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Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 7 de maio de 2009
Quase dez anos atrás a Fundação Odebrecht – no mais, uma instituição admirável
– me perguntou o que eu achava de uma campanha para cobrar do governo um
ensino de melhor qualidade. Respondi que era inútil. De vigaristas nada se pede
nem se exige. O melhor a fazer com o sistema de ensino era ignorá-lo. Se queriam
prestar ao público um bom serviço, acrescentei, que tratassem de ajudar os
autodidatas, aquela parcela heróica da nossa população que, de Machado de Assis
a Mário Ferreira dos Santos, criou o melhor da nossa cultura superior. O meio de
ajudá-los era colocar ao seu alcance os recursos essenciais para a auto-educação,
que é, no fim das contas, a única educação que existe. Cheguei a conceber, para
isso, uma coleção de livros e DVDs que davam, para cada domínio especializado
do conhecimento, não só os elementos introdutórios indispensáveis, mas as fontes
para o prosseguimento dos estudos até um nível que superava de muito o que
qualquer universidade brasileira poderia não só oferecer, mas até mesmo
imaginar.
Tive a sorte de adquirir esse critério pelo exemplo vivo do meu professor, Pe.
Stanislavs Ladusãns. Quando ele atacava um novo problema filosófico – novo
para os alunos, não para ele –, a primeira coisa que fazia era analisá-lo segundo os
métodos e pontos de vista dos filósofos que tinham tratado do assunto, em ordem
cronológica, incorporando o espírito de cada um e falando como se fosse um
discípulo fiel, sem contestar ou criticar nada. Feito isso com duas dúzias de
filósofos, as contradições e dificuldades apareciam por si mesmas, sem a menor
intenção polêmica. Em seguida ele colocava em ordem essas dificuldades,
analisando cada uma e por fim articulando, com os elementos mais sólidos
fornecidos pelos vários pensadores estudados, a solução que lhe parecia a melhor.
A coisa era uma delícia, para dizer o mínimo. Num relance, compreendíamos o
sentido vivo daquilo que Aristóteles pretendera ao afirmar que o exame dialético
tem de começar pelo recenseamento das “opiniões dos sábios” e tentar articular
esse material como se fosse uma teoria única. Cada filósofo tem de pensar com as
cabeças de seus antecessores, para poder compreender o status quaestionis – o
estado em que a questão chegou a ele. Fora disso, toda discussão é puro
abstratismo bocó, opinionismo gratuito, amadorismo presunçoso.
Note-se a imensa diferença que existe entre adquirir pura informação, por mais
erudita que seja, sobre as idéias de um filósofo, e levá-las à prática fielmente,
como se fossem nossas, no exame de problemas pelos quais sentimos um interesse
genuíno e urgente. A primeira alternativa mata os filósofos e os enterra num
sepulcro elegante. A segunda os revive e os incorpora à nossa consciência como
se fossem papéis que representamos pessoalmente no grande teatro do
conhecimento. É a diferença entre museologia e tradição. Num museu pode-se
conservar muitas peças estranhas, relíquias de um passado incompreensível.
Tradição vem do latim traditio, que significa “trazer”, “entregar”. Tradição
significa tornar o passado presente através da revivescência das experiências
interiores que lhe deram sentido. A tradição filosófica é a história das lutas pela
claridade do conhecimento, mas como o conhecimento é intrinsecamente temporal
e histórico, não se pode avançar nessa luta senão revivenciando as batalhas
anteriores e trazendo-as para os conflitos da atualidade.
2. Não estude filosofia por autores, mas por problemas. Escolha os problemas que
verdadeiramente lhe interessam, que lhe parecem vitais para a sua orientação na
vida, e vasculhe os dicionários e guias bibliográficos de filosofia em busca dos
textos clássicos que trataram do assunto. A formulação do problema vai mudar
muitas vezes no curso da pesquisa, mas isso é bom. Quando tiver selecionado uma
quantidade razoável de textos pertinentes, leia-os em ordem cronológica,
buscando reconstituir mentalmente a história das discussões a respeito. Se houver
lacunas, volte à pesquisa e acrescente novos títulos à sua lista, até compor um
desenvolvimento histórico suficientemente contínuo. Depois classifique as várias
opiniões segundo seus pontos de concordância e discordância, procurando sempre
averiguar onde uma discordância aparente esconde um acordo profundo quanto às
categorias essenciais em discussão. Feito isso, monte tudo de novo, já não em
ordem histórica, mas lógica, como se fosse uma hipótese filosófica única, ainda
que insatisfatória e repleta de contradições internas. Então você estará equipado
para examinar o problema tal como ele aparece na sua experiência pessoal e,
confrontando-o com o legado da tradição, dar, se possível, sua própria
contribuição original ao debate.
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