrarmo-nos e
vivermos no Silêncio que é mais precioso do que a vida, e levarmos o nosso programa para os
lugares silenciosos do coração, com abertura total, prontos a fazer ou a renunciar segundo a sua

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direção, muitas das coisas que fazemos perderão a sua importância. Eu gostaria de testificar isso,
como experiência pessoal, fruto da graça. Essa reavaliação daquilo que fazemos ou tentamos
fazer, é feita para nós, e aí sabemos o que devemos fazer e o que deixar de fazer.
Quero falar com muita intimidade e seriedade a respeito dAquele que é mais precioso do
que a vida. Será que você realmente deseja viver a sua vida, cada momento dela, na Presença
dEle? Você O almeja, você suspira por Ele? Ama sua Presença? Cada gota do seu sangue O ama?
Cada suspiro é uma oração, um louvor a Ele? Você canta e dança dentro de si mesmo, enquanto
se regozija no amor dEle, e somente dEle, andando a cada momento em santa obediência? Sei
que estou falando como um evangelista dos velhos tempos, mas não posso me conter, nem posso
ser correto e convencional. Já vivemos tempo demais sendo corretos e reprimidos. O fogo do
amor de Deus, de nosso amor a Deus e do amor dEle a nós, está queimando forte. “Amarás ao
Senhor teu Deus com todo o teu coração, e alma e mente e força”. Amamos mesmo, de verdade?
Das nossas mentes sai um fluxo de amor em direção a Deus, sempre, o dia todo? Intercalamos o
nosso trabalho com orações e louvores a ele? Vivemos firmes na paz de Deus, uma paz no fundo
de nossa alma, onde não há mais tensão e Deus já é vencedor sobre o mundo e sobre nossas
fraquezas? Esta vida, esta paz contínua e duradoura e infalível, este poder sereno, esta conquista
interior sobre nós mesmos e conquista exterior sobre o mundo – tudo isso é para nós. É uma vida
livre da tensão e ansiedade e pressa, porque algo da Paciência Cósmica de Deus nos é dado. Será
que nossas vidas são inabaláveis, porque estamos plantados bem na rocha, enraizados e
arraigados no amor de Deus? Este é o primeiro e o maior mandamento.
Você quer viver numa Presença divina tão estupenda que a vida é transformada e
transfigurada e transmutada em paz e em poder e glória e milagre? Se quiser, pode. Mas se você
disser que não tem tempo para descer aos silêncios recriadores, só posso responder: “Então, você
não quer realmente, você ainda não ama a Deus sobre tudo mais no mundo, com todo seu
coração e alma e mente e força”. Porque, exceção feita a tempos de doença na família e quando
os filhos são pequenos, quando estamos sob grandes pressões, acabamos descobrindo tempo para
aquilo que realmente queremos fazer.
Desejo ser drástico e impiedoso em desmascarar qualquer fingimento na questão da
devoção e singeleza de amor a Deus. Mas devo confessar que não leva tempo, nem complica seu
programa. Tenho descoberto que uma vida de sussurros de adoração, de louvor e de oração pode
permear o dia. É possível ter um dia muito cheio, no sentido exterior, e mesmo assim estar
continuamente na santa Presença. Precisamos, isto sim, de uma tranqüila meia hora ou hora de
leitura e reflexão. Mas podemos levar os silêncios recriadores dentro de nós, quase o tempo todo.
Com alegria leio o irmão Lourenço (irmão leigo francês do século XVII), na sua Prática da

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Presença de Deus. No final da quarta conversação, diz-se dele: “Nunca estava apressado, nem
ocioso, mas fazia tudo em seu tempo, com uma serenidade ininterrupta e espírito tranqüilo”. “A
hora de negócios”, diz ele, “para mim não difere da hora de oração, e no barulho e tinido de
minha cozinha, com várias pessoas pedindo coisas ao mesmo tempo, possuo a Deus com a
mesma tranqüilidade como se estivesse ajoelhado recebendo o sacramento”. A verdadeira razão
de não recolhermo-nos, não centrarmo-nos, não é a falta de tempo; em muitos de nós, ao que me
parece, é a falta de um prazer entusiasta nEle, de um profundo amor dirigido a Ele em todo o
momento do dia e da noite.
Deve ficar claro que estou falando de um estilo revolucionário de viver. A religião não é
algo que acrescentamos a nossas outras tarefas, assim tornando ainda mais complexas as nossas
vidas. A vida com Deus é o centro da vida, e tudo mais é remoldado e integrado de acordo. É isso
que dá a singeleza de visão. O mais importante não é estar sempre passando copos de água fria
para um mundo sedento. É possivel estarmos tão ocupados tentando cumprir o segundo grande
mandamento, “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”, que ficamos sub-desenvolvidos na
nossa devoção a Deus. Mas, temos que amar a Deus tanto quanto ao próximo. Estas coisa
deveríamos ter feito sem deixar a outra pela metade.
Há um estilo de vida tão oculto com Cristo em Deus que, no meio dos afazeres do dia,
podemos elevar interiormente breves orações, ejaculações de louvor, sussurros de adoração e
amor ao Além que está dentro de nós. Ninguém precisa saber. É possível viver num estado quase
contínuo de oração silenciosa, orações com respeito a Deus ou com respeito a pessoas e
empreendimentos que estão no nosso coração. Nada de pressa; é uma vida indizível e cheia de
glória, um mundo interior de esplendor no qual, embora indignos, podemos viver. Alguns de
vocês o conhecem e vivem nele; outros ardentemente o desejam; pode ser seu.
Deste Centro santo vem os encargos da vida. Nossa comunhão com Deus desemboca
numa preocupação mundial. Não podemos guardar o amor de Deus para nós mesmos.
Transborda, nos aviva, nos faz ver novamente as necessidades do mundo. Amamos as pessoas e
ficamos aflitos de vê-las cegas quando poderiam ver; adormecidas com todos os confortos do
mundo quando deveriam estar acordadas e vivendo sacrificialmente; aceitando os bens do mundo
como seu direito quando, na realidade, lhes foram apenas confiados temporariamente. A maior
necessidade dos homens não é comida e roupa e abrigo, embora todas estas coisas sejam
importantes. É Deus. Equivocamo-nos quanto à natureza da pobreza, achando que era econômica.
Não, é pobreza da alma, é a privação da paz recriadora de Deus. Nossos esquemas de salvação
econômica não atingem as necessidades mais profundas. Sâo importantes, mas constituem um

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segundo passo no caminho da reconstrução mundial. O primeiro passo é uma vida santa,
transformada e radiante da glória de Deus.
Este amor pelas pessoas é quase tão estupendo quanto o amor a Deus. Queremos ajudar
as pessoas porque temos pena delas, ou porque realmente as amamos? O mundo precisa de algo
mais profundo do que pena; precisa do amor. (Quão banal esta frase, mas quão verdadeira!). Mas
no nosso amor às pessoas, seremos apressados, englobando todos os homens e tarefas na nossa
preocupação amorosa? Não, esta é a função de Deus. Mas ele, operando em nós, divide a sua
preocupação vasta e dá a cada um de nós a porção devida. Esta se torna a nossa tarefa. A vida do
Centro é uma vida dirigida do céu.
Boa parte da nossa aceitação de uma multidão de obrigações é devido à nossa
incapacidade de dizer “não”. Vemos que uma tarefa precisa ser feita e não há ninguém para fazê-
la. Calculamos o nosso tempo e decidimos que talvez dê para inclui-la. Mas a decisão parte da
cabeça, não do santuário da alma. Quando dizemos “sim” ou “não” nessa base, temos de dar
razões para nós mesmos e para os outros. Mas quando dizemos “sim” ou “não” à base da
orientação interior e sussurros de incentivos do Centro, ou então à base da ausência de qualquer
“elevação” interior da Vida para nos encorajar, não temos razões [explicações] para dar, menos
uma – a vontade de Deus como nós a discernimos. Aí, começamos a viver sob a orientação
divina. E tenho descoberto que Ele nunca nos guia a viver num frenesi intolerável. A Paciência
Cósmica torna-se em parte, a nossa paciência, pois Deus está operando no mundo. Não
trabalhamos sozinhos no mundo, tentando terminar desesperadamente uma obra para ofertar a
Deus.
A vida do Centro é de paz e poder. É simples. É serena. É estupenda. É triunfante. É
radiante. Não ocupa tempo algum, mas ocupa o nosso tempo todo. Renova nossos programas.
Não precisamos ficar frenéticos; Ele é o timoneiro. E quando termina o nosso pequeno dia,
deitamos em paz pois tudo vai bem.

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