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LITERATURA INFANTIL E DIVERSIDADE: CONSTRUINDO CAMINHOS PARA A

INCLUSÃO ESCOLAR

Danielle Medeiros de Souza – UFRN


Marly Amarilha – UFRN

Este estudo dá continuidade às pesquisas desenvolvidas na interface


Literatura Infantil e prática pedagógica, desenvolvidas na linha O Ensino de Leitura e
Literatura, no Departamento de Educação, da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte. Nesse enfoque, temos como objetivo investigar as contribuições da
Literatura Infantil para uma ação docente crítica, reflexiva, aberta à diversidade e
possibilitadora da inclusão escolar.
Com esse propósito, ressaltaremos, sobretudo, a interface entre Literatura
Infantil e Educação Inclusiva, na tentativa de reafirmar a natureza transdisciplinar do
texto literário, fundamental para um trabalho mais amplo de formação do leitor,
adequado à diversidade de necessidades, interesses e sentimentos dos alunos.
Consideraremos, ainda, essa interface como um espaço de diálogo e reflexão das
questões que perpassam a formação do professor-leitor, a função social da leitura
de Literatura e sua democratização, diante das novas necessidades que emergem
no cenário educacional.
O interesse pelo estudo da prática pedagógica aliada à Literatura e à
Educação Inclusiva procedeu de observações de práticas leitoras em escola
inclusiva, principalmente, no trabalho de leitura com crianças com necessidades
educacionais especiais. Indícios de uma relação necessária e significativa dessas
crianças com o texto literário demonstraram a necessidade de um aprofundamento
teórico sobre as contribuições que a Literatura pode fornecer para o trabalho com a
diversidade escolar. A escassez de pesquisas sobre essa questão também nos
motivou a estabelecer um diálogo com os estudos da Educação Inclusiva.
Frente a essas constatações, evidenciamos uma problemática pedagógica
que articula a formação do professor no trato do texto literário e o fortalecimento do
processo de inclusão escolar mediante a leitura.
A relevância desta investigação está na possibilidade de explorar a inclusão
escolar, (re)conhecendo a Literatura Infantil como um caminho significativo para a
resolução de problemas que se inserem nos dois pólos do processo educativo: no
ensino, no que se refere à proposição de instrumentos teórico-metodológicos para
auxiliar no atendimento à diversidade encontrada no espaço escolar; na
aprendizagem, no que compete à formação leitora e à experiência significativa com
a linguagem simbólica presente na Literatura Infantil.
Na intenção de discutir essa problemática, privilegiamos como recurso
metodológico à coleta de dados a pesquisa bibliográfica, em torno de questões
relacionadas à leitura, à Literatura e à inclusão escolar e tomamos como corpus de
análise sessões de leitura implementadas durante uma experiência de observação
participante desenvolvida em escola pública e estadual de Natal-RN, no período de
setembro a novembro de 2005, em uma turma de 1º ciclo, correspondente ao Ensino
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Fundamental, com um total de 44 alunos matriculados (com faixa etária entre 8 e 12


anos de idade).
Para implementar as sessões de leitura, selecionamos obras clássicas e
contemporâneas e adotamos a metodologia da andaimagem (scaffolding), com
momentos de pré-leitura, leitura em voz alta e pós-leitura (GRAVES; GRAVES,
1995). O principal instrumento de registro foi o diário de campo.
A interlocução com os pressupostos teóricos pesquisados constitui o tópico
inicial deste trabalho, sendo o segundo referente ao relato da experiência de ensino
de leitura e Literatura.

1. Literatura Infantil e Educação Inclusiva: diálogos possíveis

Os fracassos que têm ocorrido na tentativa de atender a diversidade de


alunos, de modo que sejam garantidos o acesso à escola e a permanência com
qualidade, decorrem de um problema mais complexo que atinge a Educação. A
questão não é a ineficiência no trabalho com os “alunos diferentes”, mas sim no
trabalho desenvolvido com todos. Nesse caso, fica evidenciada a necessidade de
uma reforma de caráter geral, que pense nas estratégias para o ensino dos
diferentes alunos “como parte integrante de um processo mais vasto de
aperfeiçoamento da escola” (AISCOW, 1995, p. 27).
Segundo Martins (2002), o processo de inclusão (ou integração total) implica
na adaptação da instituição escolar para atender às necessidades especiais dos
alunos na sala regular. Então, é função da escola conciliar o ensino com esse
trabalho de inclusão, sem precisar, necessariamente, prescindir de ações
pedagógicas importantes, como é o caso das práticas leitoras.
Frente a essa necessidade, emergem muitas responsabilidades para os
educadores que se propõem a incluir alunos especiais a ações significativas de
ensino-aprendizagem, sem negligenciar sua formação leitora. Assim, o profissional
da educação pode perceber o ensino de leitura e Literatura como prática necessária
aos alunos que possuem necessidades educacionais especiais.
Como se sabe, a Literatura Infantil vem se consolidando, ao longo dos anos, “num dos mais
eficazes instrumentos de formação da criança” (COELHO, 1991, p.320), reafirmando-se como cenário
democrático de personagens e linguagens diferentes, espaço de abordagens inusitadas dos aspectos do
cotidiano, lugar de vivenciar experiência catártica. Considerando essas particularidades da linguagem
literária, entendemos a necessidade de um estudo sistematizado de suas contribuições para uma
compreensão mais aprofundada acerca da diferença entre os sujeitos que compõem o âmbito educativo,
percebendo o texto literário como meio privilegiado para promover o ambiente inclusivo que tanto se
almeja.
Nessa direção, podemos identificar avanços significativos nas proposições
teóricas que reconhecem a importância da leitura de Literatura no desenvolvimento
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e na aprendizagem do público infanto-juvenil. Essa função educativa da leitura de


Literatura é reafirmada por Yunes (2003, p.7), ao enfatizar que

quando se trata de um ambiente eminentemente preocupado com questões da


educação lato-sensu e que, portanto, não se restringe à escola, talvez seja possível
dizer sem oposição que a leitura, como recurso civilizatório, é o que de mais
transdisciplinar temos para dar conta de questões que extrapolam método,
instrumento, conteúdo, forma e campo de aplicação específico – (grifo no original).

Dentro de uma perspectiva psicanalítica, Brunno Bettelheim (2004), coloca-se


a favor do texto literário, principalmente dos contos de fadas para o desenvolvimento
psíquico e compreensão dos conflitos na infância. Segundo o autor, os elementos
presentes nos contos de fadas sugerem “imagens à criança com as quais ela pode
estruturar seus devaneios e com eles dar melhor direção à sua vida” (BETTELHEIM,
2004, p.16). De modo específico, a Literatura atende a uma necessidade dos alunos
especiais ao contribuir com a formação de sua identidade.
Quanto à construção de uma auto-imagem, o texto literário é um dos
caminhos para o auto-conhecimento, pois embora se remeta a personagens
distantes e animalescos, sempre nos enviam “por refração” uma imagem de nós
mesmos, a cada momento de identificação na leitura, nos ajudando, com muita
propriedade a aprender o que se passa dentro de nós (JOUVE, 2002).
Dessa forma, a Literatura Infantil, mais precisamente o conto de fadas, ao
tratar com profundidade de problemas da vida, torna-se veículo privilegiado para
tratar de articulações entre Literatura e Educação Inclusiva, pois traz a discussão
dos conflitos humanos de maneira única e expressiva e funciona como “portas que
se abrem para determinadas verdades humanas” (COELHO, 1991, p.9). Essa
peculiaridade atribui à Literatura Infantil elementos que despontam a possibilidade
de pensar a diferença, sob diversos aspectos.
Ao deslocar o leitor para outros tempos, a linguagem literária também dá
lugar ao debate de idéias, costumes e crenças, possibilitando, desse modo, uma
reflexão pela palavra, ou melhor, pela revolução provocada pela palavra. Nesse
processo de destruir e reconstruir sentidos, a “leitura é um obstáculo à transmissão
dos estereótipos e dos discursos ideológicos” (LAJOLO, 1982, p.21). Assim como
aborda o diferente, também desperta o diferente: um novo olhar sobre a tradição, o
que revela que o contato precoce com situações dramáticas materializadas na
leitura de Literatura é um importante caminho para a compreensão das diferenças e
desigualdades sociais. A esse respeito Amaral (1994, p.62) reconhece que

o apontar e o refletir sobre os preconceitos, os estereótipos, o


estigma, as superações, os conflitos – propiciados por uma leitura
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crítica, reflexiva, dos textos onde a idéia da diferença está presente


– é caminho sólido e duradouro.

Com isso, nos referimos a obras que possuem qualidade literária e que, por
isso, expõem e problematizam as ideologias como algo que pode ser questionado
(CULLER,1999). É importante destacar que os contos da tradição literária se
destacam nessa desautomatização de ideologias, pois a Literatura é o “habitat
natural” e o “palco democrático” de personagens e leitores excluídos. Em
concordância com Culler (1999), Lajolo (1982, p.64) testemunha essa função da
literatura clássica.

Os textos a que a tradição reserva o nome de literatura, embora


nascendo de uma elite e a ela dirigidos, não costumam confirmar-se
às rodas que detêm o poder. Transbordam daí e, como pedra
lançada às águas, seus últimos círculos vão atingir as margens, ou
quase. Seus efeitos, a inquietação que provocam, podem repercutir
em camadas mais marginalizadas, mais distantes dos círculos
oficiais da cultura.

Assim, o texto literário desponta a possibilidade de educar para incluir, pois


como bem dissemos, a diversidade encontrada nessa manifestação da língua abre
espaço para vozes excluídas, socialmente. Seu espaço é montado para
personagens reais, com fraquezas, defeitos e diferenças, tais como o soldadinho
mutilado, o patinho feio, o João atrapalhado, a madrasta invejosa, dentre outros
personagens ficcionais. Tais qualidades reafirmam a Literatura como terreno
transdisciplinar que possibilita o conhecimento da realidade humana e uma “vivência
simbólica de caráter problematizador, político e criativo” (AMARILHA, 2006, p.67).
Essas proposições fortalecem a tese de que a Literatura é fundamental para
um trabalho consciente e crítico de inclusão escolar, conforme sugere Caldin (2003,
p.5) ao assinalar que

A função social da literatura é facilitar ao homem compreender – e,


assim, emancipar-se - dos dogmas que a sociedade lhe impõe. [...]
Dessa maneira, as histórias contemporâneas, ao apresentarem as
dúvidas da criança em relação ao mundo em que vive, abrem
espaço para o questionamento e a reflexão, provenientes da leitura.

Além desse papel social, Caldin (2004) percebe na leitura de Literatura Infantil
uma função libertária e desencadeadora de experiências, pois o leitor, no processo
de co-autoria do texto, protagoniza a situação de leitura e ganha uma existência
importante: inventa significados, pode aderir à brincadeira, se recusar a vestir um
personagem ou criar um novo final para a trama. Isto é, durante essa co-autoria,
pode experimentar ser ele mesmo, despindo-se das máscaras que a vida no mundo
adulto e excludente impõe.
Nessa perspectiva, outros estudiosos têm privilegiado a leitura de Literatura
Infantil, no trabalho com crianças que possuem necessidades especiais. Pereira
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(2000) ressalta a importância de sessões de leitura crítica para o desenvolvimento


psicossocial de alunos cegos. Suas pesquisas apontam a leitura de Literatura como
um “instrumento útil, que oferece aos indivíduos com necessidades especiais a
possibilidade de formação intelectual, necessária ao desenvolvimento de suas
potencialidades” (PEREIRA, 2000, p.1).
A pesquisadora Aracy Ernst-Pereira investiga o fenômeno da exclusão,
através da análise do discurso presente nos contos de fadas. Como resultados
desses estudos, Ernst-Pereira (2005) reafirma as possibilidades de inclusão escolar
a partir dos contos literários, valorizando seu caráter polissêmico na subversão de
padronizações, na inserção do diferente e na ruptura com o processo de produção
dominante de sentidos sociais.
De acordo com Zardo e Freitas (2004) a Literatura Infantil é uma forte aliada
na superação de representações sociais acerca da deficiência e da diferença que
desde a Antigüidade acompanha a humanidade. Diante das exigências de educar
para incluir, as autoras se posicionam a favor da Literatura.

A literatura infantil pode ser o cerne da construção de uma educação


inclusiva, pois operando a partir de sugestões fornecidas pela
fantasia e imaginação, socializa formas que permitem a
compreensão dos problemas e demonstra-se como ponto de partida
para o conhecimento real e a adoção de uma atitude que valorize as
diferenças e as particularidades (ZARDO; FREITAS, 2004, p.2).

É fundamental salientar que o acesso à Literatura Infantil não é uma


estratégia “superficial” que ultrapassa as atribuições da escola, pelo contrário; o
ensino de leitura e literatura se trata de uma importante função da instituição escolar,
assim como a busca de novas alternativas para ensinar e aprender com a
diversidade.

2. Literatura e Inclusão em um conto de estimação

A sessão se leitura selecionada para análise foi a do conto Um bicho de pé de


estimação, retirada da obra Os bichos que tive: memórias zoológicas, de Sylvia
Orthof (1983). Essa narrativa tem a própria narradora como protagonista, uma
menina de oito anos chamada Sylvia que, durante suas férias em Itatiaia, adquire
um bicho de pé que, segundo seu amigo Mamede, é um bicho de estimação. A
menina não permite que ninguém retire seu novo bichinho, chegando até a batizá-lo
de Fernão Dias Paes Leme. Depois de muitas cócegas, ela permite que o bicho de
pé seja retirado por seu amigo Mamede.
Esse conto nos confronta com uma visão de infância muito particular, em que
a criança tem voz e poder de decisão. Em uma combinação de humor e surpresa, a
autora explora um acontecimento da infância, acentuando a ludicidade, a fantasia e
a relação adulto-criança.
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Nessa narrativa, observamos as possibilidades de identificação e de


experiências vivenciadas no texto que podem se encaminhar para uma situação de
inclusão escolar.
Somente as qualidades do texto já o colocam em situação favorável a um
trabalho significativo com a Literatura Infantil contemporânea. Assim, a autora nos
leva a conhecer uma história que se diferencia pelo inusitado, mas que está atrelada
à realidade de muitas crianças. Os leitores, por sua vez, podem perceber essa
proximidade com o seu mundo, se identificam e se envolvem na leitura, aceitando o
jogo proposto pelo texto.
A leveza da linguagem expressa na narrativa possibilita trocas entre o leitor-
espectador e os elementos fantásticos do texto, do ponto de vista da introjeção e
projeção, o que se constitui em um momento de aprendizado e prazer. Calvino
(1990) destaca a leveza como um valor a ser preservado nas obras literárias, uma
vez que ele desperta novas maneiras de ver o mundo. Observemos a sutileza das
metáforas selecionadas pela autora

A risada de Mamede vinha navegando, navegando, de repente a


risada chegava! Quando a risada chegava, tudo balançava, igual às
ondas do mar, tudo ficava alegre (ORTHOF, 1983, p,15).

Ao trazer em seu enredo um bicho-de-pé de estimação, a autora inova,


invertendo valores e provocando um pensamento divergente daquele que é
difundido sobre bichos de estimação e bichos-de-pé. Após a leitura, a visão do leitor
se renova com um novo olhar sobre esses elementos da narrativa. Sendo assim, no
tempo e no espaço do texto, a criança desautomatiza as suas percepções e
experimenta o contato com o novo. Por meio desse exercício, a Literatura oferece a
ela um “ensaio” para a resolução de conflitos pessoais que estão presentes na
infância. Distanciar-se de seus problemas para analisá-los é um aprendizado que se
adquire com o tempo, mediante a leitura de Literatura.
A dimensão “inclusiva” do conto em análise está, principalmente, na
exploração dos sentimentos que, embora sejam vividos pelo personagem, são
experimentados pelo leitor numa espécie de “tradução pessoal”. Primeiramente,
destacamos a relação adulto-criança, presente em vários momentos da narrativa:
”Pois é, criança conhece mãe. A gente nem sempre pode confiar!”, “Quem diz que
iodo não arde é adulto. Criança sabe que arde” (ORTHOF, 1983, p.16).
O apego a um bichinho de estimação é outra experiência recorrente na
infância. Algumas crianças poderão, inclusive, se reconhecerem ao se depararem
com um personagem que tem afeição por seu animal de estimação e,
conseqüentemente, medo de perdê-lo. Dessa maneira, a Literatura brinca com os
desejos do leitor, promovendo uma análise de sua condição individual, provocando
sua subjetividade. Essa reflexão em torno da própria condição é introspectiva e,
portanto, essencial em uma proposta de educação inclusiva.
Tais experiências vivenciadas pelo leitor apontam para a possibilidade de a
leitura de Literatura Infantil contribuir com a inclusão escolar e podem ser melhor
visualizadas a partir de uma experiência desenvolvida por nós em uma Escola
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Estadual de Natal - RN, no período de setembro a novembro do ano de 2005, em


uma turma de 1º ciclo, correspondente ao Ensino Fundamental, com um total de 44
alunos matriculados (menores empobrecidos e/ou abandonados com faixa etária
entre 8 e 12 anos de idade).
Na ocasião da pesquisa, eram realizadas sessões de leitura, diariamente,
com livros de Literatura Infantil, incluindo obras clássicas e contemporâneas. Cada
sessão era constituída de leitura em voz alta, com breves discussões de pré-leitura e
pós-leitura (GRAVES; GRAVES, 1995), no período de dois meses.
No estabelecimento de contratos didáticos, a grande maioria se opôs à vinda
da Literatura Infantil para a sala de aula, com a justificativa de que já estavam
crescidos e que “historinha” não é coisa para “gente grande”, mas por conhecermos
o poder mobilizador do texto literário, insistimos nas sessões de leitura e resolvemos
realizá-la com os alunos que se mostraram favoráveis.
É interessante ressaltar que o estranhamento diante de uma situação na qual
a professora lia para seus alunos e o encantamento diante do suporte livro eram
comportamentos comuns a muitos que presenciaram as sessões, o que nos permite
a inferência de que a leitura de Literatura não é uma constante naquela realidade.
Durante a visita ao mundo das palavras, enquanto algumas crianças se
maravilhavam diante das histórias, outras, em sinal de protesto, viravam-se para a
janela e não participavam da sessão. Esse comportamento também é um indício de
que esses alunos, contrariando suas condições de crianças, não estavam abertos
para o lúdico e, seguramente, não conheciam os prazeres proporcionados pelo texto
ficcional.
No decorrer das sessões, observamos que esses alunos que se recusavam a
compartilhar do momento de leitura foram, progressivamente, se envolvendo com as
narrativas, demonstrando engajamento afetivo e intelectual expresso por
questionamentos, risadas, solicitações de releituras e contemplações das imagens.
Com o tempo, a turma se uniu em torno da atividade eleita, por eles, como a mais
importante.
Em meio a essa experiência, destacamos a sessão do conto Um bicho-de-pé
de estimação, na qual as crianças vivenciaram um momento máximo de prazer e
inclusão. No momento de pré-leitura, os alunos não conseguiram projetar muitas
possibilidades diante de uma situação tão diferente, pois a idéia de um bicho-de-pé
de estimação proposta pela autora rompe com as suas expectativas e permite o
distanciamento daquilo que elas já conhecem. Após muitas risadas e discussões em
torno do título, a professora propõe um questionamento:

EPISÓDIO 1
P: Quem tem um bichinho de estimação? Um de cada vez.
Rubi: Eu tenho, eu tenho, eu, eu, o meu é um passarinho.
Lamec: Eu tive um cachorro branquinho. Ele fugiu.
Samira: Uma vez eu tive um gato que morreu com uma doença no
rabo. Ele fazia tudo que um cachorro faz.
Arafat: Eu sei que Silas tem bicho-de-pé.
Silas: Mentira professora. É mentira.
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Sara: É verdade, é verdade.

Diante da revelação de que um aluno tinha bicho-de-pé, todos fizeram


insinuações preconceituosas e demonstraram aversão a essa criança que ficou
muito constrangida. Tal comportamento se justifica pela percepção difundida sobre
bichos-de-pé, na qual eles são relacionados à falta de higiene e cuidados com a
saúde.
Todavia, no desenrolar da leitura, as crianças ficaram em estado
contemplativo, principalmente as que, momentos antes, consideravam absurda a
idéia de um colega possuir um bicho-de-pé.
Após a leitura, a professora decidiu retomar a polêmica ocorrida na pré-
leitura, recorrendo à relação texto-vida

EPISÓDIO 2
P: Alguém aqui também já teve um bicho-de-pé de estimação?
Safira: Eu já tive, e ele fazia cócegas igual ao da história.
Mohamed: Eu já tive demais. Às vezes, quando eu passo no pé de
caju eles entram no meu pé.
Abdã: Eu já tive bicho-de-pé, mas eu não gostava dele não.

Ao entrar em contato com o texto literário, as crianças apresentaram outro


comportamento. De repente, passaram a falar de seus bichos-de-pé com
naturalidade, pois a narrativa literária por meio da leveza e da ludicidade desconstrói
conceitos difundidos no meio social, transgredindo normas e valores, inclusive,
sobre bichos de estimação. Assim sendo, o argumento do texto literário, que
também é comunicativo, convenceu a todos, de maneira que ter bichos-de-pé
passou a ser algo normal e aceitável, deixando de ser um motivo para ter vergonha
ou discriminar e excluir o colega.
Com isso, os leitores puderam desfrutar de um aprendizado de visão: há
sempre uma outra maneira de enxergar uma situação. Observamos, ainda, que
ocorreram mudanças na auto-estima do aluno que foi inicialmente apontado como o
único que possuía bichos-de-pé.
De modo geral, a turma demonstrou um grande envolvimento emocional com
a narrativa literária, transformando aquela sessão de leitura em um momento
oportuno para relembrar de seus bichos de estimação e vivenciar emoções
relacionadas às suas experiências do dia a dia, conforme podemos observar:

EPISÓDIO 3
P: O que vocês sentiram ao lermos essa história?
Zaira: Eu senti que a gente não pode falar do bicho-de-pé do amigo.
Rubi: Eu achei engraçado ter bicho-de-pé, porque a gente ri muito.
Kalil: Eu fiquei com saudade do mico que aparecia no quintal lá de
casa. Ele nunca mais foi lá. Eu dava banana pra ele.
Zarabe: Eu fiquei com pena do bicho-de-pé da menina porque ela
tirou ele com uma agulha.
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Percebemos que a recepção representou um envolvimento intelectual,


sensorial e emotivo, em que foram provocados sentimentos como a perda, a
saudade, o medo e a amizade. Essa experiência é inclusiva no sentido de que
envolve todos em uma ação comum e significativa que, através de linguagem leve e
bem humorada, leva à reflexão da condição individual do leitor e do outro, seja ele o
personagem, o texto ou o colega que está participando da situação de leitura.
Naquela sala de aula, o momento de “brincar” com a Literatura Infantil foi
muito fecundo e enriquecedor, considerando as mudanças ocorridas com as
crianças, no decorrer da prática. No que se refere aos aspectos cognitivos,
identificamos uma maior habilidade no uso da linguagem escrita e oral, com avanços
na interpretação de sentidos, expressão de desejos, criatividade e argumentação. A
esse respeito, destacamos, ainda, as discussões de pós-leitura que possibilitaram o
desenvolvimento crítico a respeito de experiências humanas e a construção de
conceitos. Ao refazer conceitos liberta-se de angústias; constrangimentos;
preconceitos – sentimentos que causam sofrimento. Esse avanço de ordem
cognitiva contribui, direta e indiretamente para a inclusão, pois facilita a aceitação e
a construção da auto-estima daqueles que estão marginalizados do processo de
ensino.
Mediante o uso sistemático da Literatura Infantil, grande parte dos alunos
também apresentou progressos de ordem social, considerando que as sessões de
leitura eram os únicos momentos de compartilhamento entre eles, nos quais
experimentavam um outro “clima” no espaço da sala de aula, de mais leveza, trocas
e interações, estabelecimento de vínculos afetivos, manifestados por atitudes
solidárias e cooperativas, numa verdadeira comunidade de leitores.
Nesse ambiente socializador e includente promovido pela Literatura, as
relações afetivas foram (re)inseridas na rotina da sala de aula, aumentando,
significativamente, a sensibilidade e o relacionamento entre pares e entre alunos e
professores. Com isso, a aula de leitura representou um momento por excelência de
inclusão escolar, no qual as dificuldades eram superadas pelo prazer em torno de
uma atividade comum. Por um único momento, os atos de indisciplina, as
insatisfações com as precárias condições da sala de aula, as diferenças individuais
e as vozes dissonantes cessavam diante do efeito encantador da Literatura.
Os indicadores encontrados nessa escola a partir de uma experiência com
sessões de leitura de Literatura reafirmam a importância da ficção para o trabalho
escolar que visa atender às necessidades e especificidades da criança e à
diversidade escolar. No que concerne à dimensão inclusiva, ressaltamos a
oportunidade de o leitor externar e refletir sobre sentimentos que, muitas vezes, não
têm espaço no modelo educacional que conhecemos, assim como a possibilidade
de se colocar no lugar do outro, compreendendo, ao mesmo tempo, sua condição de
diferente.
Ao compararmos o quadro inicial da turma com os resultados que obtivemos
no decorrer do trabalho pautado na Literatura Infantil, podemos afirmar que a
maioria dos alunos passou por transformações no que se refere à autonomia diante
de materiais de leitura e à maior disponibilidade para o aprendizado.
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Com efeito, defendemos a utilização da Literatura Infantil na sala de aula,


principalmente, nos contextos mais adversos, de forma que seja dada a todos os
aprendizes a oportunidade de desfrutar do mundo da leitura e de se tornarem
leitores críticos e habilidosos no contato com a palavra e, conseqüentemente, no
contato com as diferenças. Para isso, há de se perceber a Literatura como formativa
e “inclusiva” e não apenas como um apoio para a intervenção pedagógica.
Referências

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