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Do outro lado do Espelho

Trilogia Doze Mundos – Livro 1


Emilly Amite
Aos meus amigos, os verdadeiros, poucos e que ficaram tão distantes de mim, mas que nunca
saem dos meus pensamentos, e que mesmo estando à distância, permanescem aqui comigo, porque me
ajudaram a descobrir que a vida é cheia de surpresas! E às minhas filhas, pois foram seus sorrisos
que me deram mais motivação para continuar a escrever essa história.
Um Reflexo na escuridão.

Um feixe de luz em meu mundo escurecido.

A incerteza que me consumia por inteiro

Foi espantada pelo seu calor.

Com seu olhar resplandecente,

Fez-me viver uma infinidade de desejos num único minuto.

Seus doces lábios,

Que me trouxeram de volta a vida quando me perdia,

Sua alegria presente nos momentos mais sombrios,

Que despertou em mim a esperança de um futuro diferente.

Você veio para mim de tão longe...

Agora sei que era você quem eu esperava chegar em meu mundo,

Vinda do outro lado do espelho...

E. A. Lomérius.
Prólogo
Estávamos no gramado do quintal dos fundos, eu gritava, implorava para ela não o destruir, sabia
que aquele era o único modo de voltar para meu verdadeiro lar, no qual só havia passado alguns
dias, mas que me sentia viva. Ela segurava a marreta perigosamente perto do vidro delicado de
cristal e chorava também! Foi a primeira vez que a vi tão nervosa.
Então novamente sua superfície se tornou líquida e dali as sombras vieram e nos arrastaram de
volta para dentro do espelho. Vi-me novamente caindo naquele breu, só que dessa vez alguém caía
comigo, não podia ver seu rosto, mas sabia que devia estar gravado em uma expressão de terror. Mal
sabia que ela também já esteve do outro lado...
1

Espelho de Cristal
Eu estava tendo um sonho muito louco, em uma ida à praia durante as minhas férias, comecei a
correr, então, todos que estavam nela me olharam e começaram a correr também. Quase toda a água
do mar era feita de pequenas bolhas de sabão coloridas que estouravam e nos deixavam cegos e a
areia me dava a sensação de estar pisando em pequenos pedregulhos de cachoeiras e rios. Quando
parei de correr, caí em um buraco sem fundo...

O barulhento despertador em minha cabeceira começou a tocar. Levantei-me sem ânimo ainda
com o sonho louco em minha cabeça e gemi ao lembrar que era segunda-feira e teria provas finais
essa semana. O fim de semana não foi nada divertido, tendo que sentar e estudar o tempo todo até
meu cérebro travar e não conseguir lembrar de mais nada que estava estudando. Antes de entrar no
banheiro, entrei no quarto de meu irmão caçula e abri as cortinas deixando o sol entrar, meu irmão
estava deitado todo torto na cama e sua coberta estava parcialmente para fora dela, terminei de puxá-
la e coloquei minha mão gelada por baixo da blusa dele, ele imediatamente pulou da cama gritando e
fazendo caretas.
― Vamos, Leonard! ― (sim, éramos os irmãos Leona e Leonard!) Chamei indo em direção ao
banheiro ― hoje temos que sair mais cedo! ― ele resmungou algo e tenho certeza de que voltou a se
cobrir. Entrei no banheiro para tomar um banho e olhei meu reflexo no espelho, sabe aqueles
comercias de remédios para dormir? Que a pessoa acorda linda, com cabelo arrumado e roupa
perfeitamente esticada? É mentira! Meu cabelo estava todo embolado, meus cachos castanho-claros
pareciam mais com um bolo de linhas de tricô emaranhadas e embaixo de meus olhos verdes as leves
olheiras davam um contraste nada charmoso com a expressão de cansaço que eu carregava. Não pude
demorar muito no banho, pois teria que fazer café para meu irmão, da última vez que o deixamos
utilizar a cozinha sozinho, ele quase ateou fogo a casa. Fiz um misto quente e um copo de
achocolatado.
― LEVANTA! SEU MONTE DE PREGUIÇA! VEM TOMAR CAFÉ! ― eu o escutei saltar da
cama e correr pelo quarto desesperado. Fui até a geladeira onde minha mãe havia deixado um bilhete
“Léo, deixei o almoço para vocês no congelador, é só colocar no micro-ondas, estaremos em casa
às 17 horas. Beijos, mamãe”.
Minha mãe sempre foi muito rigorosa, especialmente quando se tratava da nossa alimentação, mas
é claro que eu não ia fazer um prato de salgadinhos e beber meio litro de refrigerante no almoço.
Leonard desceu as escadas correndo e enfiou seu misto goela abaixo, amaciando com o copo de leite
com chocolate.
― Vai me deixar na escola hoje? ― ele perguntou me olhando torto.
― Nem pensar! Você desce sozinho para o ponto da sua escola! Se não, vou me atrasar!
― Tudo bem, mas hoje eu vou almoçar na casa do Diego, a mãe dele vai ligar para a mamãe.
― Se ela ligar, tudo bem! ― tomei um copo de leite, escovei os dentes e saímos para ir à escola.
O ponto de ônibus ficava a uma quadra da minha casa e a escola de Leonard era três quadras depois
da minha, era uma viajem curta, apenas dez minutos.
― Me mande uma mensagem quando chegar lá! ― gritei para meu irmão na janela do ônibus
quando desembarquei. Ele acenou, tinha que cuidar bem dele se não era castigada pelo meu padrasto,
era meu pai, mas como não sentia nenhuma afinidade por ele, fingia ser meu padrasto para
justificar a falta de sintonia entre nós.
Os corredores estavam abarrotados de alunos mortos-vivos, era uma segunda feira de provas
finais, todos carregavam a mesma expressão de sono que eu, e na certa, todos estavam em desespero
para não ter que ficar em casa estudando nas férias que se aproximavam. A minha primeira aula seria
de educação física, então meu dia não havia começado tão mal. Como hoje era prova, o professor
havia colocado marcações pela quadra como se fosse uma gincana.
― Leona! Bom dia! ― Suely, uma aluna de tamanho avantajado, correu na minha direção ― hoje
ficaremos em dupla para a gincana de prova, ok? ― Nós nos dávamos bem nessa aula, pois
corríamos mais que os outros alunos, eu era quase aerodinâmica, meu corpo era magro e eu não tinha
muitos atributos interessantes (em outras palavras, era uma tábua) então me dava bem em quase todos
os esportes que praticava, pois não tinha o risco de pular e ficar parecendo uma cena de filme adulto.
Sempre que havia necessidade de duplas, Suely e eu nos uníamos para pegar as melhores notas, pois
na minha turma só havia alunos preguiçosos e gente que ficava dormindo escondido durante essa
aula. Minha única amiga de verdade estudava em outra turma, então só nos víamos durante o
intervalo. Esse seria meu último ano nessa escola, havia voltado para essa cidade apenas para
completar o ensino médio, pois vivi muito tempo com meus avós no campo, e minha única amiga,
Lucy, era tão chegada que sua mãe havia dado permissão para ela ir com minha família viver no
campo, essa cidade não era tão grande, porém não era tão pequena quanto a outra em que eu vivia,
também era mais próxima das cidades grandes e ficava apenas a algumas horas de carro. Eu tinha
quase um treinamento de sobrevivência, Lucy, meus primos, meu irmão e eu sabíamos caçar, montar
armadilhas, cabanas e pescar, meu avô gostava de nos levar para fazer trilhas e camping selvagem,
pois ele achava que se nós nos perdêssemos um dia, do jeito que éramos frescos, morreríamos no
mato. Isso nos deixou muito fortes e eu às vezes parecia mais um garoto do que uma jovem de
dezessete anos. A gincana foi fácil, foi uma grande corrida de obstáculos, para Suely e eu foi moleza.
Até a hora do intervalo fiz três provas de fim de ano e quando finalmente chegou o momento, já
estava ficando cansada. Avistei Lucy sentada embaixo de uma árvore do lado de fora do refeitório,
ela é uma pessoa muito sensitiva e por isso às vezes fica viajando, sentei-me a seu lado para
conversar e ela estava com o olhar perdido no céu.
― Léo... ― ela estava com a voz distante ― e se pudéssemos viajar para outra época? Pra onde
você gostaria de ir?
― Eu não sei Lucy, talvez para o passado... Devia ser legal andar a cavalo e dormir sob as
estrelas!
― Eu gostaria de ir para algum lugar onde fosse tudo igual e tudo diferente... Talvez num mundo
tipo os dos filmes de fantasia...
― Lucy?
― Que foi?
― Você bebeu calda de chocolate no café de novo? ― ela virou os olhos na minha direção e
ficou corada, apesar da mente infantil que ela tinha, eu gostava de imaginar as coisas que dizia,
algumas me faziam rir muito.
― Sabe Léo, estou com uma sensação estranha, como se fosse acontecer alguma coisa! ― um
frio passou pela minha espinha, pois sempre que ela falava isso, algo realmente acontecia. Na última
vez em que ela disse essa frase, cheguei em casa e recebi a notícia de que algumas pessoas
conhecidas da escola do campo haviam sofrido um acidente.
― Vamos para Niterói de noite? Ficar na casa da sua tia e ir ao shopping ver um filme? ―
perguntei, ela sorriu para mim e assentiu. O sinal do fim do intervalo tocou rápido demais hoje.
Voltei para a sala e terminei as últimas provas do dia, estava entediada, fiquei pensando que logo
teria que resolver o que faria do meu futuro, mas ainda não sabia o quê e não estava muito animada
com mais estudos. Resolvi ir andando para casa já que hoje não estava muito quente. Peguei meu
celular no bolso da mochila e notei que haviam três mensagens não lidas. A primeira era de meu
irmão dizendo que havia chegado à escola, a segunda era de minha mãe confirmando o almoço dele
na casa do amigo e a terceira era de meu irmão de novo dizendo “eu te disse que ela deixaria”.
Bloqueei a tela, coloquei o telefone de volta no bolso e continuei andando, parei na praça próxima à
escola, estava um dia lindo, morno e a brisa estava suave, bateu uma preguiça, então resolvi me
deitar no banco para aproveitar um pouco mais.
Acordei com o som de uma revoada de andorinhas, eram quase seis horas da tarde, levantei-me
alarmada, meio tonta ainda, fui andando pela rua, que já estava meio morta a essa hora sem
movimento de pessoas, só alguns gatos esticados em pontos estratégicos aproveitando os últimos
feixes de luz solar. Era uma cidade pequena e muito calma o céu estava passando de alaranjado para
púrpura, continuei andando lentamente apreciando ao máximo o anoitecer. Ao passar por uma quadra,
notei uma luz acesa que vinha de uma garagem aberta cheia de quinquilharias e uma senhora idosa de
aparência frágil colocando mais caixas para fora. Como eu sou uma pessoa muito curiosa e as
pessoas dessa cidade não são de desconfiar de seus vizinhos, resolvi entrar no quintal e oferecer
ajuda para ver se havia algo interessante por lá.
― Hum, com licença, a senhora precisa de ajuda? ― Perguntei à senhora que carregava as
caixas. Ela ergueu os olhos e se iluminou ao perceber que teria ajuda para arrumar aquelas
tranqueiras.
― Claro, minha querida! Pode me ajudar a tirar essas caixas de dentro da garagem? ― eu fui até
uma pilha de caixas de papelão empoeiradas e comecei a tirar uma por uma e colocar na varanda.
Eram caixas de diferentes tamanhos e pesos, algumas com o fundo bastante gasto balançavam
perigosamente nas pilhas mais altas. Alguns minutos depois e com surtos de tosse, já tinha colocado
todas as caixas na varanda, mas não tinha nada de curioso, só algumas antiguidades, louças e álbuns
de fotografia. A senhora trouxe um copo com refresco para mim e começou a revirar o conteúdo das
caixas. Havia muitas lembranças de valor ali, como porcelanas antigas com detalhes em ouro,
provavelmente era um tesouro de família.
― Eu estava esperando terminar a obra de minha cozinha para colocar essas louças, minhas filhas
ficaram de vir me ajudar, mas acho que tinham coisas mais importantes a fazer. ― Disse a velhinha,
eu senti muita pena dela ali sozinha, mas eu precisava ir para casa. Quando ia me despedir, notei no
fundo de uma das caixas que havia um enorme embrulho embalado em panos velhos muito sujos.
Puxei os panos e vi que era um espelho antigo emoldurado em cedro e contas de marfim.
― A senhora vai pendurá-lo? Parece bem pesado! ― eu disse, retirando os panos e fazendo com
que uma nuvem de poeira rodeasse a nós duas. Fiquei olhando para meu reflexo quase tampado no
espelho sujo.
― Ah não, este espelho é muito antigo e é de cristal, não traz boa sorte ter um espelho desse
dentro de minha casa! No final da rua tem um brique, ainda deve estar aberto, leve-o para mim e tente
negociar com o dono! Pode ficar com o dinheiro do espelho pela sua ajuda! Obrigada!
Fiquei contente, devia valer um bom dinheiro e eu poderia juntar com a minha mesada para fazer
umas compras boas. Peguei o espelho com muita cautela, as bordas de sua moldura eram grandes e
pareciam ter detalhes em ouro envelhecido, mas provavelmente não era, se não ela não teria dado
para eu vender. Era pesado, muito pesado na verdade, minha sorte foi que eu já estava acostumada a
carregar peso, pois ajudava minha mãe com as caixas de tranqueiras de seu antiquário. No fim da rua
onde ela dissera, havia uma casinha velha de madeira com uma plaquinha de “Brique do Vovô” na
porta. Entrei com cuidado e coloquei o espelho em cima do balcão. Um senhor de aparência
sonolenta apareceu para me atender. Ele parecia um bulldog enrugado, olhou de mim para o espelho
e com um olhar entediado disse:
― Cinquenta reais e eu lhe compro ele! ― cinquenta reais não me pareciam muita coisa, mas
como eu não sabia o valor e não tinha intenção de voltar e perguntar à senhora...
― Setenta e a gente fecha? ― perguntei tentando a sorte, o velho me olhou, olhou para o espelho
novamente e acenou com a cabeça, pegou dinheiro numa caixinha de madeira em cima do balcão e
me entregou algumas notas amassadas, peguei-as, conferi e enfiei em minha carteira.
― Moça! ― Chamou o senhor enquanto eu me virava para poder sair ― pode colocá-lo ali nos
fundos para mim? Meu braço está enfaixado e eu posso deixá-lo cair. ― eu bufei. Não tinha como
deixar o velhinho na mão, peguei o espelho e fui para o quintal na parte de trás e o coloquei na
varanda, a luz da varandinha estava acesa e então notei que nas bordas do espelho havia uma frase
escrita em um idioma que reconheci imediatamente como latim. Eu sabia ler um pouco em latim,
gostava muito de línguas antigas e as estudava por causa da loja de antiguidades de minha mãe,
peguei um pano velho que estava em cima de uma penteadeira antiga de madeira e comecei a limpar
a moldura do espelho para poder ler. Estava escrito em letras muito bem desenhadas: “O portal para
o outro mundo se revela ao anoitecer, a lua cheia abrirá um portal, mas só os puros poderão entrar.”
Fiquei olhando para aquelas letras, a frase não fazia nenhum sentido naquela moldura de espelho. Eu
olhei para o céu e a lua estava começando a aparecer. Olhei de volta para o espelho e vi o reflexo da
lua, quando de repente a inscrição na moldura brilhou levemente e o vidro do espelho começou a
tremer, eu olhei para meu reflexo no espelho e ele começou a borrar até desaparecer por completo, vi
que a superfície dele estava mole, quase líquida. Fiquei assustada, sabia que deveria me afastar,
sentia meu coração batendo tão rápido que fazia um zumbido em meus ouvidos. Estiquei a mão para
tocar sua superfície e quando meus dedos tocaram a superfície do espelho, eu senti um puxão e meus
pés saíram do chão. Fui puxada para dentro dele e me vi caindo em um túnel brilhante e prateado.
Minha garganta ardia de tanto que eu gritava, pois o túnel não parecia ter fim. Fechei os olhos.
Alguns segundos depois, eu ainda estava caindo e já havia ficado quase sem voz de tanto gritar,
fiquei imaginando a velocidade que eu acertaria o chão, seria com certeza o meu fim! Se é que esse
túnel teria fim. Só podia estar sonhando, me belisquei, mordi o braço, puxei meu cabelo e nada de
acordar, estava realmente acabada! Eu nunca tive um namorado, eu não me despedi de ninguém e
agora morreria em uma colisão com o chão que parecia nunca chegar.
Quando olhei para o fim do túnel, vi uma escuridão. Aquilo me apavorou mais que o túnel em si,
meu corpo começou a desacelerar, foi como estar freando no ar! Encolhi-me como forma de me
preparar para o choque e fechei os olhos, não importava o que fosse, eu não queria ver. Senti meu
corpo bater em algo e fiquei sem ar. Ao abrir os olhos, percebi que estava dentro da água, que por
mais estranho que pareça, estava morna, quase quente, e senti pequenas correntes elétricas em meu
corpo. Segurei firme o ar em meus pulmões, eu sabia que o ar em meu corpo iria me mostrar a saída
da água, pois estava um breu, tão escuro que não podia ver meu dedo na frente dos meus olhos. Meu
corpo fez uma leve inclinação, então nadei para onde estava levantando, botei o rosto para fora da
água, puxei o ar e fiquei aliviada de sentir que era ar puro e não algum gás venenoso. Dei graças a
Deus por ter deixado todo meu material com Lucy, para que ela estudasse a matéria que não havia
copiado. Olhei em volta e ainda estava muito escuro, eu não sabia onde era a margem, mas não podia
ficar dentro da água para sempre, então forcei minha vista e quando vi que não muito longe de onde
eu estava boiando havia uma fraca luz como a de uma vela ou uma lamparina, nadei
desesperadamente naquela direção, senti meus pés baterem em alguma coisa, me assustei com o
impacto e percebi então que não era nada demais, só a margem se aproximando, saí da água devagar,
afundando meus pés na grossa lama, um pouco mais para frente, abaixei para tocar no chão e notei
que havia muito mato, sentei-me mesmo assim e peguei meu celular do bolso. Por sorte era
lançamento, a prova d’água (com a minha sorte, eu poderia deixá-lo cair no vaso sanitário, na piscina
ou mesmo na pia enquanto lavava a louça) pelo menos era mesmo a prova d’água, desbloqueei a tela
e vi que estava sem sinal, ótimo, isso eu já esperava, o relógio dele indicava que eram quinze para as
oito da noite, procurei a função lanterna e comecei a andar pela floresta a beira do lago, estava muito
frio, mas o único agasalho que eu tinha estava dentro da mochila e com certeza estava encharcado. Vi
novamente a fraca luz na floresta e comecei a andar em direção a ela, meu coração estava disparado,
eu não era muito medrosa, mas um barulho nos galhos das árvores perto de mim me fez-me querer
correr como um rato assustado.
Estava com os olhos cheios de lágrimas de novo e com as pernas travadas. Totalmente apavorada,
virei lentamente quando senti algo gelado tocar em meu braço, uma figura encapuzada segurava uma
lâmina a poucos milímetros da minha pele, quando eu ia gritar, ela tapou minha boca e apontou para o
lado, outra criatura estranha estava de pé próxima a nós.
― Faça uma reverência! ― disse a voz feminina.
― O quê? ― eu olhei para o capuz e de volta para a criatura de olhos enormes e amarelos.
― Quer morrer? Se curve! ― eu lentamente curvei a cabeça como num cumprimento, a criatura
imitou meu gesto e uma porção de água que estava sobre sua cabeça derramou no chão, então ela fez
um movimento brusco e se atirou no lago de novo.
― O que era aquilo? ― perguntei assustada.
― Um Kappa. Oras, o que você achou que era? ― Ela retirou o capuz e me olhou, seu olho
esquerdo era fechado por uma enorme cicatriz que ia da sua testa até a bochecha ― apague essa luz,
ou vai atrair mais deles! ― Eu apaguei a luz e comecei a segui-la pelo som, já que ela havia
apagado a lamparina e não dava para enxergar nem a minha mão na frente do rosto. Ela andava em
passos largos, eu estava com medo de ficar para trás e andei mais rápido para manter o passo com
ela. Alguns segundos depois, ela parou e virou em minha direção.
― Até onde pretende me seguir? ― Eu dei um pulo para trás com o susto que levei.
― Eu estou perdida! Caí naquele lago e não sei onde estou nem como voltar pra casa, pelo amor
de Deus, me deixe ficar com você! ― Eu estava com tanto medo e tanto frio que aquelas palavras
saíram mais tremidas e dramáticas do que eu esperava. Ela continuou parada me olhando, suspirou e
então falou.
― Tudo bem, você pode ficar na minha casa até amanhã. Depois veremos o que fazer com você!
Nós andamos por tanto tempo que meu corpo já estava ficando dormente, quando ela parou, eu
olhei para frente e vi luzes vindas de uma pequena casa no topo de uma árvore. Ela puxou uma corda
presa na casca da árvore e uma escada se desenrolou, ela subiu e eu a segui. A árvore era muito alta,
a casa devia estar a uns dez metros do chão, pelo menos. Tinha dois andares e me surpreendi quando
me deparei com luz elétrica no meio de todo aquele mato. Ela abriu a porta e mandou que eu
entrasse, a casa era rústica, mas bem decorada, todos os móveis eram de madeira e tinha uma lareira
acesa no canto de uma enorme sala. Ela atiçou o fogo e o alimentou com mais lenha. Ela era muito
bonita, tinha longos cabelos negros e parecia ser muito forte, seu olho era de um verde amarelado e a
pele branca levemente bronzeada.
― Você está toda molhada. Venha! ― Ela me guiou até uma porta onde havia um banheiro, era de
louça e tinha uma banheira grande com duas torneiras. ― A torneira maior é a de água quente, pode
tomar um banho, a água daquele lago está um pouco perigosa essa época do ano.
― Eu não tenho roupas! ― Ela me olhou de cima a baixo e saiu do banheiro, voltou com um
vestido marrom longo e de mangas longas.
― Esse deve servir em você! Como é seu nome?
― Leona, e o seu?
― Nellena, mas pode me chamar de Nena.
― Pode me chamar de Léo se quiser! ― ela pegou uma toalha, colocou num gancho na parede e
saiu. Eu tirei minha roupa molhada e entrei na banheira, liguei a água quente e botei o pé em baixo,
quase ouvi um chiado quando a água caiu na minha pele.
― Ah, regule a temperatura com a torneira de água fria! ― fiquei imaginando que ela poderia ter
me dito isso antes, pois agora eu estava com uma pequena bolha no alto do pé, deixei a água na
temperatura de fazer uma canja de tanto frio que estava sentindo. Fiquei um bom tempo ali de molho,
mas tinha que sair logo, sequei-me e coloquei o vestido. Antes de esvaziar a banheira, eu lavei
minhas próprias roupas na água, meu moletom cinza estava quase pingando lama e a blusa não estava
em melhor condição. Quando saí do banheiro, Nena estava sentada em frente à lareira.
― Ponha suas roupas nessa cordinha atrás da lareira, até amanhã elas já estarão secas, pode ficar
com este vestido se quiser.
― Obrigada. ― Ela havia arrumado uma cama para mim no chão perto da lareira e colocado
uma fina grade de proteção para não voar brasas onde estava a cama. Eu pendurei as roupas e me
deitei. Ela estava me olhando.
― Nena, onde eu estou? ― perguntei.
― Na floresta de Gheshira, em Amantia, claro!
― Amantia?
― Sim, este mundo se chama Amantia. ― meu estômago afundou, no momento em que atravessei
o espelho, eu cruzei uma fronteira para outro mundo! Mas, como? Minha cabeça doía demais para
pensar nisso, queria dormir e tentar acordar desse pesadelo! Coloquei a mochila perto da lareira
para secar também, olhei o celular, havia o ganhado de presente de natal, era inquebrável e a prova
d’água, meu pai escolheu esse depois de eu quebrar uns dez diferentes em menos de seis meses, a
proteção de tela era uma foto da minha família numa viajem de férias, meus olhos ficaram úmidos, eu
não sabia se voltaria a vê-los! Desliguei o celular para não acabar a bateria.
― Precisa de carga? Tem uma tomada ali no canto. ― eu a olhei e lembrei que tinha um
carregador extra na minha mochila, mas ia esperar secar.
― Agora não, obrigada. Vocês têm celulares por aqui?
― Não são iguais a esse seu aí, são mais antigos. A tecnologia aqui é quase igual à do seu mundo,
pois temos grupos que vão lá buscar coisas para revender aqui. ― Olhei para ela quase sem
acreditar. ― Aqui é minha casa de caça, por isso é tão rústica.
― Mas você sabe de onde eu venho? E essas roupas? ― perguntei ― parecem medievais!
― Imagino que seja de algum mundo do outro lado dos portais, você tem aparência muito frágil
comparada a pessoas desse mundo, então concluí que seja de um dos outros, e pela tecnologia, da
terra. E as roupas, elas são quentes, a fibra especial usada para esse tecido é colhida em plantações
não muito longe daqui. Esse vestido é um uniforme padrão dos caçadores da minha raça.
― Sua raça? Como assim? ― ela notou meu tom de voz assustado e riu.
― Você não está mais no seu mundo, mas não se preocupe! Sou humana também, criança! Aqui
existem várias raças de humanoides, fora os monstros! ― fiquei encantada e ao mesmo tempo
apavorada com a ideia de um mundo paralelo cheio de criaturas diferentes.
― Mas eu já ouvi falar desses Kappas no meu mundo, são demônios da água, não é?
― Sim, mas existem lendas, e as lendas vem de algum lugar, certo? Demônios, monstros e as
raças de humanoides daqui, como eu disse, podem vagar entre os mundos. Existiam muitos portais e
vários seres costumavam escapar, até que a maioria dos portais que não eram seguros foi lacrada,
agora existem poucos e a maioria é aberta artificialmente nas cidades dos Metamorfos ― explicou
ela, meu estômago embrulhou ― Agora sugiro que vá dormir, amanhã vou te levar para
Alamourtin. ― Eu queria perguntar mais, saber mais, porém ela já havia se levantado e saído
andando. Não tive escolha, fiquei ali deitada pensando que isso ainda poderia ser um sonho. Só
deixei de acreditar que seria sonho no momento em que adormeci rapidamente.

Acordei com cheiro de comida no ar, achei que era mamãe fazendo algo diferente e levantei num
pulo. Olhei em volta, vi a lareira apagada e minhas roupas na pequena corda atrás dela, isso
realmente não foi um sonho, bateu uma tristeza, um desânimo enorme. Levantei-me e senti meu
coração apertado, arrumei a cama, dobrei os cobertores e fui até onde estava Nena.
― Bom dia! ― Disse ela colocando uma caneca grande de algo parecido com café na mesa.
― Isso é café? ― Perguntei mesmo sabendo que não era pelo cheiro.
― Não, é um chá preto. Pode beber, não tem gosto ruim. ― ela pegou um pão escuro também,
cortou em fatias e colocou sobre a mesa com um pote de manteiga e um prato cheio do que parecia
ser salame artesanal.
― É pão de sementes e trigo escuro. ― ela explicou olhando minha expressão, eu não queria
fazer desfeita, peguei uma fatia e dei uma mordida, parecia com pão integral, só que um pouco mais
pesado.
― É bom! ― eu disse dando outra mordida.
― A manteiga é de leite de cabra, é bom você comer, nós vamos andar muito. ― eu passei um
pouco, fiz um sanduíche com o salame e comi, realmente era bom, tomei um gole do chá. Meus olhos
ficaram vermelhos, o chá era forte e picante. Nena começou a rir.
― É diferente... ― tomei todo o chá de uma vez só e usei o pão para tirar o gosto ruim da boca.
Depois do “café” ela colocou umas botas grossas e me passou um par de botas também.
― Coloque essas, são mais seguras que esse seu sapato que deixa as canelas de fora. ― eu
peguei as botas e olhei de novo para meu tênis. Ele já estava seco, mas pelo jeito do mato que eu
havia visto ontem, preferi colocar as botas. Fiz uns rolinhos com as minhas roupas e coloquei dentro
da mochila, o resto das coisas dentro dela já estavam secas, organizei tudo dentro para caber todas
as roupas. Nellena pegou um alforje e passou pelo braço, então saiu segurando a porta para que eu
fosse atrás. Ainda era muito cedo e estava um pouco escuro quando pisei na varanda daquela casa da
árvore e percebi que estávamos no meio de uma floresta enorme. Descemos as escadas da casa e ela
puxou a corda até a escada estar totalmente enrolada no topo da pequena varanda. Estava clareando
rápido e quando olhei para cima tive uma grande surpresa.
― Dois sóis? ― Eram realmente dois sóis, um quase branco e outro mais avermelhado de cada
lado do céu.
― Sim, Sirius e Áries. De uns tempos para cá vem ocorrendo um estranho fenômeno, uma vez
por mês apenas Sirius ilumina o céu, o mundo fica totalmente vermelho, neste dia, todos devem ficar
em locais cobertos, pois ele pode fritar uma pessoa em questão de segundos, a maioria da vegetação
de áreas mais secas murcha e queima, e em locais que têm muitos rios e lagos a quantidade de vapor
fica enorme, aí no final do dia de Sirius chove muito, mas esse mundo se refaz em algumas horas toda
vez que é destruído.
― Então, por que não queima agora? ― Estava começando a esquentar sob os sóis, era como
andar numa praia de manhã procurando um lugar para montar a barraca.
― Porque Áries neutraliza o calor de Sirius. Uma vez por mês, Áries também fica só no céu,
neste dia a terra congela, as plantas morrem também, mas algumas horas depois estão totalmente
recuperadas e vivas, os movimentos desses sóis são bastante incomuns. ― disse ela, olhei para os
sóis de novo, não doía olhar para Áries, mas não me atrevi a olhar direto para Sirius. ― Só as
salamandras podem sair quando Sirius está só no céu, pois sua pele não queima.
― Salamandras? ― eu sabia que eram bichinhos como lagartos, mas nunca tinha visto uma.
― Sim, são muito bonitas, mas são irritadas, nunca provoque uma salamandra se não ela pode
atear fogo em você! ― Estávamos andando há alguns minutos, a vegetação estava verde e novinha,
como se tivesse acabado de nascer e crescido instantaneamente. Perto de nós tinha um rio largo de
águas cristalinas e no meio dele, um pouco mais à frente, tinha um enorme moinho de madeira e
metal. Mais à frente havia algo como uma fazenda.
― Esse moinho que leva eletricidade para sua casa, não é? ― Ela acenou com a cabeça e foi até
a beira do rio encher uma garrafa com água e voltou. Chegando mais a frente eu vi uma cerca alta de
madeira, Nena abriu um portão grande e pegou um arreio que estava pendurado do lado de dentro.
Deitado na grama bem no meio do campo cercado havia um enorme cavalo marrom. Quando eu digo
enorme é por que era realmente enorme, ele devia ter uns três metros de altura e era forte, troncudo.
Ele levantou as orelhas, se levantou e começou a vir na nossa direção. Nena tirou de dentro de uma
bolsa de couro duas bolotas grudentas e as deu ao animal, que as mastigou e ficou saltitando em volta
de nós.
― Este é Pupo, meu bichinho de estimação. Eu dou essas bolas de açúcar de batatas a ele para
comprar seu bom humor! ― ela riu, tirou uma sela grande que estava pendurada na cerca e colocou
em cima do cavalo. Ele imediatamente se deitou no chão com a cabeça abaixada, Nena terminou de
prender a tira de couro em volta do tronco do cavalo e montou. Ela esticou a mão para que eu subisse
também. Eu já havia montado antes, então talvez não fosse cair. Montei atrás dela e andamos
lentamente até onde estava o portão, ela o fechou, passou um trinco e sussurrou algo para o cavalo.
― Segure-se em mim com força, senão você vai cair! ― Imediatamente eu agarrei a cintura dela
e o cavalo disparou! Ele corria tão rápido que não podia distinguir o que passava por nós, só vi o rio
se aproximar, meu estômago afundou e quase mastiguei os pães de novo, ele deu um salto sobre o
lago e pousou do outro lado com tanta leveza que mal senti tocar o chão, logo arrancou de novo e
continuamos a correr, fechei meus olhos e coloquei a cabeça nas costas de Nena, torcendo para que o
café não resolvesse sair. Tive certeza de ter escutado suas risadas e acabei adormecendo enquanto
corríamos, pois tudo que podia ver eram borrões. Acho que haviam se passado pelo menos umas
cinco horas, pois meu estômago estava doendo e roncando, finalmente tive coragem para olhar para
os lados de novo e vi uma enorme estrada de pedras largas e achatadas, olhei para frente, mas ainda
não via nenhum sinal de civilização, apenas a estrada e o mato. As árvores eram enormes, das mais
diversas cores, o cavalo estava correndo mais lentamente, quase trotando, dava para apreciar a
paisagem, logo escutei barulho de água, provavelmente outro rio. Nena disse algo ao cavalo, ele
parou de correr e estava apenas trotando agora, paramos perto do rio na sombra de uma enorme
árvore de casca fina parecida com uma goiabeira. Nena pegou um arco e uma aljava de couro que
estavam presos na cela do cavalo e dentro de sua bolsa de couro puxou um rolo de uma linha grossa.
― Como você consegue dormir em cima de um cavalo? ― Nena não parava de rir.
― Sei lá, deu sono, o que vai fazer? ― perguntei curiosa, ela me olhou e levou os dedos aos
lábios, depois amarrou a linha na parte de trás da flecha, andou quase sem fazer barulho até a
margem e atirou a flecha amarrada dentro do rio, logo a linha começou a desenrolar do carretel, ela
agarrou e começou a puxar, um enorme peixe estava se debatendo na flecha, ela o tirou da água, era
um peixe grande, devia ter uns cinco quilos. Eu a ajudei a tirá-lo da água, ela pegou uma faca e tirou
a cabeça do peixe e começou a limpar em cima de uma pedra na beira d’água.
― Leona, pegue os frascos de tempero dentro da bolsa, por favor! ― eu abri a bolsa e vi uns
vidrinhos cheios de pós, folhas picadas e sal. Entreguei para ela. ― Agora pode juntar um pouco de
lenha? Vamos almoçar antes de continuar. ― Eu sabia acender uma fogueira, peguei a madeira e
arrumei numa pilha perto de onde ela estava temperando o peixe. Peguei um pouco de folhas secas e
a lupa da aula de biologia que ainda estava na minha mochila, coloquei contra o sol e fiz uma bolinha
de luz nas folhas, logo o fogo acendeu. Nena veio até mim com dois espetos de madeira, os colocou
do lado da fogueira e botou um pequeno caldeirão de metal sobre o fogo com um pouco de água, tirou
um embrulho de pano de dentro da bolsa e vi que era a metade de um pão. Quando a água começou a
ferver, ela pegou umas folhas, colocou dentro e o tirou do fogo. Parecia aquele chá horroroso, tremi
ao me lembrar do gosto.
― Fique tranquila, esse é um chá refrescante, não é o mesmo! ― Disse ao ver minha cara de
tristeza para o chá. Nena espetou o peixão em uns gravetos e colocou sobre o fogo. Nós comemos
assim que ficou pronto, não tinha ideia de minha fome até queimar a boca toda com o peixe, estava
muito bom e o chá também. Depois de comer, lavei o rosto no rio e puxei as mangas do vestido mais
para cima, peguei a garrafa de água que eu levava para a aula de educação física, lavei-a e a enchi,
ela estava muito limpa e fresca, então não tive medo de beber. Nena fez a mesma coisa, Pupo também
estava se refrescando, mas bem abaixo de nós no rio. Descansamos um pouco e logo voltamos à
estrada, Pupo foi mais devagar, pois nossas barrigas cheias não iriam aceitar muito bem os pulos
dele.
A paisagem não variara muito até aqui.
― Falta muito para essa cidade? ― resmunguei depois de quase uma hora de viagem.
― Não muito, vamos chegar lá ao anoitecer ― ela me respondeu sorrindo ― Hoje vai ser uma
noite clara! ― Nena olhava para o céu com uma expressão serena. Atravessamos uma floresta densa
e quando as árvores começaram a ficar escassas, olhei em volta e notei que estávamos começando a
subir uma montanha numa estrada estreita e sinuosa.
Passamos por uma ponte de cordas onde tivemos que descer de Pupo e andar devagar. Um pouco
ao lado dessa ponte estava sendo construída uma enorme ponte de pedra.
― Por que ainda não está pronta? ― Perguntei me referindo à ponte.
― Alguns trabalhadores que participavam da construção da ponte sofreram um acidente
carregando as pedras morro acima, agora só continuarão mês que vem! ― Tinha certeza de que
nunca veria aquela ponte terminada.
Estava começando a escurecer e ainda estávamos andando. Os sóis já haviam se recolhido e a
paisagem era como de um filme, a cor púrpura do céu fazia as árvores parecerem desenhadas a mão e
com lápis de cor.
― Olhe para o sul! ― nem imaginava para onde estava o sul, mas fiquei virando minha cabeça
até achar alguma coisa diferente. Quando a vi, fiquei maravilhada, a lua daqui era imensa! Cobria
uma boa parte do céu, era azul clara e brilhante, o céu começava a se encher de estrelas, mas a visão
daquela lua me prendeu. ― Linda, não é? ― Nena estava olhando para ela também e vi um brilho no
seu olhar.
― Muito bonita! Ontem quando eu cheguei, o céu estava tão escuro! ― resmunguei. Aquela lua
teria feito muita diferença para eu não me apavorar tanto!
― Ontem foi dia de Sirius, se você tivesse caído na água umas três horas antes, você teria
morrido cozida. O sol Sirius quando está só desaparece à meia-noite.
― E os animais não morrem? ― perguntei.
― Claro que sim, qualquer um que não ficar protegido morre, a não ser que seja uma salamandra,
mas a maioria se protege, escondendo em tocas profundas e cavernas algumas horas antes do sol
nascer. ― Continuamos andando por algum tempo. Olhei para frente e vi enormes portões brancos
com grades de ferro, havia luz para todos os lados, movimento de gente e vozes de muitas pessoas
conversando. Descemos do cavalo antes de entrar no portão, um velho enorme de quase três metros
de altura abriu o portão para nós. Ele tinha o corpo coberto por pelos leves e brancos. A cidade
estava muito movimentada, ela era incrivelmente grande, cheia de prédios e casas antigas, Nena
segurou meu braço e me guiou por uma viela estreita onde havia um grande estábulo no final. Ela
tirou a cela de Pupo, pendurou perto da baia e serviu um bolo de feno para ele. Saímos pela mesma
viela de volta à rua principal, nela havia várias lojas de armas, vi espadas de vários tamanhos,
arcos, machados, lanças, uns cetros e cajados. Parecia que havia caído dentro de um MMORPG.
― Quem usa esses cetros e cajados aqui? ― Perguntei olhando para um grande cetro com uma
pedra azul na ponta.
― Os magos, bruxos, sacerdotes... É muito raro vê-los desfilando por aí e a maioria encomenda
suas armas, mas sempre tem um ou outro que os compram! ― Havia também lojas de roupas com
variados modelos diferentes em manequins de vários tamanhos e formas, sapatos e até uma loja mais
escondida de armaduras. Lojas com frascos e vidros coloridos na vitrine e outras com comidas
exóticas de cheiro tentador. Seres de todos os tipos desfilavam pelas ruas, um grupo de mulheres
ruivas com a pele levemente avermelhada olhava uma das lojas de frascos coloridos.
― São boticários, são frascos de poções para restaurar a força, fechar ferimentos, ou até mesmo
poções de amor. Aquele grupo são salamandras, devem estar procurando ervas para manter suas
peles frias, pois quando elas encostam nos outros, elas os queimam! ― explicou Nena percebendo
meu olhar de curiosidade.
― Nenhuma criatura aqui é perigosa? ― me arrependi da pergunta, pois ela me encarou com um
olhar assustador, depois respirou fundo para me explicar.
― Quase tudo aqui é perigoso, Leona! Salamandras queimam você e comem qualquer um se
estiverem com muita fome, elfos negros, alguns deles são mercenários, matam humanos para vender
órgãos aos boticários ou os vendem vivos a vampiros. Bruxos e duendes quando estão sem energia
matam e comem os humanos. Quase não há homens humanos aqui, pois as sereias os matam também.
Os únicos seres pacíficos são os elfos da floresta de Górtia, que são os elfos da luz, além dos silfos
que também são muito bondosos e pacíficos se não forem provocados e as fadas, mas é raro
encontrá-las!
― Entendi, desculpe! ― ela sacudiu a cabeça.
― Tenha sempre cuidado, você só deve confiar num elfo negro se você estiver o pagando para
algum serviço e pagando muito bem, pois os mercenários são espadachins e arqueiros excelentes,
mas muito, muito perigosos, não se esqueça! ― Ela olhou para um lugar escuro no canto de um
beco. ― Vê ali? São vampiros. Eles ficam escondidos até o movimento diminuir, se houver humanos
na rua durante a hora de menor movimento, eles os levam daqui para sugar o sangue, os corpos não
são achados porque eles atiram o cadáver aos lobisomens! ― Nena estava falando de coisas ruins
para me alertar, mas eu estava ficando tão apavorada que estava prestes a me beliscar para ver se
acordava em meu quarto. Quando olhei para o grupo de vampiros, uma vampira estava me olhando,
tinha os cabelos longos e azulados e olhos cor de sangue, ela mostrou as presas para mim. Nena
puxou meu rosto para ela e me sacudiu levemente.
― Eles hipnotizam, sabia? Dá para parar de olhar?
― Desculpe! ― Andamos até a frente de um prédio antigo e bem bonito que parecia um enorme
hotel, e era, quando entramos tinha uma placa com os dizeres ‘hospedaria e restaurante’ escrita em
vários idiomas (um deles, o meu!). Nena pediu um quarto com duas camas e uma mesa para jantar.
― Você tem algum dinheiro do seu mundo aí? ― ela me perguntou, eu abri minha mochila e
peguei minha carteira, havia os setenta reais do espelho, setenta reais que havia pegado de mesada
com meu padrasto e mais trinta e cinco reais que havia sobrado do dinheiro que recebia por mês para
fazer trabalhos para alguns alunos da escola. No total tinha cento e setenta e cinco reais, passei o
dinheiro para ela, a velhota no balcão pegou o dinheiro, contou e depois trocou por um saco de
moedas pesadas e grandes.
― Nossa! Você estava com bastante dinheiro aí! Isso aí dá para comprar umas dez das melhores
armaduras e armas boas. Deve ter umas oito mil moedas ― disse ela erguendo o saco e medindo seu
peso, eu peguei o saco de moedas e enfiei dentro da mochila, estava tão cheia que poderia rasgar a
qualquer momento.
― O que ela vai fazer com todo esse dinheiro que troquei? Ela não vai poder usar esse dinheiro
aqui, certo? ― A velhota gorducha me olhou e disse numa voz arrastada.
― Quando os Negociantes vão ao seu mundo para trazer mercadorias, você acha que eles
roubam? ― Eu fiquei envergonhada e murmurei umas desculpas. Nena me levou para uma sala
grande onde estavam várias pessoas jantando. Um enorme relógio na parede mostrava que eram oito
da noite. Fiquei olhando para ele até que Nena perguntou o que eu gostaria de comer, ela me passou o
cardápio e eu fiquei olhando, não tinha nada que eu conhecesse ali.
― O que mais se parece com um bife e arroz aqui? Eu fiquei olhando a expressão divertida dela.
Ela girou o cardápio na minha mão.
― Esse lado que é de comidas humanas! ― ela mostrou a página e começou a rir de novo. ― A
página que você estava vendo é de alimento das salamandras, é tudo cru! ― eu olhei o cardápio de
novo, tinha bife com batatas assadas, arroz, feijão, massas e saladas. Eu pedi um bife e arroz com
salada. Nena pediu algo do cardápio dos Elfos.
― É boa e leve a comida deles, então prefiro comida élfica de noite! ― a comida não demorou
muito a chegar, seu gosto me lembrava de restaurantes a peso, mas estava muito boa. A comida élfica
que Nena pediu também estava com um cheiro bom, embora fosse um prato totalmente vegetariano.
― Os elfos negros são carnívoros. ― disse Nena fazendo um pequeno gesto com a cabeça para
um grupo de homens e mulheres no fundo do restaurante, na mesa deles só tinha carne, peixe, aves e
alguns pães. Não deu para ver seus rostos direito, mas eram altos, e todos tinham aparência forte,
eram morenos claros e quase não dava para vê-los comendo ou falando. Quando acabamos de jantar,
subimos para o quarto, fui seguindo os números da chave. Ao chegarmos, Nena me mandou tomar
banho primeiro, eu não demorei muito, lavei o cabelo com um xampu de ervas muito cheiroso que
estava num pacotinho na pia, o chuveiro era muito forte e a água estava bem quentinha. Aqui fazia
muito frio à noite, coloquei meu moletom e a blusa preta e me atirei na cama. Puxei o celular de
dentro da mochila e o liguei, meu coração acelerou, estava com um pontinho de sinal, corri os dedos
pelas mensagens, mas não havia nada nas caixas de entrada nem ligações perdidas, logo o pontinho
de sinal sumiu de novo. Quando Nena saiu do banho, eu não pude me segurar para perguntar.
― Aqui tem redes de sinal de celular? ― ela me olhou, tirou a toalha dos cabelos e sentou na
cama;
― Como eu te disse ontem, a tecnologia daqui não é tão avançada, pois é muito perigoso transitar
entre os mundos com objetos de outros mundos, talvez a tecnologia de sinal daqui não seja
compatível com o seu aparelho! ― Ela tirou um Nokia tijolão da bolsa de couro que estava
carregando (realmente uma verdadeira antiguidade que hoje em dia é usada na construção civil para
demolir paredes).
― Meu marido já chegou em casa! ― disse ela enquanto olhava mensagens do seu telefone. ―
Amanhã vamos procurar um guia para te levar até a Torre das Nuvens, a cidade dos metamorfos, eles
têm mais facilidade para atravessar os portais entre os mundos, aí você poderá voltar para casa.
― Você disse que aquela casa era sua casa de caça, então, onde você mora? ― eu estava sob as
cobertas e secando meu cabelo com uma toalha.
― Eu moro com meu marido na cidade de Monte Azul, a Leste daqui, uns oito dias de cavalgada.
Se eu tivesse dinheiro aqui, ia de dirigível amanhã. São dois dias de viagem! ― Nena me salvou, eu
deveria dividir o dinheiro com ela, então puxei o saco de moedas e comecei a despejá-las na
cama. ― O que está fazendo? ― perguntou ela olhando as moedas.
― Vou dividi-las em dois e te dar metade!
― Não, por favor, não precisa, apenas vinte moedas já bastam, a passagem de dirigível custa 10
moedas! ― eu tirei trinta das moedas e dei a ela, o resto eu guardei. ― não gaste tudo, sugiro você a
comprar uma arma e usar o dinheiro para pagar um mercenário para te levar até a Torre das nuvens.
― Mas não seria mais rápido eu ir de dirigível? ― ela me olhou de novo quase com pena.
― O dirigível só voa para cidades seguras, como Górtia, Vila das Flores e Monte azul, as outras
cidades são consideradas potencialmente perigosas e o dirigível não pode as sobrevoar. ― eu olhei
para ela, estava com medo de fazer a pergunta.
― Essa Torre das Nuvens é muito longe? ― outra vez eu pude ver o olhar de pena. Ela pegou um
mapa na escrivaninha que estava na parede perto da porta e o abriu em cima da cama. O mapa desse
mundo era duas vezes menor que o mapa da terra. Todas as marcações do mapa só mostravam nomes
de cidades e traços em vermelho dividindo-as em territórios.
― Esse mundo é dividido em quatro continentes que são: Edro, Mantum, Vintro e Lastar, os dois
habitados, norte e sul, e dois continentes, até onde sabemos, desabitados, a Leste e a Oeste! ― Vintro
era o maior continente, cabia Mantum duas vezes dentro dele. Ela continuou a falar ― Ao norte,
aonde você vai, é a parte mais perigosa com as cidades de criaturas mais ofensivas, só os
metamorfos e algumas cidades élficas são as mais calmas de lá, e aqui o sul, onde estão as cidades
de criaturas mais pacíficas. Aqui é a cidade central, fica no hemisfério Sul, país de Mantum. A Torre
das Nuvens está no país de Edro, entendeu? A Torre das nuvens fica aqui, nesse ponto, e nós estamos
aqui, é aproximadamente um mês de viagem! A leste e a Oeste são só os mares territórios de
Abissais. ― meu estômago afundou, eu levaria uma eternidade para voltar.
― Entendi. ― suspirei, depois de dizer um mês de viagem, eu já estava pensando em tudo de
errado que iria acontecer, meus pais chamando a polícia, cartazes de desaparecida, ia perder o final
do ano letivo mesmo sabendo que já havia passado. Minha mente foi tomada de tudo que é tipo de
imagens do que poderia acontecer, Nena percebeu meu nervosismo e resolveu me tirar dos
pensamentos tortuosos.
― Leona, o que seus pais fazem onde você mora?
― Hum, minha mãe tem um antiquário, ela vende muitas coisas antigas e algumas raras... Livros
com idiomas antigos também. Tem coisas lá que parecem ser de outro mudo! ― eu ri, lembrando-me
das engenhocas velhas nas estantes e paredes da loja. ― Meu pai a ajuda com a loja, mas ele é
escritor.
― É mesmo? E essas coisas de outro mundo? Pode descrevê-las pra mim? ― ela me olhava com
um olhar terno, calmo. Então comecei a descrever as coisas estranhas da loja. Antes mesmo de
terminar a primeira, já estava dormindo.
Sonhei de novo com minha casa, sonhei que estava fazendo macarronada para meu irmão, que ele
jogava o macarrão no teto e que o macarrão grudava.
2

Viajando com um Mercenário


Acordei muito cedo, o céu nem estava claro ainda, lembrei da conversa com Nena e ri da técnica
que ela usou para me fazer dormir (falar sobre uma coisa chata até cair de sono), mas Nena não
estava mais na cama ao lado, a porta estava meio aberta e havia um bilhete na cama: “Leona, sinto
muito não esperar você acordar, mas o Dirigível sai às cinco da manhã, quando você acordar para
tomar café, vai ter um elfo negro, um mercenário, te esperando na mesa perto da porta, eu
conversei com ele, é um conhecido, alguém que eu confio e ele aceitou te levar à Torre das Nuvens
por oitocentas moedas. Compre um arco e uma aljava de flechas quando sair daí antes de partir,
no caminho você aprende a usar, obrigada pelas moedas e pelo passeio, espero que volte para sua
casa em segurança, abraços, Nellena.”. Eu fiquei nervosa ao terminar de ler o bilhete, teria que
viajar sozinha com um mercenário depois de Nena ter me dito que eram perigosos. Eu não podia
simplesmente ficar tranquila, mesmo sendo um conhecido dela, mas não poderia fazer nada sozinha, e
tinha que voltar para casa de qualquer jeito! Provavelmente não iria chegar em casa antes do natal e
não sabia um modo de justificar minhas faltas e terminar o ensino médio, talvez diria para meus pais
que fugi de casa para fazer alguma doideira de adolescente, quem sabe se meu castigo não seria
eterno dando uma justificativa dessas?

Levantei-me da cama num pulo, quanto mais rápido saísse, mais rápido estaria em casa. Tomei um
banho, arrumei minhas coisas e desci as escadas rapidamente até o restaurante que estava quase
deserto a não ser por um casal numa mesa nos fundos da sala e pela figura sentada na mesa perto da
porta. Respirei fundo e andei até ele em passos largos e firmes embora estivesse muito nervosa.
Sentei na cadeira vazia em sua frente, ele estava lendo um livro quando sentei, o fechou e olhou para
mim. Eu senti um frio na espinha quando os olhos dele encontraram os meus, ele tinha um olho azul e
outro cinza-claro, quase prateado. Tinha os cabelos pretos longos até o meio das costas e era alto,
devia ter pouco mais de dois metros de altura e parecia ser muito forte, pois pude ver o desenho dos
músculos através da blusa cinza que ele usava. Estava muito sério.
― Hum... Bom dia ― falei timidamente abaixando meus olhos para o cardápio, ele não
respondeu e ficou apenas me olhando com as sobrancelhas perfeitamente desenhadas erguidas. Eu
pedi uma omelete com torradas e um café à garçonete. Ele pediu algo também, mas não entendi a
língua que ele falou, será que ele conhecia meu idioma? Antes de eu perguntar algo, ele falou comigo.
― Então, vamos para Torre das Nuvens, certo? ― sua voz causou arrepios na minha pele e fez
com que minha garganta se estreitasse, não sei ao certo se era medo ou apenas nervosismo.
― Hum, certo... Preciso encontrar alguém que possa me mandar de volta para casa ― notei que
ele ainda estava me olhando, então o encarei também, mas apenas por alguns segundos, pois virei os
olhos para outro lado e ele pareceu satisfeito com a minha reação.
― Quero dinheiro adiantado! ― eu olhei para ele de novo.
― Metade agora e metade quando chegarmos lá! ― falei firmemente, eu assistia a muitos filmes
e sabia que se pagasse adiantado poderia não vê-lo de novo. Ele sorriu ainda me encarando e fiquei
observando-o desconfiada.
― Tudo bem, metade agora e metade quando chegarmos lá, mas vai demorar mais ou menos um
mês.
― Eu já sabia dessa parte! ― suspirei tristemente e ele olhou para minha mochila no chão.
― Quantas peças de roupa você tem aí?
― Um moletom e uma blusa. ― ele riu de novo.
― Um mês de viagem por desertos, lugares congelados e florestas fechadas. Você acha que
consegue se virar com isso? ― Eu estava o encarando de novo. Com certeza teria que comprar
algumas roupas. Tomei meu café em silencio imaginando a loja que eu tinha visto com Nena, iria
passar lá depois de tomar o café, sem falar que por recomendação dela teria que comprar uma arma.
Paguei a conta e saímos. Fui andando na direção que eu havia visto a loja e os sóis já começavam a
se levantar no céu.
― Como é seu nome mesmo? ― ele me perguntou.
― Eu não disse, é Leona ― ele ergueu uma sobrancelha.
― Me chamo Ewren. ― eu olhei para ele, a não ser pelo olho cinza que agora estava prateado
contra o sol ele parecia humano, porém muito mais forte e alto. A sua pele era de tom pardo e
levemente bronzeada. Ele estava usando uma calça de um tipo de couro grosso com um tipo de
suporte nas duas pernas onde estavam duas enormes adagas, estava com uma bandoleira atravessada
e presa a ela, uma enorme espada de lâmina aparentemente muito afiada. Eu entrei na loja e ele ficou
do lado de fora esperando. Uma mulher estranha estava arrumando algumas roupas num balcão e
olhou para mim, algo nela me pareceu um tanto familiar, seus olhos eram amarelos e a sua pele tinha
um tom pálido cinzento. A vassoura deitada atrás da porta indicava que ela devia ser uma bruxa.
― Bom dia, querida! O que deseja? ― ela perguntou, sua voz era sedosa e ela tinha um cheiro
doce enjoativo.
― Eu estou indo viajar para Torre das Nuvens e preciso de algumas roupas ― ela me olhou de
cima a baixo.
― Está indo tratar de negócios? ― ela perguntou me rodeando. Ewren entrou na loja e veio até
mim.
― Arrume as roupas, Moan, não te interessa o que ela vai fazer. ― a bruxa o olhou sair da loja e
fez um estranho som com a boca, então pegou um vestido longo cinza e sem mangas e me entregou.
― Este é bom para andar de dia e de noite, ele é leve para o dia e é tecido com lã de Yeti, por
isso, ele aquece de noite, você só precisa de um poncho para colocar por cima durante a noite. Ela
pegou um poncho preto lindo feito de lã e me entregou, pegou também um vestido mais leve e curto
cor de linho, uma calça de um tecido forte de cor preta e uma bata preta. ― o conjunto preto você
usa no deserto, ele impede o calor de entrar e não deixa passar areia ― e me deu também um lenço
que provavelmente era para o rosto. ― O vestido de linho é melhor usar na floresta das almas, ela é
muito quente à noite ― Disse a bruxa, ela pegou mais um par de botas, mas com o cano menor do
que a que eu estava usando, e outra bota interessante feita de tecido que era para enrolar nas pernas
até o joelho, a sola era grossa de couro.
― Hum, por acaso não tem roupa íntima? ― perguntei, ficando corada.
― Ah, claro... ― puxou um grande pacote preto de baixo do balcão e havia vários saquinhos de
peças íntimas. ― essas foram trazidas do outro mundo humano na última abertura de portal! ― ela
colocou o saco sobre o balcão, eu peguei algumas peças do meu tamanho e botei junto com as roupas
que ela havia me dado.
― Só isso? ― eu olhei de novo para minha mochila, que além de material escolar, meu moletom
e umas barrinhas de cereal, agora tinha moedas e com certeza não caberia mais nada, a bruxa pareceu
ler minha mente e pegou uma bolsa grande de couro e colocou as roupas dentro. ― São trinta
moedas! ― Eu peguei escondidas as moedas na mochila, paguei e saí da loja. Ewren estava do outro
lado da rua na frente do boticário.
― Deveria comprar um estojo de antídotos! Você é humana, tudo no caminho pode te matar ― ele
estava olhando um estojo preto na vitrine ― eu suspirei e entrei na loja. Havia um sujeito
esverdeado misturando uns líquidos escondido atrás do balcão, ele parou e pegou o quite de
antídotos que eu pedi, eu achei sabonetes e comprei alguns. A bolsa de couro era tão grande que
arrumei minha mochila dentro dela também. Eu não achava que fosse precisar de uma arma, então
deixei isso pra lá.
― Sabe cozinhar alguma coisa? ― fiquei realmente ofendida com a pergunta.
― Claro que sei! Bom, pelo menos no meu mundo. ― ele pegou outro estojo com temperos e me
entregou, eu o guardei na bolsa. Ele voltou até a hospedaria, pegou uma mochila grande, foi ao
estábulo, pegou um cavalo e amarou as bagagens nele, havia água e comida também. Andamos até o
outro lado da cidade onde saímos por um portão menor para uma pequena estrada estreita. Ele parou
no portão e olhou para mim, peguei a metade do dinheiro que havia combinado e entreguei. Estava
calor demais, eu estava com muita preguiça de andar, mas queria muito chegar em casa.
Caminhamos em silêncio por um longo tempo, o cenário foi mudando, a cidade de Alamourtin
ficou para trás, ela ficava no topo de uma montanha e enquanto descíamos, a vegetação rasteira foi
aparecendo e o calor foi aumentando. Eu enrolei as mangas do vestido e teria amarrado a saia se não
estivesse acompanhada de uma figura masculina. Comecei a sentir um arrependimento enorme de não
ter comprado uma faca ou adaga na loja de armas. Quando chegamos a uma área plana, seguimos por
uma trilha até perto de um rio.
― Se seguirmos o rio, você não vai sentir tanto o calor. ― Ewren deixou o cavalo beber água.
Estava bem mais fresco perto das margens do rio e lembrei-me da criatura que vimos quando caí no
lago logo após cair no espelho.
― E se aparecer um Kappa? ― eu olhei para as águas cristalinas do rio e acabei duvidando que
algo fosse sair dali.
― Um Kappa? Você acha que um Kappa vive quanto tempo se aparecer na minha frente? ― ele
estava me olhando como se eu tivesse dito que um rato pode comer um leão.
― Desculpe, não tive intenção de ofender. ― Andamos por mais algumas horas em total silêncio
nas margens do rio e eu estava ficando entediada. Algum tempo depois o rio ficou mais largo, havia
muitas pedras e nas pequenas bolsas de água haviam peixes enormes nadando. Meu estômago
resmungou alto e eu senti meu rosto esquentar, então peguei dentro da mochila uma barrinha de
cereais que por sorte estava vedada o suficiente para não encher de água quando caí no lago. Eu a
comi depressa implorando que minha fome sossegasse, mas meu estômago roncou de novo,
“traidor”. Ewren parou perto de uma árvore onde tinha uma boa sombra e soltou o cavalo que deitou
na grama e começou a rolar alegremente. Ele tirou a blusa e entrou na água. Eu o olhei espantada, não
sabia o que ele iria fazer, vi o desenho dos músculos de seus braços e ombros e seu abdome
definido, corei levemente e disfarcei mexendo nas folhas das árvores.
― Pegue minhas adagas ali na pedra! ― disse ele, virei de costas e peguei uma delas, era muito
pesada, sem querer a deixei escorregar, abrindo um corte profundo em minha mão.
― Droga! ― resmunguei baixinho tentando parar o sangramento com um lenço, pegando-as
novamente e lhe entregando as adagas.
Ele ficou em silêncio sem se mover dentro da água, estava apenas esperando até que os peixes se
acostumassem com a sua presença.
Eu fiquei quieta observando. Ele virou lentamente de costas e ficou parado de novo, em suas
costas tinha uma tatuagem de uma fênix negra com asas enormes que cobriam quase toda a área. De
repente ele fez um rápido movimento, tirou dois peixes da água e os jogou para mim, eu gritei e tentei
desviar, mas os peixes caíram em cheio em cima de mim. Os peixes eram enormes e não paravam de
se debater. Ele saiu da água e ficou olhando para mim.
― Pegue-os! ― eu tentei pegar, mas os peixes eram muito grandes. Ewren revirou os olhos, tirou
a cabeça dos bichos, começou a limpar e eu fiquei fedendo a peixe.
― Por que você os jogou em mim? Não podia ter colocado eles perto da margem?
― Eles iriam se debater até cair na água. ― eu peguei o vestido de linho na bolsa e o sabonete,
fui para longe de onde ele estava limpando os peixes, coloquei o vestido e as botas na pedra e, entrei
na água e comecei a me esfregar para limpar o vestido que Nena havia me dado. Quando acabei de
me lavar, olhei por cima do ombro para ver onde Ewren estava, ele estava de costas acendendo a
fogueira, fui rapidamente para trás de uma pedra maior no rio e tirei o vestido lavado, coloquei o de
linho até a cintura, me levantei da água e puxei o resto. Torci o vestido e o pendurei em uma árvore,
voltei até onde ele estava assando os peixes e me sentei com cuidado, fiquei apenas observando
aquela figura estranha e grosseira sentada à minha frente, me sentia mal, ficando tonta e um pouco
ofegante. Quando os peixes finalmente ficaram prontos, eu comi a minha parte e fiquei sentada na
sombra da árvore junto com o cavalo, peguei uma toalhinha de rosto que ficava na mochila para as
aulas de educação física e enrolei na mão cortada, pois o lenço já estava todo sujo de sangue. Ewren
olhou-me de lado e viu o que eu estava tentando fazer.
― Como você fez isso? ― perguntou
― Deixei sua adaga cair e ela cortou a minha mão. ― respondi rispidamente.
― Você comprou o estojo de antídotos? ― Ewren perguntou, olhando para a mão que não parava
de sangrar.
― Isso é apenas um corte, já vai melhorar! ― respondi novamente com grosseria, mas percebi
que minha vista estava começando a embaçar. Ele bufou andou até mim, pegou o estojo e tirou de lá
um frasco pequeno com um pó branco e outro vidrinho dentro de sua própria bolsa com pequenas
bolinhas amarelas, tirou uma e me deu.
― Mastigue isso! ― eu o olhei desconfiada ― Agora! ― fiquei o encarando por mais alguns
segundos, mas acabei cedendo e tomando o remédio, a tonteira começou a passar. Ele usou o pozinho
e fez uma pasta com um pouquinho de água, puxou a minha mão e passou a pasta no corte. Ardeu
bastante, mas imediatamente o corte se fechou deixando apenas uma linha rosa e ele me encarou
fazendo uma expressão zangada.
― Você não recebeu muita educação de onde veio, não é? ― fiquei vermelha, não sei se de
vergonha ou raiva. ― Essas adagas contêm veneno na lâmina.
― Não tanta educação quanto você parece ter! ― respondi ignorando a parte do veneno. Ele
sentou perto de mim e parecia que ia tirar um cochilo.
― De onde você saiu? ― perguntou, ignorando minha grosseira e jogando os braços por trás da
cabeça.
― Da minha mãe! ― respondi ainda com raiva, ele se levantou, agachou na minha frente, pegou
meu queixo com força e olhou nos meus olhos.
― Escuta, estou te fazendo um favor, qualquer um teria cobrado o dobro ou até o triplo para fazer
essa viagem e poderia simplesmente cortar sua cabeça, roubar todo seu dinheiro e ir embora sem ter
que fazer nada ― ele parou de falar, respirou e puxou a adaga da cintura ― Eu também poderia
arrancar a sua língua e ter uma viagem fácil, porém silenciosa, ou ser ruim e te abandonar no meio do
nada, certo? ― ele colocou a lâmina no meu pescoço fazendo ondas geladas de medo se espalharem
por todo meu corpo ― Mas, como eu estou sendo bonzinho e hoje acordei de bom humor, dobre essa
língua e responda mais educadamente ou eu a uso de isca para pescar sereias no mar de Água doce!
― Falando isso, ele soltou meu rosto. ― Vamos começar de novo? De onde você veio? ― Ele ficou
girando a adaga na mão, meu coração ainda não tinha voltado a bater normalmente.
― Da Terra, eu entrei num espelho e caí num lago dentro da floresta de Gheshira.
― Viu? Não é tão difícil responder direito! ― Disse ele guardando as adagas ― Terra, é?
― sentou novamente encostando-se na árvore ― O tempo lá passa muito diferente daqui.
― Como diferente? ― perguntei medindo minhas palavras.
― Do seu mundo para esse mundo existe uma forte interferência temporal, que faz com que o seu
mundo seja igual e diferente daqui.
― Ainda não entendi!
― Meia hora no seu mundo equivale a um dia deste mundo, então desde a hora que você caiu
aqui, ainda não se passou nem uma hora lá! ― O olhei incrédula, não sabia se ele estava falando a
verdade, mas isso explicaria a ausência de ligações e mensagens no meu celular e a hora diferente no
display. Minha mãe iria imaginar que eu estava na casa de Lucy, já que eram quase oito da noite
quando caí no espelho e como eu havia recebido mesada, ela com certeza pensaria que eu havia
saído com Lucy para torrar a mesada no shopping, quando nós duas saíamos eu dormia na casa dela
ou de sua tia e não avisava.
― E você veio de onde? ― perguntei tentando ser educada com ele.
― Da floresta de Crecência, sou um elfo negro.
― Que idade você tem?
― Não me lembro, parei de contar quando cheguei a mil e seiscentos, e você?
― Dezessete pelo que sei, eu contei todos. ― Ele ficou parado por um tempo me encarando e
depois começou a rir. ― Qual é a graça? ― perguntei frustrada.
― Émuito interessante o fato de Nena, mesmo me conhecendo, ter me entregado uma jovem
virgem para levar pro outro lado de Amantia por oitocentas moedas, eu poderia te vender para os
vampiros ou para as bruxas por umas cinco mil moedas! Sangue de virgem é item muito utilizado por
feiticeiros aqui! ― eu congelei, fiquei olhando para os meus pés e tentando respirar corretamente.
― E quem te disse que eu sou virgem? ― Gaguejei acabando com a minha farsa.
― Dá para saber só de olhar pra você, tem cara de inocente e uma virgem não cai em feitiço dos
elfos negros, se você não fosse, estaria me obedecendo e me respondendo sim senhor.
― Não tenha tanta certeza ― consegui falar mais calmamente. Ele olhou para mim quase rindo.
― Então, tire a roupa! ― ele sorriu, um sorriso perverso acompanhado de um olhar estranho que
causou arrepios na minha pele. Senti muita saudade de Nena.
― Claro que não! Ficou louco? Seu pervertido!
― Viu, não obedeceu! Eu não tenho interesse em crianças humanas, só se for pra venda, claro! ―
eu fiquei ofendida e pensei em responder “quem desdenha quer comprar”, mas era melhor eu não
arrumar um novo motivo para brigar, ainda mais porque há alguns instantes ele estava com uma faca
em meu pescoço.
― Você não vai me vender de verdade, não é? ― eu tentei usar o olhar de triste e comovente,
mas ele não mudou a expressão assustadora.
― Talvez... Sangue de virgem é melhor do que sangue de dragão... ― ele parecia estar falando
sério, me olhava de canto de olho com um leve sorriso nos lábios, era encantador e ao mesmo tempo
assustador. Comecei a planejar uma fuga, uma hora teríamos que parar para dormir e quando ele
dormisse, eu iria embora e procuraria ajuda de gente melhor na cidade mais próxima. Ele se
levantou, arrumou as coisas e começou a andar novamente, eu o segui lentamente e observando bem o
caminho por onde estávamos passando. Ele pareceu não notar o meu comportamento, então tentei agir
normalmente.
Saímos do campo de rasteiras e começamos a entrar numa floresta escura de árvores sinistras e
altas e sem nenhuma vegetação no chão além das folhas mortas. Já havia escurecido, o céu estava
nublado e não podia ver a lua daqui.
― Fique por perto, podem ter vampiros nessa floresta, não quero dar de graça uma mercadoria
tão valiosa! ― ele olhou para mim e sorriu, como estava escuro, não percebi se foi um sorriso ou
aquela cara de psicopata, por que a Nena não veio comigo?! Eu não queria morrer! No meio da
floresta, Ewren parou, tirou o peso do cavalo para que ele pudesse descansar e o amarrou a um
tronco no chão. Ele andou por perto juntando bastante lenha e colocou perto de mim.
― Acenda uma fogueira aí, eu vou buscar água. ― ele saiu de perto, eu iria fugir só na hora que
ele dormisse, separei a mochila e o poncho e acendi a fogueira. Ele voltou com um caldeirão de
metal polido trazendo água e colocou sobre o fogo, depois foi até a bolsa de mantimentos e tirou uma
espécie de saco grande e frio. Dentro do saco havia pedaços de carne picada e congelada. Eu fiquei
olhando e notei que parecia muito com uma bolsa térmica.
― Isso é uma bolsa isolante, você pode manter coisas congeladas ou quentes nela por dias sem
estragar. ― Ele colocou um pouco da carne no caldeirão, acrescentou temperos e tampou, depois
pegou batatas em outro saco e as descascou. Tirou um caldeirão menor da sacola que estava em cima
do cavalo e me entregou ― ali do lado passa um riacho, encha de água!
― Por favor? ― eu resmunguei, olhando para ele. Ele nem sequer olhou de volta, respirei fundo
pensando duas vezes se o acertava ou não com aquele caldeirão e fui pegar a água resmungando.
Voltei rápido para a fogueira, pois estava frio e escuro. A carne no caldeirão estava com um cheiro
muito bom, ele colocou as batatas e deixou tampado, depois pegou alguns pães, duas tigelas pequenas
e ficou esperando ficar pronta.
― Paraque essa água? ― Perguntei olhando para o caldeirão que eu enchi.
― Para fazer chá. ― ele só respondeu isso e depois ficou vigiando o ensopado. Ewren encheu as
tigelas e me passou uma, eu não estava com muita fome, mas a comida estava muito boa e o pão era
branquinho e macio, acabei comendo duas vezes e depois tomei um pouco daquele chá estranho
apimentado, estava quase me acostumando com o gosto ruim, acabei me arrependendo de ter comido
tanto, seria difícil fugir com a barriga cheia e com sono. Fiquei imaginando alguém engordando um
leitão para depois assá-lo, e eu era esse leitão no momento. Peguei um quite de higiene dentro de um
estojo na minha mochila, peguei a escova de dente e a garrafa de água e escovei meus dentes, depois
me encostei num tronco bem próximo à fogueira. Para minha surpresa, Ewren pegou uma escova de
dente dentro de um pequeno bolso em sua jaqueta e fez o mesmo. Claro que era normal, era um
mundo parecido com o meu e diferente, assim como Lucy havia dito. Tão diferente e tão igual...
― Durma enquanto é cedo, se não os barulhos da floresta não te deixarão dormir mais tarde! ―
eu peguei meu celular na bolsa e verifiquei se a bateria de reserva estava carregada, quando
confirmei, botei os fones e fingi que dormi. Fiquei vigiando com os cantos dos olhos. Quase uma
hora depois Ewren pegou no sono, eu me levantei lentamente e acenei com os braços para ver se ele
iria abrir os olhos. Quando tive certeza que ele estava adormecido mesmo, levantei, peguei minha
mochila e saí andando no meio da floresta. Não sabia para onde ir, mas tinha certeza que não iria
voltar para o mercenário que estava me achando com cara de mercadoria contrabandeada. Comecei a
procurar por luz na floresta que indicaria alguma casa ou vila. Rodei por bastante tempo naquela
escuridão medonha, as árvores secas lembravam-me um cenário de filmes de terror em cemitérios e
com mortos vivos.
Depois de andar muito, tive que admitir que estava perdida. Os sons da floresta me apavoravam,
eu devia ter ficado quietinha com o mercenário e esperado para fugir a cavalo durante o dia. Pensei
em voltar para a fogueira, porém não conseguia mais enxergar sua luz. Aquela lua gigante da noite
passada não estava em lugar nenhum para me ajudar. Continuei andando, já que não adiantaria nada
me jogar no chão e começar a chorar, eu estava apavorada demais para gritar por socorro. Por vezes
tropeçava em raízes e pedras, até cair de joelhos, parei e respirei fundo, teria que ficar aqui até o dia
clarear, pois não estava chegando a lugar nenhum e poderia me ferir seriamente se continuasse assim.
Olhei para o céu, algumas estrelas pálidas apareciam de vez em quando entre as nuvens, fazendo o
cenário ficar ainda mais arrepiante. O frio estava ficando cada vez mais intenso, não havia pegado o
poncho e estava batendo os dentes de frio, quando olhei para cima de novo, vi um par de asas
gigantes passarem bem acima de mim nas árvores, fiquei dormente. O pânico foi tão intenso que eu
fiquei sem voz e meus olhos se encheram de lágrimas. Eu ficava repetindo “é só uma coruja”, mas,
na realidade, se fosse uma coruja, ela deveria ter sido criada a achocolatado e farinha láctea,
pois era imensa. Ouvi outro barulho vindo do meio das árvores, galhos secos quebrando bem perto
de mim, eu não conseguia achar minha voz para gritar e o pânico não permitiria nem que eu me
movesse. Fiquei olhando, procurando o que estava fazendo o barulho, mas nada aparecia. Agachei-
me no chão para esperar aquilo aparecer e talvez conseguir lutar para sobreviver até de manhã. Uma
sombra parou a menos de um palmo de mim e pude sentir a respiração gelada em meus cabelos.
Quando olhei para o lado, vi um enorme rosto pálido com olheiras e presas gigantes pertinho de mim.
Eu juntei todo ar que tinha nos pulmões e gritei o mais alto que pude. O vampiro esticou as garras na
minha direção e quando me virei para correr, senti algo cortando minhas costas e caí no chão. Senti
o sangue quente escorrer e me virei para a criatura, seus olhos estavam de um vermelho vivo, ele
parecia surpreso, talvez, com a minha reação, pois ficou parado um momento me encarando. Tentei
me levantar para fugir e foi aí que ele se moveu novamente em minha direção, mas uma faca
cintilante perfurou seu olho, fazendo a criatura guinchar e se afastar. Ewren pousou atrás de mim com
as asas enormes e negras abertas, seus olhos estavam prateados, sua pele cinza e seu cabelo branco.
Ele puxou a espada das costas e arrancou a cabeça do vampiro. Logo em seguida pegou um galho em
uma árvore, espetou o coração dele e ateou fogo ao resto do corpo. Depois virou na minha direção e
me pegou no colo, eu estava entorpecida e assustada demais, meu corpo estava gelado e estava sem
voz. Não me lembro se estava mais assustada com o vampiro ou com a criatura que chegou voando
depois dele.
― Pare de chorar! ― disse ― Ninguém mandou fugir! Eu não ia te vender de verdade, menina
idiota! ― ele voou de volta para perto da fogueira e me colocou no chão, se virou de costas para
mim e a sua tatuagem se moveu como se estivesse viva, depois se encolheu, fazendo as asas dele se
moverem e encolherem até desaparecerem e reaparecerem como as asas da tatuagem, que ficou
imóvel novamente.
― Sinto muito pelo vestido! ― ele me colocou sentada de costas para a fogueira e rasgou a parte
de trás do vestido. ― Corte de garra de vampiro pode matar, sabia? ― ele pegou o estojo e jogou
um líquido gelado, eu senti arder do meu ombro esquerdo até o meio das minhas costas, ele pegou um
pano e molhou na água que estava no caldeirão em cima da fogueira e começou a limpar o sangue.
― Eu achei que você quisesse ir para casa, seu eu soubesse que queria morrer, teria feito de um
jeito menos doloroso! ― ainda não conseguia responder. Eu o vi tirar uma enorme agulha do estojo
de poções e agarrei a mão dele. Ele riu ― Sinto muito, mas não tem pó suficiente para fechar, eu
tenho que dar uns pontos primeiro e passar o pó por cima só para cicatrizar! ― eu recomecei a
chorar. ― Oras! Você não estava chorando quando resolveu fugir, não é?
― Eu tenho medo de agulhas! ― consegui botar para fora entre os soluços.
― Se tivesse mais medo de vampiros, não precisava ficar com medo da agulha agora. ― ele
queimou a agulha no fogo, depois passou água fervendo e começou a costurar minhas costas. Quando
ele acabou, toda força que eu usei para não chorar se foi e eu recomecei a choradeira, Ewren passou
a pasta em cima do corte e depois apertou com o dedo.
― Ainda dói?
― Não... Está só formigando. ― disse entre soluços.
― Ótimo, não vai inflamar. ― Ewren me virou de frente para ele, lavou a toalha e limpou meu
rosto. Ele tinha voltado ao normal, estava com um olho azul e outro cinza, com sua pele cor de mel e
seu cabelo preto. ― Me responda uma coisa?
― Hum? ― resmunguei, estava quase caindo de sono e de cansaço.
― Você fugiu por que eu disse que ia te vender?
― Claro! ― respondi indignada, será que ele era idiota ou algo assim?
― Você é bem burrinha, se sangue de pessoas inocentes valesse tanto assim, você acha que teriam
crianças nas cidades? As pessoas venderiam seus próprios filhos por cinco mil moedas! Eu disse
aquilo porque você estava sendo grosseira e eu queria curtir com a sua cara. Eu nem imaginava que
você ia cair nessa, na verdade, nenhum idiota acreditaria nisso! ― ele ficou rindo de mim o tempo
todo, eu também teria rido da minha própria burrice se não estivesse ferida, com frio e
envergonhada. Mas como eu continuei com a cara amarrada de quase morta, ele parou de rir ― Me
desculpe. Não vou mais brincar assim! ― Ele passou a mão no corte de novo, dessa vez senti apenas
um calafrio. ― Está sentindo formigar ainda?
― Não, só estou com sono ― eu levantei e peguei minha mochila, tirei de dentro meu moletom e
minha blusa. ― olhe para o outro lado, por favor! ― ele me encarou e depois virou de costas para
mim. Eu puxei o braço de dentro do vestido e coloquei a blusa por cima dele. Depois coloquei o
moletom e tirei o vestido.
― Dá para costurar, é só lavar o sangue.
― Prefiro jogar fora. ― resmunguei.
― Uma pena... ― disse ele mordendo os lábios e tentando não rir. Pegou um cobertor grosso
feito de lã e colocou perto da fogueira. Eu deitei nele e dormi antes que ele pudesse dizer mais
alguma gracinha.
Acordei tarde, os sóis já estavam altos, como se fossem se tocar no céu. A fogueira estava acesa e
tinha chá fervendo nela. Ewren me passou um sanduíche e um copo de chá. Sentei toda torta para
comer, senti uma leve fisgada nas costas e soltei um suspiro.
― Está doendo? ― Ewren não parecia preocupado.
― Não... Só está coçando. ― eu me remexi enquanto tomava meu café.
― Nó vamos parar mais à frente na vila das flores para comprar mais remédio, você se machuca
muito fácil. ― eu nem respondi, estava presa num mundo repleto de todos os monstros que no meu
mundo são os mais assustadores e perigosos e ele ainda queria que minha pele fosse feita de aço?
Quando terminamos de arrumar as coisas, fui até o rio me lavar e escovar os dentes.
Do outro lado do rio havia um filhote de um tigre branco com listras pretas, ele estava sozinho e
choramingando. Fiquei ali observando, esperando sua mãe aparecer, mas nada apareceu, então me
certifiquei de que era raso, puxei as pernas da calça para cima e entrei no rio. O bicho ficou me
olhando desconfiado, eu estiquei a mão para ele cheirar, então ele esfregou a cabeça na minha mão e
eu o peguei no colo. Era muito fofo e seu pêlo era macio. Imaginei que ele devia estar com fome,
prendi o lenço do meu cabelo entre duas pedras e em menos de cinco minutos eu peguei um peixe.
Não tinha nada para cortá-lo, então peguei uma pedra lisa e consegui picar o peixe em pedaços. O
bichinho o comeu rapidamente.
― Preciso te dar um nome? ― eu perguntei olhando o pequeno tigre. Ewren apareceu.
― Achei que você tivesse se afogado! ― veio reclamando quando viu o tigre na minha frente ―
O que é isso?
― Um filhote, o achei do outro lado do rio, como não apareceram outros, eu catei ele.
― Sugiro deixá-lo aqui, eles chegam a ficar maiores que um cavalo, sabia? ― eu o olhei e fiquei
com pena de deixá-lo sozinho.
― Eu cuido dele!
― Ele vai te comer, pode ter certeza! ― Ewren disse olhando para o filhote de cara amarrada.
― Eu correrei o risco. ― eu peguei o tigre no colo ― Feroz! Esse é seu nome.
― Muito criativo. ― Ewren revirou os olhos e saiu andando.
― Qual você sugere? ― eu perguntei sem olhar para ele.
― Ponha o nome que quiser desde que não me atrase! ― Ewren era muito mais grosseiro do que
eu e não tinha o direito de reclamar de mim.
Partimos em alguns minutos, estava carregando Feroz no colo, mas ele pesava muito, então o
coloquei no chão e ele começou a nos seguir. O cenário demorou muito para mudar, aquela floresta
horrível parecia não ter um fim, pois, algumas horas de caminhada depois, ainda estávamos dentro da
floresta.
― Não estamos perdidos? ― perguntei a Ewren que ia andando na frente e guiando o cavalo. Ele
olhou para mim como se eu tivesse o ofendido profundamente.
― Eu tenho cara de quem se perde em florestas? Sou um elfo, lembra? Não me julgue como um
humano com sentidos primários!
― Ei! Eu não tenho sentidos primários! ― reclamei.
― Não fui eu que me perdi a duzentos metros de onde estava acampado ontem e quase morri para
um vampiro! ― ok, um a zero para ele.
A floresta foi se tornando mais densa, parecia que estávamos nos afastando cada vez mais da
estrada. E se Ewren ainda estivesse com a ideia de me vender? Feroz começou a rosnar levemente e
seu pêlo estava todo eriçado.
― Que foi, bichinho? ― estiquei os braços, ele pulou em mim e se enrolou no meu colo.
― Você deveria ter colocado o nome dele de covarde! ― Ewren parou e fez um sinal para que
eu parasse também, ele pegou a espada que estava em suas costas e foi pelo meio das árvores até eu
perdê-lo de vista. Feroz de repente saltou do meu colo e começou a bater as patas no chão e crescer
até ficar maior do que o cavalo que estávamos levando. Ele saltou em uma árvore e voltou com um
pequeno homenzinho verde preso nos dentes. O duende se debateu debilmente, pois já estava todo
mordido. Ewren voltou segurando outro duende pelas pernas. Ele tomou um susto tão grande quando
viu feroz que largou o duende, que quando se viu livre, correu desesperado pela floresta, Feroz
engoliu o que estava em sua boca e saltou para pegar o outro. Ewren e eu olhávamos de boca aberta,
pelo menos desta vez eu não era a única espantada.
― Eu disse que ele não ia me comer! ― Ainda estava olhando Feroz devorar o outro duende.
Ewren acenou com a cabeça, e Feroz veio até nós se lambendo e sentou perto de mim. Eu estiquei a
mão para afagá-lo e ele começou a ronronar, fazia isso tão alto que até o cavalo se assustou com os
barulhos. Ewren também afagou o tigre.
― Será que eu consigo montar nele? ― perguntei rindo.
― Acho que até o cavalo consegue montar nele! ― Ewren ainda olhava desconfiado para o tigre,
eu tentei me segurar nas costas dele e ele não parecia incomodado. Então me ajeitei e fiquei sentada
em suas costas, pouco depois ele espirrou e se esticou, me derrubando no chão. Feroz voltou a ficar
do tamanho de um filhote após eu descer de cima dele e continuamos a andar.
― Por que você pegou aquele duende? ― perguntei.
― Eles são muito espertos quando o assunto é roubar, se eles chegassem perto o suficiente, te
roubariam sem você perceber e aí não poderia me pagar! ― explicou ele olhando Feroz dormir em
meus braços.
Andamos sem parar até a paisagem mudar totalmente, quando começou a esquentar demais,
paramos para comer.
― É verão por aqui? ― Perguntei enrolando as mangas da blusa e dobrando as pernas da calça.
― Sim, mas daqui a alguns dias será dia de Áries ficar só no céu, temos que estar preparados, na
próxima cidade teremos que comprar um abrigo de inverno para o cavalo e uma barraca de couro de
Yeti.
― Por que não ficamos na cidade até o dia de Áries passar?
― Por que quando tudo congelar, a passagem entre as montanhas Eternas irá congelar e fechar, e a
geleira que se forma é tão espessa que demora duas semanas para derreter e reabrir a passagem, fora
que a próxima cidade é chamada Vila das Cinzas, uma vila que era refúgio de salamandras, ou seja,
estará tão quente que não dá para ficar mais de algumas horas. ― ele estava parado olhando o
céu. ― Se partirmos agora, chegaremos lá ao anoitecer, é a melhor hora, pois não estará tão quente!
― ele terminou de comer e levantou-se. Começamos a arrumar as coisas e andamos por um vale
coberto de uma vegetação acinzentada e pequenos lagos escuros. Quando a escuridão começou a
aparecer, alcançamos um muro longo e avermelhado e seguimos até avistar um enorme portão de
ferro.
― Por que todas as cidades aqui são fechadas?
― Por causa da quantidade de criaturas que tentam invadir. Lobisomens, duendes e vampiros são
os mais frequentes, vê em cima dos muros? ― Os muros eram muito altos e de fora a fora havia
soldados armados com arcos de vigia. Depois de sermos reconhecidos como “não perigosos” por um
guarda, os portões foram abertos e pudemos entrar. A cidade era pequena e muito quente, Feroz
parecia incomodado com o calor. Andamos pelas ruas repletas de pedras achatadas e quentes no
chão até encontrar uma hospedaria pequena no final de uma ruela. Quando chegamos à recepção, pedi
dois quartos separados, mas Ewren mandou pedir só um.
― Essa vila é muito careira, o preço dos quartos aqui é alto, sem falar que eles mandam gnomos
atrás do dinheiro nos quartos à noite para roubar e ter que obrigar os hóspedes a trabalhar. ― ele
sussurrou para mim. Subimos até o quarto, era como a hospedaria de Alamourtin só que, óbvio, muito
mais quente. Peguei Feroz e fui para o banheiro, abri a água no frio e coloquei-o dentro da banheira,
ele não se incomodou, pareceu até gostar da água. Depois o sequei, esvaziei e limpei a banheira e
fiquei dentro da água fria também, detestava aquele calor todo. Enquanto Ewren estava no quarto, eu
peguei umas moedas e saí para ver se achava uma loja que vendesse roupas mais leves. Não muito
distante da hospedaria, encontrei o que estava procurando. Comprei algumas peças de roupa, outra
loja bem próxima vendia alguns tipos de doce que se pareciam muito com sorvete. Comprei um de
curiosidade. O gosto era horrível, parecia que alguém tinha feito aquele sorvete de fígado cozido,
mas Feroz ficou muito satisfeito com aquele troço horroroso.
Voltei para a hospedagem, Ewren estava deitado sem camisa na cama mais próxima à porta.
― Vai querer descer para jantar? ― ele perguntou olhando para a bolsa que estava na minha
mão.
― Será que eles não trazem comida no quarto? ― perguntei.
― Acho que sim, mas você vai ter que descer lá, escolher e pedir algo! ― eu desci e fui até a
recepção, pedi porções de salada, carne e batatas (era a única comida humana que eles serviam) e
voltei para o quarto para esperar a comida, Ewren estava brincando com Feroz e oferecendo a ele
uma das barrinhas de cereais da minha mochila.
― Acho que não deve demorar. ― Como na outra hospedaria, havia um mapa numa escrivaninha.
O abri e comecei a olhar ― Estamos aqui? ― perguntei apontando um pequeno desenho de um muro
no mapa.
― É ― disse ele sem olhar para o mapa.
― Como sabe se nem está olhando? ― ele olhou rapidamente e sacudiu a cabeça. ― Você não
vai tomar banho? ― eu perguntei, notando que seu cabelo estava sujo e com pequenos pedacinhos de
galhos.
― Não.
― Por quê?
― Não quero ficar atraente demais para você, pode ser que resolva pular em cima de mim
enquanto durmo! ― Eu olhei para ele e tive uma súbita vontade de lhe dar um soco na cara, porém
isso com certeza machucaria minha mão, então entrei no banheiro, enchi a banheira com água e voltei
para o quarto. Peguei Ewren pelos cabelos e o arrastei até a banheira.
― Ou você entra ou você vai voltar para cama e eu vou jogar água em você! ― eu usei meu tom
de zangada de quando mandava meu irmão tomar banho e ele não queria ir.
― Está fazendo isso para tentar me ver sem roupa? ― Ele perguntou com um sorriso e começou
a abrir a calça. Eu me virei, saí do banheiro e bati a porta. Meu rosto corou e meu coração quase saiu
pela boca, ele era definitivamente louco. Feroz veio até minhas pernas e começou a roçar pedindo
por carinho. O jantar chegou, eu dei a parte de Feroz e comi a minha. Alguns minutos depois eu ouvi
um ruído estranho no banheiro, mas não tinha coragem de ir ver. Feroz sacudiu as orelhas, pegou uma
peça de roupa na bolsa de Ewren e levou para a porta do banheiro, Ewren esticou a mão, pegou e
saiu vestindo a calça que Feroz levou.
― E essa agora? ― eu perguntei olhando para o tigre deitado em cima da minha cama.
― Elfo, posso me comunicar com animais e plantas. ― ele olhou aborrecido para mim e sentou
para comer.
― Você não gosta de água, não é? ― ele ficou mais irritado ainda, terminou de comer e dormiu.
Eu deitei e apaguei a luz da cabeceira. Feroz deitou quase em cima de mim. A noite foi muito quente
e desconfortável, eu mal conseguia dormir com medo de Ewren e dos tais gnomos ladrões. Então
fiquei deitada de lado, mexendo no meu celular e olhando as mensagens antigas que havia enviado
para minha mãe e para Lucy. Sentia muita falta de casa e nem percebi a hora em que dormi.
3

Companheiros de viagem
Acordei antes das quatro da manhã soando muito. Fiquei dentro da banheira cheia d’água e quase
cochilei ali, pois foi a única hora que ficou fresquinho. Pra um lugar parecido com meu mundo,
faltavam ventiladores ou um ar condicionado. Eu queria colocar gelo na banheira, mas me contentei
com a água fria. Coloquei um dos vestidos leves e fui chamar Ewren, eu queria sair desse lugar antes
dos sóis aparecerem e transformarem o lugar num micro-ondas. Andei até a cama onde ele estava
deitado de bruços. Eu sacudi o ombro dele, mas ele não se mexeu.
― Ewren? ― chamei puxando seu braço, ele se virou, agarrou meu pulso e me puxou para cima
dele, caí sem jeito por cima de seu peito e ele deslizou a mão pelas minhas costas.
― Eu disse que você ia querer me pegar enquanto eu dormia. ― eu tentei me soltar, mas ele
estava apertando meu braço. Ele passou o braço livre em volta de minha cintura, mas eu levantei a
minha mão e dei uma tapa tão forte no rosto dele que até Feroz pulou assustado e derrubou o abajur
do criado mudo. Ele abriu os olhos e me soltou.
― Você ficou maluca? ― ele perguntou esfregando o rosto, estava ficando vermelho e dava para
ver as marcas dos dedos.
― Foi merecido, seu tarado! ― eu me afastei e peguei Feroz que ainda estava com os pelos em
pé. Ewren se levantou bufando e foi para o banheiro, arrumou as coisas e começamos a sair. Antes de
sairmos da cidade que nem tinha sol e já parecia um forno, passei no boticário para comprar mais pó
de cobrir ferimentos e mais mantimentos. Dessa vez eu comprei a comida, pois não queria comer
carne todos os dias. Quando chegamos ao estábulo para pegar o cavalo, ouvimos uma briga de um
casal.
― Você acha que sozinhos não vamos chegar lá? ― A voz masculina parecia indignada.
― Precisamos de alguém para nos levar até lá, com o seu nível de estupidez, morreríamos no
meio do caminho! ― Ewren olhou para mim querendo rir.
― Eles estão piores do que nós, um casal de abissais! ― eu o olhei sem entender ― Sereianos!
Devem estar fritando aqui! ― eu olhei de lado, eles olharam para mim e depois para Ewren e
vieram em nossa direção.
― Hum... Com licença! ― disse a mulher, sua pele tinha um belo tom de azul com uma tatuagem
safira que ia do rosto ao ombro e olhos quase brancos, o homem era quase igual a ela só que com
cabelos longos e trançados. ― Você é um mercenário, certo? ― Perguntou ela a Ewren.
― Por? ― Ewren parecia irritado quando a mulher dirigiu-se a ele como mercenário.
― Vocês estão viajando? Poderiam nos mostrar o caminho até o mar das conchas? ― Ewren
olhou para ela, depois para o homem que estava com ela e riu.
― Sereianos não seguem o mar pelo cheiro? ― ela parecia envergonhada.
― Sim, mas meu namorado ― ela disse as palavras com deboche ― não sabe usar os sentidos
dele, eu tampouco. ― Ewren olhou para eles e ficou pensando por alguns segundos.
― Quanto vocês me pagam até lá? ― ele olhou para os dois que ficaram em silêncio nos
olhando. O sereiano puxou um saquinho de trás da calça.
― Só temos oitenta moedas, são três dias de viajem, certo?
― Tudo bem, podem vir conosco. Mas não me atrapalhem! ― Ewren pegou uma terceira bolsa
que estava perto do cavalo e colocou em cima dele. Pelas peças de metal, acreditei que fosse a
barraca e a proteção para o cavalo. Antes de sairmos da cidade, voltei correndo até a loja ao lado do
boticário e comprei um arco, uma aljava de flechas e uma adaga pequena, poderia ser útil.
Quando partimos, Ewren ainda estava de cara feia, seu rosto ainda tinha pequenas marcas brancas
dos meus dedos e ele ia andando na frente com o abissal masculino. A mulher veio para perto de
mim.
― Como é seu nome? ― ela perguntou olhando para mim com aqueles olhos estranhos e brancos.
― Leona, e o seu?
― Amijad e ele ― disse ela apontando seu namorado ― éLirien, mas pode me chamar de Ami,
meu nome é complicado. ― Lirien ia falando algo com Ewren e olhando de vez em quando para
trás.
― Vocês brigam sempre?
― Nem sempre, mas o calor nos irrita muito. ― ela parecia mais tranquila, seus cabelos tinham
a cor verde oliva e tinha marcas por todo corpo como pequenas tatuagens que agora estavam quase
da cor de sua pele, só que mais claras.
― Vocês moram nesse mar das conchas, certo? ― ela coçou a cabeça e deu um sorriso sem
graça.
― O mar das conchas é bem calmo, ao contrário do mar das tormentas onde habitam sereias
canibais. Lá fica a cidade principal dos Sereianos, a cidade de água doce. ― Ela evitou minha
pergunta, mas continuou contando sobre as cidades marinhas. Estávamos conversando muito
entretidas até que ouvimos um grito fino apavorado vindo da nossa frente, olhamos e corremos
desesperadas até onde estava Lirien caído no chão, quando chegamos mais perto, notamos que Feroz
estava mordendo sua barriga, quase arrancando um pedaço e Ewren não conseguia parar de rir.
― Qual é a graça?! ― disse Ami tentando soltar a barriga de Lirien da boca de Feroz.
― Ele queria mostrar que estava em forma levantando a blusa, acho que Feroz achou que ele
parecia com comida! ― Eu também tive que me segurar para não rir, se Feroz ficasse em seu
tamanho real, provavelmente o trataria como comida. Eu o peguei e dei um tapa em seu focinho.
― Feroz feio! Ele não é comida!
― Isso! Parece comida, tem cheiro de comida, mas não é para comer! ― Ewren disse soltando
outra gargalhada. Eu tive que morder a língua com força para não rir e fui pegar um pouco do pó para
ferimentos. Até a hora do almoço eu tive que andar ao lado de Ewren para não rir da mordida rosada
na barriga azul de Lirien e Feroz ficou no meu ombro olhando para trás e sacudindo sua calda como
se estivesse pronto para dar o bote.
― Ewren? ― chamei, ele estava rindo do ferimento de Lirien e achei que seu humor poderia
estar melhor.
― Que foi?
― Desculpe pelo tapa, acho que foi exagerado... ― só queria evitar o mau humor dele.
― Tudo bem, empatamos!
― Empatamos? ― perguntei confusa ― com o que?
― O rasgão do vampiro em suas costas. ― Eu havia esquecido, realmente, se ele não tivesse
dito que iria me vender, eu não teria me machucado. Continuamos em silêncio até a hora de parar
para almoçar. Feroz levou a sério a possibilidade de Lirien ser o seu almoço, enquanto eu tentava
pescar com o arco do jeito que Nena havia feito, Feroz mordeu a perna de Lirien e não soltava de
jeito nenhum, foi um alvoroço. Eu tive que pescar uns quatro peixes enormes para ele ficar cheio e
parar de atacar Lirien. Ewren tirou um cochilo perto de um arbusto, já que não havia mais árvores
nessa região.
― Vamos ficar um dia inteiro andando no deserto, então devemos sair logo para que consigamos
percorrer a maior parte do caminho do deserto a noite. ― Fiquei para trás carregando Feroz para
que ele não se aproximasse de Lirien de novo e fui conversando com Ami.
― ...É assim que nós fazemos viagens em meu mundo. ― ela olhou para mim, depois para Ewren
e de novo para mim.
― Como são os relacionamentos no seu mundo? ― ela parecia muito curiosa.
― Bom, acho que quando conhecemos alguém que gostamos, tentamos ver se a pessoa também
gosta de nós, se sim, nós começamos a namorar.
― Com que idade?
― Depende, meus pais começaram a namorar bem jovens e estão juntos até hoje.
― E você? Tem namorado?
― Não... Já tive um na oitava série, mas foi por brincadeira. ― menti.
― Eu e Lirien estamos juntos há pouco mais de cem anos, mas ainda não nos casamos.
― Cem anos? Que idade você tem?
― Hum... Algo entre seiscentos e trinta e seiscentos e quarenta. Não me lembro bem. E você?
― Dezessete ― todos nesse mundo eram alguns séculos mais velhos que eu. Ela estava sorrindo
e seus dentes eram pontudos como agulhas entrelaçadas.
― As humanas daqui, com sua idade já são mães. Na verdade, existem poucos humanos por aqui,
sem falar que nós quase não envelhecemos.
― Como assim?
― Aqui você para de envelhecer quando alcança a maturidade e a cada década você envelhece
muito pouco em sua aparência. Pelo menos os humanos daqui são assim, outras raças quase não
aparentam envelhecimento.
― Hum, então será que a Nellena tinha que idade? Nem cheguei a perguntar.
― Nellena? Nellena Muriel?
― Não sei, não perguntei seu nome completo.
― Uma caçadora com uma cicatriz em um olho?
― Essa mesma! ― ela ficou me olhando boquiaberta.
― Nellena Muriel é a maior caçadora de lobisomens daqui! Ela é incrível! Tem uns dois mil
anos! É casada com um elfo da floresta de Górtia!
― Hum, achei que ela fosse casada com um humano.
― É muito difícil humanas se casarem com homens humanos, quase não tem homens humanos
aqui, apenas poucos meninos humanos que ainda não são adultos.
― Por quê? ― eu estava curiosa, Feroz tentava se soltar para atacar Lirien de novo, mas eu o
ignorei para escutar a história de Ami.
― Pouco tempo atrás, os humanos viviam do outro lado do mar das tormentas, mas essa zona era
muito perigosa. Então um elfo chamado Laurin mandou que fosse erguida uma cidade em cima do
Monte Azul para trazer os humanos para este lado do mar, alguns meses depois, quando a cidade
ficou pronta, cinquenta navios partiram do cais da cidade de Avalon. No segundo dia de viagem,
quando estavam no meio do mar, uma das mulheres notou que seu marido estava meio...
aéreo. ― disse ela tentando explicar de um modo fácil ― E depois de alguns minutos, ele se atirou
no mar. Minutos depois todos os homens estavam pulando dos navios, algumas esposas pularam atrás
para resgatá-los, mas as águas em volta dos barcos estavam vermelhas de sangue. As sereias
devoraram os homens e as poucas mulheres que se jogaram atrás deles. ― quando ela terminou de
contar, eu me afastei um pouco e ela riu. ― Não precisa se preocupar, eu não como humanos quando
estou em terra.
― Quando está em terra... ― essa frase foi bem mais assustadora que “vou te vender aos
vampiros”.
― Hum, entendo... ― ela me olhou, esperando ver se eu tinha realmente entendido. Eu preferia
perguntar o porquê para Ewren depois. Lirien veio ficar perto dela e eu fui para perto de Ewren,
cheguei tão perto que ele começou a me encarar divertido.
― Eu disse, quase tudo nesse mundo se alimenta de humanos ― eu o encarei.
― Elfos também?
― Os elfos brancos não, mas um elfo negro, com muita fome e na ausência de outro alimento,
talvez. ― eu sentia mais falta de casa agora do que antes. Ele viu minha expressão de medo e
sacudiu a cabeça.
― Você é bem influenciável, não é?! ― ele riu.
― Seu mundo, suas regras! Como vou saber quando está tentando me assustar? ― estava
envergonhada por cair de novo.
― Você não é uma pessoa muito inteligente!
― Obrigada. ― Eu respirei fundo e olhei para trás, vi Lirien e Amijad cochichando. ― Ewren, o
que ela quis dizer com “não como humanos quando estou em terra”?
― Na água, sereias ficam muito maiores, suas bocas cheias de presas aumentam e elas ficam com
a mente maligna e mortas de fome. Na terra eles ficam com aparência humana e força limitada e não
podem esmagar as presas com suas caudas. Aí são obrigadas a não moer humanos, pois não
conseguem matá-los com facilidade para se alimentar.
― Entendi... ― Esse pessoal são sabia o que eram vacas? Frangos? Por que tudo tinha que
acabar em “comer os humanos”?
Estava ficando muito escuro e não havíamos alcançado o deserto, mas dava para ver as dunas de
onde estávamos.
O rio estava ficando estreito, então teríamos que parar aqui para acampar e dormir. Foi difícil
achar lenha, depois que Ewren acendeu a fogueira, eu fui junto com ele levando Feroz para pegar
água. Ewren foi para a fogueira na minha frente e eu fiquei para me lavar no rio, Feroz cresceu
imediatamente quando Ewren se afastou. Eu fiquei congelada no lugar esperando o perigo, pois notei
que ele mudou de forma para me proteger. Quando voltei para fogueira, Lirien viu Feroz grande, deu
um gritinho estranho e desmaiou, Ami revirou os olhos e jogou areia no rosto dele para acordá-lo. Eu
tive que fazer o jantar, pois comprei coisas diferentes. Fiz uma sopa de frango com legumes para
comer com pão. Ewren não ficou muito satisfeito e foi pescar, voltou com uns peixes pequenos e os
assou. Lirien e Ami comeram algo frio e gelatinoso que estava na bolsa deles. Provavelmente eu não
iria conseguir dormir com medo dos sereianos e eles não dormiriam com medo de Feroz, quando fui
deitar na minha manta, Feroz enroscou-se em volta de mim e acabei dormindo apoiada nele. Com ele
como guarda, nenhum dos dois iriam se atrever a me fazer de lanche da madrugada. Ewren
provavelmente não iria dormir e ficaria vigiando a noite toda.
Acordei cedo por causa do calor e vi que Ewren estava fazendo aquele chá horrível.
― Vamos pegar o deserto na pior hora do dia, mas não podemos esperar! ― enquanto os
sereianos acordavam, fui encher todas as garrafas e cantis disponíveis com água. Quando voltei,
peguei o arco para testar e atirei uma flecha que quase acertou a cabeça de Ami. Eles deviam pensar
que eu queria os matar. Entrei no rio e antes de sair, molhei bem meus cabelos e amarrei-os bem
apertados num coque, coloquei o conjunto preto que tinha comprado para usar no deserto e as botas
de amarrar. Enrolei o lenço na cabeça e envolta do pescoço para que pudesse cobrir o rosto assim
que precisasse, preguei uma tira do vestido de linho que o vampiro havia rasgado e separei para
tampar o focinho de Feroz, Ewren já tinha providenciado proteção para ele e para o cavalo, só Lirien
e Ami pareciam não se preocupar.
― Ewren, se eles estavam sofrendo com o calor na cidade, o que vai acontecer com eles no meio
do deserto? ― Ewren olhou para mim com um sorriso maldoso.
― Digamos que não vamos precisar de comida para Feroz! ― eu olhei para ele espantada. Era
exatamente o que eu imaginava, eles iriam cozinhar no deserto e Feroz ia comer peixe no almoço.
Não gostava muito deles, mas não queria que eles virassem comida, a não ser que Feroz estivesse
passando muita fome... Eu gostava mais dele. Entramos no deserto antes do sol nascer, eu havia
esvaziado minha mochila e coloquei Feroz dentro dela com a cabecinha para fora, coloquei a
mochila para frente para ficar mais fácil de poder carregá-lo no deserto, e se ele ficasse com sede,
era mais fácil dar água a um gatinho do que a um tigre. Quando os sóis finalmente nasceram, os dois
abissais já estavam com a pele tão seca que eu podia ver as rachaduras. Eu imaginei que eles fossem
sentir calor, mas não a ponto de morrerem de verdade. Quando foi se aproximando do meio dia eles
quase não tinham força para caminhar, não tinha nenhuma sombra para parar a quilômetros em
qualquer direção que eu olhava, mas eu não me sentia tão quente, devia ser a roupa especial. Estava
ficando com fome e com sede. Ewren parou perto de um tipo de planta alta parecida com um cacto e
a cortou com uma adaga, no lugar onde ele cortou, começou a jorrar água limpa e cristalina. O cavalo
bebeu bastante, depois Lirien e Ami se enfiaram em baixo e quase dava para ouvir suas peles
chiando. De dentro de uma das bolsas, Ewren puxou duas melancias enormes. Eu fiquei tentada a
olhar a bolsa para ver se ela tinha fundo mágico. Ele as cortou, dividiu para nós e deu uns pedaços
de carne assada que estava guardando para Feroz. As melancias estavam bem fresquinhas e com tanto
suco que caíram como uma luva para o almoço. Depois de quase vinte minutos em baixo da água, ela
parou de espirrar até ficar numa fina linha d’água, eles beberam e eu enchi um copo para beber
também, a água era meio adocicada e dava uma leve ardência na garganta, mas refrescava e isso já
bastava.
Continuamos a andar, Ewren não parecia incomodado com o calor, quando cheguei perto dele e
toquei em seu braço, notei que ele estava frio.
― Você está bem? ― perguntei me assustando com a temperatura de seu corpo.
― Eu me adapto para sobreviver, se precisar, posso elevar minha temperatura ou abaixar. ―
fiquei tentada a perguntar o que aconteceria se eu o enterrasse na areia, mas ele parecia um pouco
mais assustador do que de costume, então segurei minha pergunta para depois, quando senti a falta de
algo, olhei para trás procurando os sereianos, Ami estava tentando levantar Lirien que estava se
debatendo no chão, eu corri para ajudar achando que ele estava tendo uma convulsão ou morrendo
com o calor, quando cheguei perto, ele estava transformado em um tritão, com a cara e a boca cheias
de areia.
― Venham! Aproveitem também! A água está ótima ― ele gritava com a voz arrastada, devia
estar com a garganta cheia de areia e seus olhos pareciam duas bolsas de areia. Feroz queria sair da
mochila a qualquer custo, Lirien parecia um peixe empanado na frigideira e Ewren não parava de rir.
O cumulo foi quando ele puxou Ami para o chão, deu um pulo como se fosse mergulhar e encheu a
boca com mais areia. Ewren explodiu em gargalhadas e Ami o olhou feio.
― Ewren, aquela planta era alucinógena?
― Claro que não, ele viu uma miragem e com certeza está com febre por causa do calor!
Nós o arrastamos por quase quatrocentos metros até onde tinha outro cacto para lavá-lo. Aos
poucos ele foi recobrando a consciência e quando se tocou que estava com os olhos cheios de areia,
entrou em desespero. Ficamos muito tempo parados para limpar Lirien, eu sentia pena, mas era tão
engraçado!
Quando acabamos de limpá-lo e bebemos mais água, voltamos a andar.
― Desse jeito vamos chegar ao fim do deserto só amanhã depois do meio dia, andem mais
rápido! ― Ewren estava ficando irritado, Lirien era bem... Bom, era burro mesmo! Não tinha como
descrever com outras palavras, podia ver a tristeza nos olhos deles dois naquele calor. Ao anoitecer
a temperatura começou a baixar rapidamente, ficou muito frio e coloquei o poncho por cima da
roupa. Caminhávamos muito mais durante a noite, era melhor do que sob dois sóis.
Meu estômago começou a fazer barulhos tão altos que podiam ser ouvidos a quilômetros (sei, é
exagero, só estava fazendo muito barulho). Procuramos parar perto de dois enormes cactos, Lirien e
Ami estavam tão cansados que entraram em um saco de dormir e cobriram os rostos com um tecido
muito fino que não entrava areia. Ewren rapidamente armou a tenda de couro, ela era grande e larga,
tinha espaço para colocar duas camas de casal. Eu entrei e comecei a arrumar as camas, Ewren
alimentou o cavalo, cobriu o rosto dele com uma espécie de máscara de pano assustadora que
parecia um cavalo fantasma e tampou-o com uma espécie de colcha grossa. Ele tirou um pequeno
fogareiro de uma caixa, o acendeu com as cascas soltas do cacto e fez um creme estranho e
apimentando para comermos com pão. Aquilo encheu meu estômago, Feroz enrolou-se no final da
minha cama e dormiu. Eu deitei embaixo das cobertas e fiquei olhando para Ewren, ele estava
deitado com os braços atrás da cabeça olhando para cima e eu comecei a rir.
― Qual é a graça? ― ele perguntou virando para mim e me encarando com aqueles olhos
estranhos.
― Não me sai da cabeça a imagem de Lirien se jogando na areia. ― Ewren riu também. ― Ele é
um idiota! Não sei por que Ami está com ele ― eu resmunguei e Ewren olhou para mim.
― Quando você ama uma pessoa de verdade, você ama até seus defeitos e aprende a conviver
com eles como se eles fossem qualidades, por isso não importa, às vezes para ela, se ela o ama de
verdade, a falta de perspicácia dele pode ser atraente para ela.
― Entendo. ― fiquei envergonhada ― E você não tem namorada? ― perguntei olhando para
Feroz que agora esfregava a cabeça nos meus pés.
― Eu já fui casado, alguns séculos atrás.
― E por que não está mais com ela? Ela não gostou dos seus defeitos? ― quando eu falei isso,
ele se virou totalmente na minha direção.
― Ela foi assassinada... ― meu estômago afundou. ― Estávamos em nossa casa quando um
idiota veio brigar com ela por um lobo de estimação que ela tinha, o lobo havia rasgado uma colcha
que estava no seu quintal ― Ewren estava com um olhar sem foco, como se estivesse distante
dali ― O homem enfurecido por ela não se responsabilizar pela colcha, deu-lhe uma tapa no rosto
que a derrubou no chão, fiquei furioso! Transformei-me na mesma hora, peguei o homem pela
garganta e o atirei longe. Ela nunca tinha me visto naquela forma antes ― quando ele me disse,
lembrei-me dele com a pele cinza, os olhos prateados, o cabelo branco e as asas negras. ― Ela se
assustou, ficou nervosa e se afastou, eu não a segui, queria a deixar esfriar a cabeça. Eu não devia tê-
la assustado, podia ter quebrado o pescoço dele sem me transformar. ― ele fez uma pausa e cobriu
os olhos. ― Quando vi que ela estava demorando a voltar, segui sua trilha pela floresta perto de
Dascar, quando escutei ela gritar, soube que era tarde demais. Corri na direção do som, um grupo de
uns oito lobisomens estava com ela, só cheguei a tempo de ver os olhos assustados dela e depois o
lobisomem que estava com ela nos braços arrancou sua cabeça ― eu fiquei ali parada escutando ele
falar dela com tamanha frieza, meu coração parecia que tinha parado de bater, mas ele não parou de
falar ― Comecei a atacá-los, mas eles eram muitos. Quase morri também, se não fosse a Nellena
chegar e matá-los com um revolver de balas de prata... Só um fugiu, o que a decapitou. Até hoje não
sei o que eles faziam tão perto de uma vila de caçadores. Ela foi a presa que saiu sozinha de casa por
minha culpa. ― Ele respirou fundo e bufou ― Por isso estou te levando até a Torre das Nuvens, pois
tinha uma dívida com a caçadora de lobisomens e por ela ser uma velha amiga de minha família.
― Eu sinto muito ― e de novo abri minha boca para falar besteira, provavelmente eu o magoei.
― Tudo bem, foi há muito tempo, e eu já me acostumei com a sua falta de modos! ― ele olhou
para mim e sorriu. Foi o primeiro sorriso sincero que eu o vi dar, não podia acreditar que ele
conseguia sorrir assim, ainda mais depois do que me contou, porém fiquei encantada com aquele
sorriso.
― Como era o nome dela?
― Emma. ― ele ficou pensando por um tempo. Depois de muito tempo de silêncio, quando eu
estava quase dormindo, ele falou de novo.
― E você? Não tem ninguém? ― eu fiquei corada com a pergunta, achei que fosse óbvio.
― Nunca gostei de ninguém por lá, também não estava muito interessada em arrumar um
namorado, meu foco era outro. Então, só estava pensando em estudar e morar sozinha por um tempo
para decidir o que ia fazer da minha vida...
― Ninguém nasce para viver sozinho. ― ele estava com os olhos fechados.
― Talvez... ― eu estava quase adormecendo e não me lembro do que ele falou depois disso.

Acordei no meio da noite suando, Feroz não estava mais na cama e a barraca estava aberta.
Ewren estava dormindo. Saí para ver se Feroz estava por perto da barraca, quando me deparei com
uma cena horrível, Lirien e Ami estavam aos pedaços pelo chão, havia poças de sangue para todos os
lados, do cavalo só restavam ossos e Feroz estava encolhido perto do cacto. Corri para ele e o
peguei nos braços, ele estava tremendo. Quando olhei para o lado, vi uma enorme sombra de um
lobisomem, ele estava vindo em minha direção, eu tentei chamar Ewren, eu gritava mais e mais e
cada vez o som ficava mais baixo e a barraca mais longe, eu estava sendo arrastada para o meio do
deserto...
Acordei desesperada, meu cabelo estava úmido de suor e meus olhos cheios de lágrimas, Feroz
se remexeu inquieto aos meus pés. Eu estava soluçando. Ewren levantou apenas a cabeça da cama.
― Que foi?
― Pesadelo. ― peguei a garrafa de água da minha bolsa e tomei toda de uma vez, respirei fundo
e tomei toda a água da outra garrafa também. ― Está muito quente. Ainda nem amanheceu, certo? ―
ele olhou para fora.
― Ainda está escuro, mas deve ser quase cinco na manhã. ― Eu me estiquei, minha vontade era
deitar e dormir mais, porém sabia que não podia ficar aqui muito mais tempo. Quando saímos da
barraca, o cenário era interessante. Onde deveriam estar Lirien e Ami, haviam dois montinhos de
areia, como covas recém-tapadas, ao chegarmos mais perto, vimos um pedaço do tecido do saco de
dormir. Eu os sacudi até a areia sair e eles levantaram atordoados sem perceber o que tinha
acontecido. Ajudei Ewren a arrumar a barraca e colocá-la de volta na bolsa. Tivemos que tomar um
café às pressas para poder sair antes que o sol subisse demais no céu.
― Se nós andarmos bem rápido, poderemos chegar ao Mar das conchas antes do fim da tarde. ―
Ewren saiu andando e arrastando Lirien que parecia ainda estar dormindo. A caminhada se tornou
muito mais cansativa quando chegamos a uma parte do deserto onde havia muitas dunas. Por mais de
duas vezes vi cobras passeando perto de nós. Feroz estava adormecido dentro da mochila e antes do
meio-dia, minha garganta estava ardendo e minha pele estava seca, só não mais seca que a pele de
Ami, que novamente parecia estar rachando. Ewren parou no alto de uma duna e apontou para um
ponto à frente, eu só vi um borrão, estava ficando tonta.
― Uma miragem? ― Ami perguntou.
― Não, eu sinto o cheiro da água. ― Ewren andou mais rápido, o cavalo também parecia
eufórico ao notar um pequeno oásis no meio daquele deserto. Quando chegamos perto, eu fiquei
muito feliz por não desaparecer. Havia um lago de água cristalina, grama e algumas palmeiras e
coqueiros. Enchemos as garrafas, bebi água até meu estômago esticar e doer. Feroz e o cavalo
também se encheram de água. Ewren achou uns pedaços de cascas e folhas das palmeiras e coqueiros
e acendeu um pequeno fogo, tirou a carne congelada toda da bolsa e assou. Eu tirei alguns cocos e
Ewren os abriu. Senti-me numa praia nas férias. Depois que acabei de comer e verifiquei que todas
as garrafas estavam bem cheias, eu entrei na água. Minha pele formigou em contato com água tão fria,
mas foi a melhor sensação que eu tive. Ewren e Ami também entraram na água. Lirien estava
desmaiado na sombra das palmeiras depois de comer até passar mal. Ficamos quase uma hora dentro
da água, depois que saímos, Lirien se lavou por alguns instantes e arrumamos as coisas para seguir
viagem, eu queria poder arrastar esse oásis atrás de mim. Dei uma última molhada no rosto, Feroz
bebeu mais um pouco de água e partimos novamente. Antes de perdermos o oásis de vista atrás das
imensas dunas, um grupo de seis pessoas se aproximou de nós. Ewren puxou a espada e ficou alerta.
Ami e Lirien mudaram a cor dos seus corpos para um tom acinzentado e ficaram com os olhos
vermelhos, os dois estavam com pequenas espadas curtas em ambas as mãos antes que eu pudesse
perceber, mesmo sem saber usá-lo ainda, peguei o arco e fiquei esperando, Feroz saiu de dentro da
mochila e ficou do tamanho grande com suas enormes presas de fora. O grupo se aproximou e ouvi
Ami cochichar para Lirien.
― Dois silfos, dois humanos, um aswang e um duende. ― eu fiquei olhando, mas para mim eles
ainda estavam distantes demais para distinguir. Quando chegaram perto, notei que as humanas eram
mulheres e que havia uma criatura de pele cor de oliva, olhos cor de barro e dentes pontiagudos. Os
outros dois eram elfos negros como Ewren, um tinha o cabelo curto cor de caramelo e cicatrizes pelo
rosto, o outro parecia velho, mas quando chegou mais perto, notei que eram queimaduras. O duende
estava em um cavalo e todo coberto por uma manta. O elfo de cabelo curto nos viu e soltou uma
risada zombeteira.
― Um elfo, dois sereianos e uma humana! ― ele olhou para nós ― e um saco de pulgas que
daria um lindo tapete.
― O que querem? ― Ewren perguntou sem mudar sua expressão, ele não pareceu preocupado.
― Tudo, o dinheiro, o cavalo, as mercadorias e o gato.
― Não daremos nada! ― Ewren falou e fez como se fosse começar a andar. O grupo desmontou
dos cavalos e começaram a fazer sons de zombaria.
― Sinto muito, mas nós tomaremos... ― Antes que ele terminasse a frase, Ewren estava atrás
dele com a espada em seu pescoço, Ami segurava as duas humanas pelos cabelos e Lirien espetou a
espada embaixo do queixo da mulher de pele oliva, a espada saiu no topo de sua cabeça, Feroz havia
devorado o Duende em questão de segundos e eu estava apontando a flecha na direção do elfo de
face queimada.
― Eu disse... Que não daríamos nada, agora se forem bonzinhos nós os deixaremos
vivos. ― Ewren acenou para mim. ― pegue os cavalos. ― Eu peguei as rédeas e puxei os cavalos
até onde o cavalo de Ewren estava. Eles levaram os prisioneiros para o oásis e deixei os cavalos
beberem água. Ewren empurrou os que restaram para dentro da água e disse.
― Ami, Lirien! ― ele apontou para a água ― uma gratificação pela ajuda. ― Ami e Lirien
sorriram de um modo assustador, o grupo começou a gritar e tentaram atravessar a lagoa a nado. Ami
e Lirien entraram na água e mudaram para forma de sereias. Ewren me pegou no colo, abriu as asas e
voou muito rápido para o alto. Fiquei apertando Feroz no colo com tanta força que ele quase me
mordeu. ― Você não vai querer ver isso!
― Você mandou Ami e Lirien devorarem eles? ― eu perguntei aterrorizada.
― Ou isso, ou na hora que chegássemos no Mar das conchas, eles nos devorariam! Entenda,
Sereianos são muito fortes e muito perigosos se ficarem muito tempo sem se alimentar! ― eu tentei
bloquear a imagem deles devorando os bandidos.
― E a outra criatura que Lirien matou?
― O aswang? Ele tem uma língua enorme e venenosa, se esperasse ele agir, ele poderia perfurar
a nós quatro em um único ataque. ― depois de alguns momentos ele voltou. A água estava limpa e
cristalina como antes, não havia ossos e nem restos.
― Não tente achar nada, Leona, nós não deixamos vestígios! ― disse Ami com um olhar de
satisfação. Montamos os cavalos e dividimos a carga entre os cavalos restantes. Eu me sentia um
pouco enjoada, o olhar de satisfação do casal de sereianos me causava mais arrepios do que Ewren.
A única coisa boa é que não teríamos que seguir viagem a pé no deserto.
Antes dos sóis se porem, chegamos a uma grande cidade costeira.
― Cidade de Castal. ― disse Ewren enquanto passávamos pelos arcos da cidade. A cidade
parecia um aquário gigante, enfeitada e com cores vivas, os prédios e casas pareciam ser construídos
com conchas e caracóis gigantes, enquanto as ruas eram cobertas por areia de vidro colorida, os
postes de luz eram em tubos de corais, tudo na cidade dava a impressão de estar debaixo d’água.
― Bom, aqui deixamos vocês! ― disse Ewren a Lirien e Ami.
― Boa viagem para vocês e obrigada! ― agradeceu Ami. Ela se virou para mim e tirou uma
delicada pulseira de pérolas de um estojo guardado em sua bolsa e me entregou. ― São pérolas do
Mar das Tormentas, muito raras! Uma prova de que nossa amizade será eterna! ― eu agradeci
timidamente.
― Foi o presente mais bonito que eu já recebi! Obrigada ― Fiquei olhando os dois se afastarem
e entrarem no mar. Seguimos para a cidade.
― Vamos passar a noite aqui? ― perguntei olhando as lojas, estava com vontade de comprar
algo, as joias e roupas eram lindas.
― Ficou louca? ― você viu como dois Sereianos devoraram quatro pessoas em menos de três
minutos? Você tem meia hora ou menos para comprar algumas coisas enquanto eu negocio os cavalos
e compro mais mantimentos. ― corri para a loja de joias e comprei um brinco de perola para
combinar com a pulseira, embora as pérolas não fossem da mesma qualidade nem do mesmo formato,
ficou bonito. Depois fui à loja de roupas do outro lado da rua e comprei um vestido branco bordado
com pequenos detalhes em forma de conchas e uma saia longa de seda. Saí apressada procurando
Ewren que estava apenas com seu cavalo, Feroz dormindo em cima dele e as nossas bagagens.
― Vendeu os outros seis? ― eu fiquei com pena do pobre animal levando todo o fardo sozinho
de novo.
― Sim, no dia de Áries só poderemos proteger um. ― saímos da cidade sem nem comer, mas
depois de ver Lirien e Ami se alimentando, eu preferi sair depressa mesmo. ― se andarmos em
nosso passo de novo, chegaremos à Bahia da Areia daqui a quatro dias, daqui a dois dias será dia de
Áries e teremos que ter passado o desfiladeiro do esqueleto.
― Sabe, os nomes deste lugar são muito sugestivos.
― Não fui eu que escolhi, se fosse, teria só numerado! ― eu olhei para ele tentando imaginar se
seria uma solução prática ou pura preguiça, fiquei com a teoria da preguiça e o segui balançando a
cabeça em reprovação.
― Por que não podemos atravessar de barco por aqui e continuar andando do outro lado?
― Só se você for alpinista... A costa de Edro são quilômetros de montanhas perigosas cobertas
de neve, a vilas de vampiros e salamandras ficam concentradas naquela região.
― Mas Nellena disse que lá era o lado perigoso e aqui era o calmo, então, por que tinha vila de
Salamandras e tem um monte de sereias, vampiros e lobisomens por aqui?
― Não tem como controlar cem por cento da população de todas as criaturas. E quanto mais
perto do país de Edro, mais Cidades potencialmente perigosas são achadas. Ao sul de Mantum tem as
cidades, vilarejos humanos e dos Elfos brancos. E realmente, as sereias e os vampiros daqui são
muito menos violentos do que os vampiros de Edro.
― Se esses são calminhos, não quero cruzar com algum violento! ― disse pensando na enorme
cicatriz que ganhei nas costas.
― Realmente não foi comum o ataque do vampiro, eles quase não atacam humanos do lado de cá!
― disse ele se perdendo em pensamentos.
Já havia escurecido completamente quando perdemos o mar de vista, Feroz dormia profundamente
na mochila e o cavalo também parecia cansado. Este lugar ventava e fazia mais frio. Eu não sei como
e nem por que, mas cochilei enquanto caminhava e quase caí, Ewren me segurou e parou o cavalo.
― Acho que nos afastamos o suficiente. Podemos dormir por aqui. ― ele montou rapidamente a
barraca e fui para dentro arrumar as camas. Depois de dar água e comida para o cavalo, Ewren
entrou e fechou a barraca.
― Não faremos nada para comer? ― ele olhou para mim e sorriu, pegou uma bolsa de couro e
dentro dela estava bem quente, haviam dois recipientes enormes cheios de comida. Eu abri para ver
o que era e meus olhos brilharam. Purê de batatas, carne assada, salada, arroz e lentilha.
― Quanto mais perto de Edro, mais fácil achar comida humana boa! ― explicou Ewren rindo da
minha cara de felicidade. Comia tão rápido que entalei uma ou duas vezes.
― Eu não sabia que gostava de comida humana ― eu falei enfiando outra grande quantidade de
comida na boca.
― Emma não sabia fazer comida élfica. Por isso acostumei com comida humana. ― acabei de
comer e bebi muita água. Ewren abriu um pequeno mapa e começou a marcar. ― Estamos
aqui ― disse ele, marcando um pequeno pontinho perto de algumas montanhas. ― Essas são as
Montanhas Eternas e esse o vale do esqueleto, passaremos por ele ao pôr do sol e ao anoitecer
deveremos chegar à planície das Folhas Verdes e acampar lá até o dia de Áries passar. Aqui ― ele
apontou para o final do desfiladeiro ― tem uma cachoeira, vamos acampar do lado dela até o dia de
Áries passar.
― Não dá para sair? ― eu perguntei tentando não pensar no que aconteceria na hora que sentisse
vontade de ir ao banheiro.
― Não. Vai ficar gelado e com tempestade de neve o dia inteiro! ― ele pareceu entender minha
preocupação ― no quite de antídotos tem uns três frascos com rótulo Sinfame, ele serve para manter
você sem fome ou sede por alguns dias, comigo só funciona por dois dias.
― Ou seja, vou ficar sem comer por um dia inteiro? ― Ewren riu.
― Sim! Sinto muito! Essa poção vai tirar a fome, a sede e todas as necessidades biológicas
básicas.
― Entendi! Então não sentiremos sono também? ― perguntei.
― Pois é, por isso tem outra poção aí para poder dormir, mas só se você estiver entediada,
claro! ― vi um brilho de malícia em seus olhos.
― Não vai ter nada para fazer o dia inteiro, o melhor é dormir mesmo! ― disse arrumando meu
travesseiro. Ewren revirou os olhos e sacudiu a cabeça. Ele estava deitado, Feroz estava em sua
cama, mas ele o empurrou com o pé para cima da minha. Fechei os olhos, estava exausta de andar
muito rápido para nos afastar do mar e acabei pegando no sono antes mesmo de terminarmos de
conversar.
Acordei muito cedo de novo, tive pesadelos com os sereianos e perdi meu sono. Ewren ainda
estava dormindo, peguei meu celular e liguei. Tinha uma mensagem da minha mãe “Léo, não fique na
rua até muito tarde, se quiser, pode dormir na casa de Lucy e se puder, traga um saco de laranjas,
pois seu pai gripou, beijos, mamãe te ama!”
Meus olhos se encheram de lágrimas, para ela eram alguns minutos, mas para mim eram dias de
saudade. Meu coração apertou. Ewren acordou e me viu chorando, ele levantou rapidamente e sentou
do meu lado
― Você está bem? Pesadelo de novo? ― ele perguntou e parecia preocupado.
― Apenas saudade de casa, minha mãe me mandou uma mensagem. ― ele relaxou ao meu lado.
― Logo você estará em casa, eu prometo que vou te levar em segurança até o portal! ― eu corei,
ele me abraçou e enquanto estava nos braços dele, eu me senti melhor, aliviada, estava tão quente que
se eu pudesse, dormiria naquele abraço. Mas ele se levantou para arrumar a barraca para partirmos.
Estava estranhamente calmo. Feroz dormiu o tempo todo dentro de minha mochila, o dia estava
muito agradável e fresco, enquanto andávamos, eu admirei o máximo dessa paisagem, era como um
cenário de um filme de magia, o chão estava coberto por um gramado verde macio e com mini flores
roxas, os paredões do desfiladeiro estavam cobertos de musgo, limo e flores que caíam em pêndulos,
eram azuladas ou as vezes cor de rosa. Passamos por este lugar o dia inteiro, paramos apenas para
fazer um lanche rápido, Feroz comeu um pouco de grama e depois voltou a dormir. Os sóis já
baixavam no horizonte, ao avistar uma cachoeira no final do desfiladeiro, eu corri em direção a ela,
peguei os cantis e as garrafas e os enchi, Ewren deixou o cavalo beber água. A cachoeira fazia um
bolsão de água e escorria para uma pequena caverna no paredão do desfiladeiro atrás de nós. Peguei
o xampu e o sabonete dentro da mochila, uma toalha e o vestido cinza grosso. Entrei na água, estava
gelada, mas eu precisava muito de um banho, tirei a roupa dentro da água, lavei-a e embrulhei em
uma sacola. Fiquei na água até minha pele formigar. Depois que saí, me vesti rapidamente. Ewren já
tinha montado duas barracas, a nossa parecia relativamente menor do que nas outras noites e em outra
barraca o cavalo estava deitado dentro com um saco de feno na boca. Ewren entrou na cachoeira
também, eu acendi a fogueira, coloquei o suporte de ferro por cima do fogo e dois caldeirões de água
pendurados nele sobre o fogo. Ewren voltou com o cabelo pingando e sentou-se em um tronco ao
lado da fogueira, eu peguei a toalha e esfreguei seu cabelo.
― Você não sente frio? ― eu perguntei tocando sua pele que estava gelada.
― Eu posso camuflar minha temperatura para igualar à do ambiente, assim não sinto frio nem
calor. ― eu já estava com o vestido cinza de lã e o poncho. Ewren fez uma sopa com muita pimenta,
carne e batatas, colocou nas tigelas que vieram com a comida de ontem e as colocou na bolsa
aquecida.
― Para o nosso café quando o dia de Áries acabar! ― disse ele. Depois encheu uma garrafa
térmica com chá e deixou do lado da bolsa de comida. Coloquei um pouco da sopa quando já estava
ficando morna para Feroz, ele comeu e entrou na barraca.
― É muito folgado, não? ― eu resmunguei, olhando Feroz deitar-se em cima da minha cama.
― Dizem que os bichos se parecem com seus donos... ― Ewren estava colocando os últimos
pedaços de lenha na fogueira e colocou dois enormes pedaços de carne para assar.
― Ainda vai comer mais?
― U-hum... ― resmungou ele olhando a carne. Eu queria perguntar se ele estava bem, mas
resolvi ficar quieta, Ele estava sendo muito agradável para ser verdade. Entrei na barraca e me
deitei, notei que havia algumas camadas a mais de cobertor. Depois de me enrolar bem, Feroz ficou
em seu tamanho gigante e deitou ao meu lado, deixando tudo muito mais quente. Depois de alguns
minutos Ewren entrou para dormir também, fiquei olhando ele se deitar. Parecia cansado e até meio
fraco.
― Você está bem? ― perguntei tentando ser o mais gentil possível.
― Não muito. Quando chegarmos ao Porto da Besta Santa do outro lado do Mar das Tormentas
nós iremos parar e ficar uns dois dias por lá! Tudo bem? Eles têm cristais de energia por toda a
cidade, ficar muito tempo sem um cristal está me fazendo mal.
― Cristais?
― Sim, cristais de energia são espalhados por algumas cidades para que os elfos negros possam
se purificar... ― ele fez uma pausa longa e só recomeçou a falar quando eu forcei para ele continuar.
― Não estou entendendo! ― disse.
― Simples, Leona, existe um bom motivo para Elfos Negros serem chamados assim, elfos negros
já foram elfos comuns que foram corrompidos pelo poder e pela crueldade, nossos corações se
tornaram negros, e a cada maldade cometida por nós, a nossa aparência clara e de luz se tornava
escura como das criaturas malignas. Tornamo-nos destrutivos e perigosos e não podíamos ser
curados para voltar à luz. ― disse ele suspirando ― Assim os elfos brancos da cidade de Górtia
criaram enormes cristais feitos das lágrimas das árvores da vida e criaram a cidade de Crecência
dentro da floresta de marfim, colocaram esses cristais purificadores e isolaram todos os elfos negros
lá até que com o tempo nossos corações foram sendo limpos da maldade, embora nunca mais
possamos a voltar a ser elfos normais. ― ele suspirou e pressionou a mão contra seu peito. ― Os
elfos brancos nos deram a oportunidade de sair da cidade de Crecência e espalharam cristais por
todas as cidades, mas quando passamos muito tempo longe desses cristais, nossos corações
endurecem e a alma volta a escurecer, aí pode ser perigoso por que podemos nos tornar ruins e
agressivos novamente.
― Por isso você está sério assim?
― Não, por isso eu deixei Lirien e Ami devorarem aqueles bandidos na estrada, se eu os tivesse
matado, isso poderia me deixaria pior. ― eu vi nos olhos dele um brilho maligno quando ele ficou
pensando sobre isso por muito tempo, então decidi tirar os pensamentos dele da estrada.
― Ewren, poderia me responder duas coisas?
― Tudo bem.
― Primeiro, se você pode voar, e muito rápido, por que não me levou da cidade de Alamourtin
direto para a Torre das Nuvens?
― Seria a coisa óbvia a se fazer, certo? ― ele perguntou.
― É... ― mas quando eu reparei sua expressão inelegível, fiquei quieta e deixei-o terminar.
― Leona, estamos em um mundo em que todos os monstros do seu mundo são reais. Aqui tem
vampiros, lobisomens, duendes, dragões, goblins, gigantes e por aí vai!
― Gigantes?
― Sim, gigantes também, e para harmonia desse mundo perigoso, existem limites, territórios. Eu
poderia sobrevoá-los se eu fosse um elfo branco com asas, um mago, um silfo ou até o guardião de
alguém, pois eles são quem mantém esse mundo em ordem, são como governantes, eles têm poder
político sobre todas as terras, mas respeitando as raças existentes aqui. Mas como eu não sou um
deles, eu tenho que respeitar o limite das cidades, existe uma regra sobre sobrevoar territórios de
outras raças, sempre que alguém passava voando por cima de um território não pertencente a sua
raça, havia uma briga por violação de terras, então foi criada a lei que alados só podem sobrevoar
territórios pertencentes a sua raça ou territórios neutros, como as cidades centrais, florestas em volta
dessas cidades e territórios que seus líderes permitam o voo.
― Não entendi muito bem... ― realmente eu não tinha entendido.
― Você é bem burrinha, sabia? Se você for alado de uma raça possivelmente hostil você só pode
voar sobre território de outra raça com permissão, ou em locais neutros, cidades híbridas que não
pertencem a nenhuma raça. E eu sou um mercenário, é mais fácil uma vaca voar do que me darem
permissão para voar por essas cidades.
― Ah sim, entendi, mas essas cidades neutras são livres e qualquer um pode entrar e sair
voando, certo?
― Sim.
― Mas, e o mar das Tormentas?
― Território sereiano.
― Mar das conchas? ― tentei.
― Neutro. ― ele estava de cabeça baixa, sabia de cor os territórios e a quem pertenciam.
― Então por que não poderia atravessá-lo voando?
― Por que todas as cidades costeiras do país de Edro são de Sereianos e as montanhas do outro
lado são dominadas por gigantes. E os gigantes se alimentam de tudo e todos que entram nas suas
terras por voo ou a pé! ― depois que ele falou isso, eu fiquei imaginando uma pessoa voando por
cima das montanhas dos gigantes, uma enorme mão vindo em sua direção, o agarrando e jogando
goela abaixo, como sapos se alimentando de moscas. Meu pensamento foi interrompido por uma
unhada de Feroz que estava se esticando atrás de mim. Quando ele bocejou, quase desmaiei com seu
bafo de felino.
― Feroz! Fique pequeno de novo, por favor! ― falei apertando seu focinho. Ele abriu os olhos
grandes e amarelos, espirrou e ficou em tamanho miniatura, depois entrou para debaixo das cobertas.
― Qual era a outra pergunta? ― Ewren perguntou me olhando, eu fiquei desconcertada por
aqueles olhos me encarando.
― Bom... Na verdade, eu esqueci o que ia perguntar ― fiquei corada e deitei a cabeça sobre
meu braço.
― Então eu posso perguntar uma coisa? ― ele continuava me encarando.
― U-hum... ― respondi sem prestar atenção no que ele estava falando.
― Como exatamente uma garota de dezessete anos cai num portal no meio de um lago cheio de
kappas? ― seus olhos estavam cheios de curiosidade.
― Bom, eu estava ajudando uma velhinha a por umas coisas de sua casa para fora, aí achei um
espelho, ela me mandou vender o espelho e quando fui vender, eu li a inscrição da moldura do
espelho e o portal abriu.
― Espera, você abriu o portal? ― perguntou ele gesticulando com as mãos.
― Acho que sim, eu li o que estava no espelho, e antes de ler o espelho, estava normal. Depois
que acabei de ler, o espelho ficou líquido...
― Interessante... ― disse ele pensativo.
― O que é interessante?
― Apenas magos humanos, magos metamorfos e algumas exceções podem abrir portais. ― ele
ficou olhando para mim como se estivesse tentando descobrir algo. Eu peguei o celular na mochila, o
liguei e fingi que estava olhando algo, desativei o flash e tirei uma foto dele deitado, depois desliguei
e joguei no fundo da mochila. Não consegui segurar um sorrisinho.
― Eu estou sentindo falta de comer doces... ― eu estava falando isso para mim e nem percebi
que falei alto, só quando Ewren riu.
― Por que não comprou nenhum na cidade?
― Nem vi que havia uma loja de doces nas cidades! ― resmunguei brava comigo mesma por ter
falado alto.
― Ficam perto da padaria. Ah, falando em doces! ― Ewren se levantou e pegou os frascos de
poção Sinfamee me deu um ― tome de uma vez só, depois de aberto, em dez segundos ele amarga!
― eu abri a tampinha e virei o vidro dentro da boca, parecia que eu havia engolido recheio de
chiclete de menta, minha boca ficou gelada e ardeu. Eu estava ficando sonolenta, deitei novamente
sobre meu braço e fiquei olhando para o teto da barraca, Ewren estava mexendo em um pequeno
caderno com capa de couro.
― O que está fazendo?
― Anotações.
― Sobre o quê? ― perguntei me virando para ficar de frente para ele novamente
― Não é assunto que seja do seu interesse. ― tudo bem, foi um fora! O mesmo que se ele
dissesse “não interessa, enxerida”. Virei para o outro lado, Feroz estava deitado sobre meus cabelos,
ele rolou, resmungou, depois farejou meu rosto, lambeu meu nariz e começou a ronronar. Eu cocei
sua cabeça fazendo-o se esticar em minha direção. Feroz se arrastou por baixo das cobertas e foi
dormir nos meus pés. Eu fiquei me lembrando da escola, da minha casa, dos meus pais, eu sentia
muita falta, mas de algum jeito eu não me sentia triste, depois eu comecei a pensar nas lembranças
que eu estava acumulando desse lugar, quando pensei em Ewren e que quando atravessasse o portal
para casa, nunca mais iria vê-lo, nunca mais iria escutar suas grosserias e olhar para aqueles olhos
azul e prata, meu coração apertou. É estranho saber que existem outros mundos e imaginar que você
pode fazer amigos neles, mas também nunca mais vê-los.
4

A travessia.
Passei a noite inteira tendo sonhos com doces, sonhei que comia torta gelada de abacaxi, depois
sonhei com brigadeiro de panela e acordei sentindo até o gosto do brigadeiro. Eram cinco e meia da
manhã quando acordei, olhei para o lado e vi Ewren ainda dormindo, eu estava com sono, mas não
conseguia dormir, talvez já fosse o efeito da poção, tentei me levantar e notei que meus braços
estavam dormentes. Fui deixando meu corpo voltar dos sonhos e quando percebi, minha cama estava
como uma pedra de gelo, a não ser pelos pés, onde Feroz estava deitado e enrolado como uma
pantufa quente.
Na parede do lado da minha cama tinha um pequeno quadrado de tecido com zíper de fora a fora,
eu o abri cuidadosamente para não fazer barulho, era uma pequena janelinha, não aberta totalmente,
mas com uma fina tela onde pude ver o lado de fora, estava tudo totalmente coberto de neve!
Camadas grossas de neve! Eu nunca havia visto isso na minha vida. Mas quando entrou um vento pela
janelinha, eu soube que não iria vê-la ao vivo, pelo menos, não agora. Ewren acordou e olhou para
mim.
― já acordada? Feche isso, está entrando frio! ― eu fechei rapidamente o zíper e sentei em
minha cama.
― Desculpe, eu acordei porque estava com muito frio!
― Peça a Feroz para crescer, assim ele se deita ao seu lado e você não sente frio! ― foi o que eu
fiz, puxei delicadamente o cobertor até achar a bolinha Feroz dormindo, eu tentei chamá-lo e sacudí-
lo, mas ele não se mexia.
― Ewren, ele não acorda! ― disse ficando nervosa ― ele está respirando, mas não acorda!
― Ele está hibernando, só deve acordar quando o dia de Áries passar.
― Ah, tudo bem então. ― eu me encolhi de volta na minha cama. Ewren ficou me observando.
― Você está com muito frio mesmo?
― Bastante! ― respondi esfregando meus braços embaixo das cobertas.
― Então você deve morrer antes do meio dia! ― ele falou aquela frase tão naturalmente que eu
não sabia se ele estava debochando de mim ou se estava falando sério.
― Hã? ― foi tudo que consegui falar, minha boca estava levemente dormente.
― A temperatura está -17°C e são seis da manhã, ao meio-dia a temperatura deve chegar a pelo
menos -35°C.
― Então eu vou congelar?
― Vai, você vai acabar ficando imóvel, suas pupilas vão dilatar, sua frequência cardíaca vai cair
lentamente e você não vai perceber! ― ele estava olhando para mim e sorriu. ― Mas nem vai doer!
― Ewren é louco, eu percebi isso agora, ele estava falando de como eu iria morrer congelada em
algumas horas e ainda sorria para mim. Meus olhos se encheram de lágrimas, mas eu não estava
sentindo forças para chorar, Ewren começou a rir alto e levantou da cama dele, estava com uma calça
tipo moletom e blusa de manga, ele veio até onde eu estava deitada encolhida, tirou o cobertor de
cima de mim e se deitou de frente para mim.
― Eu disse que ia te levar pra casa, não vou te deixar congelar, embora você fique adorável
quando está azul de medo ou de frio! ― eu vi seu cabelo ficar cinza quase branco e seus olhos
mudarem de cor, sua pele ficou naquele estranho tom pálido cinzento e eu vi suas asas se abrirem
devagar e nos envolver, ele me levantou do chão para que a asa esquerda pudesse passar por debaixo
de mim, depois nos fechou como num ninho e puxou o cobertor para cima, eu me sentia como uma
lagarta num casulo. Não demorou muito para começar a esquentar, minha cabeça estava perto do
pescoço dele, coloquei minha mão gelada em seu peito e ele quase pulou.
― Espera você estar quente de novo para encostar essa mão em mim! ― ele resmungou, eu fiquei
quietinha até sentir todo meu corpo ficar na temperatura ideal. Ele me puxou mais para perto. ―
Melhor agora?
― Sim. ― fiquei encolhida perto dele, eu podia escutar seu coração bater.
― Eu posso variar minha temperatura sem nenhum problema, por isso aguento temperaturas
baixas, mas como você ia morrer de frio, eu tive que subir a temperatura.
― Pode subir até quanto sem ter problemas? ― eu não devia ter perguntando isso. Ele riu.
― Posso ficar muito mais quente! ― ele estava falando perto do meu rosto, eu senti seu nariz em
minha orelha e depois o senti descer até meu pescoço. Meu coração acelerou tanto que parecia que
iria sair por entre as costelas, fiquei imóvel, sem respirar e meu corpo estava tão rígido que podiam
me usar como pedra que eu não iria me mexer. Ewren notou e começou a rir de novo.
― Por isso que eu gosto de mulheres humanas, é fácil fazer perderem o controle!
― Eu estou bem controlada! ― falei com a voz falhando. Droga!
― Estou percebendo... ― ele começou a mexer com o meu vestido, eu levantei o rosto para olhar
para o rosto dele, eu vi seus olhos brilhando no escuro que havia ficado no ninho das asas e vi um
brilho avermelhado no fundo dos seus olhos. Algo maligno ali, me lembrei das palavras que ele
havia dito na noite anterior “elfos negros eram elfos brancos que foram corrompidos pelo poder e
pela crueldade, nossos corações se tornaram negros” me assustei o suficiente para enfiar a unha no
braço que estava descendo pelas minhas costas. Aquele brilho sumiu.
― Eu prefiro que você me deixe morrer de frio se for para ficar assim! ― ele riu de novo.
― Estou só brincando com você. ― disse ele ― já disse que se fosse para te fazer algo, você não
teria passado da primeira noite. ― pelo tom de sua voz parecia que ele estava tentando se convencer
disso. Eu me encolhi de novo. Ele estava sossegado agora, estava tão confortável que acabei
dormindo novamente.
Acordei sentindo meu braço formigando, ainda estava no ninho das asas de Ewren e ele estava
acordado.
― Estava esperando você acordar, pelo visto a parte do sono não funcionou com você! ― ele
falou se levantando e fechando as asas, o cobertor caiu sobre mim. ― fique aí embaixo, está mais
frio que antes! ― e estava mais frio mesmo, até respirar parecia doloroso com essa temperatura.
Ewren sentou de novo em sua cama e começou a escrever em seu livrinho novamente, mal ele saiu da
minha cama e o frio voltou. Ele não parecia que ia voltar tão cedo para perto de mim, então fiz um
ninho com as cobertas e puxei Feroz para o meu colo, abraçando-o para me manter um pouco
aquecida. Tremia tanto que se podia ouvir meus dentes rangendo.
― Ewren? ― perguntei tentando disfarçar a voz e quebrar o terrível silêncio ― Por que quanto
mais tarde mais frio, se ao decorrer do dia deveria ficar menos frio com o sol?
― Áries é uma estrela de gelo e Sirius é uma estrela de fogo, quando Áries está só no céu, ele
congela tudo. Então, quanto mais perto do meio-dia, mais proximidade com essa terra e assim mais
frio.
― Então, se Áries congela tudo, quando Sirius fica só nos céus não deveria pegar fogo em tudo?
― Tecnicamente não, pois esse mundo tem muito mais água do que o seu mundo, então quando
Sirius sobe ao céu sozinho é criada uma grande quantidade de vapor que causa o efeito de
abafamento, impedindo assim os incêndios.
― Mesmo em plantações?
― Sim, em todas as plantações ficam vários tonéis de água misturada com um pó de mussile, uma
planta que facilita a vaporização. E para cada litro de água são gerados mil e setecentos litros de
vapor.
― Interessante! Então quando os sóis sobem juntos aos céus eles regulam a temperatura um do
outro?
― Não, apenas regulam a temperatura do planeta. ― Ewren terminou de escrever e saiu da
barraca, deixando entrar um vento gelado. Ele voltou alguns minutos depois.
― Que foi isso? ― perguntei batendo o queixo.
― Fui olhar o cavalo.
― Ele está bem? ― perguntei, se eu estava congelado, imagino o pobre cavalo sozinho.
― Está dormindo. A temperatura da barraca dele está normal. ― eu estava sentindo Feroz se
revirar no meu colo enquanto o apertava, peguei um pedacinho da carne no pote de comida dele e
coloquei diante do seu nariz. Ele mastigou sem abrir os olhos.
― Ele vai sonhar que estava comendo carne! ― eu ri, mas Ewren estava mais sério e com
pequenas sombras embaixo dos olhos. Eu estava vendo aquele brilho vermelho de novo em seus
olhos, ele sentou na cama dele e começou a escrever no seu livrinho de novo. Eu fui até o estojo de
antídotos e remédios e vi que havia um vidrinho de sonífero, (seu rótulo era “somnus”, dei graças
por saber ler latim, vi que era a poção sonífera que ele falou) abri devagar a tampa e senti o cheiro,
não tinha cheiro de nada, eu nem imaginava a dosagem então peguei dois canecos grandes e em um
coloquei pouco menos da metade do vidro de sonífero e no outro apenas algumas gotas. Peguei o chá
quente que estava na garrafa térmica e servi. Ewren olhou para mim desconfiado quando lhe
entreguei o chá.
― Não precisamos tomar nada, lembra? ― perguntou ele olhando-me com o cenho franzido.
― Deu vontade de tomar alguma coisa, é estranho ficar sem beber líquidos. ― respondi
inocentemente.
― Você não gosta desse chá, por que está tomando? ― ele parecia cada vez mais assustador.
― É quente, não precisa ser bom, só precisa esquentar! ― respondi rispidamente tentando
parecer convincente.
― Eu também esquento e não sou bom! E aí? ― Ele estava com malicia na voz, o olho dele que
era azul estava ficando castanho avermelhado. Fiquei com medo de aborrecê-lo agora e empurrei o
chá na direção dele, tomando o meu que estava com apenas umas gotinhas de sonífero. Ele não
esperou uma resposta, bebeu o chá e jogou a caneca no canto. Veio até onde eu estava sentada em
minha cama e deitou perto de mim de novo fechando as asas, eu podia sentir uma energia sombria em
volta dele, meu coração não parava de se jogar contra as minhas costelas.
― Por que tão nervosa? Eu não vou te machucar! ― ele disse devagar e sua voz perecia estar se
arrastando, ele pegou minha mão e mordeu de leve. Por que esse sonífero não faz efeito logo! Ewren
me puxou pra perto dele, dessa vez sem nenhuma gentileza, mas ele não parecia estar com raiva. Sua
respiração estava irregular e seu coração também. Devo ter colocado sonífero demais!
― Ewren, me solte! ― eu fiz força para me soltar, mas ele não deixou eu me mover, cravei as
unhas em seu braço, mas parece que ele nem sentiu. Eu senti sua mão passar em meu pescoço, depois
ele me abraçou de novo e ficou em silêncio, eu estava ficando com muito medo, olhei para seu rosto,
não via nada, então ergui minha mão, seus olhos estavam fechados e agora ele respirava
profundamente. Depois de alguns minutos, quando eu me acalmei, eu senti meu corpo pesar e meus
olhos arderem.
Ainda estava enrolada nas asas de Ewren quando despertei, estava fazendo um pouco de calor,
escutei o cavalo relinchar e bater as patas do lado de fora da barraca como se estivesse nos
chamando. Como Ewren não se movia, eu o empurrei para o lado, ele rolou e ficou de bruços no
chão.
― Ai meu Deus! Feroz, acho que ele não vai mais acordar! ― Feroz levantou as orelhas como se
tivesse me entendido e cheirou Ewren. Eu olhei meu celular, era quase duas da tarde e meu estômago
roncou alto. Eu saí da barraca, já não havia mais neve, a grama estava verde e a cachoeira estava
fazendo arco-íris nas pedras. O cavalo estava bebendo água, comi o resto da carne assada e dei uma
parte a Feroz, ele se jogou no bolsão da cachoeira e foi até perto de algumas pedras onde pegou
alguns peixes que deviam ter morrido congelados e os devorou, voltou pulando para perto de mim.
Eu não sabia o que fazer, Ewren estava deitado na mesma posição que o rolei em cima de um
cobertor no chão da barraca. Com dificuldade puxei-o para fora da barraca e comecei a arrumar as
coisas como Ewren fazia, depois enrolei a barraca e a amarrei, não ficou um embrulho tão bom
quanto o dele, porém dava para colocar no cavalo. Depois de juntar as coisas, eu peguei o cavalo e
amarrei as coisas nele, ele parecia incomodado comigo fazendo isso.
― Sinto muito menino, mas o seu dono está desmaiado! ― e eu estava ficando louca falando com
um cavalo. Depois que estava tudo certo, só Ewren continuava errado, tentei lhe jogar água, sacudir,
gritar, mas nada parecia fazer efeito. Foi então que eu tive uma ideia. Cheguei perto dele, as asas
iriam me atrapalhar para levá-lo em cima de Feroz, mas o animal parecia entender o que estava
acontecendo então veio para perto de Ewren e pisou com a patinha no meio das costas dele onde
ficava a fênix tatuada. A tatuagem então se mexeu e recolheu as asas, transformando-se em tatuagem
novamente. Eu o virei.
― Feroz, você me entende? ― perguntei olhando fixamente nos olhos do tigre e torcendo para ele
me entender, ele cresceu, ficou no seu tamanho normal e colocou a cabeça em meu ombro. ― Feroz,
você sabe para onde fica a cidade portuária desse lado do mar das tormentas? ― perguntei. Feroz
colocou uma garra para fora e fez um risco na direção da estrada. Eu olhei sem acreditar, imaginando
que fosse um sonho e me belisquei várias vezes antes de perguntar novamente.
― Feroz? Sabe qual é a cidade que precisamos ir para atravessar o mar das Tormentas? ― estava
olhando nos olhos dele de novo. Ele começou a riscar o chão com suas garras e desenhou uma ancora
no chão ― Pode nos levar lá? ― Feros espirrou e sacudiu sua enorme cabeça, ele andou até o
cavalo e lambeu o focinho dele, o cavalo de repente cresceu, ficou maior e mais forte, e depois foi
até Ewren e deitou perto dele, eu montei em suas cotas, puxei Ewren para cima, coloquei-o sentado
atrás de mim, amarrei-o em minha cintura e prendi seus braços em volta de meu pescoço, quando
terminei, me inclinei para frente.
― Podemos ir? ― perguntei a Feroz, ele se levantou, rugiu alto e começou a correr. Corria numa
velocidade tão grande que eu tive que olhar para ver se o cavalo conseguia acompanhar, para minha
surpresa ele estava ao nosso lado. Tive que me segurar com todas as minhas forças, pois estava com
medo de Ewren desequilibrar e me levar pro chão junto, estávamos correndo tão rápido que eu só
via borrões em volta de mim. Eu não consegui marcar o tempo, a corrida era constante, não tinha
variação na velocidade dos animais. Não estava nem olhando para frente, estava apenas confiando
que iria chegar ao meu destino e torcendo para não cair, meu corpo estava dolorido de não me mover
e eu sentia o cheiro da maresia, quando finalmente abri os olhos, estava escuro, eu olhei para frente e
vi o porto a poucos metros de nós. Feroz foi diminuindo a velocidade e parou perto de um grande
navio que estava ancorado na ponta do cais. Desprendi Ewren de mim, Feroz deitou-se no chão
respirando com força, eu afaguei sua cabeça, o cavalo também estava bufando. Uma mulher desceu
do navio e veio em minha direção, ela era muito bonita, ruiva e com olhos pretos e vivos.
― Você está bem? ― disse ela olhando de mim para os animais e depois olhando Ewren.
― Estou só dolorida da viagem, o cavalo e meu Tigre devem estar com muita sede... ― eu estava
com a garganta seca também.
― Quer que eu te ajude a encontrar um hotel? ― ela perguntou, mas sem mover os olhos de
Ewren.
― Eu preciso chegar ao porto da Besta Santa. Ele é um elfo negro, está me levando para lá,
mas... ― eu não queria contar sobre o sonífero ― acho que ele pegou algo por engano no estojo de
medicamentos e está dormindo desde ontem!
― De onde você está vindo? ― ela perguntou olhando os animais respirando rapidamente.
― Vim do desfiladeiro do esqueleto, estava acampada perto da cachoeira.
― Desfiladeiro do esqueleto? São dois dias de viagem daqui! Mas se você quer mesmo ir para o
Porto da Besta Santa eu posso te levar, por uma taxa, é claro! ― disse ela já levando os animais a
bordo, eu a segui, ela desceu uma rampa dentro do navio onde tinha um pequeno estábulo com alguns
cavalos e uma baia vazia, Feroz encolheu de tamanho deixando Ewren cair no chão do navio, dando
um enorme susto na mulher.
― A propósito, qual seu nome? ― perguntei me sentido uma mal educada.
― Banshee ― ela respondeu
― Leona, prazer! ― ela sorriu para mim e colocou o cavalo na baia, que deitou no feno, ela
colocou bastante água e comida. Feroz bebeu tanta água que achei que sua barriguinha fosse explodir.
Havia um cano no teto, Banshee gritou um nome por ele e logo alguém chegou correndo perto de nós.
― Mag, me ajude a levá-lo para cima! ― a mulher atarracada de aparência hostil a ajudou a
levar Ewren de volta ao convés do navio, ela entrou na cabine e dentro da mesma tinha duas portas,
dois quartos diferentes. Ela abriu uma porta e colocou Ewren deitado em uma cama.
― Ele está apenas dopado, deve acordar em poucas horas, vou pedir para a cozinheira fazer uma
comida bem forte, ele parece meio fraco.
― Sim ― respondi triste ― está. Ele disse algo sobre os cristais de purificação.
― Leona, estamos partindo para o porto da Besta Santa, sabe que o mar das tormentas é
infestado de sereias e que teremos que prendê-lo, pois as sereias poderão enfeitiçá-lo.
― Sim, já sei ― respondi.
― E como ele parece tão cansado, é provável que esteja ficando corrompido pela ausência dos
cristais, eu irei fazer um carregamento de cristais no porto da Besta Santa, tenho algumas Elfas a
bordo. Como você reparou, minha tripulação é constituída apenas por mulheres.
― Sim, eu notei, mas há alguns dias vi uma sereia devorar duas humanas sem dó nem piedade.
― Só se alimentam de mulheres se estão muito tempo em terra, para elas a carne de mulher é
amarga. ― ela esfregou uma cicatriz em seu braço, depois se levantou e prendeu os braços e pernas
de Ewren em grilhões brilhantes.
― Prata? ― perguntei.
― Sim, diminui a força e a lucidez de todas as criaturas mágicas, inclusive magos e bruxos, mas
os elfos negros, com a prata eles perdem os sentidos a ponto de nem saberem o que estão fazendo,
assim não tem risco de quebrar as correntes. Leona, sinto muito, mas você terá que dormir com a
tripulação, tudo bem? ― ela me perguntou docemente.
― Tudo... ― eu só queria chegar logo do outro lado, ela falou com outra mulher sobre a comida
e depois me mostrou o navio e onde eu dormiria.
― Você janta comigo hoje! ― disse a capitã depois de um tour pelo navio.
― Capitã, estamos prontas para zarpar! ― disse uma mulher que notei ser uma salamandra.
― Levantar âncora e a todo pano! ― ela ordenou, depois me levou de volta à cabine. O jantar
foi servido alguns minutos depois, foram servidos muitos frutos do mar desconhecidos por mim e
muitas frutas e verduras. Eu comi tanto que senti minha roupa apertar um pouco. Depois do jantar fui
para o outro quarto ao lado do que Ewren estava preso, entrei com Banshee, lá havia um banheiro e
nele uma tina enorme cheia de água quente.
― Pode tomar banho se quiser, a água quente vai relaxar você! ― E ela tinha razão, eu estava
suja de poeira, cansada e dolorida, provavelmente pela velocidade da corrida de Feroz! Ainda bem
que tinha um estojo de segurança em minha mochila. Depois do banho, ela havia servido um prato
enorme de comida.
― Vou dar para ele ― disse ela apontando para o quarto de Ewren. ― ele acordou faz alguns
minutos! ― eu senti meu rosto esquentar.
― Tudo bem, eu vou! ― disse tomando o prato das mãos dela, Banshee pareceu frustrada por
alguns segundos.
― Não o solte por nada! ― disse ela enquanto voltava ao seu quarto. Eu observei a porta por
alguns instantes depois entrei no quarto, Ewren estava sentado de cabeça baixa na cama. Quando me
viu entrar, notei que seus olhos estavam escuros e seu rosto estava muito mais sério que o normal.
― Como se sente? ― perguntei baixo, para prevenir se alguém estivesse escutando.
― Com fome e com dor de cabeça, você me dopou? ― ele parecia indignado.
― Desculpe, você ficou assustador! ― eu disse sentando na cama a sua frente.
― Me solte! Se não, você vai ver algo assustador de verdade! ― ele pediu puxando os braços.
― Não posso, só a capitã tem a chave! ― eu estava com muita pena de vê-lo acorrentado, peguei
um pouco de comida no garfo e levei até sua boca. Ele ficou de boca fechada me encarando. Eu comi
o que estava no garfo e fiz como se fosse me levantar e sair.
― Tudo bem! Eu como! ― métodos de psicologia testados em meu irmão funcionavam neste
mundo também! Ele comeu rapidamente, mas em nenhum minuto ele tirou os olhos de mim.
― Depois eu volto para te ver ― eu disse me levantando, ele segurou a minha mão e um frio
passou pela minha espinha. Eu olhei para ele e vi um pequeno brilho azul sob aqueles olhos negros.
― Desculpe se machuquei você. ― ele disse. Eu não havia entendido até olhar para meu pulso,
tinha uma marca arroxeada. Devia ser de quando ele me segurou e não me deixou sair antes de
desmaiar pelo remédio. Eu não soube responder, apenas saí e fui até onde eu iria dormir. Levei uns
pedaços de algo que parecia lula para Feroz e ele os engoliu vorazmente. Tive um sono pesado e sem
nenhum sonho.
Acordei com Feroz mordendo meus dedos, pelo cheiro de comida deveria ser quase hora do
almoço. Levantei-me, fiz um cafuné em Feroz que estava deitado em minha rede e fui até o convés. O
dia estava lindo e o mar estava azul tão claro que dava para ver os peixes na água. Havia mulheres
trabalhando por toda parte, a maioria era formada por humanas e algumas salamandras. Eu não sei
por que, mas morria de medo delas.
― Bom dia! ― disse uma jovem que estava sentada em cima de um canhão.
― Hum, bom dia! ― respondi. ― Onde estamos? ― perguntei
― A um dia do Porto da Besta Santa. Você dormiu quase dois dias. ― disse ela com um estranho
sorriso no rosto, a olhei espantada, por isso meu estômago doía tanto, fui almoçar com ela e depois
iria ver Ewren. Levei um pouco de comida escondido para Feroz, que comeu até alguns legumes.
Quando estava subindo de volta ao convés para ver Ewren, escutei sussurros de duas mulheres
que estavam de guarda.
― ...Mas a capitã está lá há horas!
― Tanto tempo sem homem que tomou o namorado da menina! ― elas riram baixinho. Não
estava entendendo o que elas queriam dizer, mas tive um mau pressentimento. As mulheres no convés
estavam distraídas com algo na proa do navio. Entrei sorrateiramente pela cabine e parei em frente à
porta de Ewren. Olhei para o lado e notei que a porta do quarto de Banshee estava aberta, entrei e vi
um pequeno buraco na parede que dava para o quarto onde Ewren estava acorrentado. Quando olhei
pelo buraco, eu senti um nó na garganta e um aperto no peito. Ela estava com Ewren no outro quarto,
ou melhor, sobre Ewren, sem nenhuma roupa, estava agarrada a ele e beijando-o. Ele estava
retribuindo o beijo dela e seus dedos acariciando suas costas, enroscando os dedos naqueles
enormes cachos ruivos. Saí dali tão rápido que as tripulantes nem me viram passar e corri para onde
Banshee havia colocado o cavalo. Sentei perto dele e respirei fundo, estava nervosa e com o coração
acelerado sem saber o motivo, para me distrair, comecei a escovar o cavalo com tanta força que ele
reclamou batendo a cauda em mim.
― Tem razão! ― eu estava falando com o cavalo de novo ― Ele não é nada meu, eu não devia
nem estar assim! ― mas eu estava, e estava com raiva dela também por tocar nele. Percebi naquele
momento que estava com ciúme. Comecei a sentir um desejo estranho de enforcar Banshee com seu
próprio cabelo, minhas mãos estavam tremendo, eles deviam estar um pouco acima de mim, se
divertindo. Eu comecei a imaginar o cabelo dela se apertando com força em volta de seu pescoço até
ela ficar roxa. Suspirei novamente tentando afastar meus pensamentos negativos e foi aí que ouvi um
grito abafado. Ouvi vários passos correndo e outros gritos. Limpei a escova que estava usando no
pobre cavalo. Havia um balde d’água perto da porta e quando olhei o reflexo do meu rosto para ver
se haviam marcas de lágrimas, fiquei apavorada. Havia uma marca como se fosse uma tatuagem de
vidro brilhante no meio da minha testa, era uma orquídea verde do tamanho de uma moeda e em meu
braço esquerdo desde o pulso até o ombro apareceram marcas parecidas com um cipó cheio de
pequenas folhas, daquele mesmo desenho de vidro verde brilhante. Tentei arrancar com as unhas, mas
parecia que estava tentando arrancar uma parte de mim, como uma unha, tentei lavar, mas eles não
saíam. Não podia subir ao convés assim, elas estranhariam. Quando eu fui me acalmando da raiva de
Banshee, as tatuagens desapareceram. Respirei fundo e subi correndo para ver do que se tratava o
escândalo. Quando cheguei ao convés, quase todas as mulheres estavam em volta dela. Elas estavam
com facas cortando seu longo cabelo para soltar de seu pescoço, Banshee não estava respirando, a
mulher que parecia um troll fez respiração boca a boca e ela começou a tossir.
― O que aconteceu, capitã? ― a mulher chamada Mag estava segurando Banshee sentada.
― Meus cabelos... começaram a me sufocar... ― ela notou onde estava, viu seus cabelos no chão
e começou a chorar. Não consegui sentir pena, estava achando bem feito e apreciei as lágrimas dela.
Talvez esse mar tivesse alguma maldição, pois eu estava me sentindo diferente. De repente o rosto de
Banshee ficou branco, ela apontou um dedo magro para mim e como se estivesse gritando, abriu a
boca e ficou daquele jeito até as outras olharem.
― MAGA! ― começaram a gritar ― A CAPITÃ DEIXOU UMA MAGA ATRAVESSAR O
MAR! VAMOS MORRER! ― elas estavam todas gritando e apontando para mim. Olhei meu braço
esquerdo, a raiva devia trazer aquelas tatuagens de volta à minha pele. Eu não sabia o que fazer, mas
como eu desejei que ela sufocasse com os próprios cabelos...
― Quietas! ― berrei ― eu não quero ouvir um pio até chegarmos ao Porto da Besta Santa! ― eu
então desejei que houvesse algum homem a bordo, a mulher troll era a que mais se parecia com um,
então ela se contorceu e transformou-se num homem tão feio quanto a mulher que era antes. As outras
se afastaram dele instantaneamente e alguns segundos depois, ouvimos uma melodia vinda do mar. A
mulher troll que agora era homem, andou lentamente até a beirada do navio como se estivesse
hipnotizada e se jogou no mar. Todas as outras começaram a gritar, eu não podia acreditar no que
estava acontecendo. Banshee se ajoelhou diante de mim e começou a implorar perdão, eu não
conseguia engolir, só ficava com mais raiva.
― Vamos matá-la! ― Disse Mag ― Antes que ela nos mate! ― algumas mulheres puxaram
espadas e começaram a vir em minha direção. Feroz então saltou diante de mim e soltou um rugido
tão alto que fez algumas tábuas do assoalho vibrarem e se soltarem. Elas imediatamente desistiram
da ideia de me matar. Concentrei-me o suficiente para falar.
― Já disse, comportem-se e eu não machuco mais ninguém! ― entrei para a cabine com Feroz e
fechei a porta. Ouvi um barulho vindo de onde Ewren estava preso, fui olhar o que era, ele estava
sentado, suas roupas estavam no chão e estava coberto apenas por um lençol.
― Que diabos de barul... ― ele estava gritando, quando olhou para mim ficou mudo e de boca
aberta ― Uma Maga!? ― seu rosto empalideceu e ficou olhando-me surpreso e desconcertado.
― AH! CALE A BOCA VOCÊ TAMBÉM! ― gritei para ele, depois bati a porta atrás de mim e
fiquei sentada na cabine até o anoitecer.
Uma salamandra veio trazer o jantar. Ela ainda estava assustada, se curvava ligeiramente para
falar comigo e me senti mal por isso, pois não tinha nada contra as outras tripulantes.
― Senhora... ― ela chamou ― a capitã pediu autorização para entrar no quarto dela ― disse
enquanto colocava o jantar sobre a mesa. Eu me sentia mal, pesada. Minha raiva era apenas de
Banshee.
― O Navio é dela. ― respondi secamente olhando para outro lado.
― Obrigada! ― agradeceu a mulher. Banshee entrou encolhida, olhando-me de canto de olho.
Ainda estava coberta por uma blusa velha e com muito medo de mim, depois desviou os olhos para a
porta da cabine onde estava Ewren.
― Vai lá ― disse, com a raiva me tomando de novo ― entra lá e faz o que você estava fazendo
antes! ― ela mudou ligeiramente de cor, passando para um tom de roxo e correu para seu quarto. Eu
me sentia um monstro. Realmente estava com ciúmes dele. Lembrei-me de quando Ewren ainda não
estava tomado de maldade, quando eu chorei de saudade de casa e ele me abraçou. Eu senti raiva de
imaginar que ela estava com ele. Não conseguia parar de pensar nisso, aí me voltou na cabeça, “os
grilhões de prata tiram a força e a lucidez” talvez Ewren não tivesse percebido o que estava
acontecendo? Improvável! Entrei no quarto onde ele estava, ainda estava deitado olhando para o teto
e ainda coberto com o lençol.
― Ewren? ― chamei. Ele não respondeu, na verdade nem virou em minha direção. ― Não vai
falar comigo? ― perguntei. Nenhuma reação, ele continuou em silêncio. Sentei-me no chão perto
dele, mas longe o suficiente para que ele não me alcançasse e fiquei esperando chegarmos ao porto
da Besta Santa. Eu me sentia uma criança de castigo sentada ali por horas sem me mover.
Tomei um susto quando ouvi o barulho da âncora descendo, havia cochilado ali, Ewren estava na
mesma posição. Levantei-me de um pulo.
― Ewren? Levante e coloque sua roupa, eu vou te soltar!
― Hum... ― ele resmungou e olhou para mim. Seus olhos estavam totalmente vermelhos e
desfocados.
― Você está bem? ― levantei e fui em sua direção. Ele deu um pulo na minha direção mostrando
enormes garras, dentes pontiagudos e um olhar assustador. Atirei-me contra a parede onde ele não
podia me alcançar por causa das correntes. A única maneira de tirá-lo do navio seria dopá-lo
novamente, porém não sabia como, ele provavelmente não tomaria o remédio. Feroz entrou no quarto
trazendo o estojo de remédios.
― Feroz inteligente! ― eu afaguei sua cabeça e peguei o remédio. Coloquei em uma colher, mas
Ewren a atirou longe. Fui até o aposento de Banshee, ela estava sentada à frente de uma penteadeira
tentando arrumar o que sobrou de seus cabelos.
― A chave. ― pedi secamente. Ela olhou-me com lágrimas nos olhos e me deu a chave prateada.
― Po-podeira devolver meu cabelo? ― ela pediu soluçando.
― Lamento, não sei fazer isso. ― respondi e saí do aposento, em cima da mesa na cabine havia
um mini bolo de chocolate com nozes, provavelmente a sobremesa de Banshee, eu tirei o frasco do
sonífero de dentro do bolso do poncho e com uma colher tirei um pedaço de cima do bolo e entornei
um pouco do remédio, depois recoloquei o pedaço do mini bolo e o cobri com um pouco de creme
para não parecer tão suspeito e voltei para onde Ewren estava. Ele havia vestido suas calças, mas
ainda parecia atormentado. Eu o olhei e suspirei, não tinha um jeito fácil de fazer isso.
― Quer sair daí? Quer a chave? ― eu mostrei-lhe a chave em minha mão. Ele esticou a mão para
tocá-la e eu a recolhi. Estava completamente inconsciente do que estava acontecendo e senti até
pena ― Só se comer o doce, aí te entrego a chave! ― eu estiquei a mão com o bolo.
― Tá brincando? ― ele estava com a voz cansada e alterada.
― Ou come ou eu não te solto! ― eu disse e novamente estiquei a mão com o doce para ele. Ele
pegou e comeu, na verdade, engoliu inteiro.
― A chave! Dê-me a chave, mulher! ― ele pediu, estendendo a mão novamente.
― Vem, Feroz, vamos ver o cavalo e pegar as coisas! ― quando saí, pude ouvir os gritos de
Ewren. Escovei o cavalo e depois coloquei as coisas em cima dele, deveria estar quase anoitecendo,
olhei pela janelinha na lateral do navio, ele estava atracado num grande porto e havia grandes lojas,
casas e hotéis para todos os lados.
Esperei um pouco de tempo para o sonífero fazer efeito. Quando entrei no quarto, Ewren estava
deitado na cama com a boca parcialmente aberta. Cheguei bem perto para ter certeza de que ainda
estava vivo. Quando percebi que estava adormecido, soltei os trincos das correntes dos pés e depois
das mãos, Feroz estava em seu tamanho grande para levar Ewren para fora do navio. Quando o
segurei para colocá-lo em cima de Feroz, ele me agarrou, me puxou contra ele e colocou as garras
em meu pescoço.
― Alguns remédios não fazem efeito duas vezes! ― ele disse tão baixo que quase não pude
entender. Feroz encolheu rapidamente passando por entre minhas pernas e mordendo a perna de
Ewren que urrou de dor me largando.
― Sinto muito Ewren, mas tenho um sonífero infalível! ― peguei a cadeira que estava ao lado da
cama e acertei com toda força nas costas dele, que caiu por cima de Feroz, uma fina linha de sangue
apareceu descendo por suas costas.
― Feroz! Eu o matei de novo! ― Feroz fez um barulho como se estivesse rindo ou espirrando.
Saí com Feroz, Ewren em cima dele e o cavalo de dentro do navio e procurei pelo porto algum lugar
para levá-lo. Depois de andar um bom tempo parecendo uma atração de circo, achei um hotel onde
havia serviço de Pronto atendimento e um tipo de sala de banho com sauna e pedras quentes. Um
homem de pele avermelhada nos atendeu e ele olhava desconfiado de Ewren para mim.
― Por acaso você estava tentando sequestrar o elfo? ― ele perguntou me pegando de surpresa
com aquela pergunta inusitada.
― Não! Ele estava muito tempo longe dos cristais de purificação e começou a ficar agressivo!
― O homem então o pegou com dificuldade e o colocou em cima de uma mesa que parecia uma
maca, mas feita de uma estranha pedra branca. Fiquei olhando Ewren ali, parecia até um inocente
elfo ferido desse jeito.
― Então veio ao lugar certo, essa sala é uma sala de restauração, vocês vieram de navio, certo?
― E teria outro meio de chegar aqui? ― perguntei soando tão rude que fiquei envergonhada.
― Realmente não, mas o mar das tormentas causa distúrbios comportamentais e físicos, no caso
dele, perdeu quase toda a força, ele está tão fraco quanto um gato! ― Feroz se incomodou com a
comparação e eriçou o pelo.
― Então, se eu tentasse obrigá-lo a fazer algo, ele faria? ― perguntei me lembrando de Banshee
em cima dele.
― Bom, não totalmente, ele inconscientemente teria que aceitar. ― eu bufei, o enfermeiro
começou a cuidar dos ferimentos das mordidas de Feroz e depois do corte que eu abri em suas costas
com a cadeirada. ― Ele ficou muito tempo sem um cristal de purificação, antigamente o poder de um
elfo negro aumentava consideravelmente sem um cristal de purificação, mas como eles se tornaram
muito perigosos em zonas sem cristais, foi lançado um feitiço por uma maga muito poderosa, quando
elfos negros ficassem distantes de cristais de purificação, seus poderes de cura e sua resistência
física seriam diminuídos, nem sua força continuaria igual.
― Como é seu nome? ― perguntei para cortar o assunto, eu queria sair dali, estava me sentindo
mal, como se tivesse agredido um gato indefeso que estava tentando me arranhar.
― Alodinio ― disse o salamandra.
― Alodinio! Vou dar uma voltinha pela cidade, depois eu volto! ― falei enquanto girava nos
calcanhares e saía de fininho dali.
― Tudo bem, irei cuidar dele, quando você voltar, estaremos aqui! ― saí com Feroz nos braços,
o porto era grande, a cidade me era estranhamente familiar e fui andando por uma ruela até encontrar
uma rua larga com enormes lojas de todos os tipos. Fiquei olhando as vitrines de todas as lojas até
achar uma loja escondida em um beco estreito. A loja era cheia de pedras, gemas cintilantes e
cristais. Em uma parede havia uma grande caixa de vidro com cristais azuis brilhantes. Uma senhora
de rosto redondo (igual a essas avós de filmes, as doces velhinhas) veio me atender.
― Olá minha querida, procurando por algo especial? ― ela perguntou seguindo meu olhar até os
cristais na parede.
― O que são esses cristais? ― perguntei.
― São ornamentos feitos com cristais de purificação! Tenho pingentes, brincos, pulseiras e
anéis! ― ela foi até o balcão e de trás dele puxou uma maleta de couro forrada de veludo cheia de
joias feitas com cristal de purificação.
― Qual o nome desse cristal?
― Gota de lágrima ― ela disse pegando uma caixinha menor com um conjunto. Era lindo, um par
de brincos em forma de pequenos losangos brilhantes, um anel com o cristal combinando com os
brincos e uma pulseira com vários pequenos pingentes no mesmo formato, fiquei encantada.
― Quanto custa? ― deviam custar uma fortuna.
― Duzentas moedas este conjunto. A gota de lágrima não é um cristal raro, só vale pela lapidação
artesanal e pelas correntes de aço damasco, eu mesma fiz! ― disse ela com um enorme sorriso no
rosto, ela o fez com tanto trabalho e carinho que não pude resistir. Comprei o conjunto todo. Também
comprei um cristal maior em corte comum com uma corrente feita de escamas de dragão, pelo que a
velhinha me disse, é uma corrente tão resistente que só um dragão pode arrebentar. Pedi para
embrulhar o cristal maior para presente, pois me recusava a viajar com Ewren surtando.
― Cuidado ao usar o conjunto, minha jovem, este cristal foi criado com as lágrimas de criaturas
Místicas, se forem usados por um mago, eles podem aumentar seus poderes!
― Por quê?
― Por que quanto mais puro o coração de um mago, mais forte será seu poder. ― ela me deu
uma piscadela e sentou de novo atrás do balcão onde a vi trançando pequenas tiras de couro,
despedi-me e saí da loja. Caminhei lentamente olhando o conjunto em minhas mãos, parei para
colocá-los, olhei meu reflexo na vitrine de uma loja, era tão lindo! Quando a claridade batia nos
cristais, eles mudavam de cor. Feroz andou atrás de mim miando e fazendo sons de reprovação.
― Com fome? ― perguntei a ele, que se esfregou na minha perna ― Claro que está com fome!
― tinha um restaurante perto de onde nós paramos, então pedi alguns bifes e dei para Feroz.
Enquanto ele comia, liguei meu celular para ver se estava com sinal. Milagrosamente estava com um
pontinho de sinal, digitei uma mensagem rapidamente para minha mãe:
“Mãe, está tudo bem, estou em segurança, por favor, não se preocupe, estarei em casa em
breve!”
A mensagem parecia muito suspeita, então a apaguei e reescrevi: “Mãe, estamos passeando no
shopping, só vamos para casa quando fecharem as lojas, beijos, te amo, até logo!” Li a mensagem
novamente, só então a enviei. Alguns segundos depois de aparecer “mensagem entregue” a rede
sumiu, desliguei o telefone e vi que Feroz já havia terminado de comer. Voltamos calmamente ao
hotel, a vista da cidade à noite era ainda mais bonita, a lua cheia estava começando a aparecer e
fazia as ondas brilharem quando quebravam bem próximas ao cais. A cidade parecia uma pintura
retrô, com postes de luzes amareladas e paralelepípedos cobrindo as ruas. Já estava muito escuro e o
movimento nas ruas secundárias havia diminuído, então parei de enrolar e fui logo para o hotel.
Entrei para procurar por Ewren, ele estava na mesma sala de restauração, só que acordado e dentro
de uma piscina de pedras com água quente. Ele me viu chegar e eu vi seus olhos estreitarem, olhou-
me de cima abaixo e depois pareceu aliviado.
― Está se sentindo bem? ― perguntei timidamente.
― Com dor de cabeça e com pontos ardendo nas costas, mas bem! ― disse ele parecendo
irritado, ainda me olhando desconfiado.
― O que está olhando? ― perguntei olhando para onde ele olhava.
― Eu tive a impressão de ter visto marcas de mago no seu braço e na sua testa! ― eu
disfarçadamente olhei meu reflexo nas águas. Estava normal.
― Você se lembra de como chegou ao navio? ― perguntei tentando soar inocente.
― Só me lembro de ter escutado uma gritaria, ter visto você com marcas de mago e uma mordida
na perna, depois que você me deu um bolinho. ― então ele não se lembrava do que estava fazendo
com Banshee ou estava mentindo muito bem.
― Então você... Hum... Não se lembra de nada do navio? ― quando falei isso, um traço de
iluminação mudou seu olhar, mas continuou a me encarar com um ar de santo. Ele não me devia nada,
não era nada para mim, eu não podia nem reclamar. Fui surpreendida pelas palavras que ele disse
depois disso.
― Minha função é apenas te levar à Torre das Nuvens em segurança, só isso! Não devo
explicações do que faço enquanto não estou com você, certo? ― eu fiquei corada, senti de novo
aquele nó na garganta. Ele continuou me encarando. ― Você logo vai estar em sua casa e não vai
fazer diferença para você o que eu fiz ou deixei de fazer por aqui! Não é? ― eu sabia disso e sabia
muito bem, e que comparada a ele eu não era nada neste mundo, segundo suas próprias palavras eu
era uma criança, não significava nada para ele como ele não deveria ser nada para mim.
― Eu não disse nada, estava apenas perguntando se lembrava de algo! ― disse tentando engolir
o caroço em minha garganta.
― Lembro de tudo clara e perfeitamente. E se você é uma maga, por mais criança que seja,
controle-se, não saia por aí usando seus poderes sem saber controlar suas emoções, ou você controla
suas emoções ou seus poderes a controlarão. Se você não pode se controlar, você se torna má! ― eu
fiquei com raiva de novo, quem era ele para me falar de bem ou mal? Meu corpo tremeu e mordi a
boca para não lhe responder como merecia. As tatuagens reapareceram.
― Está vendo? ― disse ele apontando para meu braço ― o sentimento é o pior inimigo da razão
e você só pode controlar seus poderes com a razão, se deixar levar pelos sentimentos é se entregar
para o mal.
― Não sei o porquê disso! ― resmunguei.
― Por que, se fosse algo para o bem, você não ficaria mais forte quando tivesse sentimentos
felizes? Seus poderes só apareceram pela primeira vez quando ficou com raiva e teve sentimentos
negativos. ― eu sabia disso, havia notado, mas não tinha pensado que poderia me tornar má.
Virei as costas e o deixei lá falando sozinho, fui procurar para qual quarto que levaram minhas
bagagens. Tomei um banho, dei banho em Feroz e deitei na cama cobrindo o rosto com os braços.
Senti as lágrimas escorrerem, ainda não tinha aprendido a não ser tão chorona, sempre chorei a toa.
Eu não sabia lidar com sentimentos ruins, eu nunca havia sentido ciúmes de nada ou mágoa. E
também estava acostumada a viver sem emoções fortes, dor ou medo. Fiquei deitada por muito tempo
pensando, sem conseguir adormecer. Ewren entrou no quarto e deitou na outra cama. O olhei
discretamente por baixo da curva do meu braço. Estava vestido de linho branco e com o cabelo
trançado.
― Você está bem? ― me perguntou, eu sequei as lágrimas discretamente enquanto tirava os
braços do rosto.
― Ótima, maravilhosa! ― disse sarcasticamente, virei para o lado e fiquei esfregando a cabeça
de Feroz, que ronronou alto.
― O que é isso? ― sabia que ele se referia ao colar com cristal que eu havia deixado sobre a
cama dele. Nem me deu ao trabalho de virar para ter certeza.
― Um presente, pra você ficar calminho durante o resto da viagem. ― eu não queria olhar para
ele. Não queria que ele tocasse mais em mim, talvez devesse pedir para outra pessoa me levar o
resto do caminho, mas isso só provaria a Ewren que eu não podia controlar meus sentimentos e que o
estava evitando por algum motivo, e ele descobriria a verdade.
― Me desculpe, não quis ser grosseiro com você. Ainda não estou cem por cento purificado.
― Hu-hum ― não lhe disse mais nada. Ele sentou em minha cama e me virou na direção dele.
― Você tem que entender! ― ele estava olhando dentro dos meus olhos, dentro da minha alma.
Dessa vez não sabia do que ele estava falando.
― Não entendo, não sou adivinha para saber o que você está pensado! ― Ewren colocou o colar
e continuou olhando para mim.
― Você ainda é muito criança, talvez um dia pense e comece a entender como a vida aqui
funciona.
― Eu não sou criança, pare de me chamar assim! ― gritei tão alto que Feroz pulou, bufou para
mim e foi para cama de Ewren.
― Se não fosse, não estaria fazendo esse escândalo todo! ― eu soltei meus braços e virei. Por
que ele não podia simplesmente entender que eu tive ciúme? Eu respirei fundo e me virei novamente.
― Me desculpe. ― eu disse.
― Pelo que? ― ele estava me forçando, eu o encarei.
― Por me meter em sua vida, por atrapalhar você!
― Leona ― ele me encarou novamente ― preciso te perguntar uma coisa e quero que você seja
totalmente sincera. ― ele estava me segurando. Eu assenti com a cabeça ― Você gosta de mim? ―
ele me segurou com força para que eu não pudesse me virar. Meu coração batia tão forte que por um
instante achei que ele ia saltar do meu peito e isso perto dele já estava se tornando comum demais,
ele não me soltou e continuou me encarando com aqueles olhos grandes e coloridos.
― Bom, se você me considerar como uma amiga também, então, acho que sim... ― tentei mentir,
mas sempre fui uma péssima mentirosa.
― Não foi isso que te perguntei! ― perguntou pressionando-me, embora meu coração dissesse
uma coisa, eu sabia que dizer a verdade iria fazer ele se afastar e eu não sabia se o queria perto ou
longe de mim.
― Não! Ficou louco?! Você é muito velho! ― disse brincando e dando um meio sorriso, tentando
ao máximo parecer convincente e prender minhas lágrimas novamente. Ele me soltou.
― Ainda bem, pois se dissesse sim eu iria arrumar outra pessoa para te levar. ― Ewren se
levantou e voltou para a cama dele. Eu senti um frio na espinha. Se tivesse dito a verdade, ele me
largaria e mandaria outra pessoa terminar o serviço? Então eu não significava mais que um negócio
em andamento para ele! Era difícil não acreditar nisso, afinal, eu não havia pagado ainda o restante
do dinheiro, mas talvez ele quisesse apenas me testar, me provocar para ver a minha reação.
― Eu não vou mais tocar em você, me desculpe! ― disse ele ― Não quero te confundir! ― eu
estava começando a ficar com raiva novamente.
― Você não está me confundindo, mas está ficando confuso, isso sim! ― respondi
grosseiramente ― Parece que você gosta de mim e está tentando não se confundir! ― o encarei, ele
pareceu pego de surpresa pelas minhas palavras e desviou o olhar. Levantei-me e saí do quarto, antes
de sair pude ver um sorriso divertido em seu rosto, o que me deixou com mais raiva. Bati a porta
atrás de mim para demonstrar minha frustração e subi alguns lances de escada até chegar ao telhado
do hotel. Andei até o beiral e me sentei perto da grade de proteção, que por sinal era muito baixa e
de protetora não tinha nada. O céu estava lindo, as estrelas brilhavam intensamente e a lua estava tão
grande que se eu esticasse minha mão poderia tocá-la, estava tão claro que podia ler um livro sem
precisar de nenhuma outra luz. O vento estava frio, porém tolerável, fazia minha pele arrepiar, mas
era relaxante e a maresia fazia-me sentir como se estivesse num passeio de férias. Fiquei sentada ali
olhando as estrelas, pensando e imaginando quantas coisas maravilhosas deste mundo eu não veria.
Estava quase cochilando quando senti um movimento atrás de mim, devia ser Feroz me seguindo.
Olhei para trás e não vi nada, apenas o telhado e a porta para a escadaria, senti algo mexer em meu
cabelo e fechei os olhos.
― Você não disse que não ia mais tocar em mim? ― reclamei me virando para o lado e congelei.
Um par de olhos vermelhos estava encarando-me.
― Conheço seu cheiro! ― Era um lobisomem. Havia cicatrizes pelo seu focinho e faltava parte
de uma orelha. ― Conheço seu cheiro, parece com o da sacerdotisa... Lupine! ― disse a criatura,
esse é o nome de minha mãe!
― Eu não sou Lupine! Sou filha dela! Você a conhece? ― a criatura me olhou de novo e mostrou
os dentes. ― Como sabe o nome de minha mãe? Já foi ao meu mundo? ― quis saber, a criatura
largou uma gargalhada medonha e afastei-me para o outro lado do telhado sem fazer movimentos
bruscos. Ele andou em minha direção lentamente sem desviar o olhar.
Me virei devagar e ele espelhou meu movimento, estava a seis andares do chão e a rua principal
estava movimentada. Se eu tentasse gritar, provavelmente morreria antes de alguém chegar para me
socorrer. Não sabia ainda como usar meus poderes, vi a criatura dar um pulo em minha direção,
parecia que estava tudo em câmera lenta, não pensei duas vezes, girei meu corpo e me atirei do
beiral para a rua, não senti mais nada, apenas escutei um som de algo batendo e a dormência por
todos os lados e aí tudo começou a ficar escuro.
Eu queria gritar, mas não tinha ar nos meus pulmões para isso, havia um gosto forte e metálico na
minha boca. Meu corpo não respondia aos comandos para me mover ou levantar, não conseguia abrir
os olhos e tudo doía, quando forcei para abrir os olhos, minha visão estava embaçada, não sabia o
que estava acontecendo ao meu redor, havia pessoas pedindo ajuda e outras falando comigo, mas
estavam tão distantes... Via apenas sombras, só podia sentir a dor. Num breve momento de lucidez,
tive a certeza de que iria morrer confirmada ao ouvir uma voz muito distante...
― Não toque nela, não tem como ter sobrevivido...
5

Despertar Violento
Acordei com meu despertador tocando na beira da cama. Desliguei e fui até meu banheiro tomar
banho. Senti cheiro de café vindo da cozinha, entrei no quarto de Leonard para chamá-lo, mas ele não
estava lá. Seu quarto estava diferente, as caixas de brinquedo no canto haviam sido trocadas por um
computador e a cama estava com uma colcha diferente. Voltei ao meu quarto e reparei que não havia
mais cama, só havia uma escrivaninha no canto com uma foto. Corri até a cozinha para perguntar a
mamãe o que estava acontecendo e eu tive um choque ao chegar à cozinha. Meu irmão estava grande,
quase adulto, sentado e tomando uma xícara de café, meu pai estava enrugado com cabelos brancos e
expressão triste, e minha mãe também. Eu os chamei, mas a minha voz tinha sumido. Tentei tocá-los,
mas eu não conseguia chegar perto. Voltei correndo ao meu quarto, a foto que estava na mesa era
minha, eu tinha tirado aquela foto com a câmera de Lucy no verão. Na escrivaninha tinham vários
artigos de jornais escritos “Jovem desaparecida ainda não encontrada”, eram fotos minhas nos
jornais. Comecei a revirá-los até achar um jornal “Corpo de jovem desaparecida encontrado nos
fundos de um antiquário, dono é principal suspeito de assassinato” Eu não conseguia acreditar! Eu
estava aqui! Como isso tinha acontecido?

Acordei gritando, a dor me consumiu e perdi o ar. Ewren estava ao meu lado sentado.
― PARE! Por favor, não se mexa! ― ele disse, me segurando na cama. Outro homem entrou no
quarto, ele tinha o cabelo curto castanho, era forte e tinha um jeito de galã de novela. Pelas orelhas
achei que era elfo também.
― Que bom que você acordou! Quase não tínhamos esperanças de você sobreviver! ― ele disse,
olhando meus olhos com uma pequena lanterna. ― Como se sente, Leona? ― ele perguntou.
― Horrível! ― mal pude escutar minha própria voz, a dor estava por todos os lados.
― Bom, para alguém que pulou de seis andares, você está ótima, apesar de estar com fraturas em
praticamente cada osso do seu corpo. Mas agora que você já acordou, eu posso te oferecer uma
solução para a dor! ― disse ele olhando em uma pequena escrivaninha.
― Não! ― disse Ewren levantando e segurando o braço dele ― Não pode dar isso a ela!
― Isso ou ela vai ficar meses nessa cama até as fraturas curarem, na melhor das hipóteses, é
claro, pois não tem muitas chances de ela voltar a andar depois de uma fratura na coluna! ― disse
ele a Ewren. Ewren saiu bufando do quarto. Feroz estava deitado ao pé da cama. O lugar parecia
uma enfermaria gigante.
― Onde estou? ― perguntei, minha voz saiu tão baixa que não sabia se ele tinha me escutado.
― Em Lótus Vale. ― disse ele ― Algumas horas de viajem para frente do porto da Besta Santa.
― Você é um elfo? ― ele riu.
― Não, um silfo. ― até onde eu sabia, silfos são elementais do vento. Mas estava com muita dor
para perguntar se estava certa. ― Leona você tem duas opções, esperar por uma recuperação lenta e
dolorosa ou se recuperar em dois dias com um remédio... diferente! ― ele fez uma pausa e ficou
esperando eu dizer algo.
― Que remédio? ― perguntei.
― Bom, é bem desagradável, mas corta a dor imediatamente e cura rápido.
― Que remédio? ― repeti.
― É sangue de aswang.
― Que?
― Sangue de aswang. Aswang é um monstro, uma mistura de bruxa com vampiro, mas o sangue
deles possui propriedades curativas e regenerativas quase imediatas.
― Tem efeitos colaterais? ― perguntei, porém a dor era tanta que eu não me importava em tomar
qualquer coisa para melhorar.
― Hum... ― ele olhou para mim ― seu corpo pode ficar diferente...
― Diferente tipo, ganhar chifres ou alguns olhos extras? ― ele riu novamente.
― Não, não, você vai ficar com uma aparência mais adulta por causa dos agentes presentes no
sangue do Aswang, sua resistência física vai aumentar muito e você pode ficar um pouco mais
hostil... ― disse ele gentilmente olhando para mim com cautela.
― O quanto mais hostil? ― eu perguntei.
― O suficiente para arrancar a cabeça de alguém que tocar na sua comida se estiver com fome!
― eu suspirei, isso eu já fazia, então podia lidar com essa parte.
― Mas a parte da hostilidade não é certo, não é?
― Não, mas as chances são muito grandes! ― eu pensei de novo. Quando respirei fundo, uma dor
agonizante me fez perder o ar e me dobrar ao meio. ― Costelas quebradas ― disse ele. Eu abri a
mão o máximo que pude e gesticulei para ele me dar o frasco.
Ele me deu o frasco com um líquido roxo viscoso.
― Tampe o nariz, pois você vai sentir vontade de vomitar! ― disse ele, eu já havia tomado uma
dose de conhaque e não imaginava algo tão ruim quanto aquilo. Virei o conteúdo do vidro em uma
golada só! Tive que segurar para o líquido não voltar, era realmente horrível, não podia nem
imaginar algo tão ruim para comparar. O Silfo sentou na beirada da cama com uma tigelinha de vidro
com algo marrom e cremoso dentro, ele pegou uma colher, pegou um pouco do doce e trouxe em
direção a minha boca. ― tome esse para tirar o gosto! ― eu obedeci imediatamente e comi. Era
mousse de chocolate! O gosto ruim se foi na segunda colherada e fiquei nas nuvens. Depois da última
colherada do doce, mal fechei os olhos e já estava no mundo dos sonhos.
Acordei pouco depois, parecia que fazia pouco tempo que havia pegado no sono, porém estava
me sentindo maravilhosa! Como se eu tivesse dormido em uma nuvem. Levantei-me devagar para ter
certeza de que estava tudo no lugar, eu parecia diferente, um pouco mais pesada e meio desajeitada
ao andar, fui até o final da sala esperando que a porta estreita fosse um banheiro, andei lentamente
para ter certeza que não iria cair e era mesmo um banheiro. Havia um grande espelho na parede.
Lavei meu rosto e quando olhei meu reflexo, eu tomei um susto. Meu corpo estava totalmente
diferente, eu não parecia mais uma atleta de natação! Meu cabelo que antes batia um pouco abaixo
dos ombros estava quase na altura dos joelhos. Foi como se eu tivesse dormido e acordado alguns
anos depois, o problema é que as marcas no meu braço esquerdo também estavam lá, mas agora elas
subiam do braço, passavam pelo ombro e acabavam na minha nuca e eram quase da cor da minha
pele. ― saí do banheiro, o silfo estava de pé do outro lado da sala me esperando e olhando para
mim. Eu estava com uma expressão boba e alegre no rosto.
― Eu disse que ficaria diferente. ― disse ele olhando para mim.
― Como? ― perguntei.
― Para consertar seu corpo, o sangue de Aswang só pode ser usado uma vez, ele acelera o seu
tempo para consertar tudo mais rápido, esse é o corpo que você só teria com uns vinte anos de idade
talvez.
― Ah, agora entendi por que o cabelo cresceu. ― disse passando a mão em meu cabelo, sem
falar de todo o resto que mudou. ― Bom, foram três dias de restauração...
― TRÊS DIAS? ― gritei.
― É, você ficou desacordada por cinco dias até eu poder te dar o sangue de aswang, depois você
dormiu por mais três para se recuperar!
― Então estou aqui há muito tempo! ― eu estava muito atrasada e tinha que voltar para casa o
mais rápido possível, pois iriam sentir minha falta logo. ― Desculpe, mas como é seu nome? ―
Perguntei olhando para o silfo, estava envergonhada.
― Aeban, General Aeban do exército de Lótus! ― ele apertou a minha mão. Podia sentir um
afeto por ele que não podia explicar.
― Aeban, pode me dizer, por favor, onde está Ewren?
― Está na sala ao lado. ― ele apontou para a esquerda. ― Vou estar na minha sala se precisarem
de mim! ― disse saindo pela porta e fechando-a, procurei minhas roupas e vesti a primeira que
peguei, o vestido que comprei na cidade de Castal, ele ficou um pouco apertado mas ainda coube.
Procurei por uma tesoura pela enfermaria e encontrei uma num armário debaixo da pia do banheiro,
amei o cabelo, mas tão longo assim ia me dar trabalho desnecessário para o resto da viagem e já
seria muito difícil disfarçar o corpo, então cortei o cabelo na altura da cintura, com dó de deixar do
mesmo tamanho que era antes.
Saí dali e vi a porta da sala que Aeban havia dito, estava entreaberta, Ewren estava sentado numa
poltrona acariciando a cabeça de Feroz, que pulou do colo dele para me receber.
― Oi bichinho fofo! ― peguei Feroz no colo e apertei meu rosto em sua carinha macia, seu peso
havia mudado drasticamente, estava leve como um gatinho doméstico, o remédio havia mesmo
aumentado minha força e pude constatar isso o segurando. Ewren estava sério olhando para mim, ele
se levantou e pegou o conjunto de cristais que eu havia comprado na loja da velhinha.
― Eu limpei o sangue... ― disse ele colocando o conjunto em mim ― prefiro evitar um surto de
raiva sua agora, se os cristais purificam elfos, devem purificar humanos também! ― -Tive um
calafrio quando suas mãos tocaram em meu pescoço e segurei o cabelo para que ele pudesse fechar o
colar.
― Obrigada. ― agradeci lhe dando um sorriso tímido.
― Poderia me explicar o que aconteceu? Quer dizer, por que você pulou do prédio? Estava com
tanta raiva de mim assim? ― eu o olhei espantada.
― O que? Como você é egocêntrico! Por que faria isso por estar com raiva de alguém? ― minha
resposta o deixou atordoado.
― Você quase morreu, Leona! ― ele estava quase gritando.
― EI! Pode parar! Eu pulei para tentar não morrer! ― esbravejei em resposta. Ele pareceu ainda
mais confuso com minhas palavras, voltou a sentar e ficou olhando para mim esperando uma
explicação. ― Olha, saí e fui para o telhado tomar um ar, quando cheguei lá, alguns instantes depois
apareceu um lobisomem horrível...
― Pera aí, um lobisomem? Em Porto da Besta Santa? ― perguntou ele usando um tom sarcástico,
não acreditando em mim.
― É! Um lobisomem, ele chegou e falou que reconhecia o meu cheiro, me chamou de Lupine e
quando eu disse que não era ela, ele começou a avançar pra cima de mim. Foi aí que eu pulei! ― Eu
terminei de dizer e Ewren estava pálido.
― Como era ele?
― Preto, peludo, olhos vermelhos e dentes grandes.
― Detalhes, Leona! ― ele estava de pé novamente.
― Hum... Tinha cicatrizes no focinho e faltava metade de uma orelha.
― Black Jango! ― Ewren disse este nome como se estivesse cuspindo algo.
― Quem seria esse?
― O Lobisomem, Black Jango, líder da matilha de Lobisomens Mercenários ― Ewren parecia
mais assustador que o lobisomem naquele momento. Aeban entrou no quarto.
― Está tudo bem? ― ele perguntou olhando Ewren andar de um lado para o outro.
― Hum... Não sei dizer ― eu também estava olhando preocupada para Ewren.
― Aeban! O que sabe sobre Black J.? ― O lobisomem? Ele está a serviço do Mago Arcadius.
Dizem que Arcadius está monitorando as raças mais hostis e montando um exército para algum
propósito que desconhecemos, estamos o procurando há muito tempo e ainda não temos pistas de seu
paradeiro. Mas tenho quase certeza sobre Black J. estar a serviço dele! Por quê?
― Ele veio atrás de Leona no Porto da Besta Santa! ― Ewren estava olhando para mim.
― Mas por que ele estaria atrás dela? É só uma humana! ― Aeban parecia tão confuso quanto
eu.
― Não é não. É uma maga e de origem desconhecida! ― disse Ewren nervoso dando um olhar
significativo a Aeban. Origem desconhecida? Eu que não entendi nada agora.
― oh! Aí muda tudo! ― disse Aeban pensativo.
― Eu ainda não entendi... ― disse olhando os dois parados e pensando.
― Leona, magas humanas são muito raras, e se for uma maga humana pura, de uma linhagem
específica, pode ser ainda mais perigosa e útil... ― disse Aeban olhando para mim pensativo, ele
ficou estranho de repente, observando-me da cabeça aos pés.
― Mas não vamos falar disso agora! ― disse Ewren quebrando a concentração de Aeban. ―
Nós estamos muito atrasados, precisamos seguir viagem!
― O caminho é mais perigoso a partir de agora, Ewren, sugiro a você levar um guarda com
vocês! ― Aeban estava oferecendo escolta para nós e ele parecia estranhamente preocupado.
― Não, uma pessoa a mais só causaria problemas! E ainda teremos que passar pelas Montanhas
de Jade, vai chamar uma atenção desnecessária se for um grupo maior!
― Se você se garante... ― disse Aeban ― Já volto, espere mais um minuto! ― ele saiu da sala
em passadas leves e rápidas.
― Está se sentindo bem para continuar? ― Ewren estava olhando-me cautelosamente.
― Claro! Estou ótima, quanto mais cedo sairmos, mais cedo eu chego em casa! ― disse. Ewren
virou-se para a janela e pareceu magoado por um segundo, mas eu não liguei, deve ter sido coisa da
minha cabeça. Aeban entrou na sala trazendo algo nas mãos.
― Aqui Leona! ― ele esticou a mão para que eu pudesse pegar. Era uma fina corrente de ouro e
um pingente minúsculo de madeira pintado de branco, em uma ponta era fino e na outra parecia uma
armação delicada de pequenas raízes em volta de uma gema vermelha.
― O que é? ― perguntei.
― Um cajado de jaspe vermelho. Ajuda a canalizar as energias para você usar a sua magia!
― disse ele ― Coloque-o sobre a palma esquerda e feche a mão. ― eu o fiz, uma luz saiu da minha
mão fechada e o pingente cresceu até ficar um pouco maior do que eu. Olhei-me no reflexo na janela
e as marcas haviam voltado.
― O que são essas marcas? ― perguntei.
― Elas são a prova da sua linhagem, mostram aos outros o que você é e a qual família
pertence ― Aeban parecia intrigado, chegou tão perto que pude ouvir seu coração bater, ele estava
olhando a flor em minha testa ― essa marca na sua testa ... Não, não pode ser! ― disse ele
sacudindo a cabeça.
― O que eu posso fazer? ― perguntei olhando novamente o cajado branco com a pedra vermelha
na ponta.
― O que seu nível de poder permitir... Na verdade tente fazer magia com coisas já existentes, por
exemplo, transformar pedra em ouro. ― disse ele.
Eu olhei o cajado novamente e imaginei um enorme pote de sorvete de milho verde com calda de
chocolate, olhei para uma caixinha de balas que estava em cima da mesa e senti como se uma
pequena corrente elétrica passasse de mim até a caixa, então imediatamente ela se transformou em um
pote de vidro enorme e cheio de sorvete com calda.
― Incrível! ― eu disse quando troquei o cajado de mão para comer o sorvete, ele encolheu e
voltou a ser um pingente.
― Quando você o muda de mão, ele volta a ser um pingente. ― disse Aeban. Eu comi o sorvete
com tanta felicidade que quase saíram lágrimas dos meus olhos, Ewren estava rindo.
― Você só pensa em comida? ― ele estava observando-me comer.
― Interessante... ― disse Aeban, saindo sério do quarto e olhando discretamente de canto de
olho para mim.
Ewren virou-se novamente para mim e ficou olhando o pequeno pingente-cajado em meu pescoço.
― De agora em diante teremos que deixar o cavalo e continuar a pé. ― Ewren parecia cansado e
pensativo. ― Temos muita bagagem para levar! ― eu terminei de tomar o sorvete, peguei o cajado
com a mão esquerda e observei o cômodo, havia uma poltrona vermelha de veludo embaixo da janela
perto de Ewren, num instante fiz a cadeira encolher ao tamanho de uma bolinha de tênis de mesa.
Ewren olhou para mim com um olhar debochado.
― Perfeito, faça isso no meio da floresta à noite para fazer as bagagens crescerem de novo, pois
quando você usa seus poderes, seu sangue cheira a magia a uns dez quilômetros de distância, nem vai
chamar atenção! ― Ele fazia uma careta que não conseguia traduzir, me senti triste e sabia que teria
que carregar peso também quando Ewren mudou sua expressão e pegou meu braço.
― Tive uma ideia! ― disse ele me arrastando para uma sala onde Aeban estava sentado atrás de
uma mesa, ele nos olhou com curiosidade.
― Hum... Precisam de alguma coisa? ― perguntou Aeban parecendo tão confuso quanto eu.
― Na verdade sim, Aeban, você ainda teria a Lupa de Andir? ― Aeban ficou surpreso com a
pergunta de Ewren.
― Como sabe que eu a tenho?
― Sou um mercenário, sei onde os tesouros mais raros se escondem, Aeban! ― Aeban se
levantou e andou até um armário, subiu em uma pequena escada de madeira e da prateleira mais alta,
tirou uma caixa que parecia ser feita de pétalas de flores costuradas umas às outras com fios de ouro.
De dentro ele tirou uma pequena lupa branca delicadamente trabalhada.
― É, um item muito valioso! ― disse Aeban sem tirar os olhos da lupa. ― Para que você a
quer?
― Para levarmos a bagagem sem precisar do meu cavalo, irei deixá-lo aqui, depois volto para
buscá-lo! ― Aeban parecia desconfiado.
― Desculpem, mas em que a lupa nos ajudaria com a bagagem? ― disse olhando o objeto que
estava sendo quase esmagado pelas mãos grandes de Aeban, ele olhou para mim e desviou o olhar
como se tentasse se lembrar de algo.
― Essa não é uma lupa comum, foi feita por um Gigante chamado Terminus que se apaixonou por
uma silfa, pelo seu tamanho ele nunca poderia ficar junto dela, a silfa chamada Fylgiar correspondia
ao amor dele, mas também sabia que nunca poderiam ficar juntos. Um dia uma fada viu o sofrimento
deles, pegou o pó das fadas e jogou sobre o gigante, que na mesma hora encolheu, Terminus e Fylgiar
ficaram juntos por um dia e uma noite, porém no dia seguinte Terminus tornou a crescer. Ele ficou
furioso, queria de qualquer modo voltar ao tamanho de Fylgiar para poder ficar com ela novamente,
então ele invadiu uma vila de fadas, matou todas elas, retirou a carne de seus ossos e usou os crânios
para fazer a moldura da lupa e os ossos para fazer o cabo, com os cabelos das fadas ele trançou, fez
uma rede fina, mergulhou-a no lago dos olhos e ela se transformou nessa lente. Quando ficou pronta,
ele apontou a lupa para si e virou a face dos crânios em sua direção, fazendo-o encolher. ― Aeban
fez uma pausa e olhou com dó a frágil estrutura da lupa ― Quando Terminus contou a Fylgiar como
havia feito para encolher, ela o desprezou e fugiu, ele enfurecido, a seguiu até outra vila de fadas,
onde Fylgiar havia contado sobre o feito de Terminus, as fadas enfurecidas amaldiçoaram Terminus,
tomaram dele a lupa e o lançaram ao mar das tormentas para ser devorado pelas Sereias. Fylgiar
sentiu-se culpada, então tirou a própria vida e a lupa ficou escondida sob proteção das fadas.
― E como você a conseguiu? ― Ewren parecia insensível à história, mas eu estava segurando as
lágrimas, comovida.
― Quando livrei a vila das Orquídeas de uns lobisomens, as fadas me deram de
presente. ― disse Aeban. ― Você tem que me devolvê-la inteira e segura, Ewren Ascaridian
Lomerius! ― disse ele a Ewren segurando-o no braço com firmeza ― Ou eu vou lhe caçar até o fim
do mundo! ― Ele não parecia mais um ser calmo e também não parecia falar da lupa, Ewren sorriu.
― Estou deixando meu companheiro de séculos como garantia, Espiral irá me esperar aqui e
quando eu vier buscá-lo, você terá a sua lupa! ― Eu não sabia que aquele cavalo era tão velho, nem
muito menos que Ewren fosse apegado a ele a ponto de deixá-lo como garantia por um tesouro como
a lupa, mas por ser mercenário, podia ser um truque e ele poderia fugir com a lupa depois de me
deixar na torre das nuvens.
― Podem levá-la! ― disse Aeban entregando a lupa em minhas mãos ― Guarde com cuidado!
Para encolher objetos vire os crânios para frente e para aumentar, vire-os de costas! ― Aeban me
explicou pausadamente, como se eu fosse incapaz de entender a funcionalidade de um objeto tão
simples. ― Boa viagem, amigos! ― disse ele fazendo uma saudação. Ewren a repetiu e saiu da sala.
― Obrigada por tudo! ― eu disse timidamente ― Espero poder voltar algum dia, em situação
melhor! ― Aeban riu.
― Vai estar de volta antes mesmo do que pensa! ― havia muita certeza em suas palavras.
Saí da sala e fui andando pelo corredor até encontrar uma porta aberta que levava a um enorme
pátio, Ewren estava do outro lado do pátio onde seu cavalo estava deitado em um pequeno círculo no
gramado e uma senhora gritava para ele tirar o animal de cima de suas plantas, o cavalo não parecia
nem um pouco interessado em sair dali. Ewren parecia estar se despedindo dele, me aproximei e
notei pela primeira vez um olhar terno nele.
― Primeira vez que vou deixá-lo para trás numa viajem desde que Emma me deu ele de
presente. ― eu olhei aquele cavalo e ele parecia não notar que seria deixado para trás.
― Você nunca me disse o nome dele! ― eu não sabia o que dizer além disso e Ewren riu.
― Espiral, eu disse na sala de Aeban! ― quando ele disse o nome, o animal olhou para ele e
ficou mexendo as orelhas como se esperasse que Ewren dissesse algo mais ― Emma colocou esse
nome por que ela o encontrou na floresta branca, Espirais de cristal.
― Parece mais nome para um gato do que para um cavalo!
― Verdade... Bom, temos que ir, não é? ― Ewren levantou-se do chão, arrumou a pilha de coisas
para a viagem e as amarrou juntas, eu peguei a lupa e apontei para o fardo amarrado a minha frente
que encolheu até ficar do tamanho de um estojo de canetas. Coloquei-o dentro da bolsa tiracolo de
couro que Ewren havia deixado separada da pilha de coisas, dentro dela só iria o fardo encolhido,
duas garrafas de água e alguns pãezinhos, Ewren não me deixou colocar mais nada para comer pois
desse lado de Amantia haviam mais florestas com árvores frutíferas e rios, então não precisaríamos
de muita comida reserva. Nos dirigimos ao portão da cidade e eu já ia sair andando quando Ewren
segurou meu braço e apontou para o chão.
― O que foi? ― eu olhei para onde ele estava apontando e estávamos pelo menos uns duzentos
metros de altura do chão, eu fiquei tonta e de pernas bambas e agarrei seu braço com força.
― Lótus Vale é uma cidade flutuante... Pode pular se quiser, vai chegar bem rápido ao Vale lá
embaixo! ― Ewren nunca perdia uma oportunidade de uma piadinha sem graça.
― E como vamos descer? ― perguntei.
― Do mesmo jeito que subimos, voando! ― Ewren mudou sua aparência e abriu suas grandes
asas negras, tenho que dizer, mesmo vendo isso várias vezes, ainda me surpreendia. Quando ele me
pegou para descermos, Feroz veio correndo com o que parecia um frango assado gigante na boca e
uma multidão furiosa atrás dele. Feroz se atirou em cima de mim deixando a carne pendurada pelos
dentes e garras, Ewren levantou voo e meu estômago quase afundou com a velocidade que saímos do
chão. Ao pousarmos, Feroz ficou em seu tamanho gigante e engoliu o frango inteiro.
― Acho que ele roubou o almoço dos guardas! ― Ewren parecia divertido e Feroz parecia
muito satisfeito. Eu dei de ombros, já não podia ser feito nada, Feroz engoliu de uma vez,
provavelmente por ter pensado que iríamos tomar dele.
Começamos a andar, a trilha era larga, de um lado, enormes e antigas árvores muito verdes e
floridas faziam a paisagem parecer um bosque encantado, o perfume de suas pequenas flores brancas
era doce, as flores caíam em cachos das copas das árvores e pareciam nuvens. Do outro lado havia
uma plantação e havia algumas mulheres trabalhando a terra úmida. Muitas nos olhavam e acenavam.
(Estavam acenando para Ewren, não para mim, claro!)
― São silfas... ― Ewren parecia não perceber o quanto elas faziam para chamar atenção ― A
maioria das tarefas de plantio e colheita fica por conta delas, elas cantam enquanto trabalham e as
plantas crescem mais rápido e ficam sempre mais bonitas.
― Elas são muito lindas... e bem altas! ― eu me sentia quase anã com meus humildes um metro e
setenta de altura, comparada a elas.
― Silfas e Elfas são muito sem graça! Humanas são temperamentais e bem mais femininas. ― eu
olhei para ele e ele continuava olhando para a frente. De repente senti meu rosto ficar quente e Ewren
riu. ― É mais fácil deixá-las sem graça também. ― Imediatamente amarrei a cara e andei mais
rápido, Feroz se arrastava atrás de mim, com certeza estava passando mal depois de engolir um
frango quase do tamanho de um avestruz. Peguei-o no colo, ele deu uma leve bufada de alívio e
cochilou.
― Ewren? Você notou como Aeban ficou estranho quando viu a marca na minha testa?
― perguntei, ele concordou acenando com a cabeça ― Estava pensando numa coisa que ele disse
agora a pouco na sala, sobre as magas... ― olhei de canto de olho para Ewren e o vi empalidecer
ligeiramente. Ele fez um som para eu continuar a falar ― Quando ele disse sobre magas puras... Ele
quis dizer virgem, certo? ― Agora Ewren havia perdido a cor totalmente.
― Sim... Foi isso que ele quis dizer, por quê? ― a voz dele saiu vacilante.
― Ewren, então meu sangue é realmente mágico? ― ele fechou os olhos e disse um “sim” tão
baixo que quase duvidei que fosse uma resposta.
― Então, quando você ameaçou me vender, você estava falando sério? ― parei de caminhar para
olhar diretamente para ele ― Você disse que se o sangue de pessoas inocentes fosse valioso não
haveria crianças nas cidades! Você mentiu pra mim! ― eu o fulminava com o olhar.
― Não menti, sangue de inocentes e de moças virgens não é valioso, quando eu te disse aquilo
não sabia que você era uma maga! Mas existe a possibilidade do seu sangue não ser amaldiçoado,
pois não eram todas as magas humanas que possuíam esse tipo de sangue ― ele evitava me olhar nos
olhos ― porém, agora a história é outra!
― Por quê? Como assim, amaldiçoado? ― ele coçou a cabeça e resolveu me olhar diretamente.
― Leona, sobre a maldição, eu não sei exatamente, só sei que era uma linhagem específica de
magas que possuíam essa maldição ― disse ele de olhos fechados ― sangue de magos e magas
normais podem ser usados em qualquer tipo de ritual mágico, ele serve para aumentar a eficácia de
qualquer tipo e feitiço e poção, mas o de magas humanas virgens dessa família, Arbarus, se não me
engano, esse é bem diferente... ― ele desviou o olhar novamente.
― Me diga logo então! Pare de enrolar! ― estava ficando nervosa.
― Qualquer um que beber o sangue de uma dessas mulheres, se ela ainda for virgem, pode se
curar de qualquer doença ou qualquer ferimento fatal e pode aumentar seu próprio poder em até cem
vezes! Por isso elas foram caçadas por todos os que descobriam sobre essa maldição do sangue
delas.
― E as meninas que nascem magas? O que acontece com elas? ― ele me encarou novamente
respirando fundo.
― Se elas forem dessa linhagem, como falei, o sangue delas só fica com esse poder, digamos
assim, a partir de certa idade. Então todas as meninas nascidas magas com o símbolo dessa família
eram levadas para o templo ainda bebês para serem criadas pela sacerdotisa e ficavam lá até a idade
adulta, elas eram guardadas pelos melhores exércitos... ― ele deu uma pausa e quando percebeu que
eu não tinha desistido de ouvir a história, suspirou e continuou falando ― Depois de um tempo
começaram as tentativas de invadir os templos para sequestrar essas jovens. Aí ficou complicado.
― Elas morreram? ― perguntei.
― Não, elas fugiram e algumas delas foram para outros mundos.
― Então... Não tem mais nenhuma maga aqui? ― era algo difícil de acreditar.
― Dessa família não, se tiver algumas delas por aqui, devem ter arrumado um modo de quebrar a
maldição ou estão muito bem escondidas, a maioria das magas por aqui são de outras raças ―
Estávamos caminhando novamente e ele parecia menos nervoso agora.
― Então eu sou a única maga humana por aqui agora?
― Provavelmente não, as outras ficam nas vilas dos humanos todo o tempo e esse é um reforço
para te mandar logo para sua casa! Não tem como descobrirmos se seu sangue é normal ou não ―
ele estava muito sério e nervoso novamente.
― Não sabia que no meu mundo existiam magos, achei que fossem só lenda... ― e realmente
eram, assim como todas as criaturas daqui. Parei imediatamente de caminhar ― Isso quer dizer que
não sou filha dos meus pais? ― estava chocada. Eu fui adotada? Ou fui trocada na maternidade e na
verdade seria filha de um casal de magos?
― O Lobisomem sentiu o cheiro parecido com o de sua mãe, e você está aqui há muito tempo
para o cheio do contato dela ter continuado em você. ― quando ele me disse isso, outra explicação
me veio à cabeça, porém mais difícil de aceitar.
― Minha mãe traiu o marido dela! ― eu cobri a boca, eu já tinha essa desconfiança que Nigel
não era meu pai, pois não nos parecíamos em nada, mas sempre achei que fosse bobagem da minha
cabeça e que eu havia puxado tudo por parte de mãe.
― Bom, não posso afirmar isso, não conheço seus pais. ― ele estava andando novamente de
olhos fechados.
― Mas, dois humanos normais podem ter filhos magos?
― Não, é uma herança genética direta, um dos dois tem que ser mago!
― Então meu pai é um mago! ― eu estava tentando imaginar um pai mago fazendo coisas
explodirem em casa para divertir os filhos bebês ― Seria divertido ter um pai mago!
― Mas o Lobisomem conhece sua mãe... ― Ele sussurrou, como se quisesse que eu entendesse
alguma coisa, me fez parar e pensar novamente. Minha mãe nunca adoecia, nunca se machucava e a
aparência dela não mudou nas fotos da família desde que nasci.
― Ewren, minha mãe é daqui! ― ele parou de andar para me olhar.
― Talvez o Lobisomem possa ter conhecido ela enquanto ainda estava em forma humana, andando
pelo seu mundo a procura de coisas valiosas para roubar. Os Lobisomens eram os que mais
atravessavam os portais para roubar coisas dos outros mundos. ― seu rosto estava pálido e eu podia
ver pequenas marcas de suor em suas têmporas.
― Talvez... ― a loja de minha mãe realmente era visitada por muitas pessoas estranhas. Mas
continuava com algo me incomodando lá no fundo.
Ficamos em silêncio por um bom tempo. Continuei pensando, a ideia não saía de minha cabeça,
então resolvi perguntar novamente.
― Ewren? E se um Mago Élfico, por exemplo, tiver uma filha com uma humana comum? ― ele
encolheu os ombros.
― Humm ― ele resmungou coçando a cabeça novamente, ele devia ter achado que eu desistiria
dessa conversa.
― Tem várias possibilidades, uma é a criança nascer híbrida, com características das duas raças,
mas essa é a que ocorre com menos frequência, é raro acontecer isso, outra é a criança nascer
totalmente humana com ou sem poderes, ou élfica com ou sem poderes, mas no caso que você citou, é
mais provável a criança nascer élfica.
― Por quê?
― O mais forte que é o dominante quando se diz respeito aos filhos, no caso que você usou de
exemplo, o que é mais forte são os genes do mago élfico, então o mais provável é que o bebê
nasceria élfico, com ou sem poderes de mago, quase nunca nasce um bebê humano num casal que um
é humano e o outro não é, menos ainda um bebê humano com poderes.
― Nunca aconteceu isso então?
― De vez em quando acontece, mas é muito, muito raro. ― ele tentou encerrar o assunto ali.
― Não consegui entender ainda essa história de gene dominante!
― Você não é muito inteligente mesmo, não é? ― ele riu, eu bufei e fiquei em silêncio para ver se
ele iria me explicar melhor. ― Por exemplo, se você tivesse um filho comigo, é maior a chance de
ele nascer élfico do que nascer humano, por você ser uma maga, talvez um elfo com poderes de
mago, ou híbrido, mas dificilmente um bebê humano ― Eu corei e meu rosto começou a esquentar
quando ele disse isso.
― Não podia ter dado outro exemplo? ― eu estava muito vermelha e meu rosto ardia, deixei-o
passar a minha frente no caminho e ele me ignorou e continuou a caminhar, porém vi um sorriso de
lado no seu rosto. Ele fazia de propósito para me deixar constrangida.
Andamos desde a hora do almoço até o fim do entardecer, ainda estava claro com os sóis se
pondo e eu estava com muita fome a essa altura. Paramos na beira de um rio, Ewren com certeza iria
pescar, então recolhi lenha e a empilhei para fazer uma fogueira, peguei a Lupa de fadas de dentro da
bolsa e aumentei as bagagens, peguei um vestido longo de lã e meu kit de banho, estava ficando muito
frio, então, quando Ewren voltasse, eu iria me enfiar dentro do rio. Deixei a fogueira acesa e esperei,
não demorou muito para Ewren aparecer com três peixes grandes já limpos e temperados e os
colocou no fogo. Eu caminhei com cuidado até a beira do rio, era largo e a correnteza estava forte,
Feroz me seguia e sentou na beirada me esperando, tirei a roupa e pulei dentro da água de uma vez só
para não sentir tanto a friagem, foi meio inútil, pois até minha alma doeu, a água estava gelada e meus
dentes batiam mesmo tentando mantê-los apertados.
― Quer entrar, Feroz? A água está uma delícia! ― disse com meus dentes batendo tanto que nem
tenho certeza se as palavras saíram como meu cérebro as ordenou. Quando fui sair do rio, Feroz
ficou em pé de um pulo e começou a rosnar alto. Me virei para a direção que ele estava olhando e
havia uma garotinha passando boiando a menos de dez metros de mim na parte mais funda do rio,
quando fui pegá-la, Ewren me puxou pelo braço para fora do rio e me empurrou para as pedras,
Feroz passou à minha frente como se fosse para me proteger e então a garota se levantou, seu rosto
estava em carne viva, os olhos vermelhos pareciam de fogo e tinha dentes enormes e pontiagudos. De
onde ela estava, saíram tentáculos e começaram a se mover em direção à margem.
― Vá para perto do fogo! Rápido! E tampe os ouvidos! ― peguei minha roupa e corri de volta
para onde estava a fogueira. Feroz ficou com Ewren, depois de alguns segundos de silêncio eu ouvi
um som horrível de algo rasgando e um guincho de congelar a alma. Ewren veio com feroz em seus
calcanhares.
― O que era aquilo?
― Um aswang recém-nascido. Por isso a aparência de podre... ― Ewren ficou parado onde
estava olhando para mim, eu não entendia o que ele estava olhando surpreso.
― O que houve, você está bem? ― eu estava encolhida perto do fogo e me levantei achando que
ele havia se ferido, quando eu levantei, ele sorriu.
― Vai me agradecer? ― foi pelo tom de maldade nas palavras dele que notei que saí com tanto
medo de perto deles no rio que nem terminei de me vestir, estava apenas enrolada no vestido. Eu me
virei de costas e coloquei o vestido. Meu rosto deve ter ficado roxo naquele momento.
― Você é muito maldoso! ― eu reclamei me virando de volta, Ewren estava sentado no chão
perto da fogueira olhando para mim e aquele sorriso ainda estava em seu rosto.
― Pare de fazer essa cara! ― eu resmunguei sentando o mais distante possível da fogueira e me
encolhendo novamente.
― O Sangue de Aswang que você tomou fez muitas melhorias, hein! ― Ewren era mais
assustador elogiando do que quando estava ofendendo, queria jogar algo nele, mas não tinha nada em
meu alcance.
― Cala a boca! O que aquela coisa estava fazendo lá? ― perguntei apontando em direção ao rio,
tentando de qualquer jeito mudar de assunto e fazer a cor de meu rosto voltar ao normal.
― Hum, estamos em Edro, esqueceu? Território noventa por cento hostil. ― eu peguei o meu
peixe e o chá amargo e fiquei encolhida comendo enquanto Ewren dava a comida dele para Feroz.
― Não está com fome? ― perguntei o vendo dar os dois peixes restantes a Feroz.
― Não, o cheiro daquela criatura normalmente me tira o apetite! ― Ewren colocou mais alguns
gravetos na fogueira e deitou de lado, olhando para mim. Eu estava com sono, cansada e agora,
envergonhada. Ia demorar dias para essa cena sair da minha cabeça.
― Por aqui não tem cidades onde possamos passar a noite? ― perguntei olhando a floresta
escura em volta e sentindo arrepios.
― Por quê? Quer me trancar em um quarto com você? ― os olhos dele pareciam mais divertidos
do que nunca ― Dá para fazer muita coisa ao ar livre, é mais divertido! ― senti um calor
desconhecido e corei novamente.
― Porque não estou me sentindo muito bem nessa floresta! ― minha resposta saiu mais grossa
do que eu pretendia, mas fez aquele brilho desaparecer dos olhos de Ewren.
― As cidades mais calmas estão muito fora de rota no momento, pela floresta é mais rápido e
mais seguro, quanto menos “gente” nos ver, menos perigoso será para você, pois se você não
percebeu, as suas marcas de maga agora estão sempre aparentes mesmo que quase da cor da pele,
mas aparecem e se isso não bastar, você chamou atenção de um Lobisomem muito perigoso! ― ah,
droga! Ainda tinha mais essa, tapar as marcas com maquiagem! Respirei fundo e tentei não pensar
nisso agora.
― Mas não vamos passar por nenhuma cidade?
― Ah... Bom, iremos passar por Arcádia, talvez possamos parar um pouco por lá, mas, nessa
época deve estar tudo congelado!
― Hum... ― Ewren continuou falando algo, mas eu não prestei mais atenção, Feroz estava em
seu tamanho normal deitado atrás de mim, seu pelo quentinho e macio me fez pegar no sono mais
rápido do que o normal.
Ainda não havia clareado totalmente quando Ewren me acordou, eu ia dar bom dia quanto ele me
puxou da cama, tapou minha boca e fez um sinal para que eu ficasse quieta. Eu usei a lupa para
encolher as bagagens e as coloquei dentro de minha bolsa, Ewren fez um sinal para que eu montasse
em Feroz, que estava abaixado como se esperasse que nos sentássemos em suas costas. Ewren
montou atrás de mim e feroz começou a correr tão silenciosamente que eu só escutava o roçar de seus
pelos em minha roupa. Ewren estava sério e olhava para os lados, a neblina estava tão densa que eu
não podia ver nem um metro a nossa frente. Ficamos em silêncio por um longo período até chegarmos
a uma parte menos fechada da floresta, notei que ali havia geado, pois o chão estava coberto por uma
fina camada de gelo.
― Acho que é seguro falar agora. ― Meu coração disparou quando a voz de Ewren quebrou o
silêncio.
― Que susto! Não faça mais isso! ― resmunguei ― Por que saímos correndo? ― perguntei
tentando descer meu coração da garganta de volta ao peito.
― Lembra do bichinho do rio?
― Com certeza! ― falei tentando afastar aquela imagem da criatura da cabeça.
― Estávamos a menos de dez metros de um ninho cheio deles. ― Ewren parecia mais calmo.
― Como você não sentiu o cheiro do ninho?
― O ninho estava coberto por hera perfumada para espantar predadores e Aswangs são como
minhocas, você vê um, e quando se olha bem, eles estão embolados juntos... ― quando ele falou
isso, eu imaginei um monte de aswangs se contorcendo juntos no chão, foi uma imagem mental muito
engraçada, na verdade, só perdeu a graça quando eu os imaginei almoçando juntos, e que predadores
naturais um aswang poderia ter? Fiquei com muito medo para imaginar.
― Entendi... Então, saímos da floresta?
― Vamos ter que parar em Arcádia e traçar uma nova rota bem longe de rios. O problema é que
esta região é muito cheia deles...
― Quantas horas até chegar à cidade de Arcádia? ― perguntei ansiosa.
― Horas? ― Ewren riu-se ― Pelo menos dois dias de subida. ― Ewren apontou para uma
montanha branca, no alto da montanha havia uma nuvem rosada. Meu estômago afundou.
― E antes que você pergunte, é território de dríades e Nagas. Não podemos ir voando!
― Bom, dríades eu até sei o que são, são aquelas criaturas que nascem com as árvores e morrem
com elas, certo? Mas, e nagas?
― Certo, e Nagas são metade humanos e metade serpente.
― Sério, porque todos os monstros mais estranhos são metade homem e metade algum bicho?
Porque o homem está sempre metido no meio dessas coisas sobrenaturais? ― eu sempre achei
estranhas essas ligações entre homem com seres sobrenaturais.
― Só são sobrenaturais no seu mundo, eu também sou um sobrenatural para você, e porque o
homem é o único ser que não respeita as leis da natureza desde o início dos tempos, fora as mulheres
que são atentadas e teimosas!
― Ei!
― A maioria das criaturas estranhas surgiu porque homens se uniram a criaturas não humanas,
formando híbridos, antigamente isso era mais fácil, como te contei ontem, hoje quase não nascem
híbridos, foram os magos que impediram de eles nascerem misturados para evitar que novas criaturas
continuassem a surgir. Quase todas as criaturas existentes já estavam nos mundos quando o homem
apareceu. Sinto muito dizer, mas sua raça é devastadora e destrói tudo que pode. Só os humanos que
vivem aqui aprenderam a manter as coisas vivas e não, as destruir.
Nós estávamos conversando tão entretidos que nem percebi que já estávamos no pé da montanha e
subíamos com calma, olhei a trilha estreita da montanha, as árvores antigas da floresta em torno dela
e ao longe um lago cujas águas deviam estar muito geladas.
Ewren ia andando lentamente na frente e Feroz parecia divertir-se com a subida. Eu já estava
faminta e ainda não devia estar na hora do almoço. O silêncio da viagem só era quebrado pelos sons
dos nossos passos ou, de vez em quando, rosnados de Feroz para animaizinhos que se escondiam
atrás das pedras. Eu estava a metros de distância de Ewren, cansada e me arrastando. Ele olhou para
trás depois de algum tempo e sorriu.
― Esqueci que não tomamos café! ― ele voltou alguns passos até onde eu estava e pegou a lupa
e a bolsa enquanto eu me sentava em uma pedra para descansar. Estava começando a ficar muito frio,
minhas unhas estavam em um tom de roxo nada bonito. Peguei a bolsa onde estavam minhas roupas e
vesti o poncho longo. Não sabia o que Ewren iria fazer já que não tinha nenhum rio aqui para pescar
e nem árvores para recolher lenha.
― Leona, você é uma maga, sabia? Se você quiser fazer uma pilha de lenha surgir na sua frente
daquela grama queimada, seria uma boa coisa! ― disse Ewren pegando uma bolsa térmica com
pedaços de carne congelada dentro.
― Mas você disse que era perigoso fazer qualquer tipo de magia fora das cidades seguras!
― Aqui está bem seguro no momento! ― ele moveu os braços mostrando a montanha deserta em
torno de nós. Peguei o colar com o pingente e segurei o cajado com a mão, fechei meus olhos e
concentrei minha mente em uma pilha seca de lenha. Onde estava um bolo de grama queimado pelo
frio, apareceu uma fogueira acesa. As marcas em meus braços brilhavam bem mais forte do que na
última vez.
― É, parece que quanto mais longe de áreas seguras, mais forte fica seu poder. ― disse Ewren
colocando pedaços de carne nos espetos para assar.
― Hum, tipo, mais perigoso e mais forte? ― ele olhou pra mim com certa desconfiança.
― Acho que mais forte e mais atraente a monstros seria a pergunta certa. ― a carne bem
temperada assando fazia meu estômago doer. Da sacola, Ewren tirou duas pequenas garrafas escuras
tampadas com rolha.
― O que é isso? ― perguntei timidamente.
― Cerveja escura. ― eu estava imaginando alguma poção sinistra.
― Posso ficar com uma? ― eu havia bebido uma vez com Lucy na casa dela quando seus pais
estavam de férias e ela estava só em casa.
― Tem certeza? Pode te fazer mal e eu não quero ter que te arrastar caindo de bêbada montanha
acima! ― Ewren tinha o dom de me irritar profundamente, tinha vezes que desejava ser mais forte
do que ele para poder dar-lhe uns tapas.
― Claro! Eu não fico bêbada facilmente! ― ele ergueu as mãos num gesto de rendição e me
passou uma garrafa, devia ter pouco menos de meio litro naquela garrafinha, então comemos carne
assada e tomamos aquela estranha cerveja com um leve gosto de maçã.
― Por que parece que tem maçã aqui? ― perguntei sentindo tudo a minha volta um pouco mais
brilhante.
― Pois tem suco de maçã junto, eu sabia que você ia pedir e misturei suco de maçã em uma para
ficar mais fraco.
― Eu não sou criança, já pedi para não me tratar como uma! ― sentia como se meu corpo
pesasse menos de um quilo e estava mais aquecida. Ewren começou a rir, o sorriso dele parecia mais
lindo hoje...
― Não é criança, mas age como uma, e se eu não tivesse misturado suco, você estaria desmaiada
agora, se já está tonta assim... ― eu fiz um gesto para que ele se calasse e me levantei.
― Não estou tonta, estou ótima! ― andei tranquilamente ao que me parecia ser em linha reta. Dei
uma volta, me sentei pesadamente no chão e bebi o resto da cerveja em uma golada. Ewren riu mais
ainda e deu o resto da carne para Feroz, que me olhava com curiosidade.
― Leona? ― Ewren chamou e eu escutei sua voz tão distante. Quando abri os olhos, estava
começando a escurecer. Ewren me deu um tapa na testa, tentei me levantar, mas ele me impediu, eu
estava deitada em cima de Feroz e havia muita neve ao nosso redor.
― Onde estamos? ― perguntei, cada letra que eu disse fez minha cabeça doer.
― Na metade da montanha... Você dormiu desde umas onze da manhã até agora, já devem ser
umas cinco e meia da tarde...
― Minha cabeça dói muito. ― eu reclamei esfregando as têmporas.
― Sabe Leona, às vezes eu penso que você faz as coisas para me provocar ou para me irritar! ―
ele parecia aborrecido.
― Hum? ― eu não havia entendido.
― Eu disse “não quero ter que te arrastar caindo de bêbada montanha acima!” e você disse que
não ficava bêbada facilmente, aí você pega a minha garrafa de cerveja, bebe e desmaia! Se eu fosse
mau como você me julga, poderia ter feito qualquer coisa e você nem iria perceber, mas como não
sou mau... ― ele fez uma pausa e ficou por um tempo de olhos fechados ― você fez de propósito,
estava com preguiça de subir andando, não foi? ― ele estava de cara amarrada. Meu rosto ficou
vermelho, isso nunca me passou pela cabeça, embora eu estivesse morrendo de preguiça.
― Nossa, Ewren, você me julga muito mal também! ― disse esfregando o rosto para a cor
vermelha disfarçar.
― Só o fato de você ter ficado corada indica a sua maldade, fez a gente pegar o caminho mais
longo para você não cair de cima de Feroz! ― ele parecia realmente zangado, então resolvi não
discutir.
― Tudo bem, me desculpe! ― eu me sentia mais arrependida pela dor de cabeça que sentia.
― Shh! ― Ewren estava olhando para algumas rochas congeladas a vários metros de nós. Pude
ver um movimento suspeito lá em cima, ele fez um gesto para Feroz, que respondeu jogando-se ao
chão, cavando silenciosamente um bolo de neve e me enterrando junto com ele, fazendo apenas um
buraco para respirar e enxergar Ewren, que estava indo em direção às rochas com a espada na mão e
com aquela assustadora aparência cinzenta. Vi quando algo totalmente branco saiu de trás das rochas,
era enorme, quase um metro maior que Ewren, tinha pelos e dentes grandes e afiados. O monstro
puxou um enorme bastão de gelo e começou a girá-lo, Ewren atacou a criatura, que desviou numa
velocidade incrível e o acertou pelas costas. Ewren mal tocou o chão e já estava de pé atacando o
monstro novamente, dessa vez o ataque acertou, mas o animal ficou muito furioso e jogou Ewren
contra as pedras. Eu comecei a me mexer para tentar sair, mas a neve e Feroz não deixavam, uma
linha de sangue escorria na neve onde Ewren estava caído tentando se levantar.
― Feroz! Se não fizermos alguma coisa, ele pode morrer! ― Feroz pulou para fora da neve e
correu na direção do monstro, eu me levantei com dificuldade, meu corpo parecia estar congelando e
dormente. Feroz mordeu aquela enorme criatura e também foi atirado nas pedras fazendo um som
terrível e não se mexeu mais. Meu coração queimou de raiva. Peguei meu cajado, o ergui para o alto
e fiz uma gigantesca bola de fogo torrar aquela criatura até só sobrar ossos queimados e vapor da
neve derretida ao redor dele. Corri até Ewren e Feroz, o tigre estava gemendo tão baixinho que quase
não se podia ouvir. Ele estava morrendo, Ewren também estava ferido, mas me olhava tão assustado
que nem percebia seus ferimentos.
― Ewren, o que eu faço?! Ele vai morrer! ― quase mal podia achar minha própria voz.
― Use seu poder de cura, você é uma maga! ― ele estava encostado a Feroz.
― Eu não sei como! ― eu chorava com medo e abraçada em Feroz.
― Apenas faça! ― as patas de Feroz começaram a contrair. Eu me levantei, me afastei dos dois
e estiquei minhas mãos para eles. Estava rezando, torcendo para que eles se curassem e ficassem
fortes de novo para continuarem comigo. Ao redor deles apareceu um enorme círculo brilhante com
letras brancas ofuscantes, uma torre de luz saiu dessas letras e eu fiquei temporariamente cega,
quando voltei a enxergar, vi Feroz pequeno no colo de Ewren. Corri, me joguei de joelhos ao lado
deles e passei minha mão no pêlo macio de Feroz.
― Ele está bem, só está dormindo.
― E você? ― estava engolindo o choro com toda a minha força, mal me restou energia para
falar.
― Estou bem... ― Ewren continuava olhando para mim assustado ― você está se sentindo bem?
― ele parecia cauteloso, eu não entendi o porquê da pergunta, talvez por que eu ainda chorava.
― Estou melhor agora... ― uma mecha de cabelo prateado caiu ao lado do meu rosto, me virei
para ver quem estava ao meu lado e a mecha de cabelo se moveu também. Meu cabelo estava
prateado e as marcas do meu braço estavam lilás. Peguei uma bola de neve na mão e a transformei
num pequeno espelho, meus olhos também estavam lilás e as marcas em meu braço brilhavam tanto
que a neve ao meu redor estava colorida, no lugar de minhas unhas tinham garras afiadas, longas e
brancas.
― O que... ― minha voz saiu como um sopro. Logo em seguida voltei ao normal.
― Parece que o sangue de Aswang acelerou o processo de evolução de seus poderes também!
― Ewren finalmente falou depois de muito tempo em silêncio e olhando para mim ― Essa
transformação e a cor das suas marcas são da transformação de magas adultas, mas não tem como
você estar nesse nível ainda! ― ele estava se levantando e limpando a neve da roupa.
― Por que não? ― eu ainda olhava para o espelho, mesmo já estando em minha forma normal.
― A sua aparência era de uma maga completa, adulta, porém seu poder não foi liberado por
completo... ― Ewren foi diminuindo o som de sua voz e estendeu a mão para que eu levantasse,
fiquei me segurando nele por um momento, então peguei Feroz do colo dele e comecei a andar
novamente. Olhei para os restos do monstro do chão e Ewren começou a jogar neve em cima dos
ossos para disfarçar o que havia acontecido.
― Ewren, o que era aquilo?
― Um Yeti... ― Ewren estava estranho, sério, com olhar zangado, eu achei a princípio que fosse
por causa da minha transformação, mas eu não tinha coragem de lhe perguntar o porquê de sua cara
feia, estávamos a salvo agora, Feroz estava bem, dormindo em meu colo e ele não estava mais ferido,
eu havia feito algo útil e os salvado.
― Eu não sei o que é esse bicho, você disse que todos os monstros que nós consideramos mitos e
contos em nosso mundo são reais aqui, mas esse eu nunca ouvi falar... ― Ewren parou e olhou para
trás.
― Nunca ouviu falar do “Abominável homem das neves”?
― Nunca... Eu vivo num lugar quente, lá só tem geada nas regiões mais frias.
― Ele é extremamente forte e muito difícil de matar, eu prefiro enfrentar lobisomens e Aswangs a
enfrentar um Yeti adulto. Os monstros desse mundo fizeram aparições no seu mundo por portais
perdidos, por isso existem as lendas... Provavelmente ainda existem alguns perdidos por lá. ― A
imagem de um Aswang passeando pelas ruas da minha cidade me apavorou. Continuamos a subir até
a noite cair e paramos para acampar e dormir.
A noite estava mil vezes pior, era difícil enxergar um palmo a frente dos olhos e não tinha como
acender a fogueira por causa da forte nevasca que atingia a montanha, fiquei enrolada nas asas de
Ewren novamente e coloquei Feroz entre nós, já que ele ainda não havia despertado, o silêncio era
perturbador, mas como estava muito cansada, resolvi dormir para não perturbar Ewren ainda mais,
pois ele ainda estava muito sério. Fechei os olhos e fiquei em silêncio até o sono me alcançar.
6

Caminhos escuros.
Acordei com calor, estava suando muito, saí devagar para não acordar Ewren ou Feroz,
aparentemente não havia se passado nem três horas desde que peguei no sono, mas eu me sentia mal,
meu coração estava batendo muito rápido e minha garganta estava trancada e eu não sabia como fazer
aquilo parar. Saí de dentro da barraca, estava muito escuro e ventava, mas não havia nem sinal da
neve, peguei meu cajado e fiz a pedra na ponta brilhar para que eu pudesse enxergar, fui caminhando
até a encosta da montanha, já não sabia em qual direção a barraca estava, mas não estava
preocupada, encontrei uma pequena caverna entre as pedras, entrei, me sentei e fiquei ali, olhando
para o teto daquela caverna, minha cabeça doía. Ouvi passos, mas não queria me mexer, não sentia
perigo nenhum em estar ali, um homem se aproximou, sentou-se em minha frente e me encarou.
― Por que tão longe de casa, menina? ― Ele era até bonito, longos cabelos castanhos, tinha
aparência desleixada e sua voz era firme e agradável de se ouvir, porém seu olhar era vazio.
― Eu já não sei mais porque estou aqui, nada está mais fazendo sentido pra mim! ― eu podia
ouvir as palavras saindo de mim, mas não eram minhas palavras.
― Você é uma daquelas meninas do templo, não é? Aquelas que não podem sair de lá... Então,
por que está sozinha aqui? ― eu estava encarando aqueles olhos negros vazios que eram tão
familiares e ao mesmo tempo desconhecidos para mim.
― Não sou uma das garotas do templo, sou da Vila das Flores ― disse tentando parecer calma e
convincente, ele sabia sobre mim? Meu coração estava acelerado e meu rosto estava quente.
― Eu sei quem você é, você estava no palácio com a sacerdotisa da rainha, então isso te faz uma
das mulheres sagradas de sangue amaldiçoado, não é?! ― o tom de voz dele era suave, ele falava de
um jeito amável, mas havia algo errado com aquilo, eu podia sentir.
― Como sabia que era eu? ― ele pegou minha mão e aproximou o seu rosto do meu.
― Sei que seu sangue é puro, suas marcas verdes estão brilhando e enquanto estiver assim, você
será útil para mim! ― meu braço direito tinha as marcas de mago, elas estavam acesas me alertando
do perigo, vi o brilho de uma lâmina e a dor foi terrível, eu não encontrava minha voz para gritar por
socorro e estava sendo carregada para fora daquela caverna quando outra pessoa apareceu, me tomou
dos braços daquele homem e o cortou com uma espada, logo em seguida ele fugiu muito ferido...
― Você?! O que faz aqui fora? ― ele perguntou.
― Só queria ir embora, fugir disso tudo! Estou tão cansada de viver presa! ― respondi tentando
ignorar a dor em meu peito.
― Não se preocupe, vou ficar ao seu lado, assim ninguém mais tornará a feri-la por causa disso!
― disse ele limpando a mão suja com meu sangue... Era Aeban, eu reconheci, mas parecia mais
jovem e mais magro. A dor veio de novo quando ele me tirou do chão e eu gritei...
― Leona! Olha pra mim, abre os olhos! ― Ewren estava me sacudindo, estava deitada no
colchonete na barraca e Feroz estava a meus pés olhando para mim.
― Oh! O que aconteceu? Onde está Aeban e o homem ferido? ― minha voz estava arrastada e
quase não pude escutá-la.
― Leona, Aeban está em Lótus Vale, dias de viagem atrás de nós. Você deve ter tido um pesadelo,
estava se mexendo muito, então acordei para ver se estava tudo bem, mas você não acordava por
nada! ― me sentei e ainda podia sentir a dor de onde o punhal entrou em mim.
― Ewren, era tão real... Não parecia um sonho, parecia uma lembrança... ― Eu olhei para
Ewren, seu rosto estava cansado e parecia muito diferente do Ewren que saiu de Lótus Vale
comigo. ― deve ter sido só um pesadelo estranho... Falta muito para chegar à Arcádia? ― Eu queria
deixá-lo o menos preocupado possível e chegar logo na cidade para descansar.
― Acho que mais algumas horas de caminhada, aí chegaremos lá! ― Tomamos o café
rapidamente para poder seguir viagem, Feroz estava quieto e abatido e tudo estava com um clima
estranho e meio triste desde a hora que tive que usar meus poderes para destruir o Yeti e salvar
Ewren e Feroz.
― Ewren? E se eu fizesse aparecer um trenó e algumas renas para nos puxar o resto do trajeto
montanha acima?
― O certo seria um mushing puxado por cães, e não, você não vai mais usar seus poderes até
chegar a um local seguro, durante a noite você começou a brilhar e eu e Feroz tivemos que espantar
várias sombras carregadoras que estavam nos seguindo pela montanha.
― Sombras carregadoras? ― para mim, parecia algo tipo” fantasmas”, o que me deixou mais
assustada ainda.
― Sim, Almas de bruxas, elas saem do corpo a procura de qualquer coisa valiosa para roubar e
vender e você chamou a atenção delas! ― Eu bufei e o ajudei a terminar de arrumar as bagagens e as
encolher para podermos continuar a viagem.
Os sóis brilhavam muito mais belos daqui de cima e dava para ver marcas no céu como se alguém
tivesse pego os raios brancos de Áries e utilizado como tinta para riscá-lo.
― Ewren, o que são aquelas marcas no céu? ― eram duas linhas que se cruzavam e se
encontravam atrás do sol Áries e iam em direção ao horizonte.
― São as linhas Espectrais. É uma espécie de proteção a todas as formas de vida desse mundo,
só dá para vê-las brilhando das cidades suspensas ou das montanhas... ― Ewren continuou falando,
mas eu não conseguia tirar os olhos do céu, era lindo, era como se o céu fosse uma mandala gigante.
Algumas horas depois chegamos à cidade, era tão linda! Havia cerejeiras para todos os lados e a
cidade ficava dentro de uma bolha gigantesca protegida da neve. As ruas eram feitas com pedras
brancas que se encaixavam perfeitamente umas nas outras e as casas e edifícios eram claros e
cobertos por flores, havia poucas pessoas na rua principal, então fomos em direção a um pequeno
edifício próximo a uma praça e entramos. Ewren fez o registro e pediu dois quartos diferentes dessa
vez. Havia uma mulher aguardando atendimento na recepção, muito bonita, tinha um olho azul e outro
verde, cabelos cor de mel e um sorriso encantador, fiquei corada perto dela, ela sorriu e acenou para
Ewren, ele fez um sinal para ela e depois ela se virou e saiu rindo baixinho, tentei ignorar.
Entrei no meu quarto e fui direto tomar um banho, também dei banho em Feroz e escovei seu pelo.
― Por que ele não quis ficar perto de mim dessa vez, Feroz? Por que ele está bravo comigo
desde o incidente com o Yeti? ― eu estava ficando louca, esperando que Feroz me respondesse
novamente, mas ele abaixou as orelhas e espirrou como se estivesse desviando da minha pergunta.
Ewren estava a três quartos de distância, então fui até sua porta e bati uma vez, ele não respondeu.
― Ewren? Vou dar uma volta pela cidade, tudo bem? ― coloquei o ouvido na porta para escutar
alguma resposta, escutei uma risadinha feminina e logo depois a voz dele.
― Não saia do limite dos muros da cidade, não se meta em encrencas e não converse com
estranhos! ― gritou a voz dele de dentro do quarto, seguida de mais alguns risinhos. “Está certo,
papai” resmunguei entre os dentes para a porta, tenho certeza de que ele ouviu, pois sua risada parou,
mas a mulher que estava com ele riu ainda mais, devia estar debochando de mim, meu coração
apertou. Saí com Feroz em meus calcanhares e fui dar uma volta pela cidade, a algumas quadras da
pensão havia várias lojas, comprei umas peças de roupa e uma pregadeira de cabelo.
Depois dali parei em um tipo de padaria, comprei uns doces e fui sentar em um banquinho na
praça da cidade, algumas pessoas me olhavam com curiosidade, notei um grupo de elfos perto de
mim e outras raças espalhadas pela praça, muitos me olhavam de canto de olho. Resolvi fingir que
não estava vendo e peguei um livro que encontrei no quarto da enfermaria quando estava em Lótus
Vale para ler, era um livro sobre as raças desse mundo, seus pontos fracos, pontos fortes e locais que
vivem, acho que foi deixado lá de propósito para eu pegar, era um livro caseiro, parecia ter sido
feito a mão até a capa, talvez anotações pessoais de Aeban, porém, se ele havia deixado na minha
cabeceira talvez fosse para que eu pudesse aprender algo a mais sobre esse mundo.
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Abri os olhos tirando o livro de cima do rosto, os sóis estavam quase se pondo, havia pegado no
sono no meio da leitura e Feroz estava alerta ao meu lado. Levantei-me num pulo e quando me virei
correndo para voltar à pensão, esbarrei em alguém e caí sentada.
― Sinto muito, não esperava que fosse trombar em mim! ― Ele me estendeu a mão para que eu
pudesse me levantar, quando olhei para ver quem era, quase fiquei de boca aberta. Ele era lindo!
Tinha cabelos ruivos até a cintura, olhos e pele cinzenta, era forte e alto e tinha tatuagens parecidas
com as de Amijad e Lirien, com certeza era um sereiano também.
― Desculpe! Não vi você! ― meu rosto ficou quente.
― Tudo bem! ― ele sorriu ― Você está bem? Não se machucou?
― Na-não, estou bem mesmo! ― tirando o fato de eu quase ter desmontado ao cair, estava tudo
bem.
― Meu nome é Demétrius! ― ele estendeu a mão e a única coisa que consegui fazer foi ficar ali
de boca aberta. Ele sorriu e levantou as sobrancelhas esperando eu me apresentar.
― Ah, desculpe! Meu nome é Leona! ― eu sorri meio desajeitada e estendi a mão para ele, ele
segurou e beijou minha mão. Fiquei corada e puxei a mão sorrindo como uma idiota.
― De onde você é, Leona? ― ele parecia ter saído de um sonho.
― Estou vindo de Alamoutim!
― Ah, entendo! Bem que reparei que você não é daqui, eu não teria deixado de notar uma flor
como você! ― eu não conseguia tirar o sorriso do rosto! Olhei em volta e reparei que estava
escurecendo rapidamente e não queria ficar fora da pensão ao anoitecer.
― Desculpe, estou voltando para a pensão! ― disse me virando, apanhando Feroz em cima do
banco e andando de volta à pensão.
― Espere, eu te acompanho! É perigoso aqui à noite! ― ele veio ao meu lado e fomos
conversando. Ele estava viajando também.
― Cheguei a Arcádia há poucas horas, só para passar a noite em um local confortável mesmo!
Estarei partindo ao amanhecer para a Vila Langai, ao pé da montanha, conhece?
― Não... Na verdade, eu não sou daqui! ― ele me olhou com curiosidade, então contei toda a
verdade, exceto a parte de eu ser maga.
― Então ficarei feliz em acompanhá-los até o pé da montanha! ― ele falou dando um sorriso
incrivelmente lindo.
― Não vai acompanhar não! ― disse Ewren entre os dentes me puxando para longe dele, já
estávamos em frente à pensão.
― Oh! Desculpe, quem é você? O pai dela? Deixe eu me apresentar... ― Demétrius parecia estar
debochando de Ewren, que o cortou imediatamente entre um rosnado.
― Não, não sou pai dela, mas estou responsável por levá-la em segurança até o seu destino! ―
Ewren parecia que ia arrancar a cabeça de Demétrius a qualquer momento.
― Se tivesse tão focado nesse objetivo, não a teria deixado sozinha em uma cidade como essa,
eu fiquei de guarda até ela acordar na praça e em momento algum vi você a vigiando!
― Você dormiu na Praça, Leona?! ― Ewren ficou furioso.
― Ah, eu cochilei enquanto lia! ― fiz meu melhor olhar de “desculpe”.
― Qual parte do não se meta em encrencas você não entendeu?!
― Vejo vocês amanhã cedo! ― Demétrius virou-se para sair, mas antes pegou a minha mão e a
beijou novamente. Ouvi Ewren soltar outro rosnado assustador e entrei para a pensão com ele atrás
de mim. Eu podia sentir seu olhar na minha nuca, me fulminando. Quando entrei no quarto, ele entrou
junto e bateu a porta.
― Além de não entender a parte do não se meta em encrencas, não entendeu o não fale com
estranhos, não é? ― ele gritou.
― Eu só falei com ele por que estava com pressa de voltar, aí acabei esbarrando nele! ―
resmunguei.
― E por acidente saiu falando tudo, não é? Eu vi o jeito que ele olhou para você! ― eu estava
com a cabeça baixa ― Sabe como ele estava te olhando?
― Do mesmo jeito que você estava olhando Banshee no navio? ― deveria ter ficado quieta, pois
ele se enfureceu ainda mais.
― Você só pode estar achando que isso é brincadeira, não é? Vai chegar uma hora que eu não vou
conseguir te proteger, pois você vai atrás dos problemas!
― Ewren? ― fiz a voz mais doce que eu pude.
― O que? ― ele cruzou os braços e ficou olhando para o teto.
― Você não pediu dois quartos separados? Por que está aqui ainda? ― ele não disse mais nada,
simplesmente virou de costas e saiu.
― Feroz? ― Feroz olhou-me bem nos olhos e espirrou ― Isso foi um ataque de ciúme ou foi
coisa da minha cabeça? ― ele abaixou as orelhas e fingiu estar dormindo. É melhor eu não me
iludir, ele ficou com raiva mesmo por eu não ter escutado seus conselhos e ter quase me metido em
encrenca. Deitei na cama e fiquei rolando para os lados, pensando, quando cheguei à conclusão de
que não havia feito nada de errado, dormi em paz.
Ao sairmos da pensão de manhã, Demétrius estava ao lado da porta nos esperando.
― Demoraram! ― disse ele para Ewren e veio me cumprimentar.
― Se beijar a mão dela de novo, eu arranco sua língua fora! ― Demétrius sorriu e soltou minha
mão, dizendo apenas “bom dia” perto de meu ouvido. Ewren mudou ligeiramente de cor, se ele
pudesse matar alguém só com o olhar, eu também teria morrido agora.
― Até onde você pretende nos acompanhar? ― Ewren parecia mais furioso do que na noite
anterior.
― Até a Vila Langai ao pé da montanha, minha irmã tem um estabelecimento lá, irei ficar com ela
por uns dias... ― Demétrius sorria o tempo inteiro, diferente de Ewren que estava o tempo inteiro de
cara amarrada.
― Tudo bem pra mim! ― disse enquanto tirava Feroz das mãos de Ewren, o bichinho já estava
ficando roxo de tanto que era apertado. Demétrius foi à frente, depois o seguimos.
― Nunca mais faça isso! ― Ewren cochichou para mim ― Não chame qualquer um para nos
acompanhar! É perigoso, sua idiota! ― Eu ia respondê-lo grosseiramente, mas resolvi ficar quieta e
fingir que não estava ligando para a raiva dele. Já tinha perdido as esperanças de ser uma crise de
ciúme, então resolvi ignorar cada palavra que saísse dele até chegarmos à vila ao pé da montanha,
apressei o passo e fui andar ao lado de Demétrius, que agiu como um guia turístico e ficou me
falando das cidades de Edro. Podia sentir uma forte energia vinda de Ewren, que nos fulminava com
o olhar raivoso.
A paisagem era mágica, à medida que descíamos a neve diminuía e as árvores ficavam enfeitadas
com pingentes de gelo que brilhavam com a luz dos sóis, fazendo espirais coloridas no chão em torno
delas. Demétrius me puxou para a beirada da estrada e apontou para um ponto logo abaixo de nós.
― Está vendo aquele lago lá embaixo? ― ele segurou meu rosto para me guiar até onde ele
estava mostrando. ― É o lago dos olhos! Durante a noite pode-se ver milhares de bolas de luz
flutuando em volta dele, e dentro também!
― Parece incrível! ― realmente parecia ser, o lago era rodeado por árvores de folhas vermelhas
e laranjas e da distância que estávamos, parecia mais uma pintura do que uma paisagem real. Ewren
chegou mais perto e começou a armar a fogueira para preparar o almoço.
― Volto daqui a pouco! ― Demétrius disse já se afastando e saindo das nossas vistas. Fui para
onde Ewren estava fazendo um ensopado na fogueira.
― Você confia demais nas pessoas! ― ele resmungou enquanto mexia o caldeirão.
― Ele parece ser confiável! ― eu estava olhando para a estrada onde Demétrius havia sumido.
― Olhando você assim, parece até que está apaixonada! ― ele havia parado de mexer na comida
para me encarar ― Sabe que ele é um sereiano, se ele te enfeitiçou, eu não vou saber, mas posso te
garantir uma coisa! Se ele te mandar fazer qualquer coisa, você vai obedecer, aí já era! ― Ewren
realmente estava com o humor terrível.
― Ele não me enfeitiçou! Ele só está sendo simpático e eu estou retribuindo! ― Ewren respondeu
apenas sacudindo os ombros. ― Parece que você está com ciúmes! ― não consegui segurar.
― Ciúmes, eu? De você? Por favor! Ponha-se no seu lugar menina! E não parece que você está
sendo educada, parece que você está flertando com ele! ― Dessa vez ele parecia um monstro. Os
olhos dele haviam ficado totalmente prateados, mas ele estava usando o cristal, então tudo que eu
podia fazer era esperar o seu humor melhorar. Ele me deu a comida e afastou-se resmungando algo
em sua língua que não pude compreender.
― Quando você estiver em perigo por causa dele, não venha correndo pedir ajuda pra mim, se
vira sozinha! ― ele gritou de longe. Estava sentado sozinho distante da fogueira. Terminamos de
comer e ficamos esperando Demétrius voltar. Ewren, claro, estava de cara fechada reclamando da
demora e queria ir sem ele voltar. Eu o fiz esperar mais um tempo, como Demétrius não voltava e já
passavam das duas da tarde, me levantei para seguirmos em frente.
Demétrius apareceu pouco depois que começamos a andar.
― Desculpem a demora, fui almoçar! ― ele piscou para mim. Me lembrei de Lirien e Ami
comendo e tive calafrios.
― Nem imagino quem foi a pessoa inocente que lhe serviu de almoço... ― disse Ewren entre os
dentes, ele estava quase alegre por Demétrius não ter voltado, mas a alegria sumiu tão rápido quanto
apareceu.
Continuamos a conversar sobre o mundo. Contei sobre o meu e sobre as pessoas de lá. Tudo
parecia ser novo e interessante para ele e sempre que eu falava, Demétrius sorria. Feroz dormia
tranquilamente em meus braços e Ewren estava bem atrás de nós nos vigiando.
Quando o sol estava se pondo, paramos para acampar, fiz uma pilha de lenhas em chamas
aparecer, já que ainda não havíamos chegado a um lugar onde houvesse madeira seca, e Demétrius
ficou fascinado com meus poderes.
― Eu disse pra você não usar magia fora das cidades! Muito menos na frente desse idiota! ―
Ewren falou baixinho para mim quando Demétrius não estava olhando.
― Tudo bem! Ewren, você precisa confiar mais nas pessoas! ― Depois que eu disse isso, ele
simplesmente se calou, não disse mais nenhuma palavra durante a refeição e depois ficou sentado
imóvel como uma estátua perto da fogueira. Demétrius se aproximou e me ofereceu uma bebida, tinha
gosto de suco de romã e acerola, era muito bom! Ewren ficou ainda mais azedo quando me viu beber
aquilo. Fiquei conversando com Demétrius até o sono bater.
Mesmo quando já estávamos dentro da barraca, Ewren me ignorou totalmente e continuou em
silêncio. Pensei em pedir desculpas mesmo não tendo feito nada demais, mas como ele nunca cedia
nada, preferi ficar em silêncio também.
Acordei no meio da noite escutando uivos não muito distantes dali. Ewren me mandou ficar quieta
e saiu da barraca. Olhei no celular, eram oito e meia ainda, mas não conseguia ajustá-lo ao horário
desse mundo, então resolvi olhar lá fora pelas janelinhas da barraca. Feroz dormia tranquilamente, o
que era estanho, pois quando Ewren saía, ele imediatamente acordava e ficava de alerta.
Depois de algum tempo saí da barraca e fiquei procurando rastros na neve para ver em qual
direção Ewren havia ido, mas não tinha nenhuma marca no chão. A fogueira ainda estava acesa mas
estava ventando muito e era para ela ter se apagado. Então Demétrius apareceu entre as árvores
congeladas.
― Demétrius! ― eu estava aliviada de não estar sozinha ― Onde você estava? ― ele se
aproximava de mim, mas não sorria mais. ― Está tudo bem? ― perguntei dando um passo mais para
perto dele.
― É interessante! ― ele começou a falar olhando em volta cautelosamente ― Ele disse que você
estaria com um elfo negro, mas eu não esperava uma maga tão descuidada e muito menos um elfo tão
adestrado! Achei que teria mais problemas com vocês dois! ― ele puxou uma faca torta da cintura.
― O que? ― eu não podia compreender.
― O maior problema que eu tive foi para sedar seu gatinho de estimação, até desligar seus
poderes foi fácil! Te ofereci uma poção e você bebeu sem ao menos perguntar o que era! Nunca
esperei que fosse tão fácil pegar vocês! ― ele riu.
― Não acredito! Eu confiei em você! ― ele riu mais ainda.
― Oras! Nada desse lado de Amantia é confiável, nem seu elfo é! Você é ingênua demais! ― Eu
comecei a me afastar, algo em mim estava dormente e eu não conseguia fazer meu cajado mudar.
― Por que... ― comecei a falar, mas ele interrompeu com outra gargalhada. De trás dele
começaram a aparecer outros homens esfarrapados e com a aparência desleixada.
― Eu disse, eu adormeci seus poderes, o efeito é temporário, claro! Mas é tempo suficiente pra
lhe entregarmos ao Black e pegar nossa recompensa! AJOELHE-SE! ― ele gritou. Senti uma dor
como se fosse um choque, meu corpo respondeu ao comando dele e eu fiquei de joelhos. Lágrimas
começaram a rolar pelo meu rosto, não de tristeza ou medo dessa vez, mas de raiva, queria
transformá-lo em sushi! Ewren me avisou e eu o ignorei. Demétrius chegou bem perto e me levantou
pelo pescoço, uma de suas garras perfurou minha pele fazendo uma fina linha de sangue escorrer. Ele
sorriu, me puxou para perto e lambeu o sangue.
― Que achado! Agora que sei disso, a recompensa vai dobrar! ― e riu novamente me jogando ao
chão. Eu não conseguia falar e nem ao menos, me mover. ― Peguem o gato na barraca! A pele dele
vai dar um belo tapete! ― alguns dos homens que estavam com ele foram andando até a barraca. Eu
fechei os olhos implorando para Ewren voltar, mas parecia que isso não ia acontecer.
Queria levantar, pegar Feroz e fugir, mas nem gritar eu conseguia, me sentia inútil, só arrumava
problemas! Parecia que era um imã para criaturas ruins. Então, um brilho prateado passou raspando
em meu ombro e atravessou um dos homens que iam até a barraca. Ele urrou e caiu na neve. Os
outros se espantaram e começaram a procurar em volta e tentar localizar de onde veio a adaga.
Ewren! Alguém pulou por cima de mim com um manto cobrindo-o completamente e com uma espada
na mão, em um único movimento, decapitou outros dois. O último tentou correr montanha acima, mas
foi pego por Ewren, que desceu do céu com suas asas abertas, ele atravessou sua mão no peito dele e
arrancou seu coração, que ainda pulsou algumas vezes na mão de Ewren. Demétrius assustado, pulou
em minha direção para usar-me como escudo e começou a pronunciar palavras estranhas, com sons
musicais, então a pessoa com o capuz puxou um arco das costas e lançou contra ele uma flecha
dourada, mas no momento em que a flecha tocou seu rosto, ele se desmanchou numa poça de água e
sumiu na neve.
― Leona! Você está bem? ― Ewren me levantou e ficou me encarando, eu estava em choque e
não conseguia falar nem me mover ainda. A outra pessoa de manto se aproximou e quando chegou
bem perto, abaixou o capuz. Era uma mulher e eu já havia a visto em algum lugar, ela tinha os cabelos
prateados cacheados e olhos vermelhos como o fogo que ainda ardia na fogueira, marcas de mago no
braço direito como as minhas, porém vermelhas, e um pequeno brasão brilhante escarlate em sua
testa.
― Ela está com um veneno de paralisia, mas não é difícil de remover! ― Ewren me colocou
sentada perto do fogo, a mulher então esticou as mãos para mim e pronunciou palavras no mesmo
idioma que Ewren usava e senti meu corpo ficar leve, foi como se uma brisa morna soprasse em mim
e tirasse um véu escuro que me cobria.
― E agora? ― Ele perguntou olhando para ela.
― Já está normal! ― disse ela e sorriu, um sorriso alegre e brilhante. Quando ela abaixou as
mãos, seus cabelos ficaram num tom de castanho-mel e seus olhos, um azul e outro verde. Era a
mulher que estava na recepção da pousada! Eu levantei, abracei Ewren e chorei com vontade, de
soluçar.
― Me desculpa! ― disse entre os soluços ― Você me avisou e eu nem liguei! ― ele riu e me
abraçou de volta. Um abraço quente e apertado. O mundo poderia acabar ao nosso redor que eu
poderia viver eternamente dentro daquele abraço...
― Eu te avisei! ― ele se afastou para me olhar. O corte no meu pescoço ainda ardia, mas eu me
sentia segura novamente.
― Feroz! ― Levantei rápido, corri e entrei na barraca. Feroz ainda estava adormecido, levei-o
para fora e o coloquei perto do fogo onde a mulher o olhou e mexeu em suas patas.
― Ele vai acordar daqui a pouco! Não há mais perigo por aqui, podem ficar tranquilos agora! ―
ela o pegou no colo e ficou acariciando suas orelhas.
Leona, deixe-me apresentar minha irmã, Lórien! ― ela sorriu pra mim.
― Muito prazer! ― ela esticou a mão para mim e eu fiquei ali, parada, de boca aberta.
― Sua irmã? ― perguntei como uma boba, com a boca ainda semiaberta.
― Sim! Irmã dele! ― ela riu ― eu encontrei vocês na pousada, mas Ewren não queria que eu os
acompanhasse, então ele fez sinal para eu não me aproximar de vocês! Mas quando vi que pediram
quartos separados, fui lá tirar satisfação com esse idiota! ― ela gesticulava para ele e ele cobria o
rosto com a mão.
― Lóri, por favor! Não...
― Sabe por que ele não queria que eu me aproximasse? ― ela perguntou quase aos berros.
― Lóri... ― ele tentava a interromper.
― Porque ele tem vergonha de ter uma irmã Hibrida! ― ela fez um drama, deitou na neve e
fingiu que chorava.
― Eu não tenho vergonha por você ser hibrida, tenho vergonha porque você é louca e faz
qualquer um passar vergonha! ― disse ele ― Olhe-se! Você está envergonhando até seus futuros
descendentes assim! ― ela continuava a fingir que chorava e rolava na neve. ― Lórien! Juro, não
tenho vergonha de você! Você é incrível! ― ele parecia ter ganhado ela, que deu um pulo da neve.
― Tudo bem, isso eu posso aceitar! Mas, mudando de assunto, por que esses caras atacaram
vocês? ― era inacreditável, ela passou de louca a uma pessoa normal num piscar de olhos.
― Porque eu estou levando uma maga para a Torre das nuvens que não aprendeu ainda aquela
regra básica que os pais ensinam aos seus filhos, “não fale com estranhos” ― ele parecia irritado
novamente.
― Ele disse que tinha uma recompensa se me levasse para o Black... ― quando eu disse o nome,
Ewren endureceu ― Mas quem contou pra onde estávamos indo? Como ele sabia nos encontrar tão
facilmente? ― perguntei.
― Será que Lirien... ― Ewren começou e imaginei os sereianos, já que Demétrius também era
um.
― Não, eles não poderiam contar... Lirien era muito medroso, provavelmente está escondido no
mar com Ami... ― falei ― Banshee! ― disse ficando vermelha.
― A capitã do navio? ― Ewren perguntou, ela com certeza teria motivos de sobra para dizer
onde estávamos.
― Ela deve ter ganhado algo em troca da informação... ― disse Lórien, nesse momento o
primeiro homem que foi atacado por Lórien começou a se mover na neve.
― Ela... quer o elfo... ― Ewren então o levantou.
― Fale, vamos! ― o homem estava quase morto.
― Me cure... Eu falo... ― Lórien imediatamente mudou de forma, ficando com seus olhos
vermelhos e cabelos prateados novamente. (Não tinha como negar que era muito parecida com
Ewren) Ela fez aparecer correntes grossas de prata no chão e prendeu o homem, antes de curá-lo com
uma coluna de luz branca.
― Agora fale! ― Ewren gritou. Onde as correntes de prata tocavam o homem, sua pele
queimava.
― A capitã dos ventos, ela falou que havia trazido pra terra uma maga e um elfo. E que a maga
havia feito mal a ela e à tripulação sem elas terem feito nada! ― claro, elas eram inocentes e boas
e eu um monstro do mar! O homem falava de forma grotesca e com a voz arrastada.
― Continue! ― Lórien agora estava segurando uma faca bem próxima ao homem.
― Ela disse que a maga não era deste mundo e que tinha os poderes em desenvolvimento! Então
Black Jango perguntou se ela sabia para onde vocês iam e a mulher pediu uma recompensa pela
informação. ― ele parou de falar para coçar os ferimentos que a corrente causava e Ewren o chutou
para que ele continuasse a falar.
― Vamos, fale logo! Ou vou terminar de cortar essas mãos antes que a corrente o faça! ― Lórien
gritou, ela era mais assustadora que Ewren!
― Calma, calma! A capitã dos Ventos pediu a cabeça da mocinha como recompensa pela
informação, mas ele disse que precisava dela inteira com todas as partes no lugar! Então ela pediu o
elfo! ― ele apontou para Ewren com a cabeça. ― mandou que o levássemos amarrado para ele ficar
de enfeite na sua cabine para sempre! ― o homem riu.
― Ele não disse pra que precisava dela? ― Ewren parecia já saber a resposta, mas perguntou
mesmo assim.
― Não... Acha que eles falam dos planos grandes com os peões? ― ele riu novamente.
― Ele é um lobisomem também? ― Perguntei.
― Era! ― disse Ewren, nesse momento sacou as adagas e arrancou a cabeça do lobisomem fora
com um único ataque. Eu segurei a respiração por um momento.
― Vocês adoram matar as pessoas! ― soltei sem nem medir minhas palavras. Ewren me olhou
furioso.
― Vocês? Os únicos que adoram matar aqui são eles! Se nós dois não tivéssemos aparecido, você
que estaria indo pra forca agora! ― ele gritou as palavras para mim. Eu sabia, eu só não pude
segurá-las. Além de quase ter sido levada, aquele lobisomem poderia estar envolvido na morte da
esposa dele ou de muitos outros inocentes.
― Sinto muito... ― quis recolher as palavras, mas já era tarde. Abaixei a cabeça e fiquei ali
quieta enquanto Ewren e Lórien decidiam o que fazer e queimavam os corpos dos lobisomens. Eles
discutiam em élfico, então as únicas coisas que eu entendia eram meu nome e o nome deles.
― Humm... Ewren? E agora, o que faremos? ― perguntei arriscando falar novamente. Ele sentou
perto do fogo e ficou pensativo.
― Vocês deveriam mudar de rota! ― Lórien disse sentando-se ao seu lado.
― Mas a única passagem disponível que não é muito perigosa e nem passa dentro de nenhuma
cidade mais perigosa ainda é a rota das folhas secas...
― Rota das folhas secas, aquela dos comerciantes? ― Lórien parecia se esforçar para lembrar.
― Sim, tem um túnel por baixo da Vila Safira, o problema é que ela aumentaria o tempo da
viagem em mais cinco dias!
― Não se for daqui direto para a Vila Safira! ― Lórien parecia empolgada. Ewren amarrou a
cara e apontou para o penhasco da montanha.
― Não posso sobrevoar essa região, seria imediatamente derrubado se sobrevoasse esse
território, vamos supor que algo lá embaixo amortecesse a queda, ainda teríamos dois dias de viagem
até a vila! E por dentro da Floresta Negra, cheia de dríades, Nagas e Duendes nojentos!
― Mas, você não pode enfrentá-los? ― perguntei.
― Alguns, sim! Mas estamos falando de centenas! ― ele estava olhando na direção da floresta e
seu olhar estava cansado.
― Podemos ir voando! ― Lórien tirou o manto e abriu suas asas, embora menores que as de
Ewren, eram lindas e brancas com algumas plumas vermelhas trançadas entre as outras.
― Você pode! Eu não posso voar sobre esse território! ― Ewren reclamou, mas Lórien riu e fez
uma bolha brilhante com a palma da mão. A bolha foi crescendo até ficar do tamanho de uma casa.
― Não é uma proteção cem por cento! Mas eu consigo mantê-la sem estourar por vinte e cinco
minutos! Se voarmos rápido, dá para pousar na estrada bem próximo à muralha da vila, daí é só mais
uma hora de caminhada até os portões! E Pronto! Estaremos em casa! ― Ela me olhou e deu uma
piscada.
― Em casa? ― perguntei.
― Sim! Moro lá na vila Safira. Já foi à casa dele?! ― disse ela apontando com o queixo para
Ewren.
― Você é a melhor! ― Ewren a beijou no rosto e correu para onde estava a barraca. Mal chegou
perto e já havia desmontado o acampamento e o encolhido com a lupa. Lórien ficou com Feroz no
colo e a bolha nos cobriu, Ewren mudou sua forma, abriu as asas e num piscar de olhos estávamos
voando por cima da floresta. Era assustador de noite e havia perdido toda a magia que eu tinha visto
naquele mesmo dia de manhã.
― Vou ver a casa onde você cresceu! ― brinquei tentando desviar a atenção da floresta abaixo
de nós.
― Vai! ― ainda estava zangado ― Vai conhecer minha mãe também! ― meu coração disparou.
Imaginei imediatamente uma senhora rabugenta que iria perguntar quem eu era e o que eu fazia com o
filho dela, mas, infelizmente, não haveria nada demais para contar...
Depois de longos minutos de voo em silêncio, a bolha começou a ficar colorida e ondular.
― Ewren! A Bolha vai estourar! Temos que chegar ao chão agora, feche as asas! ― e Ewren
parou subitamente no ar e fechou as asas. Entramos em queda livre, eu queria gritar como se
estivesse em uma montanha russa, estávamos caindo em uma parte escura, ainda muito próxima à
floresta. Antes de tocar no chão, a bolha estourou. Lórien moveu suas mãos bruscamente e outra
bolha apareceu embaixo de nós, só que cheia de água. Quando entramos nela, imediatamente a bolha
estourou e escorregamos numa poça de lama até bater numa árvore.
― Genial! ― eu resmunguei ― Não podia nos fazer cair numa cama elástica? Ou uma pilha de
colchões?
― Desculpe! Só pesei em água ― Lórien levantou com dificuldade, sacudiu as mãos novamente
e ficamos limpos e secos.
― Lórien, pare de usar tanto seus poderes, vai chamar a atenção! ― disse Ewren sacudindo a
cabeça em direção à floresta logo atrás de nós.
― Ok! Só andar nessa direção agora! Em mais ou menos uma hora chegaremos à muralha! ― ela
chegou bem perto e passou o braço em volta de minha cintura. Feroz, que estava quieto durante o
voo, despertou na queda e foi andando em nossa frente, ele parecia um gato bêbado. Ewren andava
atrás de nós, vigiando o caminho estreito. Quando nos distanciamos dele o suficiente para que não
nos ouvisse, Lórien começou um interrogatório.
― Leona? Me diga uma coisa, com toda sinceridade, de todo seu coração? ― ela cochichava e
dava risadinhas bem baixinhas. Fiquei com medo de responder, mas disse um “sim” bem
baixinho. ― Você gosta dele?
― Dele quem? ― perguntei sabendo sua resposta.
― Meu irmão, claro! ― eu corei, passei por uma gama de cores e tive taquicardia quando ela fez
a pergunta.
― Não! ― disse mais baixo ainda. Ela deu um tapa em meu ombro.
― Não minta pra mim! Eu vi que quando você me viu na hospedaria, que eu sorri pra ele, você
quase se rasgou de ciúme! ― ela estava dando risinhos cada vez mais altos.
― Fica quieta! Ele vai escutar! Eu não gosto, eu não estava com ciúme! ― eu tropecei nas
palavras. Ela riu novamente.
― Eu sabia! ― ela estava esfregando seu rosto no meu como uma louca. ― Uma maga humana
como cunhada, que fofo!
― Já disse que não gosto dele, e ele não gosta nem um pouco de mim! Pare de bobagem! ―
fiquei toda vermelha, agora entendi porque Ewren disse que ela era louca.
― Tudo bem, vou fingir que acredito! ― ela olhava para o céu e sacudia seus cabelos,
brincando, zombando de mim.
― Você agora a pouco disse que era híbrida, mas Ewren disse que é raro nascerem híbridos, e
você tem poderes também! Como pode? ― perguntei tentando desviar o assunto de mim e de Ewren.
― Ah, não é impossível nascerem híbridos, mas é a raça mais forte que domina, geneticamente
falando! Meu pai é um mago humano, minha mãe é uma elfa, eu nasci meio maga, meio elfa, pois a
força dos dois era igual! ― ela sorriu, ela caminhava pulando, brincando e dançando. Pensando
melhor, ela não era louca, era apenas feliz demais em um mundo onde tudo era mais difícil.
― Eu ri de propósito quando estava no quarto na hospedagem! ― ela disse depois de um longo
tempo em silêncio. ― Desculpe, mas achei divertido te provocar!
― Tudo bem! ― na hora não estava nada bem, mas agora eu estava tranquila.
― Ali! A Muralha! ― ela apontou para a frente, eu demorei a entender o que ela estava
mostrando e quando consegui fazer meus olhos enxergarem a escuridão, vi um muro gigantesco verde,
coberto por hera e flores roxas minúsculas, fomos as duas correndo para bem perto do paredão. O
aroma das flores era fantástico! Era doce e tão suave.
― A cidade é toda rodeada por esse muro? ― perguntei olhando para cima, deveria ter a altura
de um prédio de cinco andares.
― É sim, a muralha é viva! ― Lórien sorriu e tocou a mão nas flores do muro, que
imediatamente soltaram uma nuvem de perfume e mudaram de cor, passando para um azul lindo.
Toquei no muro também, foi como se as plantas começassem a crescer em minhas mãos e subir por
meus braços, Feroz também entrou na brincadeira, as flores pareciam roçar no pêlo dele também!
Ewren já havia nos alcançado, ele nos viu brincando no muro, bufou e saiu andando na nossa frente.
― O que deu nele? ― perguntei.
― Ah, desde que ele partiu da cidade pela primeira vez, ele não pode mais tocar no muro! ― ela
sorriu dando um último carinho às plantas e caminhando ao lado do muro.
― Não entendo!
― Ele saiu daqui ainda jovem, devia ter uns duzentos de idade, foi para a Planície dos Cata-
ventos para treinar e ser um soldado da guarda real! Para proteger a família real!
― E o que aconteceu para ele não poder mais tocar no muro? ― Lórien suspirou e olhou para
Ewren.
― Houve uma batalha, logo que ele chegou ao acampamento, um exército de Trolls atacou a base
deles. Eles levaram os soldados elfos que sobreviveram. Os que não foram devorados, foram
torturados e forçados a cometer todos os tipos de atrocidades, até escurecerem para formar um grupo
de bandidos cruéis e sem empatia, e quando isso aconteceu, já era tarde demais... ― Ela havia
parado de andar e estava acariciando o muro novamente. ― Elfos negros são considerados uma
ameaça a qualquer um, então esses muros protegem a cidade de tudo que não é bom!
― Lórien? Como ele era? ― perguntei ― Era muito ruim? ― Lórien deu um suspiro triste.
― Ruim é elogio perto do que ele era, a única palavra que chegaria perto da personalidade dele
naquela época é monstro! ― disse ela abaixando o tom de voz enquanto falava.
― Tão mau assim? ― eu o olhava, mas não sentia medo.
― Ele violentava mulheres e as matava por pura diversão, depois queimava os corpos, matava
tudo que se aproximava dele, destruía vilarejos... Eles alteraram a mente dele de um jeito que nem
lembrava mais seu próprio nome! ― Um arrepio passou pelo meu corpo. Ele não era diferente de
Demétrius ou Black Jango naquela época. Lórien também o olhava com pena.
― Foi tão doloroso para ele quando ele recobrou a consciência e descobriu tudo de ruim que
havia feito! Ele só desejava se vingar do que fizeram com ele. ― ela conseguia sentir sua dor.
― E quando ele foi curado? Ou parcialmente curado... ― Perguntei olhando Ewren lá na frente,
coçando as orelhas de Feroz e sorrindo.
― Quando conheceu Emma.
― A esposa dele, não é? ― Lórien assentiu com a cabeça.
― Ela era uma menina quando eles se conheceram, tinha dezessete anos! ― ela riu, lembrando de
uma memória distante ― eu o encontrei novamente, depois de mais de duzentos anos, o fiz beber
uma poção feita com cristais de cura, estava tentando fazê-lo melhorar, mudar de ideia, tentar se
purificar completamente, mas ele não me dava ouvidos, estava o seguindo para uma vila humana,
procurando os responsáveis pelo exército de Trolls, lá ele tentaria obter informações sobre quem
comandava o grupo, até aquela época havia muitas dessas vilas humanas espalhadas por Edro.
― Hum ― fiz um som para que ela continuasse a falar e Lórien se perdia em pensamentos
facilmente.
― O vilarejo que ele estava indo era bem pequeno, ele procurava um homem que fabricava armas
incrivelmente fortes que com certeza tinha as informações que Ewren queria! Quando chegamos perto
da vila, notamos que ela havia sido completamente destruída por lobisomens. Ele entrou no vilarejo
para tentar achar a casa do homem, para ver se o velho ainda estava vivo e se haviam armas para ele
roubar! ― seu rosto se contorceu ao lembrar disso ― O vilarejo estava um caos e em destroços,
cinzas e casas ainda pegando fogo, horrível! Nisso, vimos em frente a uma casa uma menina loira
sentada, olhando para dentro e chorando. Os corpos de seus pais e de seu irmão caçula estavam ali
no chão. Ewren ainda estava ruim, os cristais não tinham feito o efeito que eu imaginei, ele me disse
“vamos matá-la também? Aí ela não vai mais chorar porque vai estar com eles” ― Lórien parou
de falar novamente para ter certeza de que Ewren não a escutava lá da frente.
― Continue, ele não está escutando!
― Então Emma se virou para ele e o encarou com os olhos azuis dela bem abertos. Ela não estava
com medo dele, se levantou, pulou em cima dele e ficou ali abraçada chorando. Ele não teve reação!
Ficou lá parado com os olhos arregalados e sem entender o que estava acontecendo. Emma o
amoleceu na hora! ― Lórien não conteve o riso, eu tapei sua boca para ela rir baixo e ela sacudiu as
mãos para dizer que tinha parado. ― Eu o incentivei para que ele retribuísse o abraço dela. Ele
levantou a mão e passou no cabelo dela, então ela sorriu e desmaiou.
― E o que ele fez depois?
― Levou ela para Alamourtim para que Nellena cuidasse dela. Mas ele sempre ia vê-la! Todos os
dias nos finais de tarde, até que ele virou um gatinho adestrado! Ewren era um doce com ela, quando
ele a olhava, era como se um cego visse o sol pela primeira vez. ― meu coração se apertou quando
Lórien disse isso ― E Ele esperou por ela até que ela o aceitasse, então ele levou-a para vila dos
caçadores para viverem juntos.
― E foi aí que ela morreu, não é?
― Foi! ― disse ela com um olhar de tristeza, mas com uma mescla de esperança. ― Então ele se
perdeu de novo, não ficou tão monstruoso e doentio quanto antes, mas ainda assim ficou ruim, seco,
sem vida... Até encontrar você!
― Hum? ― fiquei olhando-a com os olhos arregalados.
― Pois é! Ele está ficando manso de novo! Eu o deixei em Alamourtim quase um mês atrás, ele
estava muito mau, até meio perverso às vezes, como antes de Emma aparecer! ― quando ela disse
isso, lembrei-me dele colocando a faca em meu pescoço ― Nós encontramos com Nellena numa
manhã em um hotel e ela pediu ajuda dele. Como ele tinha muitas dívidas com ela, ele aceitou e eu
vim pra casa, pois tinha outros... Assuntos! Daí, desse dia pra cá ele mudou consideravelmente! Por
isso que te perguntei se você gostava dele! ― Ela sorriu novamente pra mim, aquele sorriso quente e
encantador, parecido com o do irmão. Dei um esbarrão em Ewren sem querer e ele me segurou antes
de eu cair no chão.
― O que vocês duas tanto falavam lá trás? ― Fiquei vermelha e Lórien riu.
― Estava contando pra ela o motivo de eu ter vindo na frente e ter deixado você sozinho em
Alamoutim! ― ela mentia bem.
― Eu não sei que motivo é esse! ― disse ele olhando para ela de forma suspeita. Nós já
estávamos em frente aos portões da cidade. Lórien então correu até o portão fechado e bateu uma
alça gigante de ferro. Pouco tempo depois um Elfo de cabelos claros abriu o portão, ela o puxou pela
parte de cima da armadura e o beijou, ele soltou a espada surpreso, mas a retribuiu. Ewren e eu
ficamos olhando a cena sem saber o que fazer. Ele parecia querer se esconder em algum lugar e
esfregou o rosto com as mãos, eu disfarcei e tentei pegar Feroz no colo, mas ele estava em tamanho
grande, então quase caí em cima dele tentando tirá-lo do chão para esconder meu embaraço. Lórien
soltou o guarda do portão, sorriu para nós dois e gritou.
― Viu? Assim que se faz! ― ela o largou e veio nos arrastar para dentro da cidade. Ewren
revirou os olhos.
― Sei o motivo que a fez voltar pra casa logo! ― falei baixinho.
― Bem vinda! ― sussurrou Lórien para mim. Olhei para Ewren, quando atravessamos os
portões seus olhos mudaram, foi como se tivesse trocado de lugar com outra pessoa, esse Ewren que
entrou na cidade era outro. Olhei em volta, mesmo de noite a pequena cidade brilhava. As casas eram
em cima de árvores antigas, eram casas grandes que se prendiam circulando os troncos das árvores,
parecia que elas haviam sido plantadas no interior das casas e as levado para o alto conforme
cresciam, estavam cobertas por heras e trepadeiras, essas tinham uma fosforescência e seu brilho era
sutil, porém muito bonito.
Lórien ia à frente, quase saltitando, de vez em quando ela se virava para ver meu rosto, como uma
criança mostrando a alguém o que ela havia acabado de fazer.
As pedras das ruas eram perfeitamente lisas e polidas, como andar num espelho, mas não eram
escorregadias. A maioria dos habitantes deveria estar dormindo, pois além das luzes das plantas, a
maioria das casas estava escura. Foi como entrar num sonho, era um lugar tão calmo e cheio de
tranquilidade...
― Ali! ― Lórien apontou para uma rua, viramos a esquina e começamos a subir uma pequena
ladeira até chegar a uma casa que não estava sobre as árvores, era maior que as outras e era murada
também. Fiquei um pouco decepcionada quando vi Ewren abrir o portão, fiquei imaginando que iria
passar a noite em uma casa na árvore. Olhei novamente para a casa diferente das outras, todas as
janelas dessa estavam abertas, elas eram tão grandes que eu poderia ficar em pé nelas sem
problemas, quando percorri os olhos por todas, notei o que deveria ser um pequeno animal branco
deitado em uma delas. Uma Raposa branca! Era pequenina, tinha três caudas, mas era tão fofa! Ela
levantou as orelhas quando Ewren bateu o portão atrás de nós e pulou da janela aterrissando
suavemente no ombro dele.
― Chuva! ― ele acariciou a raposinha que respondeu esfregando-se nele e enrolando seu
pescoço com as caudas.
― É sua? ― perguntei
― Mais ou menos, é da vila, mas sempre esteve aqui em casa. ― ele a pegou no colo, colocou
em cima de mim e escutei Feroz bufar com ciúmes.
― Por que esse nome? ― ela ficou me cheirando por um bom tempo antes de finalmente lamber
meu rosto e se enrolar em meu pescoço também.
― É um espírito da água, ela faz chover aqui na vila. ― A raposa pulou de mim para Lórien, que
atravessou o pequeno jardim e foi para a porta da casa.
― Venham logo! ― ela estava batendo na porta. Nos aproximamos, fiquei atrás de Ewren e de
Lórien para não ser vista logo de cara. A porta se abriu e uma elfa apareceu. Ela era ainda mais linda
que seus filhos! Tinha longos cabelos cor de mel e olhos acinzentados.
― Bem vindo de volta! ― ela sorriu e abraçou Ewren, ele estava todo sem jeito perto dela.
― Hum, olá... mãe ― ela beijou a testa dele e fez um movimento para que entrasse, depois ela
olhou feio para Lórien.
― Você poderia ter me avisado que ia sair! ― Ela nem parecia estar chamando atenção de
Lórien, falava tão suavemente.
― Ewren estava com problemas! Só fui ajudar! ― disse ela sem graça. Lórien me arrastou para
frente. ― Essa é Leona! Foi ela quem a Nena entregou para Ewren levar pra torre das nuvens! ― Eu
me encolhi.
― Olá! Seja bem vinda, meu nome é Arin! ― ela sorriu para mim e me beijou na testa também.
Arin! Que nome diferente! Fiquei feliz em conhecê-la.
― Obrigada! ― eu não sabia mais o que falar, estava parada de boca semi-aberta admirando-a.
― Vamos, entrem! ― Lórien pegou meu braço e saiu me levando casa adentro, a casa era bonita
e bem espaçosa, com uma decoração linda e natural, as luzes eram tão diferentes e espalhadas de tal
forma que pareciam estrelas no teto da casa. Atravessamos a sala de visitas, subimos a escada até o
segundo andar e entramos na terceira porta à esquerda.
― É meu quarto! ― Lórien parecia uma criança brincalhona. Ela moveu as mãos para o teto e
uma enorme bola de luz prateada se acendeu.
Era como estar num planetário! Havia uma lua cheia e centenas de estrelas no teto. Sua cama era
de madeiras retorcidas, como se uma árvore tivesse sido moldada em uma cama, na verdade, todos
os móveis eram do mesmo estilo. Havia vaga-lumes voando e podia até sentir o cheiro de grama e
folhas secas. ― Eu criei esse quarto enquanto aprendia a usar meus poderes! ― ela sentou-se na
cama para olhar o teto. ― Não me canso de olhar para ele!
― É incrível! Será que minha mãe liga se eu fizer no meu quarto? ― quando pensei nisso, meu
estômago afundou... Tinha que ir para casa, mas cada dia que se passava, eu tinha menos vontade de
voltar.
― Não se preocupe! ― disse Lórien esfregando minhas costas, parecia que tinha lido minha
mente ― você ainda vai poder nos visitar! É só me avisar quando for vir! Aí eu vou até onde o
portal se abrir para te buscar!
― Como irei te avisar? Não posso nem te mandar uma carta! ― ela revirou os olhos, foi até a
cômoda, abriu a última gaveta e tirou dois pequenos espelhos com moldura de bambu. Logo em
seguida usou sua unha para cortar meu dedo. ― Ei! ― ela pingou o sangue nas duas superfícies do
espelho que brilharam, depois cortou o próprio dedo e pingou o sangue neles também. O vidro
absorveu o sangue, então ela me entregou um.
― Quero ver Leona! ― disse ela perto do espelho que segurava. O espelho que estava em minha
mão tremeu e seu rosto apareceu nele, ela fez uma careta e o espelho transmitiu. Ela me mostrou seu
espelho e meu rosto aparecia nele também. ― Pronto! Leve ele com você e eu sempre vou estar lá!
― Como? ― perguntei surpresa.
― Seu sangue! ― ela riu ― Essa magia se limita a uma única vez, mas com o seu, com certeza o
efeito não vai passar, então toda vez que você me chamar, onde eu estiver, se estiver nem que seja
com um pedacinho desse espelho, poderei ouvir você e te ver!
― Como assim, com o meu sangue? ― ela ficou pálida.
― Você é uma maga humana e pura... ― explicou rapidamente ― sangue de maga virgem, sabe?
― eu a encarei por um minuto, mas dei de ombros.
― Obrigada! ― disse abraçando-a. Ela afagou minha cabeça e riu.
― Vou pegar alguma coisa pra gente comer! ― disse ela saindo do quarto ― tem um banheiro ali,
pode usar! ― ela saiu fechando a porta atrás dela.
Feroz se esticou em cima da cama de Lórien e ficou rolando com as patas para o alto. Entrei no
banheiro com minhas roupas e fui tomar um banho antes dela voltar com o lanche. Quando acabei,
olhei meu reflexo no espelho e peguei o pingente no meu pescoço fazendo-o crescer, me imaginei do
mesmo modo que cheguei aqui, com a mesma aparência física, eu mudei rapidamente ficando como
era antes, mas o efeito não durou e voltei a ficar como o sangue do Aswang me deixou. Coloquei o
pingente de volta no pescoço, me vesti e virei para sair para o quarto, olhando de relance para o
reflexo no espelho, uma mancha negra me chamou a atenção, ela estava no meu pescoço, onde
Demétrius havia me perfurado com sua garra. A mancha pulsou e cresceu, minha visão ficou
embaçada, me sentei no chão do banheiro e minha respiração ficou difícil. Tentei chamar por Lórien,
mas minha voz quase não saía.
Ewren abriu a porta do banheiro e me pegou do chão, me colocou na cama de Lórien e afastou
meu cabelo para que pudesse ver a mancha.
― Ewren... ― Eu tentei falar, mas não saiu som algum.
― Fique quieta! Por Deus! Você não consegue ficar mais de uma hora sem me arrumar algum
problema, não é? Lórien! ― ele falou o nome dela baixo, mesmo assim ela o escutou de onde quer
que estivesse, pois em pouco tempo apareceu na porta com uma bandeja e duas tigelas. Me senti
inútil, ainda mais depois de ele me dizer que só arrumava problemas. Mas era como se meu corpo
estivesse seco, eu não tinha lágrimas para chorar.
― O que é isso? ― Lórien colocou a bandeja na mesinha de cabeceira e veio mais perto para
ver a mancha.
― É veneno daquele Abissal nojento! Vou buscar um antídoto, fique com ela e não deixe ela se
mover, para não espalhar mais rápido! ― ele saiu bufando e batendo o pé.
― Não se preocupe! Não é muito letal! ― isso foi para me animar? ― Ewren também não está
com raiva de você, só da sua incapacidade de perceber perigo e se afastar dele! ― Lórien pegou
uma bolha de vidro e a colocou bem perto da mancha, murmurou uma melodia baixinho, então a
bolha grudou no meu pescoço e eu senti como se todo meu sangue passasse por aquela bolha, ficou
nisso por quase cinco minutos até que ela começou a se encher de um líquido azulado, e quando a
bolha começou a absorver o sangue também, Lórien a retirou e colocou um lenço em meu pescoço
para limpar o sangue.
― Prontinho! ― ela revirou a bolha com veneno e sangue. ― Ewren vai ficar com muita raiva
de mim!
― Por quê? Você não me curou? ― perguntei coçando por cima do pano que ela havia colocado.
― Ele está lá embaixo fazendo um antídoto! Veneno de Abissal é demorado para sair do corpo,
ia ter que tomar uma poção nojenta com gosto de alga amarga por três dias até o veneno sumir
completamente!
― E por que você não falou que ia fazer isso? ― perguntei olhando sua cara de diversão.
― Por que eu meio que inventei esse modo de tirar veneno! É como se alguém o sugasse de
dentro de você! Mas para isso eu tive que calcular por quanto tempo você está ferida para não errar
o tamanho da bolha, se eu fizesse maior do que o necessário, poderia fazer todas as suas veias
estourarem e aí você iria morrer. ― ela deu um sorriso sádico enquanto girava a bolha na mão! Por
que eles falavam tão naturalmente de modos que eu poderia morrer?
― Mas você já é habilidosa com isso, não é? O fez muitas vezes! ― ela escondeu a boca com a
mão e me olhou de canto de olho.
― Você foi minha primeira cobaia humana! ― ela falou isso e caiu na gargalhada ― Inventei esse
método tem alguns meses. Mas só testei em animais feridos por cobras e nagas! ― Fiquei ali sentada
olhando-a.
― Você é definitivamente louca de pedra! ― disse cada palavra lentamente para que ela
entendesse. Ela piscou pra mim.
― Sem um pouquinho de loucura, a sanidade não valeria quase nada! ― Ewren entrou no quarto
com uma caneca de vidro cheia de uma gosma verde, Lórien sacudiu a bolha para ele, que ficou de
boca aberta e quase deixou a caneca cair.
― Você testou isso nela? ― ele parecia não acreditar no que estava vendo ― Podia ter matado
ela, Lórien! Ficou louca!
― Mas deu tudo certo! ― respondeu ela sorrindo alegremente, ele respirou fundo, colocou a
caneca na mesinha e saiu do quarto, fechando a porta delicadamente atrás dele.
― Vou passar longe dele hoje! ― disse ela pegando uma das tigelas com sopa e me entregando.
― Por quê? ― peguei a tigela e uns pãezinhos e comecei a comer.
― Quando ele fica assim, muito calmo ou em silêncio, é quando ele fica mais irritado!
― Entendo! Minha mãe fazia isso também, quando ela se irritava comigo e com meu irmão, ela
ficava calma e saía andando como se nada tivesse acontecido, mas quando ela voltava, eu podia
correr para o outro lado da cidade que a vassoura que ela atirou me acertava em cheio e deixava uma
marca que não desaparecia por dias! ― Lórien quase engasgou com a sopa de tanto rir.
Ficamos ali conversando boa parte da noite, depois Lórien ficou deitada do meu lado cantando e
afagando meus cabelos e fechei os olhos apenas por um instante para descansá-los, mas não queria
dormir.
7

Coração de Vidro.
Eram duas da manhã quando acordei com sede, Lórien não estava mais no quarto, apenas Feroz,
deitado todo esticado na beirada da cama. Saí do quarto como um gato ladrão, na pontinha dos pés.
Não queria acordar ninguém, só queria achar a cozinha e tomar um pouco de água.
Desci as escadas, virei no corredor próximo à porta por onde entramos e um pouco mais para
frente tinha uma luz acesa. Ouvi vozes e fui me aproximando bem devagar para tentar ouvir a
conversa. Eram as vozes de Lórien e Ewren.
― Mas não é culpa dela! ― Lórien estava falando.
― Eu sei disso! Em parte é minha culpa, pois deveria ter arrumado outra pessoa para levá-la!
Talvez um elfo da floresta de Górtia tivesse sido melhor! A essa altura ela estaria em casa e talvez
nem soubesse que é uma maga! ― eles estavam falando de mim.
― Mas lhe pediu esse favor por algum motivo. Ela poderia ter escolhido qualquer outro, mas
confiou em você! Talvez se outra pessoa a levasse, não se preocuparia em esperar eles abrirem os
portais e saber se ela foi em segurança!
― Eu sei, Lórien! É por isso que vou levá-la até lá, para ter certeza de que ela voltou pra casa.
― Ótimo! Faça isso e pare de reclamar. Leona é um amor de menina e você é um chato! Deveria
tratar ela melhor!
― Eu trato bem demais! Tratei-a um pouco melhor algumas vezes e olha no que deu! ― ele
parecia frustrado.
― Qual é o problema dela estar apaixonada por você? ― Ela sabia, achei que fosse
brincadeira dela!
― O problema dela se apegar a mim é que vai acabar se magoando depois! E não preciso de
mais esse problema! Ela é um imã para tudo de ruim!
― Mas você sabe que é por causa da natureza dela! E você está atraído por ela, não minta pra
mim, sei que você gosta dela! Olha como você está! Está melhor agora do que na época de Emma!
― meu coração acelerou novamente quando ouvi as palavras de Lórien.
― Elas não são nem um pouco parecidas, Emma era doce, graciosa e gentil! Leona é quase como
um bicho selvagem! Ela me derrubou duas vezes, sabia? Ainda tenho uma cicatriz nas costas para
provar ― Lembrei do sonífero e da cadeirada nas costas dele e sorri.
― Talvez essa diferença que te deixou assim, ela é o oposto do que você esperava quando
Nellena te pediu para levar uma menina até lá! ― disse ela ― É por isso que digo novamente, ela é
muito forte! Se fosse treinada por mim, poderia ser tão forte quanto eu e até melhor que você, então
poderia ficar aqui, ela não seria mais uma pessoa vulnerável! ― cada vez que Lórien falava, eu a
amava mais!
― Lórien, é diferente! Ela tem uma casa para voltar com pessoas que a amam! Eu não a tomaria
deles mesmo se a quisesse! Ela vai estar em segurança do outro lado dos portais no mundo dela!
― ele suspirou ― Lá o sangue dela não vale de nada, não vai atrair ninguém!
― Você sabe um jeito disso parar! Viu acontecer antes! ― Ewren riu debochando.
― Vi! E esse é mais um exemplo de que as coisas podem piorar! ― Lórien não desistia de
discutir mesmo com cada novo motivo que ele arrumava.
― Aeban quebrou a maldição da Sacerdotisa, você sabe disso! Ela não ia mais ser perseguida!
― disse ela furiosa.
― Pois é, correu tudo às mil maravilhas depois do ritual, não é? Se lembra? A sacerdotisa
acabou tendo que abandonar Amantia do mesmo jeito! ― pude ouvir o sarcasmo em sua voz, eu
queria tanto perguntar quem era essa de quem eles falavam, mas estava escutando escondida.
― Ewren, você está só arrumando desculpas! ― Ela parecia estar cansando da discussão.
― Eu não quero a Leona aqui, quero que ela vá embora e ainda vou pedir para que Aristes lacre
os outros portais para que ela nunca mais volte! ― ele gritou e bateu na mesa. Senti meu coração
despedaçar como vidro atirado ao chão.
― Ewren! Por quê? ― ela perguntou baixinho como se o repreendesse.
― Porque cansei de cuidar de crianças, não sou babá! Não a quero aqui e vou fazer de tudo para
que ela vá para casa e não volte, entendeu? ― pude ouvir a cadeira que ele estava sentado
arrastando bruscamente contra o chão. Corri de volta ao quarto torcendo para que eles não me
ouvissem subir. Tropecei no tapete do quarto de Lórien ao entrar e caí de joelhos ao lado da cama.
Havia um caroço em minha garganta e meu coração batia dolorosamente, era apenas um estorvo para
ele, alguém que estava só lhe causando problemas.
Mas eu não iria ficar chorando aqui, sequei as lágrimas de meu rosto, tinha que ser rápida.
Montei o plano na cabeça, iria definitivamente seguir sozinha. Peguei minhas coisas e as arrumei na
mochila, apenas o que eu precisava e algumas lembranças, o básico que eu poderia carregar sem
dificultar a viagem, já tinha uma ideia do que faria a seguir. Se ele não me quer aqui, se eu sou um
fardo, eu vou sozinha! Doeu pensar isso, pois nunca mais iria vê-lo. Eu realmente o amava, não fazia
ideia de em qual momento me apaixonei por aquele bruto e grosseiro, mas ia ser doloroso nunca mais
ver aqueles olhos prateados. As coisas que coloquei na mochila poderia levar para casa e dizer que
comprei numa feira de artesanato, pois assim não levantaria suspeitas. Quando terminei de arrumar,
olhei em volta. Sentia que estava me despedindo para sempre, ia ser como despertar de um sonho,
igual àqueles sonhos que tentamos dormir novamente para tentar saber o final, mas não importa
quantas vezes você tente, você nunca volta para o mesmo sonho, então não ia ser assim...
Fiz um carinho em Feroz, ele levantou as orelhas, mas não abriu os olhos. Ainda devia estar sob
efeito do remédio que Demétrius deu para ele. ― Feroz! ― disse bem baixinho ― Cuide bem deles
para mim. ― apertei meu rosto contra seu pelo macio, para não chorar fiquei dizendo para mim
mesma “é apenas um até logo, amanhã eu volto!” Tentei acreditar nisso enquanto caminhava pelo
quarto até a janela, como tinha notado da rua, era realmente grande e eu podia ficar em pé nela
facilmente.
Segurei firme o pingente e o fiz crescer, tirei uma folha de papel da mesinha de Lórien e a
transformei numa águia gigante de papel, ela bateu as asas fazendo um forte vento e derrubando
algumas coisas no quarto, torci para ninguém ter escutado. A águia voou alto e ficou pairando sob a
janela. Antes de sair, peguei todo o dinheiro que havia sobrado e deixei em cima da cômoda com um
bilhete. “Ewren, obrigada pelos seus serviços, aonde vou, não precisarei disso”. Parecia grosseiro,
mas ia ficar assim mesmo, ele merecia aquelas palavras. Olhei para minha escrita bem trabalhada de
anos usando cadernos de caligrafia. Fui até a janela e pulei sobre a águia de papel, ela tremeu um
pouco, mas parecia suportar meu peso facilmente, fiquei de olhos fechados por alguns segundos
torcendo para ela não se desfazer. Quando percebi que ela não iria sumir, dei a ordem de onde ela
deveria ir.
― Para a torre das nuvens, o mais rápido que você puder! ― a águia obedeceu, me segurei
enquanto ela disparava cortando os céus, vi as luzes da cidade ficando para trás e cada vez se
afastando mais. Meus olhos se encheram de lágrimas novamente. Está tudo bem! Só estou indo para
casa! Eu sabia que era onde eu deveria estar e que precisava ir, mas sentia que esse era meu lugar,
parecia que eu havia nascido, crescido e vivido toda minha vida aqui, era como se o mundo que eu
estava prestes a entrar, fosse o mundo surreal.
Olhei para baixo novamente e não havia sinal de cidades ou vilas.
Ainda estava bastante escuro e fiquei com um pouco de medo olhando para baixo naquela
escuridão, a águia era bastante silenciosa, só ouvia poucas vezes suas asas batendo rapidamente para
manter-nos planando. Acabei cochilando, quando acordei os sóis já surgiam, tingindo os céus de
cores maravilhosas, senti um frio na espinha ao avistar uma pequena vila ao meu lado esquerdo,
parecia algo familiar e fiquei olhando para ela para tentar entender o que havia de errado. Uma
nuvem cresceu um pouco à minha frente tomando forma de um homem gigante dizendo com uma voz
de trovões:
― Você não tem autorização para sobrevoar essa área! Desça imediatamente! ― continuei
voando com receio de descer ― Você tem dez segundos para descer! ― O gigante de nuvens
começou uma contagem, não sabia o que fazer, se eu descesse, estaria vulnerável no chão e não sabia
nada sobre o local que estava sobrevoando, poderia ser um lugar muito perigoso, afinal, era um
território hostil. Quando o gigante de nuvens terminou a contagem, ele ergueu suas mãos e as bateu,
desmanchando-se e fazendo uma onda de choque tão poderosa que fez o vento e as nuvens virem em
minha direção. Agarrei-me fortemente a águia, mas quando o vento forte a tocou, ela se desfez em
milhares de confetes de papel e fui atirada longe. Segurei o cajado e pensei em qualquer coisa que
pudesse amortecer minha queda, mas antes que caísse, alguém me segurou. Eu estava com as mãos
nos olhos, fiz um check-up mental para ver se meu corpo estava inteiro, estava tudo bem, ainda, então
abri meus olhos lentamente para ver quem era.
Arin estava me segurando. Arin! O que ela fazia aqui? Como me achou?
― Poderia ter me chamado e dito que não queria mais seguir viagem com Ewren! ― ela estava
séria, aborrecida, como uma mãe que pega o filho travesso fazendo uma coisa errada.
― Bem, desculpe, me decidi de última hora que queria ir sozinha... ― ela revirou os olhos igual
à Lórien. ― não sabia que eu não poderia voar por aqui, achei que só os elfos negros não podiam.
― Você não tem um registro, então você representa uma ameaça também! ― eu fiquei
envergonhada.
― Só queria ir logo pra casa e não causar mais problemas a ninguém! Ewren ficou muito
chateado? ― perguntei.
― Eles nem perceberam que você partiu, dormiram discutindo na sala, eu escutei um barulho no
quarto de Lórien e depois vi uma águia de papel rodeando minha casa. Então concluí que você ouviu
a conversa deles e fugiu ou resolveu chamar a atenção de toda a cidade fazendo um espetáculo
aéreo! ― fiquei mais envergonhada ainda. Arin desviou o voo e começou a descer.
― Aonde vamos? ― estava com medo dela voltar para casa e entregar minha escapada a Ewren
e Lórien.
― Tomar café, depois vamos pra torre das Nuvens! ― ela falou com toda calma.
Pousamos dentro da Vila que agora a pouco quis me derrubar. Um homem de cabelos espetados
veio correndo até nós.
― Vocês aí... Ah, Senhora Arin! ― Ele ficou completamente sem graça quando viu quem estava
comigo.
― Olá Dracir! ― disse ela cordialmente ao homem. Ele tinha uma aparência estranha, pele meio
esverdeada como dos aswangs que encontramos no deserto, mas não parecia ser um deles.
― Perdão senhora, achei que a menina fosse alguma espiã! ― ele abaixou a cabeça quando ela
se aproximou dele.
― Está tudo bem! Não está, Leona?
― Está sim! ― eu tentei sorrir, porém pareceu forçado.
― Então o que posso fazer por vocês? ― ele perguntou abaixando-se ligeiramente, como se
sentisse intimidado pela presença de Arin.
― Por enquanto nada, Dracir! ― ela fez um gesto para que ele se afastasse. Ele fez uma
reverência e se afastou. Eu a segui até um prédio que parecia ser uma casa de chá. Arin entrou, a
segui enquanto ela escolhia um bom lugar para sentar, o lugar era até bonitinho, com decoração
delicada de tons pastéis, parecia uma casa de avó. Arin sentou-se e imediatamente apareceu uma
jovem para servi-la. Ela pediu algo para comer e depois olhou para mim para que eu pedisse o meu
café. Pedi a primeira coisa que vi no cardápio e fiquei sentada de cabeça baixa. Depois de um bom
tempo em silêncio, ela suspirou e começou a falar.
― Por que você saiu assim? ― sua voz era doce novamente.
― Não queria mais ser um estorvo para ninguém! ― Estava falando de Ewren e ela sabia.
― Eu te levaria imediatamente se você tivesse pedido! ― ela parecia irritada, mas seu tom de
voz não deixava isso claro ― Meu filho pode ser estúpido e grosseiro, mas ele se arriscou para te
trazer até aqui em segurança e você faz essa bobagem! ― ela realmente estava irritada, só minha
presença já colocava Ewren em perigo e eu fui ingrata de me pôr em risco por ter ficado magoada.
― Sinto muito! ― foi tudo que consegui dizer.
― Eu sei que sente, mas antes de tomar decisões, você tem que pensar no que as outras pessoas
fazem por você... Leona quero te contar uma coisa que meus filhos suspeitam, mas ainda não têm
certeza, para te dizer isso, você tem que manter a calma... ― quando ela ia começar a falar, a jovem
trouxe o café e falou três paravas em outra língua, pareceu algo muito sério, pois Arin endureceu e
fechou os olhos. Quando a jovem se afastou, perguntei o que ela ia dizer.
― Tome seu café primeiro! ― disse ela rapidamente. Nem sei o que havia pedido, era pegajoso
e cinza. Coloquei uma colherada na boca, tinha gosto de aveia, mas ainda assim era muito estranho
ao paladar. Mesmo assim comi, engolindo rapidamente as colheradas para não devolvê-las ao prato.
Quando terminamos de comer, Arin levantou-se, pagou a conta e saiu. Fui atrás dela sem entender
sua repentina mudança de humor. Do lado de fora do estabelecimento, ela abriu os braços para o sol
Sirius e mudou de aparência, eu não consegui acreditar, por mais que tenha visto Ewren e Lórien
fazerem algo parecido, foi como olhar para o sol e depois passar a vida trancada em um quarto
escuro.
Seus cabelos castanhos ficaram dourados, em seu braço direito apareceram vários aros como
pulseiras douradas e em sua testa uma pequena flor de lis da mesma cor. Suas asas eram tão grandes
quanto as de Ewren, mas eram brancas e seus olhos ficaram em cor de âmbar.
― Vamos! ― disse ela sorrindo ― dessa forma chegaremos lá em poucas horas de voo! ― Ela
esticou a mão para mim e a segurei, então ela me pegou no colo e deu um salto. Disparamos no céu
como uma bala. Mal consegui erguer minha cabeça com a pressão do voo. Depois de alguns instantes
ela ficou em linha reta, foi aí que consegui levantar a cabeça. Arin tinha um olhar entristecido, mas
quando me viu olhar para ela, sorriu.
― Arin? ― eu queria conversar, quebrar o silêncio e distraí-la, mas não tinha ideia do que dizer,
então perguntei a primeira coisa que me veio à cabeça ― Por que não tem carros aqui? ― “sério
gênio? Foi isso mesmo que você conseguiu perguntar?” Arin sorriu.
― já trouxeram carros para cá antes, mas não deu nada certo! Além de serem barulhentos, são
muito poluentes. Em poucos dias que alguns ficaram aqui, várias criaturas ficaram doentes com
aquela fumaça que eles soltam, sem falar que com a magia que existe por aqui, não tem lógica usar
uma coisa tão ultrapassada e sem segurança! ― claro! Porque uma águia de papel virar farelo no
ar é um modo bem seguro de viajar” pensei.
― Entendo, isso acontece muito no meu mundo também... ― Eu realmente não fazia a mínima
ideia de como puxar assunto com ela.
― Aqui os cavalos e Tigres do Sol como aquele que você deixou lá em casa, são mais usados
como montarias. São muito mais rápidos que carros e são uma boa companhia, as carruagens
voadoras também são uma boa opção, mas aqui em Edro elas são pouco usadas. ― disse ela num tom
desanimado ― Os gigantes não querem nem saber se você tem permissão para voar com uma, eles
simplesmente te derrubam!
― Eu não vi nenhum gigante desde que estou aqui! ― disse, na verdade não tinha visto nem a
metade das criaturas que Ewren e Nena disseram habitar por aqui.
― Dê graças por isso! Nem eu me arrisco a enfrentar um gigante sozinha!
― E enfrenta outras criaturas? ― eu a imaginava como uma diplomata, uma soberana talvez, mas
não uma guerreira.
― Sim, eu era General do Exército de Górtia antes de me casar com o Pai de Ewren... ― ela
mudou para uma expressão terna e saudosa. ― Ele era maravilhoso, era Major, muito forte também!
Nós nos conhecemos brigando! ― ela riu da lembrança que espelhava em seus olhos. ― Eu estava
ensinando alguns soldados a lutar com espadas duplas e ele veio me dizer que eu estava errando,
então o mandei se colocar em seu lugar, mas ele continuou dizendo que o modo que eu estava
ensinando era o errado, então sugeri que se ele me vencesse, que ensinasse do modo dele! ― o
sorriso dela foi enorme.
― Ele venceu? ― perguntei curiosamente.
― Não, perdeu no segundo golpe! E disse que me deixou vencer, pois não queria humilhar
alguém na minha posição! Depois, eu o observava treinar todas as madrugadas até ficar melhor que
eu
― Onde ele está agora? ― perguntei para não deixar o assunto morrer e o silêncio voltar.
― Ele morreu no final da batalha contra os gigantes. Mas eu já carregava Ewren, então
abandonei o exército e me instalei na cidade de Alamourtim por algum tempo antes de voltar para a
Vila Safira. Ewren tinha uns doze anos quando conheci o pai de Lórien. Ele era um homem bom, era
um boticário e herbologista, também um mago muito poderoso, mas quase nunca utilizava seus
poderes. Ele ensinou tudo que Ewren sabe sobre venenos, remédios e poções, ele ficou muito
habilidoso graças ao padrasto.
― E o que houve com ele?
― Ele desapareceu há muito tempo, foi chamado para uma expedição com um grupo de
reconhecimento ao mundo dos sons, o décimo primeiro mundo do círculo, e nunca mais voltou.
― Você acha que ele ainda pode voltar? ― perguntei
― Acho que não, o mundo dos sons é o maior de todos do círculo dos Doze e o tempo lá passa
muito rápido em relação a Amantia, alguns dias aqui equivalem a meses lá. Lá os portais não abrem
com tanta facilidade como aqui, poucas pessoas que foram, retornaram, e os que voltaram estavam
muito velhos e não deram conclusões sobre o mundo. ― me passou um frio na espinha quando
imaginei o que aconteceria se tivesse caído lá.
― Círculo dos doze? ― perguntei tentando arrancá-la de seus pensamentos.
― Sim, é como uma espiral que prende os doze mundos das doze dimensões diferentes num
mesmo lugar. O seu mundo, a terra, é o quinto mundo, esse aqui é o primeiro. ― ela movia a boca
silenciosamente, fazendo uma conta.
― Não entendi, como num mesmo lugar?
― Por exemplo, estamos sobrevoando a floresta Kiralum, a floresta dos mortos. Mas se eu
pudesse abrir um portal direto aqui e agora, esse mesmo lugar que estamos corresponde a um ponto
fixo no seu mundo, ou a um ponto fixo no mundo dos ventos, os portais se abrem sempre como se os
mundos estivessem alinhados e unidos.
― Como o portal que caí? Então o lago que eu caí fica embaixo da loja do velhinho onde abri o
portal?
Arin riu.
― Mais ou menos, não embaixo, mas no mesmo lugar! ― disse ela.
― Como um mundo dentro do outro! ― concluí, era incrível. ― mas eu caí por horas! Como
pode ser no mesmo lugar?
― Você atravessou um portal não natural que é parecido com o direto, vai sempre levar ao local
em que os mundos se encontram, mas é um portal feito por algum mago ou bruxa para fins comerciais.
Normalmente ficam ligados a locais não habitados para que eles possam passar com contrabando
despercebidos dos outros! Você deu muita sorte de ter tirado o espelho de um lugar, colocado em
outro e ter caído perto de uma das casas de Nellena.
― Então, se eu não tivesse tirado o espelho da casa da velhinha, eu cairia em outro lugar? ―
perguntei.
― Sim, sua sorte foi ter caído na água...
― Legal!
― Os Magos Salamandras e os Metamorfos têm uma habilidade incrível para abrir os portais
diretos mais rapidamente, o que demora em média dois dias de preparação, eles fazem em algumas
horas! ― Um traço de preocupação passou por seus olhos.
― Então, daqui a algumas horas estarei em casa... ― eu estava tão louca para voltar para casa no
dia que cheguei aqui, e agora? Eu sentia falta da minha mãe, de Leonard, de Lucy, mas não conseguia
desfazer aquele nó na minha garganta. Eu não queria partir, de certa forma eu queria ficar, mas sabia
que não podia. ― Arin? Por que Black Jango está atrás de mim? ― perguntei e senti seu corpo
enrijecer com a tensão.
― Não posso dizer ao certo, mas acredito que ele esteja cumprindo ordens.
― De quem? ― insisti, ela sabia de algo, pela sua reação ela sabia e não queria me contar.
― Arcádius, um mago muito abominável que tenta por séculos ganhar o controle total desse
mundo. Se ele conseguir todo o poder que deseja, ele acha que vai conseguir realizar esse feito.
― Então ele está atrás de mim por que acha que meu sangue pode o fazer ser o mais poderoso?
― Ele está atrás de você porque tem certeza de que seu sangue vai dar o que ele precisa. ―
respondeu ela.
― Isso é ridículo! Quer dizer, já vi algumas coisas estranhas, mas seria impossível o meu sangue
fazer alguma diferença para o poder de alguém! E como ele me encontrou? Como saberia que eu
estava aqui? ― ela me olhou com severidade.
― Acha que estou mentindo para você? Ele é um mago muito poderoso, possui feitiços que
poderiam encontrar uma pérola no mar das conchas sem ao menos chegar perto da água! ― Então
Arin fechou as asas e entrou em queda livre. Agarrei-me em seu pescoço e prendi a respiração, ela
passou pelas árvores sem ao menos ser tocada pelas folhas e pousou suavemente no solo. A floresta
era muito escura, o sol quase não chegava aqui e demorou muito para minha visão se acostumar. A
única luz que eu via era a que emanava de Arin.
Ela fez aparecer um arco dourado e uma flecha e a disparou. A flecha passou zunindo por mim e
desapareceu entre as árvores. Pouco depois escutei um urro e grunhidos.
Arin então andou em direção ao som, quando cheguei bem perto pude ver um animal enorme à
beira da morte com a flecha cravada em seu pescoço.
― Um lobo? ― Impossível ser um lobo comum, era grande demais para ser um e seu pêlo era
prateado.
― É um Waheela, uma espécie de lobo misturado com urso. ― ela começou a pronunciar
palavras estranhas e correntes de prata prenderam o Waheela ao chão. Ela retirou a flecha do animal,
que ganiu e se contorceu de dor, depois começou a tentar uivar, mas o corte em seu pescoço era
profundo demais.
― Me dê sua mão, Leona ― eu estiquei a mão como ela ordenou, Arin então passou a unha de sua
mão abrindo um corte em minha palma. Eu suguei o ar, ela segurou minha mão de modo que formasse
uma concha, quando já estava cheia de sangue, ela olhou para mim. ― Preste atenção! ― Arin abriu
a boca do Waheela e virou meu sangue na boca do animal, que se debatia debilmente no chão,
ficamos ali observando o bicho, ele parou de agonizar e ficou em silêncio, não respirava mais.
Alguns minutos se passaram, o silêncio era tenso, ia indagar o que havia acontecido com o lobo,
então uma forte luz saiu do animal, Arin me agarrou e deu um pulo para trás. O Waheela estava de pé,
havia arrebentado as correntes, dobrado de tamanho, seu pêlo estava com um brilho azulado e em sua
pata direita haviam marcas prateadas formando o desenho de uma corrente. Caí de joelhos ao ver o
animal ali, de pé e com o dobro do tamanho, agora parecia um elefante na altura. Ele farejou o ar e se
virou para correr, derrubando algumas árvores na fuga.
― Entendeu agora? Você é descendente direta da família Arbarus ― Arin olhava para onde o
Waheela havia fugido. Meu sangue ainda pingava da mão, onde as gotas caíam na terra, brotavam
pequenas flores vermelhas e brilhantes. Arin a levantou e a assoprou, no mesmo instante que o ar
gelado saiu de sua boca, minha mão se curou imediatamente.
― Vamos! ― disse ela me pegando e voando novamente. Eu estava em choque, até agora eu não
tinha realmente acreditado nesse poder que podia ou não existir no meu sangue. Um bom tempo
depois, consegui falar novamente.
― Mas ouvi Lórien dizer que tinha um jeito desse poder desaparecer do meu sangue!
― É, mas sempre tem um risco, então não é uma boa ideia! ― sua expressão era mais tensa e sua
boca havia se estreitado em uma fina linha.
― Mas o que é? O ritual? ― Arin fechou os olhos ― Não vou pedir ajuda de ninguém, talvez
possa fazer sozinha! ― ela me olhou docemente e sorriu.
― Você não poderia realizar esse ritual sozinha, pois não teria nenhum efeito! Agora deixe isso
de lado e olhe lá! ― ela apontou com o queixo para um ponto no meio das nuvens, bem a nossa
frente. Eu mal conseguia ver, pois as nuvens faziam colunas como redemoinhos em volta de algo
cintilante e azul. Ao chegar mais perto, deu para ver o que ela estava tentando me mostrar. Era
simplesmente maravilhoso, o lugar mais lindo que já vi! A cidade era completamente envolta em
nuvens, mas parecia um sino dos ventos gigante, a cidade flutuava e brilhava, eu tenho certeza que
podia ouvir música vinda de onde os ventos batiam nos prédios azuis da cidade.
Arin diminuiu a velocidade do voo e foi descendo lentamente até um ponto que parecia ser uma
pequena praça. Quando pousamos, uma criança de olhos amarelos e cabelos azuis veio nos receber.
― Senhora Arin! Quanto tempo! ― ela sorriu para Arin e beijou sua mão.
― Muito tempo, Datani! ― disse ela para aquela criança, eu não sabia ao certo se era um menino
ou uma menina.
― Veio procurar o mestre Aristes? ― perguntou a criança me olhando desconfiada de canto de
olho.
― Sim, tenho um pedido a lhe fazer, poderia nos levar até ele? ― a criança balançou a cabeça e
foi andando na nossa frente. A cidade era mais linda de perto, a música que eu ouvia era mesmo do
vento batendo nos prédios, que eram feitos de um fino vidro brilhante. Andamos por algumas ruas
estreitas e subimos uma alameda inclinada até chegar a um tipo de torre com uma abóbada gigante em
cima e uma espécie de para raios no alto.
― Arin? ― cochichei puxando sua roupa ― para que precisa de para raios aqui se estamos
acima das nuvens? ― ela riu.
― Não é um para raios ― cochichou de volta. ― é um aparelho que causa ondas e vibrações
para abrir os portais Artificiais!
Entramos naquele prédio e subimos por um elevador também de vidro até a abóbada da torre.
Subíamos em espiral, fiquei com medo de enjoar com todas as voltas, mas chegamos antes de meu
estômago me trair. Datani nos guiou até a entrada da sala. A sala era como um laboratório gigante, o
ar era puro e o local era tão fresquinho que nem parecia que estávamos em um ambiente fechado.
Não havia caldeirões e livros antigos, tudo parecia novinho em folha e parecia muito com um
laboratório de química, com exceção dos aparelhos gigantes que se espalhavam pelos cantos.
Um senhor pulou em nossa frente saindo de uma pilha do que pareciam ser tecidos, tinha um jeito
simpático e divertido no rosto e sua aparência era mais divertida ainda. Ele possuía olhos laranja e
pele azulada, com os cabelos tipo um tufo de algodão em cima da cabeça. Quando nos viu, se
assustou, arrumou-se e ficou como um senhor normal, pele branca, cabelo branco e olhos amarelos.
― Como o senhor fez isso? ― perguntei, o vendo mudar de aparência rapidamente sem usar
nenhum tipo de magia.
― Ah, só porque sou velho, não significa que não consiga mais pular, menininha! Minhas pernas
são fortes como pernas de rã! ― disse ele flexionando e tencionando suas pernas. Eu ri.
― N-não! Quis dizer, mudar de aparência! ― ele coçou a cabeça.
― Ué, é o que os metamorfos fazem! Posso mudar de aparência, de forma e até me transformar
em outros objetos se quiser!
― Incrível! ― disse olhando fascinada enquanto ele mudava de aparência. Quando ele viu que
Arin estava atrás de mim, pigarreou e ficou na aparência de um jovem bonito de cabelos brancos
trançados.
― Arin, flor das florestas! ― disse-lhe beijando sua mão ― O que a traz aqui? ― Arin o
cumprimentou e mudou seu idioma para algum que Aristes a entendesse sem que eu entendesse. Sua
expressão mudou de tranquila para preocupada enquanto Arin falava. Eles ficaram falando de um
jeito tenso por alguns instantes, por fim Aristes respirou fundo.
― Vou fazer os preparativos para abrir o portal, poderiam aguardar na cidade? Peço para que
retornem dentro de uma hora e estará tudo pronto! ― Aristes sorriu para mim. ― Tem uma sorveteria
na praça principal com sabores vindos de toda Amantia, talvez você goste de tomar alguns como
lembrança daqui! ― disse ele. ― Pode botar na minha conta! ― Ele se afastou, foi até um cilindro
oco de vidro no meio da sala e abriu uma porta nele.
Saí no encalço de Arin, descemos do prédio e seguimos até a praça que Aristes falou. A
sorveteria que ele havia dito era enorme e tinha tantos sabores de sorvete que eu não podia contar.
Cheguei perto de um freezer gigante para escolher, mas Arin me arrastou para o outro lado rindo.
― Aquele lado ali são sabores vindos da Cidade das Cinzas.
― Hum?
― São salgados, por exemplo, tripas e órgãos! ― quando ela disse isso, eu devo ter parecido
com um metamorfo, pois passei de verde para azul.
― Qual é seguro para mim, então? ― perguntei.
― Aqui, todos desse lado vêm da floresta de Floresta de Górtia, Monte Azul e Lótus Vale!
― Lótus Vale?
― Sim, e esse ― disse me mostrando um sorvete azul com pequenas bolinhas amarelas ― é o
favorito de Aeban.
― Eu quero provar esse! ― disse sorrindo lembrando-me de Aeban, eu sentia por ele um afeto
muito grande. Acabei pegando uns cinco sabores de sorvete e o favorito de Aeban em um potinho
separado.
Eu o provei primeiro.
― É delicioso!
― Lavanda e sementes de Óris, uma flor doce que só cresce naquela região.
― Essa bolinha tem sabor parecido com amora silvestre e mel! ― falei, era delicioso e eu nunca
imaginei lavanda como um doce.
Ficamos ali tomando sorvete e conversando. Quando peguei um último potinho de sorvete e voltei
para a mesa ao ar livre na Praça, Arin olhou para meu pote e riu.
― É sorvete de chocolate meio amargo com nozes? ― ela perguntou ainda sorrindo, apoiada em
um dos cotovelos e descansando seu rosto com a mão, lançando-me novamente aquele olhar
maternal.
― É sim, é meu favorito! ― disse enchendo a boca com aquele delicioso sorvete.
― É o favorito de Ewren também! ― um caroço voltou à minha garganta e tive que lutar contra
as lágrimas, havia feito um esforço tão grande para mantê-lo longe dos meus pensamentos e ela o
trouxe de volta com uma coisa tão simples, nunca imaginaria Ewren tomando sorvete, conversando e
sorrindo normalmente.
― Desculpe ― disse ela olhando minha tristeza. ― não imaginava que ele fosse tão importante
assim pra você! ― eu sorri tristemente.
― Eu não faço ideia de quando ele passou a ser tão importante assim para mim... ― agora eu não
conseguiria mais tomar um sorvete de chocolate sem pensar nele.
― Ele se importa muito com você Leona! ― ela afagou minha cabeça enquanto falava ― se não
fosse, ele jamais pediria para você ir para casa. Aqui não é seguro para você! ― eu não queria
discutir. Eu sabia, ouvi as palavras dele e senti sua frieza em cada uma delas quando ele disse que
não me queria aqui.
― Bom, está na hora, não é? ― perguntei olhando em direção à torre e vi aquele objeto parecido
com um para raio se transformar em uma plataforma gigante com um cilindro de vidro no meio. Aos
poucos ela foi se fechando até parecer com uma bolha de sabão gigante sobre a torre.
― Está sim! ― disse ela. Nos levantamos e fomos novamente até a torre, no caminho até lá, cada
passo era tão doloroso que parecia que eu pisava nos cacos de vidro retirados de meu coração.
― Aristes? Está feito? ― perguntou Arin ao subir até a redoma de vidro acima da cidade.
― Sim! ― ele abriu uma porta no cilindro no meio da bolha. ― entre aqui, jovenzinha! ― Arin
me abraçou e disse um “Adeus e não conte nada disso a ninguém”baixinho em meu ouvido, Aristes
segurou minha mão e me guiou para dentro do cilindro que imediatamente se fechou, ele levantou um
dedo fazendo-me esperar e pegou um pequeno frasco de dentro de seu bolso. Abriu novamente a
porta e me entregou ― Beba! ― eu bebi sem questionar. ― Vai fazer você voltar à sua forma humana
normal enquanto estiver no outro mundo, caso você volte algum dia, ele vai perder o efeito! ―
agradeci. Eu estava sobre um espelho dentro daquele cilindro. Em volta da bolha, subiram do chão
quatro torres de metal com bolas douradas nas pontas e um forte vento começou a soprar lá fora.
Aristes mexia em um enorme painel e Arin não tirava os olhos do horizonte, falando com Aristes.
Ele movimentava a mãos para ela.
A primeira torre de metal a minha esquerda começou a brilhar, em cima dela apareceram nuvens
de tempestade e um raio atingiu a torre, fazendo-a lançar um feixe de luz em direção ao cilindro onde
eu estava, no topo do cilindro havia uma bola também de metal que quando atingida pelo feixe,
começou a ficar vermelha.
Uma a uma aconteceu a mesma coisa com as outras torres, até que a bola em cima do cilindro que
eu estava estivesse completamente vermelha. O espelho embaixo de mim ficou com um fraco brilho e
começou a se distorcer. Fechei os olhos e desejei tanto que Ewren estivesse aqui para dizer adeus.
Foi então que vi no horizonte um par de asas negras se aproximando. Minhas mãos estavam
abertas no vidro e meu coração parecia que ia atravessá-lo de tanta emoção. Era Ewren, vinha
voando rapidamente até nós. Ele pousou perto do cilindro e colocou a mão no vidro, onde a minha
mão estava, apenas o vidro gelado nos separava.
― Até um dia ― disse ele dando um meio sorriso. Eu não consegui suportar. Meus olhos
encheram-se de lagrimas e meus pés tremeram sobre a superfície mole do espelho.
― Você quebrou sua promessa... ― disse baixinho entre as lágrimas encarando-o, tenho certeza
de que ele me ouviu, pois desviou o olhar e encarou Arin.
― De lembranças à sua mãe! ― Disse Aristes, olhei assustada para ele, Ewren também e Arin
bateu na testa num sinal de reprovação.
Foi então que senti uma forte dor em meus ossos e parecia que todas as minhas juntas iriam se
desmanchar, a superfície do espelho ficou líquida e fui sugada pelo buraco que apareceu embaixo de
mim. A última coisa que vi foram os olhos prateados de Ewren enquanto caía no vazio novamente.
8

Chegando em casa.
Fui atirada para trás e bati em uma pilha de objetos duros, fazendo-os cair em cima de mim.
Levantei desajeitada e me limpei de toda a poeira que havia caído sobre mim. Olhei em volta
cautelosamente, ainda não era nem meio dia quando caí novamente na Terra. Olhei para minha frente
a tempo de ver o espelho pelo qual entrei em Amantia tremer e endurecer.
Estava nos fundos do antiquário do vovô para quem vendi o espelho! Levantei, corri para a frente
da loja e notei que eu estava trancada aqui dentro. Na porta da loja havia uma pequena plaquinha
escrita “Estou viajando, volto em um mês”.
Os muros dos fundos não eram tão altos, eu poderia pular com facilidade, mas tive medo de
alguém me ver. Sentei nos fundos de frente para o espelho e aguardei a noite chegar para poder ir
para casa. Meu reflexo no espelho era o mesmo de quando parti, apenas as roupas e a pulseira de
Ami que estavam no meu braço me faziam ter a certeza de que não foi um sonho. Enquanto esperava
as horas passarem, eu colocava meus pensamentos em ordem. Lembrei-me das últimas palavras de
Aristes “Dê lembranças à sua mãe” e um calafrio percorreu meu corpo, de onde ele a conhecia?
Fiquei por algumas horas quebrando a cabeça e tentando imaginar, mas, mesmo que ele viajasse para
cá, como ele saberia que eu era sua filha? Só havia uma explicação para isso e eu não conseguia
acreditar que poderia ser verdade. A propósito, eu estava morrendo de fome a essa altura.
Cochilei sentada ente aquele monte de entulhos e acordei com meu celular tocando, peguei para
atender e vi que era minha mãe.
― Alô? ― disse inocentemente.
― Leona? Vai ficar morando na casa de Lucy para sempre? ― disse ela do outro lado da
linha. Era tranquilizador escutar sua voz, mesmo que fosse dando uma bronca.
― Estou indo mãe! Já já chego em casa! ― disse limpando as lágrimas do meu rosto.
― Estou te esperando para jantar! ― disse ela e desligou. Me preparei para pular o muro, mas
aí veio um dilema em minha mente. O espelho! Eu queria levá-lo, mas já tinha vendido para o
velhinho! Se eu levasse, estaria roubando-o. Pensei mais um pouco, então resolvi que iria levar
comigo e no outro dia iria tirar o dobro do dinheiro da minha poupança e colocar por baixo da porta
com um envelope e um bilhete ao dono do lugar.
Peguei minha calça de moletom e amarrei na borda do espelho para descê-lo até o outro lado do
muro sem o deixar cair e quebrar. Quando o soltei no chão, pulei rapidamente o muro e fui
caminhando em direção á minha casa.
Chegando na frente do portão, senti cheiro de comida, meu estômago roncou e eu entrei sorrindo.
Mamãe estava na cozinha com Leonard agarrado a ela e implorando para poder passar o fim de
semana que vem na casa de férias de um de seus amigos.
― Não! Já disse que não! Sossega menino! ― disse ela o empurrando. ― Leona! ― eu coloquei
o espelho no chão e corri até ela.
― Mãe! Senti tanto a sua falta! ― eu a abracei com força, queria sentir o máximo do seu perfume
e fiquei mexendo em seus longos cabelos castanhos.
― Mal ficou dois dias fora e já ficou com tanta saudade assim? Estou com medo de perguntar o
que fizeram! ― ela riu ― Vamos, vá se lavar para jantar! Olhe seu cabelo cheio de teias de aranha!
O que vocês estavam fazendo? ― estava toda empoeirada por causa da pilha de objetos que havia
aterrissado.
― Mexendo com coisas que não devíamos! ― falei brincando.
Antes de subir as escadas olhei para ela de novo, sua aparência era tão comum. “Não tem como
ela ser uma maga, deve ter sido uma grande confusão!”
Peguei o espelho e subi as escadas para o meu quarto.
Minha cama estava forrada e o quarto estava todo limpinho e arrumado, minha mãe deve ter
faxinado tudo enquanto eu não estava. Corri para o banho e fiquei lá quase meia hora, fazia tempo
que não tomava um banho tão bom assim.
Voltei para o quarto e tirei tudo da minha mochila. Peguei as joias que havia comprado em
Amantia e as escondi em uma caixa de sapatos, dentro de uma tábua solta no assoalho embaixo da
cama.
O espelho que Lórien me deu estava ali, olhei para sua superfície e tentei engolir o caroço que se
formou em minha garanta. Enrolei-o num pano e coloquei em cima da caixa de sapato antes de botar a
tábua e arrastar a cama de volta para o lugar.
Tirei meu espelho antigo da parede e pendurei o de cristal no lugar dele, havia ficado totalmente
deslocado do resto da decoração, mas nem liguei.
Tirei a toalha para me vestir e quando olhei minhas costas no espelho, uma grande cicatriz
rasgava minhas costas de fora a fora, passei a mão sobre ela e lembrei de Ewren me salvando do
vampiro logo depois de sairmos de Alamoutim. Respirei fundo, não queria chorar! Meu telefone
tocou tirando minha mente do transe. ― Leo? ― disse a voz que eu reconheceria em qualquer
mundo que estivesse.
― Lucy! Acabei de chegar em casa! ― falei.
― Precisamos conversar amanhã na escola! Te acobertei por uma noite e um dia inteiro! ―
ela riu ― Quero todos os detalhes!
― Certo, amanhã te conto! Agora vou Jantar ― disse desligando o telefone e descendo as
escadas correndo. Só haviam se passado quatorze horas aqui desde que estive em Amantia, mas lá
haviam se passado vinte e oito dias.
Minha mãe havia feito minha comida favorita, frango frito com purê de batatas. Comi até minha
barriga estufar e bebi quase meia garrafa de refrigerante.
― Que isso, filha? Parece que não come há um mês! ― minha mãe me olhava assustada.
― É muito boa a sua comida, mãe! ― disse quase beijando o prato. Leonard olhou para minha
mãe e dela para mim novamente e riu.
― Vai ficar gorda! ― eu engasguei com a sobremesa.
― Não enche! ― disse como faria normalmente para não levantar suspeitas. Minha vontade era
de abraçá-lo também.
Deitei na minha cama e fiquei rolando nela, era tão macia! Não demorei nada a pegar no sono.
Meu despertador tocou como sempre, fazendo-me pular da cama e ir me arrumar para ir à escola.
Coloquei um jeans confortável e uma blusa sem mangas, pois fazia calor lá fora. Olhei o pequeno
pingente em minha cômoda, não sabia se iria funcionar fora de Amantia, mas o coloquei no pescoço
mesmo assim, pois já estava acostumada com ele lá.
Desci as escadas para tomar café e Leonard estava como sempre agarrado em seu celular.
Engoli o café rapidamente, queria encontrar Lucy, dei um beijo em minha mãe e saí correndo para
a escola. Era tão estranho estar de volta em casa, me sentia estranhamente deslocada, como se não
pertencesse mais a esse lugar, tudo que eu conhecia era pouco e existia muito mais, mas eu não
poderia contar a ninguém.
Talvez somente à Lucy, minha melhor amiga! Tenho certeza de que ela não contaria a ninguém!
Passei as duas primeiras aulas fazendo as provas que perdi no dia anterior (com uma falsa
assinatura em um atestado médico, claro), depois fiquei planejando como iria contar para Lucy, ela
não acreditaria. Na terceira aula fiquei de bobeira, não conseguia prestar atenção na chata matéria de
inglês no quadro. Quando o sinal tocou anunciando o intervalo, corri para o pátio, onde Lucy acenava
embaixo da árvore fazendo sinal que havia guardado um lugar para mim no lugar de sempre, mesmo
sendo as únicas que sentávamos ali, o resto dos alunos ficava nos corredores dentro da escola por
causa do calor.
Sentei-me embaixo da árvore e Lucy me aguardava com um olhar ansioso. Ela havia trazido
lanches para nós duas.
― E aí? Com quem você saiu? O Fábio da sala dezesseis? Eu soube que ele está interessado em
você!
― Não, Lucy! Calma, muita calma! ― respirei fundo ― Não é nada disso que você está
pensando! ― Então comecei a contar detalhe por detalhe de toda a viagem e de tudo que tinha
acontecido em Amantia, de Ewren, de Lirien e Ami, tudo, cada detalhe. O sinal para o fim do
intervalo tocou e não entramos, permanecemos ali e continuei contando toda história para Lucy.
Depois de muito tempo falando, dei uma pausa para molhar a garganta com o suco de pêssego que
ela havia trazido.
― Não acredito! ― disse ela me olhando séria.
― Acredite! ― disse olhando no fundo dos olhos dela ― É a mais pura verdade!
― Leona, acho que você ficou louca! Só pode! ― ela parecia nervosa ― Isso não foi real! Você
bateu a cabeça e se machucou, é isso! ― Então eu tirei minha blusa e lhe mostrei a enorme cicatriz
em minhas costas.
― IM-POS-SÍ-VEL! ― ela ainda me olhava desconfiada. ― você pode ter machucado isso aí
anteontem à noite!
― E ia estar curado desse jeito? Como uma cicatriz antiga? ― Lucy pegou uma toalhinha, molhou
e esfregou na cicatriz. ― Ai! Lucy! Ainda é dolorida!
― Mas pode ser uma marca antiga!
― Lucy! Fomos à piscina juntas no sábado! Se essa cicatriz já estivesse aí, você teria visto! ―
ela não acreditava. Lembrei da foto que tirei de Ewren com o celular e de minha própria foto
montada em Feroz. Mostrei para ela e ela riu.
― Photoshop e imagem da internet! ― disse ela ainda suspeitando de mim. Então levantei e a
puxei pelo braço. ― Venha, tive uma ideia! ― fomos até a quadra de esportes, tinha um vestiário
com chuveiros na parte de trás dele. Não tive dificuldades para usar um grampo e abrir o cadeado
que fechava o vestiário, entramos e Lucy acendeu as Luzes, então eu tirei o pingente do pescoço e
fiquei torcendo para meus poderes ainda funcionarem aqui. Peguei o pingente com a mão esquerda e
me concentrei, senti o peso dele mudar e um calor em meu corpo. O espelho do vestiário provou o
que imaginei, minha aparência havia mudado! Lucy caiu sentada no chão com a mão na boca e
segurando um grito.
― Calma! ― disse para ela. Ela tentou levantar apoiando-se no banco, então, para provar a ela,
transformei o banco em uma moto. Dessa vez, mesmo com a mão na boca, saíram alguns gritinhos
abafados. Fiz a moto voltar a ser banco depois encolhi meu cajado de volta a pingente, voltando à
minha forma normal.
Lucy pulou em mim dando mais gritinhos.
― Não Acredito! Tenho uma amiga Maga de verdade! ― ela não parava de pular e surtar.
― Tá Lucy, shh! ― tentava conter o surto de Lucy antes que alguém nos pegasse aqui e fossemos
castigadas.
― E esse Ewren? ― perguntou enquanto apagávamos as luzes e saíamos do vestiário. Senti uma
pontada no coração quando ela falou o nome dele.
― O que tem ele? ― perguntei disfarçando minha angustia discretamente.
― Você gosta dele? ― Senti meu coração pular e meu rosto ficou muito quente. ― Nem preciso
de uma resposta! Seu rosto te denunciou! ― Lucy riu.
― Nós somos incompatíveis, Lucy! E ele não gosta de mim.
― Se não gostasse, não teria ido se despedir, não acha? ― ela sorria arregalando aqueles olhos
cor de caramelo para mim.
― Não, talvez ele tenha ido lá para pedir ao mago para fechar todos os portais! ― disse
secamente, fazendo o possível para esquecê-lo de uma vez.
― Sabe, para você montar um quebra-cabeças, você precisa de peças diferentes. E quando você
acha que uma peça é incompatível, você a gira e ela encaixa perfeitamente onde você achou que ela
não ia caber! ― Às vezes eu tinha a certeza de que Lucy era uma velhinha presa no corpo de uma
adolescente.
Por ter matado as duas últimas aulas, estava na frente da escola alguns minutos antes do sinal
tocar. Minha mãe estava de carro lá na frente, o que era estranho, pois ela nunca vinha na escola me
buscar. Dei tchau à Lucy e corri em Direção ao carro.
― Mãe? Está tudo bem? ― ela tinha um olhar cauteloso, olhou em volta e me fez um sinal para
que eu entrasse no carro.
― Tudo bem! É que eu ia precisar de ajuda hoje na loja, então resolvi te buscar para você ficar lá
comigo! ― ela sorriu, mas percebi que ela estava muito tensa. Ainda olhava para os lados como se
esperasse que alguém fosse aparecer.
― Tá tudo bem mesmo? ― insisti.
― Sim... ― ela arrancou com o carro fazendo uma marca no chão do asfalto e dirigiu em silêncio
até a loja.
Ela entrou primeiro, olhou tudo, só depois veio até o carro e me deixou entrar.
― Vem, preciso que você faça uns servicinhos para mim! ― ela me mostrou uma pilha de livros e
caixas e mais caixas de objetos “novos” (mais velharias que ela comprou). ― Preciso que você
registre todos eles e faça um inventário novo para os livros, tudo bem? ― eu revirei os olhos.
― Mãe! Isso é muito chato! ― gemi pegando um dos livros e olhando sua capa desgastada.
― Ah! Sem reclamar! Ou você não vai mais para a casa da sua amiga no fim de semana que vem.
Fiquei naquilo o dia inteiro, arrumando os livros nas estantes, limpando os objetos e os
colocando em lugares diferentes. Tinha que colocar um código em cada livro, passar para o
computador e colocar o preço da tabela para só depois colocá-los na estante. Era cada livro mais
estranho que o outro.
No final do dia eu estava um caco, não de cansaço, mas de tédio. Quando minha mãe me chamou
para fechar a loja, já estava escurecendo.
― Vou te recompensar! ― disse ela sorrindo. Fez uma ligação para casa avisando que iria levar
o jantar para meu padrasto e para Leonard.
― Aonde vamos? ― perguntei curiosa.
― Você já vai ver! ― entramos no carro e rodamos a cidade por mais ou menos vinte minutos até
parar em frente a um restaurante de massas.
― Rodízio de pizza? ― perguntei, meus olhos se encheram de lágrimas de alegria, para mim
fazia mais de um mês que não comia uma pizza!
Ficamos sentadas em uma mesa perto da vidraça, de onde podíamos ver todo o movimento da rua.
O cheiro de pizza assando era espetacular! Meu estômago dava saltos de alegria, no tempo que
fiquei em Amantia não vi nada parecido com pizza nos cardápios. Fiquei imaginando se Ewren iria
gostar.
Ewren... Será que iria conseguir tirá-lo da cabeça algum dia?
― O que ficaram fazendo ontem o dia inteiro? ― minha mãe perguntou tirando-me de meus
devaneios.
― Hã? ― não sabia o que dizer, fiquei imaginando se ela já tinha ligado para Lucy e
perguntado. ― Ficamos só passeando pelo shopping, comprando bobagens! ― disse.
― Gastou toda a mesada no shopping? ― “Não mãe, gastei toda minha mesada em roupas,
armas, poções, comida e pagando um mercenário para me devolver para casa”. Queria poder
responder isso.
― A maioria! ― disse forrando meu estômago com o primeiro pedaço de pizza de muçarela.
― E esse colar? Nunca vi você com ele! Comprou lá também? ― ela tinha a voz curiosa, porém,
ao olhar seus olhos, vi um traço de terror neles, porém desapareceu quase que instantaneamente.
― Foi um amigo que me deu! ― eu peguei-o e coloquei para dentro da blusa. Ela não desviou o
olhar de onde o pingente fazia um volume embaixo da minha blusa e me encarou por um segundo,
tentei fazer o olhar mais inocente possível e continuei mastigando a pizza e aceitando todos os
sabores que vinham nos oferecer.
Quando acabamos de jantar, minha mãe pegou duas pizzas grandes bem embaladas e as levou para
o carro.
Não sabia o que estava acontecendo com ela. Minha mãe nunca foi de agir estranho assim!
Nos dois dias seguintes, foi a mesma coisa, de casa para escola, da escola para a loja de minha
mãe de carro, a única diferença foi a pequena comemoração de minha mãe ao receber meu boletim na
sexta a tarde e ver que eu havia passado sem nenhuma nota ruim.
― Já está pensando em uma faculdade? ― ela me perguntou no caminho para casa de noite.
Eu ainda não havia pensado em nada. Estava me sentindo estranhamente triste nesses últimos dias,
como se houvesse um enorme vazio em mim, como se nada me prendesse mais a esse mundo, havia
perdido o interesse em tudo aqui. Sentia falta de Amantia, de Lórien, de Ewren... Afastei-me de meus
pensamentos e a respondi.
― Hum, vou pensar bem durante as férias! ― minha mãe sorriu. Pela primeira vez em dias foi
um sorriso alegre e descontraído.
Ao chegar em casa, vimos um bilhete na geladeira. Meu “padrasto” e Leonard haviam saído antes
de nós de casa. Eles nos esperariam dia vinte e quatro de dezembro na casa da vovó em outra cidade.
― Por que eles foram antes de nós? ― perguntei achando aquilo muito mais estranho. Nós nunca
viajávamos separados.
― Eu pedi para que eles fossem à frente, pois ainda precisamos acabar o serviço na loja! ― eu
não acreditei! Iríamos ficar mais dez dias em casa antes de viajar por causa da loja? Fiquei muito
aborrecida.
Subi para tomar um banho enquanto minha mãe fazia o jantar. O dia havia sido especialmente
quente. Depois do banho fiquei sentada no chão do meu quarto olhando minhas joias de Amantia. O
colar de cristais de purificação parecia mais apagado que o normal e senti uma pequena dor no fundo
do peito. Minha mãe entrou no quarto sem bater, me assustando.
― Mãe! ― disse virando rapidamente de costas para a caixa, enfiando o colar e os brincos no
meu bolso e empurrando-a para debaixo da cama.
― Vim te chamar para jantar! ― disse ela tentando olhar por trás de mim. Levantei lentamente e
fui em direção à porta.
― Vamos então! ― falei pegando-a pelo braço.
― Que espelho é esse? ― perguntou ela olhando para o espelho portal em minha parede.
― Uma senhora o deu para mim uns dias atrás, eu achei bonito e fiquei com ele! ― disse
ingenuamente. Minha mãe chegou bem perto dele, passando a mão por toda sua moldura.
Quando ela passou os olhos pela sua inscrição, seu rosto empalideceu.
― Mãe, o q... ― antes de eu terminar de dizer, ela se virou para mim, me pegou pelos ombros e
começou a me sacudir.
― QUEM LHE DEU ISSO, LEONA? ― ela gritava ― QUEM O ENTREGOU A VOCÊ?
― Mãe! ― eu tentava dizer, mas ela não parava de me sacudir.
― VOCÊ PASSOU POR ELE ALGUMA VEZ? ― meus olhos se arregalaram. Ela sabia, então
era mesmo verdade, ela era uma maga também! Ela puxou a caixa debaixo da cama e a abriu, pegou
o espelho de Lórien e olhou para mim aterrorizada.
― ONDE VOCÊ CONSEGUIU ISSO?! FALE A VERDADE! ― ela estava em lágrimas. Antes
que pudesse me explicar, ela pegou o espelho e desceu as escadas, a vi saindo pela porta de trás e
indo para o quintal, desci as escadas correndo, ela os colocou no chão junto com as joias, entrou no
quartinho de ferramentas e veio com uma marreta nas mãos. Meu corpo congelou, antes de ela acertar
o espelho eu a agarrei e comecei a chorar e gritar. Consegui derrubar a marreta de sua mão.
― NÃO MÃE! POR FAVOR! ― ela me jogou para o lado, ao chão, e pegou a marreta
novamente.
Quando ela ergueu a marreta, a superfície do espelho brilhou fazendo uma enorme ventania e uma
sobra negra saiu do espelho, agarrando o pé de minha mãe. Ela foi derrubada no chão e começou a
ser arrastada para dentro do espelho. Corri em sua direção e agarrei sua mão, fazendo toda a força
para puxá-la de volta, mas a sombra negra me puxou também.
Estava caindo novamente, pelo mesmo buraco brilhante só que com algo nos arrastando. Quando
vi o céu de Amantia, com aquela lua crescente gigantesca e os traços no céu, meu coração deu um
salto.
Uma gaiola enorme se fechou contra nós no ar, bati no chão duro da gaiola, ficando tonta, a gaiola
se dividiu e nos separou. As gaiolas voavam em direção a uma torre escura. Minha mãe estava
desesperada, gritava meu nome e tentava me alcançar de qualquer jeito.
As gaiolas pararam e caíram dentro de um pátio entre três enormes torres negras.
― Leona! ― minha mãe esticou a mão para mim, mas as gaiolas estavam separadas demais para
isso.
Ela então rasgou a borda de seu vestido, começou a dar nós e a cochichar coisas
incompreensíveis. A princípio achei que ela estava ficando louca.
― Mãe? ― chamei baixinho.
― Prepare-se ― disse ela ― fique com o pingente na mão. Talvez só tenhamos uma chance de
sair daqui! ― ela sabia de tudo? Minha cabeça começou a girar.
Pude ouvir passos bem perto de nós. Olhei em volta, mas não conseguia enxergar nada.
Ouvi uma voz profunda rindo. Um frio passou pela minha espinha fazendo com que meu corpo
ficasse inteiramente arrepiado. Apertei as barras da gaiola e segurei firmemente o pingente em minha
mão, aguardando o sinal de minha mãe.
― Um gato selvagem e seu gatinho na mesma cajadada! ― a voz riu novamente. Minha mãe
chiou e o homem se aproximou até ficar a um palmo da gaiola onde estava presa.
― Lupine e seu lindo filhotinho de sangue puro! ― ele se abaixou em minha frente. Era um
homem alto, forte e de aparência desleixada, seu cabelo longo e emaranhado caía por cima de seus
ombros e seus olhos amarelos me causaram uma onda de choque. Uma de suas orelhas estava
cortada. Ele enfiou a mão na grade da gaiola e agarrou meu cabelo, puxando-me contra a grade.
― Vai ser uma satisfação, depois que ele tirar o que precisa de você, eu uso e acabo com o que
sobrar.
― Não vai não! ― disse outra voz. ― ele já prometeu dar ela pra mim depois! ― disse a outra
voz que eu reconheci, fazendo outra onda de pavor percorrer meu corpo. Demétrius.
Minha respiração estava irregular e o pânico começou a me tomar. Eu podia ouvir um rosnado da
gaiola ao lado.
― CALEM A BOCA! NINGUÉM VAI TOCAR NELA! ― minha mãe gritou, fazendo-me pular
de susto.
Sua gaiola explodiu fazendo voar pedaços de metal retorcido para todos os lados. Uma forte luz
branca saiu dela fazendo Demétrius e Black Jango se encolherem. Olhei para ela.
Ela estava com um cajado vermelho em sua mão, seus cabelos estavam prateados e brilhantes e
caíam em ondas pelos seus ombros, em sua testa havia uma marca de uma pequena orquídea roxa e
em seu braço direito as mesmas marcas que eu tinha, seus olhos estavam vermelhos.
― Imundos! Vocês não podem tocar em nós! ― disse ela sacudindo o cajado e fazendo os dois
voarem para longe. O pedaço da roupa cheio de nós que ela havia feito ainda a pouco foi jogado ao
chão, quando ela encostou com o cajado nele, um cavalo alado branco apareceu bem diante de nós.
Ela pulou para cima dele, fez com que a gaiola que eu estava se desmanchasse como metal derretido
e me puxou também. Quando alcançamos a altitude que pudéssemos ver toda a torre, minha mãe
soprou em direção às torres e um fogo azul começou a consumir tudo ali.
― Mãe! ― eu olhava para ela assustada. Minha mãe era mesmo uma maga! Era dela que eu
havia herdado os poderes!
― Sinto muito por isso estar acontecendo, Leona! ― vi lágrimas escorrerem pelo seu rosto.
― Por isso eu consegui abrir o portal? Por que herdei os poderes de você?
― Quando você entrou aqui? ― perguntou ela olhando para mim com um olhar quase hostil.
― No dia em que fui para casa de Lucy, na verdade, caí aqui... ― respondi cautelosamente,
temendo que minha mãe tivesse um surto de raiva e me jogasse de cima do cavalo.
― Então o poder que senti dias atrás vindo da sua escola era seu? ― ela parecia mais furiosa
ainda.
― Estava mostrando para Lucy! ― disse diminuindo tanto minha voz que quase não pude escutá-
la. Ela respirou fundo e tentou dizer com toda a calma do mundo.
― Você estava mostrando seus poderem em um lugar público! ― eu me encolhi novamente.
― Desculpe! ― eu disse ― Ei! A senhora que me deve explicações aqui! ― esbravejei me
esticando para encará-la. Ela me perfurou com um olhar, me encolhi novamente e fiquei quieta até ela
resolver pousar.
Não reconhecia o lugar que ela pousou com o cavalo, assim que ele tocou no chão, nós pulamos e
ele desapareceu, voltando a ser o trapinho com nós.
Era uma cidade flutuante. Andamos sorrateiramente até uma enorme entrada de pedras, quando fui
passar pelo portão, mamãe me arrastou pelo canto do muro, onde puxando uma tocha que iluminava o
caminho e abriu-se uma passagem secreta para dentro do castelo.
― Éassim? A senhora pode sair entrando de fininho em qualquer lugar? ― ela me olhou feio
novamente e fez um sinal para que eu me calasse.
Quando saímos por outra passagem perto de um corredor estreito, foi que reconheci o local. Era a
fortaleza de Lótus Vale. Prendi a respiração, estava ansiosa para rever Aeban! Minha mãe virou-se
para mim, olhou em meus olhos e disse.
― Quando foi que você cresceu tanto assim? ― ela parecia assustada ao me ver na luz.
― Era isso que a senhora tinha a me dizer? Jura que é com isso que está preocupada agora? ―
ela balançou a cabeça.
― Olha, vamos conversar daqui a pouco. Mas preciso que você saiba de uma coisa antes!
― disse ela me olhando bem no fundo da alma ― Nagel não é seu pai! ― eu a encarei, revirei os
olhos e suspirei.
― Isso eu já imaginava! ― ela ficou nervosa e olhou para os lados.
― Está pronta para conhecer seu pai de verdade? ― meu coração deu um salto. Meu pai estava
em Lótus Vale? Sacudi a cabeça. ― Então, venha! ― ela andou até uma grande porta com uma
tapeçaria vermelha bordada em ouro que pendia perfeitamente fazendo um arco sobre ela.
Ela bateu na porta e esperou. Escutamos uma cadeira se arrastando.
― Entre! ― disse a voz estranhamente familiar lá de dentro. Mamãe girou a maçaneta e entrou na
sala. Aeban estava lá, de costas para nós e guardando um livro volumoso em uma prateleira. Quando
ele se virou, seu rosto perdeu a cor.
― Lupine! ― disse com uma voz rouca para ela. Andou rapidamente em nossa direção, a puxou
pela cintura e a beijou! Um daqueles beijos de cinema. “Mãe?” gritei mentalmente “Quando foi que
a senhora havia se tornado uma dona de casa recatada e sem graça na terra?” Claro que não
ousaria falar aquilo alto. Eu prezava por minha vida, era mais seguro enfrentar os lobisomens à ira
daquela mulher!
Fiquei envergonhada, me afastei um pouco dos dois e pigarreei alto. Aeban a soltou com um
sorriso enorme no rosto.
― Achei que você estivesse morta! ― disse ele abraçando-a de novo. Minha mãe também sorria
e ela estava tão feliz como nunca havia visto.
― Aeban, creio que já conheça sua filha, Leona! ― eu me encolhi novamente. Estava mais
envergonhada que antes, mas isso pelo menos explicava o grande afeto que sentia por ele.
Aeban olhava de mim para minha mãe e de volta para mim.
― Por isso achei a semelhança de vocês tão significativa e notei que tinham uma marca igual!
― disse ele colocando suas mãos no rosto. ― Por que nunca me contou? Por que foi embora se
estava grávida? ― ele havia se voltado para minha mãe. ― Você me privou de tantos momentos com
ela! Você sabia? ― perguntou ele agora se dirigindo a mim.
― Acabei de descobrir! ― disse corando e sentando-me em um pequeno sofá no meio da sala.
― Eu precisava ir! ― disse ela a Aeban sem enrolar. ― Quando descobri que estava grávida,
torci para ela nascer hibrida ou silfa, mas ela nasceu completamente humana, não havia me livrado
da maldição, apenas passado adiante! ― minha mãe sentou-se no sofá ao meu lado. ― Não seria
seguro para ela assim como não foi para mim!
― Eu teria lhe ajudado! Eu te amava mais que tudo! Eu nunca teria deixado você partir! ― ele
estava confuso e seus olhos demonstravam raiva e tristeza ao mesmo tempo.
― Foi justamente por isso que eu me escondi, que fugi de você! Você estava noivo, um
casamento planejado por muitos anos, politicamente perfeito!
― Mas eu nunca gostei dela... ― por fim ele se sentou também, agora de frente para ela,
encarando-a.
― Eu não podia arriscar! Ela era tudo de você que eu tinha e eu não queria deixar que Arcadius
tomasse conhecimento de sua existência!
― Não adiantou muito, não é?! Ela veio para cá e foi imediatamente identificada por Black
Jango, que bateu com a Língua nos dentes para ele! ― De repente pude literalmente ouvir um estalo
na cabeça de Aeban. ― Você é minha filha! E deixei você andar por aí com Ewren? Ah se eu
soubesse! ― disse ele ficando vermelho. ― E ainda lhe dei o sangue de Aswang!
― Ewren? Filho da Princesa Arin? ― perguntou ela ― Por que deu sangue de aswang para ela?
O que aconteceu por aqui? ― ela estava ficando alterada.
― Mãe, essa é outra história, melhor deixar para depois! ― disse livrando a minha pele e a de
Aeban também.
― Esse Ewren mesmo! ― minha mãe olhou-me como se eu tivesse andando com um delinquente.
Ela tocou no meio da minha testa, fazendo uma leve pressão com os dedos, as marcas verdes em meu
braço acenderam e pude ver um misto de alívio, mas ao mesmo tempo, de tristeza em seu olhar. ―
ele estava a levando até a torre das nuvens por ordem de Nena para ela poder voltar para casa!
― Agora não podemos voltar para casa, com certeza estará sendo vigiada... ― disse
tristemente ― e pensar que toda essa confusão foi porque atravessei um espelho...
Minha mãe afagou minha cabeça.
― Não é sua culpa, nós deveríamos ter acabado com aquele mago há séculos atrás, quando
tivemos a chance! ― disse Aeban.
Minha mãe e meu... pai continuaram conversando, mas em outra língua, parecida com um élfico,
porém mais cantada.
Um soldado silfo entrou na sala pedindo desculpas por atrapalhar nossa “reunião”, trazendo uma
mensagem e saindo logo em seguida. Depois de ler, Aeban mudou de expressão drasticamente.
― O que houve? ― perguntou minha mãe se inclinando sobre ele para ler o bilhete.
― Amantia está um caos! ― Aeban parecia desolado ― Várias cidades pacíficas sendo
saqueadas e muitos vilarejos pequenos de pescadores e coletores então sendo destruídos.
― Por que a atual Sacerdotisa dos Ventos não faz nada? ― perguntou minha mãe o encarando.
― Tarsilis? Ela é quase inútil, é um fantoche dos Metamorfos! Ela não usa os poderes que tem
para manter a ordem e os elfos já não conseguem mais lidar com a situação sozinhos! ― ele estava
tão nervoso que pude ver suas veias saltando. Não era normal um Elemental do vento pacífico se
exaltar assim, ou era?
A porta do escritório se abriu abruptamente e duas mulheres entraram.
― Aeban, precisamos fazer alguma coisa, está tudo saindo de ordem! Vou ter que deixar Eirien
intervir! ― Arin e Lórien estavam ali, bem na minha frente. Lórien estava com Feroz no colo, ele se
retorceu e pulou de seu colo em minha direção, Lórien parecia abatida e triste. Quando ela nos viu,
soltou um gritinho histérico e virou o rosto de Arin em nossa direção. Arin perdeu a cor, veio até
onde estávamos e se ajoelhou perto de minha mãe.
― Ah, minha queria amiga! Você voltou! ― elas se abraçaram rindo. Lórien pulou em cima de
mim chorando, esmagando feroz em meu colo.
― Eu te chamei tantas vezes! Por tantos dias seguidos! Ele sentiu sua falta também! ― disse ela
entre soluços.
― Sinto muito! ― estava esfregando suas costas e acarinhando a cabeça de feroz, que ronronava
alegremente.
― Quase um ano! E nenhuma notícia! Achei que você não gostava mais de mim! ― disse ela
ainda soluçando.
― Desculpe, Lórien! Lá só se passaram cinco dias e nem mexi no espelho com medo de alguém
descobrir!
Aeban, Arin e minha mãe retomaram a conversa ignorando completamente nossa presença, como
eu não entendia nada, resolvi sair de fininho com Lórien. Quando íamos saindo lentamente pela porta,
Aeban nos olhou e pigarreou.
― Não saiam dos Limites da fortaleza! ― ele deu um olhar significativo a Lórien. Ela acenou
discretamente e virou-se me arrastando.
― Sim senhor! ― respondemos ao mesmo tempo. Corremos pelos corredores do castelo com
Feroz em nosso encalço, passamos por vários silfos que estavam trabalhando e fazendo guarda.
Muitos simplesmente nos ignoravam. Lórien entrou na cozinha, pegou dois pães doces cobertos de
um creme e guiou-me até uma torre acima da fortaleza.
O céu estava limpo, nem parecia que era de noite, a Lua, mesmo não estando completamente
cheia, fazia tudo ficar claro.
― Lórien? ― ela estava comendo o pão distraída, olhando as estrelas. Ela fez um som, entendi
isso como se ela estivesse me escutando. ― O que está acontecendo aqui? E você já sabia que eu era
dessa tal família Arbarus? ― perguntei dando uma mordida no pão que ela pegou para mim. Ela
suspirou.
― Suspeitava que fosse, Leona Arbarus, Ewren já sabia, ele ficou louco para te mandar pra casa
com medo de você ser pega! Depois que você se foi, boatos que a “filha da Sacerdotisa” foi vista
por Amantia começaram a circular, e então todos acabaram sabendo que a Sacerdotisa dos ventos
estava viva e em outro mundo do círculo dos doze. Antigamente, era sua mãe que mantinha uma
ordem quase perfeita em Amantia, ela tomou o lugar da antiga Sacerdotisa logo depois que ficou
grávida de você, e em parceria com os elfos e silfos, ela mantinha tudo em ordem ― ela deu uma
pausa para comer mais ― Lupine era a representante dos humanos, ela era de uma família nobre,
bem educada e de sangue puro, uma maga extremamente poderosa que competia em poder até com os
magos metamorfos!
― Não estou entendendo! ― disse apertando Feroz contra meu rosto fazendo-o espirrar
frustrado.
― A sacerdotisa substituta é, como posso dizer... Uma farsa, é uma humana, mas não tem poder
nenhum! Ela só estava no poder enquanto não se sabia sobre o paradeiro de Lupine! Ela não faz nada
pelo povo, é só mandada pelos Metamorfos! Então quando te descobriram, descobriram também que
ela estava viva e que a Sacerdotisa substituta não era necessária! ― ela olhou para mim esperando
que eu tivesse entendido.
― Desculpe...
― Nossa! Quando Ewren me disse que você era lerda, não acreditei! ― disse ela bufando. ―
Leona, sua mãe era uma Sacerdotisa, ela viajava por Amantia, curava as pessoas, resolvia problemas
políticos, era simpática com todos e cuidava de tudo perfeitamente! A substituta dela é um enfeite!
Nunca fez nada, só fica na torre das nuvens e diz orar pela paz de Amantia e quem cuidava do resto
eram os elfos e silfos!
― Então esse caos todo é porque descobriram que ela estava viva, mas não estava fazendo nada
por eles?
― Isso... E para variar, quem quer ter o poder sobre tudo, Arcadius, está colocando lenha na
fogueira através de outro mago idiota que ele comanda. ― um calafrio desceu pela minha espinha.
― Então as sombras carregadoras que foram nos buscar...?
― Sim, foi ele! Ele queria provar que vocês estavam vivas e que abandonaram Amantia. Mas
isso é só uma desculpa para ele pôr as mãos em você! Ele disse que se tivesse vocês de volta à
Amantia, poderia pôr tudo em ordem novamente. Tendo o apoio do povo, é mais fácil ele conseguir,
qualquer um que te ver, vai querer entregá-la para ele! ― Senti uma forte vertigem e sentei no
terraço onde estávamos.
― Tudo culpa minha, Lórien. Se eu não tivesse pegado aquele espelho... ― suspirei olhando
Feroz se esfregando em meus pés.
― É outra coisa que você tem que saber, aquela velhinha que você ajudou é a Moan, lembra
daquela bruxa em Alamourtim? É uma bruxa que, ao que me parece, só quer saber de dinheiro, ela
vagava pelos mundos com um grupo de bruxas procurando por vocês.
― Então ela descobriu quem eu era quando parei para ajudá-la? ― perguntei incrédula.
― Não, ela sabia muito antes disso, aquilo de velhinha precisando de ajuda foi só a armadilha!
― Lórien sentou ao meu lado no chão e me puxou para seu colo.
― Como descobriu isso? ― perguntei.
― Ewren descobriu, ele escutou Moan falando sobre o dinheiro da sua recompensa que Arcadius
pagou a ela por ter atraído você para cá!
― E onde ele está agora? ― Estava ansiosa para vê-lo de novo.
― Ele foi capturado... ― disse ela baixando a cabeça e olhando triste para feroz.
― O que? ― eu olhei para Lórien não acreditando em suas palavras, impossível de ele ser
capturado, ele era muito forte e rápido ― Como isso aconteceu?
― Depois que você foi enviada de volta ao seu mundo, Ewren resolveu investigar sobre o
paradeiro de Arcadius, ele queria acabar com eles para que não tivessem a ideia de te procurar nos
outros mundos e acabou descobrindo que Black Jango e Demétrius estiveram na cidade e viram você
partir. Demétrius sabia para qual mundo você havia sido enviada, porque você contou para ele de
onde tinha vindo. Foram uns quatro meses depois que você partiu, ele resolveu sair à caça dos dois!
― ela suspirou de novo e lágrimas rolaram pelos seus olhos. ― Moan e um grupo de bruxas o
prenderam em um lacre e o levaram.
― O que faremos Lórien?! ― meu coração doía, ele havia sido pego tentando cuidar de mim.
― Eu ainda não sei, mas acho que se acontecer o que estou pensando que vai, nós duas teremos a
chance de ir atrás dele!
― E o que você acha que vai acontecer? ― perguntei. Ela sorriu, um sorriso maldoso como o de
Ewren.
Um guarda apareceu no topo da escada e gritou para nós:
― Senhoritas, o general quer vê-las agora! Por favor, entrem! ― Nos levantamos e o seguimos,
deixando aquele céu brilhante para trás e escondendo com ele nossas palavras entre as luzes das
estrelas.
9

A canção dos Ventos.


Aeban estava andando de um lado para o outro na sala e Arin e Lupine, minha mãe, estavam
sentadas no sofá com um semblante abatido.
Eles pareceram conversar por muito tempo enquanto estivemos fora e parecia que uma eternidade
havia se passado dentro dessa sala. Quando viram que nós já havíamos chegado, Aeban sentou em
sua cadeira e olhou seriamente para nós.
― Lórien, Leona! ― ele respirou fundo ― Nós três decidimos iniciar uma viagem por Amantia,
passar por todas as cidades, vilas, florestas e pântanos habitados para tentar acalmar os ânimos,
iremos explicar que por um motivo maior, a Sacerdotisa resolveu criar a filha longe de Amantia, para
que ela crescesse sem riscos, e por isso só voltou depois da filha estar em idade adulta! ― disse ele
olhando para mim ― O Sangue de Aswang que você tomou para se curar meses atrás vai reforçar
essa história, pois você parece uma jovem adulta ― ele olhava para minha mãe como se esperasse
que a qualquer momento ela pudesse surtar e desistir do que quer que estivessem tramando. Mas ela
estava tão calma como sempre esteve antes de tudo isso.
― Então nós vamos sair por aí para dizer que ela está viva e está de volta e que vai ficar tudo
bem? ― perguntei.
― Não, nós três juntos com o exército élfico e o exército silfo vamos viajar! Vocês duas vão ficar
aqui seguras! ― ele fez questão de ressaltar a frase “ficar aqui”. Quando eu ia protestar, Lórien me
acotovelou e fez um gesto com a boca para que eu ficasse em silêncio.
― Mãe? Tem certeza disso? Isso pode demorar muito! ― falei.
― Algumas semanas apenas ― disse ela.
― Mas, será que ninguém vai reparar a falta de movimentação na casa? Lá na terra? Nós não
tínhamos saído ainda, e os vizinhos nos viram entrar. ― fiquei com medo de Nigel ter uma súbita
vontade de voltar e não nos ver lá. ― E se eles voltarem para casa e não nos verem lá? ―
perguntei. Ela suspirou.
― Eu apaguei a mente deles quando os mandei ir à frente, você não reparou, mas a casa já não
tinha nada de nós lá, só seu quarto que ainda estava do mesmo jeito, mas deixei uma magia
programada para que ele se desmanchasse no momento em que partíssemos, transformando o quarto
em um escritório.
― Mas, por quê? ― estava de queixo caído e confusa.
― Não seria seguro para eles que se lembrassem de nós!
― Mas quando a senhora pensou nisso? ― eu ainda não podia acreditar.
― No momento em que senti uma forte presença mágica na sua escola, percebi que a nossa
segurança havia acabado, não fazia ideia de que era você, passei anos esperando que isso
acontecesse, e no fim, acabei me acomodando e achando que nunca iriam nos encontrar! Mas quando
eu senti aquele poder, corri para você, achei que tivessem te encontrado e que não chegaria a tempo
de te proteger! E lá eu não poderia te proteger sozinha, não mais. ― corrigiu antes de Aeban
perceber o que ela havia dito de errado.
― Se a senhora planejava voltar pra cá, por que ia quebrar o espelho? ― não fazia sentido, já
que ele era um portal.
― Ele estava coberto com Magia negra! ― disse ela. ― Queria abrir um portal seguro para
passarmos, eu iria te contar tudo antes, mas quando vi, você já sabia de tudo.
― De quase tudo ― disse apontando discretamente para Aeban, que sorriu. Ele se levantou, veio
em minha direção e me deu um abraço.
― Tem muito que eu preciso compensar, mas não agora, precisamos ter a certeza de que estará
segura, de que todos nós estaremos seguros! ― me perdi naquele abraço, era tão quente e terno.
― Quando vocês pretendem partir? ― Lórien perguntou.
― Assim que amanhecer! ― Respondeu Arin ― Na hora em que o exército dos Elfos chegar
aqui.
― Vocês têm que prometer que ficarão aqui, fora de perigo! ― Aeban se dirigiu a mim e a
Lórien.
― Prometemos! ― dissemos segurando as mãos uma da outra e minha mãe me abraçou.
― Vá descansar agora, você não dormiu bem nos últimos dias! ― Disse ela.
― Tem um quarto pronto para vocês na torre sul! ― disse Aeban
Saí da sala com Lórien, mas ao invés de irmos para o quarto que ficava na torre, como Aeban
havia dito, subimos uma escadaria escondida e nos escondemos em uma salinha sobre a sala dele.
― O que quer aqui? ― cochichei para Lórien.
― Olha lá! ― ela apontou para a sacada do escritório de Aeban.
Ele e minha mãe estavam abraçados. Um abraço tão longo e apertado que pareciam que nunca
iriam se soltar. Se beijaram novamente, e outra e outra vez, eu revirava os olhos e Lórien apertava as
bochechas ficando corada.
Por um momento pude ver o olhar dela, estava tão feliz! Nunca havia visto aquela felicidade toda
em seus olhos em nenhum momento em toda minha vida. Seu sorriso era resplandecente e parecia que
ela ia explodir de tanta alegria.
― Lórien, nunca a vi tão feliz assim! ― disse.
― É assim que você olha para meu irmão! ― ela segurou uma risadinha e meu rosto ficou
quente.
― Não fale bobagens! Claro que não fico assim! ― resmunguei baixinho, ainda olhando meus
pais na sacada. Era tudo tão surreal e era difícil de acreditar em tudo que estava acontecendo, e
mesmo com todas as possibilidades de acontecer algo ruim, estava feliz, pois eu me encaixava
perfeitamente nesse mundo. É claro! Eu vim daqui, tinha que me sentir à vontade mesmo! Ri comigo
mesma. Ficamos ali por mais uns minutos olhando os dois de mãos dadas na sacada e trocando
carinhos. Quando nos levantamos para sair, minha mãe se afastou de Aeban e abriu os braços. Ela
começou a cantar, e enquanto cantava, o vento soprava como se respondesse ao seu canto. Era quase
que hipnótico, minha pele ficou toda arrepiada com sua voz, Lórien estava de olhos fechados e
sorrindo.
― É por isso que é chamada de Sacerdotisa dos ventos! ― disse Lórien num sussurro ― Por que
ela tem a habilidade de espantar as tristezas dos outros!
Demoramos a achar a torre que Aeban falou, pois aquele lado da fortaleza parecia um labirinto
gigante.
Fiquei deitada na cama macia e quentinha daquele quarto olhando para o teto, Feroz estava
enrolado sobre meus pés e minha cabeça girava, era muita informação para mim. Mas meu coração
vagou, sonhando e pensando em Ewren, onde ele estaria agora e se estaria, no mínimo, vivo e bem.
Acordei com Lórien pulando em cima de mim.
― Venha logo! Eles já vão partir! ― disse ela me arrastando para fora da cama e me levando até
a janela da torre. Ela abriu as enormes janelas, estava tonta e a claridade fez eu querer me esconder
atrás das cortinas. Sentamos com as pernas para o lado de fora da sacada, a princípio imaginei que
estava ficando nublado de repente, pois sombras se espalharam por todos os lados, quando esfreguei
bem meus olhos, notei que não se tratavam de nuvens, mas de um exército Alado se preparando para
partir. Minha boca só se fechou, pois Lórien fez isso por mim. Meus pais entraram no quarto para se
despedir, seguidos de Arin.
― Leona, faça o que fizer, não saia dessa fortaleza! ― disse minha mãe me abraçando e dando
um beijo. Logo estaremos de volta!
― Não se preocupem, os melhores guerreiros estão aqui para proteger vocês! ― disse Aeban me
fazendo um carinho na cabeça. ― Quando voltarmos, prometo compensar o tempo que perdemos de
alguma maneira! ― Disse ele, a promessa era para mim e para minha mãe.
Arin e Lórien também se despediam, elas se abraçaram e Lórien sorriu, mordendo os lábios. Eles
se foram antes mesmo que eu pudesse pensar em algo bonito para dizer.
Ficamos na janela olhando enquanto os exércitos alados partiam. Assim que eles sumiram de
vista, Lórien pegou um monte de bagagens embaixo da cama, as mesmas que Ewren carregava
comigo, e a Lupa das fadas estava com ela também.
― O que você planeja fazer? ― perguntei olhando ela conferir tudo, encolher com a Lupa e
colocar na sua bolsa tiracolo.
― Não vamos ficar paradas aqui esperando eles resolverem tudo, não é? ― disse ela sorrindo.
― Não faz meu tipo ficar escondida e obedecer! ― sorri de volta.
Me arrumei rapidamente também e só tivemos que disfarçar quando uma servente veio nos trazer
o café.
― Eles vão perceber que saímos! ― disse a ela ― Se avisarem Aeban e minha mãe, estamos
ferradas! ― disse ficando preocupada.
― Já pensei em tudo! ― disse ela pegando duas bonecas parecidas com Barbies de porcelana de
dentro da bolsa. Ela veio perto de mim e cortou alguns fios do meu cabelo, amarrou os meus no
cabelo da boneca de cor mais clara e alguns fios do seu próprio na boneca de pele bronzeada. Em
seguida furou o dedo, gotejou sangue na boneca e mandou que eu fizesse o mesmo. Fiz.
― E agora? ― perguntei, pois nada havia acontecido. Lórien sorriu.
― Surge, et perambula terram et loquitur nobis! ― ela disse um feitiço em latim. As bonecas
cresceram e ficaram idênticas a nós, foi como me olhar num espelho, eu a toquei e ela respondeu ao
toque ficando vermelha e sorrindo.
― Viu? ― disse Lórien dando uma gargalhada assustadora. Ajudamos as bonecas a se vestir.
― Sabem como agir? ― perguntei e meu outro eu respondeu:
― É claro que sabemos! Não somos simples marionetes! Precisamos ficar e agir como se nada
tivesse acontecido!
― Isso! ― disse Lórien ― Disfarcem, façam de tudo para parecer que somos nós, mostrem
preocupação, finjam que querem fugir para ajudar de vez em quando, só para não levantar suspeitas!
E se por um acaso o Abissal, o Lobisomem ou aquele mago aparecerem aqui? ― perguntou ela às
bonecas.
― Nós nos desmancharemos até que eles sumam! ― disseram as duas juntas.
― Perfeito! ― Falei.
― Vamos? ― disse Lórien abrindo uma bolha gigante na palma de sua mão.
― Vamos! ― peguei Feroz e a bolsa. Entramos dentro da bolha que rolou para fora da torre
lentamente, passamos devagar por toda cidade para manter o efeito de invisibilidade da bolha, que
era mais difícil de manter. Quando saímos dos limites da cidade, Lórien relaxou e a bolha desceu até
uma estrada estreita pela qual Ewren e eu já havíamos passado juntos.
― Feroz? Pode nos ajudar agora? ― Pediu Lórien fazendo-lhe um cafuné nas orelhas.
Ele bufou, bateu suas patas no chão e cresceu. Montamos nele e partimos.
Corremos por algumas horas montadas em Feroz até começarmos a ficar cansadas e doloridas, ele
parecia estar cansado também.
Estávamos seguindo por um caminho diferente do que havia passado com Ewren e paramos à
beira de um lago de águas cristalinas. Feroz caiu perto da beira do lago e bebeu água deitado.
― Coitado! ― disse Lórien afagando suas patas. Ele estava mesmo cansado!
― E aí, o que vamos almoçar? ― perguntei olhando em volta, provavelmente não iríamos
pescar. Lórien pegou um arco, uma flecha e a disparou para uma direção qualquer. E sentou perto do
lago também.
― É só esperar um pouco agora, não deve demorar! ― ela riu olhando na direção em que a
flecha sumiu.
Fiquei deitada na grama esperando o que quer que fosse nosso almoço chegar. Depois de alguns
minutos, escutei um guincho e um som parecido com madeiras quebrando, quando olhei para o lado,
entre as árvores da floresta, vi uma ave tipo um avestruz voando em nossa direção, mas parecia estar
pendurado por alguma coisa. Pulei quando ele parou flutuando a poucos centímetros de mim. Era uma
ave muito bonita, com penas coloridas e bico longo, deu até pena de comer, mas a fome estava muito
grande...
― Lórien? ― disse assustada. Ela deu gargalhadas da minha cara de espanto. A ave estava
morta, sua flecha havia atravessado a ave e a trazido até nós.
― Pisuri assado para o prato principal! ― disse ela sorrindo. Seus olhos mudaram de cor, ela
moveu as mãos e a ave ficou limpa, ela pegou alguns temperos dentro da mochila e passou naquela
ave enorme, então fez uma bola de fogo azul com as mãos e a atirou na ave, fazendo uma espécie de
redoma de fogo em volta dela.
Poucos segundos depois, estava pronta. O cheiro era incrível e parecia cheiro de peru de natal
recém-tirado do forno.
Lórien fez uma mesa aparecer das pedras do chão e sentamos para comer.
― Viajar com você é bem mais fácil do que com Ewren! ― disse depois de comer um pedaço
daquela carne deliciosa e Lórien riu.
― Você também consegue fazer isso! ― eu olhei para ela com estranheza.
― Ewren disse para eu não usar meus poderes, pois poderia atrair coisas ruins, ainda mais
porque não sei controlar direito!
― Bobagem! ― disse ela me dando uma piscada ― Já atraímos tudo de ruim que poderíamos
atrair! Se você não souber usar seus poderes, como vai se defender quando estiver sozinha? ― ela
havia chegado ao ponto que sempre me inquietava.
― Eu sei! Queria aprender a lutar com uma espada também! E usar o arco... ― fiquei
imaginando-me utilizando a espada como ela usou no dia em que me salvou de Demétrius.
― Posso te ensinar tudo isso! ― disse ela dando outra mordida na enorme coxa de Pisuri em sua
mão.
― Sério? ― me senti esperançosa, queria ser tão boa quanto ela e minha mãe.
― Sim, até encontrarmos pistas do paradeiro de Ewren, vamos parar mais cedo, antes do sol
sumir completamente, para treinar.
― Lórien, sei que é cedo para dizer isso, mas eu te amo! ― disse brincando com ela.
― Eu sei! ― ela riu ― Se não me amasse, eu te mataria! ― disse ela fazendo uma cara
assustadora e depois rindo novamente. Ela levou o que sobrou do Pisuri para Feroz, que
praticamente engoliu o bicho inteiro.
Descansamos um pouco depois de comer deitadas na beira do lago.
― Lóri? ― chamei ― Posso te chamar assim, né? ― olhei para ela, que estava deitada de
barriga para cima com as pernas apoiadas em cima de um galho baixo de uma árvore. Ela assentiu
com a cabeça.
― Vou te chamar de Léo então!
― Por mim, tudo bem! Você não acha que aqui está tranquilo demais?
― Sim, mas é por causa do exército que saiu voando naquela hora ― disse ela olhando para o
céu como se procurasse algum vestígio do enorme exército alado que partiu de Lótus Vale de manhã.
Eles espantaram a maioria das criaturas para a parte mais escura da floresta e elas só devem estar de
volta ao anoitecer.
― Por que não vamos voando? ― perguntei achando estranho. Eu sabia que Ewren não podia
voar por que ele era um elfo negro, mas Lórien não era.
― Hum ― murmurou ― espiões... Imagina se alguém nos visse voando por aí e contasse a algum
guarda das patrulhas? Nossas bonecas estariam lá, mas até provarem que não somos nós voando por
ai, a notícia já teria chegado aos ouvidos errados ou aos nossos pais, aí estaríamos mortas de
qualquer maneira! ― ela olhou de canto de olho para mim ― Eu particularmente prefiro ser
devorada por um gigante ao invés de assumir que desobedeci as ordens de permanecer na fortaleza
cuidando de você!
― Mas, e se nos verem andando?
― É mais fácil no chão, podemos nos camuflar, pois sentiríamos a presença de alguém nos
observando em volta. E Feroz detectaria qualquer um se aproximando de nós, certo? ― perguntou ela
a ele, que bufou sem se mover de sua pose toda largada ― No céu estaríamos vulneráveis a
quaisquer pares de olhos! ― fazia sentido para mim.
― Aonde vamos primeiro procurar por ele? ― queria encontrar Ewren o mais rápido possível e
me desculpar por ter ido embora daquele jeito.
― Bom, quero ir ao porto da Besta Santa, ele foi falar com a capitã de um navio pouco tempo
depois que você partiu... ― meu sangue quase ferveu ao me lembrar de Banshee. ― Leona! Que isso,
acalme-se, o que houve? ― Lórien me olhava assustada. O vento soprou e vi uma mecha prateada do
meu cabelo passar pelo meu rosto e um pequeno redemoinho de água surgiu onde meu pé estava
dentro do lago.
― Oh! Desculpe! ― disse fazendo o possível para me acalmar. Lóri deitou de bruços para me
encarar.
― O que aconteceu naquele porto para você ficar assim tão brava? ― ela me encarou. Suspirei e
contei sobre a travessia e sobre Banshee.
Quando terminei de falar, Lórien deitou sobre os braços escondendo parcialmente o rosto e
deixando apenas os olhos à vista.
― Sinto muito em lhe dizer isso, mas meu irmão é um pervertido! ― ela disse com a boca
escondida. ― o passado dele que o diga! ― disse ela sacudindo a cabeça em sinal de reprovação.
― O que me deu na cabeça para me apaixonar por alguém assim? ― perguntei me jogando para
trás na grama.
― Rá! ― ela estava de pé apontando um dedo para mim ― Finalmente confessou! ― fiquei
corada. ― Felizmente, tudo há conserto! ― ela sorriu.
― Então, vamos? ― me levantei fingindo que nada havia acontecido, obrigando-a a mudar de
assunto.
― Agora mesmo! ― ela sacudiu Feroz para que ele encolhesse e pudéssemos carregá-lo.
― Posso tentar uma coisa? ― perguntei pegando duas pedras dentro do lago.
― Claro, fique à vontade. ― ela fez um gesto para que eu continuasse com o que planejava fazer.
Coloquei as pedras no chão e peguei meu cajado, me concentrei e toquei nelas com a ponta dele.
As pedras tremeram no chão e começaram a crescer até virarem dois lobos gigantes.
― Lobos? ― perguntou ela aproximando-se e testando-os para ter certeza de que não
desapareceriam.
― a princípio pensei em cavalos, mas lembrei que cavalos têm medo de lobos e a palavra
“Lobos” agarrou na minha mente. ― disse pensativamente e Lórien mexeu os ombros.
― Contanto que não nos derrubem ou queiram nos comer, está bom também! ― disse ela
montando em um deles e fiz o mesmo. Segurei no pêlo do lobo cinza gigante que estava montada.
― Para o porto da Besta Santa! ― ordenei, então os bichos saltaram e começaram a correr
destrambelhados floresta adentro, pulando, girando e dando pequenos chiliques. Lórien quase caiu do
lobo dela de tanto rir e parecia que estava montada em um touro.
― Leona! ― gritou ela ― Tente focar seus olhos como se fossem os olhos deles, se não, eles não
funcionam direto! Não são animais de verdade! ― Fiz um esforço, como se estivesse entrando na
cabeça deles. ― Faça seu poder traçar uma rota imaginária até o Porto! ― gritou ela novamente.
Usei o máximo de concentração que pude, então finalmente passei a enxergar como se tivesse saído
do meu corpo e estivesse dentro dos Lobos-pedra.
Uma linha dourada me guiava por uma trilha estreita na floresta.
Corremos durante um bom tempo até começar a escurecer, o sol estava descendo no horizonte e
um vento frio cortava entre os pêlos dos lobos que eu guiava. Era como se eu fizesse parte do corpo
deles, ou melhor, como se eu mesma fosse os lobos.
Corri mais devagar para escutar alguma sugestão de Lórien de onde deveríamos parar.
― Leo, logo atrás daquele morro tem uma clareira. Podemos parar lá para dormir, vai ser mais
seguro que na floresta fechada! ― disse ela mostrando o caminho.
Corri até lá e quando vi o grande espaço aberto no meio da floresta, diminuí o ritmo até parar
totalmente.
Quando cheguei ao centro da clareira, desabei. Os lobos voltaram a ser pedras e caí deitada no
chão, gemendo e me contorcendo.
― Lórien! Socorro! ― resmunguei ― todo meu corpo dói! ― Ela deu mais algumas gargalhadas.
Pelo visto eu seria motivo dos risos dela para o resto de minha vida. Feroz subiu em cima de mim
para lamber minha cara, mas nem forças para afastá-lo eu tinha.
― Você usou seu poder por um longo tempo logo na primeira vez! Estressa o corpo mesmo! Esse
elixir vai fazer melhorar rapidinho! ― disse ela vindo até mim com um pequeno frasco com um
liquido azul dentro.
― Por que não sentia dor enquanto corria então? ― perguntei levantando ligeiramente a cabeça
para ela me dar o elixir. Era doce e tinha gosto de chá de anis.
― Por que você transferiu sua mente para controlar os lobos e perdeu a noção do que acontecia
em seu corpo, isso pode ser um problema, com o tempo vou te ensinar a dividir a atenção da mente
para não deixar seu corpo vulnerável. ― ela me levantou, depois ergueu as mãos para cima e as
bateu como se estivesse batendo palmas, um som parecido com um assovio saiu delas e uma bolha
também apareceu, cobrindo toda a clareira até o chão.
― Por que você usa tantas bolhas? ― perguntei olhando a gigante bolha nos cobrir. Lórien olhou
cheia de ternura para a bolha.
― Meu pai amava bolhas de sabão... ― seus olhos brilhavam enquanto falava. ― A primeira
magia que ele me ensinou a usar foi uma de fazer bolhas com a umidade do ar. Então aprimorei quase
todas as minhas magias a terem o formato de bolhas, pois gostava de vê-lo sempre sorrindo!
Acredito que um dia ele vá voltar e eu vou cobrir o céu de Amantia com bolhas coloridas! ― disse
ela.
Com um movimento que ela fez, armou todo o acampamento, com direito a fogueira.
― Essa proteção que fiz é para nos tornar invisíveis e indetectáveis. Por isso não posso usar a
flecha de caça agora. ― disse ela pegando uma bolsa térmica para preparar o jantar. ― Como você
usou toda a sua energia e ainda não está bem recuperada, irei poupar a minha para qualquer
coisa... ― disse ela olhando cautelosamente em volta.
Pouco depois vi uma lua cheia gigante surgir no céu.
― Oh-ow! ― exclamei olhando para cima ― Lua cheia!
― Pois é! ― ela parecia tão preocupada quanto eu. ― Minha magia de proteção não funciona
contra o olfato de lobisomens, vamos torcer para não ter nenhum por perto!
Depois de jantar, entramos para a barraca. Lórien estava cautelosa.
― Acha que tem perigo por aqui? ― perguntei sentindo meu coração vacilar com o olhar
preocupado de Lórien.
― Não sei, tenho um mau pressentimento sobre esse lugar ― disse ela olhando para Feroz, que
movia suas orelhas em todas as direções. Ele também estava alerta.
― Tem mais daquele elixir aí? ― perguntei.
― Sim, mas pode fazer mal tomar mais de um!
― Me dá! ― pedi e Lórien me entregou o frasquinho. Bebi todo de uma vez, no começo não senti
tanta diferença, a não ser pela dor no corpo ter sumido completamente. Depois veio uma enorme
onda de choque pelo meu corpo. Foi como tomar uma garrafa de dois litros de energético em uma
única golada.
Feroz Levantou a cabeça e escutamos um uivo não muito distantes de nós.
― Droga! ― bufou Lórien se levantando e saindo da barraca. ― tinha que ser primeiro dia de lua
cheia! ― Saí da barraca atrás dela seguida por Feroz. Ela fez todo o acampamento se encolher e
voltar para dentro da bolsa, tirou seus brincos e os segurou em mãos separadas, eles imediatamente
se transformaram em longas espadas curvadas e de aparência muito perigosa. Peguei o arco que
havia ficado com Ewren quando voltei pra casa e concentrei minha energia nele.
O uivo retornou, mais perto e seguido de muitos outros. Feroz começou a rosnar.
― Droga, droga, droga! ― Lórien estava nervosa. Sua aparência mudou novamente, ficando com
aqueles enormes olhos vermelhos a mostra. Feroz cresceu e eriçou o pelo.
― O que vamos fazer? ― perguntei assustada.
― Matar quantos pudermos! Me dê cobertura, ok? ― Lórien parecia uma guerreira agora, como
se aquela criança que ria de mim mais cedo tivesse ido embora.
Um grupo de aproximadamente dez lobisomens circulou a bolha. Meu sangue congelou. Sabia que
eles não podiam nos ver, mas conseguiam sentir nosso cheiro.
Corri os olhos por todos eles. Black Jango não estava entre eles.
Um dos lobisomens deu um passo à frente, atravessando a bolha, que estourou com o seu toque,
nos deixando a vista dos outros. Eles uivaram e começaram a correr em nossa direção. Lórien então,
como um borrão, começou a correr e atacá-los. Atirei uma flecha que passou de raspão na cabeça de
um deles, que distraído com o tiro, foi pego em cheio por Feroz, que havia dobrado seu tamanho
normal e parecia mais um touro que um tigre.
Lórien lutava com perfeição, pulava e girava e os acertava em cheio, decapitando-os quando o
ângulo permitia, eles me ignoravam, pois não representava ameaça imediata. Então três a atacaram
ao mesmo tempo, ela girou e feriu-os, mas não fatalmente, um deles pulou para mordê-la e minha
flecha atravessou sua cabeça.
― Boa pontaria! ― Disse ela matando os outros dois.
Os que ainda permaneciam vivos começaram a uivar.
― Estão chamando reforços! ― disse Lórien.
― Vamos voar? ― Perguntei, quando olhei para o céu tive uma surpresa nada agradável. Alguns
animais metade homens e metade aves voavam sobre nós.
― Lórien? ― chamei, parecia que haviam injetado água gelada em minha cabeça.
― Harpias! Ah, isso não pode piorar, pode? ― quando ela falou isso, mais lobisomens
começaram a aparecer dentre as árvores. ― Não brinco mais! ― disse ela bufando. Então ela
cravou as espadas no chão, fazendo uma nuvem de poeira subir, e delas surgiram estacas de terra que
atravessaram alguns dos lobisomens que vinham até nós.
― Não vai adiantar! ― disse a ela. ― Tive uma ideia! ― peguei rapidamente um dos brincos de
cristal de purificação que estava em minha orelha, então o joguei no chão ― Feroz, encolha e pule
em mim! ― gritei puxando Lórien para cima de mim. Levantei o cajado e imaginei o Porto da Besta
Santa e Bati com toda força a ponta do cajado no cristal, quando ele se esfarelou embaixo do cajado,
um círculo dourado apareceu em volta de nós e uma coluna de luz nos cobriu até a cabeça, fazendo-
me ficar tonta e cega.
Senti um baque quando caí sobre Lórien, e Feroz sobre nós duas. Não conseguia ver nada, mas
podia ouvir murmúrio de pessoas, passos e barulho de rodas e sons da âncora de um navio.
― Leona! Como você fez isso? ― Lórien ficou estarrecida. Foi minha vez de rir depois disso,
pois não vi nem escutei mais nada.
10

Além do Mar
Abri os olhos lentamente e a minha vista ardia. Sentia muito calor e estava deitada de bruços
sobre algo muito quente e sem roupas, mas senti que havia algo me cobrindo parcialmente, pelo
menos não estava completamente a mostra. Esperei meus olhos se adaptarem à claridade para ver
onde estava.
Era uma enorme sala cheia de pedras e aos poucos reconheci o lugar. Estava naquela sala de
pedras quentes onde deixei Ewren se purificando enquanto passeava pelo porto com Feroz. Tentei
levantar, porém um par de mãos me colocou de volta na grande pedra quente que estava deitada.
― Espere mocinha! Ainda não acabamos aqui! ― disse o homem. Fiquei vermelha não pelo
calor, mas pela situação em que me encontrava. ― Sabia que te conhecia de algum lugar! ― disse
ele enquanto massageava minhas costas. ― Você esteve aqui faz um bom tempo com um elfo, não é?
― S-Sim! Alodinio, não é? ― perguntei
― Eu mesmo! ― ele riu. Escutei alguém saindo da água e caminhando até nós.
― Leona! Que bom que você já acordou! ― disse Lórien abaixando-se na minha frente para me
encarar. Ela estava enrolada em uma toalha e tinha seus cabelos presos num coque no alto da cabeça.
― O que aconteceu? ― estava curiosa de como chegamos aqui tão rápido.
― Você não lembra? ― ela piscou incrédula ― você nos teleportou para cá! ― Lembrei-me do
cristal e do clarão de luz. ― Só vi sua mãe usar uma magia como essa uma única vez e ela ficou
desacordada durante dias, acho que ninguém mais consegue fazer isso!
― Teleportar?
― Não, teleporte é fácil quando se tem um nível avançado! Mas teleportar outras pessoas e
objetos é quase impossível, poucos magos que conheci podiam fazer isso! ― disse ela eufórica.
― Quanto tempo estamos aqui? ― perguntei enquanto ainda era amassada por Alodinio.
― Hm, desde ontem à noite! Você apagou por poucas horas, comparado aos outros
magos. ― disse ela olhando em volta ― Talvez seja por causa do poder no seu sangue! ―
cochichou.
― Ou talvez seja por causa dos dois frascos de elixir ― não consegui conter o riso.
― É uma possibilidade! Teletransporte é uma magia muitíssimo avançada e que requer toda a
energia do corpo e da mente. É muito desgastante! Não faço ideia de como você já está acordada! É
muita determinação para acharmos meu irmãozinho! ― disse ela brincando comigo. Pedi para
Alodinio sair para poder me levantar, Lórien pegou uma toalha para mim e fomos para o quarto que
ela havia conseguido para nós.
― Qual é nosso próximo passo? ― me joguei na cama e fiquei esperando, torcendo para Lórien
ter um plano em sua cabeça. Ela sentou-se muito séria e me encarou.
― Primeiro e mais importante ― disse ela com um olhar pensativo, tirando um caderno de dentro
da escrivaninha do quarto ― é pedirmos o jantar! Porque estou para morrer de fome! ― quase caí
da cama, pois pensei que ela fosse dizer algo sério.
― Tá, depois disso? ― perguntei enquanto ela dava instruções sobre nosso jantar a um jovem
que aguardava na porta do quarto.
― Bom, depois iremos achar a tal Banshee, se ela que passou as informações sobre vocês para
Black J., Ewren deve ter vindo interrogá-la, isso se não a matou, mas se ela estiver viva, deve ter
alguma pista de para onde ele possa ter ido.
― Certo! ― não percebi que estava sentada estalando os dedos até ver Lórien rindo de mim.
― Se Ewren não a matou, você vai, não é?
― Talvez uns tapas não façam mal a ela! ― disse tentando sorrir maldosamente como Ewren e
Lórien faziam.
― Ficou parecendo um gatinho frustrado fazendo essa cara, precisa treinar mais! ― zombou ela
enquanto recebia a comida.
No meio da madrugada acordei desesperada, tinha acabado de ter um pesadelo terrível, havíamos
encontrado Ewren, mas ele estava assustador, com olhos vermelhos, todo sujo de sangue e segurava a
cabeça de uma menina loira pelos cabelos na mão enquanto pisava sobre seu corpo no chão, ele
olhou diretamente para mim no sonho, deu um sorriso assustador, psicótico e veio em minha direção.
Lórien pulou da cama dela para minha cama e ficou de frente para mim, passando a mão em meus
cabelos e cantando baixinho, meu coração se acalmou, como se uma neblina varresse minha mente e
fizesse eu me esquecer do sonho, assim consegui dormir novamente.
Acordamos com os raios de Sirius entrando pela janela e um brilho vermelho intenso que parecia
uma chama. Lórien levantou, foi direto para o banheiro e escutei o chuveiro ligar. Feroz foi atrás dela
e ficou deitado na porta vigiando-a.
― Feroz, é feio olhar mulheres no banheiro! ― disse levantando-me também, ele me olhou e
depois saiu de mansinho da porta do banheiro, pulando novamente na cama. Esperei minha vez de
usar o banheiro.
Meu rosto estava amassado da cama e com marcas dos fios de cabelo que grudaram nele. Fiquei
embaixo do chuveiro gelado até ter despertado completamente. Arrumamos as coisas e descemos
para tomar café e procurar pelo navio de Banshee no porto. O ar estava seco e muito quente.
― Amanhã é dia de Sirius ― disse Lórien sem ânimo. ― Vai ficar pior esse calor!
― Detesto calor demais também! ― reclamei arrastando meus pés atrás dela.
Andamos por toda a extensão do cais até avistar um navio na última doca. Tinha velas vermelhas
e uma sereia segurando duas espadas entalhada na Proa do Navio.
― Lóri, é aquele! ― disse apontando para o navio.
― Certeza?
― Tenho! ― disse a puxando pelo braço e indo em direção ao navio. Ele estava sendo
carregado, elas iriam zarpar em breve. Peguei o cajado na mão e Lórien, suas espadas de aço e prata.
Subimos no navio. As mulheres a bordo me reconheceram e empalideceram. Algumas saíram
correndo para o interior do navio. Feroz ficou grande e parou bem atrás de nós, dando cobertura, mas
elas estavam apavoradas demais para reagir.
― Onde está Banshee? ― perguntei, nada, estavam todas em silêncio e olhando para nós. ― Não
quero ter que perguntar novamente! ― disse mais alto, batendo o cajado no convés e alterando
minha aparência (que a essa altura já estava muito fácil de fazer, era só eu ficar com uma pontinha de
raiva que eu mudava).
― Está lá dentro! ― disse a mulher que me recordei ser Mag.
― Obrigada! ― entramos na divisória da cabine da capitã com a enfermaria do navio, Feroz
ficou de guarda no portal para que ninguém passasse dali. Eu sorri e senti um calor no meu corpo.
― Leona, você conseguiu ficar assustadora agora! ― disse Lórien rindo baixinho. Bati na porta
da cabine e escutei um barulho, mas ninguém veio abrir a porta.
Não queria ficar ali esperando a boa vontade de Banshee e chutei a porta que se escancarou.
Banshee deve ter sido avisada por alguém, pois tentava inutilmente sair por uma das janelas do
navio, porém seu quadril avantajado não a permitiu passar por ela. Lórien revirou os olhos, andou
até ela e a puxou da janela, jogando-a no chão. Banshee mal caiu e já estava chorando.
― Por favor! Não cortem meu bebê de novo! ― dizia aos berros abraçada em seu cabelo
ruivo. ― A poção para fazê-lo crescer foi muito cara!
― Deveria estar mais preocupada com seu pescoço, sua imbecil! ― gritei, ela se encolheu no
chão abraçando suas pernas e me olhando com terror.
― Ewren veio aqui? ― perguntei, ela sacudiu a cabeça freneticamente dizendo que não.
― Talvez ela esteja com vontade de ter um novo visual com a cabeça raspada! ― disse Lórien
erguendo a espada para ela.
― Tá bem! Ele esteve aqui! ― disse ela correndo os olhos de mim para Lórien.
― O que ele queria? ― perguntei
― Saber onde Arcadius, Black Jango e Demétrius se escondiam! ― disse ela limpando o nariz
escorrendo.
― E? ― Lórien estava ficando sem paciência.
― Eu não sei! ― gritou ela batendo com os pés no chão e Lórien fez uma bola de fogo na palma
da mão.
― Vamos fazer desse navio uma churrasqueira gigante, o que acha irmã? ― disse Lórien olhando
para mim e piscando discretamente.
― Vai ser um belo almoço para Feroz! ― menti segurando o riso.
― DROGA! DISSE QUE NÃO SEI! ― disse Banshee aos prantos. ― O que eu disse a ele foi a
mesma coisa, só vi que eles pegaram um navio e foram para o Oceano da tempestade! ― disse ela.
Lórien a olhou feio.
― Não minta para mim! Não tem nada lá além de gelo! Nenhuma cidade submersa, nada, apenas
gelo!
― Tudo que o lobisomem me disse é que se eu precisasse deles, fosse direto até onde o Oceano
da Tempestade termina! Só isso! ― Banshee sentou e em cima da mesa e colocou seus braços para
trás. Desconfiei da sua posição e joguei uma bola de gelo congelando a mesa e seus braços.
Lórien circulou a mesa. Havia uma arma escondida bem perto de onde Banshee sentou.
― Jogando sujo? ― ela riu cortando a arma no meio com sua espada e fazendo Banshee gritar.
― Vai nos levar até lá! ― eu disse.
― Você é louca? Mate-me se quiser, mas eu não levo meu navio para lá! ― ela gritou as
palavras para mim. Lórien então descongelou seus braços, a pegou pelos cabelos e a arrastou até o
convés. Lórien chutou as pernas de Banshee fazendo-a cair de joelhos no chão e ela tentava soltar as
mãos de Lórien do seu cabelo.
― Feroz? ― ela assoviou. Feroz veio lentamente até nós, como uma pantera que prepara o
cerco. ― Café da manhã para você! ― Feroz correu como se fosse dar o bote.
― ESTÁ BEM! ― Gritou ela. Eu a levantei e fiz aparecerem correntes e grilhões em seus braços
e pernas. A tripulação olhava espantada.
― Lórien? ― ela leu meus pensamentos, ergueu os braços e uma grade em forma de uma bolha
imensa cercou o navio. ― Assim ninguém sai!
― Dê as ordens! Agora! ― gritei para Banshee.
― Recolher âncora, soltar as amarras e a todo pano para Leste! ― gritou ela, a tripulação parecia
assustada ― AGORA!
Todas as mulheres começaram a trabalhar imediatamente.
― Espero que saibam o que estão fazendo! ― disse Banshee nos encarando com olhos furiosos.
A levamos de volta para a cabine, Lórien fez uma gaiola aparecer e colocou Banshee dentro.
Ficamos ali dentro da cabine o tempo todo. Mal saíamos para olhar a situação e se a rota estava
correta.
Foram quatro longos dias no navio. Era um clima pesado, cansativo e Banshee parecia um cão
bravo preso na coleira. Quando tentávamos dormir ela nos acordava aos berros, mas toda vez que
passava por minha cabeça cortar a língua dela, Lórien me lembrava de que eu não podia me
transformar em um monstro, até ela mesma perder a paciência e deixar Banshee desacordada com um
soco no estômago. Lórien era má também!
Ao final do quarto dia, um barulho terrível vindo do convés nos tirou da cabine.
― O que houve? ― perguntei a Mag que estava agarrada a uma corda.
― Um raio! ― respondeu ela assustada.
Um raio havia caído e perfurado o casco. A tripulação entrou em desespero, mas Lórien
rapidamente concertou o buraco. O tempo estava feio, o céu estava negro e com nuvens pesadas, tão
grandes que quase podíamos tocá-las. As ondas eram tão altas quanto prédios.
― “Mar das Tormentas” “Oceano da tempestade”! Se o nome fosse “Mar da tranquilidade” não
estaria assim! ― gritei para Lórien.
― Tem um mar da tranquilidade do outro lado de Mantum! ― berrou ela de volta ― Esse parece
um passarinho cantando perto daquele!
Havia enormes rochas à nossa frente.
― Leona! Me ajuda agora, ok? ― ela esticou a mão para mim. Eu a segurei, então Lórien fez uma
ventania vir do Norte ― quando eu disser, você traz o vento do Oeste para nos jogar pra frente! ―
ela gritou.
Fomos jogadas para o lado, desviando completamente das rochas e Mag desmaiou ao ver as
rochas ficarem para trás.
― Agora! ― Berrou Lórien para mim. Apontei meu cajado para trás e uma enorme onda
acompanhada de vento arremessou o navio para frente. Todas caímos no assoalho escorregadio com
o baque e quando finalmente minhas pernas pararam de tremer e consegui levantar e olhei para trás,
tinha uma perturbação bem no meio daquele mar e as rochas demarcavam o local onde ela terminava,
mas dentro do círculo de pedras uma tempestade ainda acontecia. Das pedras para cá, não tinha nem
sequer um vento, continuava muito nublado, mas mão havia mais vento. Lórien abriu suas asas, voou
alto em direção ao sul e voltou.
― É um círculo gigante! Uma espécie de armadilha ou barreira! ― disse ela sorrindo ― É
incrível!
― Incrível e assustador! ― disse ― Bom trabalho! ― rimos juntas. Mag estava deitada no chão
chorando.
― Eu nunca vi a morte tão de perto! ― Gritava ela e várias outras mulheres da tripulação
também choravam e se abraçavam.
A mulher que estava no mastro principal começou a berrar.
― TERRA! TERRA À VISTA! ― corremos para a proa do navio para poder olhar e meu
estômago afundou. Não era exatamente terra, mas uma geleira. Gigantesca! Para onde meus olhos
olhavam não se via mais nada, só gelo a perder de vista.
― É maior que a costa de Edro e Mantum juntas! ― Mag parecia mais assustada com a geleira
do que com a tempestade.
Chegamos bem perto da geleira, o máximo que o navio podia chegar, era muito branco e meus
olhos doíam com aquela claridade. Um bote foi jogado ao mar para nos levar até a costa.
― Se forem direto ao Sul, chegarão à Mantum facilmente! ― disse Lórien à tripulação do Navio.
Descemos até o bote e começamos a remar calmamente enquanto o navio se virava lentamente.
Banshee apareceu no convés e começou a gritar.
― Preparar canhões! ― ela estava furiosa ― Vocês vão me pagar! ― gritava. A tripulação
armou e preparou os canhões contra nós.
― Elas acham que vão nos matar com aquilo? ― falei debochando e Lórien riu.
― Elas acham que sim! ― respondeu ela ficando de pé. ― Quer ver um show de fogos?
― Acho que pode ser arriscado, Lórien! Não sabemos o que tem lá! ― lembrei-lhe apontando
com o queixo para a geleira.
― Verdade! ― ela ficou tristonha.
― FOGO! ― gritou Banshee de dentro do navio e Lórien apenas começou a cochichar perto da
água. Palavras estranhas, não era élfico nem silfo. Os canhões do navio não disparavam.
― O QUE ESTÃO ESPERANDO, IMBECIS! FOGO! ― Banshee usava todo o ar de seus
pulmões para berrar com a tripulação, que tentava atirar a todo custo. Feroz se encolheu no bote e
começou a tremer. Lórien me pegou no colo e eu peguei Feroz, voamos rapidamente até a geleira
onde pousamos e ficamos olhando o navio. Feroz ainda chiava baixinho no meu colo.
― Que foi? ― Perguntei acariciando sua cabeça.
― Leona! Não vai querer perder o espetáculo, não é? ― disse Lórien apontando para o
navio ― Eles já estão aqui! ― disse rindo.
As águas próximas ao navio começaram a ondular e borbulhar e eu podia ouvir os gritos da
tripulação.
Uma coluna de água surgiu bem à frente do navio e de dentro dela saiu um tentáculo com quase o
dobro do tamanho do navio. Vários outros tentáculos saíram da água arrebentando o navio e o
arrastando aos destroços para o fundo do mar. As águas em volta dos destroços se moveram e
começaram a ficar vermelhas. Meu corpo inteiro tremeu.
― Aquilo estava embaixo de nós o tempo todo? ― perguntei olhando os restos do navio sumindo
nas águas.
― Estava nos seguindo desde o Mar das tormentas! ― disse ela olhando para um ponto na
água. ― Era a nossa escolta.
― Escolta? ― Lórien apenas sorriu olhando para aquele mesmo lugar. Segui seu olhar e vi dois
pontos azuis brilhantes vindo rapidamente em nossa direção. Lórien não se afastou nem perdeu o
sorriso no rosto.
Amijad e Lirien apareceram bem próximos de onde estávamos e acenaram para nós. Corri até
eles.
Ami, Lirien! Como estão? O que foi aquilo? ― perguntei.
― Agora estamos bem alimentados ― riu Lirien e Ami o acotovelou.
― Carne de mulher tem gosto meio amargo! ― disse ela pondo a língua para fora.
― Só para você! ― retrucou Lirien.
― Gostou do nosso bichinho? ― perguntou Ami alegremente.
― Bichinho? Feroz é um bichinho! Aquilo não pode ser chamado de bichinho! ― eles riram.
― Tínhamos uma dívida com você e com aquele elfo rabugento! ― disse Ami. ― Dê lembranças
a ele se o encontrarem com vida!
― E a capitã dos ventos nos devia uma também! ― Lirien olhava para os destroços do navio
com a cara amarrada.
― Muito obrigada! ― agradeci.
― Se precisar, é só chamar! ― Ami me entregou uma concha enorme e colorida. ― Ésó soprar e
viremos buscar vocês! ― disseram se afastando e sumindo nas águas geladas. Agora o nosso
problema era outro. O frio!
Não sabíamos para onde ir e nem por onde começar a procurar, era tudo gelo até onde a vista
podia alcançar. Lórien voou alto a procura de algum vestígio de civilização.
― Leona, tem algo estranho pra lá! ― Lórien pousou perto de mim. ― Um tipo de pirâmide!
― Então vamos pra lá! ― fiz minhas roupas normais virarem um sobretudo de couro forrado
com lã crua e com capuz e gola bem fofa. Lórien fez o mesmo. Feroz parecia se divertir na neve, o
frio só não nos incomodava tanto, pois não havia vento algum.
Depois de meia hora caminhando, caí de joelhos na neve. Meus pés e pernas estavam dormentes.
― Por que aqui está fazendo tanto frio? ― perguntei olhando para o céu, e lá estava minha
resposta. Só Áries estava no céu, montamos em Feroz para seguir adiante, seu corpo quente e peludo
ajudou a trazer a sensação de volta às minhas pernas.
Feroz parecia não se importar, corria conosco em cima dele sem parecer que estava cansado ou
ficando cansado.
― Ele é um tigre das montanhas de Edro ― disse Lórien enquanto corríamos montadas em
Feroz ― O frio o estimula, ele fica mais forte! Se ele não pegar no sono, claro! Ele pode começar a
hibernar a qualquer momento! ― ela estava rindo e também não parecia se importar com o frio. Meu
rosto estava completamente congelado.
Andamos pelo que parecia ser uma eternidade sem chegar a lugar nenhum, Lórien voava e tentava
ver a pirâmide, ela estava sempre no mesmo lugar, mas nunca chegávamos mesmo caminhando na
direção correta.
― Tem alguma coisa errada! ― disse ela na última tentativa de ver a direção. ― Feroz não
consegue sentir cheiro de nada, e mesmo na direção correta, nós nem mesmo chegamos mais perto!
― Olhei em volta, não havia nada mesmo, nem um sinal de nada até onde a vista podia alcançar,
olhei para trás, também não tinha nada, não tinha nada.
― Lóri, as pegadas de Feroz sumiram! ― falei descendo dele e me ajoelhando no chão para ver
bem de perto. Nada, só as marcas de meu joelho quando levantei, dei um passo para trás e as minhas
marcas na neve também desapareceram.
― É uma ilusão! ― Lórien estava frustrada.
― Nós estamos há horas aqui e não escurece! E já estava anoitecendo quando descemos do
navio! ― eu olhei para o céu e estava muito claro ainda. ― Como saímos dessa ilusão? ―
perguntei, Lórien cobriu a boca e ficou sentada pensando.
― Temos que descobrir o limite da ilusão, normalmente é um círculo ou um triângulo! ― ela
esticou a mão como se fosse tocar em algo.
― Como a gente acha isso? ― perguntei.
― É um espessamento, tipo um fio gelatinoso, é difícil sentir ao passar por ele! ― ela parecia
um cego tateando no escuro.
― Tive outra ideia ― peguei o cetro, fiz um risco no chão e levantei uma onda de neve. Nada.
Tentei outra vez e ainda nada.
― Faça a onda mais alta! ― disse Lórien olhando para o alto. Bati no chão com força dessa vez,
uma onda enorme fez algo sacudir a alguns metros acima de nós. ― Ali! Viu?
― Vi! E agora? ― perguntei ansiosa.
― Temos que fazer a barreira cair! ― disse ela erguendo as mãos. A neve em volta de nós
começou a se juntar, fazendo uma bola do tamanho de um carro. Ela ergueu a bola no céu, depois a
arremessou contra a barreira ilusória. Houve um som como de um trovão e o céu inteiro começou a
estremecer. A barreira se quebrou como vidro e caiu ao chão revelando uma paisagem magnífica!
Bem distante de nós haviam montanhas cobertas de gelo, mas a paisagem que nos cercava era de
uma enorme praia com coqueiros e areia branquinha. Tiramos os casacos rapidamente e a lua cheia
deixava a paisagem ainda mais encantadora.
― Agora podemos passar a noite aqui! ― disse Lórien sorrindo e olhando para o mar.
― Lóri! Olhe pra lá! ― disse apontando para onde a tempestade quase nos jogara contra as
rochas, a tempestade estava se dissipando e deixando o mar calmo. ― Onde estamos exatamente? ―
perguntei
― Era para o nome desse país ser Vintro, significa inverno. ― ela sentou na areia e olhou para o
céu. As estrelas aqui brilhavam mais do que em Edro e a Lua parecia maior também. ― Ele sempre
foi o país do inverno eterno, há muitos séculos um grupo de viajantes conseguiu passar pela
tempestade, mas tudo que encontraram foram quilômetros e mais quilômetros de geleiras e neve. Não
havia nenhum sinal de vida, mas eles descreveram o lugar como constantes tempestades de neve.
― Mas é estranho não ter sinal de vida, não é? Os Yetis não vivem na neve? Então se fosse real,
deveria haver Yetis aqui!
― Pois é! Parece que essa barreira sempre esteve aqui! Agora, nós vamos ter que olhar um
pouco mais de perto para levar as informações corretas para os governantes.
― Quem será que fez essa barreira? ― perguntei enquanto preparava o jantar.
― Não tenho certeza se foi Arcádius, ele é um dos magos mais antigos de Alamourtim, o sonho
dele pelo poder total se deu quando os elfos começaram a tomar conta de tudo, ele queria ter o poder,
o controle sobre tudo por ser o ancião mais poderoso e influente do antigo conselheiro. Ele só ficava
abaixo do Rei.
― Ele achava que por ser mais velho podia mandar em tudo, é isso? ― Lórien riu.
― Basicamente. O pior é que ele se tornou cruel depois de um tempo, houve uma época em que
ele foi bom, então do nada mudou, começou tudo com rigor extremo, suas regras eram muito rígidas e
se alguém as quebrava, era punido cruelmente. Depois ele abriu uma escola de magia para magos
iniciantes, mas ninguém sabe com que propósito e até sua mãe foi aprendiz dele! ― disse Lórien
espantada.
― Amantia ainda tem um rei? ― perguntei ignorando o que ela havia dito sobre minha mãe.
― Claro! ― disse ela sorrindo ― Rainha, para ser mais específica, minha avó, Rainha Eirien!
― ela riu de novo ― Vovó que escolheu o nome de Ewren!
― Ia comentar que os nomes são parecidos! Ei! Então você é sucessora do trono?
― A quinta, para ser exata. O Primeiro é o irmão de minha mãe, Ruthar, depois vem Arin, minha
mãe, depois Bargon, filho de Ruthar, depois Ewren e eu, por último a filha de Bargon, Turiel! ― ela
me olhou timidamente.
― Você é da família real? ― minha voz saiu tremida e ela encolheu os ombros
― Não tenho muitos amigos por isso, sempre achavam que as pessoas vinham a mim por
interesse, então comecei a esconder essa informação! ― ela deu um meio sorriso olhando para mim
com um olhar de filhote pidão.
― Você é louca? ― esbravejei ― O Mago jura vingança contra a família real e você decide vir
atrás dele?
― Ah! Achei que você estava com raiva de eu ser uma nobre! ― ela riu ― Não tenho medo
dele! ― disse estufando o peito.
― Deveria ter! ― bufei. Ela pulou em cima de mim e ficou esfregando meu rosto com as mãos
até eu começar a sentir minha pele soltar.
― Você é tão fofinha! ― ela apertou minhas bochechas ― Éigual a um gatinho indefeso, mas
quer se preocupar com os outros! Falando em se preocupar... ― disse ela ficando séria novamente e
me encarando. ― temos que dar um jeito de você aprender a usar armas e tem que ser agora! Não
sabemos o que tem por aqui e preciso que você me dê cobertura o tempo todo!
― Como vamos fazer isso? ― Perguntei ― Mal teremos tempo para treinar!
― Queria te ensinar do jeito mais difícil para você criar suas próprias habilidades, mas pelo
jeito, vai ser do modo fácil! ― Lórien mudou sua aparência. Além dos cabelos prateados, olhos
vermelhos e as marcas de maga no seu braço direito, tinha aquele pequeno brasão estranho em sua
testa com o formato de duas pequenas espadas atravessadas em um círculo e o tamanho de uma
moeda de um real.
― O que é isso em sua testa? ― perguntei
― A marca da minha família ― disse ela fazendo um espelho surgir da areia.
― É diferente da marca de sua mãe! ― eu disse olhando bem de perto.
― É da família do meu pai, de uma linhagem de magos humanos, eu carrego o símbolo dos
magos, pois quando eu treinava com ele, escolhi carregar o brasão de seu nome ― explicou
ela ― Mude de forma você também! ― pediu Lórien ficando de frente para mim. Me concentrei,
senti uma onda de calor pelo meu corpo, vi meus cabelos prateados voando suavemente com o vento
e depois vi o brilho verde de minhas marcas.
― Por que estão verdes? ― perguntei ― Da última vez estavam lilás!
― Depois que você não for uma maga pura, o brilho vai mudar para lilás. Olhe sua testa ― disse
ela erguendo o espelho para mim.
A pequena flor em minha testa era na verdade uma orquídea.
― Por que temos essas marcas? ― estava sendo chata, perguntando sem parar, mas ela
explicava-me com toda paciência.
― Há muito tempo atrás não existiam essas marcas, não éramos diferentes de qualquer outro ser
de nossas raças, mas os magos e bruxos mais espertos usavam seus poderes discretamente, sem os
outros saberem que eram magos, e faziam coisas erradas, e como não podiam ser diferenciados de
pessoas comuns enquanto usavam seus poderes, eles raramente eram pegos ou pagavam por seus
crimes! ― ela olhava para suas marcas carinhosamente ― Então um dia, cansada de ver as coisas
ruins que seus companheiros faziam com seus poderes, uma maga muito poderosa usou todo seu
poder pra jogar um feitiço em Amantia, mas seu feitiço não se restringiu só a magos, toda criatura
que caminhasse por duas pernas em Amantia receberia uma marca para saberem quem eles são de
verdade!
― Quem era essa Maga? ― perguntei
― Mayra... Ela gastou todos os seus poderes para marcar cada um em Amantia e todos os que
nasceriam a partir daquele momento, cada família teria sua própria marca gravada na pele, e toda vez
que usassem seus poderes, as marcas surgiriam.
― Então Ewren também é marcado? ― Lórien Sorriu.
― É sim, quase todos nós mudamos de aparência ao usar nossos poderes, magos, elfos e silfos
ficam com essas tatuagens espelhadas, como ele virou um elfo negro, sua marca passou a ser seus
olhos prateados e pele cinzenta. Assim como todos aqui, quando estão em aparência humana, ficam
com alguma marca denunciando sua verdadeira natureza.
― Muito legal! ― disse girando meu braço para poder olhar bem as marcas nele.
Lórien então me puxou para bem perto dela e tocou sua testa na minha. Parecia que nós havíamos
misturado nossas mentes, uma quantidade enorme de imagens apareceu diante de meus olhos eu os
fechei, pois minha cabeça começou a doer.
― O que você fez? ― perguntei esfregando minha cabeça.
― Dividi minhas habilidades com você! ― eu a olhei incrédula.
― Como assim?
― Meus conhecimentos e minhas habilidades de luta, eu passei pra você!
― Então você ficou mais fraca? ― perguntei.
― Não! ― ela riu ― Apenas te passei todo meu conhecimento sobre lutas com armas. Seu corpo
vai responder automaticamente quando você precisar lutar, como se você já tivesse anos de
experiência nisso! ― Lórien me explicou e eu continuava a encarando confusa.
― Ugh! Levante! ― ela resmungou pegando suas espadas. ― Faça uma espada para você! ―
disse ela tirando uma barra de aço da armação da barraca e jogando em minha direção. Olhei para
aquela barra e tentei transformá-la em uma espada bonita, mas só saiu uma espada reta, pequena, sem
fio e simples. Lórien revirou os olhos e a tomou de mim, ela girou a espada nas mãos até ela ficar
perfeita, longa, com o punho todo trabalhado com as mesmas marcas do meu braço e o fio longo,
fazendo uma curva leve.
― Obrigada ― sorri.
Lórien sem aviso me atacou com suas espadas, defendi girando meu corpo para o lado e a
atacando também, fazendo a espada passar a centímetros de seu quadril. Ela sorriu. ― Nada mal, não
é? ― então ela pulou por cima de mim me atacando por cima, me ajoelhei rapidamente fazendo um
bloqueio com a espada, a puxando pelo pé e a jogando no chão.
― Improviso? ― perguntou ela surpresa ― Não te passei isso! ― foi minha vez de sorrir.
Ficamos testando minhas habilidades por mais um tempinho antes de entrarmos na barraca para
dormir. Enquanto estava deitava em minha cama, fiquei observando Lórien dormir. Ela parecia uma
criança às vezes, em outras, parecia uma mulher adulta, segura e muito responsável, talvez algum dia
pudesse ser uma ótima rainha. Ela abriu os olhos e ficou me encarando.
― Sem sono? ― perguntou.
― Só sonhando acordada! Obrigada Lórien, por toda sua ajuda e pela sua amizade também!
― Nem precisa agradecer! ― seu sorriso foi tão encantador ― Um dia eu faço você me pagar de
algum modo! ― ela soltou uma risada e a abafou com o travesseiro.
Levantamos antes dos sóis nascerem e arrumamos tudo rapidamente para partir.
― Viu Feroz? ― perguntei olhando toda a extensão da praia e Lórien sacudiu a cabeça.
Ficamos ali esperando ele voltar. Depois de algum tempo comecei a ficar preocupada, ele não
costumava se afastar tanto de nós. Quando ia sair para procurá-lo, um reboliço no mar nos chamou a
atenção. A cabeça e as patas dianteiras de Feroz apareceram sobre a água e tinha algo preso em seus
dentes. À medida que ele saía da água, um peixe com quase do seu tamanho foi sendo arrastado por
ele de dentro da água.
― Feroz! ― chamamos, quando ele olhou para nós, o peixe escapou de suas presas e começou a
se debater em direção a água e Feroz começou a bater as patas na areia tentando agarrá-lo a qualquer
custo. Lórien fez o peixe flutuar, Feroz trotou até nós e se sacudiu para secar o pêlo.
― Ele trouxe café para nós! ― disse Lórien estalando os dedos e fazendo o peixe ficar limpo.
Fizemos o mesmo procedimento com o peixe como com ave há alguns dias. Temperamos e o
assamos. Lórien fez um chá de ervas para acompanhar e não era aquele horrível chá que Ewren e
Nena gostavam tanto.
Depois do café, Lórien voou novamente, fazendo uma análise do local.
― Parece que estamos no lugar certo. ― disse ela ― No pé daquelas montanhas de Gelo tem um
castelo ou uma fortaleza!
― Então vamos! ― disse esticando a mão para Lórien. Ela fechou as asas e caiu de pé no
chão. ― Não vamos voando? ― perguntei olhando tristemente para ela.
― Tem três vilas daqui até lá e não faço ideia do que vive nelas! ― ela parecia desanimada. ―
Não podemos passar voando e muito menos sermos descobertas antes do tempo!
― Tem razão!
― Teremos que contornar as vilas e passar por um campo colorido que vi alguns quilômetros à
frente ― disse ela desenhando um pequeno mapa no chão.
Começamos a nossa caminhada novamente. Feroz trotava em volta de nós, feliz com a refeição.
Caminhamos quase o dia inteiro, fazendo pequenas paradas para descansar e comer. Ao
entardecer chegamos a um campo enorme, ele era completamente tomado por flores. Eram todos os
tipos de flores! Os perfumes delas se misturavam com a brisa fazendo voar um perfume doce e
inebriante em nossa direção.
Passamos devagar por aquele campo. Lórien colhia amostras de todas as flores que dizia não
conhecer e as descrevia num caderninho de couro.
Feroz parecia não gostar daquele cheiro, pois toda hora parava para espirrar e esfregar as patas
no nariz.
Passamos mais tempo ali do que pretendíamos. Começou a escurecer e ainda estávamos na
metade do campo, embora o perfume das flores fosse maravilhoso, a essa altura eu já estava enjoada
dele e com muita dor de cabeça, Lórien parecia estar mal também.
Ela abriu uma bolha pequena em volta de nós e purificou o ar dentro dela para que não
sentíssemos mais o perfume e Feroz pareceu aliviado.
Montamos a barraca dentro da bolha, Lórien tirou uma bolsa térmica bem pequena de dentro de
uma bolsa maior e de dentro dela tirou um pedaço razoável de carne e depois sanduíches.
― Feroz, encolha para comer! Hoje não tem muita fartura! O cheiro das plantas espanta a maioria
da caça desse lugar! ― disse Lórien esfregando suas orelhas.
Comi meu sanduíche e bebi uma xícara do chá de ervas novamente.
― Lóri? Por que você não bebe aquele chá amargo? ― perguntei enquanto ela me servia mais
chá.
― Você gosta daquele chá? ― perguntou ela e seu rosto se contorceu em uma careta ― Aquilo é
horrível!
― Também odeio aquele chá! Mas queria saber por que você não toma. ― Ela me olhou como se
eu fosse louca.
― É óbvio que é pelo gosto ruim! ― fiquei envergonhada e ela riu.
― Léo, aquele chá é de uma árvore muito comum nas montanhas escuras de Edro, é uma árvore
doce, o chá é uma delícia! ― foi a minha vez de a olhar como se ela fosse louca.
― Como assim? Aquilo é horrível! É amargo, picante e tem cheiro ruim! ― Lórien sacudiu a
cabeça.
― Nós sentimos aquele gosto no chá! Ele é bom para qualquer um que não seja mago ou
metamorfo! Porque a maioria dos metamorfos são magos. Nós sentimos aquele gosto, pois a árvore
nasce com uma defesa contra magos, porque antigamente elas eram usadas por inteiro pelos magos
para fazer uma base pastosa para emplastros e bálsamos. Elas eram muito utilizadas e os magos não
replantavam, destruindo muitas árvores e a floresta, mesmo crescendo muito rápido, não davam
conta! ― ela fez uma pausa, tomando outro gole de chá ― Apenas os humanos que usavam suas
cascas para tomar o chá, as replantavam e cuidavam delas. Então as Dríades fizeram as árvores
crescerem com uma defesa, se você for um mago e tentar usar a árvore, ela simplesmente vira amarga
e não cria mais a liga necessária para a pasta.
― Mas eles não pediam para outras pessoas cortarem as árvores para eles? ― perguntei, pois
seria essa a solução.
― Aí é que está! Eles começaram a fazer isso e as Dríades tomaram medidas mais drásticas! Se
você cortar a árvore, ela simplesmente vira pó!
― E a casca não serve para fazer essa pasta, não é?
― Não mesmo!
― Mas então, por que mesmo o chá sendo preparado por outra pessoa ele continua amargo?
― Quando ele encosta na sua boca, muda o sabor! ― disse ela cruzando os braços ― A pirraça
de uma Dríade é eterna!
― Agora fiquei curiosa sobre o sabor verdadeiro! ― Lórien riu.
― Nunca saberemos! ― Era muito divertido viajar com Lórien, ela estava sempre sorrindo, mas
sentia muita falta de Ewren.
Acordei no meio da madrugada novamente escutando um uivo. Mas era um uivo sofrido e baixo.
Lórien também se levantou atenta e seus olhos vermelhos pareciam lâmpadas no escuro. Feroz
levantou as orelhas e bocejou, nos fazendo ter certeza de que não era algo perigoso. Mas o uivo
continuou nos impedindo de dormir novamente.
― Ele está chorando! ― disse Lórien depois de algum tempo escutando. ― Parece ser um lobo
filhote, provavelmente foi abandonado pela matilha. ― Ela ficou de pé, apressei-me em levantar
também e segui-la.
Ela saiu da bolha de proteção, mantendo-a ali e Feroz ficou sentando como se estivesse tomando
conta do acampamento.
Seguimos entre as Flores até a beirada de um rio que passava por ali e nem havíamos notado.
Devia ter uns três metros de largura na parte em que estávamos, mais para frente ele se estreitava e
descia entre as pedras.
Na outra margem, sentado chorando entre as pedras, havia um pequeno lobinho cinza. Quando nos
viu, levantou a cabeça e começou a rosnar baixinho.
Lórien atravessou o rio com facilidade, a correnteza não era forte e muito menos era fundo. Ao
atravessar e se aproximar do lobinho, ela se abaixou e estendeu a mão para que ele pudesse cheirar,
ele parecia confuso, cheirou e depois uivou de novo choramingando.
― Lórien! ― chamei ― As flores! ― ele havia perdido a sensibilidade por causa do pólen das
flores. Ela então pegou o filhote no colo e atravessou para esse lado.
Voltamos para dentro da bolha onde Feroz nos aguardava com ansiedade, indo de um lado para o
outro.
Quando colocamos o lobinho no chão, onde o ar estava limpo e sem perfume de flores, ele
espirrou várias vezes antes de crescer e ficar do tamanho de um Waheela. Feroz também cresceu e o
encarou. Então o lobo enfiou o rabo entre as patas e se deitou no chão fazendo gracinhas.
Lórien ficou esfregando suas orelhas e ele a retribuiu com lambidas.
― Isso é um lobo mesmo? ― perguntei.
― Parece ser domesticado! ― disse ela o afagando mais.
O lobo entrou na barraca com Feroz, deitou na cama de Lórien e dormiu. Como ela ficou sem sua
cama, dormimos juntas com Feroz em nossos pés.
Iríamos sair de madrugada de novo, levantamos antes da claridade do dia e desmontamos o
acampamento para partir, Lórien estourou a bolha, quando ela estourou, uma pequena onda de vento
fez as flores balançarem com força e começarem a brilhar.
Dei um passo para trás, as flores tinham luzes fortes e de repente milhares de pequenas bolinhas
brilhantes voaram aos céus e nos circularam.
― Fadas! Uma colônia de fadas! ― Lórien estava encantada. ― Nunca tinha visto tantas juntas!
― uma pequena bolinha se aproximou de nós, ficando a um palmo de nossos rostos. A bolinha tomou
forma de uma pessoinha com pequenas asas verdes, que mais pareciam duas folhas agarradas em
suas costas. Ela começou a falar em um idioma muito estranho, falava baixinho e com uma voz fina e
irritante e parecia zangada.
Lórien tentava falar com ela e usou vários idiomas, mas a fada parecia não entender.
― Elas não entendem nenhum dos idiomas de Edro e Mantum! ― Lórien parecia frustrada. A
fadinha então caiu na gargalhada.
― Entendi todos os idiomas que você falou! Estava só te perturbando um pouquinho! ― fiquei
com vontade de apertar aquela fada até fazer seus olhos saltarem das órbitas por nos fazer perder
tempo. Lórien e ela conversaram por algum tempo na língua das fadas.
Lórien alguns minutos depois sacudiu a cabeça e murmurou baixinho “Não sabem de nada, é um
jardim isolado”.
― Peço desculpas por invadir a casa de vocês! Mas antes de irmos, vocês podem nos dizer se
existe alguma perturbação por aqui? ― Lórien se desculpou.
― Faz muito tempo que pessoas pararam de aparecer aqui! ― disse ela ― Mas nas montanhas,
de lá vem veneno trazido pelo rio algumas vezes e mata todo nosso jardim! Aí são meses para ele se
recuperar!
― Muito Obrigada! ― disse ela às fadas ― Iremos fazer o possível para o veneno não chegar
mais aqui! Vamos seguir o rio. ― disse ela para mim. Feroz e o lobo nos seguiram trotando.
Lórien provou a água do rio e estava cristalina.
― Parece não estar contaminada! ― disse analisando a cor e o cheiro da água e Lórien
concordou.
Fomos caminhando rio acima, andando sobre as pedras e observando tudo ao redor para ter
certeza de que não éramos seguidas.
Lórien catalogava qualquer coisa diferente que via e até agora nada de ameaçador havia
aparecido. O lobinho a seguia o tempo todo, quando ela parava, ele sentava e ficava observando,
quando andava, ele ia atrás e não deixava espaço maior que dois passos.
Por volta de meio dia paramos para almoçar e entramos no rio para tomar banho enquanto a
flecha caçadora de Lórien rodava a procura de alguma caça interessante que nos servisse de almoço.
Um barulho estranho no mato próximo a margem do rio nos fez sair da água e ficar à espreita,
escondidas atrás de uma rocha vigiando.
Duas mulheres apareceram para pegar água. Elas tinham longos cabelos negros trançados, pele
cor de mel e olhos totalmente brancos. Elas só estavam parcialmente cobertas com uma espécie de
saia e em seus pulsos tinham enormes pulseiras de metal.
― São Almas! ― Lórien falou baixinho.
― Almas? ― perguntei começando a me arrepiar ― Não parecem fantasmas para mim! ―
Lórien teve que segurar o riso.
― Almas, Mulheres Selvagens! ― explicou ela. Lórien levantou devagar, tomando cuidado para
não assustá-las e eu a segui. As mulheres nos encararam assustadas e começaram a sussurrar.
― Vão embora! ― elas gesticulavam para nos afastarmos. ― Depressa, se não eles vão ver
vocês!
― Eles quem? ― perguntei olhando em volta, não havia mais ninguém ali.
O chão de repente começou a tremer e tornamos a nos esconder atrás das pedras para esperar
aquilo chegar. Escutei o som de cavalos se aproximando, as mulheres do outro lado do rio se
ajoelharam e ficaram de cabeça baixa. Um grupo de uns vinte centauros apareceu atrás delas,
começaram a gritar com elas e lhes dar chicotadas. Tranquei meus punhos.
― Leona! Fica calma! ― disse Lórien num sussurro. ― Vamos ajudar elas! Mas centauros são
muito fortes e imunes à magia! Se formos até lá, viraremos escravas deles também! ― Me senti
horrível por ver as mulheres serem arrastadas pelos cabelos e não poder fazer nada para impedir.
Um dos centauros ficou parado na margem do rio, seu cenho estava franzido e ele parecia
ligeiramente diferente dos outros, seu rosto era mais “humano” e era um pouco mais baixo, sua
metade cavalo era cinza, enquanto a dos outros era marrom, e parecia ser bem mais jovem também.
Ele virou em nossa direção, assoviou alto e foi diminuindo o som aos poucos. O lobo que havíamos
encontrado apareceu correndo, nos derrubou para fora da pedra e depois atravessou o rio em direção
ao centauro que nos olhava ameaçadoramente, “ele vai chamar os outros!” pensei, mas ele
atravessou o rio e veio até nós. Nos levantamos rapidamente, com Feroz crescido atrás de nós para
podermos fugir. Ele esticou um braço musculoso em nossa direção.
― Não fujam! Não vou fazer mal a vocês! ― o centauro tinha um cabelo longo cinza e
emaranhado preso por uma trança mal feita e olhos castanhos.
― Não acredito que é você ― Lórien se esticou para frente para tocar na mão do centauro, seus
olhos estavam arregalados e ela parecia nervosa.
― Meu nome é Andros! Lembra-se de mim, Lóri? ― ele perguntou a Lórien. Ela não mudava a
expressão, estava como uma pedra.
― Andros? ― Lórien empalideceu. ― Andros Peregrino? ― Fiquei receosa, achei que Lórien
fosse desmaiar a qualquer momento. ― Não pode ser! Você estava morto! ― ela sentou na beirada
do rio e o encarou.
― Não fui morto, fui amaldiçoado por aquela Bruxa! ― disse ele chegando bem perto de nós. Eu
me encolhi e continuei a encará-lo. Lórien parecia ter entrado em estado de choque.
― Não pode ser... ― disse ela numa voz tão baixa que foi difícil de entender.
― Preciso de sua ajuda! Por favor! ― ele a levantou do chão e beijou suas mãos, ela ainda não
tinha reação.
― Lórien? ― chamei abanando seu rosto.
― Estou bem! ― disse ela me dando uma rápida olhada. Seu olhar era perturbado e confuso.
― Estou preso aqui há mais de quatro séculos! ― disse ele apertando as mãos dela, sua voz era
de uma mistura de desespero com alívio por nós estarmos aqui. ― Fiquei esperando algum navio,
qualquer coisa, mas nunca veio ninguém!
― Todos em Amantia acham que você morreu na expedição de exploração desse continente,
Andros! ― ela disse encarando-o.
― Mas estou vivo! Os outros que estavam comigo morreram, mas eu sobrevivi! ― ele quase
gritou as palavras ― Moan me transformou num centauro por eu ter descoberto seus planos e dito
que ia entregá-la para o rei, para ser executada!
― Que planos? ― perguntou Lórien o olhando com espanto. ― Moan é uma simples bruxa! Não
tem poder pra isso! ― disse ela confusa.
― Tem sim! Ela não é uma simples bruxa! Acho que ela é amante de Arcadius! ― Lórien estava
com a boca aberta e parecia muito mais assustada que antes.
― Como... O que você descobriu? Que planos?
― Ela estava ajudando Arcadius a tentar controlar Amantia! E ela vigia o círculo dos Doze, ela
vai aos outros mundos procurando por qualquer coisa que possa ajudá-lo em seu plano doentio. ―
Andros olhou para os lados como se esperasse ser surpreendido por alguém a qualquer momento.
― Explique melhor, detalhes! ― pediu Lórien.
― Ela é uma Bruxa, mas é humana, ela ficou com os poderes das magas que Arcadius assassinou
para dar a ela e ter uma ajudante fiel! Ela queria dar o sangue da filha de Lupine para Arcádius, mas
como Lupine se foi, ela decidiu dar a própria filha humana para ele, então ela invadia as casas das
vilas humanas que tinham magos nas linhagens das famílias e enfeitiçava os homens para que
dormissem com ela, para os solteiros ela aparecia como uma virgem muito bela, e para os casados,
aparecia como suas esposas e quando engravidava, deixava as vilas. Mas para não ser descoberta,
ela vinha para as florestas dos Centauros e se dizia como uma divindade, ela acelerava sua gestação
usando feitiços e fazendo-as durarem apenas um mês. ― ele estava olhando para o nada, com horror
estampado no olhar. Parecia que eu sempre estava envolvida nas coisas ruins que aconteciam por
aqui.
― Continue! ― disse Lórien olhando discretamente para mim.
― Quando seus bebês nasciam, se eram meninos ela os levava para a floresta escura e fechada e
os entregava a um Lich, que em troca da criança, aumentava seu poder. Quando era uma menina, ela
fazia um ritual para saber se eram magas ou não, quando não eram, ela as entregava aos cuidados dos
centauros, para que fossem suas escravas!
― Então aquelas moças no rio agora a pouco... ― eu comecei a falar, mas não consegui terminar
a frase.
― Sim, são filhas da Moan! ― disse ele tristemente ― Demorou muito para ela descobrir que
não importava quantas filhas ela tivesse, que nunca teria um bebê igual, pois ela não carregava a
maldição das Arbarus.
― Eu vou arrancar a cabeça dela! ― disse Lórien. Pela primeira vez, vi um olhar perverso nela.
― Quantos bebês ela teve? Ela teve alguma filha maga? ― perguntei.
― Foram mais de cem bebês! ― disse ele apertando os punhos. ― A grande maioria eram
meninos humanos, e ela teve uma filha maga, mas a criança morreu poucas horas depois de nascer.
― Ainda bem! ― disse Lórien ― Sinto muito por falar algo tão cruel, mas a morte dela evitou a
de muitas pessoas! ― ele assentiu com a cabeça.
― Ela parecia que nunca ia desistir, nunca ia parar com aquilo. Até que uma noite, uma mulher
acordou no meio da noite e viu seu filho na casa, ela não estava enfeitiçada, então viu a aparência
real da bruxa montada em cima do seu filho. A mulher a esfaqueou na barriga com uma faca de ferro
banhada em saliva de aswang. Só aí que ela parou.
― Mas quando foi exatamente que ela te transformou? Como você foi pego?! ― ela fazia um
esforço para tentar voltar ao normal.
― Logo que cheguei com a expedição para explorar esse continente e fazer o reconhecimento,
fomos atacados por um Ymir, ele era maior do que o Gigante Terminus. Esmagou quase todos com um
único golpe. Eu não tinha como enfrentá-lo, então me lancei ao vento para fugir. Alguns dias depois
que cheguei, Moan e Arcadius apareceram com um grupo de Lobisomens, elfos negros e Trolls.
Arcadius Fez uma pirâmide de vidro sobrevoar o continente e dessa pirâmide saiu uma espécie de
rede que cobriu tudo! Então Moan começou a fazer suas barbaridades e eu a seguia, mas não
conseguia voltar a minha forma física, a barreira dele me impedia de usar meus poderes. Fiquei
durante todo o tempo como vento, mas um dia ela sentiu a minha presença e transformou-me em
centauro para que eu fosse obrigado a viver com eles e ver tudo o que ela fazia sem poder fazer nada
para impedir.
― Então foi Arcadius que fez aquela barreira que você quebrou! ― disse Lórien para mim.
― A barreira caiu? ― ele arregalou os olhos para mim ― Vocêderrubou a barreira? ― sorri
timidamente.
― Ela é a filha de Lupine... ― Lórien riu ― Perdão, não os apresentei! ― Leona, esse é Andros,
Príncipe dos Silfos e... Meu noivo. ― ela disse a palavra noivocomo se tentasse aceitar
isso. ― Andros, essa é Leona, filha da Sacerdotisa Lupine e de seu tio Aeban! ― disse ela com um
pequeno sorriso de lado. Tio Aeban?
― Tio Aeban e a sacerdotisa? ― ele parecia tão surpreso quanto eu, mas eu estava surpresa por
que além de um pai, agora eu tinha parentes mágicos, estava ficando cada vez mais divertido.
― Sim, Aeban e Lupine! ― ela riu. ― Lupine agora está com uma caravana tentando
restabelecer a paz em Amantia!
― O que houve por lá?! ― ele perguntou
― Depois te conto, mas agora estamos com pressa, sabemos que meu irmão foi capturado por
Moan! Estamos tentando achá-lo!
― Eu vou ajudar vocês, mas preciso do meu corpo de volta! Podem quebrar o feitiço dela? ―
ele perguntou esperançoso.
― Podemos tentar... ― disse Lórien. ― Leona, preciso de sua ajuda agora! ― ela pegou minha
mão ― Preciso que você aumente meu poder para que eu quebre o feitiço daquela monstra!
― O que eu tenho que fazer? ― perguntei.
― Só precisa conectar seu poder com o meu! ― disse ela transformando-se. Fiz o mesmo e
segurei firme sua mão. Lórien colocou a mão sobre o peito nu de Andros e começou a cantar uma
estranha melodia. Uma forte luz saiu de sua mão e entrou no corpo dele. Lórien deu um suspiro e
desmaiou.
― Lórien! ― gritei sacudindo-a.
― Ela está bem, só usou energia demais! ― disse Andros, que continuava como um centauro. De
repente ele caiu no chão e começou a se contorcer urrando de dor. Quando ele parou de se mexer, o
corpo de cavalo foi dando lugar a pernas até ele parecer totalmente como um homem.
Lórien abriu os olhos e suspirou, seu olhar estava estranhamente triste.
― Deu certo? ― ela perguntou com uma voz fraca.
― Sim, ele está normal agora! ― ela deu um sorriso amarelo e fechou os olhos novamente.
Olhei-o caído de bruços a nossa frente, estava nu, fiquei vermelha e virei o rosto, fiz aparecerem
roupas nele para que não visse nada que não devia quando ele despertasse.
Quase meia hora depois ele acordou, o lobo começou a pular em volta dele e ele se levantou
sorrindo, sentou ao meu lado e pegou Lórien nos braços. Ele acariciou seu rosto e a beijou, depois
assoprou as mãos dela, o sopro foi gelado e tive certeza de ver o ar que ele expeliu, brilhar. Ela
respirou fundo e acordou.
― Agora temos que encontrar Ewren! ― Disse ela se levantando e virando para começar a
andar, Andros sorriu, a puxou pelo braço e a beijou novamente, ela endureceu por um momento, mas
depois cedeu, por um instante achei sua reação estranha, talvez já não gostasse mais dele!
― Gente! Por favor! ― murmurei ― Ewren! ― Andros a soltou e revirou os olhos.
― Eu sei! Vamos! ― Andros deu um comando ao lobo, que parou ao lado deles abaixado. Ele
montou no lobo com Lórien e eu, em Feroz. ― Ewren deve estar na fortaleza que protege o castelo
de Arcádius! Vamos lá! ― Ele fez um som com a boca, o lobo e Feroz começaram a correr em
direção às Montanhas.
11

Memórias Perdidas.
Corremos sobre os animais até o anoitecer sem descanso. Estávamos muito próximos à fortaleza e
seus muros podiam ser vistos a distância contra a luz do Luar.
Montamos acampamento ali no meio da floresta onde parecia ser mais seguro, pois à nossa frente
havia um enorme descampado até onde a fortaleza estava. Estava cansada e faminta, corremos o dia
todo sem parar e Feroz dormia profundamente dentro da barraca.
Andros ergueu as mãos e fez uma barreira em volta de nós, ela ficou circulando e se movendo
lentamente.
― É uma barreira de vento, ela distorce o nosso cheiro e impede que qualquer um lá fora possa
nos ver aqui! ― disse ele sorrindo.
Lórien fez uma fogueira aparecer e pouco depois sua flecha caçadora voltou com uma ave enorme
presa nela. Ficamos ali, comendo e conversando. Enquanto Feroz e o lobo dormiam tranquilamente.
― Qual é o nome dele? ― perguntei apontando para o lobo com o queixo.
― Dela! É uma loba! ― ele olhou carinhosamente a loba dormindo. ― É Neve, pois eu a
encontrei num dia que caía uma forte nevasca aqui.
― É meio sem criatividade, não é? ― disse Lórien debochando.
― É sim! Mas eu nunca fui bom para dar nome às coisas!
― Ewren disse a mesma coisa sobre o nome de Feroz! ― resmunguei ― Andros? Você pode se
tornar vento, não é? Então por que não voou de volta a Edro? ― perguntei
― Não é tão simples. Não posso me tornar vento em dias de tempestade. Se o vento na
tempestade for muito forte, eu posso me dividir e morrer. E eu tinha uma missão aqui, tinha que
explorar esse continente que até então estava inacessível a nós.
― A tempestade? Mas ela desmanchou quando eu quebrei a barreira! Então ela não apareceu
aqui junto com a barreira?
― Esse continente, embora seja muito grande, já deveria estar sendo usado por Arcadius para
experimentos, pois existem raças muito estranhas aqui, que nunca ouvimos falar! ― ele estava
pensativo.
― E você conseguiu explorar tudo? ― perguntou Lórien
― Sim, cada centímetro desse lugar! ― ele inchou o peito para dizer que havia explorado
tudo. ― Aquela montanha que está atrás da fortaleza é um vulcão. A lava dentro dele é azul e se
formam cristais de purificação quase cem vezes mais fortes do que os cristais das árvores da vida.
― Cem vezes? ― Lórien se espantou ― Dá para purificar um elfo negro com eles e transformá-
lo de volta? ― eu ia perguntar a mesma coisa.
― Não tenho certeza... ― disse ele ― Mas, sei que pode purificar um imediatamente, acalmando
seu coração. Também aumenta o poder de magos, por isso a fortaleza de Arcádius está lá na
montanha!
― Interessante... ― pensei em antes de ir embora pegar um cristal daquele vulcão. ― É muito
difícil encontrar esses cristais? ― perguntei.
― Não, a parte de trás dele é cheia desses cristais, tão cheia que é perigoso andar distraidamente
por lá. Pode acabar se ferindo, pois eles são muito afiados. Mas parecem fáceis de se lapidar! ―
Andros continuou falando, falava com gosto das descobertas dele nesse continente.
Depois que fomos nos deitar na barraca, esperei para ter certeza de que Andros e Lórien dormiam
profundamente e saí de fininho da barraca, arrumei a mochila levando algo para comer, uma capa
grossa que Lórien havia me emprestado enquanto estávamos no navio e uma garrafa d’água. Chamei
Feroz e ele parecia que sabia o que eu planejava fazer.
― Feroz? Temos que correr! Voltar antes que acordem! Está vendo aquele vulcão? Temos que ir
atrás dele sem sermos percebidos, se alguém estiver guardando a fortaleza! ― ele espirrou e bateu
com as patas no chão, ele correu muito mais rápido do que estava correndo durante o dia e mal
escutava o ruído de suas patas no chão e de seu pêlo roçando em mim.
Passamos rapidamente por um local totalmente aberto, depois continuamos a correr pela floresta.
Por um breve momento achei que tivesse visto uma sombra cortar o brilho da lua gigante acima de
nós.
De repente Feroz deu uma freada brusca, derrubando-me de cima dele ao chão. Saí rolando e bati
em uma árvore com força. Meu ombro direito começou a queimar. Tentei me levantar
cuidadosamente, mas meu ombro parecia que ia sair do lugar.
― Feroz! ― disse baixinho com a voz tremida ― O que houve? ― perguntei olhando em volta e
o procurando. Quando o vi, meu coração deu um salto. Ele estava com as patas presas por grilhões
de prata e chorava baixinho olhando para mim assustado. Levantei-me e andei até ele com
dificuldade. Quando cheguei perto, ele bateu de leve com a cabeça em mim, como se estivesse me
empurrando.
― O que foi? ― perguntei e ele olhava fixamente para um ponto atrás de mim. Virei-me
cuidadosamente, Demétrius estava parado em pé, sorrindo a alguns palmos de mim.
― Olha o que eu achei! ― disse ele zombando ― Um gatinho e uma gatinha perdidos na floresta!
― Ele se aproximou lentamente, tentei pegar meu cajado em meu pescoço, mas ele não estava lá.
Devia ter arrebentado e caído na queda. Eu não poderia correr, ele iria me alcançar facilmente e eu
nunca deixaria Feroz para trás.
Feroz tentou pular para atacar Demétrius, que já estava praticamente ao meu lado, mas a corrente
lhe deu um choque e ele caiu desacordado.
― Feroz! ― chamei tentando tocar nele, mas Demétrius impediu, puxando meu braço e
derrubando-me no chão.
― Finalmente vou poder pegar minha recompensa, só preciso te levar até lá! ― disse ele
apontando a fortaleza com o queixo do outro lado do campo, bem distante de nós. ― Mas antes,
sabia que aquela única gota do seu sangue que provei me deixou com um poder bem maior? ― o
sorriso dele era assustador, eu queria fazer algo, mas ele estava prendendo meus braços e não
permitia que eu me movesse. ― Que foi? Está tão quietinha! Quando te conheci, você não parava de
falar! ― ele riu novamente.
― Não tenho nada para falar com alguém como você! ― gritei.
― O-oh! Arrogante como a mamãe, não é?
Demétrius me pegou pelo braço ferido e me levantou do chão, fazendo-me prender um grito de
dor, não ia dar esse gostinho a ele de me ver gritar ou chorar. Ele soltou meu braço esquerdo e puxou
a alça do meu vestido, lambendo o local que as cascas afiadas da árvore haviam feito pequenos
cortes e a raiva me tomou. Não tinha meu cajado, mas podia lidar com ele de alguma forma,
concentrei o máximo da minha força e desejei que fosse forte o suficiente, ele estava de cabeça baixa
sobre mim, girei meu corpo rapidamente e o aceitei no rosto com meu cotovelo, usando todas as
minhas forças. Ele foi arremessado por vários metros e vi o brilho prateado do meu cabelo nas
sombras da árvore na qual estava apoiada.
― Sua imbecil! ― ele levantou furioso, seu rosto estava torto para o lado e o maxilar havia
deslocado, eu sorri debochando dele. Aparentemente não precisava do cajado para invocar meus
poderes. Senti as feridas no meu ombro se fecharem lentamente. ― Você vai ter o que merece, e pra
ser mais doloroso e divertido, não vai ser pela minha mão! ― Ele deu um assovio agudo e alto, que
fez minha cabeça girar.
― Você é ridículo e fraco! Se Ewren estivesse aqui, iria acabar com você! ― gritei. Demétrius
olhou para mim e tentou sorrir com seu rosto torto e sujo de sangue.
― Queria ficar para ver isso, mas tenho que fazer uma coisa mais importante, afinal, você não
veio sozinha, não é? ― Disse ele desaparecendo em uma poça d’água. Lórien! Tentei levantar para
ir até onde ela estava, porém uma sombra sobre mim me fez congelar.
Escutei um som como se algo tivesse caído no meio das folhas secas no chão da floresta. Era ele!
Ewren estava parado atrás de mim, a menos de um metro de distância. Meu coração saltou de
felicidade, mas a felicidade sumiu quase que instantaneamente.
Seus olhos estavam completamente vermelhos, sua pele estava cheia de cortes e ferimentos, como
se fossem feitos por chicotadas, seu cabelo branco que era tão liso e brilhante estava feio, embolado
e sujo, e havia olheiras sob seus olhos.
― Ewren! O que fizeram com você? ― minha garganta ficou apertada. Tentei me aproximar, mas
ele puxou suas adagas e mostrou os dentes para mim.
― Me... mandaram te levar até a fortaleza... ― sua voz parecia cansada, arrastada.
― Ewren! Não se lembra de mim? Não sabe quem sou? ― perguntei.
― Você é quem eu tenho que levar para a fortaleza ― disse ele ― nem que seja em pedaços! ―
ele pulou na minha direção com as adagas na mão. Me joguei ao chão, rolando e desviando dele e
corri, mas ele pulou e aterrissou em minha frente.
― Coopere, não quero te levar em pedaços, porque seria um desperdício! ― disse ele pegando
uma mecha do meu cabelo e levando à boca. Senti todo meu corpo ficar frio e formigar. Fechei os
olhos, eu não queria feri-lo, ele já estava muito machucado, mas eu não tinha escolha. Bati com o pé
no chão, fazendo as raízes das árvores saltarem da terra e formarem uma gaiola em volta dele. Corri
até Feroz, que ainda estava desacordado, as correntes de prata também me afetavam, quando as
toquei, levei um choque e meus poderes enfraqueceram instantaneamente, era tudo que eu não
precisava naquele momento, ficar mais fraca!
Escutei os galhos arrebentando e quando me virei, Ewren me pegou pelo pescoço e me jogou no
chão, senti meu corpo bater pesadamente em cima dos pedaços das raízes partidas, fiquei tonta e sem
ar e tentei me levantar, mas não consegui, pois Ewren agachou sobre mim, me prendendo ao chão
com as pernas, ele arrebentou um pedaço da corrente de prata que segurava Feroz, enrolou em
minhas mãos e as puxou, encostando-as no chão acima de minha cabeça, assim não poderia usar meus
poderes, ele se apoiou em sua mão livre e ficou com o rosto a centímetros do meu.
― Uma pena, mas eu não pretendo te levar inteira... ― ele disse rindo e arrebentando a alça de
meu vestido com a mão.
― Me solta! ― comecei a gritar, tentando me soltar enquanto ele forçava minhas pernas a se
abrirem com seu joelho. ― Por favor, Ewren! Não! ― eu comecei a chorar, a me debater e a repetir
“Não”, “Não”, “Não”!
― Nada me impede de fazer isso! ― disse ele deslizando meu vestido para baixo e tocando meu
pescoço com seus lábios frios.
― Ewren! Pare, por favor! Você disse que ia me proteger, lembra? ― minha voz saiu tremida e
baixa. Ele riu e apertou meus braços com força. Fiquei de olhos fechados chorando baixinho, ele
passou a mão pela minha cintura e depois colocou seu rosto junto ao meu. Ele ficou ali por um
momento antes de suspirar.
― Por favor, não chore, odeio te ver chorar, me deixa louco! ― disse ele se levantando, tirando-
me do chão e me puxando para dentro de suas asas abertas ― Não precisa chorar mais, não vou te
fazer mal! ― Caí de seus braços de joelhos no chão, chorando mais e me cobrindo com as mãos.
Ewren se ajoelhou em minha frente fechando as asas, seus olhos estavam normais, com olheiras, mas
normais, um olho azul e outro cinza. Ele me cobriu com a capa que eu havia colocado na mochila. Eu
ainda estava em choque e fiquei sentada no chão com o rosto cheio de lágrimas olhando desconfiada
para ele. Ele ficou sentando de olhos fechados com uma expressão dura, como se estivesse lutando
internamente, seus punhos estavam serrados e por um breve momento percebi que ele estava tentando
se conter.
― Aquela bruxamaldita! ― ele esbravejou dando um soco no chão ― Ela me enfeitiçou,
apagando minha memória e me fazendo de escravo!
― Moan? ― minha voz estava tremida. Ele fechou os olhos e passou a mão na minha cabeça
gentilmente, me fazendo encolher para longe dele. Foi sem querer, meu corpo se moveu
automaticamente e pude ver a tristeza em seus olhos.
― Sinto muito! ― disse ele se levantando ― Vou voltar e cortar a cabeça dela! ― a fênix em
suas costas se mexeu e esticou as asas, fazendo as asas de Ewren se abrirem.
― Não vá! ― gritei tentando ficar de pé, desequilibrando e me segurando nele. ― Lórien!
Demétrius foi atrás dela!
― Ela está aqui?! ― ele ficou ainda mais furioso.
― Ela me trouxe aqui... ― disse baixando a voz quando vi seu olhar de reprovação e raiva.
― Por que vocês não estão juntas? ― gritou ele indo até Feroz e soltando as correntes. Amarrei
a alça arrebentada do vestido e peguei Feroz no colo quando ele encolheu, voamos e ficamos
rodando por cima de onde estava o acampamento até escutarmos um grito.
Ewren desceu rapidamente pousando no meio das árvores. Podíamos escutar Lórien gritando, mas
não víamos nada.
― Lórien! ― gritei
― Leona! Me ajude! ― ela gritou de dentro da bolha. Eu estava tocando a bolha, pois a senti
vibrar, peguei um galho qualquer no chão, o visualizei sendo coberto com meu poder e acertei a
bolha, fazendo-a estourar.
Andros estava caído no chão, seus olhos estavam fechados e estava ofegante. Lórien estava quase
de joelhos na frente da barraca destruída, fazendo um escudo com suas espadas, e Demétrius estava
acertando elas com as mãos vazias.
― Olhe o poder que seu sangue me deu! ― riu ele loucamente e arremessando Lórien longe com
um golpe de sua mão.
― Lórien! ― gritei indo até ela.
― Cuide dela que eu cuido dele! ― disse Ewren para mim.
Lórien não estava gravemente ferida, mas estava desmaiada. Eu precisava do meu colar urgente!
Ewren e Demétrius estavam lutando, percebi que Demétrius tinha grande vantagem sobre ele. Tentei
ser o mais rápida possível para que pudesse ajudá-lo. Peguei entre os destroços da barraca a espada
que Lórien havia feito para mim e moldei-a em um novo cajado rapidamente, usando a pedra que
Andros havia me mostrado.
Corri novamente até Lórien e usei o máximo da minha energia para tentar curá-la. Deu certo e ela
se levantou cambaleando.
― Por que ele está tão forte assim? ― ela me olhava assustada.
― Ele tomou meu sangue! ― Lórien levou as mãos à boca.
― Ele vai matar meu irmão! ― disse ela se levantando e correndo até Andros, tentando curá-lo
também.
Tentei chegar perto de Ewren e Demétrius, mas eles estavam em uma luta feroz com as espadas.
― Agora, você nunca mais irá me ganhar! Vou transformar você em uma pilha de ossos! ― disse
Demétrius jogando a espada no chão e pulando numa velocidade assustadora em direção a Ewren.
Ewren tentou desviar, mas era tarde. Demétrius cravou as garras em seu pescoço. Ewren se
libertou com bastante esforço. Ele usava toda sua força, porém parecia não causar dano algum a
Demétrius.
Corri até os dois para tentar ajudar Ewren.
― Não se aproxime! ― gritou Ewren ― Não quero que você se machuque mais! ― Ele encostou
as adagas fazendo as duas se unirem e virarem uma única espada longa e cheia de pontas irregulares
na lâmina.
― Mas Ewren... ― tentei falar, mas ele me interrompeu.
― Vá! ― gritou ― Lórien, Andros, levem-na daqui agora! ― vi um brilho avermelhado em seus
olhos novamente e meu coração apertou. Lórien correu até mim, eu queria ficar e queria ajudar
mesmo com medo dele, não queria vê-lo ferido, não mais do que ele já estava! Andros me puxou,
tentei lutar para me soltar de seu aperto, mas ele jogou-me no ombro com um movimento de sua mão
e fez aparecer dois cavalos de vento, porém, com o dobro do tamanho de cavalos de verdade.
Andros jogou-me em cima de um deles e montou, segurando-me com força para que não escapasse,
Lórien pegou Feroz rapidamente e corremos em direção à montanha com a loba de Andros nos
seguindo.
― Andros, me solta, por favor! ― implorei enquanto me debatia.
― Nem pensar!
― Mas Andros! Ewren está em desvantagem! ― gritei tentando descer para voltar até ele.
― Todos nós estamos em desvantagem agora! ― ele respondeu aos berros ― Se você voltar,
você morre! Ewren nem está limpo ainda! Vi os olhos dele, não sei o que você fez, mas não faço
ideia de como ele conseguiu voltar ao normal durante um tempo!
― Vamos pegar alguns cristais lá na montanha! Vamos unir esses cristais no cajado de Leona e
acabar com aquele mestiço de uma vez por todas! ― gritou Lórien, pude ver de relance um olhar
assustado dela para Andros.
― Deixe-me sentar direito então! ― gritei, minhas costelas estavam quase esmagadas conta o
cavalo de vento. Andros me deu um puxão e sentei de lado, segurando-me no pescoço do
animal. ― Eu perdi meu cajado quando caí de Feroz. ― disse ― O que vamos fazer? ― Lórien
baixou os olhos como se estivesse envergonhada e tirou uma fina corrente do pescoço.
― Meu cajado estava com você?
― Eu achei que se você não estivesse com ele, você não sairia do nosso lado, não, desprotegida!
― Eu podia ter feito alguma coisa! ― gritei. ― Se eu estivesse usando ele...
― Agora poderemos fazer! Só conseguir os cristais! ― disse Andros me interrompendo. Fiquei
com muita raiva de Lórien, mas a raiva foi substituída pelo desespero de não estar lá com Ewren.
Queria que eles andassem mais rápido, queria voltar e levar os cristais até Ewren, queria salvá-lo de
Demétrius. “Ewren, por favor, aguente” pedi em silêncio.
Estava demorando muito, parecia que nunca iríamos chegar! A montanha estava bem ali na nossa
frente, mas nunca a alcançávamos. Quantas horas já haviam se passado? Duas, três?
― Aqui! ― Andros quebrou o silêncio apontando para uma fraca luz azul que vinha da parte de
trás da montanha, estávamos bem próximos agora e pude ouvir o barulho do mar.
Contornamos rapidamente, antes de aparecer a encosta, a paisagem foi tomada por uma forte luz
azul em contraste com o mar escuro bem abaixo de nós. Havia realmente milhares de cristais, de
todos os tamanhos, desci rapidamente e fui pegar o primeiro que vi.
― Espere! ― gritou Andros.
― O que é?! ― gritei jogando os braços para o alto ― Você vai esperar Ewren morrer para fazer
isso? ― perguntei mostrando o cristal mais próximo de mim.
― Não é isso! Eles são muito afiados, se você puxar com as mãos, vai se cortar, e o corte desse
cristal demora muito a estancar! ― ele esticou a mão e mal tocou no cristal, um enorme corte
apareceu em sua palma, fazendo uma linha de sangue escorrer. Então seria do modo difícil!
― Lórien! Meu cajado, por favor! ― disse estendendo a mão. Ela o pegou e andou
cuidadosamente entre os cristais até mim, entregando-me o colar com o pingente. O fiz crescer e
tentei fazer o cristal se mover do chão. Nada, tentei novamente, mas nenhum deles se movia.
― O que está acontecendo? ― perguntei olhando para Andros. Ele estava assustado e olhando
em volta. Pegou um par de luvas grossas de couro, mas nenhum cristal parecia ceder.
― Eu consegui puxar esse com tanta facilidade! ― explicou ele ― Por que não dá agora? ― fiz
um boneco de terra se levantar do chão e tentar puxar os cristais, mas toda vez que ele tocava num
cristal, esse mesmo ficava negro e esfarelava. Não poderia fazer nada para ajudar Ewren?
― Você precisa ter uma boa intenção para retirá-los do chão! ― uma voz suave, mas ao mesmo
tempo severa, havia dito aquilo, levantei-me rapidamente procurando de onde vinha aquela voz.
Uma mulher estava sentada em um cristal gigante a alguns metros acima de nós.
― Os cristais não saem do chão se você não tiver boas intenções! ― disse ela novamente,
pulando de onde estava e pousando suavemente na minha frente. Ela tinha olhos negros como a noite
e pele tão branca como a lua. Seus cabelos curtos brancos como a neve batiam suavemente em seu
rosto, soprados pela brisa. Ela era pequena, menor que eu, mas parecia ser mais velha que a própria
Amantia.
― Não estou entendendo! Então era para eles estarem soltos em minhas mãos! ― reclamei para
ela.
― Suas intenções são as erradas! ― ela disse.
― Não são! Eu quero usá-los para salvar alguém! ― esbravejei com ela. Ela não se alterava e
continuava me olhar com aqueles grandes olhos frios e expressão serena.
― Você quer salvar uma boa pessoa? Uma pessoa de coração nobre? ― perguntou ela.
― Sim! ― respondi.
― Por que mente para mim?
― Quem é você para dizer que estou mentindo? Eu quero salvar alguém! Isso já não deveria
bastar como uma boa intenção?
― Você está tentando salvar um monstro que acabou de tentar te matar, por que quer salvá-lo de
outro monstro?
― Leona? Ewren tentou te matar? ― Lórien estava com os olhos cheios de lágrimas. Levantei a
mão para ela num sinal para que não interrompesse.
― Eu preciso ajudá-lo! Ele pode não ser uma pessoa perfeita, mas eu devo minha vida a ele! Ele
me salvou mais de uma vez!
― Um monstro não precisa ser salvo! ― disse ela virando as costas para mim.
― Não precisa! Mas eu quero salvá-lo e vou! ― gritei, fazendo-a parar e me encarar novamente.
― Por que você quer tanto ajudá-lo? ― ela perguntou prendendo meu rosto e olhando dentro de
meus olhos, quase a senti tocar em minha alma.
― Por quê? ― senti um nó na garganta ― Porque eu... Eu o amo, não faria sentido deixar alguém
que eu amo morrer! ― ela soltou meu rosto e acariciou minha cabeça.
― Você não deveria amar um monstro! Em Amantia, nós matamos os monstros e não os
recompensamos com amor! ― disse ela suavemente.
― Todos temos um monstro adormecido lá no fundo! Mas nos cabe a decisão de libertá-los ou
destruí-los, não é? ― disse a ela. ― Eu preciso dar a Ewren uma chance de destruir o seu monstro
interior! ― disse a ela.
― E se ele escolher não o fazer? ― senti o olhar dela segurar na minha alma. ― teria coragem de
acabar com ele? ― meu estômago afundou.
― Nunca... ― ela sorriu presunçosamente ― Mas eu lutaria por ele, eu iria até o fim do mundo
se fosse preciso para tentar trazê-lo de volta, não importa o tempo que isso levasse! ― consegui
tirar o sorriso do rosto dela.
― Você não precisa desses cristais para salvá-lo então! Você tem algo bem mais forte do que toda
essa montanha de cristais, mas se você escolher dar isso a ele, e ele escolher libertar o monstro, nada
mais irá detê-lo! ― disse ela, me entregando um saquinho cheio de cristais pequenos. ― Mas você
veio aqui por estes, pode levar alguns!
― Obrigada! ― agradeci, lhe dando um abraço e virando de costas para partir.
― Espere! ― ela falou me chamando de volta, se aproximou de mim e sussurrou ― Não espere
seu poder chegar às mãos erradas para quebrar a maldição que você carrega!
― Entendido! Como é seu nome? ― perguntei.
― Eu sou Áries! ― disse ela sorrindo.
― Áries? O mesmo nome do sol!
― Não o mesmo nome, o mesmo ser! ― ela sorriu e desapareceu diante de meus olhos.
― O mesmoser? ― Ela era Áries? O sol?! Fiquei parada ali olhando para o lugar onde Áries
esteve. Ewren.
Feroz estava fraco demais para me carregar, então usei toda minha concentração para tentar fazer
um cavalo igual ao de Andros. O meu ficou quase igual, só que de terra, montei e vi Lórien se
aproximar de mim.
― Leona, é melhor não... ― eu a interrompi.
― Por favor, se não quiser ir, não vá, mas eu não vou deixar ele sozinho lá! Eu preciso voltar! ―
ela acenou com a cabeça e fez um sinal para Andros. Ele fez os cavalos de vento voltarem, corremos
de volta à floresta onde o deixamos lutando com Demétrius. Escutei uivos bem próximos e quando
me virei, pude ver dois lobisomens que corriam atrás de nós e estavam quase nos alcançando.
― Deixa que eu lido com eles! ― Andros saltou de seu cavalo fazendo redemoinhos prenderem
os lobisomens ― vão na frente que alcanço vocês! ― eu nem havia parado de correr e Lórien havia
diminuído para olhar Andros, mas voltou a correr comigo.
Não estava correndo o suficiente, queria ir mais rápido. “Serei seus olhos, suas patas e seu
coração”. Transferi parte da minha mente para controlar a corrida de meu cavalo de terra e aumentei
minha própria força para correr mais rápido, deixando Lórien para trás. Não demorou nada para
alcançar a floresta. Apenas Neve, a loba, conseguira manter meu ritmo de corrida, Feroz havia ficado
para trás com Lórien.
Havia sinais de luta por toda a floresta, árvores quebradas, buracos e muito sangue. Tive medo
quando vi aquelas manchas de sangue.
― Neve, me ajude a achar eles! ― disse descendo do cavalo e fazendo-o se desmanchar, me
senti exausta e com sono, mas não era a hora de me sentir cansada. Ela andou em volta de mim,
farejou e depois começou a correr pela floresta devagar o suficiente para que eu pudesse acompanhá-
la até uma gruta no meio da floresta. Por um instante meu coração parou de bater, Ewren estava bem
perto do riacho, caído e com o rosto no chão. Não via Demétrius em lugar nenhum. Corri até ele e me
ajoelhei ao seu lado, uma de suas adagas estava atravessada em suas costelas. Ele respirava com
dificuldades, mas estava vivo. Tentei juntar o resto de minha energia para tentar curá-lo, mas não
conseguia, estava esgotada e mal mantinha os olhos abertos.
― Ewren... ― comecei a chorar, tirei a adaga dele e esguichou sangue quando a puxei, então
rasguei a barra do vestido e pressionei sobre o ferimento. ― Lórien já está vindo, ela vai curar
você! ― eu o virei cuidadosamente e coloquei sua cabeça sobre meus joelhos dobrados, ele estava
muito ferido e meus olhos se encheram de lágrimas. Acariciei sua cabeça, por mais que eu tentasse,
não conseguia fazer meu poder voltar. Ele abriu os olhos, estavam vermelhos como antes e eram uma
mistura de dor, raiva e tristeza. Ele tentou se levantar, mas não o deixei se mover. Ele parecia alto,
dopado.
― Não queria que você me visse assim, destruído... ― sua voz estava horrível, como se algo
estivesse o impedindo de falar.
― Não se esforce muito! Espere ela curar você ― disse passando a mão em seu cabelo.
― Me desculpe...
― Não tenho nada para desculpar! ― disse tentando não começar a chorar alto.
― Acho que não vou poder mais ficar de olho em você, não é? ― ele estava olhando para o
alto. ― Eu preciso te contar uma coisa. ― ele estava se esforçando para tentar levantar de novo.
― Por favor, fique parado! ― disse segurando-o no chão, mal consegui enxergar Ewren em meu
colo, pois as lágrimas embaçavam meus olhos.
― Não me interrompa! ― disse ele tossindo mais sangue. ― Eu sabia no minuto em que eu a vi,
que era com você que eu queria passar o resto da vida, mas eu não merecia, então preferi me afastar,
achei que seria melhor para você até descobrir quem você era de verdade, aí eu tive esperança de
que você voltaria um dia quando estivesse tudo diferente... ― Ewren fechou os olhos.
― Ewren! ― gritei sacudindo-o. Ele tentou respirar sem tossir.
― Não grite! ― ele tentou respirar fundo, mas não conseguiu ― Eu só preciso que você saiba
que eu nunca amei ninguém como eu amo você, e que sinto muito por não ter dito antes... ― mal
podia acreditar no que ouvi. Não conseguia encontrar minha voz para falar nada, tinha acabado de
descobrir que eu tinha uma chance, mas que nunca poderia aproveitá-la.
Escutei um barulho na água atrás de mim, Demétrius estava de pé sorrindo.
― Está na hora de ir! ― disse ele puxando-me pelos cabelos. Ewren estava desacordado.
― Não vai me levar a lugar nenhum! ― gritei puxando seus dedos, tentando abri-los e soltar meu
cabelo.
― Vou te levar para a fortaleza! E depois que tirarem tudo o que precisam de você, eu terei minha
tão amada recompensa! ― disse ele sorrindo e mostrando aqueles dentes como agulhas iguais aos de
Lirien.
― Por favor, me deixa despedir dele! ― implorei. Demétrius olhou para mim, então soltou meu
cabelo. ― Ele vai morrer mesmo, seja rápida! ― disse virando de costas para mim. Antes que
pudesse tocar em Ewren, uma bola de fogo acertou Demétrius, o atirando no chão.
― Leona, rápido! Cure ele! ― Lórien gritou, segurando outra enorme bola de fogo nas mãos.
― Não consigo! ― gritei segurando Ewren novamente.
― Você está fazendo isso errado! Lembre-se do que a mulher lhe disse na montanha! ― disse
Andros correndo até Demétrius com sua espada em punho. O que ela havia dito? Fechei os olhos
para me lembrar de todas as palavras de Áries. Minha cabeça estava pesada, sonolenta.
“Você não precisa desses cristais para salvá-lo então! Você tem algo bem mais forte que toda
essa montanha de cristais”
Era óbvio demais! Como eu não havia percebido! Peguei a adaga de Ewren, fiz um corte na palma
de minha mão e uma pequena poça de sangue se formou.
― Não mesmo! ― gritou Demétrius tentando me alcançar, porém foi impedido por Neve e Feroz
e foi atingido por outra bola de fogo de Lórien.
Não tinha como derramar o sangue em sua boca, então eu enchi minha própria boca com o sangue
e toquei em seus lábios com os meus, fazendo-o fluir de mim para ele.
“Por favor, que ainda dê tempo”, pedi enquanto esfregava as mãos de Ewren. Quase não sentia
mais as batidas de seu coração.
Andros lutava com Demétrius, mas ele mal conseguia segurar os ataques de Demétrius, quanto
mais, atacar.
― Leona! ― gritou Lórien para mim ― Minha mochila! Lembra-se da floresta? O cerco dos
lobisomens? Tá na hora de fazer aquilo de novo! ― Não queria me afastar de Ewren, olhei para
Lórien e ela estava ferida, Feroz mancava e Andros mal ficava de pé.
― Vou transformar todos vocês em cinzas! Não tô nem aí para o que aquele mago idiota vai
falar! ― disse Demétrius saltando para longe de nós e erguendo os braços. Um círculo de brasas
apareceu em volta de nós.
Andros e Lórien correram até mim seguidos de Feroz e Neve.
― Ele vai nos explodir! Rápido, Leona! Por favor! ― Lórien me entregou o frasco com a poção
revigorante. Eu a tomei e senti minha energia voltar imediatamente. No mesmo momento em que
Andros fez uma bolha de ar para nos proteger, uma imensa coluna de fogo que se estendia até o céu
se fechou acima de nós e nos acertou, só o que nos protegia era a bolha, mas mesmo assim o calor
era intenso.
― Não vou poder manter isso! O oxigênio está sendo consumido pelo fogo! ― Andros estava
abaixando as mãos. Peguei rapidamente um dos cristais que Áries me deu e o joguei no chão, batendo
com toda a força nele com meu cajado e pensando em Lótus Vale.
Uma explosão aconteceu dentro daquela coluna de fogo no momento em que a pedra explodiu, nos
mandando para longe.
Caímos no pátio da fortaleza de Lótus Vale, estava quase amanhecendo, as nuvens começavam a
ficar rosadas no horizonte e o céu clareava devagar. Olhei para meu lado, Ewren estava caído perto
de mim, parecia menos machucado que antes e a cor de seu rosto estava melhorando. Lórien e
Andros estavam desacordados também, Feroz e Neve cambaleavam tentando se manter de pé.
Pelo menos havia conseguido tirar todos de lá antes que Demétrius nos transformasse em
churrasco. Rolei para o lado ficando de frente para Ewren, toquei seu rosto e ele reagiu franzindo o
cenho. Sorri lembrando-me de cada palavra que ele disse. Rolei de barriga para cima novamente e
fiquei observando o céu por alguns segundos antes de sentir que iria desmaiar.
Um grupo de guardas nos cercou, a última coisa que vi antes de fechar os olhos foram os rostos
espantados de Aeban e minha mãe.
12

Correntes invisíveis.
Rolei de lado na cama inspirando profundamente, espreguiçando-me, e fui interrompida por uma
pontada de dor no ombro. Abri os olhos e reconheci o local imediatamente, era a enfermaria da
fortaleza de Lótus Vale. Coloquei-me sentada na cama para poder puxar as cortinas do biombo e
procurar por Ewren. Ele não estava ali, nem Lórien e nem Andros. Estava sozinha, então me levantei
e logo me encolhi, pois meu ombro estava queimando ainda do machucado da casca da árvore.
Saí devagar, sem fazer barulho, os corredores estavam estranhamente vazios e muito mais
silenciosos do que de costume.
Fui andando até a sala de Aeban, entrei sorrateiramente, esperando os encontrar na sacada.
Ninguém ali também, será que havia acontecido algo desde a hora em que nós chegamos? Fui até a
torre onde fiquei com Lórien antes de fugir para encontrar Ewren.
Abri a porta do quarto da torre, Ewren estava lá, em pé na sacada e de costas para a porta, seu
cabelo escuro estava trançado, ele usava apenas uma calça preta e olhava o céu com uma expressão
tranquila. Quando entrei, ele se virou para mim, deu um meio sorriso e voltou a olhar para o céu.
Fiquei aliviada de o ver vivo e bem. Quando ele se virou para mim pude ver uma marca em seu pulso
esquerdo, parecia uma tatuagem de uma corrente prateada que brilhava suavemente contra a luz dos
sóis.
― Você está bem? ― perguntei o observando, ele parecia muito calmo para mim.
― Muito bem. ― Não falou mais nada, mas o silêncio era perturbador.
― Onde está todo mundo?
― Partiram para Górtia essa madrugada. Foram se encontrar com o exército para invadir
Vintro ― disse ele virando-se para me encarar ― amanhã ao anoitecer eles estarão em Vintro e irão
atrás de Arcádius.
― O que? Foram sem nós? ― perguntei.
― Você não pode ir a lugar algum! Aeban me deixou de guarda, você não sai da fortaleza por
nada! ― disse ele rispidamente, Ewren estava agindo de modo estranho. Quando ia perguntar o que
havia acontecido, Lórien e Andros entraram no quarto, Ewren quando os viu entrar, pulou da sacada
e voou para o outro lado da fortaleza, ficando sobre a torre norte.
― Vocês ficaram! ― disse sorridente a Lórien que se aproximava de mim. Ela me abraçou forte
e ficou rindo.
― Obrigada!
― Pelo que? Não fiz nada! Só arrumei problemas! ― respondi olhando-a tristemente.
― Como não fez nada? Você desobedeceu a seus pais para salvar meu irmão, o salvou duas vezes
e ainda salvou a todos nós daquele maluco no último momento! ― disse ela surpresa.
― Para começo de conversa, se eu não estivesse lá, ele não ficaria tão forte e vocês não
perderiam pra ele! ― retruquei.
― Ele já tinha provado seu sangue naquele dia em que fui te buscar na descida da montanha perto
da cidade de Arcádia, lembra?
― Sim, mas... ― Andros me interrompeu.
― Se você não tivesse ido, não teriam me encontrado e me resgatado, correto? ― ainda assim
me sentia culpada, talvez por Ewren.
― Lórien, o que houve com ele? ― Ela e Andros se olharam ― Oh, por favor, não me diga que
ele ficou ofendido de eu ter salvado ele! ― perguntei ficando com um peso ainda maior na
consciência.
― Não, Leona! Não é isso, é que ele e seus pais brigaram um bocado ontem.
― Por quê? ― perguntei.
― Porque Aeban tem a habilidade de ver as memórias das pessoas. Enquanto nós estávamos
desacordados, Aeban entrou nas nossas mentes para tentar entender o que havia acontecido! ― disse
ele trocando outro olhar com Lórien ― Ele entrou em nossas mentes para poder saber de tudo antes
que pudéssemos mentir e alterar o que havia acontecido... ― disse ele baixando a voz. Meu
estômago afundou e lembrei-me de Ewren com os olhos vermelhos sobre mim... Tentei afastar a
lembrança de minha cabeça. Se para mim parecia meio que absurdo, imagine para eles.
― Droga! ― resmunguei.
― Pois é! ― disse Lórien ficando vermelha. ― Nós ouvimos enquanto Aeban gritava com
Ewren ― disse ela ― Tomamos umas broncas também! Por não estar com você! ― me senti mais
culpada ainda, pois eu os havia deixado para trás.
― Então Ewren está assim por causa de Aeban e minha mãe que ficaram brigando com ele?
― Não, ele nem ligou muito para isso, na verdade. ― respondeu Lórien olhando discretamente
para onde Ewren estava. ― Acontece que agora ele está preso a você e ele não sabe como reagir a
isso!
― Como assim, preso? ― perguntei assustada e Andros riu.
― Calma! ― disse ele ― Não é uma coisa ruim! Quando você deu seu sangue a ele, de livre e
espontânea vontade para curá-lo, você criou uma ligação entre vocês!
― Me explique melhor! Minha cabeça vai dar um nó! ― disse sentando pesadamente na poltrona
perto da janela. Lórien revirou os olhos.
― Tudo bem! Não é sua culpa por não entender! ― disse Andros ― Quando você deu seu sangue
para ele, você cedeu a ele uma parte de você, uma parte viva! Por ter feito isso, em troca ele teve que
ceder algo a você também! ― explicou Andros, na cabeça dele, essa tinha sido a explicação
perfeita. Olhei para Lórien, ainda muito confusa.
― Ah, Leona! Ele virou seu guardião. Seu sangue fez uma ligação entre vocês! Se acontecer algo
com você, ele vai saber na hora! O elo criou uma afinidade entre vocês!
― Um guardião? ― perguntei ― então ele está se sentindo na obrigação de cuidar de mim?
― Não! Ai, como é difícil te explicar as coisas! ― Lórien estava ficando irritada e esfregava a
cabeça ― Por ser um guardião ele não pode se afastar de você, ele nem quis ir pra Vintro com os
outros para poder ficar ao seu lado! ― abaixei a cabeça, mesmo tentando ajudar, será que fiz a
escolhe errada? Devia ter esperado Lórien curá-lo?
― Não se sinta culpada! Não havia outra maneira de salvá-lo naquele momento. ― Andros tentou
me confortar. ― Talvez nem houvesse outro jeito!
― Tem como desfazer isso? ― estava olhando fixamente para o local onde Ewren estava sentado
no alto da torre.
― Você tem que morrer para quebrar o laço com um guardião. ― Andros respondeu
secamente ― Você quer que eu te mate agora? ― ele olhou-me frustrado. ― Você faz coisas boas
pelas pessoas e quer se sentir mal e culpada? Já pensou como ele está se sentindo por ter te colocado
em risco? Por você ter se colocado em risco para tentar ajudá-lo? Ou por ele mesmo quase ter te
matado enquanto você tentava ajudá-lo? Você não está atrapalhando ninguém, você não tem culpa de
ser o que é, não é culpada de ter um maluco tarado por poder atrás do seu sangue e muito menos tem
o direito de se sentir culpada pelas coisas erradas que acontecem! ― ele estava gritando e fiquei
encolhida na poltrona ― Pare de se sentir mal por ser o que você é e use isso ao seu favor ou acabe
com esse poder de uma vez! ― Andros saiu pela porta batendo-a atrás dele. Lórien afagou minha
cabeça e seus olhos mostravam o quanto ela concordava com ele, mas estava com receio de dizer e
eu ficar magoada.
― Lórien, o que você sabe sobre essa maldição do meu sangue? ― perguntei ainda encolhida.
Ela respirou fundo e se espremeu comigo na poltrona.
― Pelo que soube por minha mãe, é uma maldição hereditária. ― ela explicou.
― Hereditária?
― Sim, ao que entendi, sua bisavó foi amaldiçoada por uma bruxa e a maldição passa por todas
as descendentes dela.
― Então esse sangue amaldiçoado se resume apenas a pessoas da minha família? ― perguntei.
― Todas as descendentes de sua bisavó, que sejam mulheres e magas, herdaram essa
maldição. ― corrigiu ela.
― E você sabe o porquê disso?
― Não escutei essa parte da conversa, foi Lupine quem falou isso para minha mãe naquele dia em
que vocês chegaram, eu fiquei escutando escondida. É melhor perguntar a ela. ― disse Lórien
enquanto esfregava minhas costas carinhosamente.
― Sabe como quebrar a maldição, não é? ― perguntei, Lórien empalideceu e gritou para a porta.
― Já estou indo! Um momento! ― ela ficou nervosa de repente. ― Andros está me chamando lá
da cozinha.
― Vá ficar com ele e peça desculpas por mim! ― disse. Ela me deu um sorrisinho de lado muito
sem graça e saiu.
Fui para a sacada e fiquei olhando para onde Ewren estava. Ele olhou em minha direção, porém
me ignorou e continuou a olhar para cima.
― Quero ir para Vintro! ― disse baixinho para mim mesma. Sentei com as pernas para fora da
sacada e Ewren me olhou novamente, quando viu o que eu estava fazendo, veio para perto de mim.
― Você gosta de perigo, não é? ― disse ele coçando a cabeça e sentando-se ao meu lado.
― Sua falta de confiança em mim é perturbadora, sabia? ― estava o encarando. ― E aquelas
palavras que você me disse lá em Vintro? ― perguntei mordendo a boca para tentar não sorrir. Ele
franziu o cenho e me deu um tapinha na cabeça.
― Estava delirando porque estava morrendo! ― disse ele me olhando de lado e eu comecei a
rir. ― Qual é a graça? ― perguntou ele, amarrando mais ainda a cara.
― Eu imaginava que fosse isso mesmo! ― dessa vez eu tinha certeza que ele estava mentindo e
não consegui conter um sorriso. Estiquei a mão para tocar em seu pulso, onde a marca da corrente
estava.
― Me desculpe... ― disse passando a mão sobre a marca.
― Não desculpo não, ninguém mandou você ir atrás de mim e se arriscar tanto! ― reprovou ele.
― Não foi isso que eu quis dizer! ― o encarei, era tão fácil me distrair olhando aqueles olhos
coloridos... Quando foi que comecei a ficar tão boba perto dele? Ele girou o pulso, olhando para a
marca.
― Não é tão ruim! ― disse ele olhando a marca também.
― Ewren, quero ir atrás deles em Vintro! Não quero que meus pais se arrisquem sozinhos lá! ―
Ewren começou a rir.
― Dois seres fantásticos, altamente capacitados e treinados e você acha que eles precisam de
você lá para distraí-los? Se você for, eles vão ficar o tempo todo preocupados com você e vão se
distrair, aí sim, eles estariam em perigo!
― Demétrius! ― só precisei de uma palavra para demonstrar minha preocupação e Ewren tornou
a colocar aquela expressão carrancuda no rosto.
― Eles não podem derrotá-lo! ― disse Ewren pensativo. ― Eu vou e você fica aqui com
Lórien!
― Não! Eu quero ir, eu posso ajudar! ― protestei.
― Não, você não pode! Você cedeu muito da sua energia para mim e ainda não se recuperou
totalmente, fora que teleportou cinco pessoas de um continente para outro! Nem pensar! ― disse ele
se preparando para sair.
― Você não pode se afastar de mim, lembra? ― segurei o braço dele ― Eu quero ir junto, são
meus pais!
― Você não vai, Leona! ― gritou ele. O olhei fazendo meu melhor olhar de “cachorrinho que caiu
da mudança”. ― Não adianta me olhar assim, não vou te levar! ― ele se virou e começou a sair pela
sacada, abriu as asas e estava pronto para partir. ― Fique aí, eu não vou demorar!
― Se você não me levar, Lórien me leva! ― dei minha cartada final. Ele resmungou, encolheu os
ombros, se virou e veio até mim, segurou meus braços e me encarou.
― Por favor! Eu preciso que você fique aqui! ― disse ele tocando minha bochecha com o
polegar. ― Não quero que você se machuque de novo! Se você for, Arcadius vai fazer de tudo para
pôr as mãos em você dessa vez e eu não posso deixar! Então fique aqui, está bem? ― pediu ele.
― Não fico! ― bati o pé e Ewren sentou no chão com as mãos na cabeça.
― Se soubesse o quanto você me irrita! ― resmungou ele. ― Está bem, eu te levo! Mas antes
teremos que passar na minha casa para pegar uma coisa.
― Está bem! ― corri pelo quarto juntando rapidamente alguns itens para levar, o saquinho de
cristais que Áries me deu, meu pingente, o estojo de poções e medicamentos e coloquei tudo na
bolsa. ― Vamos? ― Ewren bufou, me pegou no colo e saímos voando pela sacada da torre.
Circulamos rapidamente a cidade e mudamos de rota indo para o sul.
― A sua casa não fica pra lá? ― perguntei apontando para a direção oposta.
― Lá é a casa de minha mãe. Minha casa fica no topo da Montanha nublada. ― explicou. Ele
começou a subir, e bem a nossa frente uma montanha cinzenta subia a perder de vista.
Ewren voava cada vez mais alto e era lindo ver Edro daqui de cima! Os sóis brilhavam fortes até
alcançarmos uma nuvem enorme. Entramos na nuvem e pude sentir o ar ficar completamente
diferente, era mais fresco, como se eu estivesse passando por dentro de um corredor de algodão fino
e molhado.
Saímos do outro lado da nuvem, aqui em cima estava nublado e não havia mais a luz dos sóis.
Uma torre alta fixada no topo da montanha me chamou a atenção, ela era fina e dava para ficarem, no
máximo, duas pessoas de pé dentro dela. E não havia porta nenhuma em sua base.
― Quase lá! ― disse ele apontando para o topo com o queixo. A altitude estava fazendo minha
cabeça começar a doer. No topo da torre havia uma base redonda gigante que desafiava
perigosamente as leis da física, Ewren parou em cima dela e me colocou no chão. Era bem maior do
que se via lá de baixo, era uma varanda bem grande e redonda em volta de uma casa não muito
grande, parecia uma casinha na árvore só que sem a árvore.
Ewren entrou na frente e a porta estava destrancada, fiquei com receio de entrar, então fiquei na
varanda. Eu estava curiosa com aquela varanda circulando a casa e comecei a andar por ela até
chegar à parte de trás. Era bem maior do que eu imaginava, na parte de trás tinha uma porta de vidro
de correr que pelo que vi, dava para uma cozinha. Olhei para fora, tinha começado a ventar não
muito forte, mas o suficiente para levar as nuvens ao redor da casa para longe. Perdi o fôlego quando
as nuvens desapareceram por completo, pois parecia que estávamos no Topo de Amantia. Podia ver
tudo daqui, o mar, os vales e as cidades ao redor. As florestas se estendiam por todos os lados
parecendo um tapete verde e os sóis brilhavam muito mais fortes com aquelas mandalas gigantes
aparecendo. Ewren abriu a porta de vidro e veio se apoiar no parapeito.
― É muito bonito aqui! ― disse a ele. Seu cabelo ondulava com o vento e o azul e prata de seus
olhos pareciam mais vivos aqui. ― Não podemos demorar! ― disse por fim, lembrando-me de
meus pais indo para Vintro. Embora eles fossem muito fortes e habilidosos, não podia deixar de me
preocupar.
― Eu sei! ― respondeu ele entrando novamente. Fui atrás dele para olhar como era a casa,
passei pela cozinha, estava arrumada e bem limpinha, e o segui até um quarto, quando cheguei à porta
e percebi que era seu quarto, voltei para trás e fiquei na porta. Ele se virou para me olhar e riu.
― O que foi?
― Hm, nada! ― disse me virando para o lado para tentar disfarçar a cor vermelha no meu rosto.
Devo ter ficado parecendo uma louca. Ele foi até uma porta no outro lado do quarto e entrou, era um
quarto grande, a impressão que tive ao entrar, foi de ter entrado em uma floresta. A cama grande era
feita com troncos bem trabalhados e decorados com pequenos cipós trançados, o dossel de madeira
tinha uma cortina fina de linho verde e tinha os mesmos detalhes da cama. Um pouco diferente para
um quarto de homem. Ele voltou com algo na mão e colocou em cima da cama.
― Lórien me deu essa casa pouco depois que você foi embora ― disse ele enquanto
desembrulhava o que havia colocado na cama.
― É bem bonita! ― disse.
― Precisa de outra decoração, essa está a cara dela! ― ele estava olhando o dossel e fazendo
uma careta.
― Eu gostei muito. ― disse por fim. Quando ele terminou de tirar os panos que cobriam o
objeto, pude ver exatamente o que era. Uma espada muito bonita, levemente curva, trabalhada com
punho em jade e folhas douradas na bainha, só a lâmina devia ser do tamanho do meu braço ou maior.
― Que espada é essa? ― perguntei chegando mais perto para ver melhor, ele a pegou, colocou-a
em minhas mãos e pude ver que ela era bem leve.
― É um sabre de prata com punho de jade ― explicou ele ― mandei fazer para, caso um dia
você voltasse, poder se proteger melhor, ela não é feita para um combate direto, pois a prata é frágil,
foi feita para golpes certeiros. Embora não precise dela por causa de seus poderes, mas é bom
garantir.
― Por que prata? ― perguntei evitando tocar a lâmina.
― Lembra-se das correntes nos braços do lobisomem? ― não tinha como esquecer, elas o
estavam queimando e consumindo sua pele. ― Você pode usá-la contra lobisomens, vampiros e até
contra mim se precisar! ― me incomodou pensar que poderia machucá-lo com isso.
― Eu podia ter matado você aquele dia na floresta em Vintro, e não fiz. ― disse encarando-o.
Ele puxou rapidamente sua própria espada e a brandiu em minha direção. Instintivamente ergui o
sabre de prata e a parei.
― Ficou maluco? ― perguntei assustada, mas ele não ficou surpreso com minha reação rápida.
― Lórien te passou as habilidades dela, não foi? ― perguntou.
― Foi, quando chegamos a Vintro ela disse que eu precisava saber de tudo rápido para poder
ajudá-la em caso de problemas. ― Ewren suspirou.
― Pelo menos assim me sinto menos culpado de te levar de volta àquele lugar. ― ele pegou a
espada de minha mão e a colocou de volta na bainha.
― Não se preocupe, vai ficar tudo bem! ― estava o confortando? Ele suspirou e jogou a cabeça
para trás.
― Isso está errado! ― disse ― prometi a eles que cuidaria de você lá, que não a deixaria se pôr
em perigo!
― Não vou correr nenhum risco com você lá! ― ele estava dando para trás.
― Não seja ingênua! Se Arcádius conseguir te pegar dessa vez, estaremos todos
condenados... ― ele segurou minha mão com força e por um momento havia me esquecido da
maldição.
― Não vai acontecer nada demais dessa vez! Ninguém vai reclamar com você de novo se não der
nada errado! Não é? ― disse tentando animá-lo e ele me olhou surpreso.
― É com isso que você acha que estou preocupado? ― disse ele, me puxando para seus braços e
me abraçando apertado. ― Não posso te perder! ― Meu coração começou a bater rápido demais,
sentia o calor de seu corpo e sua respiração em meu pescoço.
― Quando foi que você começou a ser assim comigo? ― perguntei.
― Quando eu te vi desaparecer no portal e percebi que podia ser a última vez que a veria. ―
respondeu me apertando ainda mais e sorri discretamente para que ele não percebesse.
― Você poderia me ajudar a quebrar a maldição! ― disse soltando-me de seus braços para
encará-lo. Ewren riu e passou a mão em sua cabeça.
― Se eu fizer isso, quando eles descobrirem, serei um elfo morto ― disse ele referindo-se a
meus pais.
― Você não quer me ajudar! ― retruquei franzindo a testa.
― Você não faz a mínima ideia do que está falando! ― disse ele fechando os olhos e virando de
costas para mim.
― Então, por que você não me ajuda?! ― gritei frustrada.
― Você realmente não sabe o que é preciso fazer para anular o efeito da maldição, não é? ―
perguntou ele me encarando novamente.
― Não sei! Ninguém quis me dizer! ― respondi me sentando na cama e olhando para o
dossel. ― Me ajude a quebrar essa maldição! Por favor! ― pedi.
― Leona, não me peça isso! Vou te colocar em problemas se fizermos isso! Todos vão notar a
diferença em você! ― respondeu ele se ajoelhando em minha frente e segurando meu rosto entre
suas mãos. Descansei meu rosto nelas e o encarei novamente, para mim, só de estar ali com ele já
parecia bom demais para ser verdade.
― Então você prefere deixar eles me pegarem e usarem meu sangue para controlar Amantia do
que me ajudar a anular a maldição? ― perguntei. ― Por que é isso que parece já que você se recusa
a me ajudar... ― disse por fim. Quando percebi que ele não ia falar mais nada, tentei me levantar da
cama, mas ele me impediu.
Ewren segurou meu rosto e me beijou, um beijo doce e gentil, seus lábios eram macios sobre os
meus, ele segurou meus cabelos, me puxou para cima dele no chão de forma que fiquei ajoelhada
sobre ele, sussurrou em minha orelha “Tem certeza?” e se afastou um pouco de mim para poder me
olhar nos olhos. Segurou-me pela cintura, ergueu as costas do chão e me puxou mais para perto dele,
tocando meu pescoço com seu queixo. Foi como se uma lâmpada tivesse acendido em minha mente.
Oh! Por isso que ninguém queria me dizer como que a maldição era quebrada?! Meu corpo
começou a tremer em reação ao seu toque e assenti com a cabeça. Ele então puxou minha boca para a
dele, com menos gentileza dessa vez, o beijo foi ardente e senti sua língua passar em meus lábios,
contornando-os completamente, eu sentia meu sangue ferver. Segurei seus cabelos e o apertei contra
mim, ele reagiu ao meu toque apertando meu quadril e passando sua mão livre pela minha cintura,
descendo sua mão até minha coxa e puxando meu vestido para cima. Ele o tirou e começou a beijar
meu pescoço, descendo lentamente até meu ombro. Tirou-me do chão e me deitou na cama, ficando
por cima de mim e me beijando novamente, meu corpo respondia a ele automaticamente, eu o
desejava tanto quanto ele a mim. Nós nos encaixávamos perfeitamente e nos completávamos como se
tivéssemos nascido um para o outro, suas mãos fortes, porém muito gentis, desenhavam todo meu
corpo, fazendo-me arrepiar cada vez que ele me tocava. Desejava que aquele momento nunca tivesse
um fim. Senti um calor em meu braço esquerdo e logo depois senti que queimava, mas não me
importei. Cada movimento de Ewren fazia uma corrente elétrica passar por mim até que me perdi em
nós, não encontrando mais os limites de meu próprio corpo.
xxxx
Acordei deitada sobre o braço de Ewren, ele acariciava minhas costas com sua mão livre, seus
olhos estavam completamente prateados e ele estava sério observando-me. Sorri timidamente
encontrando seu olhar.
― Está tudo bem? ― perguntei notando que ele ainda continuava sério.
― Para mim está tudo ótimo, me diga você se está tudo bem! ― ele estava tenso.
― Estou... Por quê? ― perguntei erguendo a mão para tocar em seu rosto. Prendi o ar, as marcas
de mago em meu braço estavam lilás e brilhantes iguais às de minha mãe, e não verdes como sempre.
O cabelo que caiu em meu rosto estava completamente prateado e meu coração batia freneticamente.
― Por que estou assim? ― perguntei sem tirar os olhos das marcas brilhantes e lilás.
― Por que você não é mais uma maga pura. ― respondeu ele acariciando meu braço.
― Então todo mundo vai perceber a diferença... ― disse enquanto minha voz diminuía até virar
um sussurro.
― Eu disse que todos iriam notar, mas você nem me deu ouvidos! ― disse ele se levantando e
alongando os braços, e notei que ele já estava vestido.
― Quando foi que você se levantou que eu nem vi? ― disse me sentando na cama e sentindo uma
leve vertigem.
― Hoje de madrugada ― respondeu ele observando-me de longe.
― De madrugada?
― Sim, são duas horas da tarde, saímos de Lótus Vale ontem e você está dormindo desde aquela
hora.
― Por que você não me acordou?! ― reclamei e Ewren riu.
― Lórien, pode entrar! ― disse ele, Lórien entrou no quarto e pulou em cima de mim na cama.
― Leona! Achei que ele tivesse acabado com você! Não consegui te acordar! ― fiquei corada.
― Eu não tive culpa, ela que me seduziu! ― disse Ewren saindo do quarto.
― Aham! Como se você não quisesse, não é? ― ela gritou em resposta. ― Ele foi me buscar lá
em Lótus Vale!
― Por que eu não acordava? ― perguntei assustada.
― A mudança, seu corpo mudou para a forma de um mago completo, então você apagou pra
poder completar a nova energia.
― Entendi... ― respondi movendo a cabeça lentamente ― Lórien, temos que ir! ― ela estava em
cima de mim.
― Só se for agora! ― disse ela rindo e me puxando da cama. Quando levantei, senti meu corpo
meio mole, mas ao mesmo tempo leve como uma pluma. Vesti-me rapidamente e fui para a cozinha
onde Ewren estava sentado tomando aquele chá horrível.
Lórien foi até a geladeira pegar alguma coisa para podermos comer.
― Então... Como vamos conseguir um navio para ir até Vintro? ― perguntei. Ewren abriu um
enorme sorriso e ergueu seu braço para mostrar a marca da corrente.
― Lembra-se do que eu te falei sobre quem podia voar por qualquer lugar?
― Sinceramente não me lembro! ― disse tomando um gole de um suco que Lórien serviu para
mim.
― Agora sou um guardião e posso voar por qualquer lugar sem ser incomodado. ― explicou
parecendo um pouco incomodado com minha falta de memória.
Comemos rapidamente o lanche que Lórien havia preparado e voltei ao quarto para pegar meu
sabre e a bolsa, então subimos ao terraço da casa.
― Vamos! ― disse Lórien abrindo suas enormes asas e voando, Ewren pegou-me no colo para
irmos e meu rosto ficou quente quando ele tocou em mim. Ele mudou sua aparência e abriu suas asas,
levantamos voo.
Alcançamos Lórien rapidamente, os dois voavam muito rápido e em poucos minutos havíamos
alcançado o porto e chegado ao mar das tormentas.
Lórien fez um sinal para Ewren para que ele subisse mais.
― O que houve? ― perguntei.
― Sereias ― respondeu ― tenho que ficar longe do alcance de suas vozes.
Pouco tempo depois, uma nuvem transparente e estranha começou a nos seguir, ela emparelhou
conosco e Lórien chegou mais perto e fechou as asas, caindo então sobre aquela nuvem. Andros se
materializou em nossa frente e segurou Lórien.
― Desistiu de ficar guardando a fortaleza? ― perguntou Ewren a ele.
― Estava ficando entediado! ― respondeu Andros fazendo uma careta.
― Onde estão Feroz e Neve? ― Perguntei
― Os deixei junto com Espiral no jardim suspenso.
― Chegaremos a Vintro em três horas se mantivermos a velocidade ― disse Lórien agarrada a
Andros, eles passaram a nossa frente e desceram para perto das águas.
― Você nunca me disse que era filho de uma princesa! ― iniciei uma conversa, pois seu silêncio
estava deixando-me ansiosa.
― Faz diferença para você? ― ergueu uma sobrancelha.
― Na verdade, não... Só é bom saber, antes que eu pudesse falar alguma grosseria a alguém! ―
Ewren riu lembrando-se da minha falta de modos.
― Você também nunca me disse que era filha da Sacerdotisa de Amantia e muito menos, do
general do segundo maior exército daqui. ― disse ele.
― Mas eu não sabia que minha mãe era uma maga e nem que Aeban era meu pai!
― Eu não sou o orgulho da família, sabe... ― disse ele suspirando. ― Então prefiro não ficar
falando aos quatro ventos que sou neto de Eirien.
― Queria poder conhecê-la! ― falei.
― Você vai, ela vai estar no casamento de Lórien semana que vem.
― Lórien vai casar? ― perguntei espantada.
― Vai, Andros decidiu quando acordou em Lótus Vale.
― E aquele cara no portão da cidade? ― perguntei. Ewren riu e fez sinal para eu falar baixo.
― Todo mundo pensava que Andros estivesse morto ― respondeu ― e Lórien não é muito de
ficar sofrendo de luto.
― E você? ― Perguntei.
― Estive sozinho até agora. ― respondeu ele e senti meu coração apertar ― Ao que parece,
estava esperando por você! ― ele sorriu e foi minha vez de franzir o cenho.
― Não esteve tão sozinho assim, há pouco tempo estava com Banshee! ― Seu sorriso sumiu e
revirou os olhos.
― Você me entendeu. Já tinham me arranjado uma noiva, uma moça da Torre das Nuvens, a filha
mais velha de Aristes, eu podia ter ficado com ela, mas não quis.
― Por que não?
― Além de ela ser metamorfa, o que significaria que ela poderia ser feia e modificar sua
aparência para parecer mais bonita do que é realmente.
― Isso importa para você? ― ele riu alto.
― Claro que importa! Eu não gosto que as pessoas me enganem ou mintam para mim.
― Ah, achei que fosse por outra coisa.
― Por ela ser feia? ― ele riu novamente ― Também, além disso, metamorfos tem o hábito de
desaparecer por dias sem dar notícias e isso me irrita.
― Eu poderia mudar minha aparência também! E o sangue de Aswang me mudou muito... ―
murmurei.
― Não pode não, o poder dos magos humanos é restrito nesse ponto, eles não podem alterar sua
aparência física!
― Voltando ao outro assunto, e Aeban?
― O que tem ele? ― perguntou Ewren olhando-me com curiosidade.
― Quando foi que ele desistiu de esperar minha mãe voltar? ― não imaginei que Ewren fosse
saber a resposta.
― Acho que nunca, ele viveu os últimos oitocentos e dezesseis anos sozinho e acreditou na morte
dela desde o minuto em que ela sumiu.
― Oitocentos Anos? ― fiquei de boca aberta.
― Sim, ele não teve mais ninguém, pelo menos, não que eu saiba, ela era o amor da vida
dele. ― Ewren riu balançando a cabeça. ― Ainda é o amor dele, enquanto brigava comigo na sala
ante ontem, ele nem tirava os olhos dela. A curandeira do templo disse a ele que ela não havia
sobrevivido a uma complicação de um ferimento feito por um Aswang.
― Então essa curandeira mentiu pra ele para encobrir a fuga de minha mãe?
― Sim, para que ela pudesse criar você longe daqui...
― Que bom que eles estão juntos e felizes, tomara que isso não tenha que acabar de novo! ― Se
não fosse o problema com Arcádius, estaria me sentindo totalmente completa e feliz. ― Mas, como
você sabe que ele ficou todo esse tempo esperando? ― perguntei ― Você não passou todo tempo em
Lótus Vale, passou?
― Não, mas Arin sim. ― respondeu ― Ela passava o tempo todo lá com ele, a única pessoa que
posso ter certeza de que sentiu mais falta de Lupine aqui do que Aeban, foi ela.
― Elas são muito amigas, não é?
― São sim, sua mãe foi criada no templo da Sacerdotisa Dimesya, esse templo fica no castelo da
Cidade de Cristal... ― ele parou um momento, franziu o cenho e cobriu o rosto com as mãos. ― Você
talvez não acredite no que estou prestes a dizer... ― ele riu e baixou a cabeça de olhos fechados ―
eu peguei você no colo quando você tinha alguns dias de vida!
― O que? ― fiquei olhando para ele espantada.
― Foi depois de Emma morrer, fui até o templo de Dimesya na cidade de Cristal para conversar
com ela quando encontrei com sua mãe, ela estava saindo do templo toda encapuzada e me pediu
ajuda para chegar ao vale da lua! ― ele sorriu com a memória. ― Ela me entregou você enrolada em
uma manta, fiquei por quase quatro horas cuidando de você enquanto ela abria um portal, quando ela
finalmente o abriu e veio te pegar de mim, você acordou e segurou meu cabelo! ― disse ele rindo.
Não conseguia abrir minha boca para falar nada, mal podia acreditar que já estive naqueles braços
antes, apenas sorri.
― Onde fica essa Cidade de Cristal?
― Em cima de Alamoutim. Uma cidade flutuante.
― Nem vi isso! ― disse, por vezes minha falta de atenção me pregava peças.
― Mas você vai conhecer! ― ele afirmou isso com tanta certeza que o medo que eu tinha do que
estava por vir, desapareceu.
Estava começando a escurecer quando avistamos a tempestade que guardava Vintro.
― Lórien! ― gritei ― A tempestade voltou! ― nós havíamos a feito desaparecer, por que ela
havia voltado?
― Acho que ela foi refeita! ― gritou ela em resposta. Antes de a alcançarmos, Ewren e Andros
pararam.
― Leona, você consegue fazê-la desaparecer? ― perguntou Andros.
― Acho que sim... ― disse pegando um lenço do bolso da minha calça e o transformando em
uma águia gigante.
Pulei dos braços de Ewren para cima dela, ficando ajoelhada entre suas asas. Entreguei a espada
de prata para ele, para não haver risco.
― Cuidado! ― Ewren me alertou antes de eu voar rapidamente e entrar nas nuvens negras, a
águia voava instável, pois os ventos eram bem fortes, prendi meus pés na águia, voei até o centro da
tempestade e peguei o cajado, mal o transformei e meus cabelos já estavam prateados e as marcas
lilás em meus braços brilhavam mais fortes do que antes. Ergui o cajado e o girei no ar.
― Dissipem! ― disse às nuvens. Assustei-me quando a pedra na ponta do cajado mudou de
forma, transformando-se em uma orquídea roxa de cristal. Pela primeira vez senti a energia passando
de mim para ele, fazendo-o enviar uma onda de energia e uma forte ventaria que fez as nuvens se
espalharem e desaparecerem.
Ewren estava sorrindo e aplaudindo, Lórien estava de boca aberta e Andros muito perplexo.
― Não acreditei que você iria conseguir! ― disse Andros atordoado. ― Era uma tempestade
manipulada! Não tinha como você conseguir dissipá-la com seu nível de poder! ― Estava de costas
para ele e quando me virei, ele olhou assustado para a cor de minhas marcas e depois encarou
Ewren.
― Ewren, Aeban vai matar você! ― disse ele.
― Vai mesmo! ― Lórien riu. ― Se Aeban não matar, Lupine mata!
Alcançamos a praia antes de anoitecer completamente e Havia quatro grandes navios ancorados
próximos a ela.
― Os navios dos elfos de Górtia! ― disse Andros impressionado com o tamanho das
embarcações.
― Vamos parar para comer alguma coisa, aí iremos ao encontro do exército. ― Disse Lórien
tirando o arco das costas e disparando duas flechas. Saí de perto deles, tirei minha bota e fui
caminhar um pouco na areia.
Quando me afastei o suficiente deles, sentei na areia e fiquei escondendo os pés, mexendo e
esfregando as mãos e os pés nela. A sensação daquela areia fria em contanto com minha pele me
acalmava muito.
Não percebi que Ewren estava atrás de mim até que ele sentou-se ao meu lado e tirou uma mecha
de cabelo que caíra em meu rosto.
― Estou com medo! ― confessei.
― É normal ter medo, mas você não precisa ter, pois não vou deixar ninguém te fazer mal. ―
disse, passando o braço em volta de mim e me puxando para perto dele.
― Não estou preocupada com isso... ― disse timidamente ― Estou com medo do que eles vão
querer fazer com você! Viu a reação de Andros, imagine a de minha mãe! ― Ewren deu uma
gargalhada divertida. Era maravilhoso vê-lo sorrir.
― Eu disse a você, mas agora já está feito e não tem como voltar atrás! ― Disse ele segurando
meu rosto e me beijando, e num instante ele conseguiu afastar todas as minhas preocupações.
― Vamos comer! ― gritou Lórien. Ewren se levantou e me deu a mão para que o seguisse.
13

A Fortaleza em Vintro.
― Leona, pode conjurar os lobos de terra? ― Pediu Lórien depois que saímos da areia da praia
e conjurei quatro lobos gigantes para montarmos.
― Três! ― disse ela desmanchando um e montando em outro comigo.
― Vou ficar dividindo energia com você para que você possa controlar os lobos! ― ela sentou
atrás de mim e me segurou pela cintura. Fechei os olhos e quando os abri, estava olhando pelos olhos
dos lobos de terra.
Corríamos pela floresta, desviando rapidamente de qualquer obstáculo e saltando, de vez
enquanto ouvia Lórien reclamar que quase derrubara meu corpo.
Atravessamos o campo das flores onde as fadinhas acenaram para nós e nem pudemos devolver a
saudação, pois estava correndo rápido demais.
Minha cabeça começou a doer e minha visão ficar turva. Parei abruptamente quando alcançamos a
floresta em que havia lutado com Demétrius. Os lobos se desmancharam e caí de joelhos no chão,
ofegando.
― Não precisava ter se esforçado tanto! ― disse Lórien me erguendo do chão e usando sua
magia de cura em mim. Senti-me aliviada e minha cabeça parou de doer.
― O exército está bem perto daqui! ― disse Andros, chegando como uma ventania e voltando a
sua forma física.
― Vamos até eles? ― perguntei.
Não houve tempo de resposta. Escutamos uivos e grunhidos muito altos vindos do campo a nossa
frente, Lórien e Ewren sacaram as espadas e foram em direção aos sons e Andros voou por cima das
árvores com uma aljava de flechas e o arco de Lórien.
Corri entre as árvores até ver as luzes de bolas de fogo que flutuavam acima dos soldados.
Centenas de lobisomens, trolls e centauros vinham de todas as direções tentando nos cercar.
Avistei minha mãe e Aeban pouco a frente do exército, queria ficar o mais distante possível deles,
então corri entre os soldados até ficar perto de Ewren e Lórien, ao que pareciam, eles também os
estavam evitando.
A floresta começou a sacudir como um terremoto.
― Gigantes?! ― Lórien estremeceu.
Dois gigantes horríveis levantaram de dentro da floresta e começaram a vir em nossa direção.
― Nosso objetivo não é lutar com eles, é acabar com Demétrius e Black Jango para que eles
possam lutar com mais facilidade contra aquelas bestas que vem aí! ― disse Ewren.
― O que devemos fazer? ― perguntei.
― Ewren! Decida rápido! ― disse Lórien apontando para onde minha mãe estava ― Olhe. Ela
vai levantar um escudo! ― minha mãe havia erguido as mãos, uma torre de luz azul apareceu no
centro de onde estávamos, e quando chegou bem alto nos céus, a torre começou a derramar um véu
fazendo uma cúpula começar a se moldar ao nosso redor.
Ewren me pegou nos braços e voou rapidamente para fora da barreira.
― Aeban nos viu... ― Ewren falou enquanto passávamos por cima da cúpula.
Pousamos em uma torre em cima da fortaleza e antes de descer uma escadaria exposta no alto da
torre, pude ver os dois gigantes se aproximarem da cúpula e começarem a bater na barreira. Cada
ataque contra ela liberava uma vibração tão poderosa que os lobisomens ao seu redor eram
derrubados e podíamos sentir daqui o deslocamento do vento. Apertei o braço de Ewren assustada.
― Eles vão ficar bem! ― disse.
Descemos as escadas cautelosamente. A escadaria acabava em um estreito corredor muito escuro
e eu mal conseguia enxergar o local. Ewren por sua vez sabia exatamente para onde ir.
― Não me esqueci dos dias em que fiquei preso aqui! ― disse ele. No final do corredor tinha
um grande salão, depois dele um jardim. Quando chegamos ao jardim, ele parou e ficou olhando em
volta e para o alto.
― O que foi? ― perguntei, segurava o sabre firmemente em minha mão, esperando o momento
certo para usá-lo se fosse preciso.
― Tem algo errado, aqui ficava uma sala, Arcádius ficava nela o tempo todo! ― disse ele dando
um passo para trás. ― Não consigo sentir a presença de ninguém, só pode ser coisa dele! ― rosnou
ele. Olhei para o chão, estava molhado, na verdade estava alagado e vi meu reflexo na água
empoçada no chão.
― Ewren... ― senti um arrepio na coluna.
― Demétrius está lá! Fique aqui! ― disse correndo até um portão grande de ferro que levava a
outro pátio. Não queria ficar sozinha, mas podia ser a minha chance de fazer algo por eles, entrei
novamente na fortaleza e fui procurar por Arcádius, entrei em todas as salas que encontrava, mas
estavam todas vazias.
Subi uma longa escadaria, parecia que nunca ia chegar ao fim, estava escuro e a única luz que
chegava aqui era da lua que entrava por pequenas janelinhas ao longo da escadaria.
Quando subi os últimos degraus, deparei-me com um terraço do lado oposto de onde Ewren e eu
descemos. Andei pelas beiradas e vi Ewren lutando com Demétrius no meio da fortaleza, havia mais
dois lobisomens com Demétrius e meu coração apertou, mas Ewren não parecia ter nenhuma
dificuldade em lidar com eles e se esquivava de ataques tranquilamente como se estivesse apenas
brincando e se divertindo. Do outro lado do muro a batalha estava ainda estava acontecendo e várias
outras criaturas haviam se unido aos lobisomens e centauros e tentavam a qualquer custo impedir o
exército de avançar.
Minha mãe flutuava a alguns metros acima do exército, ela segurava uma bola branca de vidro nas
mãos e dela saia uma aura, como se fosse uma poeira branca brilhante que caía sobre todos os
soldados que estavam lutando.
― Estava esperando por você! ― disse uma voz gutural atrás de mim. Virei rapidamente e vi que
era Black Jango.
― Onde está Arcádius? ― perguntei.
― Longe daqui! Ele sabia que vocês trariam um exército, então ele fugiu como um covarde
qualquer... ― disse ele dando um passo em minha direção. Ergui o sabre de prata e ele deu uma
gargalhada ― Abaixe isso menininha, você não tem coragem o suficiente para usar ele! ―
Posicionei-me para atacar, ele não estava me levando a sério. Corri em sua direção e o ataquei, mas
ele era muito rápido e desviava de qualquer golpe que eu tentava acertar, mesmo as habilidades que
peguei de Lórien, não era o suficiente contra ele.
― Nenhum de vocês tem velocidade suficiente para me atacar! ― disse ele avançando, me
segurando pelos braços e batendo em minha mão para derrubar o sabre.
― O que você vai ganhar ajudando ele? ― gritei.
― Eu não quero nada que ele possa me oferecer! Não estou atrás de você por causa dele, menina
tola!
― Você também quer meu sangue? Quer ficar mais forte para poder destruir mais vidas?! Não vai
ter! ― ergui as pernas o acertando no abdome e conseguindo me soltar, ele caiu não muito longe,
levantando-se rapidamente.
Black Jango ficou furioso, soltou um uivo que me causou arrepios e deu um soco no chão, fazendo
parte do terraço desabar e meu sabre cair. Estávamos separados por uma cratera e meu erro foi olhar
para baixo, ele pulou, praticamente voou, para trás de mim, pegou meu cabelo e me ergueu do chão.
― Eu sempre consigo o que preciso! ― disse ele esticando as garras para mim.
― Não dessa vez! ― disse, então mudei minha forma, as marcas lilás se acenderam em meus
braços e na minha testa, fazendo-o gritar irado.
― Vou fazer você se juntar àquela sua priminha! ― gritou ele jogando-me na cratera, consegui
apenas transformar os entulhos em um monte de folhas secas para amortecer a queda e me virei meio
tonta. Fiquei deitada no chão de barriga para cima e apalpei o chão até achar o sabre, vi o momento
em que ele saltou lá de cima em minha direção, só tive tempo para erguer o sabre e o prender
debaixo do meu braço com a lâmina para cima. Black Jango caiu por cima de mim tentando evitar o
sabre, ele usou as patas para amortecer a queda, mas foi tarde demais, a ponta da lâmina perfurou seu
peito, ele se levantou urrando e puxou o sabre, jogando-o longe e fazendo sangue espirrar em volta
dele e respingar em mim. O corte em seu peito parecia que estava fervendo e soltando bolhas de
sangue.
Ele virou-se em minha direção novamente e veio, rolei para o lado e me levantei para pegar a
espada novamente. O Lobisomem parecia estar ficando fraco e tonto e se ergueu com dificuldade.
Antes que ele pudesse me atacar novamente, peguei o sabre que estava no chão todo manchado
com o sangue de Black Jango e fui em sua direção cuidadosamente. Ele se ergueu uivando novamente
de modo que parecia ser um alerta, de repente ele virou um humano e minhas mãos tremeram, era o
mesmo homem que eu havia sonhado um tempo atrás quando estava indo para a cidade de Arcádia.
Cabelo longo castanho de aparência suja e desleixada e olhos negros como o breu.
― Eu... ― ele começou a dizer, esticando a mão em minha direção, mas eu sabia o que tinha que
fazer, apertei o punho do sabre e o cravei em seu coração. ― só queria voltar... a ser um humano...
Ouvi dizer sobre o sangue que poderia acabar com minha maldição... Ia levá-la para ele depois de
voltar ao normal... ― disse ele em suas últimas palavras e erguendo as mãos para mim. Em seu
peito começaram a aparecer bolhas como as de queimaduras e ele caiu para trás com a boca
parcialmente aberta e olhos parados e dilatados.
Deixei a espada cair sentindo-me horrível e minhas mãos estavam sujas com o sangue dele, caí de
joelhos diante de seu corpo e gritei.
“Não queria ter que matar ninguém, não importa o monstro que fosse”.
Ewren apareceu, ele trazia em sua mão um braço pendurado, ainda escorrendo sangue, e parecia
chocado ao me ver, olhou para a espada no chão e depois para o corpo em minha frente. Ele deixou o
braço cair no chão e correu até mim.
― Você está bem? Está ferida? ― perguntou, varrendo-me com os olhos e procurando algo
errado.
― Não estou ferida. ― mas também não estava bem.
Ewren pareceu entender o que eu estava sentindo e me abraçou.
― Temos que ir lá fora ajudá-los! ― disse, erguendo-me do chão e pegando um sabre, ele o
limpou e me entregou. Corremos pelos corredores e salões desertos da fortaleza e o chão de pedra
denunciava nossos passos rápidos em direção à saída daquele lugar.
Saímos da fortaleza pelo portão da frente, ficando de frente para a batalha, os lobisomens que
estavam lá devem ter sentido o cheiro do sangue de Black Jango em mim, pois eles pararam de atacar
o exército e vieram em minha direção.
― Droga! ― Ewren murmurou sacando sua espada novamente. Segurei seu braço e o impedi.
― Não precisa! ― ele me olhou como se eu tivesse ficado louca. Peguei um dos cristais do
vulcão que estava pendurado no saquinho em minha calça e soltei-o no chão, peguei o cajado e o
apertei com força. ― Eles não vão mais nos atacar, eles só estão aqui por que não tiveram escolha!
― disse.
Bati com o cajado no cristal fazendo-o explodir e uma forte luz roxa varreu tudo que estava ao
nosso redor, fazendo os lobisomens caírem ao chão. Os centauros e outras criaturas que estavam com
eles começaram a fugir imediatamente em direção à floresta.
Quando a luz enfraqueceu, só havia homens ao nosso redor, eles estavam caídos no chão, alguns
tocando em seus rostos e outros rindo e se abraçando.
― Você purificou todos eles? ― Ewren olhava-me espantado.
― Black Jango, antes de morrer, disse que só queria ser humano novamente e que Arcádius tinha
prometido isso a ele se ele me levasse. ― Ewren acariciou o topo da minha cabeça com as pontas
dos dedos.
Aeban e minha mãe vieram até nós e ela puxou-me de perto de Ewren para me abraçar.
― Está tudo bem? Está machucada? ― ela me apertava e me olhava como Ewren havia feito,
procurando por algo errado em mim, até que seus olhos pousaram sobre a marca em minha testa. Ela
sugou o ar e fez uma careta, virou-se para Ewren e começou a gritar com ele.
― O que você fez?! ― gritava ela, Aeban também se colocou entre nós erguendo a espada para
Ewren, que ergueu os braços em forma de rendição. Respirei fundo.
― Ele não fez nada! Eu que insisti para ele quebrar a maldição! ― disse, minha mãe parou de
gritar com ele e olhou para mim como um cão raivoso.
― Você sabia como quebrar a maldição? ― perguntou ela.
― Não fazia ideia! ― respondi sinceramente, ela encarou Aeban e depois voltou a gritar com
Ewren.
― Como se você não quisesse, não é? Teve que se sacrificar por um bem maior, não foi? ― ela
estava muito furiosa e revirei os olhos, já conhecia isso, mesmo estando errada, ela gritaria até não
poder mais e só depois pediria desculpas. Aeban encarou Ewren, ele o encarou de volta e não
abaixou a cabeça, como se os dois se falassem mentalmente. Aeban guardou a espada, virou-se para
minha mãe e a segurou pelos ombros.
― Eu fiz a mesma coisa por você, com o mesmo objetivo! ― disse ele a abraçando. ― Só queria
te manter segura! Ele fez o mesmo, embora eu não aprove o comportamento deles! ― disse ele
olhando-me de cenho franzido.
Ela começou a discutir com os dois aos berros, como disse, não importava se estava errada ou
não, ela só queria explodir com alguém.
― Arcadius fugiu. ― disse para que eles parassem de discutir.
― Nós sabemos! ― disse Lórien chegando por trás de mim. ― Um dos lobisomens disse isso
antes que eu o matasse! ― ela estava aborrecida. ― Queria quebrar aquele mago de uma vez! ―
resmungou ela.
― Por que ele deixou um pequeno exército para nos impedir já que havia fugido antes? ―
perguntei.
― Uma distração, ele queria tempo para tirar alguma coisa de dentro do castelo. ― respondeu
um homem se aproximando de nós, era um dos lobisomens.
― Tirar o que do castelo?
― Parecia uma pessoa... Havia uma névoa negra em volta dela, então não pudemos ver ao
certo... ― respondeu ele se afastando lentamente ― Espero ter ajudado, obrigada pequena
sacerdotisa! ― disse ele se curvando em minha direção. Todos me olharam surpresos, Ewren foi o
único que notou meu nervosismo e tentou mudar o foco da conversa.
― Leona matou Black Jango. ― falou Ewren segurando minha mão ainda suja de sangue.
― O que? ― disseram Aeban e minha mãe juntos. Peguei o sabre de prata e mostrei a eles.
― Sinto muito! ― disse minha mãe baixinho e me abraçando ― Te criei tão longe de tudo isso
para te livrar dessas coisas, mas parece que isso tudo a seguiu também! ― deitei minha cabeça nela,
pois era muito aconchegante.
― Está tudo bem... ― respondi baixinho. ― Eu gosto mais daqui. ― ela riu.
― Você é muito mais forte do que eu, nunca conseguiria purificar tantos deles juntos. ― disse
olhando os homens que antes eram lobisomens. Eles estavam se juntando aos homens do exército e
ajudando a carregar os corpos dos outros lobisomens mortos para dentro da fortaleza.
― Demétrius conseguiu escapar! ― disse Ewren. ― Arranquei o braço dele e quando ia arrancar
sua cabeça, escutei Leona gritando, ele aproveitou minha distração e sumiu nas poças de água do
pátio! ― disse ele frustrado.

Depois de terem terminado de recolher os corpos e colocado todos juntos dentro da fortaleza,
minha mãe ateou fogo ao castelo. Afastamo-nos lentamente enquanto o fogo azul consumia tudo.
Chegamos à praia ao amanhecer para poder embarcar nos navios de volta a Edro. Passei quase
uma hora dentro de uma banheira para retirar todos os vestígios de sangue em mim, pois ele parecia
ter grudado em mim, mesmo que eu esfregasse bastante a pele. Fiquei na cabine com minha mãe e
Aeban, deitada numa cama macia e quentinha, e apesar de meus olhos estarem pesados, eu não queria
dormir ainda.
Aeban sentou ao meu lado e acariciou minha cabeça.
― Você foi muito corajosa! ― disse ele ― mas, devia ter ficado em Lótus Vale! Não devia ter se
arriscado assim!
― Faço parte desse mundo também, e se não fosse por nós, ninguém precisaria ir lutar com
Arcádius. ― respondi. Lembrei-me de algo que Black Jango disse antes de morrer e dei um pulo.
― Mãe? Que prima é essa que Black Jango falou que eu tinha? Que ele matou?
― Prima? ― ela parecia confusa. Aeban suspirou e pigarreou.
― Emma. ― disse ele para nós ― filha de sua irmã Pytie. Foi Black Jango que a matou! ― disse
ele.
― Mas ela disse que sua filha havia sido levada embora pelo pai! ― disse ela e Aeban sacudiu
a cabeça.
― Ela entregou a filha para ele para tentar escondê-la, com medo de ela ser caçada pela
maldição do sangue. ― explicou ― Mas quando ele morreu, Emma foi para uma escola para magos,
aquela escola que você também estudou, ela também foi aluna de Arcádius depois que você saiu de
lá! ― quando ele disse isso, o rosto de minha mãe perdeu a cor. ― Ele descobriu o parentesco de
vocês e ficou sabendo da maldição através de Moan, que por mais coincidência que possa parecer, é
filha de Veruza. ― disse ele.
― Mas ele não usou o sangue de Emma, usou? ― ela perguntou.
― Não, ele descobriu que o sangue dela não era poderoso como o da ramificação principal,
mesmo assim, ele a mantinha no castelo para fazer experimentos com o sangue dela, ela acabou
descobrindo o que ele fazia e tentou fugir para revelar o que ele planejava. Mas ao passar pelo
portão do castelo, um feitiço dele fez com que sua memória fosse apagada. ― ele sentou
pesadamente na cadeira no canto da cabine para ficar de frente para nós duas.
― Então, como soube quem era ela? ― perguntei ― Quer dizer, se a memória dela foi apagada...
― A memória não é apagada, é bloqueada, a pessoa dona das memórias não tem mais acesso a
elas, mas alguém que possa ler a mente consegue enxergar qualquer memória, independentemente de
a pessoa ter conhecimento dela ou não. ― explicou minha mãe.
― Meu erro foi não levá-la para a sacerdotisa também, eu a deixei com um casal de humanos com
um filho e pedi para que cuidassem dela como se fosse filha deles, achei que seria mais seguro para
ela numa vila de humanos e que ali ninguém pensaria em procurá-la! De lá, fui direto te procurar para
quebrar a maldição antes que ele chegasse até você! ― disse ele para minha mãe.
O resto eu já sabia, pois tinha visto isso no sonho há um tempo atrás.
― Ewren a achou, e depois de um tempo casou com ela, ela teve sua maldição quebrada também,
então, quando Arcádius descobriu onde ela estava, mandou Black Jango a matar! ― por mais cruel e
egoísta que isso pudesse parecer, me doeu pensar que se ela ainda estivesse viva, provavelmente não
conheceria Ewren agora.
― Ele sabe que ela era minha prima? ― perguntei.
― Não, nem sabia que ela era uma maga, eu bloqueei seus poderes quando soube que ela havia
perdido a memória, para ela não machucar ninguém. ― ele estava triste e arrependido. ― Se não
tivesse feito isso...
― Não foi sua culpa ― eu disse. ― não tem como cancelar essa maldição de vez? Quero dizer,
nunca mais aparecer nas descendentes da nossa família?
― Não sabemos! ― disse minha mãe frustrada. ― E não faço ideia de onde começar a procurar
por pistas para acabar com isso! E agora ainda tem essa também de você com aquele... ― ela
começou a murmurar baixinho e parecia que estava xingando.
― Esquece isso! ― disse tentando tirar o foco de mim. ― Vi Lórien cancelar uma maldição de
Andros só tocando nele, juntando com o meu poder...
― Isso não é uma simples maldição de transformação, Leona! E como assim, esquece isso? E se
você tivesse ficado grávida? Faz parte da maldição só nascerem mulheres na família! ― agora sim
ela estava furiosa.
― Lupine... ― Aeban a olhou feio e só então ela ficou quieta novamente.
― Não quero mais você junto com ele! ― disse ela cruzando os braços.
― Mãe! ― protestei ― Não foi assim que a senhora me criou, lembra? Liberdade total?
Confiança? ― meu coração havia disparado, não queria nem pensar na possibilidade de me afastar
dele novamente.
― Ela tem razão, Lupine, não vai adiantar nada você a impedir de ficar perto dele, ainda mais
agora que ele é guardião dela! Lembre-se que ele também é filho de sua melhor amiga. Você não
pode ficar assim com eles, vá lá e converse com ele então! ― e foi isso que ela fez, saiu batendo o
pé e quase derrubando a porta da cabine atrás dela. Aeban estava sorrindo.
― Ela é muito teimosa! Tem sempre que estar com a razão! ― reclamei.
― É sua mãe, ela é assim mesmo. Você tem que entender, ela me abandonou porque achava que
seria melhor para você, que longe daqui ela poderia te proteger, e agora ela está perdendo o controle
de tudo e você está saindo de baixo das asas dela.
― Eu sei... ― disse baixinho.
― Fique aqui e descanse! ― disse ele se levantando e me dando um beijo na testa. ― Vou
conversar com eles também! ― meu estômago afundou, tive medo que ele fizesse algo a Ewren, ele
percebeu meu nervosismo e riu enquanto saía da cabine. Estava estranhamente tranquilo se contarmos
que havíamos acabado de sair de uma batalha.
Fiquei sozinha na cabine, tensa demais para dormir e cansada demais para ficar acordada, fiquei
rolando sobre a cama macia até conseguir pegar no sono.
Acordei com o suave balanço do navio. Ewren estava sentado ao meu lado numa cadeira,
observando-me dormir, meu corpo estava estranhamente quente e meu cabelo estava úmido. Sorri
quando o vi ali.
Ele colocou sua mão em meu rosto e depois ficou mexendo em meus cabelos.
― Tudo bem? ― perguntei.
― Tudo ótimo! ― disse ele me mostrando um largo sorriso. Lembrei que meus pais haviam ido
falar com ele e me sentei na cama.
― Eles não te fizeram nada, não é? ― perguntei.
― Não! ― respondeu rindo ― Eu os convenci a me deixar ficar com você!
― Como? ― eu não acreditava, devia estar sonhando ainda.
― Depois você vai saber! ― respondeu passando os dedos suavemente em meu ombro, ele tinha
um olhar sedutor, então puxei seu cabelo e o beijei. Ewren me afastou ainda sorrindo.
― O que foi?
― Você quer que eles arranquem minha cabeça, não é?
― Desculpe.
― Estamos quase chegando ao Porto da Besta Santa. ― disse ele respirando fundo e encostando-
se à cadeira.
― O que vai ser agora? ― perguntei ― Se meu sangue não serve mais para Arcádius, o que ele
vai tentar fazer?
― Vai arrumar algum outro jeito, há sempre outro jeito! ― estremeci ao pensar que ainda haveria
mais. Ewren tirou a mão que estava em meus cabelos e ficou sério.
― O que... ― quando ia lhe perguntar o porquê de ele ter mudado tão rapidamente, minha mãe
entrou na cabine.
― Andros está te procurando, Ewren. ― disse ela secamente.
Ele se levantou e encarou minha mãe, depois deu um meio sorriso e me beijou na frente dela.
Senti-me quente demais e quase dormente com o pânico que bateu em mim.
― Com licença ― disse ele saindo pela porta, antes dele a bater, virou-se levemente e piscou
mim.
Minha mãe bufou com raiva.
― É muito difícil aceitar isso! ― disse ela sentando-se perto de mim. ― Ele é muito velho pra
você! ― revirei os olhos.
― Mãe, nós temos mais alguma parente aqui que seja maga? ― perguntei, forçando-a a mudar de
assunto.
Ela não percebeu que fiz aquilo de propósito.
― Tem sim, sua avó Mayra, minha irmã Pytia e Belve, irmã mais nova de Emma... Ela é três anos
mais velha do que você.
― Então tenho uma prima de vinte anos aqui?
― Não, você tem uma prima de oitocentos e dezenove aqui!
― Então, como ela é três anos mais velha do que eu? ― perguntei.
― Se nós não tivéssemos saído daqui, você teria oitocentos e dezesseis
anos. ― respondeu ― Ewren tem mil oitocentos e trinta anos, sabia? ― perguntou ela fazendo cara
feia ― Ele e seu pai têm pouco menos de dez anos de diferença! ― ela havia ficado vermelha.
― Quanto isso daria na terra? ― perguntei.
― Trinta e oito anos! ― ela disse isso como se fosse me convencer a não ficar com ele.
― Não é tão velho assim! ― respondi mordendo a boca para não rir e ela respirou fundo.
― Não vou discutir com você porque seu pai me impediu de brigar com você por isso, e como eu
o privei de estar presente nas nossas vidas, achei justo o deixar tomar as decisões de agora em
diante! ― meus olhos brilharam com a possibilidade de ela não reclamar mais.
― Voltando ao assunto, essa prima Belve, ela é maga também? ― perguntei ― Será que é mais
forte do que eu? ― deixei a outra pergunta escapar sem querer e minha mãe olhou-me surpresa.
― Não é mais forte, talvez mais habilidosa com suas magias, mas não, mais forte.
― Por quê?
― Ela é filha de minha irmã mais nova. A maldição é mais forte nas primogênitas.
― Mas eu sou mais nova que Belve... A senhora é gêmea? ― perguntei.
― Minha mãe era a mais velha, eu sou a mais velha e você... ― disse ela com uma expressão
triste. ― Pytia e eu não somos idênticas, as únicas idênticas eram Mayra e Ervie. ― ela parecia
distante ― tia Ervie perdeu suas duas filhas ainda crianças, depois sumiu para o mundo das águas e
nunca mais ouvimos falar dela. Pytia teve duas filhas também, Emma e Anne, Anne nasceu muito
pequena durante um verão muito quente e não sobreviveu.
― Então a senhora foi a única da família que não teve gêmeas? ― perguntei, seus olhos já tristes
se encheram de lágrimas.
― Era para o nome dela ser Serena, Eu estava em Cristalis, no templo, quando vocês resolveram
nascer. Você nasceu rápido, era uma menina grande e saudável, mas Serena não queria nascer, parece
que ela sabia o destino que teria que enfrentar... Fiquei por horas tentando a fazer nascer e acabei
desmaiando de cansaço. Quando acordei algumas horas depois, só tinha você em meus braços. ―
afaguei suas costas tentando confortá-la.
― Papai sabe disso? ― ela negou.
― É melhor nem saber... ― disse ela.
― Mãe, me conte direito, como foi que surgiu essa maldição?
― Sua bisavó Jocelinne era uma maga aprendiz, era muito bonita assim como você, seu mestre
era um Mago muito famoso, Jack, só que era casado com uma bruxa muito ciumenta chamada Veruza.
O professor de Jocelinne acabou se apaixonando por ela, então quando Veruza descobriu, ela ficou
irada, disse que a morte era pouco para Jocelinne e amaldiçoou ela e toda sua descendência, quando
elas chegassem a idade da lua cheia seu sangue iria dar poder a qualquer um que o tomasse e se
tornariam imortais até passar a maldição adiante, então elas seriam perseguidas para sempre, e para
a maldição nunca ter fim, só nasceriam meninas em nossa família. Com raiva de Veruza ao descobrir
o que ela tinha feito, Jack a baniu desse mundo.
― O que houve com Jocelinne?
― Ela começou a ser perseguida por todos os tipos de criaturas que percebiam o poder que ela
podia conceder a eles, Jack ficou com ela para que a maldição fosse quebrada, mas apenas a
passaram para frente, e passar a maldição adiante é inevitável!
― Nós temos que pôr um fim a isso! ― disse ― Nem que tenhamos que andar pelos doze
mundos atrás dessa Veruza e obrigá-la a desfazer a maldição!
― Sim, é o que pretendo fazer! ― disse ela limpando as lágrimas e pondo-se de pé.
― Nós vamos fazer juntas! ― falei lhe dando um abraço.
― Sim, prometo que iremos acabar com isso juntas! ― ela suspirou e senti seu alívio quando a
abracei.
14

Após a Tempestade.
Atracamos no Porto da Besta Santa ao entardecer. Os sóis desenhavam traços brilhantes na água
até onde a vista alcançava. Aeban dispensou o exército élfico que veio de Górtia e libertou os
homens que antes eram lobisomens.
Voamos para Lótus Vale e chegamos à cidade flutuante pouco antes da meia-noite, eu estava
exausta, e assim que colocamos os pés na cidade, Ewren desapareceu. Fui procurar por Feroz e o
encontrei roubando comida na cozinha, peguei um prato para mim também e subi para o quarto na
torre.
Mal chegamos e Lórien já estava de partida.
― Nos vemos semana que vem na Cidade de Cristal, tá? ― ela encheu meu rosto de
beijos ― Deixei algumas roupas separadas no armário para você! ― disse ela enquanto saía.
― Eu vou estar lá para pegar o buquê! ― respondi.
O quarto ficou em silêncio, só não estava mais triste sem Lórien, pois sabia que iria voltar a vê-la
em breve. Coloquei uma roupa de dormir e caí na cama, colocando Feroz sobre minha barriga e
coçando suas orelhas macias até adormecer.
Era de madrugada quando acordei suando, com muito calor e sem ar. Feroz havia crescido
enquanto dormia e estava sobre mim quase me esmagando. Saí debaixo dele com dificuldade e andei
até a sacada para tomar um ar. A brisa da noite me acertou em cheio, a lua gigante de Amantia
brilhava com tal intensidade no céu que parecia ser dia.
Senti uma mão em meu ombro e pulei de susto, abafando um grito quando vi que se tratava apenas
de Ewren. Ele estava agachado sobre o parapeito da sacada, seus olhos prateados estavam brilhando
contra a luz da lua, seu cabelo estava trançado, balançando suavemente com o vento, e as asas,
parcialmente abertas.
― Quer me matar de susto? ― murmurei tentando inutilmente fazer meu coração se acalmar.
Ele sorriu para mim, fazendo todo o esforço de acalmar meu coração ir por água abaixo.
― Você é muito assustada, sabia? Quero te mostrar uma coisa, vem! ― disse ele me puxando
para seu colo e levantando voo.
― Poderia me responder uma coisa que estou curiosa para saber desde que vi você assim pela
primeira vez? ― ele franziu a testa e concordou com a cabeça. ― Por que você tem asas?
― perguntei ― Lórien eu até entendo, pois é uma maga e poderia fazer aparecerem asas nela se ela
quisesse! Mas elfos não tem asas, não até onde eu sei...
― É exatamente isso! ― ele respondeu ― Você conheceu Aristes, lembra-se dele? Aquele mago
metamorfo que te mandou para casa?
― Me lembro, o mago doidão, não é?
― Pois é! Ele criou uma poção com penas de fênix que, quando você a toma, uma tatuagem de
fênix aparece em suas costas, e quando concentramos nossa energia nela, as asas dela se tornam parte
do nosso corpo e se abrem. Foi muito difícil controlá-las no começo, mas depois foi como se tivesse
nascido com elas.
― E como você conseguiu uma poção dessas?
― Foi na época que entrei para o exército para fazer parte da guarda real, os que se encaixaram
no perfil para ser da guarda receberam a poção de Aristes. Eu fui um dos sortudos.
― Mas você não é da família real?
― Nada me impedia de entrar para a guarda mesmo assim, e eu não ligava para esse título sem
graça!
― E Lórien? E sua mãe? ― perguntei.
― Lórien! Ela recriou a poção com penas de Chuia dourada e usou Arin como cobaia! ― ele
riu ― Ela colocou a poção escondida no chá dela e quando viu que funcionou, bebeu também.
― Ela é louquinha! ― ri.
Passamos voando por cima de uma clareira e começamos a descer, pude escutar o som de água e
pousamos em uma trilha de pedras brancas.
― Onde estamos? ― perguntei.
― Já vai ver! ― ele cobriu meus olhos com as mãos e caminhamos até o barulho de água ficar
mais forte.
Ewren tirou as mãos do meu rosto e as colocou em volta de mim. Quando abri olhos, perdi o
fôlego, eram duas cachoeiras que se juntavam em uma enorme piscina natural, escavada por séculos
de quedas daquelas águas, as pedras que circulavam a piscina estavam distribuídas de uma maneira
que dividia as águas em cinco rios menores que corriam para dentro da floresta, e bem no meio da
piscina havia uma pedra plana e parcialmente coberta pela água. A Lua fazia aquele pequeno paraíso
brilhar.
― Ewren, é incrível! ― sorri, me desembaracei de seus braços e comecei a entrar lentamente na
água. Não estava gelada como imaginei, estava fria, quase morna na verdade.
Depois de alguns passos, ficou fundo demais para que eu pudesse ficar em pé sem ter que ficar
nas pontas dos dedos, então, mergulhei para molhar minha cabeça que estava mais quente do que
antes. Ewren entrou também chegando bem perto, me pegou pela cintura e me virou para ele,
encostando minhas costas na pedra. Ele acariciou meu pescoço com a ponta do nariz, depois o
mordeu levemente e olhou dentro de meus olhos, quase como se pudesse tocar minha alma, segurou
minha mão onde as marcas brilhavam levemente, beijou-a e entrelaçou seus dedos nos meus.
― Deste dia em diante, eu reivindico sua alma, sua força e seu corpo; e prometo ser sua luz, sua
espada, seu ombro amigo e seu guardião, não importa o que aconteça, até o fim dos meus dias ―
disse ele, antes que eu pudesse entender o que ele quis dizer, seus lábios encontraram os meus, eu
não conseguia me acostumar com aquilo, e sempre que ele me tocava assim, esperava acordar a
qualquer momento de um sonho.
― Eu serei sempre sua! ― respondi escondendo meu rosto em seu peito, Ewren segurou meu
queixo com a mão para olhar dentro dos meus olhos e me beijou novamente com urgência, senti
minha mão esquerda arder levemente, mas não me importei de olhar, pois Ewren estava prendendo
minha atenção. Ele subiu na pedra e sentou-se na beirada que ficava dentro da água, me puxando para
seu colo, tirou minha roupa lentamente e tirou meu cabelo molhado que cobria meu corpo, expondo-
me à luz da lua.
― Eu deveria parar aqui e te levar de volta! ― disse ele dando um sorriso meio de lado em
conjunto com um olhar maldoso. Gemi baixinho.
― Você teria coragem para fazer isso? ― minha voz estava trêmula e ele riu.
― Nunca! ― disse apertando-me contra seu corpo novamente e deslizando sua mão pela minha
coxa até minha cintura, dessa vez eu o beijei, enrolei minha mão na sua trança e desenhando seus
lábios com minha língua, beijei seu pescoço e o mordi de leve. Sua respiração ficou alterada e nos
perdemos um no outro novamente. Ficamos juntos ali até o amanhecer, num pequeno paraíso onde
ninguém podia nos alcançar e onde o tempo parecia ter parado para nós.

Estava deitada sobre Ewren e ele acariciava minhas costas com as pontas dos dedos. Ele estava
quente, em contraste com a água fria, fazendo meu corpo inteiro se arrepiar. Sirius e Áries já se
levantavam ao céu, deixando aquele lugar ainda mais lindo.
― Temos que voltar. Sua mãe deve estar surtando a essa hora ― eu ri.
― Provavelmente! ― dei um suspiro, levantando me e vestindo minha roupa. Senti uma tristeza
ao me despedir silenciosamente desse lugar.
Voamos de volta até a sacada de meu quarto na torre, ele me colocou no chão, abri a porta e entrei
seguida por ele.
Joguei-me na cama, mas estava sem sono, olhei minha mão onde havia sentido queimar mais cedo,
se unindo às marcas lilás em meu braço esquerdo, havia uma fina linha dourada que serpenteava as
costas de minha mão e se enroscava em meu dedo anelar, formando uma pequena flor de lis dourada
em cima do dedo, achei até bem bonita, e como não parecia ser nada estranho em comparação às que
eu já possuía no braço e na testa, a ignorei.
― Não vai dormir? ― perguntou Ewren olhando para a estante de livros ao lado da janela. ―
Não está com sono?
― Nem um pouco! ― respondi ― Poderíamos fazer alguma coisa para passar o tempo até a hora
do almoço...
Ewren veio até mim com um livro na mão, pensei que ele iria sentar para ler, mas ao invés disso,
ele soltou o livro grosso e muito pesado em cima de mim, fazendo quase todo o ar de meus pulmões
ser expelido.
― O que... ― estava tentando recuperar o fôlego, tirando-o de cima de mim.
― Você tem que ler isso até semana que vem!
― Que livro é esse? ― perguntei tirando-o de cima de mim e olhando sua capa antiga em couro
com letras bem desenhadas.
― É um catálogo de Amantia, com descrição completa de todos os seres existentes aqui, seus
poderes, locais onde habitam... ― fiquei olhando para ele de boca aberta.
― Você estava tão bonzinho comigo agora a pouco! ― ele sorriu maldosamente.
― Você é filha de duas pessoas importantes e influentes, usar a desculpa de ter vivido longe de
Amantia não vai ser aceita por muito tempo pelas pessoas daqui! ― meu estômago afundou.
― Vou pegar no sono no meio da leitura! ― respondi indignada olhando aquele livro enorme.
― Vou te ajudar! ― disse ele sentando na poltrona ao lado da cama.
Enquanto eu lia, ele ficava em silêncio de olhos fechados, por vezes achei que estava dormindo, e
depois de alguns minutos de leitura, peguei no sono de verdade.
Abri os olhos assustada com minha mãe arrastando-me para fora da cama, como ela fazia quando
eu não queria levantar para ir à escola. Ela me levou para almoçar e depois para a biblioteca
gigantesca da fortaleza, e nem se eu tivesse dez vidas, poderia ler todos os livros que haviam ali. A
Biblioteca contava com livros e manuscritos vindos dos doze mundos, uma coleção perfeita.
Realmente teria que aprender tudo sobre Amantia em uma semana. Passei o resto da semana
estudando sobre esse mundo o máximo que podia. Aeban, quer dizer, meu pai me ensinava tudo que
sabia, passava o dia com ele no jardim suspenso estudando e treinando, ele me ensinava a usar
espadas duplas aproveitando um pouco do conhecimento que Lórien havia me passado. Era divertido
estar com ele, minha mãe por vezes vinha nos inspecionar, ver se Aeban não estava sendo mole
demais comigo e nos trazia mais alegria, ela cantava e fazia toda a cidade vibrar com o vento que
respondia à sua voz. Sentia-me feliz de verdade pela primeira vez em toda minha vida, completa,
como se agora tudo estivesse em seu devido lugar. Todas as preocupações haviam sumido por
completo. Não havia visto Ewren desde o dia em que fomos ao pequeno paraíso, estudava
fervorosamente sem descanso e sem saber aonde ele havia se metido.
No sábado de manhã, dia do casamento de Lórien, passei as primeiras horas da manhã tentando
me arrumar descentemente num vestido que minha mãe havia mandado fazer para mim, ele era verde
claro de um tecido parecido com crepe, porém mais fino, com pequenos e delicados babados nas
alças e na barra, era até bonito, se não fosse o fato de que todos estariam olhando com curiosidade
para “a filha da Sacerdotisa desaparecida”, isso fez minha cabeça girar, deixei meus cabelos soltos
mesmo, usando apenas um enfeite de flores verdes neles. Qualquer coisa, os usaria como um escudo
para esconder-me. Minha mãe havia me mandado acender minhas marcas assim que chegasse à festa,
para que todos tivessem a certeza de que era uma maga “adulta” e confirmar a história que ela havia
saído espalhando por Amantia. Ewren entrou no quarto, estava vestido de forma elegante com um
traje preto e dourado e cabelo preso para trás num rabo de cavalo meio solto, o que o deixava ainda
mais charmoso.
― Onde esteve? ― perguntei o olhando torto.
― Fui resolver uns assuntos em Monte Azul. ― respondeu olhando para mim dos pés à cabeça e
levantando as sobrancelhas.
― Exagerado? ― perguntei olhando para o vestido.
― Não, está muito bonito. ― disse ele esticando a mão para mim e mordendo a boca para não
rir.
― O que é? ― quis saber começando a ficar nervosa.
― Não é nada com você! Juro! Mas você vai ter uma enorme surpresa no casamento e mal posso
esperar para ver sua reação! ― disse ele estreitando os olhos para mim.
― Ótimo, conseguiu me deixar nervosa de vez! ― meu estômago embrulhou, saímos pela porta e
descemos a longa escadaria até o pátio principal, onde nos esperavam para partir.
Havia duas carruagens grandes esperando no pátio, eram muito bonitas e pareciam que eram
árvores transformadas em carruagens, elas me lembravam o muro em volta da vila Safira, pois eram
todas decoradas com flores vivas e folhas verdes. Cada uma era puxada por seis cavalos de vento
bem maiores do que cavalos normais. Entramos em uma delas, meus pais estavam na outra carruagem
com mais duas pessoas que não conhecia e agradeci por não entrar mais ninguém na carruagem
conosco.
― Parece que vamos sozinhos. ― Ewren estava tão diferente do dia em que o conheci, estava
calmo e sereno, aproveitei que estava sozinha com ele para tentar arrancar uma confissão, mas antes
que pudesse dizer qualquer coisa, ele disse bem devagar.
― Vai haver muita gente, gente importante e gente que só quer ter uma oportunidade de fazer algo
dar errado, então, haja o que houver, evite sair de perto de nós! ― seus olhos estavam sérios.
― Não pretendo sair de perto de você, alguém pode chegar e te roubar de mim! ― Ele beijou
minha mão esquerda e deu aquele sorriso estranho que só dava quando conseguia provar que estava
certo em algo ― Você está me assustando, sabia? ― estava desconfiada de que ele iria aprontar
alguma. Mas no casamento da própria irmã? Teria ele coragem para fazer algo assim? Ewren
permaneceu em silêncio o resto da viagem, evitando minhas perguntas, o que mais me deixava
apavorada era o brilho perverso e ao mesmo tempo divertido em seu olhar.
Senti a carruagem fazer uma leve inclinação e passar por dentro de uma sombra, olhei pela
janelinha da carruagem e vi que estávamos contornando uma coluna de nuvens, então os cavalos
fizeram uma leve inclinação, virando na direção daquelas nuvens em um ponto onde havia uma luz
brilhante, entramos ali e passamos deslizando suavemente por elas.
Não tinha uma vez em que eu olhasse para um novo lugar nesse mundo, que não ficasse
maravilhada com o que estava vendo.
A cidade era branca, com construções perfeitamente detalhadas e prédios altos como os da Torre
das Nuvens só que eram construções antigas, e no topo de cada casa e de cada prédio havia um
cristal de purificação azul, lapidado conforme o estilo do local onde estava. Os sóis que
atravessavam as nuvens e encontravam aqueles cristais faziam espectros coloridos brilharem por
toda a cidade e as ruas brancas trançavam-se e se dividiam como um gigantesco labirinto. As
carruagens continuaram voando até chegar ao motivo real dessa cidade se chamar “Cidade de
Cristal”, um castelo com o dobro do tamanho da fortaleza de Lótus Vale apareceu em nossa frente,
totalmente feito de cristais azuis de purificação.
― Aquele é o castelo da Rainha... ― Ewren falou baixinho perto de mim ― Foi ali que você
nasceu, é dentro desse castelo que fica o templo! ― Não encontrava palavras para descrever como
me sentia. O medo de acordar no meu quarto e ser tudo um sonho se tornava maior a cada instante.
― É fantástico!
A carruagem pousou na frente do castelo, desembarquei lentamente, observando e absorvendo
cada detalhe para ter certeza que era real, meus pais chegaram logo depois de nós. Havia centenas de
“pessoas” de todas as raças ali e todos nos cumprimentavam formalmente quando passávamos,
algumas pessoas vinham até mim para tentar apertar minha mão ou me abraçar, mas pararam quando
Ewren mudou sua aparência e deixou o punho marcado pela corrente a mostra.
― Você é quase uma celebridade agora! ― sussurrou enquanto atravessávamos um salão para
sair num jardim onde seria realizada a cerimônia.
― Leona! ― minha mãe estava ao meu lado movendo discretamente a mão para que eu a olhasse,
ela estava linda, usava um vestido cinza longo que caía suavemente em seu corpo, suas marcas
estavam brilhando e seus cabelos prateados caíam em longos cachos em volta de sua cintura,
mostrando o quanto ela pertencia a esse mundo, ela não havia mudado nada desde o momento em que
nasci. O jardim estava todo decorado com todos os tipos de flores que vimos em Vintro e arcos de
folhas douradas decoravam todo o jardim, fazendo um caminho até onde havia um altar, os bancos
faziam uma meia lua em volta daquele altar e um caminho de folhas douradas e pequenas flores
vermelhas decorava o chão. O brilho do sol Áries no castelo fazia tudo parecer ainda mais surreal.
― Leona! Suas marcas! ― disse minha mãe tocando em sua testa discretamente. Havia me
esquecido completamente de mudar de aparência, quando o fiz, ficando também com meus cabelos
prateados e as marcas lilás em meu braço e testa, houve um murmúrio, olhei de novo para minha mãe
e ela estava tentando disfarçar que estava tendo um ataque de pânico, saiu discretamente com Aeban
da vista das pessoas e fiz o mesmo com Ewren, ele parecia estar se divertindo, pois não tirava o
sorriso do rosto.
― Ewren, o que houve? Não estou entendendo!
― Já já! Fique calma! ― Olhei em direção a meus pais, Aeban a segurava gentilmente com o
rosto sem nenhuma expressão aparente, mas nos olhava de vez em quando, enquanto minha mãe
fulminava Ewren com o olhar.
― Me diz logo o que está acontecendo Ewren! ― falei entre os dentes, parecendo um pouco
mais ameaçadora do que de costume.
― O casamento vai começar! ― disse ele me levando até um dos muitos acentos das primeiras
fileiras e nos sentamos lá. Não vi mais meus pais depois que me sentei com Ewren. ― Existem dois
tipos de casamentos aqui, esse, com festa e gente chata desejando que você tropece e caia, e um
reservado, só ente duas pessoas que se amam. ― disse ele baixinho para mim ― Lórien é do tipo
que gosta de se exibir! ― revirei os olhos, isso eu já havia reparado.
Uma música suave, com um som puro e agradável, começou a tocar, Andros parecia que ia
explodir de felicidade lá na frente. Virei-me para trás para ver Lórien entrando deslumbrante. Ela
estava usando um vestido longo de seda e tinha seu cabelo trançado e todo decorado com pequenas
presilhas de ouro em forma de folhas. Elas prendiam um véu curto, porém muito bonito. Lórien
estava séria e diferente.
― As folhas douradas são o símbolo da Família Vertiggo, da família de seu pai. ― explicou ele
para mim.
― Estranho como estamos todos conectados, não é?
― Todas as vidas são como uma teia de aranhas, elas se cruzam em algum momento, pois todas
juntas tem um propósito... ― ele deixou a frase morrer enquanto o Sacerdote no altar começou a
falar, não prestava atenção no que ele dizia, pois tinha o costume de dormir em casamentos e não
queria perder esse. Depois de alguns minutos daquele homem falando, Andros e Lórien viraram-se
de frente um para o outro, eles entrelaçaram suas mãos, então Andros começou a falar.
― Deste dia em diante, eu reivindico sua alma, sua força e seu corpo; e prometo ser sua luz, sua
espada, seu ombro amigo e seu guardião, não importa o que aconteça, até o fim dos meus dias ―
disse ele calmamente a ela, que sorriu timidamente e respondeu.
― Serei o seu descanso, sua moradia e seu templo, serei para sempre sua! ― quando ela
terminou de dizer, uma luz se acendeu em sua palma, contornou sua mão e passou para a mão de
Andros, quando a luz diminuiu, vi que um pequeno laço dourado unia as mãos dos dois, ele
serpenteou seus dedos anelares e lá ficou a marca dourada de uma folha. Minha vista começou a
embaçar, fiquei tonta e meu coração disparou. Estava de cabeça baixa olhando para a marca de uma
flor de lis em meu anelar esquerdo. Levantei meu rosto lentamente para olhar Ewren, ele estava
olhando para mim com aqueles olhos prateados e brilhantes e um sorriso divertido no rosto.
― Ewren... ― fiz cada palavra sair lentamente e mais baixo do que eu pude ― Você não fez
isso... ― continuei encarando-o, enfrentando aquele olhar.
― Fiz sim! ― escutei um zumbido em meu ouvido e comecei a ter dificuldade para respirar. Os
convidados estavam se levantando para ir para o outro lado do jardim até restarmos apenas Ewren e
eu.
― Eu vou te matar! ― consegui finalmente botar as palavras para fora.
― Não vai não! ― ele riu, agora abertamente, pois já não havia mais perigo para ele. ― Como
você acha que convenci seus pais a me deixarem ficar com você?
― Eles concordaram com isso? ― estava em choque ― Vou matá-los também!
― Eles concordaram, só não especifiquei data e nem hora, então o fiz na primeira oportunidade
que tive, para poder ficar com você novamente ― disse calmamente ― Você não queria? ―
perguntou ele fazendo uma expressão triste e decepcionada.
― Não é isso, Ewren! Eu nem sabia de nada, como você pode fazer algo assim sem nem me dar
uma chance de responder?
― Você me respondeu na hora e de forma correta! ― nada fazia o sorriso sair de seu rosto.
― Não é justo! ― reclamei baixinho.
― Lembra-se na minha casa, quando me pediu para quebrar a maldição? ― sua expressão era tão
serena que nem parecia ser o mesmo ― Você não me deu a opção de dizer não, jogou a
responsabilidade para cima de mim, dizendo que se não o fizesse, você poderia morrer, lembra? ―
Ewren tocou meu rosto com sua mão, onde também estava gravada uma aliança dourada em seu dedo.
Sabia que ele estava errado e só queria achar uma justificativa, depois de pensar um pouco
melhor, respirei fundo e resolvi ficar feliz e carregar aquele mesmo sorriso enquanto estivesse ao
lado dele.
Epílogo

Tranquilidade.
A noite estava fria, mais do que esteve nos últimos dias. O casamento de Lórien foi um evento
fantástico, e embora não tenha conseguido ver Eirien, a avó de Ewren, fiquei feliz de estar me
adaptando lentamente ao meu novo mundo.
― Haverá outras chances de conhecê-la! ― Ewren estava sério, tentando não se mostrar muito
amigável a um grupo de salamandras que nos vigiavam de canto de olho e nos seguiam discretamente
por todos os lados dos jardins. Lórien e Andros partiram para a Lua de Mel enquanto também
partíamos de volta a Lótus Vale.
Estava calma e até feliz dentro da carruagem de volta, pois Ewren havia pegado um pedaço
generoso de bolo para ele mesmo, mas não o comeu e o guardou para me dar depois.
― Tentando me comprar? ― estiquei minha mão para pegar o prato em seu colo.
― Não imaginava que poderia te comprar facilmente com doces, agora que sei, vou usar a meu
favor algumas vezes! ― estava com aquele olhar maldoso gravado no rosto, dei de ombros a sua
provocação.
Ao chegarmos em Lótus Vale, Ewren foi chamado imediatamente a sala de meu pai. Já imaginava
que isso fosse acontecer depois de ter visto minha mãe quase ter um ataque cardíaco durante o
casamento de Lórien.
Podia escutar os gritos dela do meu quarto na torre.
― Feroz, sacerdotisa dos ventos, não é? Acho que a chamavam assim, pois os quatro ventos
escutam seus berros! ― peguei-o de cima da cama e afaguei sua cabeça. Ele espirrou e bateu suas
pantufinhas de leve em meu rosto, esperava que a fúria de Lupine, a Sacerdotisa de Amantia, se
dissipasse logo.
Fiquei quase uma semana sem ver Ewren novamente, não sei se foi castigo pelo casamento
escondido que nem eu sabia que estava acontecendo ou se ele resolveu deixar as coisas se
acalmarem.
Aeban passava a maior parte do tempo tentando convencer minha mãe de que estava tudo bem e
de que o perigo havia passado... Por enquanto. Numa noite que estava com insônia, caminhando pelos
corredores escuros e desertos da fortaleza, cheguei até uma escadaria e do alto dela vinha uma forte
claridade. Subi as escadas atraída pela luz como uma mariposa é atraída até uma lâmpada
incandescente.
Era um terraço não muito espaçoso acima da torre sul, andei devagar até a beirada dela e me
sentei no parapeito, sacudindo minhas pernas para fora da torre. A lua nova quase não aparecia, pois
estava cercada de muitas estrelas e a mandala brilhava ainda mais forte sem a luz da lua para cobrir
seu brilho. A brisa suave fez meus cabelos castanhos claros voarem fazendo ondas no céu. “Ainda
bem que não os havia cortado mais curto”.
Fiquei completamente sozinha nos últimos dias. Ewren havia sumido novamente, deixando-me
presa na fortaleza, pois sabia que não me atreveria a fazer alguma coisa com meus pais de olho em
mim o tempo todo. Porém, eles mal ficavam na fortaleza, iam para todos os lados em Amantia
resolver problemas e me faziam prometer que não sairia daqui. O tédio era meu maior inimigo, pois
nem Lórien eu tinha. Estava casada com Ewren, mas minha mãe fez questão de me lembrar que ela
aplicaria as regras da terra a mim, enquanto não tivesse dezoito anos, não poderia fazer nada sem a
autorização deles. Para minha alegria e tristeza dela, meu aniversário é dia seis de julho e faltava
pouco mais de um mês para esse dia. Pela primeira vez desde que tinha chegado aqui me sentia
sozinha, não estava triste, apenas frustrada por ter que ficar trancada no castelo enquanto os outros
estavam por ai. Meu sangue não era mais amaldiçoado, então não tinha mais perigo para mim no
momento.
Podia sentir um frio na espinha e sabia que aquilo indicava que ainda não havia acabado, que algo
estava apenas esperando por outra oportunidade, por um momento de descuido e por um minuto de
distração. Lágrimas escorreram pelos cantos de meus olhos e naquele momento senti um medo
irracional de ficar só...
Uma sombra apareceu sob a luz da lua e meu coração pulou alegremente, sabia que era ele, podia
sentir sua presença toda vez que chegava perto de mim. Enxuguei as lágrimas do rosto rapidamente e
me virei para vê-lo chegar e poder reclamar pelo tempo que havia me deixado esperando. Ele estava
ali, de asas abertas, e estendia sua mão para mim.
A peguei deliberadamente, ele me tirou do chão e voou sem dizer nada. Fizemos a volta na
fortaleza em direção ao sul e o trajeto até sua casa no alto da torre foi diferente à noite. A mandala
desenhava um rastro nas nuvens até o alto da torre, fazendo-as parecer um painel pintado à mão.
Ewren não desceu na varanda circular como eu esperava, mas sim, no terraço, ele me colocou
sentada numa espreguiçadeira e sentou-se em minha frente, beijou minhas mãos e sorriu para mim
como se pedisse desculpas.
― Estou de castigo até meu aniversário por sua causa, sabia? ― disse então, tentando não perder
o foco com seus olhos.
― Você está de castigo, eu não, então o que eu quiser fazer, independente de te envolver ou não,
eu vou fazer! ― respondeu dando uma piscada para mim.
Deitei em seu colo e fiquei observando as estrelas daqui de cima, Ewren levantou minhas mãos e
traçou as marcas douradas com a ponta do dedo. Ele carregava uma expressão meio triste em seu
rosto enquanto olhava para minhas mãos.
― Arrependido? ― perguntei tentando entender o que se passava na sua cabeça.
― Nunca, não costumo me arrepender das coisas que faço, apenas me arrependo das que deixo
de fazer... E estar com você agora é uma das coisas que não me arrependo.
Fechei os olhos e senti-me tranquila novamente, agora estava tudo no lugar certo e não importa o
que estivesse por vir, desde que ele ainda estivesse ao meu lado, eu poderia enfrentar o que fosse, e
faria de tudo para achar um modo de desfazer aquela maldição para sempre dessa vez.
Levantei para lhe dar um beijo e ele segurou meu rosto entre suas mãos.
― Para sempre sua! ― disse-lhe beijando-o e ficando abraçada e escondida em seus braços,
desejando ficar ali para sempre.
Meus mais sinceros agradecimentos a:
Meu marido, Verlan, pelas horas longas em que eu escrevia e ele tinha que ficar só, cuidando de
nossas filhas pequenas, e por todo o amor e apoio que me deu para que eu não desistisse de escrever.
Minha mãe, que durante minha infância, me incentivou a ler e a imaginar, sem seu contínuo
esforço de me iniciar no mundo da leitura e da fantasia, hoje eu não teria uma história para contar.
Minhas filhas, pois toda vez que eu parava de escrever para ficar na companhia delas, uma nova
ideia me vinha à mente.
Meu tio padrinho Hernande José, que sempre me deu todo o apoio.
E finalmente a Lindsey Stirling, Épica, Linkin Park, Cristina Perri e Tania Mara, que com minhas
músicas favoritas fizeram a trilha sonora perfeita e tornaram as palavras mais radiantes enquanto
escrevia esta obra.

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