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Quem é filósofo e quem não é

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 7 de maio de 2009

À medida que se espalha a consciência da debacle total das nossas universidades


públicas e privadas, cresce o número de brasileiros que, valentemente, buscam
estudar em casa e adquirir por esforço próprio aquilo que já compraram de um
governo ladrão – ou de ladrões empresários de ensino – e jamais receberam.

Quase dez anos atrás a Fundação Odebrecht – no mais, uma instituição admirável
– me perguntou o que eu achava de uma campanha para cobrar do governo um
ensino de melhor qualidade. Respondi que era inútil. De vigaristas nada se pede
nem se exige. O melhor a fazer com o sistema de ensino era ignorá-lo. Se queriam
prestar ao público um bom serviço, acrescentei, que tratassem de ajudar os
autodidatas, aquela parcela heróica da nossa população que, de Machado de Assis
a Mário Ferreira dos Santos, criou o melhor da nossa cultura superior. O meio de
ajudá-los era colocar ao seu alcance os recursos essenciais para a auto-educação,
que é, no fim das contas, a única educação que existe. Cheguei a conceber, para
isso, uma coleção de livros e DVDs que davam, para cada domínio especializado
do conhecimento, não só os elementos introdutórios indispensáveis, mas as fontes
para o prosseguimento dos estudos até um nível que superava de muito o que
qualquer universidade brasileira poderia não só oferecer, mas até mesmo
imaginar.

Minha sugestão foi gentilmente engavetada, e, com ou sem campanha de


cobrança, o ensino nacional continuou declinando até tornar-se aquilo que é hoje:
abuso intelectual de menores, exploração da boa-fé popular, crime organizado ou
desorganizado.

Na mesma medida, o número de cartas desesperadas que me chegam pedindo


ajuda pedagógica multiplicou-se por dez, por cem e por mil, transcendendo minha
capacidade de resposta, forçando-me a inventar coisas como o programa True
Outspeak, o Seminário de Filosofia Online e outros projetos em andamento. E
ainda não dou conta da demanda. As cartas continuam vindo, e o pedido que mais
se repete é o de uma bibliografia filosófica essencial. É pedido impossível. O
primeiro passo nessa ordem de estudos não é receber uma lista de livros, mas
formá-la por iniciativa própria, na base de tentativa e erro, até que o estudante
desenvolva uma espécie de instinto seletivo capaz de orientá-lo no labirinto das
bibliotecas filosóficas. O que posso fazer, isto sim, é fornecer um critério básico
para você aprender a discernir à primeira vista, entre os autores que falam em
nome da filosofia, quais merecem atenção e quais seria melhor esquecer.

Tive a sorte de adquirir esse critério pelo exemplo vivo do meu professor, Pe.
Stanislavs Ladusãns. Quando ele atacava um novo problema filosófico – novo
para os alunos, não para ele –, a primeira coisa que fazia era analisá-lo segundo os
métodos e pontos de vista dos filósofos que tinham tratado do assunto, em ordem
cronológica, incorporando o espírito de cada um e falando como se fosse um
discípulo fiel, sem contestar ou criticar nada. Feito isso com duas dúzias de
filósofos, as contradições e dificuldades apareciam por si mesmas, sem a menor
intenção polêmica. Em seguida ele colocava em ordem essas dificuldades,
analisando cada uma e por fim articulando, com os elementos mais sólidos
fornecidos pelos vários pensadores estudados, a solução que lhe parecia a melhor.

A coisa era uma delícia, para dizer o mínimo. Num relance, compreendíamos o
sentido vivo daquilo que Aristóteles pretendera ao afirmar que o exame dialético
tem de começar pelo recenseamento das “opiniões dos sábios” e tentar articular
esse material como se fosse uma teoria única. Cada filósofo tem de pensar com as
cabeças de seus antecessores, para poder compreender o status quaestionis – o
estado em que a questão chegou a ele. Fora disso, toda discussão é puro
abstratismo bocó, opinionismo gratuito, amadorismo presunçoso.

A conclusão imediata era a seguinte: a filosofia é uma tradição e a filosofia é uma


técnica. Chega-se ao domíno da técnica pela absorção ativa da tradição e absorve-
se a tradição praticando a técnica segundo as várias etapas do seu
desenvolvimento histórico.

Note-se a imensa diferença que existe entre adquirir pura informação, por mais
erudita que seja, sobre as idéias de um filósofo, e levá-las à prática fielmente,
como se fossem nossas, no exame de problemas pelos quais sentimos um interesse
genuíno e urgente. A primeira alternativa mata os filósofos e os enterra num
sepulcro elegante. A segunda os revive e os incorpora à nossa consciência como
se fossem papéis que representamos pessoalmente no grande teatro do
conhecimento. É a diferença entre museologia e tradição. Num museu pode-se
conservar muitas peças estranhas, relíquias de um passado incompreensível.
Tradição vem do latim traditio, que significa “trazer”, “entregar”. Tradição
significa tornar o passado presente através da revivescência das experiências
interiores que lhe deram sentido. A tradição filosófica é a história das lutas pela
claridade do conhecimento, mas como o conhecimento é intrinsecamente temporal
e histórico, não se pode avançar nessa luta senão revivenciando as batalhas
anteriores e trazendo-as para os conflitos da atualidade.

Muitas pessoas, levadas por um amor exagerado à sua independência de opiniões


(como se qualquer porcaria saída das suas cabeças fosse um tesouro), têm medo
de deixar-se influenciar pelos filósofos, e começam a discutir com eles desde a
primeira linha, isto quando já não entram na leitura armadas de uma impenetrável
carapaça de prevenções.

Com o Pe. Ladusãns aprendíamos que, no conjunto, as influências se melhoram


umas às outras e até as más se tornam boas. Incorporadas à rede dialética, mesmo
as cretinices filosóficas mais imperdoáveis em aparência acabam se revelando
úteis, como erros naturais que a inteligência tem de percorrer se quer chegar a uma
verdade densa, viva, e não apenas acertar a esmo generalidades vazias.

Algumas regras práticas decorrem dessas observações:

1. Quando você se defrontar com um filósofo, em pessoa ou por escrito, verifique


se ele se sente à vontade para raciocinar junto com os filósofos do passado,
mesmo aqueles dos quais “discorda”. A flexibilidade para incorporar mentalmente
os capítulos anteriores da evolução filosófica é a marca do filósofo genuíno,
herdeiro de Sócrates, Platão e Aristóteles. Quem não tem isso, mesmo que emita
aqui e ali uma opinião valiosa, não é um membro do grêmio: é um amador, na
melhor das hipóteses um palpiteiro de talento. Muitos se deixam aprisionar nesse
estado atrofiado da inteligência por preguiça de estudar. Outros, porque na
juventude aderiram a tal ou qual corrente de pensamento e se tornaram incapazes
de absorver em profundidade todas as outras, até o ponto em que já nada podem
compreender nem mesmo da sua própria. Uma dessas doenças, ou ambas, eis tudo
o que você pode adquirir numa universidade brasileira.

2. Não estude filosofia por autores, mas por problemas. Escolha os problemas que
verdadeiramente lhe interessam, que lhe parecem vitais para a sua orientação na
vida, e vasculhe os dicionários e guias bibliográficos de filosofia em busca dos
textos clássicos que trataram do assunto. A formulação do problema vai mudar
muitas vezes no curso da pesquisa, mas isso é bom. Quando tiver selecionado uma
quantidade razoável de textos pertinentes, leia-os em ordem cronológica,
buscando reconstituir mentalmente a história das discussões a respeito. Se houver
lacunas, volte à pesquisa e acrescente novos títulos à sua lista, até compor um
desenvolvimento histórico suficientemente contínuo. Depois classifique as várias
opiniões segundo seus pontos de concordância e discordância, procurando sempre
averiguar onde uma discordância aparente esconde um acordo profundo quanto às
categorias essenciais em discussão. Feito isso, monte tudo de novo, já não em
ordem histórica, mas lógica, como se fosse uma hipótese filosófica única, ainda
que insatisfatória e repleta de contradições internas. Então você estará equipado
para examinar o problema tal como ele aparece na sua experiência pessoal e,
confrontando-o com o legado da tradição, dar, se possível, sua própria
contribuição original ao debate.

É assim que se faz, é assim que se estuda filosofia. O mais é amadorismo,


beletrismo, propaganda política, vaidade organizada, exploração do consumidor
ou gasto ilícito de verbas públicas.

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