Você está na página 1de 329

info@marcador.

pt
www.presenca.pt/collections/marcador
facebook.com/marcadoreditora
instagram.com/marcador_editora
© 2024
Todos os direitos relativos à chancela Marcador encontram-se reservados para
a Editorial Presença, S.A.
Estrada das Palmeiras, 59
Queluz de Baixo
2730-132 Barcarena
Texto © 2022 por Lynn Painter
Edição portuguesa publicada com o acordo de Simon & Schuster Books For
Young Readers, uma chancela de Simon & Schuster Children’s Publishing
Division.
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer
forma ou meio, eletrónico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação, ou
por qualquer sistema de armazenamento e recuperação de informações, sem o
consentimento prévio, por escrito, do proprietário legal.
Título: A Vida em Loop
Título original: The Do-Over
Autora: Lynn Painter
Tradução: Alexandra Cardoso
Revisão: Maria João Fonseca/Editorial Presença
Fotografia da autora: Jackson Okun
Ilustrações da capa: © 2022 por Liz Casal
Design da capa: © 2022 Simon & Schuster, Inc. (por Sarah Creech)
Arranjo da capa: Carlota Flieg
Composição: Fotocompográfica, Lda.
Impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.
1.ª edição em papel, Lisboa, fevereiro, 2024
Para
Os Solitários,
Os Sonhadores,
Aqueles que encontram os seus amigos nas páginas dos livros…
TU IMPORTAS, e o teu final feliz VAI acontecer.
Às vezes, a espera é mais longa na vida real do que na ficção.
PRÓLOGO
VÉSPERA DO DIA DOS NAMORADOS
Quando o Dia dos Namorados estica a sua cabecinha açucarada e em
forma de coração, existem dois tipos de pessoas que o recebem.
Primeiro, há aqueles que adoram completamente o dia, os românticos
incuráveis obcecados com a ideia do próprio amor. Essas pessoas acreditam
no destino e em almas gémeas e na noção de que o universo envia bebés
alados, praticamente nus, para atirarem flechas contra pessoas solteiras
específicas, infetando-as, assim, com um amor verdadeiro que pode causar
entorpecimento e um extraordinário «felizes para sempre».
Depois, temos os cínicos, aquelas almas rabugentas que lhe chamam o «dia
dos cartões-postais» e que se queixam de que, se o amor verdadeiro existe, as
suas declarações deviam ser expressas espontaneamente num qualquer dia
aleatório e sem a expectativa de presentes.
Bem, eu não sou nenhuma dessas pessoas — e, ao mesmo tempo, sou
ambas.
Acho, de facto, que o Dia dos Namorados é um dia de cartões-postais
supercomercial, mas também acho que não há mal nenhum em desfrutarmos
dos efeitos secundários materialistas da celebração. Tragam os chocolates e as
flores e, já agora, juntem um cheque-prenda da livraria local.
E, sim, acredito na existência do amor verdadeiro. No entanto, tenho fortes
suspeitas de que o destino, as almas gémeas e o amor à primeira vista são
conceitos criados pelas mesmas pessoas que ainda esperam que o Pai Natal
lhes traga aquele cachorrinho que pediram quando tinham sete anos.
Por outras palavras, espero sem qualquer dúvida ter amor na minha vida, mas
nem pensem que vou ficar sentada à espera de que o destino faça com que isso
aconteça.
O destino é para os palermas.
O amor é para os que planeiam.
Os meus pais casaram-se no Dia dos Namorados ao fim de um mês de
namoro. Apaixonaram-se de imediato, louca e ardorosamente, quando tinham
dezoito anos, sem levarem em consideração os factos do mundo real, como a
compatibilidade e a diferença de temperamentos.
Embora o comportamento tolo deles tenha resultado em… bem, em mim…
também levou a anos de desentendimentos e discussões aos gritos, os quais
foram a banda sonora da minha infância antes de o relacionamento deles
acabar numa separação declarada aos berros ao lado da pequena fonte de
querubins do nosso relvado.
Contudo, a sua incapacidade de usarem a lógica perante os sentimentos
deu-me o dom da clareza, de aprender com os erros deles. Em vez de namorar
com rapazes que me deixavam a sonhar, mas eram totalmente errados para
mim, só namoro com rapazes que cumprem os requisitos da minha folha de
prós e contras. Só saio com rapazes que no papel (ou numa folha de Excel)
têm pelo menos cinco interesses em comum comigo, têm um esboço geral do
seu plano de vida a dez anos e não se vestem como se estivessem prestes a
jogar basquetebol a qualquer momento.
E era por isso que o Josh era o namorado perfeito.
Ele cumpria cada ponto da minha lista de avaliação de pré-namorados
quando nos conhecemos e foi-se superando sempre, todos os dias, durante os
três meses em que estivemos juntos.
Portanto, quando me encontrava diante do meu closet naquela véspera do
Dia dos Namorados, a escolher a roupa perfeita para o dia seguinte, sentia-me
entusiasmada. Não em relação a bebés nus armados ou surpresas cósmicas
épicas, mas em relação aos meus planos. Tinha o dia inteiro planeado — o
presente, as palavras que diria, o momento apropriado para ambos — e seria
exatamente como eu queria que fosse.
Perfeito.
Porque é que eu iria esperar que o destino me desse uma mãozinha quando
eu tinha duas mãos perfeitamente capazes?
CONFISSÃO N.º 1
Quando eu tinha dez anos, comecei a colocar papelinhos com
confissões numa caixa no meu closet, para que, se alguma
coisa me acontecesse, as pessoas soubessem que eu era mais
do que apenas a miúda sossegada e certinha.
O PRIMEIRO DIA DOS NAMORADOS
Quando o meu alarme tocou no Dia dos Namorados, eu estava a sorrir.
Para começar, tinha de facto um namorado e, além disso, ele não era um
namorado qualquer. O Josh era inteligente e bonito e, sem dúvida, o aluno da
Secundária de Hazelwood com mais probabilidades de alcançar grande
sucesso. Sempre que estudávamos juntos e ele punha os seus óculos de aros de
tartaruga da Ivy League1, juro que o meu coração se contraía todinho,
causando a doce sensação de beliscão que disparava calor através de cada uma
das minhas terminações nervosas.
Em retrospetiva, esse sentimento era provavelmente algum tipo de defeito
atrial causado pela minha alimentação à base de café e bebidas energéticas.
Mas eu ainda não sabia disso.
Afastei as cobertas e saí da cama, ignorando o som da respiração do Logan,
que dormia de boca aberta do outro lado do colchão. O meu meio-irmão de
três anos gostava de entrar à socapa no meu quarto e dormir comigo porque
achava que eu era incrível.
E tinha razão. Porque enquanto me dirigia à minha secretária, onde a minha
agenda se encontrava aberta, eu sentia-me incrível. Cantarolei «Lover»
enquanto punha os óculos e consultava a lista do dia.
Lista de Tarefas — 14 de fevereiro
Reorganizar dossiê de planeamento para bolsa de estudo
Estudar para teste de Literatura
Lembrar mãe de enviar cópia do cartão do seguro por e-mail para gabinete
escolar
Lembrar pai das reuniões de pais e confirmar que ele as põe no calendário
Enviar e-mail para orientador de estágio
Trocar presentes com o Josh
Dizer «amo-te» ao Josh!!!!!!!!!!
Demorei-me na última, pegando na minha caneta e rabiscando corações em
redor. Nunca tinha dito aquela palavra de modo romântico antes e, dado que o
nosso aniversário de três meses caía NESTE dia, era quase como se o universo
tivesse agendado isto para mim.
Absolutamente entusiasmada, fui até à casa de banho e pus a água a correr
no chuveiro. Assim que pus a mão debaixo do fluxo de água para testar a
temperatura, ouvi:
— Em, estás quase despachada?
Irra. Revirei os olhos e pus-me debaixo do jato de água.
— Acabei de entrar.
— O Joel precisa de ir à casa de banho. — A Lisa, a mulher do meu pai,
soava como se tivesse a boca encostada à porta. — Com urgência.
— Ele não pode ir lá acima? — Deitei champô na mão e espalhei-o pela
cabeça. Eu adorava os gémeos, mas morar com crianças pequenas às vezes era
uma seca.
— O teu pai está lá.
— Dá-me dois minutos — respondi, suspirando.
Apressei-me a tomar banho, recusando-me a deixar que aquela interrupção
arruinasse o meu bom humor. Depois de me enxugar e vestir o roupão, passei
a correr pela Lisa e por um Joel todo contorcido, de volta ao meu quarto na
cave. Sequei rapidamente o cabelo demasiado encaracolado — ainda a
cantarolar canções de amor — antes de ligar o ferro e vaporizar o vinco
irritante na manga direita do meu vestido. Eu sabia que o Chris, o meu melhor
amigo, reviraria os olhos e diria que eu estava a ser hiperobcecada, mas porquê
deixar um vinco quando demorava apenas dois minutos para o eliminar?
Vesti-me e corri escada acima para comer uma barra de proteínas antes de
sair para a escola. Enquanto rasgava o invólucro, os meus olhos ficaram presos
na travessa de tarte que estava ao lado do micro-ondas, como a encarnação da
tentação. Sim, o pedaço que restava da tarte de mousse de chocolate teria um
sabor incrível, pensei enquanto dava uma grande dentada na barra de manteiga
de amendoim e soro de leite, mas uma fatia de açúcar e hidratos de carbono
não era uma boa forma de começar o dia.
Desviei o olhar da sobremesa de chocolate e concentrei-me em mastigar a
barra de proteínas seca.
— Deus do Céu, mais devagar. — O meu pai estava sentado à mesa a ler o
jornal e a tomar café, tal como fizera todos os dias da minha vida. A cor do
seu cabelo era vermelho-fogo, o original potente da minha desmaiada versão
castanho-acobreada. Fez-me um sorriso malandro e disse: — Ninguém aqui
sabe fazer a manobra de Heimlich.
— Isso não é, tipo, um requisito para os pais ou algo do género? Como é
que tu e a Lisa têm filhos e não sabem fazer a manobra de Heimlich?
Ele olhou diretamente para a minha boca demasiado cheia.
— Fomos tolos e ousámos pensar que a nossa prole não iria sorver a
comida como porcos.
— Sabes o que acontece quando se perde muito tempo a pensar, certo?
— Sim. — Ele piscou-me o olho e voltou para o jornal. — Morre um
burro.
— Oh, vá lá, vocês os dois. — A Lisa entrou na cozinha com o Logan
numa anca e o Joel na outra. — Podemos, por favor, não ser ofensivos diante
dos bebés?
— Eles não estavam aqui — argumentei eu com a boca cheia — durante a
conversa.
— E, tecnicamente — acrescentou o meu pai, piscando-me de novo o olho
—, «burro» não é ofensivo. É um animal.
Esbocei um sorriso enquanto a Lisa olhava para mim como se desejasse
que eu desaparecesse.
Eu dividia o tempo entre a casa da minha mãe e a do meu pai desde que
eles se tinham divorciado quando eu estava no ensino básico, mas ainda era
apenas um empecilho nómada. Em ambas as casas. Para ser justa, a Lisa não
era o estereótipo da madrasta má. Era educadora de infância, fazia o meu pai
feliz e era uma mãe muito boa para os rapazes. Eu é que me sentia sempre
como se a estivesse a atrapalhar.
Agarrei na minha mochila e nas chaves do carro, disse-lhes adeus e corri
para a porta.
O sol estava luminoso, embora o ar fosse gelado e tivesse caído um pouco
de neve durante a noite, mas, ao que parecia, o meu pai já tinha raspado as
janelas do carro. Ouvi o meu telemóvel a tocar no fundo da mochila e tirei-o
mesmo a tempo de ver que o Chris me estava a ligar através do FaceTime.
Atendi e ali estavam os meus dois amigos mais próximos, a sorrir para mim
diante dos cacifos vermelhos do corredor do 11.º ano. Sorri para o ecrã
estalado do meu telemóvel ao ver os meus rostos favoritos no mundo inteiro.
A Roxane tinha tez castanho-escura, maçãs do rosto bem definidas e o tipo
de pestanas que as mães suburbanas tentam imitar com extensões, enquanto o
Chris tinha olhos castanhos com pálpebras pesadas, uma pele de porcelana
impecável e uma cabeleira preta encaracolada absolutamente perfeita. Se não
fossem seres humanos genuinamente incríveis, seria difícil não os odiar pela
sua beleza.
— Já estão na escola? — perguntei.
— Sim, e adivinha o que acabámos de ver — disse o Chris, agitando as
sobrancelhas.
— Quero ser eu a contar — pediu a Rox, colocando-se diante dele no ecrã.
— Fui eu que vi, portanto conto eu. — O Chris empurrou-a para a tirar da
sua frente. — O Josh já chegou e eu vi-o a meter um presente no cacifo dele.
Soltei um gritinho e bati palmas antes de entrar na velha furgoneta Astro,
que o meu pai insistia que «tinha personalidade».
— Grande ou pequeno?
— Médio — disse o Chris.
— O que é bom, porque muito grande significa apenas um animal de
peluche da treta, e muito pequeno significa um cupão para abraços grátis.
Médio é bom. Médio é o sonho — acrescentou a Rox.
Ri-me. O entusiasmo deles deixava-me feliz porque, até há pouco tempo,
eles eram anti-Josh. Diziam que ele agia como se fosse melhor do que todos os
outros, mas eu sabia que era apenas porque não o conheciam bem. Ele era tão
inteligente e confiante que às vezes isso era mal interpretado como arrogância.
Provavelmente, isto significava que eles estavam a reconsiderar as suas
opiniões.
O namorado da Rox, o Trey, apareceu atrás deles e acenou. Acenei em
resposta antes de desligar, pousei o telemóvel, pus a furgoneta a trabalhar e
acelerei para a escola. A voz do Finneas soava docemente pelas colunas e eu
cantei a plenos pulmões cada palavra de «Let’s Fall in Love for the Night».
Mal podia esperar para ver o Josh. Ele recusara-se a dar-me qualquer pista
do que o meu presente era, portanto eu não fazia ideia do que esperar. Flores?
Joias? Embora me tivesse custado dois salários inteiros do café, eu comprara-
lhe a bracelete Coach que ele queria para o relógio. Sim, agora eu estava sem
dinheiro, mas ver o rosto dele a iluminar-se quando abrisse o presente faria
com que valesse a pena.
O meu telemóvel vibrou no banco do passageiro e, no primeiro sinal
vermelho, dei-lhe uma olhadela.
Josh: Feliz DN. Já chegaste? O que queres primeiro: poema ou
presente?
Poema, sem dúvida.
Sorri, e o semáforo ficou verde. Enquanto eu atravessava o nosso bairro
suburbano, a música no rádio (a minha furgoneta antiquada nem sequer tinha
ligação Bluetooth) mudou para algo com muitos gritos e metal, por isso comecei
a procurar uma música digna daquele dia importante.
Billy Joel? Não.
Green Day? Negativo.
Adele? Hum… é capaz de funcionar…
Olhei para o painel de instrumentos para aumentar o volume e depois ergui
os olhos mesmo a tempo de ver que a carrinha à minha frente tinha parado de
repente. Pisei no travão, mas, em vez de parar, os meus pneus bloquearam e
comecei a derrapar. Merda, merda, merda!
Não havia nada que eu pudesse fazer. Bati na traseira da carrinha. Com
força. Preparei-me para o carro atrás de mim me bater, mas, felizmente, ele
parou a tempo.
Quase sem respirar, olhei pelo para-brisas e vi que o meu capô estava
totalmente amolgado. A pessoa que conduzia a carrinha estava a sair para a
rua, o que, com sorte, significava que estava bem. Peguei no telemóvel, abri a
porta e saí para ver os estragos.
— Estavas a mandar mensagens, não estavas?
— O quê? — Olhei para cima e ali estava o Nick Stark, o meu parceiro de
laboratório de Química. — Claro que não!
Baixando os olhos para a minha mão que segurava o telemóvel, ele ergueu
uma sobrancelha.
Quais eram as hipóteses de eu ter batido em alguém que conhecia? E não
só alguém que conhecia, mas alguém que nunca parecera gostar muito de mim.
Quero dizer, tecnicamente ele nunca fora uma besta comigo, mas também
nunca fora simpático.
No primeiro dia de Química, quando me apresentei, em vez de dizer
«Muito prazer» ou «Sou o Nick», limitou-se a fitar-me durante alguns segundos
antes de dizer «Está bem» e voltar a olhar para o telemóvel. Quando entornei
acidentalmente a minha bebida energética na nossa mesa de laboratório, há
alguns meses, em vez de dizer «Não há problema», como um ser humano
normal, quando me desculpei, o Nick Stark olhou fixamente para mim e, sem
sorrir, disse: «Talvez devesses deixar a cafeína.»
O tipo era uma espécie de enigma. Eu nunca o tinha visto fora da escola e,
que eu soubesse, ele não tinha nenhum grupo de amigos. Embora
estivéssemos no 11.º ano, eu ainda não tinha informações suficientes para
saber como o classificar.
E detestava isso.
— Tu é que paraste no meio de uma rua movimentada — disse eu.
— Havia um esquilo a atravessar a estrada — respondeu ele quase a rosnar.
— Ouve, Nick. — Respirei fundo, encontrei o meu mantra mental, Tu tens o
controlo, tu tens o controlo, e consegui dizer: — Não culpes…
Os olhos dele semicerraram-se.
— Desculpa. Tu és?…
Cruzei os braços e franzi os meus olhos.
— Estás a falar a sério?
— Andas em Hazelwood?
— Sou a tua parceira de laboratório. — Ele estava a gozar comigo? Era
verdade que o tipo nunca dizia nada além da ocasional resposta monossilábica,
mas ainda assim. — Partilhámos uma mesa em Química o ano inteiro?… Isso
diz-te alguma coisa?
— És tu? — Os olhos dele percorreram o meu rosto como se não tivesse a
certeza se acreditava em mim ou não.
— Sim, sou eu! — Eu estava a perder a calma porque tinha grandes planos
para o dia e este gajo mal-humorado estava a impedir-me de fazer com que o
meu Dia dos Namorados perfeito acontecesse.
E, além disso, não se lembrar de mim… A sério?
— Tens seguro, certo? — disse ele.
— Isto é incrível — murmurei, olhando para a velha carrinha vermelha
dele, que não parecia estar pior na parte de trás do que em todo o resto da
carroçaria. — Não parece haver nenhum dano. Deste lado, pelo menos.
— As informações do seguro, por favor. — Ele estendeu a palma da mão e
esperou. Apeteceu-me empurrá-lo pela sua atitude de superioridade como
condutor, mas ele era muito mais alto do que eu e tinha ombros largos que
pareciam não ceder facilmente.
Então, em vez disso, inclinei-me para dentro da furgoneta e peguei na
minha mochila, que estava no assento, antes de abrir o porta-luvas e retirar o
pequeno dossiê que montara no dia em que recebera a furgoneta. Abri a
divisória amarela — a secção «Em Caso de Acidente» — e tirei o cartão do
seguro da sua capa protetora.
Ele pegou nele e os seus olhos estreitaram-se.
— Tu guardas isto num caderno?
— Não é um caderno, é um dossiê de emergência.
— E a diferença é?…
— É apenas uma forma de manter tudo protegido e organizado.
— Tudo? — Ele olhou para o dossiê e perguntou: — Tens mais o quê aí?
— Uma lista de mecânicos, empresas de reboques, instruções de primeiros
socorros… — Revirei os olhos e disse: — Queres mesmo que eu continue?
O Nick fitou-me por uns bons cinco segundos, antes de murmurar algo que
soou como «Porra, não». Depois, pegou no telemóvel e tirou uma foto do
cartão do seguro. A seguir, insistiu em chamar a polícia quando a minha
furgoneta começou a deitar fumo. Tentei convencê-lo de que dava para
conduzir — eu precisava de chegar à escola para ouvir o meu poema, caramba
— até o motor começar a arder e os bombeiros terem de o apagar.
Irra, o meu pai ia matar-me.
E depois a minha mãe ia desfazer o meu cadáver até não sobrar nada.
E eu não ia ter tempo para ouvir o poema do Josh até ao intervalo.
— Toma. — O Nick aproximou-se de mim, vindo da sua carrinha, e
estendeu-me um casaco. — Sei que não combina com a tua roupa, mas é
quente.
Quis recusar, porque o culpava por este desastre, mas estava com frio. O
meu vestido Ralph Lauren clássico em tecido Oxford cor-de-rosa era
demasiado bonito para ser coberto por um casaco, mas isso fora antes de eu
estar parada ao frio, a ver o meu veículo a transformar-se numa fogueira.
— Obrigada — respondi, vestindo o blusão verde-tropa que quase me
chegava aos joelhos.
O Nick cruzou os braços e examinou o cenário em que os bombeiros
limpavam os destroços.
— Pelo menos já tinhas uma lata velha.
— Acho que queres dizer um «clássico» — retorqui, embora detestasse a
minha furgoneta esquisita. Havia algo na atitude do Nick e no facto de ele não
me ter reconhecido que me fazia querer discutir com ele.
Ele cruzou os braços e perguntou:
— Estás bem?
Ofereci-lhe um sorriso falso e respondi:
— Maravilhosa.
Olhei para o meu telemóvel. Nenhuma notificação. Nenhum dos meus pais
tinha atendido quando lhes tentei ligar, o que não era surpresa nenhuma. Eu
queria desesperadamente mandar uma mensagem ao Josh, mas a última coisa
de que precisava era de lembrar ao Nick que era capaz de ter estado distraída
quando lhe batera.
O agente da polícia chegou com alguma rapidez a seguir aos bombeiros e
foi relativamente simpático enquanto me passava uma multa que ia de certeza
deixar-me de castigo.
Bolas.
O Nick olhou para mim no momento em que o camião de reboque se
afastava com a minha furgoneta.
— Queres boleia? Quero dizer, vamos para o mesmo sítio e tu estás vestida
assim.
Olhei para as minhas pernas nuas e para as minhas botas de couro
castanho, cerrando os dentes para os impedir de baterem.
— Assim como?
— De modo ridículo.
— Ei.
Ele sorriu perante a minha expressão.
— Não estava a contestar as tuas escolhas de moda, não te preocupes. Tens
todo o ar de uma… hum… namorada de um jogador de polo. Estava apenas a
referir-me às tuas pernas nuas e ao facto de estarem cerca de sete graus
negativos na rua. Boleia? Sim?
Engoli em seco e enfiei o meu nariz congelado na gola do casaco. Cheirava
a frio e a óleo de motor.
— Hum… acho que sim.
— Estás a querer dizer «obrigada»?
Aquilo fez-me sorrir levemente.
— Muito obrigada, meu incrível salvador.
— Assim está melhor.
Subi para a carrinha dele, bati com a pesada porta e prendi o cinto de
segurança. O motor começou a trabalhar ruidosamente, ele desligou os piscas
e depois dirigiu-se para a escola. A banda furiosa que ele tinha a tocar naquele
sistema de som antiquado era horrível e o volume da música estava demasiado
alto.
— O que é isso? — Baixei a música horrível e ergui os meus dedos
congelados diante das aberturas que sopravam ar quente.
— Se te estás a referir à música, são os Metallica. Como é que não sabes
isso?
— Porque tenho bom gosto e não tenho cem anos?
Aquilo fez com que a boca dele formasse um pequeno sorriso.
— Então, qual é o teu álbum preferido quando conduzes, parceira de
laboratório?
Ultimamente, eu andava louca pelo álbum Rumours dos Fleetwood Mac, mas
encolhi os ombros e disse:
— Eu só ouço rádio.
— Pobre miúda faminta por música de qualidade.
— Neste caso seria uma pobre miúda faminta por berros ininteligíveis.
— Vá, ouve. — Ele aumentou novamente o som e sorriu para mim. — A
raiva deles faz-nos sentir bem, não achas? Sente-a, Bico de Bunsen, inspira-a.
— Estou bem assim. — Bico de Bunsen. Abanei a cabeça, mas não consegui
conter um sorriso quando a palavra «enegrecido»2 foi grunhida pelos Metallica,
enchendo toda a carrinha. — Vou apenas soprar a minha raiva, obrigada.
Ao fim de um minuto, ele baixou o volume da música e ligou o pisca
quando a escola apareceu. Moveu a mudança ao lado do volante, pondo-a em
segunda para fazer a curva, e acho que soei um pouco entusiasmada de mais
quando disse:

— Esta carrinha é um três na árvore3?


Ele franziu as sobrancelhas.
— Como é que tu sabes o que é o três na árvore?
Cruzei os braços e senti-me bem fixe.
— Eu sei muitas coisas.
A boca dele desenhou um sorriso malicioso.
— Bem, é ótimo saber isso.
Será que ele pensava que eu me estava a atirar a ele?
— Não o quis dizer dessa maneira.
Ele soltou uma pequena risada, profunda e ressonante.
Eu tinha as faces a arder quando disse:
— O meu pai tinha um carro assim. Esquece.
Ele virou para o parque de estacionamento do 11.º ano.
— E ensinou-te a conduzi-lo?
— O quê? — Baixei-me para a minha mochila e tirei o gloss.
— O carro com transmissão padrão na coluna. O teu pai ensinou-te a
conduzi-lo?
— Não. — Baixei a pala e passei o aplicador do gloss sobre os lábios,
lembrando-me de todas as vezes em que o meu pai tinha prometido que me
ensinaria, mas acabava sempre por ficar demasiado ocupado com o trabalho e
os gémeos para cumprir a sua palavra.
— É uma pena. — A carrinha derrapou quando ele virou no fim da
primeira fila. — Toda a gente devia saber conduzir com uma transmissão
manual.
Sim, deviam. Levantei a pala e visualizei na minha mente as mudanças
manuais do Porsche do meu pai, o carro-projeto de décadas que ele disse
sempre que seria meu quando o terminasse.
Terminara-o há três anos.
— A propósito, disseste aos teus pais que o teu carro ardeu? — Ele olhou
de soslaio para o meu telemóvel, como se estivesse à espera de que eu
começasse a enviar mensagens.
Olhei pela janela. O facto de nenhum dos meus pais me ter ligado de volta
era de certa forma bom, pois adiava a imensa quantidade de sarilhos em que
eu estava prestes a meter-me. No entanto, também me magoava um pouco o
facto de eles não ficarem preocupados por eu lhes estar a ligar quando devia
estar na escola. Em vez de explicar todas aquelas emoções complicadas, disse
apenas:
— Não, estou a pensar fazer-lhes uma surpresa.
— Boa decisão. — Ele estacionou num lugar cheio de neve e eu lembrei-
me de que ainda era Dia dos Namorados. Podia ter ficado sem carro e ser em
breve destruída pelos meus pais, mas dali a poucos minutos estaria com o
Josh. Ele ia ler-me poesia e dar-me o meu presente, eu ia dizer-lhe aquela
palavra mágica e tudo o resto se desvaneceria.
— Bom — disse eu, abrindo a porta depois de ele ter parado e desligado o
motor. — Tem um bom Dia dos Namorados.
— Que se lixe isso — respondeu o Nick, cuspindo as palavras como se eu
lhe tivesse desejado uma feliz castração, enquanto ele saía e batia com a porta.
— Odeio a porra deste dia.
Saí da carrinha, tirei o casaco dele e estendi-lho quando deu a volta.
— Bem, então, tem apenas um bom dia, acho.
— Certo — disse ele, atirando o casaco para a parte de trás do veículo. —
Obrigado.
1
Conjunto de universidades americanas que inclui Yale, Harvard, Princeton,
Darthmouth, Brown, Cornell, Columbia e a Universidade da Pensilvânia. (N T
)
2
Referência à canção «Blackened», dos Metallica. (N T )
3
Sistema de mudanças manuais em alguns carros americanos, os quais têm
apenas três mudanças e a alavanca que as aciona está montada na coluna da
direção (a árvore). (N T )
CONFISSÃO N.º 2
Certa vez, puxei o alarme de incêndio de um hotel porque os
meus pais ainda estavam a dormir e eu queria chegar à
Disneyland antes que houvesse fila para ver a Bela.
— Emilie, tenho aqui um bilhete que diz que precisas de ir ao gabinete
escolar. — O professor Seward, o meu professor do segundo tempo, agitou
uma autorização de saída da aula diante da cara.
— Oh. — Larguei o livro que não devia estar a ler, levantei-me e peguei na
mochila, pousada no chão ao meu lado. Estava a meio de uma cena de sexo
bastante intensa, por isso fiquei com as faces instantaneamente quentes e
senti-me como se tivesse sido apanhada a ver pornografia.
— Uuuh, a Emmie está metida em sarilhos.
Sorri para o Noah, o melhor amigo do Josh. Era um jogador de ténis que
nunca me dirigira a palavra até eu começar a namorar com o Josh, o qual, por
coincidência, eu não vira esta manhã porque eu e o Nick chegámos à escola
mesmo a tempo da primeira aula. Até agora, este dia não estava a correr como
devia.
— Já me conheces — disse eu ao Noah, enquanto enfiava o livro na
mochila, pegava na autorização e saía da aula. Senti falta do enorme casaco do
Nick Stark ao percorrer o corredor vazio. Ficara gelada desde o minuto em
que lho devolvera no parque de estacionamento. Sabia que o Josh não teria
nada de tão utilitário no seu cacifo, o seu casaco azul-marinho de malha fina
era a coisa mais quente que eu poderia lá encontrar, mas estava com tanto frio
que iria provavelmente passar por lá para o ir buscar.
Olhei para o meu telemóvel, mas a única mensagem que tinha era do meu
horrível patrão, a tentar convencer-me a ir trabalhar quando não era o meu
turno.
Não no Dia dos Namorados, chefe. Ou Bafo Nojento, que era como me referia a
ele na minha cabeça.
Soava maldosa, mas ele era realmente horrível. Era conhecido por cortar as
unhas na sala de descanso, navegar pelo Tinder enquanto trabalhava, embora
fosse casado, e nunca tinha ouvido falar do termo «espaço pessoal». Senão,
como é que eu poderia saber tanto sobre o seu hálito?
Enfiei o telemóvel no bolso do vestido, interrogando-me sobre o teor
daquela convocação para ir ao gabinete escolar. No entanto, não estava
preocupada. Tinha acabado de ser notificada, na semana anterior, de que tinha
ganhado a Bolsa Alice P. Hardy de Excelência em Jornalismo no Ensino
Secundário, portanto, tratava-se provavelmente disso.
Ainda tinha de me beliscar por a ter ganhado. Não só fora aceite no
prestigioso programa de jornalismo de verão, em que ficaria num apartamento
em Chicago e trabalharia ao lado de cinquenta outros alunos do ensino
secundário durante um mês inteiro, como também seria paga a cem por cento.
Estava superentusiasmada com o trabalho, mas estava ainda mais excitada
com quão bem isso ficaria nas minhas candidaturas à universidade. A maioria
dos meus amigos ainda não se ralava com esse assunto, mas eu ia garantir que
entrava para a faculdade da minha escolha, nem que isso me matasse.
— Olá, Emilie. — A Sra. Svoboda, a funcionária da secretaria da escola,
sorriu e fez um gesto para eu me dirigir para o gabinete de aconselhamento. —
Entra para o gabinete do Sr. Kessler. Ele está à tua espera.
— Obrigada.
Avancei e tinha levantado a mão para bater à porta semifechada do gabinete
do conselheiro quando ele exclamou:
— Aqui está ela. Entra, Emilie.
Entrei no gabinete e vi a mulher que me tinha entrevistado para a bolsa.
Estava sentada numa cadeira, a segurar uma chávena de café, e fitou-me
intensamente nos olhos.
— Oh. Hum… olá. — Não esperava vê-la ali, mas recuperei-me
rapidamente e fui cumprimentá-la com um aperto de mão firme. — É um
prazer vê-la de novo.
A mulher — a Sra. Bowen — atrapalhou-se com a minha mão e pareceu
chocada com o meu cumprimento.
— Igualmente, embora eu preferisse que nos estivéssemos a encontrar em
melhores circunstâncias.
Mesmo com aquele aviso, não antecipei nada de realmente mau. Esperava
que ela dissesse que eu precisava de mais uma referência ou que talvez fosse
imperativo terem uma foto minha o mais rápido possível.
— Oh? — Sentei-me na ponta da cadeira do canto.
— Infelizmente, houve um erro na pontuação das candidaturas à bolsa.
Chegou ao nosso conhecimento que alguns números foram adicionados
incorretamente.
A minha pulsação acelerou um pouco.
— E isso significa?…
— Significa que a Emilie, na verdade, não ganhou uma bolsa de estudo.
Parece um clichê, mas senti o sangue a fugir-me do rosto. Tipo, senti
mesmo. Vi estrelas brilhantes diante dos meus olhos e a minha audição
tornou-se difusa enquanto absorvia as ramificações da declaração dela.
Não ia para longe no verão.
Não teria nenhum programa de prestígio para exibir nas minhas
candidaturas à universidade.
Ia ser deixada para trás ao passo que o Josh participava no seu prestigioso
programa de verão.
Não ia entrar na Northwestern.
— Emilie? — O Sr. Kessler estreitou os olhos e parecia estar com medo de
que eu fosse desmaiar. Até parece. Havia uma centena de coisas que eu queria
fazer naquele momento, na sua maioria, violentas, mas desmaiar não era uma
delas.
Prendi o cabelo atrás das orelhas e esforcei-me para apresentar um sorriso
educado.
— Então, essa é a classificação final confirmada?
Os lábios da Sra. Bowen curvaram-se para baixo e ela assentiu com a
cabeça.
— Lamentamos imenso.
— Bem… — Encolhi os ombros e sorri. — A senhora não pode fazer
nada, certo? Estas coisas acontecem. Agradeço a oportunidade.
A mulher inclinou a cabeça, como se não pudesse acreditar que eu não me
estava a passar. Acredite em mim, senhora, aprendi que passar-me nunca muda nada.
— Não me posso desculpar o suficiente, Emilie — acrescentou ela.
— Eu compreendo. — Pigarreei e levantei-me. — Obrigada por me avisar.
Saí de cabeça erguida e fui direito à casa de banho. Detestava chorar, mas
havia uma enorme bola de devastação mesmo no centro do meu esterno que
ameaçava deitar-me abaixo se eu não tirasse um minuto.
Mandei uma mensagem para os meus pais e nenhum deles respondeu.
Era tão indigno estar sentada totalmente vestida numa sanita a chorar, mas
isto era um golpe enorme. Tudo pelo que eu trabalhara podia ter-me sido
arrancado das mãos.
O que se passava era que quando o assunto da faculdade fora abordado
pela primeira vez após o divórcio, os meus pais tinham deixado bem claro que
se eu planeasse ir para uma faculdade distante de casa teria de arranjar bolsas
de estudo. A dissolução do casamento deles causara aparentemente estragos
nas suas poupanças — com todas as lutas através de advogados e tal —,
portanto não havia nada reservado para a minha educação.
Levei aquilo a sério e dediquei-me à excelência educacional. Desde aquela
conversa fatídica, só tirei vintes, comecei a escrever para o jornal da escola e
fiz o ACT4 cinco vezes, embora a minha pontuação tivesse sido exemplar na
primeira vez.
Afinal, cada pontinho contava.
Mas para ir para um sítio como a Northwestern — a universidade dos meus
sonhos — sem ter os meus pais a financiar a excursão, eu precisava de
perfeição. Atividades extracurriculares impecáveis, cartas de recomendação e
uma infinidade de horas de voluntariado. Eu precisava de tudo.
E mesmo com tudo isso, ainda podia ficar aquém.
A outra coisa que eu não gostava de admitir a mim mesma era que não
queria que o Josh me vencesse. Tínhamos a mesma média — a mesma média
ponderada de 17,6 — e irritava-me quando ele ficava à frente. Eu não
aguentava o ar presunçoso com que ele se punha quando estava a ganhar e,
quando o Josh se estava a sair melhor do que eu, afeto não era o sentimento
que me percorria.
Passei mais alguns minutos a controlar as minhas emoções antes de enxugar
os olhos e me levantar. Era o Dia dos Namorados, caramba. Ia absorver cada
minuto glorioso desta data e não pensar no resto até amanhã.
Havia mais dois eventos escritos a vermelho na minha lista de tarefas —
troca de presentes e dizer aquela grande palavra. Ia dedicar-me a cumprir esses
pontos e esquecer o resto.
4
Um dos exames de admissão à universidade nos Estados Unidos. (N T )
CONFISSÃO N.º 3
Tenho um documento de identificação falso perfeito.
Entre as aulas, parei junto do cacifo do Blake, um amigo do Josh, para lhe
perguntar se tinha visto o meu namorado. Ainda não tinha estado com ele em
pessoa no Dia dos Namorados e precisava desesperadamente de ver o rosto
dele. Não havia maneira de termos o dia perfeito que eu planeara se não
estivéssemos juntos.
O Blake estava encostado à parede a mandar mensagens quando lhe
perguntei:
— Viste o Josh? Ele costuma estar na sala de estudo entre as aulas, mas não
o vejo em lado nenhum.
— Não. — Ele olhou por cima da minha cabeça, parecendo, como sempre,
que nem sequer me tinha visto. Nunca percebi se o Blake me detestava ou se
eu o assustava, o que me irritava. O Chris dizia sempre que eu tinha problemas
sérios por precisar de que as pessoas gostassem de mim e sempre achei que ele
estava enganado, exceto quando me encontrava na presença do Blake.
— Não faço ideia de onde ele está — disse ele.
— Oh. Bem, obrigada. — Afastei-me e senti-me tola apenas por existir. O
Blake era um daqueles tipos que nos faziam sentir assim.
Conheci o Josh quando fomos os dois selecionados para sermos tutores do
Laboratório de Matemática. Chegámos ao gabinete do conselheiro exatamente
no mesmo minuto e eu quase engoli a língua quando ele sorriu e segurou a
porta para eu passar. Eu sabia quem ele era, mas quem não sabia?
O Josh era o It boy do grupo de excelência educacional.
Não só era muito parecido com aquele ator lindo cujo nome se escreve
Timothee com dois EE, como também tinha toda a sua vida organizada.
Clube de Debate, Clube de Liderança e Empreendedorismo, Julgamentos
Simulados — ele não estava apenas nessas atividades, ele era o melhor em
todas.
E sabia disso.
O Josh tinha a arrogância confiante de alguém que tinha a certeza absoluta
de que sabia mais do que todos os outros na sala. Fazia casualmente
referências a Shakespeare e a Steinbeck quando discutia coisas quotidianas,
podia ser encontrado muitas vezes a conversar com professores em salas de
aula vazias durante os intervalos e vestia-se como se já fosse um professor
universitário, incluindo os acessórios em couro verdadeiro.
Fui sugada pelo seu sorriso, mas foi a sua capacidade de analisar
minuciosamente Tito Andrónico que me fez apaixonar por ele. A maioria das
pessoas não tinha lido a minha peça favorita (e a mais brutal) de Shakespeare,
mas também era a favorita dele. Conversámos por uns bons vinte minutos
sobre Tito e Tamora e a paisagem infernal que fora a Roma patriarcal, e ele era
tão perfeitamente perfeito para mim que eu arrisquei. Sorri e perguntei se ele
queria estudar comigo no Starbucks depois da escola.
Tivera de ligar para o trabalho a dizer que estava doente para que isso
pudesse acontecer, mas soubera que valeria a pena. Porque, em todos os
sentidos, o Josh era o tipo perfeito para mim.
Ia desiludida a caminho do meu cacifo quando tive uma ideia. E se eu
deixasse o presente do Josh no banco da frente do carro dele? O professor
Carson deixava-o geralmente sair da sala de estudo para ir buscar café na hora
seguinte, e assim eu não teria de ficar ali a sentir-me desconfortável enquanto
ele abria o presente, porque não estaria lá. E mal ele visse o presente incrível
que eu lhe dera apressar-se-ia a procurar-me para me dar o meu.
Escapuli-me pela porta lateral e dirigi-me para o carro dele, um MG
desportivo de 1959 que ele restaurara com o pai e que adorava mais do que a
própria vida. Fazia com que se sentisse muito James Bond. Só que, quando me
aproximei — suficientemente perto para tocar no enfeite do capô —, vi…
O quê? Semicerrei os olhos contra o sol luminoso de fevereiro e olhei pelo
para-brisas. O Josh estava no carro, sentado atrás do volante, mas não estava
sozinho.
Estava virado para alguém no banco do passageiro. Tudo o que eu
conseguia ver através do reflexo do vidro eram uns longos cabelos loiros, os
quais eram a característica definidora da Macy Goldman, a rapariga
incrivelmente linda com quem ele namorara antes de mim. O motor começou
a trabalhar, o que me fez literalmente dar um salto enquanto estava ali parada a
olhar.
Senti o estômago pesado, mesmo dizendo a mim mesma que eles eram
apenas amigos. Ele ia buscar café, ela provavelmente também queria café e ia
com ele para o ajudar a trazer tudo.
Estava prestes a aproximar-me e a bater na janela quando aconteceu. Ali
estava eu com aquela caixa na mão, aquela caixa embrulhada em papel de
embrulho vermelho-vivo, quando ela se inclinou mais para ele e levou as mãos
ao seu rosto.
Paralisada, observei enquanto ela envolvia as faces dele com as palmas das
mãos, beijando-o depois. Senti a respiração a ficar-me presa no peito à medida
que o momento se prolongava — Afasta-a, afasta-a, por favor, Josh —, e então…
Então.
Enquanto eu estava ali no parque de estacionamento gelado, com o
presente do Josh na mão, ele retribuiu o beijo da Macy.
— NÃO!
Só percebi que tinha dito aquilo em voz alta quando as cabeças deles se
separaram bruscamente e os dois olharam para mim. O Josh abriu
imediatamente a porta, mas eu não ia ficar ali para conversar. Virei-me e voltei
para o edifício.
— Em, espera!
Eu podia ouvir os passos dele e depois a mão dele agarrou-me o braço,
detendo-me. Ele virou-me e eu pestanejei para conter as lágrimas, conseguindo
dizer:
— O que queres?
O Josh passou a mão pelo cabelo, parecendo confuso.
— Ela é que me beijou, Em! — A respiração dele saía em nuvens diante do
seu rosto à medida que falava rapidamente. — Tenho a certeza de que pareceu
horrível, mas juro pela minha vida. Ela é que me beijou.
Ele também tinha lágrimas nos olhos e eu queria dar-lhe um soco na boca.
Devia estar a dizer-lhe que o amava, mas era o gloss dela que ele tinha na boca.
— Tens de acreditar em mim, Em.
— Fica longe de mim — disse eu por entre dentes cerrados, virando-me e
deixando-o para trás no estacionamento.
CONFISSÃO N.º 4
Certa vez, enfiei um mata-moscas na ventoinha oscilante de um
vizinho, só para ver o que acontecia. A ventoinha explodiu.
Só depois de fingir que estava prestes a vomitar — incluindo tapar a boca e
correr para a casa de banho — é que convenci a enfermeira a assinar uma
autorização para me deixar ir para casa.
E só depois de receber a autorização é que me lembrei de que não tinha
carro.
Então, além de tudo o resto, ia ter de voltar para casa a pé. Estavam cinco
graus negativos lá fora e havia neve no chão, mas eu ia arrastar-me pelo meio
de montículos de neve de botins e com um vestido em estilo camiseiro.
O Nick Stark tinha razão. Eu estava vestida de modo ridículo.
Enfiei a autorização na mochila e estava prestes a sair do edifício quando
ouvi chamar.
— Emilie!
Virei-me e ali estava a Macy Goldman a caminhar na minha direção. Queria
ignorá-la, ou talvez puxar-lhe o cabelo, mas uma parte retorcida de mim queria
ouvir o que ela tinha para dizer.
— Ouve. — Ela correu para junto de mim, ofegante, e disse: — Só quero
que saibas que o Josh não está a mentir. Íamos buscar café e estávamos só a
conversar no carro dele e fui eu que me inclinei e o beijei. Não se passa nada
entre nós.
Arrependi-me de a ouvir, porque de perto ela era ainda mais bonita do que
ao longe.
— Fui eu — disse ela. — Ele não fez nada de errado.
— Pois. — Senti-me surpreendentemente entorpecida, enquanto ela olhava
para mim com uma expressão nervosa. — Ainda gostas dele, então?
Ao ouvir aquilo, ela ficou com um ar superdesconfortável. Apertou os
lábios antes de falar.
— Bem, quero dizer…
— Esquece. — Abanei a cabeça, subitamente exausta com tudo. — Não
interessa.
— Interessa sim, porque o Josh…
— Não posso falar contigo agora. — Virei-me e saí do edifício.
Queria um amor que fosse melhor do que o amor dos meus pais, algo que
fosse feito para durar. Um amor que não terminasse com os vizinhos a chamar
a polícia, como quando a minha mãe partiu a cabeça da estátua do Cupido e a
atirou ao meu pai. No entanto, sentia-me agora tão desolada como nesse dia
terrível.
Comecei a caminhar para casa, tentando controlar-me enquanto o vento de
inverno me fustigava o rosto. Graças a Deus, o meu pai morava no bairro
seguinte; mais longe e uma queimadura do frio poderia ter sido outra surpresa
para eu adicionar a este estrondoso Dia dos Namorados.
O meu telemóvel vibrou e tive vontade de gritar quando vi que era outra
vez o meu chefe. Eu ajudava-o sempre quando mais ninguém ajudava, por isso
ele ligava-me sempre, porque sabia que eu não conseguia dizer que não. Guardei
o telemóvel sem atender.
Quando cheguei finalmente a casa, fiquei surpreendida por ver o carro do
meu pai na garagem. Ele estava habitualmente a trabalhar àquela hora do dia.
Destranquei a porta da frente e fui até à sala.
— Olá! Pai?
Ele espreitou pela porta do escritório.
— Ei, pequenota; porque é que estás em casa?
— Hum… senti-me maldisposta.
— Estás bem?
Assenti com a cabeça, embora não estivesse nada bem. Era o dia em que
tudo devia acontecer a meu favor. Pela primeira vez, em vez de comemorar
tristemente o aniversário da divisão da minha família em duas unidades
separadas, eu esperava sentir a excitação e dizer a palavra. Tinha feito o
trabalho de casa, tinha encontrado o rapaz perfeito e o dia de hoje estava
marcado para o amor.
Agora, no entanto, parecia que eu ia terminar o dia sem dizer ou ouvir
aquela palavra. Ia provavelmente terminá-lo com dores de barriga, soterrada
debaixo de uma pilha de invólucros de Snickers.
Talvez devesse pegar na minha agenda e adicionar isso à minha lista de
tarefas.
— Bem, até estou contente por estares aqui, porque quero falar contigo
sobre uma coisa antes de os rapazes chegarem a casa.
— Está bem…
— Senta-te. — Ele fez um gesto para que eu entrasse no escritório e,
quando o fiz, sentou-se no sofá, dando uma palmadinha no lugar ao seu lado.
— Não sei como te dizer isto.
Quantas vezes é que uma pessoa podia ouvir aquilo num dia?
— Diz apenas. — Sentei-me ao lado dele, fechei os olhos e imaginei o Josh
a beijá-la. À Macy Goldman. — Não pode ser assim tão mau.
Ele soltou um suspiro.
— Recebi uma promoção, mas isso implica mudarmo-nos para Houston.
Os meus olhos abriram-se.
— No Texas?
— No Texas.
— Oh. Uau. — A cidade de Houston ficava a cerca de quinze horas de
Omaha.
Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, ele acrescentou:
— Depois de muita reflexão, decidi aceitar o emprego.
As palavras dele foram um soco no estômago. Como é que a minha
custódia de cinquenta por cento ia funcionar no outro lado do país? Inspirei
tremulamente.
— Decidiste?
— Sim. — Ele ofereceu-me um sorriso largo e genuíno, como se estivesse
entusiasmado com a notícia e nada preocupado por eu não partilhar do seu
enorme entusiasmo. — É uma grande oportunidade, e tu sabes que toda a
família da Lisa é de Galveston, por isso seria bom para os rapazes ficarem mais
próximos dos avós. Tu vais para a faculdade em breve, portanto, na verdade,
não te vai afetar assim tanto.
— Daqui a um ano e meio. Vou para a faculdade daqui a um ano e meio. —
Pigarreei e afundei-me um pouco mais no sofá, tentando não parecer
emocionada quando perguntei: — Quando é que se mudam?
— No próximo mês. Mas eu e a tua mãe conversámos sobre isto e achamos
ambos que, como já tens dezasseis anos, já tens idade para decidir o que queres
fazer.
Eu tinha a cabeça a girar.
— Como assim?
— Bem, como vais terminar o secundário no próximo ano, tenho a certeza
de que não te queres mudar e ir para uma escola nova. Falámos sobre isso sem
discutir, o que é surpreendente, eu sei, e chegámos à decisão de que podes
ficar aqui com ela até ires para a faculdade, se for isso que queres.
— Qual é a minha outra opção?
Ele pareceu surpreendido com a minha pergunta, provavelmente porque
sabia como eu gostava do Josh, dos meus amigos e da escola.
— Bem — começou ele, passando a mão pelo topo da cabeça —, podes vir
para o Sul connosco. Apenas assumi que essa não seria a tua escolha.
Pestanejei rapidamente e senti-me um pouco sufocada, como se tivesse
ondas a passar por cima do meu nariz e não conseguisse recuperar o fôlego. O
meu pai e a sua nova família perfeita iam mudar-se para o Texas. E ele não
tinha quaisquer escrúpulos em me deixar para trás.
Como é que ele podia sequer considerar mudar-se para o outro lado do país
sem mim? Em sua defesa, a dinâmica entre mim e os meus pais era tão
disfuncional que ele provavelmente não fazia ideia do quanto significava para
mim.
Fui sempre uma «boa» menina, o tipo de criança com quem os pais não
precisam de se preocupar. Os meus trabalhos de casa estavam sempre feitos,
eu nunca respondia torto, seguia sempre as regras e concordava alegremente
com o que toda a gente queria. Numa família nuclear normal esse tipo de coisa
deixaria os pais orgulhosos, certo?
Mas numa família como a minha tornava-me fácil de esquecer.
O meu pai pós-divórcio tinha uma casa nova, uma esposa nova e dois
pequenotes novinhos em folha; uma vida mais do que plena. E a minha mãe
pós-divórcio tinha uma casa nova, um marido novo, um puggle5 que ela tratava
como um bebé e uma nova carreira brilhante que consumia mais tempo do
que uma verdadeira criança humana. Então, o que sobrava para mim era
desempenhar o infeliz papel de ser as sobras do casamento anterior dos dois,
limitando-me a ir e vir entre as casas de ambos, aparecendo nos meus dias
designados pelo tribunal e, de alguma forma, deixando-os surpreendidos com
a minha presença.
Não consigo contar as vezes que entrei na casa de um deles e ouvi dizer:
«Oh, pensei que estavas na casa do teu pai/da tua mãe hoje.» Também não
consigo contar quantas reuniões de pais e consultas de dentista foram perdidas
porque cada um deles presumiu que era o outro que me iria levar. Ou as vezes
em que fiquei em casa da minha avó sem dizer a nenhum deles e nunca
ninguém ligou para saber onde eu estava.
Eu era tão boa que os meus pais não precisavam de se preocupar comigo.
Portanto, não o faziam.
Mesmo.
Dito isto, eles estavam longe de serem parecidos. A minha mãe era
motivada, com um M maiúsculo. Para ela só o trabalho contava, o tempo todo,
e parecia pensar que o seu papel principal como mãe era garantir que eu agisse
exatamente da mesma maneira. O meu pai, por outro lado, era engraçado,
tranquilo e docemente preocupado comigo quando não estava distraído com a
sua encantadora vida nova. Quando estávamos juntos, ainda éramos a mesma
dupla unida de pai e filha de sempre. Eu adorava o meu pai.
O problema era que ele às vezes esquecia-se de mim se eu não estivesse
mesmo à sua frente.
Ele estava a olhar para mim com atenção, claramente à espera da minha
resposta. Será que uma pequena parte dele queria que eu fosse com ele? Ou… será que
uma pequena parte dele queria que eu NÃO fosse com ele? Encolhi os ombros e
esforcei-me por sorrir.
— Vou precisar de pensar um pouco sobre isso.
Ele concordou com a cabeça e mudou de conversa, passando para o meu
carro destruído. Tinha visto a minha mensagem ao almoço, mas a essa altura já
era demasiado tarde para me ligar. Ouvi o seu sermão sobre prestar atenção e
ir demasiado perto do carro da frente, mas tudo em que conseguia pensar era
no facto de que teria de memorizar a sensação de quando o meu pai chegava a
casa todos os dias para não me esquecer de como era.
Tudo em que conseguia pensar era no facto de ele não ter absolutamente
nenhum problema em me deixar para trás. Com a mulher de quem se
divorciara e com quem dissera ser «impossível viver».
Fui para o meu quarto e liguei para a minha avó.
— Estooou?
— Olá, avó. — Funguei e tentei conter tudo dentro de mim. Tinha a
sensação de que, se me deixasse ir por um segundo, nunca mais seria capaz de
parar de chorar. — Eu… eu preciso de ir para aí. Podes vir buscar-me?
— Estás na escola?
— Não. — Olhei pela janela e notei que o sol tinha desaparecido atrás das
nuvens e o céu estava cinzento-escuro. — A enfermeira mandou-me para casa
mais cedo. Estou em casa do pai.
Ela fez um ruído.
— Estás doente?
Coloquei os braços em redor do corpo.
— Não. Vi o Josh a beijar outra pessoa, e então fingi vomitar. Tinha de sair
de lá.
— Aquele idiota chapado. Estou a caminho.
Doze minutos depois, a minha avó parou o seu Mustang de 1969 na entrada.
Eu sabia que era ela sem sequer olhar, porque o seu amado muscle car6
customizado, completamente preto, roncava como uma besta motorizada. Subi
as escadas a correr.
— Vou para casa da avó Max.
O meu pai olhou para o meu rosto e soube que eu estava perturbada.
— Quando voltas para casa?
Apanhei a minha mochila do chão.
— Ela disse que eu posso dormir lá.
A Lisa saiu da cozinha parecendo irritada; eu nem sequer a tinha ouvido
chegar a casa.
— Mas acabei de pôr o frango no forno.
— Ah, obrigada. Eu aqueço-o amanhã.
Ela franziu a testa e deitou um olhar ao meu pai antes de eu escapar pela
porta.
5
Raça de cães que é uma mistura de pug com beagle. (N T )
6
Variedade de carros americanos potentes, fabricados entre 1960 e 1970.
(N T )
CONFISSÃO N.º 5
A minha avó ensinou-me a queimar pneu com o carro dela
quando eu tinha catorze anos.
— A sopa está pronta daqui a vinte minutos.
— Parece-me bem. — Deitei-me no sofá de veludo, envolta na tristeza e no
cheiro a sopa, e fitei a televisão. — Obrigada.
— Sabes uma coisa, querida? — disse a minha avó, atravessando a sala com
uma manta e colocando-a sobre as minhas pernas. — O teu valor é maior do
que o que o Josh ou qualquer outro rapaz pensa.
— Eu sei. — Mas não era verdade. Não queria ouvi-la a ser amável quando
a realidade era que eu não era o suficiente para o Josh.
Ele mandara-me cinco mensagens desde que eu saíra da escola.
Podemos falar?
Já te foste embora?
Vai ter comigo ao meu cacifo depois das aulas. Por favor?
Vou para a biblioteca agora, mas não fiz nada de mal, Em. Isto
não é justo.
Agora estou chateado. Liga-me.
Eu estava demasiado desfeita para formular palavras e frases em resposta às
mensagens dele. Sempre que tentava — e tentava a cada cinco minutos, mais
ou menos —, acabava a chorar e a vê-lo a beijar a Macy.
— Às vezes, não entendo porque é que não abres a boca e dizes as palavras
que tens na língua — disse a minha avó, dirigindo-se à cozinha e baixando o
lume do fogão. — Eu tenho o privilégio de te ouvir a libertar a tua raiva, e os
outros também deviam ter. Tu não és o ratinho que quer agradar a toda a
gente que finges ser. Arrasa algumas cidades com a tua raiva! — O discurso
dela era pontuado com movimentos agressivos enquanto mexia a sopa.
— O que queres que eu faça, avó? Que descarregue nas pessoas?
— Um pouco, sim. — Ela olhou para mim por cima do ombro e disse: —
Para de te preocupar em fazer toda a gente feliz.
— Não sou boa nisso como tu. — A avó Max era feroz e absolutamente
incapaz de perder uma discussão. — É mais fácil dizer o que as pessoas
querem ouvir.
Ela tirou duas tigelas do armário e começou a enchê-las de sopa.
— Mas isso não te consome por dentro?
Encolhi os ombros. O meu interior já estava retalhado, independentemente
de como ficara assim. Pensei no Josh e senti o meu coração a ficar literalmente
mais pesado no meu corpo. Porque se ele não era compatível comigo, o que é
que eu sabia sobre o amor? Ou sobre o que quer que fosse? Tinham passado
horas desde que eu saíra da escola e achei que devia estar a encontrar alguma
perspetiva, mas, em vez disso, sentia-me vazia.
Deixei a manta no sofá, dirigi-me para a mesa e sentei-me ao lado da minha
avó, pensando na mais recente e terrível decisão que tinha de tomar. Sentara-
me nesta mesa com ela centenas de vezes. Será que a poderia realmente deixar
e ir para o Texas? Ela dissera que ficaria bem se eu decidisse ir, mas será que eu
ficaria? A minha avó era uma das minhas melhores amigas e a única pessoa
com quem eu me sentia pronta para falar sobre o Texas. Gostava de dizer que
estava preocupada em saber como a minha avó viúva sobreviveria sem a
minha presença, mas na verdade era o contrário.
Ela comeu uma colherada da sua sopa.
— Pimenta!
— O quê?
Ela foi até ao fogão e começou a mexer na panela.
— Estava distraída e esqueci-me de pôr pimenta. Vai buscar um pouco e
polvilha na tua tigela antes de começares a comer.
— Tenho a certeza de que está…
— Não sejas preguiçosa. Vai buscar o pimenteiro à cristaleira e tempera
bem a tua sopa.
Fui até ao armário e peguei no pimenteiro do gato malhado.
— Duvido que a pimenta faça assim tanta diferença.
— Cala-te e tempera.
Deitei pimenta na tigela, sentei-me e levei a colher à boca. Mas, em vez de
saborear a comida deliciosa da minha avó, fiquei instantaneamente com a boca
a arder. E de uma forma muito má.
— Gáá! — Senti um choque a percorrer todo o meu corpo. Deixei cair a
colher no chão e peguei no copo de leite que a minha avó tinha colocado ao
lado da minha tigela. Emborquei-o todo até ao fim, mas a minha boca ainda
continuava a arder. Corri até ao lava-louça e pus os lábios debaixo da torneira,
abrindo-a e sugando cada gota molhada e extintora que conseguia.
— Meu Deus, Emilie, o que é que te deu? Puseste pimenta a mais na sopa?
Limpei os lábios com as costas da mão. Ainda sentia a boca a arder, mas já
não parecia que a saliva me ia corroer os dentes.
— Não sei o que há nesse pimenteiro, avó, mas não é pimenta. Ainda
parece que tenho fogo na boca e quase não pus nada.
— Oh, meu Deus. — Os olhos da avó Max estreitaram-se. — Usaste o
pimenteiro do gato?
— Tem um «P» gravado.
Os olhos dela brilharam ligeiramente, embora ela não sorrisse.
— Esse pimenteiro horroroso foi um presente de casamento da minha
sogra. Está no meu armário desde que o recebi há cinquenta anos. Nem
sequer sabia que tinha alguma coisa lá dentro.
— Estás a dizer que acabei de comer o que estava dentro do pimenteiro
que a bisavó Leona comprou? Há meio século?
Ela tossiu para disfarçar uma gargalhada.
— E se fossem aquelas pastilhas de sílica que dizem «Não Ingerir»?
A minha avó aproximou-se da mesa e polvilhou um pouco do conteúdo do
pimenteiro na palma da mão.
— Não. — Ergueu a mão e cheirou. — Parece pimenta, só que uma
pimenta muito velha.
— Pimenta com cinquenta anos. Perfeito. — A minha boca sabia ao fundo
de um caixote do lixo. — Já chega. Vou para a cama.
— Mas são apenas sete horas.
— Eu sei, mas sinto que cada minuto que passo acordada neste dia de
pesadelo é um atentado à minha vida. Até agora, este Dia dos Namorados
destruiu o meu carro, revogou a minha bolsa de estudo, roubou-me o
namorado, transferiu o meu pai para longe e é possível que me tenha
envenenado. Vou ler para adormecer antes que as coisas piorem.
— Acho improvável que as coisas possam piorar.
— É, não é? — Fui até ao armário da roupa de cama e peguei no saco
transparente com os lençóis que a minha avó mantinha sempre limpos para
quando eu dormia aqui. — No entanto, prefiro pecar por excesso de cautela,
só por precaução.
CONFISSÃO N.º 6
Deixei as minhas iniciais algures dentro de cada livro da
biblioteca que levei para casa desde o 2.º ano.
O SEGUNDO DIA DOS NAMORADOS
Quando o meu telemóvel começou a tocar «Walking on Sunshine» às seis
da manhã, pestanejei e semicerrei os olhos para ver o ecrã no escuro. Seis?
Parecia que não tinha dormido nada, como se tivesse acabado de ir para…
Esperem, o quê?
Olhei para os autocolantes que brilhavam no escuro e que colocara no teto
no 5.º ou no 6.º ano. Quando é que eu viera para casa? Afastei as cobertas e saí
da cama, olhando para a boquinha escancarada do Logan enquanto ele dormia
esparramado em cima do meu colchão. Lembrava-me de ter ido dormir a casa
da minha avó na noite anterior, mas não me conseguia lembrar de ter saído de
casa dela.
Mas eu estava esgotada ontem. O dia infernal sugara cada pedacinho da
minha energia, portanto era inteiramente possível que estivesse tão fora de
mim que não me lembrasse de a minha avó me ter trazido a casa.
Olhei para a minha agenda, aberta em cima da mesa no dia 14 de fevereiro,
exatamente como no dia anterior.
Lista de Tarefas — 14 de fevereiro
Reorganizar dossiê de planeamento para bolsa de estudo
Estudar para teste de Literatura
Lembrar mãe de enviar cópia do cartão do seguro por e-mail para gabinete
escolar
Lembrar pai das reuniões de pais e confirmar que ele as põe no calendário
Enviar e-mail para orientador de estágio
Trocar presentes com o Josh
Dizer «amo-te» ao Josh!!!!!!!!!!
Pestanejei rapidamente enquanto todas as coisas do Dia dos Namorados
me voltavam à mente. O Josh e a Macy, o programa de verão, o meu pai —
cada parte da minha vida fora demolida em apenas um dia.
Virei rapidamente a página e escrevi uma lista de tarefas nova — e mais
chata. Os pontos que não tinham sido dizimados no dia anterior não tinham
sido concluídos, o que nunca acontecia. Em geral, eu verificava sempre
zelosamente todos os pontos, mas toda a treta do Dia dos Namorados fizera-
me esquecer completamente a minha agenda.
Lista de Tarefas — 15 de fevereiro
Falar com Josh sobre beijo
Tomar uma decisão sobre mudança para Texas
Reorganizar dossiê de planeamento para bolsa de estudo
Estudar para teste de Literatura
Lembrar mãe de enviar cópia do cartão do seguro por e-mail para gabinete
escolar
Lembrar pai das reuniões de pais e confirmar que ele as põe no calendário
Peguei no meu roupão e fui tomar banho. Pus a água a correr e entrei,
deixando-a cair sobre a minha cabeça e escorrer-me pelo pescoço, a escaldar,
enquanto as lágrimas começavam involuntariamente a brotar de novo.
— Em, estás quase despachada?
A sério?
— Acabei de entrar.
— O Joel precisa de ir à casa de banho. — A Lisa soava como se tivesse a
boca, mais uma vez, encostada à porta. — Com urgência.
— Há outra casa de banho lá em cima. — Esguichei champô com força
para a minha mão. Não estava com disposição para uma batalha. Não depois
de ontem.
— O teu pai está lá.
Eu ia sufocar alguém com a minha esponja de banho.
— Só desta vez, não podes pedir ao meu pai para sair? Dormi pouco esta
noite e preciso mesmo deste banho.
— Tu sabes como o teu pai é de manhã.
Céus. Caramba.
— Dá-me dois minutos! — Apressei-me a tomar o resto do duche,
resmungando por entre dentes cerrados como um velho mal-humorado
enquanto pousava os frascos com toda a força.
Novamente no meu quarto, sequei o cabelo antes de vestir umas calças
confortáveis e o meu hoodie favorito da Northwestern, uma escolha de guarda-
roupa feita inteiramente por estar amuada. Não queria absolutamente
nenhuma interação humana, por isso pus os fones nos ouvidos quando entrei
na cozinha. Nem pensar que ia discutir toda a cena do Texas sem ter dormido
mais um pouco.
Felizmente, não se encontrava ninguém na cozinha, portanto devorei uma
barra o mais rápido que pude, enquanto lia o capítulo seguinte do livro de
Christina Lauren que prometera devolver à Rox quando chegasse à escola.
Talvez se terminasse depressa não tivesse de ver outra pes…
— Deus do Céu, mais devagar. — O meu pai entrou com o jornal na mão.
— Ninguém aqui sabe fazer a manobra de Heimlich.
Tirei os fones dos ouvidos deixando-os pendurados em volta do pescoço.
— Ah, ah. — Ontem foi hilariante. Muito engraçadinho, pai.
— Então… — Ele tirou uma caneca do armário e colocou-a na máquina
de café. — Embrulhaste o presente demasiado caro que compraste para o
bom e velho Josh? Com muitos corações vermelhos pirosos e muitos «amo-
te»?
— O quê? — Engoli em seco e senti a barra atravessada na garganta. —
Queres saber se eu embrulhei o presente dele? Ontem?
Ele ergueu uma sobrancelha e premiu o botão do meio.
— Estava aqui a pensar que estarias toda entusiasmada com o Dia dos
Namorados, mas vejo que estás de fato de treino vestido e pareces rabugenta,
portanto, se calhar, não. Perdi alguma coisa?
Do que é que ele estava a falar? Eu não fazia ideia, por isso disse apenas:
— Sabes o que acontece quando se perde muito tempo a pensar, certo?
— Sim, morre um burro.
— Oh, vá lá, vocês os dois. — A Lisa entrou na cozinha com o Logan
numa anca e o Joel na outra. — Podemos, por favor, não ser ofensivos diante
dos bebés?
Eles estavam a gozar comigo?
— Eles não estavam aqui durante a conversa, lembras-te?
— E, tecnicamente — disse o meu pai, piscando-me o olho, exatamente
como tinha feito no dia anterior —, «burro» não é ofensivo. É um animal.
Senti os meus olhos a semicerrarem-se enquanto olhava para o meu pai e
depois para a Lisa. Será que estavam a tentar ser engraçados ou algo do
género? Pois, não — ela continuava a olhar para mim como se desejasse que
eu desaparecesse.
Peguei na minha mochila e nas chaves da furgoneta antes de me lembrar do
acidente.
— Ah, bolas, esqueci-me do acidente. Algum de vocês pode dar-me boleia
para a escola?
— Que acidente? — A Lisa pôs o Joel no chão e deslocou o Logan para a
outra anca, enquanto olhava para o meu pai. — Ela destruiu o carro?
Antes que eu pudesse responder, o meu pai disse:
— Não, ela não destruiu o carro. Acabei de ir lá fora raspar as janelas,
lembras-te?
— Bem, então, o que é que ela quis dizer com acidente? — A Lisa olhou
para ele e ele olhou para mim.
— Não faço ideia — disse, então. — O que é que quiseste dizer, Em?
Olhei além dele pela janela da cozinha. Ali, na entrada da garagem, estava a
minha furgoneta Astro com as janelas raspadas. Apontei.
— De onde é que ela veio?
— O quê, o teu carro? — O meu pai olhou para mim como se eu estivesse
a ser tolinha. Não tinha, de modo nenhum, o ar de me estar a pregar uma
partida. — De Detroit, diria eu. Sabes, porque a GM…
Olhei para a Lisa e ela inclinou um pouco a cabeça e franziu o sobrolho.
— Em?
— Hum… estava só a brincar. — Tentei fazer um sorriso e dirigi-me à
porta. — Tenho de ir.
O sol estava luminoso quando saí e semicerrei os olhos enquanto
caminhava cuidadosamente pela neve fresca diante do meu carro. Não só não
estava amolgado como também não tinha um único arranhão.
Como?
Entrei e liguei o motor. Sentia a mente num remoinho ao passo que tentava
perceber o que se passava. O meu telemóvel tocou e tirei-o do bolso. O Chris
e a Rox estavam a ligar-me através do FaceTime.
Premi o botão para atender e lá estavam eles, exatamente iguais ao dia
anterior, no corredor da escola com os rostos bem juntinhos.
— Adivinha o que acabei de ver? — perguntou o Chris.
— Quero ser eu a contar — lamuriou-se a Rox, empurrando-o enquanto
sorria.
— Não posso falar agora, já vos ligo de volta. — Desliguei com a mente a
girar como uma T-shirt numa máquina de secar. De repente, tudo tinha
enlouquecido. Saí do FaceTime e os meus olhos pousaram no calendário do
meu telemóvel.
14 DE FEVEREIRO.
O meu telemóvel dizia que era «14 DE FEVEREIRO». Mas… não era. Era
dia 15.
Certo?
Em voz alta, perguntei:
— Ei, Siri, qual é a data de hoje? — E a sua vozinha robótica confirmou
que era dia 14.
Hã?
Comecei a conduzir em direção à escola, confusa, até que percebi.
Eu sonhara com o terrível Dia dos Namorados. Estava ansiosa pelo grande
dia, pelo que fazia sentido sonhar com isso, não era? Era como quando as
crianças sonham com o Natal.
Então, eu ainda não tinha tido um Dia dos Namorados terrível; tinha sido
tudo apenas um sonho mau e ligeiramente premonitório.
Soltei um grande suspiro e sorri.
Carreguei no acelerador, porque mal podia esperar para ver o Josh. Gostava
de ter optado por algo melhor do que uma camisola largueirona, mas isso já
não parecia importante porque ainda o tinha a ele. Já o conseguia imaginar,
supergiro numa da suas camisas de xadrez, na sala de estudo, e mal podia
esperar para estar ao lado dele e me livrar deste pesadelo louco.
O meu telemóvel vibrou no banco do passageiro e eu olhei. Josh.
Feliz DN, linda. Já chegaste?
Ah! Aquilo era exatamente o que ele escrevera no meu so…
Olhei para cima e a carrinha à minha frente tinha parado. Nããão! Pisei com
força no travão, mas não adiantou.
Bati na carrinha feia do Nick — outra vez.
Tal como no meu sonho.
Saí.
— Estavas a mandar mensagens, não estavas?
— Por favor, outra vez, não.
— Estavas a mandar mensagens. Admite.
— Nick Stark, juro por Deus que sou capaz de te dar um soco na garganta
se disseres isso outra vez.
Desta vez, ele ergueu as sobrancelhas.
— Desculpa?
O meu cérebro estava a tentar perceber o que estava a acontecer. Apontei
para mim mesma e disse:
— Emilie Hornby, a tua parceira de laboratório. E não estava a mandar
mensagens.
Ele sorriu quando eu disse aquilo, erguendo os cantos da boca e
percorrendo o meu rosto com os olhos.
— Estás bem?
— Maravilhosa. — Revirei os olhos e fiz o que tinha a fazer, tudo
assustadoramente igual ao dia anterior. Era óbvio que ele achava que nunca me
tinha visto antes e eu sentia-me confusa enquanto me debatia para perceber o
que se passava. A minha mão tremia quando lhe entreguei o meu cartão do
seguro. Seria isto um déjà-vu? Será que eu sonhara com o Dia dos Namorados?
Será que tinha capacidades divinatórias?
Nem sequer tentei ligar aos meus pais quando a polícia e o reboque
chegaram. Aceitei em silêncio o casaco que o Nick me ofereceu e fui para a
escola com ele. Ele deve ter sentido a minha agitação interior porque não disse
uma palavra. Ouvi os Metallica a berrarem a letra de «Blackened» e, desta vez,
a música pareceu-me um pouco mais adequada. Acentuava na perfeição a
minha manhã WTF.
Enquanto o Nick conduzia, estudei o perfil dele. O seu cabelo escuro, a
maçã de Adão proeminente, o maxilar definido, o corpo alto — era tudo igual
ao meu sonho.
Só por diversão, olhei pela janela e disse:
— Adoro os Metallica.
As sobrancelhas dele ergueram-se.
— A sério?
Nem um pouco a sério. No entanto, eu tinha de testar este universo virado do
avesso que repetia os dias, não era?
— Claro. Gosto da raiva deles. É quase como se a pudéssemos sentir, sabes?
Ele fez um sorriso alegre e olhou para mim como se fôssemos almas
gémeas.
— Muito bem dito, Hornby.
Olhei para ele e perguntei-me como é que iria conseguir sair desta
sequência do sonho. Será que o meu destino era chocar com ele todas as
manhãs para toda a eternidade? Eu sabia que isso não podia ser e que tinha de
haver alguma explicação, mas estava mesmo a começar a ficar assustada. Vou
fingir que estou ótima e vai correr tudo bem — isto sempre funcionara para mim
antes. Quando chegámos à escola, saí da carrinha dele sentindo as pernas
trémulas. Não sei porquê, mas, ao devolver-lhe o casaco, perguntei:
— Vai correr tudo bem, certo?
Ele olhou para o casaco por um momento, como se estivesse a tentar
interpretar a minha pergunta.
— Claro. Porque não correria?
CONFISSÃO N.º 7
Chumbei sete vezes nas aulas de natação antes de a minha
mãe desistir finalmente de mim.
Tudo na escola foi igual ao dia anterior. Fui chamada ao gabinete escolar e
perdi o programa de verão. Depois, saí e vi o Josh e a Macy. Sinceramente,
nem sequer sei porque fui até ao carro dele — talvez achasse que tinha visto
mal da primeira vez, de alguma forma. Talvez pensasse que iria ver algo que
explicasse tudo. Não sei o que esperava, mas tudo o que consegui foi um
sentimento de rejeição ainda maior.
Porque, desta vez, percebi que ele parecia mesmo interessado nela,
enquanto a observava a conversar com ele no banco da frente. Desta vez,
notei quão bonita ela era, ali sentada com a sua camisola branca e o seu cabelo
loiro a emoldurar-lhe o rosto como uma auréola da Barbie.
Virei-me e voltei para dentro antes que o beijo pudesse acontecer, um
pouco surpreendida por não ter sido menos doloroso. Acho que pensei que
seria mais fácil com um aviso antecipado, mas não foi. Ainda parecia que todo
o meu plexo solar estava a ser esmagado por um carro. Eu tinha feito tudo
bem, mas ainda não era o suficiente.
Mantive os olhos baixos e dirigi-me para o gabinete da enfermeira. Não
queria falar com ninguém ou, pior, que alguém visse as lágrimas que me
estavam a desfocar a visão. Estava quase a chegar ao final do corredor azul
quando ouvi:
— Em. Espera!
Parei, mas não levantei os olhos. Não podia.
O Chris agarrou-me pelo cotovelo.
— Então, conta-nos o que ele te deu!
— Em? — Os joelhos da Roxane dobraram-se e o rosto dela surgiu mais
baixo do que o meu. O meu aspeto devia ser bastante patético porque ela
disse: — Oh, querida, o que aconteceu?
Pestanejei com rapidez e abanei a cabeça. Ela agarrou-me pelo braço e
puxou-me para a casa de banho das raparigas. O Chris seguiu-nos, como já
tinha feito muitas vezes antes, pegando numa toalha de papel que humedeceu
antes de limpar a minha maquilhagem borrada.
— Não choramos lágrimas de rímel na casa de banho, lembras-te? — disse
ele, fazendo-me um beicinho empático.
Limitei-me a acenar com a cabeça. De repente, sentia-me incapaz de formar
palavras.
— Eu sabia que ele ia acabar por ser um idiota. — O Chris deitou a toalha
de papel fora e abraçou-me. — É demasiado giro e encantador para ser tão
giro e encantador. Quem foi?
Limitei-me a abanar a cabeça.
— Não interessa, pois não? Era a Macy Goldman, mas acho…
Ambos gemeram.
— O que foi? — Afastei-me e cruzei os braços. — Não tem que ver com
quem, tem que ver com o facto de ele o ter feito. A Macy é irrelevante.
A sobrancelha direita do Chris ergueu-se.
— Sim, está bem.
Olhei para a Rox.
— A sério.
A Roxane olhou para o Chris, erguendo igualmente uma sobrancelha.
— Ela está em choque e não sabe o que está a dizer.
— Sei, sim!
— Então, sê sincera. Seres traída é uma merda, ponto final. — O Chris
enfiou as mãos nos bolsos do seu blusão de cabedal cheio de estilo. — Mas
seres traída com a miúda mais perfeita da escola é, tipo, um nível sup’rior.
— «Sup’rior» não é uma palavra. — A Rox tirou uma pastilha elástica da
mala e meteu-a na boca.
— É, sim.
Ela cruzou os braços.
— Mostrei-te a página do dicionário que, sem qualquer surpresa, não
contém a entrada «sup’rior» e arrastei-te para a aula de Inglês Avançado da
professora Brand, em que obtive a opinião profissional dela. A qual, claro, era
a meu favor. Porque não é uma palavra. É o que saloios confusos dizem
quando não têm a certeza de como a palavra se escreve.
De alguma forma, a discussão deles secou as minhas lágrimas. Era normal.
Rotina. Era assim que nós os três agíamos diariamente quando o Dia dos
Namorados não estava a ser repetido.
— Bom, vou-me embora — disse eu. — Obrigada por me fazerem sentir
melhor.
— Nós fizemos isso? — O Chris inclinou a cabeça para o lado e baixou as
sobrancelhas.
— Eu fiz. — A Rox afastou-o com um empurrão e deu-me um abraço
rápido.
Olhei para os dois e senti-me muito grata por serem meus amigos.
— A minha mãe vai fazer um churrasco hoje à noite. Devias vir — disse o
Chris.
Os churrascos da mãe dele eram deliciosos. Sempre me considerei esquisita
com a comida, até começar a frequentar a casa dele. A mãe dele era coreana e a
comida dela cheirava tão bem que antes sequer de eu ter a oportunidade de ser
esquisita já estava a comer kimchi, bibimbap e mandoo, enquanto implorava por
mais convites para ir lá jantar.
— Talvez vá, não sei.
— Vai para casa e vê aquele programa nojento de que te falei. Vai fazer
com que te sintas melhor — disse a Rox.
Sentia-me ligeiramente melhor quando fui ao gabinete da enfermeira e tive
menos frio ao caminhar até casa do meu pai do que no dia anterior, porque
não estava de vestido. Durante todo o caminho para casa, revi repetidamente
os eventos questionáveis das últimas vinte e quatro horas, ou quarenta e oito,
ou fosse lá quantas fosse.
— Mas que raio se passa? — gritei, enquanto caminhava pela rua. As casas
congeladas, cobertas de neve, estavam silenciosas, com aquele silêncio que os
bairros suburbanos costumam apresentar durante a semana. — Como é que
isto está a acontecer?
A única explicação era eu estar a ter um sonho naquele exato momento.
Estava a ter um sonho vívido e realista — sobre ter tido um sonho vívido e
realista — e só precisava de acordar.
Belisquei-me e…
Au. Merda.
Cheguei a casa e ouvi o meu pai a contar-me sobre o Texas, fui para casa da
minha avó e deixei que ela cuidasse de mim de novo, tal como no dia anterior.
Assim que escureceu, saí para a varanda dela e pedi a cada estrela que
conseguia ver que tudo estivesse resolvido quando acordasse na manhã
seguinte. Assim que entrei, a minha avó disse-me para pôr pimenta na minha
sopa e tive uma ideia.
Era um pouco alucinada, mas tudo o resto também era.
Fui até ao armário e peguei no pimenteiro do gato malhado.
— Hum…
— Cala-te e tempera.
— Nem pensar. — Olhei para aquele felino mal pintado e com um ar mal-
intencionado e questionei-me em voz alta: — E se foi a pimenta com meio
século?
— Desculpa?
— A pimenta pode ter causado isto. Nos filmes, é sempre uma exposição
estranha a coisas aleatórias, como perfume ou bolas de neve, que faz com que
os loops de tempo aconteçam.
— Acho que as tragédias do dia afetaram o teu raciocínio. Talvez
devesses…
— Escuta, avó. Se eu te disser algo que parece impossível, prometes não
me julgar?
Ela assentiu com a cabeça, sentou-se novamente à mesa e deu uma
palmadinha na cadeira ao seu lado. Sentei-me e aproximei-me mais dela, mas
não sabia por onde começar.
— Eu sei que isto parece impossível.
— Conta lá, querida.
— Está bem. Sabes que hoje é o Dia dos Namorados?
— Sim…
— Bem, e se eu te dissesse que ontem vivi o Dia dos Namorados e que
hoje foi uma repetição completa?
Ela cruzou os braços.
— É possível que seja apenas um déjà-vu?
Abanei a cabeça.
— Pensei o mesmo no início, mas sei o que vai acontecer antes que as
coisas aconteçam.
— Como?…
— Como o facto de eu saber que o Josh me iria trair hoje porque já o tinha
visto a fazê-lo ontem. Ou saber que ia perder a bolsa de verão porque já a
perdi ontem. Sei que a bisavó Leona te deu aquele pimenteiro feio do gato
como presente de casamento porque me disseste isso ontem e também sei que,
se verificares o meu telemóvel, vais encontrar uma mensagem nova do Josh a
dizer: «Agora estou chateado. Liga-me.»
Aquilo fez com que ela erguesse as sobrancelhas.
— O meu telemóvel está na minha mochila, no teu carro, desde que me
foste buscar. Não olhei para ele desde que te liguei. Vai buscá-lo e vamos ver
se tenho razão.
Ela percorreu todo o meu rosto com os olhos antes de se levantar e ir até à
garagem. Eu tinha a certeza de que ela devia achar que eu estava a delirar e
estava apenas a fazer-me a vontade, mas era bom falar com alguém sobre a
minha vida revirada. Quando voltou, estava a segurar o meu telemóvel e a
olhar para ele incrédula.
— Então?…
— Meu Deus, Emilie, é melhor irmos comprar um bilhete de lotaria, não
achas?
CONFISSÃO N.º 8
Quando tinha dez anos, costumava entrar às escondidas no
quintal dos meus vizinhos, no verão, e nadar no jacúzi deles
quando estavam no trabalho. Nunca ninguém soube.
MAIS UM DIA DOS NAMORADOS
Assim que o meu alarme tocou, tive a certeza de que era tudo real.
Fiquei deitada a olhar para o teto, aconchegada sob o peso do meu
edredom, não querendo deixar a minha cama macia e encarar a situação.
Porque, embora não tivesse a mais pequena ideia de como ou porquê, eu
estava sem dúvida a viver um ciclo de repetição dia após dia. Tinha ido dormir
a casa da avó Max, mas ali estava eu, outra vez, a acordar no meu quarto com
aquela música irritante que o Josh tinha programado no meu iPhone para me
acordar.
Olhei para o Logan, que dormia profundamente de boca aberta.
Sim — já passei por isto, já fiz isto.
Sentei-me e peguei no telemóvel. Então, pensei: E se o universo quer que eu
conserte alguma coisa?
Eu não acreditava no destino, nem no carma ou tretas desse tipo, mas
também não sabia como explicar o que estava a acontecer.
De alguma forma, eu estava a reviver o mesmo dia pela terceira vez.
E se estes Dias dos Namorados repetidos não fossem uma punição cármica
por algo que eu tivesse feito numa vida passada ou por algum outro motivo
horrível? E se fossem uma dádiva, uma oportunidade para consertar um dia
que correu tão mal?
Valia a pena tentar, certo?
Sim. Era isso que eu ia fazer.
Pensei em tudo enquanto tomava um banho (rápido por causa das
necessidades do Joel, é claro), registando todas as coisas que precisava de
corrigir do dia anterior. Depois, criei uma lista de tarefas nova.
Lista de Tarefas — 14 de fevereiro (outra vez)
Evitar destruir carro
Evitar reunião de bolsa de estudo no gabinete do conselheiro
Garantir que Josh e Macy não se possam beijar
Convencer pai de que não se quer mudar para o Texas
Não seria muito difícil conseguir fazer tudo isso, certo?
Depois de tomar banho, vesti o meu vestido de xadrez da sorte. Não era
novo e encantador como o vestido do Dia dos Namorados original, mas, se
alguma vez precisei da sorte do vestido que me ajudara a alcançar a minha
pontuação mais alta no ACT, esse dia era hoje. Combinei-o com colãs e as
minhas botas de camurça — mais quente do que no primeiro dia, mas ainda
gira — e dirigi-me para a porta.
Enquanto conduzia em direção à escola, estava hiperconcentrada na estrada
coberta de neve. O meu telemóvel encontrava-se aninhado no fundo da
mochila e as minhas mãos estavam cuidadosamente colocadas na posição das
dez para as duas. Seguia na faixa da esquerda, enquanto estivera na da direita
nos outros dias, portanto, estava preparada para não bater no Nick Stark.
A Taylor Swift cantava sobre Coney Island enquanto eu conduzia com o
mesmo cuidado de um aluno de condução no dia do exame. Era imperativo,
na minha opinião, que eu corrigisse esta complicação mais fácil. Deixei espaço
para dois carros entre a minha furgoneta esquisita e o monovolume prateado à
minha frente, confiante de que não iria bater no Nick e que começaria bem o
dia.

Será que pintei os teus céus azuis do mais escuro dos cinzentos?7
O trânsito estava a fluir bastante bem, apesar da neve, e comecei a
descontrair assim que passei pelo cruzamento onde tinha batido no dia
anterior. A primeira etapa do meu plano — não destruir o carro — estava
concluída. Quase podia sentir a tensão a deixar-me quando, de repente, um
enorme semirreboque me passou pela direita, enchendo o meu para-brisas de
lama.
Tirando-me completamente a visão.
— Raios!
Travei enquanto ligava os limpa-para-brisas, mas os meus pneus
bloquearam na neve acumulada e não consegui parar. Num instante, vi tudo à
medida que o vidro ia ficando desobstruído. O meu carro a deslizar para a
faixa da direita porque tive de virar o volante para evitar o trânsito vindo da
direção oposta.
A deslizar diretamente para a carrinha na outra faixa.
— Merda, merda, merda!
Esmaguei o pé contra o pedal dos travões, mas não adiantou. Bati naquele
veículo — com mais força do que no dia anterior —, chegando mesmo a
movê-lo ao chocar contra a lateral da caixa da carrinha.
— Não, não, não, não! — Quando a minha furgoneta parou com um
solavanco, fiquei a olhar para uma carrinha que era exatamente igual à carrinha
do Nick Stark. Mas que raio, universo?
O meu capô parecia estar tão amolgado como no dia anterior, talvez mais.
Soltei o cinto de segurança, embora as minhas mãos trémulas tornassem a
tarefa mais complicada do que o habitual. Estava a agarrar a maçaneta da porta
quando ela foi aberta pelo outro lado.
— Ei, estás bem? — O Nick olhou para mim, mas, em vez de ser um
idiota, parecia preocupado. — Bateste com muita força.
— Acho que sim. — Assenti com a cabeça e ele deu um passo atrás para eu
poder sair. Conseguia sentir o cheiro do sabonete ou do champô dele
enquanto me punha de pé e fechava a porta. — Oh, não, está a deitar fumo.
Olhámos ambos para o meu capô amolgado enquanto o fumo começava a
sair.
— Provavelmente, devíamos sair da estrada — disse o Nick.
A voz dele soava rouca de sono. Ele tirou o telemóvel do bolso e caminhou
em direção à berma. Eu segui-o, um pouco abalada com a violência do
acidente e também pelo facto inegável de não ter conseguido evitar a colisão
com o Nick.
Achara que o meu plano era infalível, mas o universo tinha, aparentemente,
outras ideias.
O Nick ligou para o número de emergência e deve ter sido posto em espera
porque olhou para mim e sussurrou:
— Não estás com frio só com isso?
Disse «isso» enquanto olhava para as minhas pernas da mesma forma que
teria olhado se eu estivesse vestida como um Teletubby.
E, sinceramente, eu estava a gelar. Parecia que o ar era gelo, a esfaquear-me
as pernas através das meias e também as faces.
— Nã, estou bem — respondi, no entanto.
Ao mesmo tempo fantasiei com o casaco que sabia que estava no banco de
trás do carro dele.
Mas não o podia deixar vencer.
Ele fez um sorrisinho que indicava que sabia que eu estava a mentir, antes
de voltar a falar ao telemóvel. Cerrei os dentes para os impedir de baterem e
perguntei-me — mais uma vez — como é que ele parecia tão adulto. Quero
dizer, ele tinha a minha idade, mas havia algo tão… maior de vinte e um anos
neste rapaz.
— Estão a caminho — disse ele, enfiando o telemóvel de novo no bolso
das calças de ganga.
— Obrigada. — Tive de me forçar a não parecer gelada quando
acrescentei: — Sou a Emilie Hornby, a propósito. Estamos na mesma mesa na
aula do professor Bong.
As sobrancelhas dele enrugaram-se unindo-se.
— Estamos?
Sim, era igualmente irritante na repetição.
— Sim, estamos. Desde o início do ano.
— Hum… — Ele olhou para mim. — Tens a certeza?
— Sim — disse eu com um grunhido e revirando os olhos.
— Bom… — começou ele, observando-me como se eu fosse maluca. —
Estás bem?
— Estou. Maravilhosa. — As sirenes apareceram nesse momento e repetiu-
se tudo. O meu carro incendiou-se, fui multada, o Nick ofereceu-me o seu
casaco, que aceitei a contragosto, e ele deu-me boleia para a escola.
Percebi, enquanto prendia o cinto de segurança, que tinha de ser mais
flexível durante este dia de conserto das coisas, porque não tinha a receita
exata do que precisava exatamente de ser consertado. Podia não ter
conseguido evitar o acidente, mas talvez o objetivo fosse reparar a nossa
interação.
Eu não sabia exatamente o quê, portanto precisava de tentar emendar cada
coisinha.
— Muito obrigada pela boleia — disse eu educadamente, movendo os
lábios no que esperava que fosse um sorriso agradável. — É muito simpático
da tua parte.
— Não é uma questão de ser simpático — respondeu ele, colocando o
carro em primeira e soltando o travão de mão —, é mais de ser prático. Se eu
te deixasse ir a pé para a escola e tu morresses de frio, de certeza que isso iria
prejudicar o meu carma. No entanto, ao dar-te uma boleia para um sítio para
onde eu já ia de qualquer maneira, sem nenhum sacrifício da minha parte,
estou a ganhar um bom carma.
Suspirei.
— Maravilhoso.
Ele sorriu, mas não olhou para mim.
— Sim, é maravilhoso.
Olhei pela janela e tentei novamente.
— Adoro esta música, a propósito. Os Metallica são incríveis.
Isso fê-lo olhar-me de soslaio.
— Tu gostas de Metallica?
Assenti com a cabeça e franzi os lábios.
— Claro.
Ele semicerrou os olhos.
— Diz-me três músicas deles.
Cruzei os braços e franzi os olhos para ele enquanto me fitava como se eu
fosse mentirosa. Porque é que ele estava a insistir em me sabotar?
— Não preciso de dizer três músicas para provar que gosto deles.
— Então, vou assumir que estás a fingir. — Os olhos dele estavam outra
vez atentos à estrada.
— A fingir o quê, exatamente? Ser alguém que gosta do som de uns velhos
zangados a gritar palavras?
Aquilo fê-lo mover os lábios num verdadeiro sorriso e ele lançou-me um
olhar.
— Vês? Eu sabia que não gostavas deles.
Revirei os olhos, o que o fez rir, e disse a mim mesma que não importava. A
minha interação com o Nick Stark era, sem dúvida, irrelevante em todo o
plano de consertar o dia. Então, disse o que estava realmente a pensar.
— Atacas sempre as pessoas quando elas estão apenas a fazer conversa de
circunstância?
— Eu não lhe chamaria «atacar as pessoas». Só acho que, se a tua conversa de
circunstância é sobre uma banda, provavelmente devias conhecer a dita banda.
Respondi em tom de troça:
— Eu estava a ser educada, já ouviste falar disso?
— Eu não consideraria dizer mentiras inúteis ser «educado».
— Vá lá, eu não estava a mentir. — Abanei a cabeça. — Só disse aquilo
para fazer conversa. É o que estranhos fazem quando estão a tentar ser
simpáticos.
— Mas nós não somos estranhos. — Ele olhou para mim com um
sorrisinho. Outra vez. — Tu disseste que és a minha parceira de laboratório.
— E sou a tua parceira de laboratório!
O sorrisinho cresceu.
— Então, porque é que disseste que somos estranhos?
Suspirei.
— Não faço ideia.
Instalou-se um silêncio péssimo durante alguns minutos, enquanto a velha
carrinha dele seguia em direção à nossa escola. Era estranho e desconfortável,
mas melhor do que quando ele estava a falar. Então, é claro, ele estragou tudo
quando disse:
— Espera lá, já sei onde te vi. Tu não és a miúda…
— Que se senta ao teu lado em Química? Sim — interrompi.
— …que se engasgou no refeitório?
Raios, eu nunca iria ultrapassar aquilo.
— Eu não me engasguei — respondi, pigarreando. — Apenas fiquei com
qualquer coisa presa na garganta.
Aquilo fê-lo desviar os olhos da estrada para me apresentar uma
sobrancelha erguida.
— E não será isso a definição literal de alguém a engasgar-se?
— Não, não é — retorqui, ofegando, sabendo que estava a ofegar, mas
incapaz de o evitar. — Alguém engasgar-se é quando a comida fica presa na
traqueia e não conseguimos respirar. Eu conseguia respirar; tinha era a comida
presa no esófago.
Ele mordeu os lábios e semicerrou os olhos.
— Tens a certeza de que é assim?
— Claro que tenho a certeza, aconteceu comigo.
Ele fez um ruído.
— Nunca ouvi falar disso… Não sei se existe.
— Estou a dizer-te que aconteceu, portanto ficas a saber que existe. — Eu
conseguia ouvir a minha voz a ficar estridente, mas aquele rapaz era para lá de
frustrante. — Algumas pessoas têm um problema de saúde que faz com que a
comida às vezes fique presa na garganta. Tenho de tomar Omeprazol todas as
manhãs para que isso não volte a acontecer. Portanto, é uma coisa que existe,
sim.
Ele aproximou-se de um semáforo e, quando a carrinha parou
completamente, virou a cabeça e olhou para mim.
A boca dele não estava a sorrir, mas havia algo de brincalhão nos seus olhos
quando disse:
— Tens a certeza de que és a minha parceira de laboratório?
Grunhi.
— Claro que tenho a certeza.
— Aquela miúda é supercalada, enquanto tu pareces ser muito tagarela.
— Eu não sou tagarela.
— Na verdade, pareces ser excessivamente tagarela.
— Bem, não sou. — Na verdade, eu era uma pessoa calada. Raios.
— Pois, está bem.
Não voltámos a falar até chegarmos à escola, onde lhe agradeci a boleia e
quase lhe atirei com o casaco. Ele apanhou-o com destreza e, quando dei meia-
volta, podia jurar que ele estava a sorrir.
Tive de me forçar a respirar fundo e concentrar-me. Não importava que o
Nick Stark estivesse decidido a arruinar as minhas hipóteses de consertar este
dia — eu tinha um trabalho a fazer.
Quando o gabinete escolar me enviou a autorização de saída da aula, peguei
na minha mochila e segui nessa direção. Mas, em vez de virar para a área
administrativa, continuei em frente até à casa de banho mais distante do
edifício, a que ficava depois da biblioteca.
Na realidade, não tinha um bom plano para manter a minha vaga no
programa de verão, mas parte de mim interrogava-se: Se não me conseguissem
encontrar, será que poderiam considerar deixar-me entrar para nos pouparem a todos o
embaraço desagradável do erro deles?
Afinal, qual era, na verdade, o problema de mais uma vaga?
Era o melhor em que conseguia pensar naquele momento, portanto o que
ia fazer era esconder-me na casa de banho. Olhei para trás antes de empurrar a
porta dos lavabos e entrar. Cheirava a cereja — uma lembrança aromática dos
vapeadores nos intervalos —, mas não estava ali ninguém.
Ufa.
Pousei a mochila ao lado do lavatório e tirei a minha bolsa de maquilhagem.
Passei alguns minutos a retocar as minhas faces e lábios. Tinha sentimentos
complicados em relação ao Josh depois de o ver a beijar a Macy — ainda que
não tivesse sido na vida real —, mas estava a forçar-me a esquecer isso.
Ela beijara-o a ele, afinal, e, se eu tivesse ficado lá, será que o teria visto a
afastá-la? Ia acreditar que sim.
Presentes, poesia e «amo-te» — esses pontos iam ficar cumpridos. Eu tinha
total confiança nas minhas teorias sobre os relacionamentos e o amor e não ia
deixar que um beijinho estragasse tudo. O dia de hoje ia ser perfeito e amanhã
seria 15 de fevereiro.
Infelizmente, o retocar da maquilhagem não demorou muito e, depois
disso, eu não sabia o que fazer. Podia olhar para o telemóvel para passar o
tempo, mas uma sensação de desconforto nervoso estava a deixar-me tensa
enquanto permanecia ali, ao lado do lavatório.
Será que tinha ouvido alguém a vir aí? Quem seria? Uma professora ou uma
aluna? Simpática ou mesquinha? Será que eu devia fingir estar a retocar a
maquilhagem se alguém entrasse ou… o quê? Os minutos passavam como se
estivessem em câmara lenta.
Por fim, decidi entrar num cubículo. Parecia nojento sentar-me numa sanita
completamente vestida — mais uma vez —, mas pelo menos podia
descontrair. Levei a mochila para o primeiro cubículo, tranquei a porta e
comecei a estender uma cobertura de duas camadas de papel higiénico sobre o
assento. Quando ficou finalmente espesso o suficiente para eu já não conseguir
ver o assento preto, sentei-me.
Tirei o telemóvel do bolso da frente e mandei uma mensagem ao Josh.
Eu: Não acredito que é DN e ainda não te vi hoje.
O Josh foi rápido a responder, com o meu telemóvel a fazer o som familiar
do relincho de um cavalo, que ele programara como seu toque pessoal.
É, não é?! O teu presente está a abrir um buraco no meu cacifo.
Onde estiveste esta manhã?
Aquilo fez-me relaxar um pouco. Sorri e escrevi: Bati com o carro a caminho da
escola. Depois conto-te.

Josh: Ah, merda.


Eu: É, não é? Agora, em relação ao meu presente, está a abrir um
buraco grande ou um buraco pequeno?
Josh: Isso é algo que não é da tua conta... por enquanto. Mas vou
ter um teste agora, linda.
Eu: Tudo bem. Bjs.
Saí das mensagens sentindo-me aliviada. Independentemente do que
acontecera nos outros Dias dos Namorados, era impossível que o Josh fosse
beijar a Macy neste dia.
Toma lá, Mace.
Já que não ia a lado nenhum tão cedo, inclinei-me, abri a mochila e comecei
à procura do meu livro. Se estava presa ali, escondida na casa de banho, porque
não aproveitar o tempo para ler? Tive de tirar a garrafa de Coca-Cola Light para
conseguir encontrar o livro, por isso pousei-a no chão e tirei o livro.
Os meus dedos dos pés estavam a matar-me porque as minhas
encantadoras botas novas eram meio tamanho abaixo, então descalcei-as e
descansei os pés em cima da camurça macia enquanto me acomodava para ler.
Enfiei o telemóvel no bolso com uma mão enquanto segurava o livro com a
outra, mas, quando tirei a mão do bolso, a minha pulseira prendeu-se na borda
do telemóvel. Esbracejei para o apanhar quando ele começou a cair, mas era
como se estivesse a ver a cena em câmara lenta, à medida que o telemóvel caía
e passava pelo pequeno espaço existente entre a parte de fora da minha perna
e a borda do assento da sanita.
— Gáá! — Pus-me de pé de um salto, mas era tarde de mais. Olhei para a
sanita decorada com papel higiénico. O meu belo telemóvel em tom de ouro
rosa com a sua adorável capa floral mergulhou imediatamente para o fundo da
bacia de porcelana infestada de germes. — Não, não, não… Merda, merda,
merda.
Senti os ouvidos a começar a latejar e percebi que os meus pés, apenas
cobertos pelas meias, estavam agora diretamente em contacto com o chão
nojento.
Ignorando isso momentaneamente, mordi os lábios, respirei fundo e
mergulhei a mão na água gelada carregada de bactérias.
— Deus do Céu. — Resgatei o telemóvel, segurando à minha frente o
aparelho que pingava, e que estava certamente destruído.
Abri a porta do cubículo com a mão seca e saí, deixando a minha mochila lá
dentro. Precisava de esfregar a pele das mãos e desinfetar o telemóvel.
Sentindo o piso frio da casa de banho debaixo dos pés, cerrei os dentes. Como
é que isto acontecera?
Tinha dado um passo para fora do cubículo, apenas de meias, quando a
porta da casa de banho se abriu. Fiquei paralisada enquanto três miúdas
entravam, a conversar alto.
Não, não, por favor, não.
Não eram apenas três raparigas; eram elas.
Havia muitos alunos populares na escola que pareciam simpáticos, mas a
Lauren, a Nicole e a Lallie falavam como as Kardashians e chegavam mesmo a
dizer às pessoas que não se podiam sentar junto delas à hora do almoço.
Num dia qualquer, elas podiam decidir, ao acaso, que o cabelo de alguém
era ridículo e inventar por piada uma alcunha que se colava a nós até ao fim do
secundário e ainda era capaz de continuar viva na nossa reunião dos dez anos.
Eu sentia-me um pouco menos vulnerável perto delas desde que começara
a namorar com o Josh, mas só porque elas gostavam dele. Continuavam a não
falar comigo, o que não era um problema, mas a ameaça que representavam
era neutralizada pelo seu relacionamento de amizade com o meu namorado.
Naquele momento, foi como se o tempo parasse e, por uma fração de
segundo, pude ver-me através dos olhos delas. Uma miúda marrona não
popular a sair de um cubículo com um telemóvel a pingar na mão e descalça.
Aquilo fê-las dirigir o olhar para o chão do cubículo número um, onde as
minhas botas, um livro e uma garrafa meio consumida de Coca-Cola Light se
encontravam todos juntos, como se eu tivesse acabado de fazer um piquenique
na casa de banho.
Elas continuaram a conversar umas com as outras e não me disseram nada,
nem falaram sobre mim — graças a Deus —, mas quando abri a torneira e
comecei a ensaboar as mãos e o telemóvel, vi claramente as suas sobrancelhas
erguidas.
Umas sobrancelhas perfeitamente delineadas, note-se, mas sobrancelhas
que diziam, sem qualquer dúvida, que elas iam falar sobre mim assim que
saíssem dali.
O que, felizmente, foi apenas momentos depois. Assim que saíram,
apressei-me a juntar as minhas coisas, calçar-me (depois de passar com o
desinfetante para as mãos na parte de baixo das minhas meias) e embrulhar o
meu telemóvel contaminado numa centena de toalhas de papel antes de o
colocar no bolso exterior da minha mochila.
Bom, a provação da casa de banho tornava a perfeição total inatingível. No
entanto, eu ainda tinha esperança de alcançar a perfeição romântica, o que
poderia salvar o dia.
Passei a aula seguinte cheia de ansiedade porque (a) não tinha telemóvel,
portanto não tinha forma de saber se o Josh me estava a mandar mensagens,
(b) estava com receio de que o gabinete escolar tentasse novamente, (c) estava
com medo de que rumores sobre o meu piquenique no penico já estivessem a
circular e (d) estava paranoica a pensar que as minhas botas iam começar a
cheirar a Fritos, pois eu enfiara-as nos pés enquanto estes ainda estavam
molhados do desinfetante.
Estava a tentar evitar pensar, tirando apontamentos extensos no meu
portátil, quando me apareceu a notificação de um e-mail novo.
Cliquei na minha caixa de entrada e o meu estômago embrulhou-se quando
vi de quem era.
A Sra. Bowen, do programa de verão.
Esperava ter podido dizer-lhe isto pessoalmente, mas, como não conseguimos localizá-la, o
e-mail terá de ser suficiente.
— Raios — murmurei baixinho enquanto lia a minha rejeição numa
mensagem de e-mail fria e profissional.
— Menina Hornby? — A minha professora de Civilizações do Mundo, a
professora Wunderlich, olhou para mim como se eu tivesse acabado de falar
numa língua incompreensível. — O que foi isso?
— Nada. Desculpe.
Ela fez o obrigatório olhar de professora de dez segundos — um olhar que
informava que eu tinha agido mal e que ela esperava que eu estivesse a morrer
de humilhação — antes de continuar a dar a aula.
Tornar este dia perfeito parecia cada vez mais desafiante.
Quando tocou para a saída, juntei as minhas coisas e quase corri pelos
corredores para chegar à entrada oeste mais cedo do que nos outros dias.
Esbarrei em pessoas e pedi licença pelos corredores congestionados e, assim
que alcancei as portas duplas, posicionei-me de modo a ficar atrás do enorme
arranjo de plantas de interior.
Não me estava a esconder — a sério que não. Estava… à espreita. Talvez.
Sabia que o Josh não ia beijar a Macy, mas estava curiosa para os ver a chegar e
perceber qual era o ambiente entre eles quando estavam juntos.
— O que estás a fazer?
Saltei ao som da voz. Virei-me e era o Nick Stark, a fazer-me aquele
sorrisinho, como se soubesse exatamente o que eu estava a fazer. Olhei para
trás dele antes de dizer baixinho:
— Chiu. Vai-te embora.
— Hum… — Ele apontou para a pequena selva que me protegia. — Estás
a vigiar alguém aqui atrás?
— Não, estou à espera do meu namorado. Podes…
Virei a cabeça e calei-me quando ouvi a voz do Josh. Senti o olhar do Nick
a seguir o meu enquanto o Josh e a Macy caminhavam na nossa direção.
Agarrei na manga do Nick e puxei-o para trás das plantas comigo. Não queria
que ele chamasse a atenção para o facto de eu estar à espreita. O Josh estava a
falar e a Macy estava a sorrir — um sorriso radiante, na verdade —, e o Josh
estava a andar ligeiramente de lado para poder encará-la melhor.
Não era nada de mais. Eles eram amigos, certo?
— Vá lá, Josh. — Os olhos da Macy estavam animados quando ela disse:
— Se me deixares ir contigo, não só terás o prazer de me levar no lugar do
pendura do teu automóvel à James Bond, como também te vou deixar decidir
o que podemos fazer durante todo esse tempo.
Pararam diante das portas e ele sorriu para ela. Eu conseguia ver que ele
estava a gostar da atenção.
— Isso soa-me a bastante poder; não tenho a certeza de conseguir lidar com
isso.
— Oh, eu sei que não consegues. — Senti o coração a bater com força no
meu peito e o meu estômago contraiu-se dentro de mim quando ela se
inclinou mais para ele e acrescentou: — Mas devias tentar.
— Acho que talvez possa precisar de alguém para segurar as bebidas —
respondeu ele.
— Eu disse-te.
— E tudo o que a tua ajuda me vai custar é um latte grande de baunilha?
— Não acredito que ainda te lembras do que eu costumo beber — disse
ela, e riu-se.
Porque é que ela não podia acreditar? Era o pedido de toda a gente no
Starbucks, por amor de Deus. Todas as raparigas desta escola tinham
provavelmente pedido essa mesma bebida pelo menos uma vez. Saber isso não
fazia dele o maldito Einstein.
Ele parecia encantador e sexy, e quase me apeteceu dar-lhe um soco no seu
belo nariz quando disse:
— Eu lembro-me de tudo, Mace.
— Tens a certeza de que ele é teu namorado? — sussurrou o Nick, e eu tive
uma certa vontade de lhe dar um soco também.
O Josh abriu as portas, ele e a Macy começaram a sair… e não sei o que me
deu.
— Esperem! — gritei enquanto agarrava na manga do Nick, puxando-o
comigo ao passo que ia atrás deles. Empurrei as portas e corri, enquanto eles
paravam e se viravam. Vi a Macy a olhar nervosamente para o Josh, mas o meu
namorado fez um sorriso confiante.
— Em! — exclamou.
Assim que parei, a cambalear, com o Nick nos meus calcanhares, percebi
que não fazia ideia do que estava a fazer. Não tinha nenhum plano, além de
gritar e berrar para os deter, com o Nick como uma espécie de amortecedor.
Agora que estava diante deles não sabia o que fazer. Pigarreei e disse:
— Vocês vão buscar cafés?
O rosto da Macy relaxou e o Josh respondeu:
— Sim. Já sabes como é o professor Carson, precisa de café todos os dias.
— Ótimo. — Acenei com a cabeça. — Eu e o Nick estamos a morrer de
vontade de tomar um café e precisamos de sair daqui. Podemos ir com vocês?
Lancei um olhar ao Nick, receosa de que ele estragasse tudo, mas ele apenas
franziu a testa, o que não era muito diferente da sua expressão habitual. O Josh
olhou para o Nick, claramente confuso com a presença daquele tipo ali, e a
Macy respondeu:
— Claro.
— Sabes que o meu carro é pequeno, Em. Importas-te de ir no meio? —
perguntou-me o Josh, ainda a semicerrar os olhos para o Nick.
— Sem problema — murmurei, lamentando todas as minhas terríveis
decisões enquanto caminhávamos os quatro, silenciosamente, em direção ao
carro dele. Lancei um olhar para o Nick, erguendo as sobrancelhas como se
dissesse: Por favor, por favor, deixa-te ir na onda. Surpreendentemente, ele revirou
os olhos e caminhou ao meu lado, o que nem sequer fazia sentido porque era
impossível ele querer faltar às aulas para ir ao Starbucks connosco.
Nem sequer éramos amigos.
No entanto, apesar da atitude dele nessa manhã, achei a presença dele
reconfortante. Algo no seu estilo sexy de estou-me-nas-tintas e a maneira como
dizia o que quer que estivesse a pensar faziam-me sentir como se tivesse um
aliado.
Estranho, certo?
O carro do Josh era um veículo minúsculo de dois lugares, portanto,
quando ele destrancou a porta, tive de me arrastar — de vestido — pelo banco
do passageiro até chegar ao minúsculo lugar diante das mudanças. A Macy
sentou-se ao meu lado, o Nick teve de se espremer ao lado dela e ficámos os
quatro, todos juntos, na sandes mais estranha do mundo.
Virei-me e pus as pernas do lado da Macy, para não ficar de pernas abertas
diante das mudanças, o que fez com que as nossas pernas se tocassem e o
horror embaraçoso daquele passeio aumentasse. E tive de colocar os meus
braços sobre as costas dos assentos para não tombar para cima deles de cada
vez que virávamos uma esquina. Toquei acidentalmente no ombro do Nick,
fazendo com que ele olhasse para mim. Inclinando-me para trás, para que a
Macy não pudesse ver, encarei-o e ele articulou com os lábios: «Mas. Que.
Raio.»
No meio da estranheza, uma pequena parte de mim queria rir-se. Em vez
disso, articulei com os lábios «Por favor, ajuda-me», o que o fez suspirar de
uma forma que eu esperava que significasse que me achava ridícula, mas ia
ajudar-me.
O Josh ligou o aquecedor e saiu do estacionamento, e o carro ficou
preenchido pelo pior tipo de silêncio.
O que é que eu estava a fazer?
— Quantos cafés vais buscar hoje? — Tentei parecer totalmente
inconsciente da dinâmica enquanto nos dirigíamos para o Starbucks. — É um
pedido grande?
O Josh virou a esquina, fazendo-me cravar os dedos nos encostos de cabeça
para não voar pela janela.
— Apenas cinco. Os nossos e o dele — respondeu.
— Certo.
Mais silêncio.
— Não tens uma aula a esta hora, Macy? — perguntou o Nick, olhando
para mim como se quisesse salientar quão estranho tudo aquilo parecia.
— Estou na aula do Carson com o Josh, então disse-lhe que o Josh
precisava de ajuda para trazer as bebidas.
— Ah — respondeu o Nick, ainda a olhar fixamente para mim. — Muito
conveniente.
— Mandei-te uma mensagem há pouco a perguntar se querias alguma coisa
— disse-me o Josh, ligando o pisca e mudando de faixa.
— Ah, sim? O meu telemóvel está desligado.
— Eu também me esqueço sempre de carregar o meu — interveio a Macy.
— Na realidade, deixei-o cair na sanita — disse eu, arrependendo-me de
imediato de partilhar aquela pequena joia de informação. — Quero dizer, não
era uma sanita suja, não estava suja. Ou melhor, sim, todas as sanitas são sujas,
mas esta não tinha nada lá dentro.
Cala-te, cala-te, cala-te!
— Santo Deus — murmurou o Nick ao mesmo tempo que a Macy dizia:
— Oh, Céus.
Sim, estávamos todos a clamar ao Senhor em resposta ao mergulho nojento
do meu telemóvel.
— É, não é? — Foi tudo o que consegui dizer.
O Josh estacionou no Starbucks, pôs o carro em ponto-morto, colocou os
óculos escuros no topo da cabeça e olhou para o Nick, que estava a olhar pela
janela. O Josh tinha aquela expressão de superioridade-de-capitão-da-equipa-
de-debate no rosto quando perguntou:
— Bem, eu sei o que as miúdas querem. E tu, mano?
O Nick nem sequer olhou para ele.
— Eu estou bem assim, mas obrigado. Mano.
O Josh olhou para mim como se estivesse à procura de uma explicação para
o Nick Stark estar connosco e a agir como um idiota, e eu sorri e encolhi os
ombros. Como se eu fizesse ideia alguma do que estava a acontecer na minha
vida.
Depois de o Josh regressar com as bebidas, voltámos apressadamente para
a escola, com o Josh a aumentar o volume do rádio para que a conversa fosse
impossível, o que eu apreciei.
Quando entrámos no parque de estacionamento, a Macy desligou o rádio e
perguntou:
— Que cheiro é este?
E ergueu o seu narizinho perfeito e começou a cheirar.
Eu cheirei, mas não notei nada além do café.
— Tens razão, cheira a chulé aqui dentro. — O Josh meteu o carro em
primeira, puxou o travão de mão e desligou o motor enquanto franzia o nariz.
Oh, não. Franzi o rosto e fingi estar também enojada.
— Josh. Deixaste algumas meias aqui ou algo assim?
Aquilo fez o Josh olhar para mim irritado. Sabíamos ambos que ele passava
inúmeras horas — todos os fins de semana — a polir e a dar carinho àquele
carrinho minúsculo.
— Não há meias nenhumas no meu carro — disse ele.
— Tens a certeza? — perguntou o Nick. — Porque cheira realmente a
meias sujas.
O Josh parecia querer matar o Nick.
— Porque é que eu teria meias sujas no meu carro?
— Não faço ideia.
Antes que os narizes deles pudessem detetar as minhas botas, eu disse:
— Podem deixar-me sair? Tenho as pernas cheias de cãibras.
Saímos do carro e voltámos para a escola. O Josh deu-me um beijinho
rápido quando tivemos de nos separar, o beijo de despedida obrigatório. Fiquei
de café na mão a observá-lo a afastar-se com a Macy.
Podia ter evitado com sucesso que eles se beijassem, mas aquela ida ao café
não parecia nada uma vitória. Tocou para a entrada nesse momento,
despertando-me dos meus pensamentos.
— Obrigado por me convidares — disse o Nick lentamente, despertando a
minha atenção. Ofereceu-me um sorrisinho divertido. — Testemunhar aquele
nível de desconforto foi francamente interessante.
— Cala-te — disse eu, incapaz de conter um pequeno sorriso.
— A sério. — Ele virou-se e começou a afastar-se de mim, gritando por
cima do ombro enquanto a multidão de alunos que passava o engolia: —
Tornaste este dia realmente incrível, Emilie.
Revirei os olhos e dirigi-me para o meu cacifo. Estava tão perdida nos meus
pensamentos que a princípio não ouvi as risadinhas. Então, algo na minha
visão periférica chamou a minha atenção. Olhei para a direita e ali estavam a
Lauren, a Nicole e a Lallie com outras quatro raparigas diante de um grupo de
cacifos.
Estavam a rir, a sussurrar umas para as outras e a olhar diretamente para
mim.
Apressei o passo e soltei um suspiro de alívio quando entrei na sala do
professor Bong. Dar de repente por mim no radar daquelas três não era algo
que eu tivesse antecipado e, com absoluta certeza, não era algo que quisesse.
O alívio foi passageiro, contudo. Quando cheguei à minha mesa, vi o Nick a
olhar para mim com um sorrisinho no rosto e o queixo apoiado na mão.
Sentei-me no meu lugar e abri a mochila, tirando o meu livro e o dossiê e
ignorando-o completamente.
— Bom, aquilo foi estranho, não foi? — disse ele.
Revirei os olhos e abri o livro, folheando-o até chegar ao capítulo em que
íamos.
— Num minuto estavas a dizer-me para me ir embora e no minuto seguinte
estavas a arrastar-me para a viagem mais estranha do mundo até ao Starbucks.
Não respondi e a voz dele tornou-se um pouco mais baixa quando disse:
— Sabes que ele te está a trair com ela, certo?
Olhei para ele pelo canto do olho, enquanto continuava a virar as páginas
do meu livro.
— Podemos voltar a não falar?
— Acho que não podemos. — Ele estendeu a mão e impediu-me de virar
outra página. — Porque já não somos estranhos.
Isto era a cereja, não era? A cereja no topo da horrível tentativa de tornar o
dia perfeito. Olhei para a mão dele e depois para o rosto. Então, suspirei e
disse:
— Mas podemos ser. Eu sou tagarela e tu odeias isso, e tu és rabugento, o
que eu odeio. Portanto, vamos fingir que nunca nos encontrámos esta manhã e
podes voltar a não saber quem eu sou.
Aquilo fê-lo sorrir, um sorriso que era — para ser sincera —
superpoderoso. Ele era um introvertido tão carrancudo que isso quase nos
fazia não ver quão incrivelmente bonito era.
Mas quando estava presente — e a sorrir — era como um murro forte no
estômago de tão atraente.
Que desperdício num idiota.
— Acho que não posso fazer isso — disse ele, cruzando os braços e olhando
realmente para mim. — E tu não me convidaste para ir ao café; tecnicamente,
arrastaste-me.
O professor Bong entrou e começou a falar, o que me fez pensar,
tolamente, que o Nick se iria calar e deixar-me em paz. Mas a minha sorte
tinha desaparecido neste dia.
— Adivinha o que eu li na aula anterior?
— Chiu — disse eu.
— Disfagia. — Ele inclinou-se para mim e continuou: — É esse o nome
que se dá a quando a comida fica presa na garganta, mas a pessoa não está a
sufocar.
Tossi para disfarçar uma risada.
— O que é que tu queres?
— Não quero nada.
— Tu nunca falas comigo em Química e agora tens informações sobre a
estranha situação de saúde que me aconteceu no refeitório no ano passado.
Qual é a tua?
Ele soltou uma risadinha e endireitou-se quando o professor Bong olhou na
nossa direção.
— Só queria que soubesses que fui pesquisar e que isso existe mesmo.
— Eu sei que existe, eu tenho isso! Aconteceu-me a mim.
— Emilie? — O professor Bong e toda a turma estavam a olhar para mim.
Porque, sim, eu era capaz de ter dito aquilo um pouco alto.
— Desculpe — murmurei.
O professor Bong voltou a dar a sua aula e, quando olhei para o Nick, ele
estava a abanar a cabeça e claramente a tentar conter uma gargalhada. Abanei a
cabeça também, mas a malandrice no rosto dele tornou-me impossível não
sorrir levemente.
— Para encurtar a história, o meu carro foi rebocado.
Olhei para o Chris, incrédula, enquanto ele vestia o casaco e fechava o
cacifo. Além de tudo, de todas as tragédias daquele dia terrível, o Chris não
tinha carro para nos levar a casa?
— Então?… — disse eu.
— Então, acho que vamos voltar a pé para casa porque a Rox já se foi
embora e os meus pais estão os dois em reuniões.
— Bolas — gemi. — Não posso acreditar neste dia.
— Eu fui verificar e o vento frio está um pouco abaixo de menos doze, por
isso, sim, vai ser duro.
— Precisam de boleia?
Fechei os olhos quando ouvi aquela voz. Claro que o Nick Stark estava ali.
Porque é que não havia de estar? Ele estava em todo o lado naquele dia. Abri a
boca para lhe responder com o bom e velho «Não, obrigado», quando o Chris
disse por cima do meu ombro quase a gritar:
— A sério?
Virei-me a tempo de ver o Nick a encolher os ombros e dizer ao Chris:
— Claro. Vocês já estão prontos ou…
— Eu tenho de fazer uma coisa primeiro — interrompi, deitando um olhar
ao Chris. — Tenho de… hum… levar uma coisa à sala de reuniões do
corredor norte. É rápido.
O Chris revirou os olhos, percebendo o que eu estava a tentar fazer.
— Eu só quero ir para casa, Em.
— Tenho de encontrar o Josh primeiro. É rápido. — Levantei um dedo
para eles, virei-me e comecei a andar apressadamente pelo corredor em direção
à sala de reuniões. No entanto, eles seguiram-me. Por cima do ombro, disse-
lhes: — Não precisam de vir comigo, posso ir ter convosco ao carro.
— Nã, nós queremos — disse o Nick, lançando-me um olhar sarcástico,
enquanto se colocavam ao meu lado.
— Não podes ir a casa dele mais tarde? — perguntou o Chris, suspirando
dramaticamente, e acrescentou: — Como um ser humano normal no Dia dos
Namorados?
— Só tenho de lhe dar o presente dele antes de ir. — Chegámos à sala de
reuniões, que era onde o Julgamento Simulado decorria, e respirei fundo. —
Um minuto e estou pronta.
O Chris revirou os olhos. Eu sabia que estava a agir em desespero, mas a
verdade era que estava desesperada. Fiz um gesto para eles se afastarem e me
darem um pouco de espaço, mas eles não se mexeram.
Certo.
Abri a porta e enfiei a cabeça lá dentro. Havia pessoas sentadas em várias
mesas, a conversar, e semicerrei os olhos enquanto perscrutava a sala em busca
do Josh. Estava quase a desistir quando vi a parte de trás da cabeça dele.
Estava sentado a uma mesa do outro lado da sala.
Fiquei um pouco surpreendida com a bolha de raiva que borbulhou dentro
de mim ao ver-lhe o cabelo encaracolado — o passeio com a Macy ainda
estava demasiado fresco na minha memória —, mas nós íamos ter o maldito
momento romântico nem que isso me matasse.
— Josh! — sussurrei alto. — Pssst! Josh!
Ele não me ouviu, mas o Owen Collins — um dos amigos do Josh do tipo
considero-me-um-professor-universitário — ouviu. Pôs-se de pé e disse:
— Joshua, estás a ser chamado pela tua namorada.
Aquilo fez com que todas as cabeças se virassem na minha direção.
— Podemos ir, por favor? — murmurou o Chris atrás de mim.
— Um segundo — disse eu enquanto o Josh atravessava a sala e vinha na
minha direção.
— Isto é tão romântico — ouvi o Nick a murmurar, mas soando como se
achasse exatamente o contrário.
O Chris riu-se.
— Olá, Em. — O Josh olhou para mim. — O que é?
— Eu… hum… tenho o teu presente. — Ergui a caixa embrulhada e sorri.
— Pensei que podíamos fazer a nossa troca rapidamente antes de eu me ir
embora.
— Não tenho o teu presente comigo. — O Josh deitou um olhar rápido
para trás e depois disse: — E tenho mesmo de ir.
— Mas não tens de trabalhar depois disto? — Prendi o cabelo atrás das
orelhas, desejosa de o convencer porque precisava desesperadamente de mudar
o dia para que o 15 de fevereiro fosse uma possibilidade. — É que queria
mesmo dar-te o meu presente hoje.
— Demasiado desesperada? — disse o Chris, e, embora sabendo que ele
tinha razão, estiquei a perna e atingi-o na canela. Eu sabia que ele estava certo,
mas mesmo assim tinha de tentar.
Talvez a minha declaração de «amo-te» mudasse tudo.
— Escuta, Em — disse o Josh, não se preocupando sequer em esconder o
seu aborrecimento desta vez. — Não sei o que queres, mas falo contigo
depois. Tenho de ir.
— Está bem. Bom, só te queria dizer… amo…
— Frango. — O Nick escancarou a porta, fazendo-me tropeçar para trás, e
apareceu ao meu lado. — Ela ama frango e achou que tu, o namorado dela,
devias provavelmente saber disso.
O Josh olhou de mim para o Nick um par de vezes antes de dizer:
— Mas quem és tu afinal?
O Nick sorriu.
— Sou o Nick.
Empurrei o Nick para longe da porta.
— Eu não amo frango. Eu amo…
— Olha, tenho de ir, Em. Falamos depois.
Ele afastou-se e vi o Owen a olhar para mim como se eu fosse uma falhada
patética e pegajosa. E era. Virei-me e o Nick estava encostado à parede a
abanar a cabeça. O Chris estava a olhar para mim de boca aberta.
— Não consigo decidir se te abraço depois de te teres humilhado tanto ou
se te dou um pontapé no rabo.
— Por favor — disse eu, afastando-me da porta do Julgamento Simulado e
aninhando-me contra o peito dele —, dá-me um pontapé no rabo.
O Chris colocou os braços à minha volta e eu enterrei o rosto na sua
camisola.
— Pronto, pronto, Em — disse ele e deu-me palmadinhas nas costas
durante cinco segundos antes de acrescentar: — Agora, para com isso e vamos
embora antes que a nossa boleia nos deixe aqui.
— Eu tenho mesmo de ir — disse o Nick, e o Chris indicou-lhe como chegar
às nossas casas enquanto caminhávamos pelo corredor e saíamos do edifício.
Eu tinha-me humilhado. Sabia que estava a forçar as coisas, mas eu tinha
razão. Tinha razão em relação ao Josh e ao amor, e em como sair deste loop
temporal.
A única vantagem era que provavelmente iria acordar outra vez no mesmo
dia amanhã, já que todas as tentativas de mudar o dia tinham resultado em
desastre, portanto pelo menos seria tudo esquecido e eu teria a oportunidade
de fazer tudo como queria.
Enquanto púnhamos o cinto — com o Chris no meio desta vez —, ele
perguntou:
— Está tudo bem, Em?
Encolhi os ombros e apertei o cinto.
— Eu… eu queria mesmo que tivéssemos um grande momento de Dia dos
Namorados.
— Eu diria que conseguiste — observou o Nick, metendo a primeira antes
de sair do estacionamento.
— Cala-te — respondi.
— Não vou dizer nada de mau sobre o Joshua porque respeito que gostes
dele, mas não achas que ele foi um pouco… estúpido contigo agora? — O
Chris olhou para mim e acrescentou: — Quero dizer, sim, tu estavas a agir…
de modo estranho, mas ele foi um pouco idiota.
Olhei para o Nick enquanto dizia baixinho para o Chris:
— Talvez possamos falar sobre isto mais tarde?
— Ah, vá lá, Emmer. — O Chris fez um gesto na direção do Nick e disse:
— Depois de ele ter visto aquela demonstração patética de idiotice romântica,
eu diria que pode muito bem ouvir esta conversa.
— Falaste com o Alex hoje? — perguntei.
— Boa mudança de assunto — disse o Chris ao Nick e depois continuou
para mim: — E é claro que sim, não sou nenhuma parvinha indecisa.
O Chris tinha uma queda pelo Alex Lopez há meses. Eram amigos —
faziam ambos corridas de cross, portanto conheciam-se muito bem —, mas o
Chris tinha medo de estragar a amizade convidando o Alex para sair. Ele
decidira que no Dia dos Namorados iria ver se o Alex queria fazer alguma
coisa. O plano era usar uma daquelas desculpas do tipo «O Dia dos
Namorados é uma seca quando não temos ninguém, por isso, já que estamos
ambos sozinhos, queres ir comer uma piza e ver filmes antigos?»
Soltei um suspiro de admiração.
— A sério?
Ele esboçou um pequeno sorriso secreto e disse:
— Aconteceu por acaso. No início, fiquei completamente paralisado, mas
depois ele disse que se sentia um falhado por não ter planos, o que me deu a
abertura perfeita.
— Isso é fantástico! — Ri-me, enquanto o rosto dele se iluminava de
felicidade. O Chris gostava de agir de modo desinteressado, tipo, o tempo
todo, mas por detrás dessa fachada era uma das pessoas mais vulneráveis que
eu conhecia. — Então, o que vais vestir?
— Não. — Ele ergueu a mão e abanou a cabeça. — Ainda não estou
pronto para esse stresse. Podemos só imaginar aquela cara adorável dele por
um momento? Tipo, quando está a falar a sério sobre um assunto e se atira de
cabeça, a combinação de intensidade e fofura juvenil é simplesmente de mais.
Assenti com a cabeça; ele tinha toda a razão.
— Sei exatamente do que estás a falar. No ano passado, ele estava na minha
turma de Governo Americano do Halleck e depois de se passar com a Ellie
Green porque, bem, ela estava a ser muito Elliezinha, eu fiquei obcecada por
ele durante dias. Adorável mais intenso é igual a uau.
— É, não é? — O Chris estava radiante de novo e eu estava tão, tão feliz
por ele.
Ele era o meu melhor amigo desde que tínhamos ambos arranjado
justificações falsas para faltar à natação no 9.º ano. Tínhamos pensado que
íamos poder ficar apenas sentados, mas o treinador Stroud fez-nos ficar de pé
à beira da piscina a fazer as braçadas com as mãos. Em terra.
Eu teria morrido de humilhação sozinha, mas o Chris transformou aquilo
numa coreografia. Ri-me tanto das suas danças ridículas que ficámos ambos de
castigo.
Passámos o resto do caminho até casa do Chris a discutir a grandeza do
Alex Lopez, e o Nick manteve-se calado. Eu estava a fazer todo o tipo de
julgamentos interiores sobre o seu silêncio até ele dizer ao Chris quando
entrámos na sua rua:
— Garante apenas que lhe mostras o teu verdadeiro eu e o tipo não tem
hipóteses.
— Quem és tu, Nick Stark? — brincou o Chris. — Não falo contigo desde
os escoteiros no 2.º ano e agora aqui estás tu, a agir como uma espécie de
Cupido sexy e mal-humorado.
— Cala já essa boca.
O Chris desatou a rir e eu também.
— Não acredito que vocês os dois foram escoteiros.
— Quero que saibas que eu era o melhor da equipa a fazer nós — disse o
Chris, abrindo o fecho da bolsa exterior da sua mochila e tirando as chaves.
— Alcateia — corrigiu o Nick, diminuindo a velocidade à medida que se
aproximava da casa do Chris.
— Alcateia — repetiu o Chris, revirando os olhos e abanando a cabeça para
mim. Depois, quando entrámos no caminho de acesso à sua casa, acrescentou:
— Obrigado pela boleia, Nick.
Abri a porta e saí para que ele pudesse passar e perguntei-me porque é que
o Nick não me teria deixado primeiro. Parecia-me que teria de voltar para trás
agora, mas talvez tivesse de ir a algum lado na direção da minha casa ou algo
assim. Talvez tivesse uma namorada gira, mais velha, que morasse perto de
mim e fosse buscá-la. Apesar de hoje ter testemunhado os momentos mais
mortificantes da minha vida, ele ainda era praticamente um estranho.
Depois de eu voltar a entrar na carrinha e fechar a porta, o Chris gesticulou
para que eu abrisse a janela.
— Tens a certeza de que estás bem? — perguntou-me, movendo os lábios
numa expressão preocupada. — Aquela cena com o Josh não foi nada o teu
estilo.
— Eu só… Não sei. Queria mesmo um Dia dos Namorados perfeito este
ano, portanto talvez tenha forçado as coisas.
— Achas? — comentou o Chris.
— Eu queria dizer-lhe que o amo, mas depois o Nick…
— NÃO — interrompeu o Chris.
— …estragou tudo.
— Não acho que tenha sido eu quem estragou tudo — disse o Nick atrás
do volante.
— Estás a brincar, certo? Tu ias dizer a palavra começada por A? —
perguntou o Chris.
Porque é que ele estava a falar como se eu estivesse doida?
— Estou a falar a sério.
Os olhos dele arregalaram-se e ele abanou a cabeça de um lado para o
outro.
— Não, não, não. Em, tu não o amas.
— Amo, sim…
— Há quanto tempo é que vocês estão juntos? Não é um pouco cedo?
— Faz três meses hoje, na verdade.
— Três meses. — Os olhos dele desviaram-se para o Nick e depois de volta
para mim. — Hoje?
— Sim.
As sobrancelhas dele ergueram-se.
— Não achas que isso é um pouco conveniente?
— Como assim?
— Ora vejamos — disse ele. — Aqui está tu, a Menina Faz Planos. A
Menina Listas de Coisas a Fazer. Desde que te conheço que és obcecada por
organizar tudo em itens que podes ir riscando.
— Qual é o problema disso?
— Nenhum. — Ele ofereceu-me uma expressão doce e disse: — Eu acho a
tua necessidade compulsiva de controlo adorável. Mas não achas que dizer
«amo-te» no vosso aniversário de três meses, que por acaso é um dia dedicado
ao amor, é um pouco planeado de mais?
Senti-me a corar. Não queria continuar a falar sobre aquilo.
— Não tens de entrar em casa?
— Tudo bem, eu calo-me — disse ele. — Se queres dizer-lhe que o amas
até ficares enjoada, liga-lhe mais tarde.
Revirei os olhos e fiz-lhe um aceno de despedida com a mão, e ele virou-se
e subiu a correr os degraus para entrar em casa. O Nick engatou a marcha-
atrás e recuou, e, assim que pôs a primeira, disse:
— Tu sabes que não o amas, certo?
— O quê? — Olhei para o perfil dele e disse: — Como é que tu podes
saber isso?
— Como é que tu podes não saber? — perguntou ele.
— Não vou ter esta conversa contigo — respondi, irritada. Graças a Deus,
eu morava perto do Chris e já estava quase em casa.
— Bem, devias tê-la com alguém. — Ele olhou para mim. — Queres dizer a
palavra começada por A, mas há algumas horas andavas a esconder-te atrás de
plantas para ver se ele te estava a trair.
— Não era isso que eu estava a fazer…
— Tretas — disse ele.
— Não era — menti. — Eu só estava à espera dele.
O Nick travou diante da minha casa, parando o carro junto do passeio. Pô-
lo em ponto-morto, puxou o travão de mão e virou-se para mim.
— Mesmo que isso fosse verdade, e nós os dois sabemos que não é, o
ambiente entre ti e o teu «namorado» era desconfortável e educado. Era tenso
e estranho. Por amor de Deus, não era amor.
— Porque é que isso te interessa? — disse eu, quase a chorar. Estava
cansada dos dias repetidos, de pensar no Josh com a Macy e do Nick a agir
como se soubesse alguma coisa sobre mim ou o meu relacionamento.
O rosto dele era impossível de decifrar.
— Não me interessa.
Mas… será que não? Ele parecia tão sério que senti um estremecimento no
estômago. Peguei na minha mochila.
— Ótimo. Obrigada pela boleia.
— De nada.
Em casa, fui logo para o meu quarto, esperando evitar completamente a
conversa sobre a promoção com o meu pai. Infelizmente, ele desceu atrás de
mim e contou-me as «boas notícias» enquanto brincava com o Joel na minha
cama, fazendo cócegas no miúdo e apresentando uma gloriosa demonstração
de amor paternal que achei terrivelmente deprimente.
Como se isso não bastasse, ele e a Lisa conversaram sobre o Texas durante
todo o jantar. As coisas que poderiam fazer lá, os subúrbios onde esperavam
encontrar uma casa, os restaurantes que esperavam frequentar, as coisas
turísticas que os rapazes adorariam. O jantar de São Valentim daquela noite foi
aparentemente patrocinado pela comissão de viagens do Texas.
Quando chegou a hora de ir dormir, sentia-me totalmente abatida. O Josh
não tinha ligado nem mandado mensagens, então fui até à janela do meu
quarto e fiz um pedido a uma estrela, tal como quando tinha sete anos e
desejei que os meus pais continuassem casados.
— Estrela da noite, primeira que vejo, peço-te de coração que me concedas
um desejo. — Olhei para a estrela mais brilhante que consegui encontrar,
semicerrei os olhos e disse: — Gostava de ter o Dia dos Namorados perfeito e
que este loop acabasse.
Meti-me na cama, esperançosa, mas realista.
Não tinha conseguido ter o dia perfeito — nem perto disso.
Mas talvez só precisasse de consertar, tipo, uma coisa. Quero dizer,
tecnicamente, eu impedira o Josh de me trair, portanto isso tinha de contar,
certo?
Contudo, enquanto me enfiava debaixo das cobertas, surgiu-me na cabeça a
imagem de mim no banco da frente do carro dele, espremida entre ele, a Macy
e o Nick, enquanto as minhas botas cheiravam a Fritos.
Pois, tê-lo impedido provavelmente não contava muito.
7
Referência à canção «Coney Island», de Taylor Swift. (N T )
CONFISSÃO N.º 9
No 7.º ano, passei por uma fase em que andava de táxi por
toda a cidade só para ter alguma coisa para fazer quando já
não aguentava mais estar sozinha.
MAIS UM DIA DOS NAMORADOS
Quando acordei na manhã seguinte ao som daquela música horrível,
percebi que não tinha ideia do que fazer a seguir. Ainda achava que precisava
de mudar as coisas, de as consertar, mas não conseguia descobrir exatamente o
quê. Fiz uma nova lista.
Lista de Tarefas — 14 de fevereiro (outra vez)
Ir por caminho diferente para escola
Convencer Sra. Bowen a manter bolsa de estudo
Garantir que Josh e Macy não se possam beijar
Convencer pai de que não se quer mudar para Texas
Tentei seguir por um caminho diferente para a escola. Mantive-me na
vizinhança durante todo o percurso até lá, mas, ainda assim, acabei por chocar
com o Nick. Desta vez, ele parou mesmo à minha frente em Edgewood
Boulevard.
Veio até à minha porta, novamente, e abriu-a.
— Ei… estás bem?
Saí do carro.
— Tu meteste-te mesmo à minha frente.
As sobrancelhas do Nick ergueram-se.
— Desculpa?
— Deves pedir desculpa mesmo, toda esta situação podia ter sido evitada.
— Por uma vez, eu estava a adorar ser a resmungona. — Informações do
seguro, por favor.
Os olhos dele semicerraram-se.
— Tu primeiro, já que foste tu quem me bateu.
— Tudo bem. — Voltei para o meu carro e peguei nas informações
enquanto ele pegava nas dele. Assim que as trocámos, olhei para o cartão do
seguro dele e disse:
— Stark. Nick Stark?
Ele não respondeu, apenas olhou para mim como se já estivesse irritado
com o que eu estava prestes a dizer. Continuei:
— Tens o professor Bong em Química?
Os olhos dele semicerraram-se ligeiramente.
— Sim?…
— Hum… reconheço o teu nome da lista de presenças. Quarto tempo?
— Sim.
— Hum… o mundo é pequeno. — Apontei para o meu motor e disse: —
Está a deitar demasiado fumo. Aposto que esta coisa vai começar a arder.
Vamos sair daqui.
Desta vez, fui eu que liguei para o número de emergência enquanto ele
olhava para o telemóvel, mas, como agora eu estava a usar calças de ganga,
botas, o meu casaco de lã e um chapéu, ele não me trouxe o seu casaco velho.
Ofereceu-me efetivamente uma boleia para a escola, mas desta vez eu tinha
um plano perfeito para manter a paz.
Ao pôr o cinto, disse apenas:
— Muito obrigada pela boleia.
Ao que ele respondeu:
— Não tem problema.
Então, tirei o meu livro novo da mochila, abri-o na página dobrada e
comecei a ler. Eu seria, com toda a certeza, a passageira dos sonhos dele se
lesse o meu livro e não dissesse uma palavra, certo? A carrinha começou a
mover-se e eu comecei a ler, mas só tinha lido duas frases quando o Nick
disse:
— Estás mesmo a ler Rebecca DeVos no meu carro?
Olhei para ele, dividida entre a surpresa por ele já ter ouvido falar da autora
e o aborrecimento por ele parecer desagradado.
— Sim?…
— Ela é uma das autoras mais sobrestimadas da literatura americana. Enche
o texto com tantas descrições floreadas e empoladas que até é difícil
encontrarmos o enredo. — Ele apontou para o meu livro e disse: — Essa
história é uma das piores. Não tenho a certeza se alguma vez cheguei a
perceber qual era a aparência física da personagem principal porque tive de
usar um dicionário e um dicionário de sinónimos para decifrar as malditas
cores.
— Deixa-me adivinhar. — Olhei para o painel de instrumentos antiquado
da velha carrinha e pensei novamente em como o Nick era um mistério.
Mesmo depois de já o conhecer há alguns dias, ele não fazia sentido para mim.
— És um grande fã de Raymond Carver.
— Gosto do trabalho dele — disse, baixando o volume da música —, mas
há uma grande distância entre a DeVos e o Carver. Eu podia citar vinte
escritores que têm uma escrita mais elaborada do que o Carver, mas menos…
exagerada do que a DeVos.
Eu também. Na verdade, eu não estava a adorar o livro e concordava
totalmente com ele. O que me chocava.
— A Dina Marbury é ruiva, a propósito, e tem uma pele alva impecável e
olhos azuis.
Tecnicamente, tinha «olhos da cor do mais luminoso céu de verão sem
nuvens, cerúleo e a brilhar com a perfeição das joias usadas por reis, rainhas e
o punhado de amantes que salpicavam a terra», mas azul era próximo o
suficiente.
— Eu sabia que devia torcer por ela, mas, aqui entre nós, fiquei feliz
quando a Dina foi pelo mar adentro.
— Nick. — Fechei o livro e disse: — Eu ainda não tinha chegado a essa
parte! Acabaste mesmo de me contar o final?
Ele soltou uma risadinha.
— Oh, bolas. Desculpa.
— Na verdade, não há problema. — Baixei-me e enfiei o livro na mochila.
— Para ser sincera, provavelmente não o iria acabar.
— Vês? — Ele ligou o pisca e diminuiu a velocidade para fazer a curva. —
Fiz-te um favor.
Revirei os olhos.
— Ela meteu-se mesmo pelo mar adentro? Uau, isso parece roubado de…
— O Despertar? — Ele olhou para mim enquanto a carrinha parava
completamente.
— Sim! Quero dizer, esse é um final de livro que parece ser único, não é?
— Exatamente. — O Nick ofereceu-me algo próximo de um sorriso com
os olhos, antes de os voltar de novo para a estrada e acelerar quando o sinal
ficou verde. — Como se não percebêssemos que ela roubou o grande final de
Edna Pontellier.
Conversámos sobre livros durante o resto do caminho até à escola e, ao
entrarmos no edifício, ocorreu-me que até nos tínhamos dado bem no Dia dos
Namorados. Pela primeira vez. Parecia o início de um novo dia, até que ele
disse:
— Porque é que estás a sorrir assim?
Olhei para ele, vendo-o de nariz franzido e sobrancelhas descidas sobre os
olhos semicerrados.
— O que foi? — perguntei.
— Não sei. Estávamos a andar como seres humanos normais e então tu
começaste a sorrir de uma forma assustadora.
— Eu não estava a sorrir de uma forma assustadora.
— Estavas, sim. — Ele abanou a cabeça. — Como aqueles tarados que
gostam de ver desfiles na televisão e vestem camisolas aos gatos.
Franzi os olhos.
— Toda a gente gosta de ver gatos com camisolas.
— Como queiras. Tenho de ir. — Ele disse aquilo como se eu quisesse que
ele ficasse ou algo assim. E eu não queria.
Então, disse-lhe:
— Eu é que tenho de ir.
— Foi o que eu disse — retorquiu ele.
— Não, tu disseste que tu tinhas de ir, como se eu quisesse que fosses
comigo, quando, na verdade, eu é que tenho de ir.
Ele ergueu as sobrancelhas.
— Estás bem?
Limitei-me a assentir com a cabeça e murmurei:
— Maravilhosa.
Depois disso, tentei mudar as coisas com o conselheiro, aparecendo quando
eles mandaram a autorização e apresentando o meu caso com maturidade.
Expliquei todos os motivos pelos quais eles deviam reservar uma vaga para
mim no programa de verão e eles sorriram e disseram-me educadamente que
não era possível abrir mais vagas.
A seguir, tentei esperar pelo Josh junto do carro dele com o presente. Uma
grande parte de mim perguntava-se porque é que eu estava sequer a tentar, por
esta altura. Se ele e a Macy tinham sentimentos um pelo outro, será que eu
queria mesmo salvar o nosso relacionamento? No entanto, havia uma outra
parte de mim que sabia que eu tinha razão sobre tudo e esta era a minha
oportunidade de entrar na engrenagem do tempo e garantir que a Macy não
nos podia arruinar.
Empoleirei-me no minúsculo capô do carro dele com o presente na mão e
esperei. Gelada de morte, mas esperei. Quando os dois saíram finalmente pela
porta lateral, a Macy deve ter-me visto porque parou e disse algo ao Josh.
Antes que ele me pudesse ver, ela agarrou na manga dele e conduziu-o de
volta para dentro.
Desculpa?
Quando me levantei para os seguir, os meus colãs ficaram presos num
canto do capô e fiquei com um buraco enorme, portanto, quando voltei
finalmente para dentro, quase me apetecia esfaquear a Macy. Ainda me sentia
gelada enquanto caminhava pelo corredor, dominada por uma tristeza
frustrada ao perceber que as coisas poderiam nunca mais voltar ao normal.
E se eu ficasse presa neste dia para sempre?
Entretanto, na aula de Química, o Nick decidiu que era um bom momento
para discutir o facto de eu estar a usar uma camisola vermelha no Dia dos
Namorados.
— És mesmo adorável.
— O quê?
Ele apontou com o lápis para a minha camisola.
— Toda essa roupa de postal do Dia dos Namorados, a combinar;
superfofa.
— Não é isso o que isto é. — Olhei para a minha camisola e disse: — É
apenas uma camisola vermelha.
— A sério?
— Sim, a sério.
Ele lançou-me um olhar do tipo não me enganas e disse:
— Como explicas a pulseira com o coração e os brincos a combinar, então?
Revirei os olhos e abanei a cabeça. Queria dar-lhe uma resposta torta, mas,
por algum motivo, os meus olhos encheram-se de lágrimas.
— Não tens nada melhor para fazer do que analisar as minhas escolhas de
vestuário?
Ele inclinou-se um pouco mais para mim, examinando o meu rosto com os
olhos.
— Estás a chorar?
— NÃO — disse eu, falando mais alto, mas as lágrimas traíram-me caindo
dos meus olhos.
— Oh, porra… não. — Ele engoliu em seco e disse: — Não, não…
Desculpa. Eu só estava a meter-me contigo.
— Está tudo bem — disse eu, fungando. — Não estou a chorar.
— Estás, sim — retorquiu ele baixinho, fitando-me o rosto pela primeira
vez com uma expressão séria no olhar. — Por favor, por favor, para.
— Está bem, estou a chorar. — Funguei de novo, tentando controlar-me. —
Mas não é por tua causa.
— Juras?
Revirei os olhos e limpei-os:
— Sim.
Respirei fundo, tentando acalmar-me. Eu nunca chorava. Contudo, a ideia de
poder ficar presa, para sempre, neste terrível purgatório do Dia dos
Namorados estava a começar a ganhar raízes. Será que eu nunca envelheceria?
Nunca teria a oportunidade de ter uma carreira jornalística? De ver os gémeos
a crescer? Era demasiado.
— Como é posso fazer com que pares? — perguntou ele, parecendo tão
desconfortável que era quase engraçado. — A sério.
— Eu estou bem. — Funguei e passei os dedos indicadores por baixo das
minhas pestanas inferiores. Respirei fundo e disse a mim mesma que podia
consertar isto. — Já estou melhor.
— Mas… — Ele fez-me um sorriso de boca fechada, superdoce, e
perguntou: — Tens a certeza?
Assenti com a cabeça e não pude deixar de sorrir em resposta.
— Estou bem.
— Aleluia. — Ele exalou como se estivesse a soltar um grande suspiro de
alívio e acrescentou: — Porque a ideia de ser simpático contigo durante o
resto de Química é um pouco esgotante.
Quase me ri enquanto abanava a cabeça.
— É assim tão difícil?
Ele encolheu os ombros.
— Não é que seja difícil, só que prefiro ver-te a pestanejar rapidamente e a
ficar ofendida com tudo o que eu digo.
Outro dia repetido, outro olho cansado de tanto o revirar na presença do
Nick Stark.
Encerrei o dia com outra tentativa frustrada de convencer o meu pai a ficar.
Desta vez, sublinhei que ele não podia deixar a minha avó — viúva e a
morar sozinha — e mudar-se para a outra ponta do país. O que seria dela? Iria
sentir-se tão sozinha, certo? Eu sabia que ele adorava a mãe, portanto tinha a
certeza de que o meu argumento abalaria a sua determinação em mudar-se.
Mas ele sorriu quando eu disse aquilo.
— Ela quer ir connosco, Emmie. Pergunta-lhe. Está toda entusiasmada com
o clima quente e os cowboys.
— Está?
— Estás surpreendida? — perguntou ele, ainda a sorrir.
— Bem, não em relação aos cowboys.
Portanto, não só falhei a convencê-lo, como também recebi a pior notícia
de todas: ia também perder a avó Max. Ela nem sequer tinha mencionado essa
hipótese quando falámos sobre o assunto no primeiro Dia dos Namorados,
mas eu estava uma desgraça chorosa nesse dia, portanto, não a podia culpar.
Antes de ir para a cama, pedi um desejo a uma estrela — mais uma vez —,
mas estava a começar a perder a esperança de que uma maldita esfera brilhante
no céu tivesse algum interesse em me ajudar.
Depois disso, fiquei obcecada com a ideia de mudar os resultados. Fosse de
que maneira fosse. Em relação à bolsa perdida, tentei:
não aparecer quando o gabinete escolar me chamou;
aparecer e implorar por misericórdia;
fingir chorar com uma história inventada e absurdamente detalhada
sobre o desejo moribundo do meu avô de me ver naquele programa;
fingir chorar com uma história inventada e absurdamente detalhada
sobre o amor da minha avó idosa — e moribunda — pelo jornalismo;
oferecer um pequeno suborno à Sra. Bowen.
Nenhuma destas tentativas me forneceu um resultado diferente.
Com a Macy e o Josh, tentei:
esperar no meu carro e buzinar freneticamente sempre que os
rostos deles se aproximavam no estúpido veículo minúsculo dele;
mandar uma mensagem ao Josh dizendo que ouvira um boato
sobre a Macy ter herpes e uma infeção na boca (não foi o meu melhor
momento);
atirar uma bola de basebol ao para-brisas do Josh quando ele e a
Mace estavam aninhados naquele veículo ridículo dele. A bola fez
contacto, de facto, e rachou o vidro, mas o meu arremesso foi demasiado
lento e os lábios deles tocaram-se antes de a bola acertar no vidro, pelo
que foi tudo em vão. E tive de me esconder atrás de um carro e esgueirar-
me de volta para o edifício como um fuzileiro naval encurralado.
Nada estava a resultar.
Quanto à situação do carro, tentei:
levar o carro do meu pai para a escola, mas, mesmo assim, bati no
Nick;
ir para a escola com o Chris, mas ele chocou com o Nick em vez
de mim. Ironicamente, acabei por ter de ir de boleia com o mal-
humorado porque o Chris teve de ir ao hospital para lhe examinarem o
pescoço.
Então, tentei ir a pé para a escola, mas mesmo assim acabei por deparar com
o Nick. Não podia acreditar nos meus olhos, mas a carrinha dele estava
estacionada numa rua do bairro Hickory Oaks que dava para a nossa escola —
supus que ele morasse na casa ao lado da carrinha. O capô estava levantado e
ele estava a fazer qualquer coisa lá dentro. Tentei passar sem ele me ver, mas
quando pensei que já tinha escapado, ouvi-o a chamar.
— Desculpa. Ei! Podes ajudar-me por um segundo?
Olhei na direção dele e toquei com a mão no peito.
— Eu?
— Sim.
— Hum… sem ofensa, mas sou uma miúda de dezasseis anos; não é seguro
para mim ajudar estranhos — disse eu. — Posso ligar a alguém para…
— Eu não sou um estranho, estamos na mesma turma de Química.
O quê?
Então, ele na verdade sabia que éramos parceiros de laboratório? Estivera a
brincar comigo de todas as vezes em que nos tínhamos encontrado?
— Tens a certeza? — disse eu. — Quero dizer, a tua cara não me é
estranha, mas…
— Sim, tenho a certeza, sentamo-nos na mesma mesa no laboratório.
Então, podes ajudar-me?
Deixei o passeio e aproximei-me, tentando não sorrir ao sentir uma espécie
de vitória pelo reconhecimento dele.
— O que precisas que eu faça?
Ele tinha o cabelo um pouco despenteado pelo vento, mas os seus olhos
eram do azul mais profundo em contraste com o preto do seu blusão fechado
até ao queixo. Eu sempre achara que eram castanhos, mas, na verdade, faziam-
me recordar a prosa floreada de DeVos; ela quase acertara em cheio na cor dos
olhos dele com aquela coisa toda do céu de verão sem nuvens.
— Só preciso que ligues a carrinha enquanto eu desfaço esta cena
congelada com o líquido de ignição — disse ele, interrompendo os meus
pensamentos distraídos sobre as suas belas íris. — Já alguma vez conduziste
um carro de mudanças manuais?
Enfiei as mãos nos bolsos e enterrei um pouco mais o pescoço no meu
casaco de lã.
— Não, mas sei ligar um carro com embraiagem.
— Perfeito. Importas-te?
O cheiro dele — sabonete, perfume, eu não sabia o que era — atingiu-me
com força, mas afastei tudo isso da mente.
— Não, claro — disse eu.
Dei a volta à carrinha e entrei. Tive de mover o banco para a frente para
que o meu pé pudesse empurrar a embraiagem até ao fundo. Deixei a porta
aberta para poder ouvir as indicações dele e, quando ele disse «agora», girei a
chave.
Aquela carrinha velha não queria trabalhar, mas o Nick devia saber o que
estava a fazer porque, de repente, o motor rugiu, ligando-se. Acelerei um
pouco e então ele gritou:
— Podes pôr em ponto-morto e deixá-la a trabalhar?
— Claro. — Parecia familiar, reconfortante até, estar nesta posição. Eu
costumava ajudar o meu pai quando ele trabalhava no Porsche fazendo
exatamente isto, só que tinha doze anos na altura. Pus a carrinha em ponto-
morto e saí.
O Nick baixou o capô e deu a volta até ao lado do condutor.
— Muito obrigado. Ela detesta o frio — disse ele.
— Ela?
— A carrinha.
Revirei os olhos e o meu sentimento caloroso pelo Nick desapareceu.
— Detesto tanto isso.
— O quê? — Ele não parecia ofendido, apenas interessado. — O que é que
detestas?
— Quando os homens sentem a necessidade de se referir ao seu amado
veículo no feminino.
Aquilo fez com que ele me oferecesse aquele sorriso sarcástico, ao qual eu
me habituara ao longo do nosso relacionamento de dias repetidos.
— E porquê?
— É tão sexista. Soa a patriarcado e aos homens a objetificarem as
mulheres. Tipo, «Adoro tanto este belo pedaço de metal que ele quase me
excita. Como uma mulher».
O sorriso dele manteve-se quando ele disse:
— A carrinha era do meu irmão, só para que conste, e ele chamou-lhe
«Betty» porque antes pertencia à nossa tia-avó Betty. E também temos uma
cadela chamada Betty.
— Pronto, está bem. — Encolhi os ombros e acrescentei: — Sou uma
feminista louca e furiosa, acho.
— Achas?
— Sim, acho. — Revirei os olhos, sentindo-me… desajustada de repente.
— Tecnicamente, estou a começar a pensar que sou apenas doida varrida.
Ele cruzou os braços sobre o peito:
— Estás bem?
— Não, não estou bem! — Suspirei e gemi e perguntei-me quantas vezes
mais ele me iria perguntar aquilo antes da minha morte prematura por
frustração por causa de um loop temporal. Abanei as mãos e tentei pensar no
meu mantra, Tu tens o controlo, mas não funcionou. Gemi de novo e gritei: —
Na verdade, estou PÉSSIMA e está a acontecer-me uma coisa ESTRANHA,
mas é TÃO ESTRANHA que nem sequer posso falar sobre isso!
— Uau. — Os cantos da boca do Nick ergueram-se ligeiramente e depois
ele riu-se mesmo. — Deve ser mesmo muito estranha para fazer alguém como
tu passar-se desta maneira.
Suspirei e disse:
— É que nem fazes ideia.
Aquilo fê-lo rir-se de novo — meu Deus, ele era um rapaz bonito quando
não estava a ser um idiota.
— Queres boleia? — perguntou-me. — Para a escola? Quero dizer, eu vou
para lá e, se vais a pé, de carro é provavelmente mais rápido. E mais quente.
Quem era esta pessoa simpática e encantadora? Prendi o cabelo atrás das
orelhas e respondi:
— Seria ótimo. Obrigada.
Peguei na mochila e entrei na carrinha, sentindo-me de repente nervosa, o
que era bizarro porque parecia que eu já tinha estado naquela carrinha vinte
vezes, e nunca ficara nervosa antes. Claro, ele tinha sido um idiota em todas
essas vezes; este Nick Simpático era uma novidade.
— Vais sempre a pé para a escola? — O Nick sentou-se ao volante e
carregou na embraiagem. — Estou surpreendido por nunca te ter encontrado
antes.
— Não — disse eu, pondo o cinto de segurança. — Hoje foi… uma
espécie de experiência.
— E as conclusões foram?…
Endireitei-me e atrevi-me a olhar para o Nick, que estava à espera da minha
resposta com uma expressão divertida no rosto.
— Foram inconclusivas porque fui retirada da experiência para ser uma boa
samaritana para um tipo com um carro avariado.
— Que chatice para a experiência, mas o tipo parece porreiro.
Ri-me, então, incapaz de resistir.
— Ele pode ser porreiro, mas sei de fonte segura que é, na verdade, um
eremita rabugento que nem sequer fala com a sua parceira de laboratório em
Química.
— Eu sabia que me tinhas reconhecido. — Ele apontou para mim ao dizê-
lo, sorrindo, e eu não podia acreditar na ironia de tudo aquilo. — Menina Não
Falo Com Estranhos.
Ri-me um pouco mais e disse:
— Todo o cuidado é pouco.
— Claro — disse ele, voltando os olhos para a estrada.
— Terminaste a leitura para hoje? — indaguei, perguntando-me como é
que alguém podia cheirar tão bem e ao mesmo tempo de modo tão subtil. Não
era como o perfume caro que o Josh usava, e de que eu gostava, mas mais
como um gel de banho fresco ou toalhitas. Eu podia hiperventilar com o odor
a limpeza dele. — Esqueci-me completamente, por isso vou ter de estudar na
próxima hora.
— Não fiz a leitura, mas nunca as faço. — Ele ligou o pisca e virou à
esquerda para o estacionamento do 11.º ano. — Espero até à noite da véspera
de um teste, como todos os alunos normais do secundário.
— Estás a chamar-me anormal?
Ele estacionou no lugar chocantemente livre na primeira fila antes de dizer:
— Estou a chamar-te única.
Devo ter feito uma careta porque ele me fez um meio-sorriso enquanto
desligava a carrinha.
— O que foi? Era um elogio.
Soltei o cinto de segurança e abri a porta.
— Eu sei, e é isso que é estranho.
Ele puxou o travão de mão, guardou as chaves no bolso e pegou na mochila
que estava entre nós.
— Porque é que é estranho? Nunca te insultei.
Bom, ele insultara-me várias vezes naquela mesma carrinha, mas até agora,
naquele dia, fora um encanto.
— Bem, não — disse eu, então, e saí.
Ele pôs-se ao meu lado e entrámos juntos na escola. Não disse mais nada e
eu também não, mas o cheiro dele estava no meu nariz e eu estava a sentir-me
quente e a formigar enquanto a neve rangia debaixo dos nossos pés.
Quando entrámos, apontei para sul, porque tinha de virar no primeiro
corredor para ir ter com o Chris, e ele parou. Fitou o meu olhar com os seus
olhos ridiculamente azuis e disse:
— Não sei com que coisa terrível estás a lidar e sobre a qual não podes
falar, mas quando tudo o resto falha eu costumo dizer: «Que se lixe.»
Engoli em seco e esqueci-me de como falar, pois aqueles olhos azuis
estavam apontados diretamente para mim de uma forma que me fazia
formigar e eu notei que ele tinha uma boca muito bonita. Atrapalhei-me com
as palavras, mas consegui dizer:
— Eu… eu na realidade não…
Ele estendeu a mão e puxou suavemente a madeixa de cabelo que se tinha
soltado do meu rabo de cavalo.
— Que se lixe, Emilie — disse. E foi-se embora.
Segui os passos habituais do dia e, quando me chamaram para ir ao
gabinete escolar, como faziam todos os dias, compareci e disse a verdade.
Olhei para a Sra. Bowen e disse:
— Posso ser sincera? Isto é devastador para os meus planos. Eu estava a
contar com isto para me candidatar a bolsas de estudo. Existe algum programa
alternativo que possa ter uma vaga?
Esperava a minha rejeição diária, mas, em vez disso, ela inclinou a cabeça e
franziu os lábios. Começou a falar com o Sr. Kessler sobre um programa que
eu desconhecia e depois saiu da sala para ir fazer uma chamada.
— O senhor conhece este programa? — perguntei ao Sr. Kessler.
Ele assentiu com a cabeça:
— Conheço. É muito, muito bom, e ficaria ótimo numa candidatura.
— Acha que tenho alguma hipótese? — Um sentimento semelhante a
esperança borbulhou dentro de mim.
Ele encolheu os ombros e lançou-me um sorriso paternal encorajador.
— Tudo é possível.
A Sra. Bowen voltou, então, mas não tinha conseguido falar com a pessoa
com quem queria falar. Disse que ia «fazer algumas verificações» e que me
contactava depois, e eu percebi que ela estava a ser sincera.
Desculpou-se novamente quando ia a sair do gabinete, só que desta vez
acrescentou:
— Vamos encontrar uma maneira de resolver isto, Emilie. Tens a minha
palavra.
As coisas estavam a alinhar-se de uma forma que me deixava otimista em
relação às minhas hipóteses de um 15 de fevereiro.
Depois da aula, tomei a decisão adulta de nem sequer me aproximar do
parque de estacionamento junto à saída do corredor, onde tinha repetidamente
visto o Josh a sair com a Macy. Com sorte, o universo, que estava a funcionar a
meu favor até agora neste dia, iria impedi-los de se beijarem, mas pelo menos
assim eu não teria de ver se eles o fizessem.
Seria como aquela cena da árvore a cair na floresta; se eu não estivesse lá
para ver, será que tinha realmente acontecido?
Quero dizer, sim, de cada vez que me permitia visualizar a situação —
visualizá-los —, o meu estômago ainda doía e eu sentia-me uma idiota, mas
precisava de tirar isso da cabeça e conseguir o meu dia perfeito se queria que a
vida voltasse ao normal.
Fui meticulosa com as minhas intenções, fazendo o possível para ser
extremamente simpática com todos e extremamente atenta nas aulas. Até sorri
quando passei pela Lauren, a Lallie e a Nicole no corredor.
Quando cheguei à aula de Química, o Nick já estava na nossa mesa.
Respirei fundo, nervosa por algum motivo que optei por não explorar, e dirigi-
me ao meu lugar.
Ele olhou para cima quando pousei a minha mochila no chão e disse:
— Olá. — Sorriu. — És tu.
Sentei-me e disse:
— Sou mesmo eu.
As minhas faces estavam quentes quando trocámos um olhar do tipo ei, eu
conheço-te desta manhã. Os olhos dele percorreram o meu rosto antes de ele
dizer:
— Mais uma vez, obrigado por me ajudares esta manhã.
Encolhi os ombros.
— Mais uma vez, obrigada pela boleia.
— Escutem — disse o professor Bong, entrando na sala com os olhos no
telemóvel que tinha na mão enquanto se dirigia para a sua mesa. — Vamos
fazer um teste surpresa, portanto preciso que todos os que se sentam do lado
direito das mesas se mudem para o assento logo atrás.
O professor Bong fazia-nos sempre trocar de lugar para os testes porque
parecia pensar que tínhamos acordos de copianço com os nossos parceiros de
laboratório. Como eu estava do lado direito, peguei na mochila.
— Espera. — O Nick pegou no seu telemóvel, pousado em cima da mesa.
— Dá-me o teu número e eu mando-te uma mensagem — disse.
Senti a minha boca a abrir-se e tentei parecer descontraída, mas o Nick
estava a pedir-me o número de telemóvel. O que é que se estava a passar? O Nick
Stark estava a pedir o meu número e eu até lho queria dar. Soltei uma pequena
risada, nervosa de repente.
— E porque é que eu faria isso?
Ele respondeu apenas:
— Vais descobrir quando eu te enviar uma mensagem. Número, por favor.
Dei-lhe o meu número e ele digitou os números no telemóvel.
O meu telemóvel acendeu-se. Nick: Adivinha quem?
Sorri e fui para o lugar na outra mesa antes de responder. Eu: O meu parceiro
de laboratório mal-humorado?
Nick: É o tipo fixe que te deu boleia para a escola.
Aquilo fez-me sorrir. Eu: Ah, ESSE tipo.
Nick: Queres boleia para casa?
Ofeguei. Tipo, deixei realmente escapar um arquejo. Porque — meu Deus
— estaria o Nick Stark a convidar-me para sair, de certo modo? O que se
passava com este dia? Quem era este rapaz?
O que estava a acontecer?
Eu: Já tenho boleia, mas MUITO obrigada!
Quando carreguei em enviar, um sentimento inesperado instalou-se no meu
peito. Era algo semelhante a… arrependimento.
Mas eu estava talvez prestes a escapar ao dia 14 de fevereiro e não podia
arriscar. Precisava de tornar o resto do dia perfeito e isso incluía o Dia dos
Namorados com o meu namorado.
Nick: Então, se a Betty não pegar, não estás disponível para o
trabalho de embraiagem?
Porque é que eu me sentia desapontada por não estar disponível para o
trabalho de embraiagem?
Eu: Infelizmente, não. Mas tenho a certeza de que há muitos
estranhos que podes convocar e que podem ligar a tua carrinha.
Nick: Nós não somos estranhos, lembras-te?
Olhei para ele e o Nick estava a olhar diretamente para mim com uma
sobrancelha erguida e um sorrisinho nos lábios. Senti-me um pouco tonta
enquanto escrevia: Ah, sim, é verdade.
O professor Bong começou a distribuir os testes e não pudemos conversar
ou enviar mensagens o resto da hora, o que era bom; eu precisava de estar
concentrada. Assim que entreguei o meu teste, saí da sala sem sequer me
atrever a olhar na direção do Nick.
Mantive-me feliz, simpática e positiva durante o resto do dia, e quando me
fui encontrar rapidamente com o Josh, junto ao cacifo dele depois das aulas,
ele virou-se e sorriu para mim com um sorriso enorme.
— Graças a Deus, graças a Deus. — Inclinou-se para frente e encostou a
testa à minha. — É Dia dos Namorados e eu ainda não tinha visto a Emmie
do meu coração. Valha-me Deus, onde te escondeste o dia todo?
Sorri-lhe, mas uma pequena parte de mim perguntava-se se ele teria beijado
a Macy. E, se não tivesse, será que quisera? Será que tinham conversado e
namoriscado enquanto iam buscar os cafés? Ele parecia o mesmo de sempre,
mas alguma coisa dentro de mim estava diferente enquanto o fitava.
Afastei essa sensação absurda e respondi:
— Em lado nenhum. Tens tempo para abrir o meu presente antes do
Julgamento Simulado?
Ele virou-se e enfiou a mão no cacifo enquanto dizia:
— Só se tiveres tempo para abrir o meu.
Aquilo fez-me provocá-lo:
— Acho que sou capaz de arranjar um minuto.
O primeiro embrulho que ele me deu foi uma caixa retangular —
chocolates, obviamente. Rasguei o papel e sorri-lhe.
— O meu jantar favorito, obrigada.
— Claro — disse ele, cobrindo o coração com as duas mãos. — Doces para
o meu doce.
— E do meu doce — acrescentei, sorrindo, porque era romântico e também
as palavras perfeitas para serem ditas no Dia dos Namorados perfeito. Não me
queria adiantar, mas parecia que podia estar finalmente a correr tudo como
devia.
— Agora isto, meu doce — disse ele, segurando uma pequena caixa
quadrada.
Soltei uma gargalhada, envolvida pelo sorriso dele e pela festividade dos
presentes. Abri a caixa branca e, aninhada dentro dela, havia uma pulseira de
prata. Ergui os olhos para os dele e ele estava a sorrir em expectativa.
Esperei por uma explicação, mas, ao fim de dois segundos a sorrir
inexpressivamente para ele, acabei por exclamar:
— Oh, meu Deus, Josh, adoro-a tanto. Obrigada!
Ele insistiu em colocá-la no meu pulso e eu não disse nada, temendo a
erupção cutânea que me iria cobrir a pele dali a poucas horas. É que eu contara
ao Josh — na semana anterior — toda uma história sobre como a prata me
fazia alergia. Sim, às vezes as pessoas esquecem coisas, mas fora uma longa
história, que incluía uma ida às Urgências, e ele até comentara que me teria
levado uma piza para eu comer se já namorássemos nessa altura.
E agora estava a comprar-me prata?
Contive-me, no entanto, em prol de um dia perfeito e observei-o a
desembrulhar a bracelete do relógio. Ele adorou-a — eu sabia que ele iria
adorar —, o que o fez abraçar-me e dar-me um grande beijo na boca — que se
lixasse estarmos no corredor da escola.
Quando se afastou e olhou para mim, sorri-lhe. Pigarreei. Depois, respirei
fundo, olhei para os olhos castanhos dele e disse:
— Eu amo…
— Espera! — Ele ergueu um dedo e disse: — Nem mais uma palavra até
ouvires o meu poema.
Fechei a boca, um pouco abalada. Será que ele sabia o que eu estivera
prestes a dizer? Ele tinha um sorriso enorme no rosto, portanto acho que não.
Leu-me o poema que tinha escrito, dizendo que eu me encaixava nos seus
versos como a rima perfeita e envolvendo-me num grande abraço. Foi lindo,
como toda a sua poesia. Mais tarde, enquanto me dirigia para o carro do Chris,
eu ia a sorrir pelos corredores. O amor não é o que é, mas o que não é. Os meus
ouvidos não se sentem felizes quando ela está em silêncio; os meus dedos sentem-se despojados
quando a pele dela está ausente.
Não tivera a oportunidade de lhe dizer «amo-te», mas não me importava.
Ele usara a palavra «amor» no seu poema sobre mim, portanto era quase como
se ele o tivesse dito primeiro e eu ainda lho poderia dizer quando ele me
ligasse mais tarde nessa noite.
Quando saí, o frio atingiu-me o rosto e ouvi a buzina antes de ver o Chris.
Aquele pateta espertinho estava a buzinar ao som de «We Will Rock You» e eu
estava a chorar de tanto rir quando cheguei ao carro dele.
— Será que podes vir mais devagar? — gritou ele pela janela.
— Tenho a certeza de que sim — gritei eu em resposta, rindo ainda mais
quando estendi a mão para o puxador e percebi que a porta estava trancada.
— Deixa-me entrar!
— Está bem. — Ele destrancou o carro e disse: — Mas só porque preciso
de dez dólares para pôr gasolina.
— Típico. — Entrei no carro dele e fechei a porta. Nesse momento, vi o
Nick Stark numa fila mais à frente, a mexer no motor da sua carrinha. Baixei o
vidro e gritei-lhe: — Precisas de ajuda?
Ele ergueu os olhos do motor do carro para o meu rosto e senti-me
instantaneamente quente. Fez aquele meio-sorriso sarcástico enquanto gritava:
— Sem ofensa, mas sou um tipo de dezasseis anos. Não é seguro falar com
estranhos.
Ri-me e gritei em resposta:
— Nós não somos estranhos, Nick Stark.
O seu meio-sorriso alargou-se, tornando-se um sorriso completo.
— É verdade, somos parceiros.
Ri-me mais uma vez e ouvi o Chris a resmungar. Ignorei-o e disse:
— A sério, precisas de ajuda? Ou de boleia?
— Ei! Eu sou o teu Uber agora? — resmungou o Chris.
— Não, mas obrigado — disse o Nick. — Ela está a funcionar agora,
portanto está tudo bem.
— Está bem. — Porque é que fiquei desapontada? — Até amanhã.
Ele dirigiu-me um olhar que ficou suspenso — congelado — antes que a
vida voltasse a avançar a toda a velocidade.
— Olá, querida. — O meu pai saiu da cozinha com um pano da louça ao
ombro. — Como foi a escola?
Sorri e pousei a mochila no chão. Já tinha tirado a pulseira do Josh a
caminho de casa e tinha-a enfiado num bolso da minha mochila para não ter
de pensar nela.
— Foi boa — respondi ao meu pai. — Escuta, posso falar contigo por um
instante?
— Tenho de mexer o molho, mas sim, claro.
Segui-o até à cozinha e sentei-me num dos banquinhos da bancada. Ele
estava a fazer esparguete com almôndegas — uma receita da avó Max — e o
cheiro era maravilhoso.
— O que se passa?
Estendi a mão e tirei uma maçã da fruteira.
— A mãe contou-me sobre a promoção. — Era mentira, claro, mas eu
estava a adiantar-me.
— Céus, mas estão a brincar comigo? — Os ombros do meu pai descaíram
e ele pareceu chateado. — Eu disse-lhe que queria falar contigo primeiro…
— Não, está tudo bem. — Dei uma dentada na maçã e continuei: — Ela
percebeu mal algo que eu disse e pensou que eu já sabia.
— Oh. — Ele fechou a boca e mexeu o molho, parecendo imerso em
pensamentos. O meu pai era um daqueles pais que mantinham um aspeto
jovem, tipo, tinha o cabelo todo e ainda não tinha ficado balofo. Dito isto,
tinha alguns cabelos grisalhos nas têmporas que sugeriam a sua verdadeira
idade.
— Bom, posso ser sincera? Eu quero que vocês se possam mudar para a
cidade dos vossos sonhos ou para onde quiserem. A sério. Mas — prossegui,
tentando arranjar coragem para dizer o que queria da forma correta — detesto
a ideia de te mudares para longe de mim. Tipo, eu adoro a mãe, mas a minha
casa é quando estou contigo.
A minha voz falhou no fim e senti uma enorme vontade de esclarecer que
estava tudo bem e que ele não se devia preocupar, mas forcei-me a não o fazer.
Fitei a casca vermelha da maçã.
— Uau. Vou ser sincero, Em… Não esperava por isto. — Ergui os olhos a
tempo de o ver a esfregar a nuca como se estivesse desconfortável. — Acho
que pensei que não faria grande diferença para ti.
— O quê, mudares-te para o outro lado do país? — Pestanejei depressa
porque chorar nunca ajudava em nada. Ainda não conseguia acreditar que
tinha chorado como um bebé diante do Nick em Química, mesmo que ele não
fizesse ideia do que tinha acontecido. — Claro que faz diferença! Tu és o meu
pai. Os rapazes são meus irmãos. Esta é a minha casa.
Ele parou de mexer o molho.
— Mas tu pareces tão feliz com a tua mãe. Acho que…
— Achaste. Tu achaste. — Sentia um sabor amargo na língua e havia muito
mais que eu poderia dizer, mas não queria estragar o dia perfeito. — Eu adoro
a mãe, mas tu és a minha casa.
Ele engoliu em seco e vi as suas narinas a dilatarem-se antes de ele dizer:
— Oh, Em… Desculpa.
Abanei a cabeça e lutei contra as lágrimas.
— Está tudo bem. Tu não sabias porque eu nunca disse nada. — Nunca
quisera agitar as águas. — E não quero impedir que te mudes. Eu só… Não sei,
pensei que talvez pudéssemos encontrar algumas opções para fazer com que
isto funcione.
Ele contornou a bancada e veio sentar-se no banquinho ao meu lado.
Disse-me que a ideia de não me poder ver todos os dias o estava a matar e
disse que nós — eu, ele e a Lisa — nos iríamos sentar no dia seguinte para
encontrarmos uma maneira de fazer com que tudo funcionasse.
Quando subi para o meu quarto nessa noite, estava a vibrar de felicidade.
Sentia-me mais próxima do meu pai do que nunca, não tinha batido com o
carro, entrar num programa de verão ainda era uma possibilidade e eu e o Josh
tínhamos tido um Dia dos Namorados perfeito.
Meti-me na cama e pensei na pulseira de prata. Quero dizer, era muito
bonita e parecia cara. Porque é que eu estava a dar tanta importância a ele ter-
se esquecido da minha alergia?
O meu telemóvel vibrou e estendi a mão para o local onde ele estava a
carregar na mesinha de cabeceira. Pensei que seria o Josh, mas era o Nick
Stark.
Nick: O teu batom do cieiro está na minha carrinha.
Eu: O quê?
Nick: Acabei de chegar a casa e, quando peguei na minha
mochila, o teu batom estava no chão, debaixo dela.
Ele tinha de se estar a referir ao meu batom da Burt’s Bees, que eu não tinha
conseguido encontrar o dia todo.
Nick: Vou levá-lo para a aula de Química, mas só te queria avisar.
Eu: Obrigada. Como é que te correu o teste?
Nick: Acertei em todas.
Eu: Uau. Convencido.
Nick: Culpado. Eu tenho muita confiança a Química.
Eu: Tu ÉS mesmo um tipo porreiro.
Nick: Pois sou, eu sei. Então, o teu namorado ofereceu-te flores no
Dia dos Namorados?
Eu: Chocolates e uma pulseira, na verdade.
Nick: Então, estás a usar as tuas joias neste momento enquanto te
enches de chocolate?
Aquilo fez-me rir e eu respondi: Deixei os chocolates no carro do meu amigo e a

pulseira deu-me alergia, por isso, não.

Nick: Caramba, ele deu-te uma pulseira que te deixa o braço


verde??
Suspirei e comecei a escrever, mas, antes de me aperceber sequer do que
estava a fazer, dei por mim a ligar-lhe.
— Estou?
— A pulseira não me deixou o braço verde. Eu sou alérgica à prata.
— Em primeiro lugar, isso existe mesmo? — perguntou ele. — E, em
segundo lugar, aposto que ele gostava que lhe tivesses contado esse pedacinho
de informação pessoal antes de ter gastado dinheiro em bugigangas para ti.
— Existe, sim, eu sou alérgica à prata. — Peguei no meu refrigerante que
estava na mesinha de cabeceira e disse: — E eu contei-lhe. Ele deve ter-se
simplesmente esquecido.
— Deixa-me ver se percebi. — A voz dele era profunda e um pouco rouca,
como se tivesse acabado de acordar. — Tu disseste ao Josh Sutton,
indiscutivelmente o tipo mais inteligente da nossa escola, que és alérgica à
prata e ele comprou-te um colar de prata para o Dia dos Namorados.
— Pulseira.
— Seja o que for. Ele está claramente a tentar matar-te.
Comecei a rir, apesar de o querer estrangular por me fazer duvidar do Josh.
— Não está nada.
— Tens a certeza? — Eu conseguia ouvir o sorriso na sua voz baixa e
tranquila. — Quero dizer, todo o cuidado é pouco.
— Já ouvi isso em qualquer lado. — Pigarreei, mal podendo acreditar que
estava a falar com o Nick Stark ao telemóvel. Que eu lhe tinha ligado a ele. —
Então, onde estiveste a noite toda?
— Eh lá, para trás, sua tarada.
— Cala-te — respondi eu por entre outra gargalhada. — Estiveste a
trabalhar?
— Estive.
— E?… Onde é que trabalhas?
— Será que devo ficar alarmado com o teu interesse pelas minhas idas e
vindas?
— De modo nenhum. — Lembrei-me do que ele achava das conversas de
circunstância, portanto disse: — Estava apenas com esperança de que me
pudesses arranjar grandes descontos em algum dos meus lugares favoritos.
Livrarias, cafés, pizarias… Qualquer um desses serve. Gosto de ter contactos.
— Então — ele parecia um pouco mais acordado —, gostavas de usar o
facto de me conheceres para teu ganho pessoal, é isso que estás a dizer?
— Precisamente. — Sorri no silêncio do meu quarto e acrescentei: — Mas
não precisavas de dizer isso como se fosse uma coisa mercenária.
— Bem, detesto desapontar-te, mas eu trabalho no 402 Ink. Um estúdio de
tatuagens.
Ele trabalhava num estúdio de tatuagens?
Toda a gente sabia que ele tinha feito tatuagens no ano anterior — no 10.º
ano —, o que lhe dava uma aura extremamente radical, já que a idade legal
para se fazer uma tatuagem sem autorização era dezoito anos. Mas trabalhar
lá? Isso dava-lhe claramente uma reputação de durão.
— Não estou desapontada — disse eu, imaginando o sorriso malicioso que
se formaria nos lábios dele ao ouvir-me a acrescentar: — Estou a planear fazer
duas mangas enormes na semana que vem, por isso é perfeito.
— Claro que estás.
— Sabes lá.
— Acho que sei.
Assenti com a cabeça, embora ele não me pudesse ver e perguntei:
— O que fazes lá?
— Tudo o que não seja tatuar. Atender telefones, redes sociais, website, caixa
registadora; sou basicamente um pau para toda a obra.
— Oh. — Encostei-me ao travesseiro e puxei as cobertas até aos ombros.
— Parece interessante.
— Acho que sim. — Ele parecia estar a andar quando disse: — E tu?
Trabalhas?
— Eu trabalho no Café Hex.
— A sério? Estou surpreendido por nunca te ter visto lá.
— Vais lá muito?
— Não. Na verdade, detesto café.
Aquilo fez-me bufar.
— Claro que detestas.
— Eu sou mais um tipo de chá.
— A mentir outra vez?
— Bebo quatro a cinco canecas de Sleepytime todos os dias.
— Só podes estar a mentir.
— Juro por Deus.
Tentei imaginá-lo a beber chá e, francamente, era demasiado adorável. Ele
fazia-me lembrar imenso o Jess Mariano8 quando falava sobre livros, e o chá
apenas aumentava essa sensação.
— Eu detesto chá — disse eu.
— Era de esperar.
— Não me vais tentar convencer de que estou errada? — O Josh adorava
chá e estava sempre a tentar convencer-me a experimentar o dele. — Os
bebedores de chá são geralmente uns chatos que juram que se
experimentarmos o chá tal como eles o bebem vamos gostar.
— Porque é que eu me importaria com o que tu bebes?
— Hum… não faço ideia.
— Ouve, tenho de ir. Só não queria que te passasses e perdesses a cabeça
por causa do teu batom.
— Estava quase, portanto agradeço imenso teres-me dito.
— Pareces o género.
— Eu sei.
Ele deu uma risadinha.
— Lamento os teus péssimos presentes do Dia dos Namorados, a
propósito — disse.
— Não há problema. — Aquilo fez-me rir de novo. — O que é que
compraste para a tua namorada?
— Namorada? Por favor. Não tenho tempo para isso.
— Mas se tivesses?…
Não sei porquê, mas queria mesmo saber.
— Se tivesse? Não sei, mas chocolates e anafilaxia, não, de certeza.
Ri-me de novo.
— Vá lá. Mostra dedicação — disse-lhe.
— Está bem. — Ele fez uma espécie de grunhido antes de dizer: — Algo
que fosse importante para ela, acho. Quero dizer, se ela fosse uma pessoa que
adora ler, como tu, tentaria encontrar uma edição especial do livro favorito
dela ou algo assim.
— Oh. — Eu não ia sequer deixar que a minha mente fosse nessa direção,
a de imaginar as possibilidades fantásticas de presentes.
— Mas alguém me disse recentemente que sou uma pessoa um bocado
mal-humorada, portanto presentes e dias de cartões-postais não são para mim.
— Ah. — Lembrei-me daquela manhã na carrinha dele e disse: — Que
pena isso do mau humor, mas a rapariga parece ser porreira.
Aquilo fê-lo dar uma encantadora gargalhada rouca que me percorreu as
veias e desceu até à ponta dos meus dedos dos pés.
— Boa noite, Emilie Hornby.
— Boa noite também para ti, Nick Stark.
Tinha acabado de desligar quando recebi uma mensagem.
Josh: Saudações, doce namorada.
Senti-me culpada ao responder. Eu: Saudações.
Josh: Estamos cheios de trabalho, por isso não te posso ligar até
ao intervalo, mas queria dizer-te um olá rapidinho, no caso de
adormeceres.
Eu: Um olá também para ti. 😉
Josh: Estás a usar a tua pulseira?
Eu: Não, estou na cama.
Josh: Lembrei-me de que adoras coisas brilhantes e fez-me recordar
o teu sorriso.
Eu não gostava particularmente de coisas brilhantes — não era uma
rapariga de bijuterias — e como é que uma pulseira de corrente de prata o
fazia recordar o meu sorriso? Tipo, o quê? O meu sorriso no 6.º ano, quando
eu usava aparelho nos dentes e um capacete para dormir?
Ainda conseguia ouvir o Nick Stark: Algo que fosse importante para ela.
Mandei uma mensagem: Ohhhhh. <3 Mas o teu poema foi o presente mais brilhante.

Josh: Tão querida. 😉Tenho de ir. Té logo, Emmiezinha.


Eu: Té logo.
Pus o telemóvel outra vez a carregar, apaguei a luz e acomodei-me no
travesseiro. Eu tinha realmente tido um ótimo Dia dos Namorados com o Josh
— poesia e joias, o que mais podia uma rapariga pedir, a sério? Era tudo o que
eu queria neste dia, mesmo antes de ter caído neste abismo de dias repetidos.
O namorado perfeito, a picar quase todos os pontos românticos que eu
pusera na minha agenda.
Então, porque é que eu não me sentia mais… não sei… enlevada quando
pensava nele? Havia a cena da Macy, claro, mas isto era outra coisa. Ele tinha
escrito um poema sobre mim, mas, de alguma forma, a memória do Nick Stark
a falar sobre o que compraria para uma namorada hipotética era mais
arrebatadora do que a poesia.
Esmaguei rapidamente aqueles pensamentos. Não sabia nada sobre o Nick
Stark — além do que ele gostava de ler, o que ouvia, como cheirava, onde
trabalhava, como o seu riso soava quando estava com sono ao telemóvel — e
ele era provavelmente o idiota que eu sempre achara que fosse.
O Josh era perfeito para mim, e eu estava apenas cansada.
Não pedi nenhum desejo a nenhuma estrela nessa noite. O dia estivera tão
próximo da perfeição — de uma forma tão orgânica — que eu não precisava
da ajuda da galáxia.
Eu trato disto, Via Láctea.
Adormeci sem sequer perceber que, por ter falado com o Nick ao
telemóvel, tinha-me esquecido de dizer «amo-te» ao Josh.
8
Personagem de Gilmore Girls. (N T )
CONFISSÃO N.º 10
Quando eu tinha três anos, costumava perseguir o Billy Tubbs
pela rua e, se o apanhasse, atirava-o ao chão e mordia-o nas
costas. O meu pai diz que ele chorava sempre que me via.
MAIS UM MISERÁVEL DIA DOS NAMORADOS
O meu alarme tocou e eu atirei o telemóvel para o outro lado do quarto.
— Nãooooooooooooooooooo!
«Walking on Sunshine» continuou a tocar depois de o telemóvel bater na
parede e cair algures no escuro, mas, em vez de o ir buscar, limitei-me a enfiar
o rosto no travesseiro e gritei até ficar sem fôlego.
Estava no Inferno.
Como é que aquele dia não tinha mudado o curso dos acontecimentos?
Peguei no meu roupão e fui para a casa de banho tomar duche. Outra vez.
Pus a água a correr e entrei, sabendo o que se seguiria. Contei até cinco e
então…
— Em, estás quase despachada?
Bingo. A Lisa ia encostar a boca contra a ombreira da porta e dizer-me que o
meu irmãozinho precisava de usar a casa de banho.
Tal como em todos os outros dias, gritei:
— Acabei de entrar.
— O Joel precisa de ir à casa de banho. Com urgência.
— Há outra casa de banho lá em cima. — Pus um pouco de champô na
mão e esfreguei-o na cabeça. Sabia qual ia ser a resposta dela, mas, de alguma
forma, parecia importante jogar aquele jogo.
— O teu pai está lá.
Desta vez, gritei:
— Molha-o com água gelada que ele sai já.
Houve uma pausa antes de ela murmurar através da madeira:
— Não vais mesmo sair?
Pensei nisso por um segundo e depois respondi:
— Acho que não. Desculpa.
Uau. Esfreguei o cabelo com mais força e, de repente, um pensamento
abafou todos os outros no meu cérebro.
Eu. Tinha. Imunidade.
Sim, estar presa num purgatório eterno do Dia dos Namorados era
péssimo, mas o que eu não tinha considerado até agora era que podia fazer o
que quisesse e não enfrentar nenhuma das consequências.
Eu podia, sem qualquer dúvida, usar as palavras do Nick Stark como o meu
mantra para o dia.
Que se lixe.
Tomei um banho extremamente longo em homenagem a esse facto, e
quando finalmente saí e me sequei, tinha tido uma epifania.
Podia dizer o que quisesse a qualquer pessoa e isso seria apagado no dia
seguinte. Não podia ser castigada, suspensa ou sequer presa, porque na manhã
seguinte estaria mais uma vez na minha cama, em casa do meu pai, a ouvir a
porra do «Walking on Sunshine» e ninguém se lembraria das minhas
transgressões.
Que começassem os jogos.
Saí do banho e fui direito à minha agenda.
Lista de Tarefas — 14 de fevereiro: DIA SEM CONSEQUÊNCIAS
TUDO O QUE ME APETECER
Em vez de me apressar para libertar a casa de banho, como sempre fazia,
arrastei um banquinho para diante do espelho. Aumentei o volume do meu
telemóvel e pus o novo álbum dos Volbeat em altos berros enquanto passava
demasiado tempo a aplicar o eyeliner. Fiz uma boa maquilhagem completa e
alisei o cabelo para o poder prender num rabo de cavalo alto perfeito.
— Nada mal, Em. — Olhei para o meu reflexo. Interessante. Afinal, se
gastássemos uma hora inteira a cuidar da aparência, ficávamos com um aspeto
excelente. Inclinei-me para a frente e imprimi o meu batom vermelho no
espelho, deixando a marca perfeita de uma boca.
Em seguida, fui até ao meu closet e vasculhei, sabendo exatamente o que ia
vestir para a escola. Eu tinha umas calças de couro pretas suuuupergiras, mas
nunca tivera coragem de as usar na escola porque eram justas com um J-U-S-
T-O maiúsculo.
E nada o meu estilo. Ou, pelo menos, o estilo que todos pensavam que eu
tinha. Só que as calças davam um aspeto de arrasar ao meu rabo, portanto eu
ia usá-las sem remorsos.
Combinei-as com a minha camisola de caxemira mais macia e as botas de
camurça que usara apenas uma vez e desci as escadas com a minha mochila,
cantarolando em antecipação daquele que estava destinado a ser um dia em
cheio.
Tinha ouvido o meu pai a sair enquanto alisava o cabelo, portanto em casa
só estavam a Lisa e os gémeos. Entrei na cozinha e fui direito à última fatia de
tarte de mousse de chocolate.
Os gémeos estavam à mesa, nas suas cadeirinhas, a enfiar pedaços de
panqueca nas suas bocas redondas com um ar terrivelmente adorável. Ri-me
quando o Logan empurrou o seu copo de bebé para fora da mesa e ficou a
observá-lo a cair no chão.
Malandreco.
A Lisa pegou no copo e colocou-o ao lado dele. Tinha o rosto tenso, por
conseguinte eu sabia que ela estava chateada com a minha recusa em sair do
duche pelo Joel.
Mas eu não me importava — não hoje.
Normalmente, eu fazia de tudo para ser a hóspede perfeita. Esforçava-me
imenso — o tempo todo — para fazer com que o meu pai e a Lisa não se
lembrassem de que a nova vida deles seria muito mais organizada se fossem
apenas eles os quatro.
Hoje, no entanto, que se lixasse isso tudo. Que se lixasse a culpa e as
cedências. Peguei num garfo e comi a tarte de chocolate diretamente da
travessa e, quando acabei, atirei-a para o lava-louça sem sequer a enxaguar.
— Ei, Lisa. — Virei-me e ofereci-lhe o meu maior sorriso. — O meu pai
ainda guarda as chaves do Porsche na bancada de trabalho no vestíbulo das
traseiras?
— Porquê? — Ela cruzou os braços sobre o peito e olhou para a travessa
de tarte no lava-louça. O que, para ser sincera, também me estava a incomodar.
A máquina de lavar louça estava mesmo ao lado do lava-louça; porque é que
alguém deixaria um prato sujo no lava-louça?
Obriguei-me a ignorar a travessa.
— Estou atrasada e preciso de algo com um pouco mais de potência do
que o meu carro. — No Dia Sem Consequências, ao qual doravante chamaria
DSC, um Porsche dar-me-ia mais jeito do que a furgoneta.
Sem me preocupar em esperar por uma resposta, corri para o vestíbulo e
abri a gaveta.
— Boa, cá estão elas.
— Ei, espera um minuto. O teu pai disse que podias levar o carro dele?
Ele nunca diria isso. Adorava aquele carro. Amava-o. Lavá-lo-ia com a
língua se isso protegesse para sempre a tinta preta brilhante. O meu pai tinha
comprado aquele Porsche velho e estragado num ferro-velho quando eu era
pequena e passara inúmeras horas a arranjá-lo com o meu tio Mick. Não tinha
um ar muito moderno, mas era rápido e elegante.
E também não era uma furgoneta Astro.
— Não te preocupes. Tenham um ótimo dia, sim?
— Emilie, tu não vais levar esse carro, estás a ouvir-me?
Inclinei a cabeça e fiz beicinho:
— Sim, estou a ouvir-te, querida, mas lamento informar que vou levar o
carro. Tchauzinho.
Saí e fechei a porta atrás de mim, quase esperando que ela me perseguisse
até à entrada da garagem. Tchauzinho? Ri-me quando percebi o que acabara de
fazer e dizer.
Entrei a cantarolar alegremente na garagem separada da casa, metendo-me
no Porsche antes que a Lisa me pudesse impedir. Aquele menino acordou com
um ronronar e eu ajustei os meus óculos de sol sobre o nariz e saí da garagem
com os pneus a guinchar, tão depressa que nem daria para alguém dizer «A
gaja está com tudo».
Uau. Carreguei no acelerador e voei pela Harrison Street, abraçando a
estrada e esticando as pernas e fazendo todas aquelas coisas incríveis com
carros que os anúncios de televisão dizem que os carros incríveis fazem.
Tradução: Voei como um foguete.
Tinham-se acabado os Dias dos Namorados que começavam com carros
péssimos e acidentes na estrada. Tinham-se acabado os Dias dos Namorados
que me deixavam a chorar na casa de banho da escola. Tinham-se acabado os
dias intermináveis em que eu vestia o velho casaco emprestado do Nick Stark
e tinham-se acabado os dias que pareciam importantes, mas, obviamente, não
o eram. Esta nova versão do Dia dos Namorados estava a começar com um
carro veloz e os Metallica aos berros, e eu desafiei o universo a estragar-me o
dia.
Desta vez, não.
Olhei pelo espelho retrovisor quando a polícia se colocou atrás de mim e
acendeu as luzes azuis. Senti o estômago a apertar-se por um segundo até me
lembrar — sem consequências. Tecnicamente, se quisesse, eu podia levá-lo
atrás de mim numa perseguição em alta velocidade que acabaria em todos os
canais de notícias nacionais, mas isso daria muita confusão e não me apetecia.
Além disso, eu queria ir para a escola. Tinha muitas coisas a fazer naquele
dia. Encostei, peguei na carta de condução e no livrete e baixei o vidro.
Quando o polícia surgiu, parecia mal-humorado:
— Carta de condução e livrete, por favor.
Entreguei-lhos e disse:
— A propósito, sei que ia demasiado depressa, desculpe.
— A menina ia a cento e cinquenta quilómetros por hora numa zona de
setenta.
Ups.
— Peço imensa desculpa.
— Vai precisar de muito mais do que um pedido de desculpa, minha
menina. Volto já.
Ele voltou para o seu carro e eu aumentei um pouco o volume do rádio.
Comecei a cantar ao som de «Blackened», a minha seleção musical nada
aleatória para o DSC, e depois diverti-me a acenar para todas as pessoas que
olhavam boquiabertas para mim enquanto passavam.
Era assim que um rebelde se sentia? Porque eu estava a gostar da sensação.
Não parava de rir sozinha, soltando risadinhas incontroláveis sempre que
pensava no facto louco de ter sido mandada parar no carro que roubara ao
meu pai, sem autorização, por ir a oitenta quilómetros por hora acima do
limite de velocidade.
Quem era eu mesmo?
Comecei a ficar nervosa com a demora, principalmente quando apareceu o
reboque, mas depois tive de me lembrar que não importava. Nada importava.
Independentemente do que acontecesse, eu acordaria amanhã livre e sem
mácula.
O polícia voltou finalmente à minha janela. Entregou-me o livrete e o
cartão do seguro, mas ficou com a minha carta.
— Vai receber uma multa por condução imprudente. Vai ter de ir a
tribunal. Como ia muito além do limite estabelecido, esta não é uma multa que
possa pagar sem ir a um juiz. Está a perceber?
Acenei que sim e semicerrei os olhos por causa do sol que brilhava atrás da
grande cabeça do polícia.
— O seu carro vai ser apreendido por causa do excesso de velocidade. Tem
aqui um panfleto com todas as informações sobre por quanto tempo ele ficará
apreendido e como é que poderá recuperá-lo nessa altura.
— O meu carro vai para a cadeia?
— É melhor do que ir a menina, não acha?
— Claro. — Ir para a prisão iria atrapalhar totalmente os meus planos para
o dia.
— A sua carta também será revogada até à data do tribunal. Nessa altura, o
juiz pode decidir se será possível recuperá-la ou não.
— Uau, vocês não estão mesmo a brincar aqui hoje, pois não?
Ele tirou os óculos e olhou para mim com o sobrolho franzido, como se
não pudesse acreditar na minha lata.
— Minha menina, isto é muito grave.
— Eu sei. Estava só a brincar, sabe? Para tentar aliviar o ambiente.
— Tem alguém que a possa vir buscar?
Já que os meus pais eram péssimos a atender as minhas chamadas e, de
qualquer maneira, eu não estava com vontade de ouvir os sermões chatos
deles, respondi:
— Os meus pais estão ambos em reuniões esta manhã, portanto sei que
não podem atender os telemóveis. Tenho um trabalho muito importante para
entregar na primeira aula e também não a quero perder. Será que haveria
alguma maneira de o senhor me deixar simplesmente em Hazelwood quando
acabar aqui?
CONFISSÃO N.º 11
Durante anos, sonhei acordada que entrava num combate de
boxe com a Khloé Kardashian. Tenho a certeza de que a
conseguia derrotar.
O polícia deixou-me na escola, com um olhar meio impressionado e meio
desagradado. Assim que entrei no edifício, fui direito ao cacifo do Josh. Se não
conseguia encontrar uma maneira de acabar com os dias repetidos, pelo menos
podia acabar com ele por beijar a Macy e sentir que tinha algum tipo de
controlo sobre a minha vida romântica. Perdera toda a primeira hora, mas por
acaso tive a sorte de chegar durante o intervalo, o que significava que havia
boas hipóteses de ele estar ali.
O meu telemóvel vibrou. Pai: Liga-me JÁ.
Portanto, a Lisa tinha-lhe contado sobre o carro.
Ou então a polícia.
Segui para o corredor norte e — uau. Ali estava ele.
O Josh estava parado ao lado do seu cacifo, a rir com o Noah, e a visão dele
quase me deixou sem fôlego. Era tão Josh naquele momento. Bonito e
engraçado, e o tipo que era considerado perfeito para mim.
Ele lera-me Sylvia Plath sobre uma manta no meio da relva, por amor de
Deus. Como é que era possível ele não ser o tal?
— Emmie! — Os olhos dele pousaram em mim e o meu rosto ficou
quente, como sempre. Ele fez aquele sorriso que me dizia que sabia o impacto
que me causava e chamou-me: — Vem cá!
Fui até ao cacifo dele e, antes que tivesse a oportunidade de o mandar passear
publicamente, como tinha planeado, ele colocou as suas mãos de dedos
compridos em redor da minha cintura e puxou-me contra si.
Os amigos dele foram-se embora, os amigos que eu planeava impressionar
com as minhas capacidades épicas de acabar com um namorado.
— Aqui estás tu. — Ele encostou a testa contra a minha e eu fui sugada
pela sua voz profunda e calma. — A miúda mais bonita da escola.
— Eu, hum…
— Queres o teu presente do Dia dos Namorados agora? — Afastou-se um
pouco e prendeu-me o cabelo atrás da orelha. — Estás incrível hoje, a
propósito.
Em vez de abrir a boca e dizer as palavras que terminariam com o namoro,
respondi:
— Obrigada.
— Menina Hornby, Sr. Sutton, por favor, já para a aula. — A professora
Radke, de Literatura, cruzou os braços e deitou-nos um olhar de reprovação
por trás dos seus óculos de armação de metal.
O Josh sorriu para mim:
— Perdeste a oportunidade. Almoço?
Assenti com a cabeça e ele deu-me um beijo rápido nos lábios antes de se
virar e caminhar na outra direção.
— Toca a andar, menina Hornby.
— Emilie, tenho um bilhete aqui que diz que precisas de ir ao gabinete
escolar.
— Está bem. — Levantei-me da minha mesa e dirigi-me ao professor
Smith, o meu professor de Cálculo. O homem era uma pilosidade nasal
ambulante, portanto olhei para o quadro atrás dele e disse: — Obrigada.
O DSC tinha perdido um pouco da sua excitação depois de ver o Josh,
principalmente porque ele agira da mesma forma de sempre, ou seja, de um
modo perfeito.
Irra. Tão, mas tão perfeito. Tipo, o modo como ele sorriu quando me viu
junto do seu cacifo não parecia o sorriso de alguém que estivesse farto de mim
e passado para a Macy. Talvez eu não estivesse errada em relação a tudo.
Certo?
Estava a agarrar na maçaneta da porta do gabinete quando ouvi risos
vindos da direção do bar. Olhei por cima do ombro e, claro, a gargalhadinha
melodicamente tilintante viera da Macy Goldman. Ela estava no corredor, a rir,
enquanto atirava o cabelo como uma supermodelo e olhava para baixo para…
Oh.
Mesmo depois dos dias repetidos a vê-los a beijarem-se, senti um aperto no
peito quando vi o Josh sentado no chão com o Noah a sorrir para a Macy. Ele
estava a sorrir para ela daquela maneira. A mesma maneira enamorada com que
olhara para mim.
Pela primeira vez desde que os vira a beijarem-se, eu não estava magoada
ou triste — estava zangada. Furiosa, na verdade. Estava com tanta raiva que
queria dar pontapés no que me aparecesse à frente, ou talvez dar um soco
nalguma coisa. Cerrei os dentes e entrei no gabinete. Nem sequer prestei
atenção à Sra. Svoboda, indo diretamente para o gabinete do Kessler.
— Aqui está ela.
Entrei no gabinete, mas não me sentei. Também não olhei para ele. Limitei-
me a cruzar os braços e a ficar ali a ferver, olhando furiosa para a mulher que
estava prestes a roubar-me o meu verão, como se ela fosse responsável por
tudo o que estava a correr mal na minha vida. Não era, mas teve a infelicidade
de estar ali quando cheguei ao meu limite.
— Se está aqui para me dizer que houve um engano e que não consegui a
vaga no programa de verão, não se dê ao trabalho. Eu preciso disso para a
bolsa de estudo e para as candidaturas à universidade, e o facto de usar a
palavra «preciso» aqui não é um erro, portanto a senhora não me vai tirar isso.
— Cerrei os dentes e a mulher olhou para mim como se estivesse um pouco
assustada. — Só porque a senhora tem alguém na sua equipa que não sabe
contar, não significa que eu deva perder a minha única oportunidade de ganhar
um Pulitzer.
— Emilie… — O Sr. Kessler inclinou a cabeça. — Porque é que não te
sentas?
— Não posso. — Ergui uma mão. — Tenho de ir a um sítio, mas vocês vão
ter de voltar ao princípio e encontrar uma maneira de resolver isto.
A mulher pigarreou e pareceu confusa.
— Como é que sabia o que eu ia dizer?
Encolhi os ombros.
— Intuição, acho. É, provavelmente, o que vai fazer de mim uma jornalista
espetacular, não acha?
Dizendo aquilo, saí. O que mais havia a dizer?
Senti-me bem a fazer alguma coisa. Em vez de ser a minha vida a puxar-me
por arrasto, era eu que estava a liderar o ataque com os meus dedos em volta
do seu pescoço esquelético. Para o bem ou para o mal, este dia era sobre eu ser
completamente proativa em relação à minha vida.
Porque nada importava.
A Sra. Svoboda já não se encontrava na sua secretária. Esta estava vazia, a
cadeira dela vaga e o microfone do intercomunicador dos avisos não estava a
ser vigiado.
Hum…
Olhei em redor. O Nick Stark estava sentado numa cadeira no gabinete a
olhar para o telemóvel. Que ironia. Olhei para o rosto bonito dele e fui
atingida por uma tristeza melancólica. Ontem tínhamos tido um dia incrível e
tínhamos falado ao telemóvel poucas horas antes — a voz dele foi a última
que ouvi antes de adormecer —, mas ele não sabia de nada. Éramos
basicamente estranhos mais uma vez, mas eu sabia o que ele compraria para
uma namorada se tivesse uma no Dia dos Namorados.
E sabia que ele cheirava ao sabonete mais limpo de todos.
Concentra-te, Em.
Os diretores tinham as portas de ambos os gabinetes fechadas, e a
enfermeira estava ao telefone.
Eu não podia.
Ou podia?
Contornei a secretária, sentei-me na cadeira da Svoboda e inclinei-me para a
frente. O meu coração batia com força quando carreguei no botão.
— A… atenção, alunos de Hazelwood. Gostaria de anunciar que o Josh
Sutton é um completo idiota. — Ri-me. A sério. Uma risadinha saiu-me da
boca e os meus lábios curvaram-se num enorme sorriso enquanto me inclinava
um pouco para trás na cadeira. — Aqui fala a Emilie Hornby e estou
oficialmente a acabar contigo, Josh, porque és péssimo.
A cabeça do Nick ergueu-se e ele olhou para mim como se não pudesse
acreditar no que estava a ouvir. Encolhi os ombros porque também não
conseguia acreditar.
— És um grande idiota, um palerma pomposo com um carro estúpido e
não quero que sejas meu namorado. — Larguei o botão, mas premi-o de novo
e acrescentei: — Ah, sim, e é muito patético que te refiras ao teu grupo de
amigos como «os Bardos», como se fossem personagens de O Clube dos Poetas
Mortos ou algo assim. Querias! A Em a desligar.
Ouvi a gargalhada profunda do Nick enquanto me levantava e contornava a
mesa o mais rápido que conseguia. Saí do gabinete no momento exato em que
tocou para a saída, portanto tive a sorte de ser engolida por todos os alunos
que enchiam o corredor. Tinha a certeza de que iria ser ali chamada mais tarde,
mas esperava conseguir abandonar o edifício antes disso.
A Macy, o Noah e o Josh já não estavam no bar.
Dirigi-me para a aula de cabeça erguida e com um sorriso no rosto que não
conseguia conter. Sabia que a maioria das pessoas por quem passava nem
sequer me conhecia, mas mesmo assim cumprimentei os meus colegas de
escola com um aceno de cabeça superdescontraído, como se estivesse a
protagonizar o meu próprio filme.
Na minha cabeça estava a tocar «Sabotage» dos Beastie Boys, enquanto eu
me pavoneava em direção à aula de Química.
Estava quase na minha sala de aula quando passei pela Lallie, a Lauren e a
Nicole.
Elas estavam paradas em redor de um cacifo, catalogando em voz alta tudo
o que estava mal com a roupa da Isla Keller, sem que esta o percebesse. Ela
estava a tirar um livro do seu cacifo, sem fazer absolutamente nada para
merecer a maldade das outras.
— A sério, porque é que alguém usaria uns sapatos tão horríveis? — disse a
Lallie.
— Oh. Meu. Deus. — A Lauren Dreyer tirou o chupa-chupa da boca e
apontou para os sapatos da Isla antes de o enfiar outra vez na boca. — Tão
feios.
— Qual é o vosso problema? — perguntei eu, assustando-as, e a mim
mesma, com a minha voz sonora.
As três viraram-se para olhar para mim.
— O quê? — perguntou a Lallie.
— Porque é que vocês são tão mesquinhas? — perguntei, sentindo a minha
pulsação a aumentar ao ver algumas pessoas a parar e olhar na nossa direção.
— Bom, não fui eu quem foi uma completa besta pelo intercomunicador
— disse a Nicole, estreitando os olhos para mim e parecendo uma rainha má.
— Sim, Emilie — zombou a Lallie. — A sério?
Num dia normal, eu estar-me-ia a passar com uma dor de estômago
instantânea se aquelas miúdas me estivessem a atacar ao vivo no corredor. Mas
a Em do DSC não se importava.
— Percebes que na verdade não fizeste nenhuma pergunta, certo, Lalz? —
disse eu. — Ou estás tão bêbeda de mesquinhez que nem sequer consegues
juntar mais de quatro palavras?
Aquilo fez a Nicole soltar uma exclamação, por isso apontei para ela e disse:
— E nem comeces, Nicole. Vi-te a seres horrível para toda a gente desde,
tipo, o 2.º ano, portanto vamos supor que estás prestes a vomitar alguma
merda odiosa sobre mim e mais vale poupares o teu fôlego e o meu tempo.
A Lallie e a Lauren estavam a arfar em busca de uma resposta — eu
conseguia vê-lo nos seus rostos bronzeados —, mas eu não ia ficar à espera.
— Vocês têm noção de que toda a gente desta escola, tipo, to-da a gen-te,
mesmo, que não faz parte do vosso grupo vos odeia profundamente? Pensem
nisso. Vocês são o alvo de um milhão de piadas, sabiam? Ninguém vos diz
nada porque temos todos pavor de vocês, mas são motivo de chacota para
oitenta por cento desta escola.
Então, agarrei no pau do chupa-chupa da Lauren e puxei-o para fora da
boca dela. Quase me ri com o ar chocado no rosto dela, mas consegui manter
uma cara séria. Atirei o chupa-chupa para o chão e fui-me embora, com
«Sabotage» novamente a bombar na minha cabeça enquanto flutuava pelo
corredor.
Quando cheguei à aula de Química, dirigi-me para a minha mesa. O Nick
entrou um minuto depois, mas não disse uma palavra. Apenas ergueu uma
sobrancelha e sentou-se no seu banco.
— Que tipo de carro tem ele?
— O quê? — Abri o fecho da minha mochila. — Quem?
— O Josh. Tu disseste que o carro dele era estúpido, lembras-te?
— Ah. — Aquilo fez-me sorrir porque o Josh pensava que aquela coisa era
o veículo mais espetacular que alguma vez roncara pelo planeta. — Um MG de
1959.
— Ui — disse o Nick, recompensando-me com um dos seus sorrisinhos
por saber.
Observei a sua maçã de Adão a mover-se quando ele engoliu e a beleza dele
deixou-me impressionada. Cabelos escuros, olhos ridiculamente azuis, maçãs
do rosto perfeitas e pestanas supercompridas. E o corpo dele parecia duro. Eu
tinha a certeza de que se corresse a toda a velocidade em direção a ele, iria
ressaltar para trás em vez de o derrubar.
O professor Bong entrou e começou imediatamente a aula. Eu não tinha os
meus apontamentos, mas aparentemente também não iria precisar deles.
Então, em vez de pegar no meu caderno, peguei no meu telemóvel.
Pai: Claramente não me vais ligar de volta, portanto ficas de
castigo sem telemóvel assim que chegares a casa. Onde está o
meu carro?
Eu sabia que me devia sentir um pouco mal por ter levado o bebé dele,
especialmente depois do momento bom, ainda que não real, que tínhamos
partilhado na noite anterior, mas algo na sua resposta me irritou. Na maioria
dos dias, ele e a minha mãe demoravam horas e horas para responder à mais
simples das minhas perguntas. Naquela vez em que tive uma reação alérgica a
cajus no acampamento de verão e precisei de saber a que serviço de urgência
me dirigir, cada um deles — e não estavam a viver juntos — demorou mais de
uma hora a responder.
No entanto, quando eu demorava uma hora para responder ao meu pai
sobre o carro dele, ele começava logo a perder a cabeça.
O meu telemóvel vibrou.
Bafo Nojento: Podes vir hoje? A Beck ligou a dizer que estava
doente e como te dei o sábado de folga deves-me uma. 😉 😉
Irra. Trabalho.
Olhei para o perfil do Nick, lembrei-me das regras do DSC e respondi de
acordo com elas.
Não vou DE MODO NENHUM hoje porque não me apetece. Mas
obrigada, Paulie.
Guardei o telemóvel. No entanto, em vez de tomar notas ou prestar
atenção, fitei o Nick.
E quando ele olhou para mim, apanhando-me, em vez de desviar o olhar,
como normalmente faria, limitei-me a apoiar o queixo na mão e sorri. Sem
consequências. Ele franziu a testa como se não percebesse, o que me fez sorrir
ainda mais.
Depois olhou para o Bong e eu continuei a observá-lo. Após cerca de cinco
segundos, murmurou, sem olhar para mim:
— O que estás a fazer?
— Apenas a olhar.
— Sim, isso vejo eu. — Ele escreveu algo no caderno e acrescentou: —
Mas porquê?
Mordi o lábio inferior e pensei Que se lixe, antes de dizer:
— És mesmo muito atraente.
Ele continuou a não olhar para mim.
— Achas?
O Bong parou de dar a aula para nos fitar com irritação.
— Sr. Stark, pode esclarecer-nos o que é tão importante que não pode
esperar?
— Eu posso. — Levantei a mão e disse: — Estava a dizer ao Nick que o
acho atraente, e esperava que ele talvez quisesse sair comigo, já que agora estou
solteira.
Eu sabia que o Nick podia ser indelicado, portanto havia claramente a
hipótese de ele me denunciar diante de todos. Mas não importava porque era o
DSC. Ele virou a cabeça e olhou para mim com os olhos arregalados.
O Bong gaguejou:
— Este não é o momento nem… nem…
— Claro que quero — disse o Nick.
Ouvi algumas risadinhas atrás de nós quando o Nick me deu aquele
sorrisinho que já se tornara bastante familiar para mim.
— Sr. Star…
— Queres ir agora? — perguntei por entre uma gargalhada, porque era
impossível não rir.
— Já chega. — O rosto do professor Bong estava a ficar muito vermelho
enquanto nos fitava. — Não sei o que te deu hoje, Emilie, mas não vou
permitir…
— Vamos — respondeu o Nick. Pegou na sua mochila e levantou-se,
colocando-a ao ombro.
— Sente-se, Sr. Stark — disse o professor Bong.
— Perfeito. — Eu estava a sorrir abertamente para o Nick enquanto
agarrava na minha mochila e nos virávamos os dois para sair. A turma inteira
estava boquiaberta a olhar para nós, em estado de choque, e juro por Deus que
senti uma corrente elétrica a passar por mim, começando na ponta dos dedos,
quando senti a mão dele a agarrar a minha e a conduzir-me para fora da sala.
— Passem pelo gabinete do diretor, já que vão sair — gritou o professor
Bong.
Assim que a porta se fechou atrás de nós, o Nick olhou para mim e disse:
— Queres que eu conduza?
Sabem, como se faltar às aulas abertamente fosse normal — uma coisa
habitual — e a maior preocupação fosse quem iria ao volante.
Assenti com a cabeça.
— Sim, por favor.
Aquilo fê-lo sorrir.
— Anda.
Puxou-me pela mão, apertando-a, e dirigiu-se rapidamente para a porta
lateral.
— Vamos embora antes que o Bong mande a segurança escolar atrás de
nós.
Lançámo-nos pelo corredor e não consegui conter o riso. Que coisa
absurda e louca para estar a fazer às dez e meia da manhã. Inspirei o ar fresco
quando irrompemos pela porta de saída e uma brisa gelada e ensolarada
atingiu os nossos rostos. O Nick continuou a puxar-me atrás dele em direção
ao seu carro.
E, enquanto corríamos pelo pavimento coberto de neve, senti-me mágica e
maravilhosamente diferente de mim mesma. Eu era a miúda de sonho louca e
irreverente num filme, uma personagem criada exclusivamente para ser
descomplicada, inesperada e totalmente imprevisível.
— Aqui. — Ele parou ao lado da Betty e destrancou a porta do passageiro.
Abriu-a e depois olhou para mim. — Ainda queres fazer isto?
Encontrei o olhar dele e queria fazer tudo o que ele quisesse sempre que
olhasse para mim daquela maneira. Era tão clichê, mas os olhos dele tinham
um brilho, uma centelha travessa, quando ele estava divertido, e eu estava
viciada nesse olhar.
— Desde que tenhas na tua carrinha um casaco que me possas emprestar,
vamos embora — disse eu sorrindo.
Os olhos dele enrugaram-se nos cantos quando respondeu:
— Acontece que estás com sorte.
Enquanto o Nick dava a volta para o lugar do condutor, eu entrei e estendi
a mão por cima do banco para agarrar o casaco. Quando enfiei os braços no
material pesado, a sensação foi tão familiar que era como se o casaco me
pertencesse.
O Nick entrou, olhou para mim e voltou a olhar. Sorriu e apontou para trás
de mim.
— Sim… hum… o casaco está atrás do banco. Veste-o à vontade.
Aquilo fez-me rir ainda mais e, à medida que ele ligava a carrinha, puxei o
elástico do meu rabo de cavalo, sacudindo o cabelo e passando os dedos por
ele enquanto o afastava do rosto. Peguei nos Ray-Ban que estavam no painel de
instrumentos e fi-los deslizar sobre o nariz ao mesmo tempo que apoiava os
pés no painel.
— Confortável?
Ele parecia divertido e surpreendido com as minhas ações, por isso cruzei
os tornozelos e os braços. Inclinei-me para trás e disse:
— Mais confortável do que me sinto há anos.
Ele limitou-se a olhar para mim por um segundo, com aquele sorriso
secreto nos lábios, antes de abanar a cabeça e dizer:
— Então, para onde vamos?
— Vamos para o centro.
— Centro, aqui vamos nós. — Engatou a mudança e afastou-se da escola.
— Põe o cinto.
Eu queria gritar, sentindo uma energia selvagem a flutuar através de mim,
envolvendo-me na emoção de viver apenas o momento, o meu momento.
Qualquer momento em que eu quisesse ser envolvida, se é que isso fazia algum
sentido. Mexi no rádio dele e mudei para FM, passando as estações, até que
ouvi as notas daquela canção ridícula.
A «Thong Song».
— Oh, meu Deus, lembras-te desta música? — Olhei para o Nick e ele
deitou-me um olhar que me dizia que sim, mas que também se arrependia
dessa lembrança. — Canta, vá. «She had dumps like a truck, truck, truck».
— Deus me ajude — murmurou ele.
— «Thighs like what, what, what» — continuei a cantar.
— Matem-me, por favor — disse ele, mas estava a sorrir contra a sua
vontade enquanto eu cantava todo o resto da música bem alto, sem me
importar com nada além do facto de me sentir bem.
Quando a canção terminou, ele baixou o volume do rádio e perguntou
calmamente:
— Existe algum sítio em particular onde queiras ir quando chegarmos ao
centro?
— Bem, quero mesmo fazer uma tatuagem. Tirando isso, podemos fazer
praticamente tudo.
Os olhos dele estreitaram-se e ele olhou para mim como se eu tivesse
declarado que era um extraterrestre.
— O que foi?
Aquilo não mudou a maneira como ele olhava para mim, portanto, repeti:
— O que foi? Conheces um bom sítio onde fazer uma tatuagem?
Obviamente, eu sabia que sim porque ele me falara sobre o seu emprego ao
telemóvel na noite anterior. Mas ele não sabia que eu sabia, e eu não queria
parecer estranha.
— Porque é que achas que conheço? — disse ele.
— Já vi a tua tatuagem.
Ele manteve os olhos na estrada.
— Talvez a tenha feito a mim mesmo — respondeu.
— Não. Está no teu braço direito e tu és destro. Seria impossível. Tenta
outra vez.
— Está bem, miúda esquisita. — Ele lançou-me um olhar rápido. — Talvez
eu a tenha feito no reformatório.
— Isso é um pouco mais credível.
— Lindo.
— Mas continua a não ser verdade. No centro da cidade, no Mooshie’s?
Ele abanou a cabeça.
— Não.
— O quê, é demasiado fixe para ti?
— É mais demasiado na moda.
— Então?… Onde é que foste?
— 402 Ink.
— Está bem. — Eu sorri porque já sabia. — E levas-me lá?
— Sabes que eles fazem por marcação, certo? — Ele tinha a mão direita
apoiada descontraidamente sobre o volante e o cotovelo esquerdo a descansar
no caixilho da janela, enquanto controlava a direção com alguns dedos apenas.
Era uma confiança cheia de estilo, tal como ele. — Todos os estúdios de
tatuagens o fazem — continuou ele. — É pouco provável que alguém te
consiga encaixar hoje.
— A sério? Não tens nenhum conhecimento lá? — Algum colega de trabalho?
— Alguém a quem possas pedir um favor?
— Só porque tenho uma tatuagem não significa que tenho um contingente
de tatuadores disponíveis para me fazerem favores.
— «Contingente de Tatuadores»… Um bom nome para uma banda. Disse
primeiro.
Aquilo fê-lo sorrir.
— Gosto. E tu serias a vocalista, suponho?
— Estás a brincar? Eu tenho uma voz terrível. Pareço uma pandeireta.
— Fraca.
— Não, «fraco» é não ajudares a tua amiga a fazer uma tatuagem.
— Oh, então és minha amiga agora.
Baixei a pala, tirei o batom da mochila e retoquei-o.
— Sim. Somos amigos, Nick Stark. Aceita esse facto.
O Nick ligou o pisca e entrou na via rápida.
— Se és minha amiga, diz três coisas que sabes sobre mim.
— Bom, vejamos. Três coisas. — Para ser sincera, eu podia provavelmente
preencher algumas páginas de um caderno com as coisas que aprendera sobre
ele em todos os meus dias repetidos. Mas fingi ter alguma dificuldade antes de
dizer: — Primeiro, sei que conduzes uma carrinha.
— Essa era fácil, Hornby.
— Está bem. — Levantei a pala e disse: — Ora… Para começar, não tiras
apontamentos em Química, mas tens sempre notas melhores do que eu.
— Sua pestezinha intrometida, mantém os olhos nos teus próprios testes.
Guardei o batom com um sorriso.
— Número dois, cheiras sempre a sabonete — continuei.
Ele olhou-me de soslaio.
— A isso chama-se tomar banho.
Revirei os olhos.
— Não, tu cheiras mesmo a sabonete. Como se fosses feito de Dove ou algo
assim.
Ele soltou uma risadinha antes de dizer:
— És tão estranha.
— Não sou nada. E número três. Hum… — Olhei para ele. — És menos
idiota do que eu sempre achei que fosses. — Saiu com mais sinceridade do que
eu pretendia, uma grande mudança em relação ao meu tom de brincadeira
anterior, e eu corei, baixando os olhos para os joelhos.
— Bem, acho que isso é bom — disse ele, sorrindo-me de boca fechada
enquanto ligava o pisca e mudava de faixa. — Certo?
— Certo. — Pigarreei e acrescentei: — Então, vais ajudar-me?
Com os olhos na estrada, ele respondeu:
— Bem, eles só abrem depois do almoço, mas sim.
— Vais? — A palavra saiu-me como um guincho, mas não me importei. —
Boa!
Ele apenas abanou a cabeça enquanto acelerava.
— Muito bem, Nick — disse eu, desesperada para saber tudo sobre ele —,
vamos jogar um jogo.
— Não.
— Eu faço uma pergunta — expliquei calmamente, tentando não rir
porque ele não olhou para mim, mas os seus olhos enrugaram-se nos cantos
— e tu vais responder.
— Não.
— Vá lá, vai ser divertido. Como o Verdade ou Consequência, só que é
tudo verdade e não há tretas parvas. — Desliguei o rádio. — Também me
podes fazer perguntas a seguir, se quiseres.
Ele olhou-me de soslaio mais uma vez.
— Estou bem assim.
Não me importei com a sua renitência. Virei-me para ele, sorri e disse:
— Pergunta número um. Se a lei te obrigasse a competir profissionalmente
num evento de atletismo ou a ser morto por um pelotão de fuzilamento, o que
escolhias?
Ele nem sequer olhou para mim.
— Corrida.
— A sério? — Inclinei a cabeça e olhei para ele. Vestia calças de ganga
desbotadas e um blusão preto. — Não te consigo imaginar a correr.
— Próxima pergunta.
— Não, o objetivo do jogo é eu aprender algo sobre ti. Tu corres?
— Sim.
— A sério? — Eu não conseguia mesmo imaginar. Quero dizer, ele parecia
estar em ótima forma, mas tinha uma personalidade demasiado intensa para
ser um corredor. — Tu fazes corridas?
Os olhos dele estreitaram-se ligeiramente.
— Como é que eu correria se não fizesse corridas?
— Não sei. — E não sabia mesmo. No entanto… — Bem, e o que ouves
quando corres?
— Este jogo é péssimo — resmungou ele enquanto seguia pela saída da St.
Mary’s Avenue.
— Metallica?
Ele olhou para mim.
— Às vezes.
— O que mais? — Eu precisava de saber mais sobre isto. — E corres todos
os dias?
Ele parou num semáforo antes de se virar para me fitar diretamente, o tipo
de olhar que nos sugava para dentro dele até não termos noção de mais nada
além do Nick Stark.
— Acordo às seis todos os dias e faço uma corrida de oito quilómetros. É a
minha vez agora?
Pestanejei. Seis da manhã? Oito quilómetros?
— Ainda não. — Pigarreei. — Bom, esta é uma pergunta hipotética.
Porque é que um rapaz fingiria não reconhecer uma rapariga que conhece da
escola?
— O quê? Isso é uma pergunta parva.
— Para ti, mas não para mim. — Ri-me, apesar de tudo, sabendo quão tolo
aquilo devia soar. — Só preciso da perspetiva de um rapaz. Se um tipo é
apresentado a uma rapariga que já conhece, mas finge não a conhecer, bem… o
que te parece que isso quer dizer?
Ele olhou para mim.
— Eu diria que ou ele não gosta dela e quer evitar conversas, ou tem uma
queda por ela e está a tentar parecer desinteressado.
— OK. — Senti uma onda de calor perante a ideia de o Nick ter uma queda
por mim. Seria possível? Será que o Nick Stark tinha reparado em mim… e
gostado… de mim antes de tudo isto começar?
No entanto, era igualmente provável que ele não gostasse de mim. Pensei na
Em que eu apresentava na escola, aquela que o Nick via nas aulas. Será que eu
teria gostado de mim se me conhecesse?
Instantaneamente, decidi que não importava, fosse como fosse — uma
conclusão muito rara em mim, notei. Prossegui.
— Passaste no teste. Mais uma pergunta hipotética e pronto.
— Graças a Deus.
— Não é? — Sorri e tentei pensar na melhor maneira de o dizer sem soar
como uma pessoa alucinada. — Bom, se começasses a reviver o mesmo dia
várias vezes, como num cenário de loop temporal, contavas a alguém?
— Nem pensar.
Fiquei desapontada.
— A sério?
— Seria impossível não parecer um doido varrido.
— Ah. Sim, provavelmente.
O Nick olhou para mim, perscrutando o meu rosto com os olhos.
— Dei a resposta errada ou algo assim?
— Não. — Abanei a cabeça e acrescentei: — Não há respostas erradas em
perguntas hipotéticas.
— Está bem. Agora é a minha vez.
— Mas mal comecei a fazer-te perguntas…
— Não me interessa. — Ele olhou para a minha camisola e disse: —
Porque é que não te vestes assim sempre?
— O quê? — Cruzei os braços sobre o peito. — Vais mesmo falar sobre a
maneira como me visto? Não sejas esse tipo de pessoa.
— Não sou. — Ele indicou o meu corpo com o queixo e disse: — Mas tu
vestes-te normalmente como uma rapariga de uma república universitária, que
codifica a sua agenda diária por cores e espera secretamente casar com um
senador. Isto hoje parece real, como se não estivesses a tentar ser uma
influenciadora da Ralph Lauren.
— OK, duas coisas — disse eu, com uma gargalhada. — Primeiro, esse é
absolutamente o visual que eu quero ter. Ou queria ter.
— Chocante.
— E, segundo, tens razão sobre a roupa de hoje. Estou a sentir-me eu
mesma — Olhei para as calças de cabedal e passei o dedo pela costura
exterior. — Hoje é um dia Em-cêntrico, em que só me vou focar no que eu
quero. E, hoje, quis usar calças de cabedal.
— Bem…
— Não, é a minha vez. Porque és tão antissocial?
Ele franziu o sobrolho.
— Não sou.
— Nunca me dirigiste a palavra em Química. — Até o Dia dos Namorados
se começar a repetir, claro.
— Tu também nunca falaste comigo.
— Mas… isso é por causa da tua energia.
Ele franziu ainda mais a testa, proferindo as palavras como se eu fosse
ridícula.
— A minha energia?
— Tu emites uma vibração muito forte de Não me chateiem. Próxima
pergunta. — Era o DSC, portanto o orgulho não importava. Perguntei: —
Estás interessado, romanticamente, em alguém neste momento?
A carranca dele desapareceu.
— Achas que eu estaria aqui, a arranjar uma confusão no 402 Ink por tua
causa se estivesse?
— Provavelmente não, mas precisava de esclarecer isso.
— Porquê? — Um sorrisinho lento formou-se-lhe na boca e os olhos
brilharam quando ele olhou para mim e perguntou: — Tens planos para mim,
Hornby?
Aquilo fez com que as minhas faces ficassem quentes, mas mantive a minha
atitude despreocupada e disse:
— Hoje, tudo é possível.
— Está bem. É a minha vez agora.
Ele entrou no parque de estacionamento da comunidade do Mercado
Velho, baixou o vidro e tirou um bilhete da máquina.
— Qual é o teu filme favorito de sempre? Não aquele que dizes às pessoas
que é o teu favorito, mas o teu favorito mesmo.
Aquilo fez-me sorrir, porque ele viu-me completamente naquele momento.
— Já tenho dito que é A Lista de Schindler, mas na verdade é o Titanic.
— Oh, Emilie. — Ele parecia horrorizado. — Tens razão em mentir sobre
isso. Enterra essa confissão fundo, mas bem fundo, na tua alma nojenta para
sempre.
— Qual é o teu filme favorito? — perguntei-lhe.
Ele pôs a carrinha em ponto-morto e desligou-a.
— Snatch — Porcos e Diamantes. Já o viste?
— Não vejo pornografia.
— Tira a mente da sarjeta — repreendeu-me ele, enquanto os seus olhos
cerúleos (obrigada, DeVos) se franziam num sorriso. — É do Guy Ritchie
com o Brad Pitt, palerma.
Quando ele deu a volta para o meu lado da carrinha, não consegui evitar
sorrir para ele como se fosse uma criança de três anos que acabara de ver a
Elsa do Frozen.
Ele franziu a testa.
— Porque é que estás a sorrir assim?
Encolhi os ombros.
— Porque talvez goste de ti, acho.
— Ah, achas? — disse ele lentamente, lançando-me um sorriso provocador
que fez coisas loucas ao meu interior. — Arrastaste-me da aula de Química e
não tens a certeza?
Encolhi os ombros novamente.
— Ainda estou a decidir. Aviso-te quando souber.
Comecei a andar, puxando-o atrás de mim, mas a mão dele deu-me um
puxão para eu parar. A respiração dele formava nuvens em torno do seu rosto
enquanto sorria para mim.
— Se não sabes que deves usar luvas ou um casaco em meados de fevereiro
no Nebrasca, não sabes nada, Emilie Hornby.
Antes mesmo que eu percebesse o que ele estava a fazer, largou a minha
mão, tirou as suas grandes luvas e colocou-as nas minhas mãos. Ficavam-me
enormes, mas eram quentes por dentro. Depois, estendeu a mão em redor da
minha cabeça para puxar o capuz do casaco que eu lhe tinha tirado.
— És uma criança — murmurou ele, ainda a sorrir enquanto o seu rosto
pairava acima do meu. — Talvez agora não morras de frio.
— Sabes, se isto fosse um filme, eu agora olhava para a tua boca. Assim…
— Deixei os meus olhos deslizarem para os lábios dele. — E tu beijavas-me.
— Ah, é? — A voz dele era baixa e senti o seu olhar no fundo do meu
estômago enquanto ele me fitava os lábios.
— Sim — disse eu, soando um pouco sem fôlego.
— Bem, graças a Deus que não estamos num filme, então.
Ui. Olhei para aquele rosto e murmurei.
— Não gostavas de me beijar?
Ele ficou em silêncio por um breve instante e o momento suspendeu-se,
enquanto as nossas respirações se misturavam e partilhavam uma nuvem
diante dos nossos rostos. Os olhos dele estavam solenes, bastante sérios,
enquanto olhava para mim.
— Não quero as complicações que viriam de te beijar — respondeu.
— Porque é que estás tão triste? — perguntei.
Eu não tivera a intenção de dizer aquilo, nem sequer percebi que estava na
ponta da minha língua, mas nunca quis tanto alguma coisa como saber a
resposta àquela pergunta naquele momento.
Ele contraiu e relaxou o maxilar, e os seus olhos assombrados
permaneceram fixos nos meus. Todo ele se imobilizou e eu senti que me
queria contar, mas algo na maneira como engoliu em seco fez-me querer
protegê-lo da sua resposta.
— Esquece, não precisas de responder. — Puxei-o pela manga e
começámos a andar novamente. — Tenho um milhão de outras perguntas.
— Maravilhoso.
— Então, conta-me a história da tua vida. — Eu precisava de conhecer
cada pedacinho dele que não fosse triste. — Cresceste aqui? Quem é o teu
melhor amigo? Irmãos e irmãs? Algum animal de estimação? Bem, exceto a
Betty, quero dizer.
Ele lançou-me um olhar estranho.
— Como é que sabes o nome da minha cadela?
Merda.
— Tu disseste-me quando… hum… não me lembro, mas lembro-me de
teres mencionado isso uma vez.
Bela resposta, sua imbecil.
Felizmente, ele respondeu apenas:
— É o único animal que temos. E tu?
Coloquei os Ray-Ban dele, fazendo-os subir pelo nariz.
— A minha mãe e o marido dela têm um puggle chamado Potássio. Não faço
ideia de onde foram buscar esse nome ridículo. Ele é muito fofo, mas não
somos próximos.
Aquilo fê-lo sorrir.
— O meu pai e a mulher dele têm um gato, o Big Al, que é incrível, mas
costuma fazer chichi no tapete de palha da lavandaria, portanto é um gato com
problemas.
Ele empurrou a porta do Café Zen e segurou-a enquanto eu entrava.
— Também tenho dois irmãos mais novos, do lado do meu pai. Bolas, isto
soa totalmente disfuncional, não é?
— Não — disse ele. Mas quando ergui uma sobrancelha ele corrigiu-se: —
Talvez um pouco.
Lançou-me outro olhar estranho, que me aqueceu.
— As perguntas deviam ser para ti — disse eu enquanto nos púnhamos na
longa fila. — Irmãos e irmãs?
— És sempre assim tão intrometida?
— Não, só no DSC.
— Devíamos conversar sobre esse teu DSC. — Ele baixou os olhos por
um breve segundo, quando abri o fecho do grande casaco, e a simples ideia de
ele estar interessado no meu corpo fez o meu coração bater com mais força.
— Porque é que estás a fazer isto? — perguntou ele.
— Não ias acreditar em mim se eu te contasse. — Olhei para aquele rosto
que já conhecia bastante bem e acrescentei: — Digamos apenas que é uma
experiência social. O que é que acontecerá se, durante um dia inteiro, eu fizer
exatamente o que me apetecer e que se lixem as consequências?
Ele encolheu os ombros.
— Terás um dia divertido hoje e um pesadelo amanhã.
— E é por isso — disse eu, baixando um pouco a voz — que me estou a
recusar a pensar no amanhã.
Avançámos na fila e o Nick parecia bastante pensativo. Estava
provavelmente a pensar que eu era um pouco instável; eu pensaria isso no
lugar dele. Nem sequer olhou para mim enquanto esperávamos, o que me
deixou com medo de que me fosse abandonar. Temi que ele achasse que o tipo
específico de confusão louca que eu representava não valia o castigo escolar e
que fugisse, deixando-me sozinha no centro da cidade.
Chegou a nossa vez e o empregado olhou para mim à espera do meu
pedido.
— Quero um Americano grande, por favor — disse eu. — E o cavalheiro
deseja um grande… Sleepytime?
Olhei para ele e ele revirou os olhos antes de dizer.
— Um chá verde grande, por favor.
Ri-me do óbvio aborrecimento dele por eu estar correta e não voltámos a
falar até pegarmos nas nossas bebidas e sairmos. Começámos os dois a andar
sem sequer discutirmos para onde íamos e eu estava a começar a sentir o calor
do meu copo através das luvas do Nick quando ele disse:
— Só para que conste, acho que a tua ideia de um DSC é péssima porque
vais ter de enfrentar as consequências amanhã.
Olhei para ele.
— Tu não… — comecei.
— Mas, mesmo assim, quero fazer isto.
Fiquei parada com o copo a caminho da boca.
— Queres?
— Eu penso de mais e também odeio a porra do Dia dos Namorados —
disse ele, olhando em frente. — Portanto, acho que ser um palerma como tu
por algumas horas pode ser um bom descanso.
— Ohhh, tão querido. — Consegui finalmente beber um gole da bebida
cafeinada deliciosamente escura.
— Mas não estás a pensar em roubar um carro nem nada disso, estás?
Aquilo fez-me soltar um ronco de riso e engasgar-me ligeiramente com o
meu café. Ergui um dedo enquanto tossia e depois disse:
— Já fiz isso esta manhã.
Ele olhou para mim com um olhar inexpressivo enquanto um transeunte
no seu jogging nos contornava para passar.
— Por favor, diz-me que estás a brincar.
— Mais ou menos?… — Contei-lhe sobre o carro do meu pai, sobre ser
mandada parar pela polícia e depois ver o precioso bebé do meu pai a ser
rebocado. Consegui fazer com que ele parecesse escandalizado a cada palavra,
o que me pareceu uma espécie de vitória. — Portanto, não vou ser presa por
roubo agravado nem nada disso, mas, na verdade, comecei o meu dia a levar o
veículo de outra pessoa.
Ele olhou para mim de olhos semicerrados, virando-se de lado para manter
o contacto visual enquanto caminhávamos.
— Não posso acreditar que tu, a rapariga que vi a ler nas aulas de Química e
no refeitório, que está sempre de nariz enfiado na mochila, a qual está, claro,
cheia de livros, está a ser uma rebelde. Antes de hoje, eu teria imaginado que
eras candidata a «Mais provável trabalhar numa biblioteca».
— Na verdade, essa é a minha segunda escolha de carreira — disse eu,
fascinada pelo facto de ele saber coisas sobre mim depois de ter fingido que
não sabia durante vários dias.
Ele ignorou as minhas palavras e continuou.
— Mas aqui estás tu, a passear num Porsche, a faltar às aulas e a destruir o
teu ex-namorado de uma forma bastante pública. Houve algum tipo de evento
gota de água que desencadeou isto tudo?
A imagem dos lábios do Josh a tocar nos da Macy passou-me pela mente,
mas afastei-a.
— Uma rapariga não pode simplesmente mudar um pouco a sua vida?
— Uma rapariga perturbada, talvez.
— Bem, então é o que eu sou. — Mais valia ser, já que a verdadeira
explicação era, de facto, perturbadora.
— Então, o teu pai vai-te matar? — perguntou ele enquanto
contornávamos um carrinho de comida.
— Provavelmente.
As sobrancelhas dele juntaram-se.
— Como é que não estás preocupada com isso?
Encolhi os ombros.
— Ele só vai gritar comigo durante algum tempo e depois acabou. — Não
era o que iria acontecer, na verdade, mas não podia explicar isso ao Nick.
— Nós temos, claramente, pais muito diferentes. — Ele abanou a cabeça e
acrescentou: — O meu pai é superporreiro, mas iria destruir-me. Tipo, estou a
ficar assustado só de pensar na reação do meu pai a algo deste género e ele
nem sequer tem um bom carro para eu roubar.
Bebi outro gole do meu café enquanto parávamos à espera de que o sinal
mudasse.
— Os teus pais ainda estão casados? — perguntei-lhe.
Eu era fascinada por pessoas cujos pais ainda estavam juntos. Parecia-me
surreal e incrivelmente bela a ideia de viver todos os anos da infância com
ambos os pais, juntos, na mesma casa.
— Sim — disse ele e começámos a andar quando o sinal mudou. Esperei
que ele continuasse e falasse mais sobre a família, mas ele não disse mais nada.
— Não chegaste a responder se tens irmãos ou irmãs. — Inclinei-me um
pouco para a esquerda e dei-lhe um encontrão enquanto atravessávamos. —
Um? Dois? Dez? Tens algum sequer?
Os olhos dele brilharam de irritação e o seu maxilar estava contraído
quando respondeu:
— Temos mesmo de fazer a conversa fiada do tipo «Fala-me da tua
família»?
— Oh. Hum… desculpa. — O café salpicou para a luva quando tropecei
numa racha no passeio.
— Está tudo bem.
Sim, claro que estava. Olhei em frente e perguntei-me se seria possível
sentir-me ainda mais estúpida, porque o rosto dele mostrava exatamente quão
irritante me achava. De repente, fiquei ciente do frio cortante nas minhas
faces, enquanto me debatia para pensar em algo — qualquer coisa — para
dizer.
— Para com isso.
Olhei para ele.
— Com quê?
— Para de te sentir assim. Não estou zangado.
Aquilo fez-me revirar os olhos.
— Como é que tu sabes como me estou a sentir?
— Bem, ficaste com a cara toda franzida.
— Franzida?
Ele encolheu os ombros e apontou para o meu rosto com a mão livre.
— Ah, está bem, está explicado.
— Menina DSC. — Ele agarrou-me o cotovelo e conduziu-me para longe
do tráfego pedonal, parando diante de uma loja fechada. Olhou para mim com
aquele rosto bonito, enquanto o seu perfume a sabonete me envolvia e disse:
— Diz-me, que merda épica do tipo Ferris Bueller9 é que vamos fazer
primeiro?
9
Referência à personagem principal do filme O Rei dos Gazeteiros (1986), que
decide tirar um dia de folga da escola, metendo-se numa série de peripécias. (N
T)
CONFISSÃO N.º 12
Comecei a beber café aos onze anos. A minha mãe saía todos
os dias para o trabalho quando já só sobrava uma chávena na
cafeteira, e, como parecia uma coisa de adulto, eu bebia-a.
Aquilo chamou a minha atenção de volta ao presente. Porque é que eu me
estava a preocupar com receio de o insultar quando era o DSC? Pestanejei e
disse:
— Não tenho um plano, exatamente, mas devíamos ir até ao prédio do
First Bank.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Tens algum investimento para fazer?
— Não, só me quero esgueirar até ao quadragésimo andar. — Então,
agarrei-lhe o cotovelo e começámos a andar. — Escuta.
Comecei a contar-lhe o que sabia e o que queria descobrir enquanto
caminhávamos em direção ao arranha-céus. O prédio do First Bank era o
edifício mais alto da cidade; quarenta e cinco andares, para ser exata. A minha
tia Ellen já trabalhara lá e disse-me que, depois de o edifício ser inaugurado, as
pessoas marcavam hora para usar a varanda do quadragésimo andar para
pedidos de casamento.
Eu também sabia que isso era, de facto, verdade porque fora onde o meu
jovem e tolo pai tinha pedido a minha igualmente imatura e impulsiva mãe em
casamento.
Mas agora, se pesquisássemos no Google, não aparecia nada. Nenhuma
menção a uma varanda, nenhuma referência a pedidos de casamento na dita
varanda.
Era como se nunca tivesse existido.
Eu estava obcecada com a varanda desaparecida desde que a Ellen me
falara disso, quando eu tinha dez anos, e estava obcecada com a ideia de o
cenário para o início do final feliz de tantas pessoas ter sido efetivamente
apagado. Achava triste, o que fizera com que a minha mãe brincasse, dizendo
que talvez fosse o cosmos a tentar consertar alguns erros. Todos aqueles casais
que tinham subido até lá para o grande momento nunca mais poderiam
revisitar o local.
Nunca mais.
O meu eu de dez anos precoce até ligara para o responsável do edifício,
mas, em vez de me explicar o encerramento, ele dissera que eu estava
enganada. Negara que alguma vez tivesse existido tal coisa.
Eu sabia que não era verdade.
Portanto, sempre quisera ir até lá à socapa e dar uma olhadela. Estava à
espera de que o Nick pensasse que era uma má ideia, mas ele ouviu com
atenção. Acenou com a cabeça e olhou para o edifício imponente enquanto
nos aproximávamos.
E, em vez de dizer não, disse:
— Tenho a certeza de que são precisos crachás com a identificação para
passarmos além da entrada.
Olhei para o Nick, surpreendida por ele estar, de facto, a considerar alinhar
naquilo.
— Provavelmente.
— Então, qual é o nosso plano? — perguntou ele.
— Hum… — Mordi o lábio quando parávamos junto às fontes que
ficavam em frente do edifício. Pensa, Em, pensa. — Podemos ativar um alarme
de incêndio.
— Nada que nos ponha na prisão, sua criminosa — disse ele e riu-se,
percorrendo-me com os olhos e tornando impossível eu não sorrir.
— Talvez possamos subornar um segurança. Tens algum dinheiro?
Ele limitou-se a olhar para mim.
— Sim? Não te estou a ouvir dizer nada…
— Tem de haver uma porta lateral. — Ele deitou o seu copo num caixote
do lixo verde. — Uma daquelas portas de saída que quase todos os edifícios
têm.
— E?…
— E encontramo-la e esperamos. Assim que alguém sair, entramos.
Pestanejei.
— Isso é genial.
— Não, é senso comum.
— Está bem. Nada de elogios para ti, então. Retiro o elogio.
— Não podes retirar um elogio.
— Posso, sim.
— Não. O meu ego já sabe que achas que sou um génio, não interessa o
quanto o possas negar.
Aquilo fez-me rir.
— Eu não acho que sejas um génio. Eu disse que a ideia era genial.
— É a mesma coisa.
Revirei os olhos e bebi um gole do meu café.
— Espera, como é que já acabaste o teu chá? — notei, então.
— Não acabei. Era péssimo e eu estava farto de andar com ele na mão.
— Mas acabaste de o comprar.
— Vamos falar sobre o meu chá ou vamos encontrar aquela porta?
Atirei o meu café para o caixote do lixo.
— Vamos procurar a porta.
Caminhámos em volta do edifício, agindo intencionalmente como dois
adolescentes a andarem descontraídos pelo centro da cidade para o caso de
haver câmaras. Enquanto verificávamos o prédio, ele contou-me uma história
ridícula sobre a vez em que trabalhara num campo de golfe e ficara preso
dentro do coletor de bolas de golfe.
— Eu nem sequer sei o que é um coletor de bolas de golfe — disse eu, olhando
para a fachada de pedra do edifício.
— É uma máquina que apanha bolas de golfe.
Revirei os olhos.
— Bem, claro, mas não a consigo imaginar.
— Não precisas de imaginar — disse ele. — Só sei que fiquei preso lá
dentro durante uma hora e quase morri de insolação.
— Não podias ter partido a janela ou algo assim?
O Nick abanou a cabeça.
— Nós morríamos todos de medo do nosso chefe, o Matt. Era uma besta
completa. Nunca teríamos considerado isso.
— Preferiam morrer num coletor de bolas?
Em vez de me responder, o Nick apontou para uma porta que ficava na
parte de trás do edifício. Estava pintada de modo a combinar com os tijolos e
era quase impercetível.
— Olha.
— Achas que é usada?
— Não faço ideia — disse ele.
A porta abriu-se.
Soltei uma exclamação e quase fui pisada pelas três mulheres que saíam. A
senhora do meio pediu desculpa, enquanto o Nick dava um passo em frente e
lhes segurava a porta, como se fosse um verdadeiro cavalheiro.
Nada parecido com o parceiro de laboratório rabugento e calado que eu
tivera o ano todo.
Mas, assim que elas se afastaram de nós, ele ergueu uma sobrancelha para
mim.
— Primeiro as senhoras?
— Vamos.
Entrámos e a porta fechou-se atrás de nós.
Estávamos numa escada. Comecei a dirigir-me para a porta que dava para o
que quer que estivesse do outro lado quando ele disse:
— Espera.
— Porquê? — perguntei parando.
— Não sabemos o que há do outro lado daquela porta, mas sabemos que
temos de subir quarenta andares, portanto…
E fez um aceno com o queixo para os degraus.
— Queres subir quarenta lanços de escada? — Eu não queria mostrar-lhe
que estava tão em baixo de forma. Nem pensar. — Nem toda a gente corre
todas as manhãs.
— Podemos subir dois lanços de cada vez e descansar um bocado.
— Não preciso que tenhas pena da minha má forma física.
Ele ergueu novamente uma sobrancelha.
— Então, queres?…
Deixei escapar um grande suspiro. E depois gemi antes de dizer:
— Vamos embora.
Os dois primeiros lanços foram bastante fáceis, mas no terceiro os meus
quadríceps começaram a ter cãibras e senti o suor a começar a formar-se na
minha testa.
— Estás bem? — perguntou o Nick quando parámos para o nosso
primeiro descanso.
— Tu estás? — Tentei não ofegar, mas soei bastante sem fôlego quando
disse: — Isto é canja. — Notei que ele não mostrava nenhum sinal de esforço,
além de um leve rubor nas faces.
— É? — Ele lançou-me um olhar desconfiado e disse: — Desculpa, estou a
atrasar-te? Queres subir a correr no próximo lanço?
CLARO QUE NÃO. Não, obrigada. Estás louco ou quê? Estas seriam todas
respostas adequadas, mas a minha boca não conseguia formar as palavras. O
que era estranho, porque eu não me considerava particularmente competitiva,
especialmente quando se tratava de atividades atléticas.
No entanto, eu saber que ele sabia que eu não seria capaz fez-me dizer o
indizível.
— Que tal os próximos dois?
Os lábios dele formaram um sorriso rasgado e ele partiu a correr. Comecei
a correr lentamente pelas escadas atrás dele, querendo morrer nas minhas
calças de couro, e ele diminuiu imediatamente a velocidade para acompanhar o
meu ritmo. Olhei para a minha esquerda e lá estava ele, a sorrir como se
pudesse correr pelas escadas o dia todo.
Sorri em resposta enquanto o meu coração batia com força e gritava
obscenidades, tentando lembrar-se de qual era o seu trabalho.
Corremos um lanço e depois outro e continuámos ambos a correr depois
disso. As minhas pernas começaram a arder e eu estava a correr pelos degraus
a um ritmo mais lento do que se estivesse a andar, para ser sincera. O meu
rosto devia ter um ar desolado, porque quando chegámos ao patamar seguinte
o Nick teve pena de mim.
— Espera. — Ele parou e fiquei contente por ver que ele também estava
ofegante. Ergueu um dedo enquanto recuperava o fôlego, o que foi ótimo
porque os meus ouvidos pareciam demasiado cheios de algodão para eu
conseguir ouvir.
— Bem — suspirou ele —, cada andar deste edifício tem um elevador.
— Sim?… — Entrelacei as mãos em cima da cabeça enquanto os meus
pulmões gritavam.
— Portanto, vamos sair da escada. Pensa lá. Temos boas hipóteses de
conseguir chegar a um elevador num andar qualquer de escritórios antes que
alguém que se importe nos veja.
— Tens a certeza? — Eu não queria subir nem mais um degrau, mas
também não queria ser apanhada agora que nos estávamos a aproximar.
— Absoluta. Confias em mim?
Assenti com a cabeça, ainda a tentar acalmar a minha respiração, o que o
fez sorrir.
— Vamos ficar aqui alguns minutos para não sairmos da escada a ofegar e a
suar. As pessoas podem comentar — disse ele.
Uma imagem minha e do Nick contra a parede da escada passou-me pela
cabeça.
Uau.
Fiquei contente quando ele me distraiu, dizendo:
— Além disso, acho que é a minha vez de te fazer uma pergunta.
— Não, é a minha. — Encostei as costas à parede e perguntei: — Vamos
falar a sério. Já alguma vez estiveste apaixonado?
Ele deitou-me um olhar, como se achasse a pergunta absurda.
— A resposta é um não absoluto.
— Nem sequer estiveste próximo? — Não sei porquê, mas fiquei chocada
com aquilo.
— Já amei, é claro, mas nunca estive apaixonado. Nem sequer próximo. —
Ele olhou para baixo e começou a mexer no fecho do blusão. — Tu?
— Hum… — Prendi o cabelo atrás das orelhas e disse: — Quando
acordei, no Dia dos Namorados, pensei que estava apaixonada. Mas aqui estou
eu, algumas horas depois, a perguntar-me se algum dia amei o Josh.
Ele ergueu os olhos.
— Talvez isso seja apenas porque estás zangada com ele.
— Isso é o que é mais estranho. — Parei para pensar por um momento e
depois disse: — Sim, estou chateada por ele ter beijado a ex-namorada, mas só
um pouco. Claramente, não estou tanto como deveria.
Aquilo fez-me sentir… não sei… com remorsos. Será que os meus
sentimentos tinham sido pouco genuínos?
Ele continuou a mexer no fecho.
— Então… porque é que?…
— É uma constatação nova, por isso ainda estou a tentar perceber tudo.
— Certo. — Ele largou o fecho, endireitou-se, avançou até à porta e abriu-a
ligeiramente. Encostou o olho à fresta durante uns longos vinte segundos
antes de a fechar novamente. — Está tudo bem, a costa está livre. — Olhou
para mim por cima do ombro. — Estás pronta para isto?
— Qual é a nossa história se formos…
— Tenho tudo controlado, não te preocupes. — Ele olhou para mim
enrugando os cantos dos olhos e disse: — Ainda confias em mim, certo?
Era estranho o quanto confiava.
— Certo.
— Então, vamos. Finge apenas que é expectável estarmos aqui.
— Percebido.
O Nick abriu a porta e saímos. À nossa frente, havia um corredor alcatifado
com gabinetes de ambos os lados.
Gabinetes com paredes de vidro.
Começamos a percorrer o corredor e ele piscou-me o olho, o que me fez
rir. Passámos apressadamente por cada gabinete e uma mulher de fato fez-nos
um sorriso de boca fechada ao sair do seu gabinete e passar por nós.
Depois de ela passar, sorrimos um para o outro porque, caramba, estava
realmente a resultar. Íamos chegar aos elevadores.
— Desculpem.
Merda. Continuámos a andar, com os olhos fixos em frente, e ouvimos a
voz profunda de um homem mais velho a repetir a palavra atrás de nós.
— Desculpem. Vocês os dois?
O Nick virou-se e o seu rosto transformou-se no de um doce e inocente
jovem estudante. Observei com admiração e de coração acelerado quando ele
disse:
— Sim?
— Posso ajudar-vos em alguma coisa?
— Ah, sim, seria ótimo. Pode indicar-nos onde fica o elevador? Estamos
aqui para uma orientação de estágio e saímos claramente no andar errado.
Uau! Boa, Nick.
Virei-me e o homem estava a olhar para nós com os olhos semicerrados.
Achei que o Nick fora supercredível, mas o tipo mais velho e bem vestido
ainda parecia desconfiado.
Ofereci-lhe o meu melhor sorriso de boa aluna.
— É logo ali — disse ele, apontando além de nós —, mas nem sequer vos
vi a sair do elevador antes.
— Porque viemos pelas escadas — disse eu, sorrindo ainda mais. — Eu
gosto de me mexer, mas o meu amigo está um pouco em baixo de forma.
Pensei que ele ia vomitar durante a subida, por isso deixámos as escadas para ir
procurar um elevador.
Finalmente — finalmente —, o tipo sorriu.
— Nem toda a gente consegue lidar com estas escadas.
Estendi a mão e toquei com o dedo na barriga do Nick (a qual era
incrivelmente dura, só para que conste), dizendo:
— Nem me diga nada. Pensei que ia ter de carregar com este balofo.
— Muito obrigado pela ajuda, senhor. — O Nick agarrou o meu dedo com
a mão enquanto o tipo se ria. — Anda, temos de nos apressar se queremos
chegar a horas — disse-me ele.
Conseguimos prosseguir calmamente até aos elevadores, mas, assim que as
portas se fecharam atrás de nós, desatei às gargalhadas. Olhei para o sorriso
largo dele e disse:
— Nick Stark, és um excelente mentiroso!
Ele riu-se e aproximou-se um pouco mais.
— E tu és uma grandessíssima peste, com essas tuas tretas de «balofo».
Fiquei sem fôlego. Ele estava mesmo ali, com o rosto logo acima do meu,
enquanto o seu corpo me prendia praticamente entre ele e a parede do
elevador. Percebi que queria que ele me beijasse. Algo na minha epifania na
escada sobre os meus sentimentos pelo Josh me fez sentir totalmente livre
para explorar o Nick Stark.
— É melhor irmos apenas até ao trigésimo nono andar — disse ele com a
sua voz profunda e calma, mantendo os olhos fixos nos meus — e depois
subimos mais um andar pelas escadas.
Limitei-me a acenar com a cabeça à medida que o elevador nos levava para
cima. Juro que ele se estava a aproximar mais quando…
O elevador tocou.
Separámo-nos bruscamente e olhámos para os números. Estávamos,
aparentemente, no décimo segundo andar e alguém ia entrar. Afastei o cabelo
para trás quando as portas se abriram e um segurança se juntou a nós.
Quais eram as probabilidades?
E o que é que quase acontecera entre mim e o Nick?
Esbocei um sorriso educado ao segurança e ele retribuiu, entrando e
premindo o botão para o andar trinta e seis, enquanto as portas se fechavam
atrás dele. Olhei de soslaio para o Nick, mas ele estava a olhar em frente,
totalmente indiferente à presença do intruso.
O elevador começou a mover-se e eu observei o visor iluminado por cima
das portas a relatar obedientemente cada andar pelo qual passávamos.
Pigarreei e mordi o lábio, sentindo o silêncio quase a matar-me.
Quando chegámos finalmente ao trigésimo sexto andar, o elevador tocou e
o segurança alto deu-me outro sorriso educado.
— Tenha um bom dia — disse eu quando as portas se abriram.
Ele fez-me um aceno com a cabeça.
— Igualmente.
Assim que as portas se fecharam atrás dele, olhei para o Nick. Ele estava a
olhar para mim com uma expressão ilegível no rosto e eu implorei ao meu
cérebro para não pensar demasiado no que estava a acontecer entre nós. O
elevador tocou de novo quando chegámos ao trigésimo nono andar — claro
— e ele disse apenas:
— Pronta para fazer isto outra vez?
Sorri e murmurei algo em resposta, mas a verdade é que não estava capaz
de falar. Precisava de um minuto para acalmar os meus nervos completamente
passados.
As portas abriram-se e este andar tinha um átrio com um balcão de receção.
Estava mortalmente silencioso e a mulher de aparência severa sentada atrás da
mesa parecia irritada só com a nossa existência.
— Posso ajudar-vos?
— Pode indicar-nos onde são as escadas? — perguntou-lhe o Nick. — O
responsável da orientação disse que podíamos descer pelas escadas se
quiséssemos fazer exercício, mas depois entrámos no elevador e quase nos
esquecemos. São ali? — Ele apontou para o outro lado do edifício, e eu estava
pasmada com a sua compostura.
Ela assentiu com a cabeça.
— Eu mostro-vos.
Senti a respiração a ficar-me presa na garganta quando ela se levantou e deu
a volta à mesa. O Nick sorriu-lhe e os dois começaram a andar, portanto segui-
os.
— Para que orientação é que vieram? — perguntou ela.
— Uma orientação de estágio com os RH. É para o novo programa de
verão deles.
— Oh? — Ela olhou para ele com as sobrancelhas franzidas. — Não sabia
que eles tinham algo desse género.
— Acredite, fomos uma surpresa para todos hoje.
A mulher riu-se e o Nick acrescentou:
— Mas estou entusiasmado por ir trabalhar neste edifício. A senhora
trabalha aqui há muito tempo?
Ela acenou afirmativamente.
— Quinze anos.
— Uau, isso é muito tempo.
— Só para si porque é um jovem. — Ela sorriu e olhou para mim. —
Acreditem, quinze anos passam a voar.
— Então, a senhora já trabalhava cá quando as pessoas costumavam fazer
pedidos de casamento lá em cima? — Ele disse aquilo de um modo tão casual,
como se fosse algo do conhecimento geral. — Ou isso já tinha acabado
quando começou a trabalhar aqui?
— Ah, ainda acontecia, mas era geralmente à noite e aos fins de semana,
portanto não afetava muito quem trabalhava aqui.
— Sabe porque é que deixaram de o fazer? — perguntou o Nick,
parecendo tão calmo e descontraído que fiquei ainda mais impressionada com
ele. — Porque é que a varanda deixou de estar disponível?
— Não faço ideia. Ouvi dizer que foi um executivo muito empertigado que
se mudou para o gabinete grande e fechou a varanda, mas isso foi apenas um
boato. — Ela parou de andar e apontou para a porta no fim do corredor. —
As escadas são ali, mas vou avisar-vos. Embora vocês vão descer, continuam a
ser muitos degraus. Tenham cuidado.
— Vamos ter. — Pigarreei e disse: — Muito obrigada.
— De nada.
O Nick abriu a porta da escada, eu passei e ele seguiu-me. Por um segundo,
quando a porta se fechou atrás de nós, perguntei-me se ele me iria beijar, mas
então ele disse:
— Estamos quase lá, vamos a isto, Hornby.
Subimos o último lanço de escadas e eu não fazia ideia do que dizer. Ainda
tinha as mãos um pouco trémulas e a minha cabeça estava cheia com um
milhão de perguntas.
Chegámos ao topo sem dizer uma palavra e o Nick abriu a porta. Saímos e
era mais um andar muito tranquilo. Parecia ser composto por gabinetes
ultrassofisticados — provavelmente dos executivos — e aparentemente
ninguém ali em cima fazia barulho.
Era, tipo, silêncio total.
— Onde será que fica a varanda? — sussurrei.
— Se eu tivesse de adivinhar — sussurrou ele em resposta —, diria que é
do lado leste. Eles iriam provavelmente querer que a varanda desse para o
centro da cidade, não achas?
— Oh, bem visto.
Caminhámos pelo corredor, ambos a examinar a área em todas as direções,
numa tentativa de vermos algo que nos indicasse que havia uma varanda à
nossa espera. Percorremos todo o andar, mas não conseguimos encontrar
nada.
E então o Nick viu-a.
— Olha — disse ele, e eu olhei na direção que ele indicou com a cabeça.
— Não posso.
Um dos gabinetes tinha as persianas abertas e a varanda ficava do outro
lado. Tínhamos de passar pelo meio de um gabinete para chegarmos à varanda,
porque aquele conjunto de gabinetes tinha portas que davam diretamente para
o exterior.
— Vamos continuar a andar, talvez haja uma zona comum.
Continuámos a caminhar pelo corredor, mas, quando chegámos ao fim, era
óbvio; os gabinetes daquele corredor eram os nossos únicos pontos de acesso.
— Bem, acho que não é possível — disse eu, irracionalmente triste por
desistir do sonho. — É capaz de ser melhor irmos embora antes que sejamos
presos.
A porta da casa de banho à nossa esquerda abriu-se e saiu outro segurança.
Claro. Enquanto ele se inclinava para o bebedouro, arregalei os olhos para o
Nick. Mas, em vez de me responder, o Nick olhou por cima da minha cabeça.
Eu estava prestes a dizer-lhe que era melhor esquecermos tudo quando ele
chamou:
— Desculpe, senhor?
Virei-me para ver com quem ele estava a falar. O Nick passou por mim e
aproximou-se de uma das elegantes portas dos gabinetes. O tipo atrás da mesa
parecia ocupado e importante — como um executivo bastante mal-humorado,
com a sua gravata perfeita e o relógio caro. Ergueu os olhos para o Nick.
— Sim?
— Posso falar consigo por um momento? — O Nick olhou rapidamente
para mim, piscou-me o olho e depois disse ao tipo: — Vejo que está ocupado,
mas prometo que só demoro um minuto.
Eu não fazia ideia do que estava a acontecer quando ele entrou no gabinete
e fechou a porta atrás de si. Soltei uma risadinha desajeitada quando o
segurança se endireitou e me fez um aceno com a cabeça. Não fazia ideia do
que diria se ele me perguntasse onde é que eu devia estar ou o que estava a
fazer.
— Jerome? — O tipo do gabinete onde o Nick estava abriu a porta e
chamou o segurança. — Ei, podes vir aqui por um instante?
Tínhamos sido apanhados.
— Claro. — O segurança entrou no gabinete e fechou a porta atrás de si.
Olhei em redor do corredor vazio e soltei uma risadinha, porque a vida tinha
ficado completamente bizarra.
Conseguia ver o Nick no gabinete chique, a conversar com os dois tipos.
Um minuto depois, o segurança e o executivo começaram a rir. Mas que raio?…
A porta abriu-se e, parecendo uma criança incorrigível enquanto me fazia um
sorriso rasgado, o Nick disse:
— Vem cá, Em.
Pestanejei e entrei no gabinete, sem saber o que estava exatamente a
acontecer. Quando cheguei ao pé dele, o Nick agarrou-me na mão e disse:
— Agora devo um favor ao Bill e ao Jerome.
— Quem?
— Olá, eu sou o Bill — disse o executivo, sorrindo para mim como se
tivéssemos sido convidados para um chá.
— Jerome. Muito prazer — disse o segurança, sorrindo para mim como se
eu fosse encantadora.
— Prazer em conhecê-los — murmurei enquanto o Nick me puxava para
frente. Conduziu-me para lá da mesa do Bill, girou a maçaneta e abriu a porta
que dava para o exterior.
— Vou pedir ao Jerome para trancar a porta daqui a dez minutos — disse o
Bill quando o ar frio entrou.
— Estaremos despachados em cinco — disse o Nick, entrelaçando os seus
dedos firmemente nos meus e arrastando-me para a varanda. Assim que a
porta se fechou atrás de nós, fiquei boquiaberta a olhar para ele.
— Oh, meu Deus, como é que fizeste isto? — exclamei, arrastando-o a ele
para mais perto da borda. — O que é que lhes disseste?
Ele sorriu.
— A que queres que responda primeiro?
— A ambas as coisas. Uau. — Avançámos os dois um pouco mais na
varanda e a cidade abaixo era de tirar o fôlego. Era silencioso ali em cima,
embora eu conseguisse ouvir os sons distantes das ruas, e percebi
perfeitamente toda a cena do bom-lugar-para-um-pedido-de-casamento.
— Expliquei apenas que estávamos numa missão para encontrar esta
varanda esquiva. — O rosto dele parecia um pouco estranho quando ele disse:
— Acho que eles são uns tipos simpáticos.
Olhei para a vista e murmurei:
— Isto é incrível.
Tentei imaginar os meus pais ali em cima, jovens e ainda apaixonados. Será
que o meu pai estava nervoso? Preocupado por a minha mãe poder dizer que
não? Será que ela chorara de alegria antes de gritar «Mil vezes sim!»? Será que
cerrara os dentes, irritada por ele ter recorrido a um gesto tão grandioso e
demasiado dramático?
Era tolice, mas senti-me um pouco emocionada, ali parada, onde aquilo
tinha acontecido.
— Sim. — O Nick passou a mão pelo cabelo e disse: — Não imaginava
que fosse tão fixe.
— Quarenta andares é realmente muito mais alto do que eu imaginava —
acrescentei, sem coragem suficiente para me aproximar da borda, embora
fosse quase impossível alguém passar por cima do corrimão. — Obrigada por
tornares isto realidade.
— É o DSC, Hornby. Não há consequências.
Um movimento atrás dele chamou a minha atenção e soltei uma
exclamação. Havia um monte de gente — tipo, uma pequena multidão —
reunida naquela varanda do lado de fora do gabinete do Bill. Parecia que todos
os executivos e os respetivos assistentes — e ah, bolas, o segurança — tinham
saído para se reunirem e… ficarem a olhar para nós?
— Nick, o que é que disseste ao Bill? — Quando voltei a olhar para o rosto
dele, ele tinha os olhos fixos nos meus lábios e quase me esqueci do que se
estava a passar, mas perguntei: — Para conseguires que ele nos deixasse estar
aqui?
Ele encolheu os ombros casualmente e disse:
— Não te preocupes com…
— É porque temos uma multidão a observar-nos.
— O quê? — O Nick olhou para trás. — Ah, bolas.
— Ah, bolas, o quê? Há alguma coisa…
— Eu disse-lhe que queria vir aqui para te convidar em grande estilo para o
baile de finalistas.
— Um convite em grande estilo para o baile de finalistas? — Eu não podia
acreditar que ele tinha dito aquilo; é claro que eles estavam todos ali fora. Os
adultos adoravam essas tretas melosas. — Nick.
Ele pareceu imperturbável quando disse:
— Dizemos-lhes apenas que eu te convidei e tu disseste que sim.
Esperei pelo resto, mas aparentemente era só aquilo.
— Isso não é um convite em grande estilo.
Ele pareceu surpreendido.
— Não é?
— Não. — Revirei os olhos e expliquei: — Isso é um convite normal. Um
convite em grande estilo é quando alguém faz algo extravagante para convencer
alguém a dizer que sim. Conseguir a ajuda de uma celebridade, fazer um bolo,
cantar uma canção, lançar três milhões de pétalas de rosa, fazer uma dança…
Como é que não sabes isso?
Para ser justa, isto era só o que eu sabia. Talvez noutros sítios fizessem as
coisas de maneira diferente, mas, na minha cidade, na nossa escola, era o que
isso significava. Coisas de outro nível, do género de um pedido de noivado.
— Porque é que alguém faria isso para o baile? — perguntou ele, parecendo
desagradado. — É só um baile.
— Queres mesmo discutir, neste momento, os méritos de um pedido em
grande estilo? Aquela multidão e mais o segurança estão à espera de um
espetáculo.
Ele não disse uma palavra, mas pegou no telemóvel e começou a procurar
alguma coisa.
Olhei para os espectadores atrás dele, que ainda nos estavam a observar em
expectativa.
— Hum… Nick?…
— Espera. — Ele procurou mais um pouco e depois olhou para mim e
sorriu.
— Nick…
O telemóvel dele começou a tocar uma música, bem alto, mas antes que eu
lhe pudesse perguntar o que raio estava ele a fazer — e aquilo era o «Cupid
Shuffle»? —, ele entregou-me o telemóvel.
Assim que lhe peguei, ele recuou uns cinco grandes passos e começou a
fazer a pior versão do Cupid Shuffle que eu já tinha visto. Tinha um sorriso
piroso na cara enquanto fazia uma versão rígida e absolutamente patética da
dança.
— A sério? — gritei.
Desatei a rir — às gargalhadas, mesmo — quando ele gritou por cima da
música:
— Emilie Hornby, queres fazer o Cupid Shuffle comigo no baile?
— Ah — gritei eu em resposta enquanto soltava risadinhas incontroláveis
—, estás a dizer que és o meu Cupido e que estás a dançar para me
convenceres a ir contigo ao baile de finalistas?
— Sim! — Ele acenou com a cabeça enquanto ia para-a-esquerda-para-a-
esquerda-para-a-esquerda. — É exatamente isso que estou a dizer!
Então, ele rodopiou num passo espontâneo.
— Como é que tu conheces o Cupid Shuffle? — perguntei, sabendo sem
realmente saber que o Nick Stark nunca tinha dançado em toda a sua vida.
— Já fui a casamentos antes e, além disso, a música diz-nos o que fazer.
Agora, por favor, diz que sim.
Eu não conseguia ver através das lágrimas, e a minha barriga doía de tanto
rir.
— Primeiro, diz que me amas.
Ele abanou a cabeça.
— Amo o teu cabelo e os teus sapatos confortáveis, sua chata irritante. Por
favor, diz que vais ao baile comigo.
— Sim! — gritei dramaticamente, desatando aos saltos e fazendo as pessoas
atrás de nós irromper em aplausos. — Sim, sem dúvida que vou ao baile
contigo!
O Nick deitou-me um olhar e gritou:
— Junta-te a mim, Emmie!
— Nã, estou bem a…
— Vai ter com ele — gritou o Jerome, lançando-me um olhar paternal. —
Acaba com o sofrimento do miúdo.
— Não existem medicamentos para isso?
O Nick agarrou-me na mão e eu continuei a rir durante o resto da canção,
enquanto dançávamos como se estivéssemos num casamento, com uma
pequena equipa de executivos a juntar-se atrás de nós.
— Foi uma ótima ideia, Hornby — brincou o Nick à medida que ia para-a-
direita-para-a-direita.
Eu ri-me, ainda a dançar, enquanto olhava para a bela linha do horizonte e
para o rapaz ao meu lado.
— Eu sei.
CONFISSÃO N.º 13
Beijei o Chris Baker na parte de trás de uma roulotte, no 7.º
ano, e até hoje não consigo sentir o cheiro de Polo sem me
lembrar de como as calças de fato de treino dele faziam
barulho.
Quando as portas do elevador se abriram, estavam três tipos de fato e com
cortes de cabelo caros lá dentro. Colocámo-nos à frente deles, lado a lado, em
silêncio, enquanto o elevador descia.
— Vou devorar umas batatas fritas waffle — disse um dos tipos atrás de nós.
— Eu gostava que eles trouxessem de volta o Bernie’s Pizza. Gosto de
frango, não me entendas mal, mas é a única opção há demasiado tempo.
— Então, vai ao Bernie’s.
— Nã, mano. Sou demasiado preguiçoso e o refeitório é muito mais
conveniente.
Olhei para o Nick, para ver se ele também achava a maneira como eles
estavam a falar ridícula, e o modo como a boca dele estava um pouco tensa de
mais disse-me que ele também estava a conter uma gargalhada.
— Nós saímos aqui — disse um deles quando as portas se abriram, e nós
afastámo-nos do caminho para o trio passar.
O Nick soltou um grande suspiro, mas, quando as portas começaram a
fechar-se, estendeu a mão, fazendo com que se abrissem outra vez. Erguendo
uma sobrancelha de uma forma adorável, disse:

— Ei. Queres ir devorar umas tiras10 no refeitório?


— Ooh — exclamei. — Achas que podemos?
Ele encolheu os ombros.
— Porque não? Se nos expulsarem agora, já conseguimos o que queríamos.
Comecei a ficar entusiasmada.
— A minha mãe nunca me deixava comer tiras de frango quando eu era
pequena, portanto agora são a minha comida secreta favorita. Mas só como às
escondidas. — Eu sabia que estava a divagar, mas não conseguia evitar. —
Tipo, quando ela não está por perto.
— Quem é que não pode comer tiras de frango? — Ele franziu os olhos
daquela maneira especial quando acrescentou: — Sua pobre marrona carente.
Ri-me daquilo.
— É, não é?
Ele apontou para as portas do elevador.
— Vamos, então.
Assim que saímos do elevador, fomos envolvidos pelos sons e cheiros do
refeitório da empresa. Seguimos na mesma direção que os tipos do elevador e,
logo ao virar da esquina, a seguir aos elevadores, encontrámos um enorme
refeitório.
Havia mesas no centro da sala e balcões de comida em todo o perímetro.
Parecia tudo comida genérica de refeitório, exceto o stand do Chachi’s Chicken,
onde já se estava a formar uma fila generosa.
— Frango? — perguntou ele, inspecionando os cantos do refeitório com o
olhar.
— Frango — respondi.
Enquanto esperávamos na fila, ele contou-me sobre a vez em que a irmã
passara com o carro por cima do pé de um empregado do Chick-fil-A no drive-
thru, e quando nos sentámos para comer, eu já chorava de tanto rir.
— Não acredito que ela ainda recuou — disse eu, rindo.
— Ela disse que, quando ele gritou, a sua reação humana natural foi recuar
para ver qual era o problema.
— Tem uma certa lógica — disse eu.
— Talvez — respondeu ele, mergulhando uma tira de frango no seu copo
com molho ranch.
— Então… — Peguei na embalagem de ketchup da mesa e espremi um
pouco para o meu prato. — Disseste que nunca te apaixonaste, mas… tipo,
acreditas nisso, certo?
— Uau. — Ele inclinou a cabeça e franziu o sobrolho. — Tu és persistente.
O que estás a fazer, Hornby?
— A saber mais sobre o meu parceiro do DSC. Bom, mas, se és tímido, eu
começo.
Na vida real, eu nunca abordaria este tema de conversa, porque era óbvio que
pareceria sufocante e patético. No entanto, eu queria saber estas coisas sobre
ele, portanto estava a aproveitar este dia descartável. Não importava o que ele
pensasse, porque nunca se iria lembrar.
No entanto, assim que pensei nisso, senti uma pontada de tristeza. Estava a
divertir-me tanto que o facto de o amanhã ser um reinício, e o Nick não se
lembrar de nada, parecia um pouco trágico.
— Bom, mesmo que não o encontremos com muita frequência na vida real,
acredito totalmente no amor verdadeiro. Acho que requer trabalho e lógica, em
vez da mão do destino, mas está lá se olharmos com atenção.
Ele fez um aceno com a cabeça, como se estivesse a concordar com o meu
argumento, e limpou as mãos ao guardanapo.
— Mas isso não te parece um pouco simplista? É como uma criança a dizer
que acredita no Pai Natal. Tipo, sim, claro, parece ótimo, mas se soa a algo
demasiado bom para ser verdade, provavelmente é.
Mergulhei uma batata frita no meu ketchup.
— Tão cínico.
— Não é nada cínico. — Ele passou um punhado de batatas fritas pelo
meu ketchup e disse: — Eu não sou um rabugento ressentido com o amor,
apenas não espero que ele desça pela minha chaminé com um saco cheio de
presentes.
— O amor não é o mesmo que o Pai Natal.
— Como não? — perguntou ele, pegando no seu copo de refrigerante. —
Anseias e suspiras por ele, à espreita para ver se o destino traz o Tal até à tua
porta, o Tal que te fará feliz para sempre.
Peguei numa tira e apontei-a para ele.
— Não é a mesma coisa porque não dependes da magia nem do faz de
conta.
— Já alguma vez viste um primeiro encontro? — Ele bebeu um gole do seu
refrigerante antes de continuar: — Isso é que é falar de magia e faz de conta.
— Como é que alguma vez vais ser feliz a pensar dessa maneira? —
perguntei, dando uma dentada.
Ele olhou para mim e cruzou os braços sobre o peito.
— Não estou à procura de «ser feliz».
Parei de mastigar. Ele não parecia estar a brincar.
— És um daqueles tipos que gosta de ser taciturno?
Ele franziu as sobrancelhas e pareceu ofendido, como se aquela sugestão
fosse um insulto.
— Não.
— Então, porque é que não queres ser feliz?
Ele encolheu os ombros e pegou no refrigerante.
— Eu não disse que não quero ser feliz. Eu disse que não estou à procura de
ser feliz. Não é o meu objetivo.
Limpei a boca com o guardanapo antes de o pousar na bandeja.
— Mas…
— Quero dizer, tu estás sempre feliz? — perguntou ele, e eu fiquei um
pouco distraída com a visão da maçã de Adão dele a mover-se enquanto ele
engolia a Coca-Cola.
— Bem, claro que não — disse eu, colocando o dedo a tapar o topo da
palhinha. — Mas gostava de estar. Quero dizer, ser feliz é o objetivo. Tipo,
para a vida, certo?
— Sim, claro, mas…
— Porque a felicidade é a configuração base da vida. — Tirei a palhinha do
copo, levei-a à boca e levantei o dedo, deixando o refrigerante pingar na minha
boca. — Estarmos contentes é o padrão. Às vezes não estamos felizes e às
vezes estamos em êxtase, mas a felicidade é a configuração base.
— Estás completamente errada. — Ele pousou o copo e pareceu um
pouco intenso. — A existência é a configuração base. Existirmos apenas,
emocionalmente, é o padrão. A felicidade é uma coisa flutuante e fluida que é
impossível mantermos. É evasiva como o caraças. Às vezes tens sorte e estás
feliz, mas é apenas uma questão de tempo até que a felicidade te escape das
mãos.
Abanei a cabeça, tentando descobrir como é que ele podia ter uma
perspetiva tão sombria.
— Essa é a coisa mais deprimente que já ouvi.
— Não, não é.
— É, sim, completamente. — Larguei tudo na bandeja, farta de me
remexer porque precisava de encontrar uma maneira de mudar aquela
perspetiva ridícula dele. — Segundo a tua teoria, sempre que estás feliz tens de
dormir com um olho aberto porque a qualquer momento essa sensação vai
implodir.
Ele soltou uma risada surpreendida e esfregou a face.
— É mais ou menos isso, sim.
— Quem é que te magoou, Stark? — provoquei, mas arrependi-me no
instante em que ele olhou para mim. Porque, caramba, havia muita tristeza nos
olhos dele. Durante apenas uma fração de segundo, ele parecia um rapazinho
muito triste.
Então, esboçou um sorrisinho e, com a mesma rapidez, a expressão
desapareceu.
— A pergunta mais importante é quem é que te polvilhou com pós de
felicidade.
— Não tem nada que ver com pós de felicidade. Eu sei que sou a única que
se preocupa, de facto, com a minha felicidade, por isso faço disso uma
prioridade. Devias realmente tentar, tipo, tentar mesmo, olhar para tudo sob
uma luz diferente.
Agora ele sorria.
— Ah, é?
— Sim. — Sorri-lhe em resposta e disse: — Pensa nisso. Num dia normal,
podes estar a pensar: «Que chatice ter de ir para a escola».
Ele respondeu com uma cara séria:
— Eu nunca pensaria uma coisa dessas, porque sei que a educação é
importante.
— Tu percebes o que eu quero dizer. Num dia normal, quando te estiveres
a sentir pouco positivo, força-te a mudar os teus pensamentos. Em vez de
«Que chatice ter de ir para a escola», pensa «Está um dia tão bonito que depois
da escola talvez eu incline o assento da minha carrinha e leia um bom livro
enquanto a brisa cheira a primavera».
Desta vez, ele riu-se mesmo na minha cara.
— Porque é que eu pensaria algo tão ridículo?
— Que tal, «Pelo menos posso sentar-me ao lado da Emilie Hornby em
Química, ena, ena!».
— A sério, dito dessa maneira? — perguntou ele, de volta à provocação
sarcástica total, com os olhos a brilhar.
— Até parece que a palavra «ena» nunca te veio à cabeça.
— Posso garantir-te que não — disse ele.
— Bem, e os teus amigos, Sr. A Existência é a Configuração Base? —
Inclinei-me sobre a mesa, querendo descobrir tudo sobre ele. — Como é que
tu estás absolutamente livre de grupinhos e dramas do secundário? Vejo-te
pela escola, às vezes, e pareces ter amigos, mas nunca ouvi falar de teres uma
vida social. Nunca te vejo em nenhuma festa, jogos de futebol ou qualquer
outro evento escolar…
— E?…
— E… qual é a história? Sais com os teus amigos e fazes atividades, ou és
um verdadeiro eremita?
Ele olhou por cima do meu ombro, como se estivesse a observar alguém ou
a pensar em alguma coisa, e eu esperei que ele me desse uma resposta
sarcástica. Mas, então, ele disse:
— Eu costumava sair muito mais com os meus amigos, mas a certa altura
parei de me importar com tudo o que tem que ver com o secundário. Parece
tudo… tão inútil. Não a aprendizagem, mas todos os joguinhos.
Os olhos dele pousaram nos meus e ele parecia… intenso.
— Às vezes, tento ultrapassar isso para não ser um eremita, como tu disseste
de modo tão encantador, mas parece tudo tão sem sentido.
— Oh. — Eu não sabia o que responder. — Bem, talvez se tratares as
coisas…
— Hornby, juro por Deus que perco a paciência se me disseres para ser
positivo.
Aquilo fez-me sorrir.
— Bem, não te faria mal, sabes?
Um canto da boca dele ergueu-se ligeiramente.
— Na verdade, acho que faria.
10
Pedaços de frango frito. (N T )
CONFISSÃO N.º 14
Certa vez, escrevi «A Beth Mills cheira mal» no cubículo de uma
casa de banho da escola, depois de ela dizer a todos que o
acampamento de verão onde eu estivera era, na verdade, um
acampamento para crianças com asma.
Depois de sairmos do refeitório do edifício do First Bank, o Nick levou-me
às cavalitas até ao estúdio de tatuagens, deixando-me enterrar o nariz frio no
pescoço dele sem se queixar. Quando parou finalmente e se endireitou, eu
saltei para o chão. A montra do 402 Ink tinha um ar fixe porque não tinha
quaisquer inscrições, a não ser um letreiro em néon vermelho na parte inferior.
Ele abriu a porta e eu segui-o para o interior.
— Estás a ficar com medo? — perguntou ele por cima do ombro.
— Nem pensar. Tragam as agulhas.
Deambulei pela receção, onde havia desenhos de tatuagens nas paredes e
no teto. Eu estava nervosa, sim, mas estava principalmente entusiasmada.
Fazer uma tatuagem era algo que nunca tinha considerado, algo que nunca
teria tido coragem de fazer antes de todo este fiasco dos dias repetidos.
Agora, no entanto, parecia ser algo que eu tinha de fazer enquanto tinha um
salvo-conduto. Serviria, ainda que temporariamente, como um lembrete
impresso do dia em que — pela primeira vez — fiz o que queria em vez do
que achava que devia fazer, em vez de fazer o que todos esperavam.
Mal tivera a oportunidade de absorver tudo quando ouvi o Nick a dizer:
— O Dante está a trabalhar hoje?
Desviei os olhos da parede e olhei para ele, parado em frente ao balcão da
receção.
— Então, tu tens um contingente.
Ele limitou-se a olhar para mim e piscou-me o olho.
Até àquele dia, eu sempre achara que as piscadelas de olhos eram pirosas.
Mas as piscadelas do Nick faziam-me sentir quente e toda derretida.
Alguém, que presumi ser o Dante, saiu de uma sala na parte de trás e eles
trocaram um aperto de mão complicado enquanto eu passeava por ali, a olhar
para as fotografias. Ao fim de dez minutos de conversa em voz baixa, ouvi o
Nick a dizer:
— Quais são as hipóteses de conseguires encaixar esta tarde a minha amiga
Emilie?
— Não tem problema. — O Dante olhou para mim e perguntou: — Já
sabes o que queres? E tens um documento de identificação?
Tirei o documento do bolso, aproximei-me dele e passei a mão pelo cabelo.
— Sim. Aqui tens. E são apenas sete palavras. Tirei uma fotografia a um
tipo de letra de que gosto.
— Que sete palavras? — O Nick enfiou as mãos nos bolsos e olhou para o
meu documento de identificação com desconfiança.
— Não te interessa.
— Isso são três — disse o Dante.
— Lembra-te de que isso vai ficar contigo para o resto da vida, Hornby —
advertiu o Nick.
Não sei porquê, mas eu gostava bastante quando ele me chamava pelo
apelido.
— Dah, Stark. — Mal sabia ele que eu acordaria amanhã num outro 14 de
fevereiro, com a pele fresca e sem tinta.
O Dante teve de ir atender alguém que entrara depois de nós e o Nick
deitou-me um olhar. Inclinou-se para mim, baixou a voz e perguntou:
— Porque é que tu tens uma identificação falsa?
Senti o rosto a ficar quente enquanto gaguejava:
— Eu não… Quero dizer, não é…
— Não te vou denunciar. — Ele deu-me um toque com o cotovelo e a
minha barriga encheu-se de borboletas. A sua voz profunda ressoou: —
Apenas não posso acreditar que a estudiosa Emilie Hornby tenha uma
identidade falsa. Um cartão de biblioteca falso, talvez, mas uma carta de
condução falsa? Nem por isso.
Senti-me um pouco menos ridícula e disse:
— O Chris trabalha com um tipo que comprou uma máquina qualquer no
mercado negro e ele experimentou connosco.
A boca dele abriu-se num O.
— O Chris? O Chris simpatiquíssimo da turma de Teatro?
— Sim.
Ele abanou a cabeça, sorrindo.
— Dois meninos bonitos a andarem por aí na vida louca. Quem diria?
— Preparada? — O Dante estava de volta e eu segui-o até uma sala, grata
por o Nick estar comigo, porque me sentia um pouco nervosa.
Quando mostrei ao Dante o que queria — uma das minhas letras de música
favoritas —, o Nick disse:
— Tens a certeza? Quero dizer, eu percebo que te estejas a sentir corajosa
hoje, mas daqui a alguns anos, ou mesmo horas, podes arrepender-te de teres
tatuado isso na pele.
— Acredita em mim, eu sei o que estou a fazer — respondi.
Mas não sabia, ou pelo menos não fazia ideia no que dizia respeito aos
pormenores técnicos de uma tatuagem. Comecei a ficar nervosa quando o
Nick se sentou na cadeira à minha esquerda e o Dante agarrou o banquinho à
minha direita. Depois de o Dante limpar o meu antebraço, colocar o molde e
ligar a agulha, descobri rapidamente que era muito doloroso fazer uma
tatuagem.
Quero dizer, sim, era relativo. Não era como extrair um dente ou ser
esfaqueado na cara com uma chave de fendas, mas parecia que havia alguém a
enfiar uma agulha no meu braço e depois a arrastá-la pela minha pele.
Porque, afinal, era exatamente isso.
— Então, como é que vocês se conheceram? — Senti a necessidade de
dizer algo enquanto o Dante se inclinava sobre o meu braço e trabalhava,
embora soubesse exatamente como é que eles se tinham conhecido. — Só das
tatuagens do Nick?
— És tão metediça — disse o Nick.
— Ele trabalha aqui. — O Dante não olhou para cima, mas acrescentou: —
O Stark é o nosso pau-mandado. Ele não te disse?
Ergui uma sobrancelha e sorri para o Nick e ele abanou a cabeça enquanto
me lançava um meio-sorriso. Olhar para o rosto dele fez-me contemplar o
quase-beijo e não sei se o meu rosto mudou ou não, mas o dele mudou.
Ele contraiu o maxilar e os seus olhos ficaram intensos enquanto o
momento perdurou. Parecia que havia um fio invisível a puxar-me na direção
dele. Um fio invisível que tinha uma corrente elétrica que, na verdade, parecia
mais forte do que a agulha que se arrastava pela minha pele. Engoli em seco e
pestanejei.
O que é que o Dante acabara de dizer?
— Não… hum… ele não mencionou esse pormenor.
— O quê, tens vergonha de nós, Nickie? — brincou o Dante.
— Ela é muito metediça e não precisa de saber porra nenhuma — disse o
Nick.
Aquilo fez-me bufar:
— Como quiseres. Nickie.
O Dante achou tudo aquilo muito engraçado, mas eu não me conseguia rir
porque o Nick estava a olhar para mim daquela forma outra vez. A intensidade
do seu olhar deixou-me incapaz de qualquer pensamento e comunicação,
enquanto o Dante resmungava e murmurava sílabas à medida que finalizava a
minha tatuagem.
Quando terminou por fim, mostrou-me a tatuagem e eu soltei uma
exclamação, movendo suavemente os meus dedos em redor da zona recém-
tatuada no meu braço.
— Uau, é incrível.

I had a marvelous time ruinin’ everything [diverti-me imenso a estragar tudo]11


Adorei.
O Dante saiu da sala para ir buscar qualquer coisa e o Nick levantou-se.
Aproximou-se de mim e enfiou a mão por baixo do meu antebraço para o
poder levantar à altura dos olhos. Senti a respiração a ficar-me presa no peito
enquanto ele movia o polegar, com muita suavidade, logo por baixo da
tatuagem. Estava tão perto de mim que eu não me conseguia lembrar de como
o mundo era além do seu rosto.
— Gosto — disse ele, com o polegar ainda a mover-se para frente e para
trás sobre a minha pele. Parecia que estava a falar sobre mais do que apenas a
tatuagem, enquanto o seu rosto pairava acima do meu, a poucos centímetros.
— Deixa-me só pôr isto no teu braço — disse o Dante, voltando para a
sala com um tubo de algo numa mão e película aderente na outra — e podes ir
à tua vida.
O Nick deu um passo atrás e eu estava demasiado chocada para fazer o que
quer que fosse além de acenar com a cabeça e tentar fazer com que a minha
pulsação se acalmasse. O Nick saiu da sala e o Dante explicou-me como cuidar
da tatuagem, enquanto a cobria de pomada e a tapava com uma ligadura e
película aderente. Mal lhe prestei atenção, sabendo que a tatuagem teria
desaparecido quando acordasse num outro 14 de fevereiro.
Quando o Dante me levou para a receção, o meu parceiro do DSC estava
junto à porta da frente, a conversar com um tipo de cabelo preto espetado e
tatuagens nos braços. As minhas faces ficaram de imediato quentes quando o
Nick olhou para mim, e eu segui rapidamente o Dante até ao balcão.
Paguei e, quando estava a assinar o recibo, o Dante disse:
— Como é que conseguiste que o eremitazinho saísse da toca?
— Obriguei-o a vir. — Entreguei-lhe o pedaço de papel e ele fez-me um
sorriso bastante simpático e caloroso.
— Bem, fico contente. O Nickie cresceu demasiado depressa desde o
acidente e precisa de se divertir um pouco.
— Acidente? — Olhei para trás, para ter a certeza de que o Nick não estava
a ouvir. Não queria que ele pensasse que eu estava a ser intrometida. — O
Nick sofreu um acidente?
— O Nick não, o Eric.
— O Eric?…
— O irmão dele. Faz hoje um ano.
O Nick aproximou-se e endireitou o livro de amostras no balcão.
— Estás pronta, Hornby? — Não parecia ter ouvido nada e eu não pude
deixar de me sentir como se tivesse descoberto por acaso algo que o Nick não
queria que eu soubesse.
Assenti com a cabeça e pigarreei.
— Pronta, Stark.
O Nick despediu-se dos amigos.
— Obrigada! — gritei eu enquanto saíamos da loja.
— Céus, está frio — resmungou o Nick, fechando o seu blusão.
Eu concheguei o meu próprio casaco — ou melhor, o casaco dele — mais
perto do meu corpo.
— Já te agradeci pelo teu casaco maravilhoso?
— De nada. — Ele olhou para mim, percorreu o grande casaco com os
olhos e, então, surgiu-lhe uma expressão estranha no rosto. Engoliu em seco,
visivelmente, e contraiu o maxilar. Depois, ficou calado por um instante antes
de finalmente pigarrear e dizer: — Então, para onde vamos agora?
Olhei para a minha esquerda e apontei para a escada ao nosso lado que
subia pela lateral de um edifício de tijolos atarracado. Os meus olhos seguiram
a sua trajetória ascendente e parecia que o edifício tinha apenas alguns andares.
Tudo o que eu queria era distrair o Nick do que quer que tivesse feito o seu
rosto parecer triste, e quando se combina esse objetivo com o facto de ser o
DSC, subir a um telhado parecia uma ótima ideia.
— Não — disse o Nick.
— Porque já estivemos numa varanda?
— Porque, se vamos subir a um telhado, temos de levar algo quente para
beber. — Ele desviou a atenção da escada e fitou-me. — E eu conheço um
sítio melhor. Anda. — Agarrou-me pela mão e puxou-me, puxando-me para
perto de si enquanto começava a caminhar pela rua. As pernas dele eram
muito mais compridas do que as minhas, pelo que ele estava praticamente a
arrastar-me.
— Mais devagar — disse eu, rindo.
— Está demasiado frio para irmos devagar, Em. — Ele parou, virou-se e
ofereceu-me as costas. — Sobe.
— Outra vez? — perguntei, um pouco ofegante com o uso íntimo do meu
nome abreviado. — Eu posso andar mais depressa, não precisas de me carregar
como uma criança pequena.
Ele olhou para mim por cima do ombro.
— Nã… eu gosto. Mantém-me quente e fico tonto com o teu perfume.
Partilhámos um sorriso estranho antes de eu subir, como se estivéssemos a
reconhecer a atração sem usar as palavras. Passei os braços em volta do
pescoço do Nick e ele agarrou-me as pernas e segurou-as com mais força
contra o corpo.
— Vamos embora — disse.
Começou a andar, caminhando tão depressa que alcançou a minha
velocidade de corrida. Felizmente, não havia muito tráfego de peões, portanto
foi fácil para ele caminhar pela rua com um passageiro agarrado às costas.
— Estás bem aí atrás, Hornby?
— Estou a ficar pesada, não estou?
— A ficar?
— Cala-te.
Eu sentia a vibração do riso dele através das suas costas e ri-me também,
apertando as pernas em redor dele e conquistando outra risada. Ele percorreu
mais um quarteirão e depois pousou-me no chão quando chegámos a um
pequeno vagão de café na esquina. O CAFÉ PRÓSPERO parecia ser uma
roulotte encantadoramente restaurada, toda em madeira polida e com
acabamentos contemporâneos.
A pessoa que estava a servir olhou para nós pela janela dos pedidos e disse
ao Nick:
— Vi os teus pais ontem e a tua mãe ainda parece estar zangada comigo.
O Nick sorriu.
— Tu destruíste o carro dela, isso surpreende-te?
O tipo — o crachá dele dizia Tyler e ele parecia ter uns vinte e poucos anos
— riu-se e começou a contar-me uma história sobre a vez em que o Nick lhe
dera boleia para o trabalho no carro da mãe e o carro ficara preso na neve.
Aparentemente, o Tyler devia ter apenas carregado um pouco no acelerador,
enquanto o Nick se colocava atrás do veículo e empurrava, mas o Tyler achou
que fazia mais sentido pisar o acelerador a fundo e «arrancar aquele chaço do
banco de neve», o que resultou no carro a sair disparado para frente, guinar e
bater num parquímetro.
O Nick estava a rir à gargalhada.
— O Ty saiu do carro, olhou para os danos e pareceu genuinamente
ofendido com o que o parquímetro tinha feito.
Era incrível ver o Nick com um ar totalmente feliz. Eu estava quase
dominada pela necessidade desesperada de fazer o que fosse necessário para
que ele estivesse sempre assim.
— A propósito, esta é a Emilie — disse o Nick ao Ty, e nós trocámos
cumprimentos.
Então, o Tyler perguntou:
— Vocês não deviam estar na escola agora, miúdos?
— Na verdade, devíamos — disse o Nick, virando os seus olhos
sorridentes para mim. — Esta criminosa convenceu-me a faltar com ela. E
agora quer subir a um telhado com este frio, como se isto fosse um maldito
filme.
— Fixe. — O Tyler acenou com a cabeça em aprovação. — Vais levá-la ao
T.J.’s, então?
O Nick assentiu.
— Sim, mas precisamos de bebidas quentes primeiro.
— O de sempre, companheiro?
— Tira dois.
O Tyler desapareceu da nossa linha de visão para preparar as nossas
bebidas.
— Quem és tu, Nick Stark? — disse eu.
Ele semicerrou os olhos e uma rajada de vento soprou entre nós.
— Como assim? — perguntou ele.
— As pessoas da nossa idade não têm uma vida, verdadeiramente. Saímos
com amigos da escola e, tipo, vamos talvez até ao centro comercial. Mas aqui
estás tu — disse eu, apontando para a roulotte de café e os prédios em redor —
com amigos adultos e, tipo, uma vida no centro da cidade. És algum agente
secreto? Tens na realidade quarenta anos?
Os olhos dele moveram-se por todo o meu rosto e ele disse em voz baixa:
— Eu podia dizer-te, mas depois teria de te matar.
— Isso é o que eles dizem sempre, mas será que precisam realmente de
matar? — Prendi o meu cabelo esvoaçante atrás das orelhas e disse: — Não
poderia ser «Eu podia dizer-te, mas depois terias de prometer que guardarias o
meu segredo para sempre»?
— Dois mocas grandes, com chocolate extra e chantilly duplo. — O Tyler
apareceu na janela com dois enormes copos de papel cheios de café.
Olhei para o Nick, que claramente adorava doces, e declarei:
— Fiquei com uma cárie só de ouvir esse pedido.
— É, não é? — O Tyler pegou no cartão de débito do Nick e começaram
os dois a falar sobre alguém que eu não conhecia, enquanto ele registava o
pagamento e eu ficava apenas a observar. O Nick parecia tão confortável, tão
caloroso, quando estava com os seus amigos, e esse era um lado que eu nunca
tinha visto antes. Na escola, ele parecia estar sempre apenas a tentar que o dia
passasse sem ter de falar com ninguém.
Isto… era muito diferente.
Depois de deixarmos a roulotte do café, o Nick conduziu-me ao longo de
um quarteirão, onde entrámos num prédio de apartamentos sem identificação.
Ele recusou-se a responder a qualquer pergunta, caminhando simplesmente à
minha frente. Subimos num elevador até ao último andar, percorremos um
longo corredor e entrámos no armário da manutenção. Então, o Nick apontou
para uma escada que ficava entre duas caldeiras enferrujadas e que parecia
levar a uma gaiola.
— Eu vou primeiro para abrir o alçapão, se segurares no meu copo.
Pestanejei.
— O quê? Que alçapão?
Ele estendeu-me a sua bebida fumegante e disse com os olhos fixos nos
meus:
— Confias em mim?
Assenti simplesmente com a cabeça e estendi a minha mão livre.
— Linda menina. — Ele deu-me o copo, virou-se e começou a subir a
escada para Deus sabe onde. Ouvi os sapatos dele em cada degrau de metal e
depois só consegui ouvir o som de ferragens, seguido por uma rajada de vento
gelado a soprar à minha volta, enquanto a sala da caldeira era inundada de luz.
— Vou descer para ir buscar o meu café — ouvi-o a dizer à medida que
descia —, portanto não tentes começar a subir com as mãos ocupadas.
Um segundo depois, as pernas dele apareceram à minha frente e o Nick
pegou no seu café.
— Se calhar, devias subir primeiro para eu estar aqui para te amortecer a
queda se escorregares. Achas que consegues subir só com uma mão? Se não,
eu deixo o meu copo aqui em baixo e posso levar o teu.
— Uau. — Olhei para o topo da escada. — Que cavalheiresco.
Ele ergueu as sobrancelhas.
— É isso ou gosto mesmo do aspeto dessas calças de cabedal por trás.
Se outra pessoa me tivesse dito aquilo, era possível que lhe quisesse bater.
Mas o meio-sorriso dele disse-me que ele dissera aquilo de propósito porque
sabia que me iria irritar. Revirei os olhos e comecei a subir.
Assim que cheguei ao topo da escada e saí para o telhado, fui assaltada pelo
ar gelado do inverno. O Nick surgiu atrás de mim e, antes que eu pudesse
olhar em volta, disse:
— Fecha os olhos.
Eu fechei, mas disse:
— Isso parece uma má ideia num telhado.
— Eu sei, eu sei — respondeu ele, e eu senti-o a agarrar a minha mão livre,
começando a guiar-me. — Mas prometo não te matar. Só não quero que vejas
nada até estares no sítio perfeito.
— Eu já vi a cidade do quadragésimo andar. Quão diferente pode isto ser?
— Não fazes ideia. — Deixei que ele me guiasse, conduzindo-me em redor
de coisas, até finalmente parar. A respiração dele era quente no meu rosto
quando se inclinou mais para mim e disse em voz baixa: — Pronto, Emmie,
abre os olhos.
11
Do tema «The Last Great American Dynasty», de Taylor Swift. (N T )
CONFISSÃO N.º 15
Escolhi jogar basquetebol no 7.º ano porque pensei que isso me
tornaria popular. Usava ténis cor-de-rosa e marquei dois pontos
durante toda a temporada. Não resultou.
Abri os olhos e fiquei sem fôlego enquanto absorvia toda a beleza. Se o
arranha-céus fora espetacular, porque podíamos ver tudo de cima, esta vista
era como se eu estivesse envolvida num abraço da minha cidade favorita.
Estávamos mesmo no coração do Mercado Velho, logo acima dele, portanto
podíamos ver as carruagens puxadas a cavalo, as pessoas a caminhar e a
enorme fonte que tinham acabado de instalar no verão passado.
Estávamos no Mercado Velho, em vez de acima dele, mas, ao mesmo
tempo, éramos invisíveis.
Era de tirar o fôlego.
— Isto é mágico — sussurrei.
— É, não é? — disse ele, fitando algo no horizonte. — Este é o meu lugar
favorito na cidade.
— Mais uma vez, quem és tu? — Bebi um gole do rico e extravagante café
com chocolate quente e olhei para o seu maxilar forte. — Como é que sabias
da existência deste lugar?
— O meu irmão morava neste prédio — disse ele, ainda a olhar para algo
distante. — Portanto, sempre que eu vinha cá, passávamos imenso tempo aqui.
— Sortudo. Os meus irmãos são pequenos e na verdade não são meus
irmãos a sério. Onde é que ele vive agora?
Eu estava a olhar para a fonte, mas virei-me para o Nick quando ele não
respondeu. Remexendo nos punhos das mangas, ele suspirou e disse:
— Bem, isto é estranho. Ele não vive.
Oh, não. O acidente.
— Oh, Nick, eu…
— Ele morreu num acidente de moto-quatro.
— Nick, lamento imenso.
Ele encolheu os ombros.
— Não há problema, não é como se tivesse acabado de acontecer. Faz,
tipo, um ano.
— Um ano? Isso não é muito tempo, de todo. — Um ano era como se
tivesse acontecido ontem.
— Está tudo bem. — Ele não parecia destroçado, como se houvesse uma
dor nova. Parecia… esmagado por ela. Exausto por causa ela. Esgotado por
causa ela, enquanto me oferecia um sorriso cansado. — Eu não queria dizer-te
desta maneira. É tão estranho falar sobre isto.
— Bem…
— Na verdade, faz hoje um ano. — Ele engoliu em seco e parecia estar a
tentar soar casual quando acrescentou: — Ele morreu no Dia dos Namorados
do ano passado.
— A sério?
Ele lançou-me um meio-sorriso.
— Que tal para um dia de cartão-postal? — comentou.
— No teu lugar, eu iria querer dar um pontapé em toda a gente que falasse
sobre flores e doces. — Parecia-me cruel a ideia de alguém morrer num dia em
que as pessoas mandavam buquês de balões e pizas em forma de coração.
Também me senti uma palerma completa por ter pena de mim mesma por
causa do aniversário da separação dos meus pais quando o Nick estava a lidar
com isto. — Tipo, isso não interessa nada.
Aquilo fez com que o sorriso dele crescesse um pouco.
— É, não é?
Fazia todo o sentido agora, a maneira como ele vivia; este tipo de vida de
adulto num corpo de miúdo do secundário. Era impossível coisas como o baile
de finalistas, festas e jogos de basquetebol não parecerem completamente
inúteis depois de se sofrer uma perda como aquela.
— Percebo perfeitamente se não quiseres fazer o DSC comigo, Nick. —
Pousei o meu copo no corrimão, ao lado de onde ele tinha pousado o dele, e
enfiei as mãos nos bolsos, sentindo-me culpada por o ter arrastado nas minhas
aventuras. — Talvez preferisses…
— Estar com os meus pais e ouvir o silêncio da nossa casa? Nã, isto é
muito melhor.
Segui-o até um banco que ficava ao lado de uma planta morta no canto do
telhado. Ele sentou-se e, quando me sentei ao lado dele, agarrou-me pela
manga e puxou-me para mais perto. Acomodou-me contra ele de modo que as
minhas costas ficassem encostadas ao seu peito. Passou o braço em volta dos
meus ombros e pousou o queixo no topo da minha cabeça.
— Estás bem assim? — murmurou ele, e a sua voz vibrou através de cada
folículo de cabelo na minha cabeça.
— Uhum — respondi.
Ficámos ali sentados, assim, a observar em silêncio o mundo todo exposto
à nossa frente durante o que pareceu ser bastante tempo. Não era
desconfortável, contudo, apenas silencioso.
— Sabes, a coisa mais estranha nisto é a desconexão no meu cérebro entre
a vida e a morte. — A voz do Nick tinha um tom de indiferença quando disse:
— Posso passar uma hora a pensar no facto de ele estar morto, mas cinco
minutos depois, se ouvir um barulho no corredor, penso coisas bizarras como:
O E deve estar a tomar banho. É como se meu o cérebro soubesse, mas a minha
memória se esquecesse ou algo assim.
— Hum… isso é absolutamente horrível.
— De certa forma. — A voz dele era baixa e o sol deixara as minhas
bochechas um pouco menos frias quando ele continuou: — Mas parte de mim
gosta dessa confusão porque, por meio segundo, parece que as coisas estão
normais. Estranho, não é?
— Claro que não. — O meu coração doía por ele e coloquei a minha mão
em cima da sua. — Mas o meio segundo depois desse meio segundo deve ser
horrível.
— Do pior. — Ele fez um som que era meio gargalhada, meio gemido e
disse: — Como é que sabias?
— Não sei como poderia não ser. — Fiz deslizar o meu dedo sobre o nó
do dedo dele e perguntei-lhe: — Vocês eram próximos?
— Sim. Quero dizer, tão próximos como dois irmãos com três anos de
diferença podem ser. Passámos a maior parte da nossa infância a brigar, mas
estávamos sempre juntos.
— Deves sentir-te tão sozinho agora. — Eu sabia que havia coisas muito
piores do que a solidão, mas também sabia, em primeira mão, que a dor vazia
de nos sentirmos sozinhos podia ser totalmente sufocante. Virei-me no banco
e coloquei as mãos no rosto dele, atingida pela tristeza nos seus olhos.
Não fazia ideia do que estava a fazer, mas beijei-lhe a ponta do nariz. Isto
não tinha que ver com rapazes e raparigas, amor e atração; tratava-se de uma
alma humana que precisava de se sentir vista. Eu sabia disso porque, embora
não fosse comparável em escala ao que ele devia estar a sentir, sentia aquela
solidão com frequência. Sempre que a minha mãe se esquecia de que era o fim
de semana dela ou o meu pai me deixava um bilhete a dizer para eu pedir uma
piza porque ele, a Lisa e os rapazes já tinham jantado, eu sentia-me
completamente sozinha no mundo.
— Para com isso. — As mãos do Nick cobriram as minhas para as
imobilizar junto à sua cara. — Para com esse olhar de partir o coração. Estavas
a pensar no Sutton?
— O quê? — Aquilo fez-me soltar uma gargalhada. E percebi que não
sentia nada perante a menção do meu ex-namorado. — Sabes, até me tinha
esquecido de que ele existia.
— Então, o que foi isso? — O polegar dele acariciou a minha mão
enquanto a retirava do seu rosto, envolvendo depois os dedos nos meus. —
Porque é que ficaste com esse ar tão triste?
Apertei os lábios. Eu nunca — mas nunca — falava sobre os meus pais
com ninguém. Contudo, quando o Nick olhou para mim como se realmente
quisesse saber, dei por mim a contar-lhe tudo. Os nossos dedos acabaram
ligados, presos entre nós, à medida que eu me perdia em divagações sobre
discussões intermináveis e famílias novinhas em folha.
Só me apercebi do nível de partilha em que estava quando notei as lágrimas
a desfocarem a minha visão.
Não, não, não, sua idiota — não chores diante do Nick Stark, a única pessoa que
deveria estar a chorar.
— Desculpa. — Pestanejei rapidamente e disse: — Isto foi estranho. Eu
nunca falo sobre estas coisas. A minha vida familiar pateticamente mundana é
provavelmente a última coisa sobre a qual precisavas de ouvir hoje.
— Estás enganada. — Ele engoliu em seco. — Saber que não sou o único,
que… raios… que se sente sozinho? Sim, acho que ajuda, de alguma forma.
Forcei a minha boca a formar um sorriso.
— Então, estás contente por eu estar a chorar. Grande idiota.
Aquilo fê-lo sorrir e apertar a minha mão.
— Um bocadinho.
Rimos os dois e eu disse:
— Na verdade, percebo o que queres dizer. Nada nos faz sentir tão
sozinhos como pensarmos que somos os únicos que estamos sozinhos.
O Nick sorriu.
— Fala-me mais sobre ti — pediu. — É uma boa distração.
Contei-lhe um milhão de pequenas histórias, e ele parecia fascinado por
cada uma delas. Brincou e provocou, mas foi caloroso e doce e tudo o que o
meu coração solitário precisava.
— Sua pequena rebelde sociopata — disse ele, rindo-se e puxando uma
madeixa do meu cabelo depois de eu lhe contar sobre a minha caixa secreta de
confissões. — A melhor aluna de Hazelwood não é nada do que parece.
— Para que conste, não acrescento nenhuma confissão há algum tempo —
esclareci.
— Tretas — disse ele, tentando ocultar a palavra com tosse, e rimos os
dois.
— Oh! Esta é das boas — continuei eu. — Tudo o que eu queria para o
meu nono aniversário era um bolo com um unicórnio roxo da Pastelaria Miller.
Era majestoso, Nick, a sério. Tinha purpurinas no glacé, parecendo que estava
polvilhado com mil diamantes minúsculos. Todos os sábados, quando a minha
avó me levava para irmos comprar doughnuts, eu ficava a olhar para aquele bolo
lindo e cintilante. Adorei-o durante cerca de um ano e queria tê-lo como
presente. Nada de brinquedos ou roupas; o bolo era a única coisa que eu
queria e falava sobre isso sem parar.
— Parece um bolo muito feio — brincou ele, esfregando suavemente os
dedos nos meus. — Mas continua.
— Então, o meu aniversário chega e eu estava doida de excitação. A minha
mãe e o namorado dela levam-me ao rinque de patinagem e eu estava
literalmente a saltar de entusiasmo. Andei de patins com os meus amigos
durante algum tempo e, então, chega a hora do bolo.
— Acho que vou detestar esta parte — comentou ele.
— Ah, sem qualquer dúvida. — Sorri com o calor dos olhos dele e disse:
— Porque a minha mãe olha para o meu pai e diz: «Tom? O bolo?» — Abanei
a cabeça com a memória. — E ele responde: «Beth? O bolo?»
— Não — gemeu o Nick.
— Sim. Então, começam a falar um com o outro daquela forma cheia de
sorrisos falsos, mas completamente assassina, a discutir que, como a festa era
no dia da minha mãe, o meu pai achava que a responsabilidade era dela, e ela
achava que, como eu vi o bolo quando estava com a mãe dele, a
responsabilidade era dele.
— E, entretanto, tu estás ali a ouvir a palavra «responsabilidade» e a
sentires-te uma merda, certo?
— Exatamente. Tipo, se eles se importassem comigo e com o meu
aniversário, deviam querer que eu tivesse aquele bolo de unicórnio roxo, fosse
como fosse. — Revirei os olhos. — Então, eles disseram «Oh, tudo bem» e
espetaram apenas um monte de velas na piza de pepperoni da qual os miúdos já
se tinham começado a servir.
— Não houve bolo nenhum? — perguntou ele, parecendo indignado.
— Não. — Eu quase queria rir do ar ofendido dele. — Tu e o Eric tiveram
alguma vez uma festa de aniversário pirosa a andar de patins?
— Claro que não, nós brincávamos com pistolas de laser.
— Rapazes.
Ele começou a falar sobre o irmão, partilhando memórias que lhe faziam a
voz falhar enquanto os seus olhos sorriam, e eu estava em êxtase. Contou
história após história dos dois a andarem por todo o lado depois de o Eric se
mudar para o centro da cidade, fazendo coisas estúpidas e trocando
mensagens com memes imaturos. Eu estava a chorar de novo, mas desta vez
era de tanto rir.
— Então — sentei-me mais direita —, a tua tatuagem é sobre o Eric?
— Sim. — Ele olhou para o meu (seu) casaco e colocou as mãos na parte
da frente, apertando-o mais em meu redor. Foi um gesto carinhoso que me
deixou mais quente do que o próprio casaco. — É uma correspondência exata
da que ele tinha.
— Exata?
— Sim.
— Isso é mesmo muito fixe. Foi o Dante que a fez?
— Sim. Ele fez a do Eric e depois a minha.
— Posso ver?
Ele esboçou um sorriso malandro.
— Eu teria de tirar a camisa.
— Ah, está bem, tenho a certeza de que não queres fazer isso — provoquei
eu, fingindo que as minhas faces não estavam de repente a arder. —
Provavelmente tens vergonha do teu corpo balofo.
Os olhos dele enrugaram-se.
— Queres mesmo ver o meu peito, não é, Hornby?
— Não te iludas. — Fiz um gesto para o meu antebraço e disse: — Eu
apenas adoro tatuagens. Obviamente.
— Sim, é isso mesmo, sua rebelde.
— Esquece. — Revirei os olhos de modo dramático e disse: — Já não a
quero ver.
Ele sorriu-me e levantou-se. Tinha aquela expressão de miúdo teimoso nos
olhos — uma expressão que supus que usasse sempre que fazia disparates com
o irmão mais velho — enquanto tirava o casaco e o atirava para o banco.
— Está um gelo, Nick… Talvez…
— Se a Emilie Hornby quer que lhe mostres a tua tatuagem — disse ele,
puxando casualmente a parte de trás da camisola por cima da cabeça, como se
se estivesse a despir sozinho no seu quarto e não fizesse um frio de gelar ali
fora, no meio da cidade —, tu mostras-lha.
Levantei-me, a rir, enquanto ele estava ali com a camisola na mão.
Aproximando-me, forcei os meus olhos a permanecerem focados na
tatuagem, que era uma espécie de padrão celta que lhe envolvia o bíceps e se
enroscava no ombro.
Pousei os dedos na pele dele e deixei-os deslizar sobre as linhas de tinta,
nunca me atrevendo a erguer os olhos para ele. Debaixo da pele firme ele só
tinha músculo e, ao passo que as minhas mãos se moviam sobre ele, parecia
mais que estávamos sozinhos no escuro do que expostos no telhado.
Ele gemeu.
— OK, para. Isto foi uma péssima ideia.
Olhei para o rosto dele e o seu olhar era intenso. Consegui acenar com a
cabeça e retirar as mãos, observando-o enquanto ele voltava a vestir a camisola
e depois o blusão. À medida que o Nick fechava o fecho do casaco, comecei a
questionar-me se deveria estar a sentir-me constrangida por lhe ter tocado, mas
então ele disse:
— Tenho de admitir, Hornby, o DSC foi uma ideia espetacular.
Aquilo dissolveu qualquer tensão que pudesse estar a formar-se, e sorri.
— Olha, tenho uma ideia do que podemos fazer a seguir e ou é ótima ou é
péssima — disse eu, então.
— Nesse caso, é provavelmente terrível.
— Provavelmente. — Dei alguns passos para longe dele, andando de um
lado para o outro enquanto tentava apresentar a ideia de uma forma que o
fizesse ver o seu mérito. — Olha, já que é o aniversário de um ano da morte
do Eric, e ele está obviamente na tua cabeça, que tal se nós, tipo, lhe
prestássemos uma homenagem?
— Emilie.
— Não, escuta. — Continuei a andar, dando passos para frente e para trás
para me aquecer. — Parece-me que vocês se divertiram sempre muito na
cidade, como se fosse o cenário de muitas das tuas melhores lembranças.
Portanto, que tal se revisitássemos algumas dessas atividades?
Ele abriu a boca para falar, mas eu corri para ele e tapei-lha com a mão.
— Deixa-me acabar, Stark.
Ele inclinou a cabeça e os seus olhos enrugaram-se nos cantos, portanto eu
larguei-o e comecei a andar novamente, feliz por ele estar a sorrir. Sempre que
conseguia ser responsável por aquela expressão no rosto dele, ficava encantada.
— E se levássemos as trotinetas até ao Joslyn, como vocês fizeram no 4 de
Julho? Ou talvez pudéssemos ir de bicicleta até ao parque e descer pelas
rampas grandes. Ou dar de comer aos patos, como vocês faziam quando a tua
mãe vos trazia cá na escola primária. Não quero meter-me onde não sou
chamada, mas seria bom se pudesses sentir que o Eric está de alguma forma
connosco no DSC.
— Hornby.
— Por favor, não fiques chateado por eu estar a meter o…
— Emilie.
— …nariz onde não devo. Eu só quero…
— Por amor de Deus, Em, para de falar. — Ele aproximou-se de mim, a
sorrir, e tapou a minha boca com a mão dele. — Se não te calas, não te posso
dizer que acho uma ótima ideia. Cristo!
Fitei-o. Ele estava a olhar-me provocadoramente devido à nossa
proximidade e percebi que estava mesmo a sentir coisas importantes por ele.
Sim, não nos conhecíamos há muito tempo, mas eu sentia que sabia mais
sobre ele do que sobre muitas pessoas que eram uma parte importante da
minha vida.
Sentia que ele me conhecia.
E raramente sentia isso com alguém.
Ele tirou a mão da minha cara e disse:
— Então, vamos embarcar na próxima parte da nossa viagem?
CONFISSÃO N.º 16
Quando eu era pequena e a minha mãe me obrigava a pedir
desculpa, eu acrescentava silenciosamente na minha mente «…
mas a culpa não é minha» no fim de cada pedido de desculpa.
— Então, é por isso que não namoras? — Parei de mastigar a minha piza e
ofereci ao Nick a expressão mais confusa que consegui fazer. — Porque não
tens tempo?
Estava a começar a escurecer lá fora, pelo que eu e o Nick tínhamos
entrado na Zio’s Pizza com a intenção de comermos algumas fatias para
enchermos a barriga e nos aquecermos. Depois de passarmos algum tempo no
telhado, tínhamos ido de trotineta até ao Museu Joslyn (o Nick ainda tinha o
código de administrador do Eric, do seu breve período a trabalhar como
«arrumador de trotinetas», portanto conseguiu desligar o bluetooth de modo a
podermos deixar a zona), onde ele me ensinou cinco coisas que eu não fazia
ideia sobre Van Gogh, enquanto explorávamos o museu de arte.
Algumas pessoas teorizam que foi Gauguin quem, na verdade, cortou a
orelha de Van Gogh e que a mutilação não foi autoinfligida.
Van Gogh pintou um retrato de si mesmo com uma orelha enfaixada após
o corte.
Vendeu apenas um único quadro durante a sua vida.
Deu um tiro no peito num campo onde estava a pintar, mas conseguiu
voltar a pé para casa e só morreu dois dias depois.
As suas últimas palavras foram: «A tristeza durará para sempre.»
Eu poderia ter ficado deprimida, porque aquilo era informação
extremamente deprimente, mas então o Nick ensinou-me mais duas coisas
sobre Van Gogh, que eram, obviamente, falsas, e fez-me sentir muito melhor:
Os amigos chamavam-lhe Van e, quando ele ficava demasiado tempo junto
deles e se tornava irritante, eles atormentavam-no gritando: «Van, vai!»12
A mulher que recebeu a orelha de Van Gogh vendeu-a no eBay e ganhou
tanto dinheiro que começou a cortar partes do seu próprio corpo e a vendê-
las. Um dos seus dedos dos pés foi vendido por um milhão de dólares,
portanto ela viveu feliz para sempre e deu a todos os sete filhos o nome
Vinnie.
Depois disso, abandonámos as trotinetas e alugámos bicicletas, com as
quais andámos sobre bancos de neve (muito difícil) e através de poças
lamacentas (muita sujidade), até chegarmos às grandes rampas do parque. O
Nick, com as suas grandes ideias, foi a uma loja de conveniência e comprou
papel de cera para deslizarmos melhor, portanto descemos as rampas tão
depressa que a nossa única opção era acabarmos a voar e cairmos num monte
de neve.
Enquanto, é claro, gritávamos a plenos pulmões.
Depois disso, demos alpista aos patos — o Nick também a comprara — até
os nossos dedos dos pés ficarem demasiado congelados para fazermos o que
quer que fosse na rua. Eu estava com algum receio de que depois de ficarmos
sentados na pizaria aquecida durante mais de uma hora acabássemos por
morrer congelados quando tivéssemos finalmente de sair.
— Não digas isso assim. É uma opção inteligente. — Ele pegou no
refrigerante com uma mão e apontou para mim com a outra. — Não tenho
tempo para todas as parvoíces emocionais que uma pessoa tem de fazer para
deixar a outra pessoa feliz. Seria pior se eu andasse com alguém e depois a
irritasse por ser um idiota frio e distante, não seria?
Revirei os olhos e pousei a minha piza na mesa.
— Suponho que exista uma lógica inversa no que estás a dizer, mas acho
que estás a sobrestimar o número real de minutos necessários para exprimires
os teus sentimentos de modo adequado. Uma mensagem que diz «Adoro o
som do teu riso» demora uns quinze segundos para ser enviada e significaria
tudo para alguém que realmente se importasse contigo.
— Estás a ser cabeça-dura de propósito — disse ele.
— Não, tu é que estás a ser cabeça-dura de propósito. As tuas desculpas são
vagas, demasiado generalizadas e, francamente, patéticas.
— Então, sou patético agora. — O rosto dele estava sério e intenso e eu
estava apaixonada pelo modo como ele me provocava.
Assenti com a cabeça.
— Um bocadinho.
— Dá-me a tua crosta. Agora.
Ele estendeu a mão e pegou na minha crosta. Eu estava na terceira fatia de
piza e já tínhamos chegado à conclusão de que a parte de que eu menos
gostava era a favorita dele, tornando-o a minha equipa de limpeza. Ele levou-a
à boca e perguntou:
— É assim tão errado eu gostar de não ter uma namorada?
— Não é, mas tu não gostas.
Ele deu uma dentada na crosta.
— Como é que sabes? — perguntou.
— Porque sei. — Eu não me estava a iludir, convencendo-me do que queria
acreditar. Nem sequer estava a falar de mim neste cenário, para ser sincera.
Estava, sem qualquer dúvida, a falar sobre ele. O Nick Stark era caloroso,
engraçado e carinhoso, e o seu rosto iluminava-se quando estava com os
amigos e se lembrava do irmão.
Contudo, o Nick distante que ele se forçava a ser na escola, porque não
conseguia reunir forças para assumir qualquer esforço emocional adicional,
exigia trabalho da parte dele. Acho que ele acreditava realmente que a
felicidade era ilusória e fluida por causa do que acontecera com o Eric e, em
vez de a tentar alcançar e correr o risco de ser destruído, deixara simplesmente
de estar interessado em a alcançar.
Por amor, ou até por amizade.
— Bem, deixa-me perguntar-te uma coisa, então — disse ele, tirando um
guardanapo do dispensador e limpando as mãos. — Se sabes, como é que
achavas que estavas loucamente apaixonada por alguém esta manhã e agora até
te tinhas «esquecido de que ele existia»?
— Não vamos falar sobre isso — disse eu em tom de provocação, embora
não quisesse realmente falar daquilo. Estava muito mais interessada no Nick.
— Que tal passarmos à frente?
— Está bem. Mas… — Ele estreitou os olhos. — Primeiro, diz-me uma
coisa que ele faz que te deixa os nervos em franja.
— Oh, meu Deus — ri-me —, sem dúvida os toques de telemóvel dele.
— Por favor, explica.
Ergui o meu copo e meti um cubo de gelo na boca antes de dizer:
— Ele ainda acha que os toques são hilariantes. Sabes, como achávamos
todos no 7.º ano? Ele chega a perder tempo a gravar um toque diferente para
cada pessoa que conhece e acha engraçado mexer no meu telemóvel e
adicioná-los quando eu não estou a prestar atenção.
— Ele mexe no teu telemóvel? — O Nick abanou a cabeça.
— Eu não me importo, não tenho nada a esconder, mas ele atribuiu o som
de um cavalo a relinchar ao nome dele nos meus contactos. Acha hilariante eu
ouvir o som de um garanhão sempre que me envia mensagens.
— Que palerma — disse o Nick.
O Nick parecia um pouco ciumento, o que me agradou.
— O mais engraçado é que isso me irrita — acrescentei. — O som daquele
cavalo dá-me vontade de atirar o telemóvel pela janela.
— Aposto que sim.
— Mas ele achou que estava a ser simpático ao pô-lo. — Sorri e continuei:
— E ri-se sempre que ouve aquele relincho estúpido.
— Então, tu finges que gostas do som? — perguntou o Nick.
Limitei-me a acenar afirmativamente com a cabeça, o que o fez fazer uma
careta e abanar a dele como se eu fosse patética.
— Podemos parar de falar sobre relacionamentos? — Ele empurrou o
prato e o copo para o centro da mesa antes de olhar para o telemóvel. — Se
calhar, devíamos voltar para a carrinha.
Depois de vestirmos os casacos e sairmos, o Nick levou-me outra vez às
costas. Eu não conseguia parar de rir quando ele decidiu que seria engraçado
cantarolar bem alto «a nossa música», que era muito parecida com a «Thong
Song», embora ele o negasse. A minha barriga doía de tanto rir enquanto eu
enfiava a cara na parte lateral do pescoço dele para me aquecer.
— Céus, tens o nariz frio — disse ele, soando como se tivesse os dentes
praticamente a bater.
— Desculpa — respondi, mas não estava nada arrependida. Deixei o meu
rosto absorver todo o calor dele.
Ele tossiu uma risada ofegante.
— Não me estou a queixar.
Percebi que o Nick era incrível. Era divertido e bonito e eu nunca me
sentira tão confortável perto de um rapaz. Tipo, nunca mesmo (exceto o
Chris).
Estranho, certo?
Porque esta Em sem limites que eu estava a ser no DSC não era eu,
portanto todas as minhas reflexões apaixonadas nem sequer faziam sentido. A
verdadeira Emilie Hornby nunca se aproximaria tanto de alguém que mal
conhecia antes do dia de hoje, pelo que esta pessoa que ele estava a ver não era
verdadeiramente real.
Certo?
Ou será que, de alguma forma, eu talvez fosse esta pessoa?
Ao passarmos por um apartamento com as persianas completamente
abertas, vimo-lo os dois ao mesmo tempo. Na televisão da sala daquele
estranho, a Rose e o Jack estavam no convés, a observar os passageiros da
terceira classe a chutar uma bola de gelo que tinha caído do icebergue que
tinha atingido o navio.
Estava a dar o Titanic.
O Nick não acreditava no destino e eu também não, mas era bastante
estranho que o Titanic estivesse a dar no exato momento em que estávamos a
passar.
— Uau, tinhas toda a razão, Hornby — disse ele sarcasticamente, parando
diante da janela. — Jogar futebol com pedaços de icebergue? É obviamente o
melhor. Filme. De sempre.
— És um monstro, Stark — respondi, saltando das costas dele. — Um
perfeito monstro.
Ficámos ali por um instante, a ver o filme pela janela, e, quando olhei para
ele, senti-me apavorada com a ideia de ir para casa. De terminar o dia.
Ele concordara em levar-me a casa do meu pai quando terminássemos para
eu poder entrar e ir buscar a chave da casa da minha avó (altura em que ele
poderia gozar com os pósteres de boy bands que sabia que adornavam as
paredes do meu quarto), e depois ia deixar-me em casa dela, onde eu poderia
dormir em paz sem nenhum interrogatório paternal.
Mas ele não se iria lembrar disso.
De nada disto.
O dia tinha sido incrivelmente maravilhoso, mas, quando eu acordasse
amanhã de manhã, não teria existido para ninguém além de mim. Por alguma
razão, tive de pigarrear e pestanejar rapidamente para me recuperar da emoção
que surgiu com essa constatação.
Ele olhou para mim.
— Estás bem?
Tentei parecer descontraída ao dizer:
— Não quero que o DSC acabe, Nicholas Stark.
— Também. — Ele aproximou-se até o rosto dele ser tudo o que eu podia
ver e a sua voz tornou-se mais profunda e suave. — Pensei nisso e quero
mesmo que o meu DSC inclua beijar-te, Em.
— Queres? — A minha voz estava embaraçosamente ofegante.
— Sim. — Ele colocou as mãos na minha cintura, uma de cada lado, e
inclinou-se ainda mais para mim. Eu podia sentir o toque da respiração dele no
meu ouvido quando ele disse: — Mas não quero se ainda estiveres confusa em
relação ao Sutton.
A minha voz mal se ouviu quando respondi:
— Eu falei a sério quando disse que me esqueci de que ele existia.
— Então, pode ser?
Num dia normal, eu ter-lhe-ia provavelmente respondido com um «Pode»
muito trémulo ou talvez até um «Sim, por favor». Mas era o DSC. A segunda
metade do DSC, para ser exata.
Assenti com a cabeça e, num movimento único, coloquei-me em bicos de
pés, pus as mãos no peito dele e encostei a minha boca à sua.
Os lábios dele eram quentes e ele beijou-me como se tivesse estado a
morrer de vontade de me beijar a vida toda. Os meus dedos enrolaram-se no
tecido macio do seu blusão quando ele abriu a minha boca com a sua,
deixando-me um pouco tonta enquanto me envolvia a cintura com os braços e
me puxava para mais perto.
De imediato, consegui sentir cada centímetro do corpo sólido dele contra o
meu, desde os joelhos até ao peito e aos lábios, o que me fez sentir fraca
enquanto fazia deslizar as mãos e o agarrava pelos ombros para me apoiar. Era
uma sensação absolutamente inebriante, ser beijada pelo Nick Stark. Ele
beijou-me como se estivesse a tentar provar alguma coisa.
Desapareceu tudo, exceto a sensação dos pelos curtos da barba dele contra
a minha pele e dos seus dedos a fletirem-se nas minhas costas. Ele levantou
finalmente a cabeça e colocou-me uma madeixa de cabelo atrás da orelha.
Senti-me quase tímida enquanto nos fitávamos. Passei a língua pelo lábio
inferior e disse:
— Não achas estranho que antes de hoje…
— Praticamente não nos conhecíamos e agora parece que nos conhecemos
há anos?
Assenti com a cabeça.
— Sim. Quero dizer, é um pouco…
— Bizarro? Claro que é. — Os olhos dele moveram-se sobre o meu rosto e
eu conseguia sentir a vibração da voz dele no seu peito encostado ao meu
quando ele disse: — Eu não te conhecia esta manhã e agora sei qual é a
sensação da tua mão na minha, o som da tua voz quando estás a tentar não
chorar e o gosto da tua boca. E sei que detestas salada de batata e adoras
aquele vídeo com o gato que toca a campainha para o jantar.
Sorri, sentindo-me arrebatada pelas palavras dele, e disse:
— E eu sei que a cicatriz por cima da tua sobrancelha é de quando o Eric te
empurrou contra uma saída de aquecimento, sei que gritas palavrões quando
uma rapariga fixe te está a vencer numa corrida de trotinetas e sei que beijas
com os dentes. No bom sentido.
Os lábios dele curvaram-se num sorriso.
— Só passou realmente um dia?
— É difícil de acreditar. — Fiquei contente por ele não ter recuado; gostava
de estar pressionada contra o corpo dele, presa nos seus braços. Sorri para ele
e disse: — Tenho uma confissão a fazer, a propósito.
— Deixa-me adivinhar, fizeste batota. Tinhas essas respostas escritas na
mão.
Ergui as mãos.
— Não.
— Então…
— Então… hum… tenho de confessar que acho que estou obcecada
contigo. Com isto. — Engoli em seco e acrescentei: — Connosco.
Uma ruga formou-se entre as sobrancelhas dele.
— Emilie.
— Oh, meu Deus, não estragues tudo, Stark. Não me interessa nada a não
ser hoje, está bem? — Revirei os olhos e espetei-lhe um dedo no peito. —
Estou a falar de estar obcecada por nós no DSC. Estou a falar de estar
obcecada com o dia que acabámos de ter. Não me interessa o futuro, portanto
para de fazer essa cara.
Inclinei o rosto mais para ele, como se estivesse a aproximar-me para outro
beijo, mas enfiei a mão no bolso do casaco do Nick e, em vez disso, agarrei as
chaves.
Ele gemeu e o som do seu desapontamento fez-me sentir vitoriosa.
— Parece que a Emmie vai conduzir até casa. — Tirei-lhe as chaves do
bolso e ergui-as acima da cabeça, dando-lhes uma sacudidela rápida antes de
me virar e começar a correr na direção do estacionamento onde tínhamos
deixado a Betty.
— Dá-me as chaves, Hornby — disse ele calmamente, seguindo-me, ainda a
caminhar com toda a descontração.
Olhei por cima do ombro enquanto corria.
— Não me parece. Vou guiar a Betty e tu vais à pendura.
As sobrancelhas dele ergueram-se e ele disse por entre uma gargalhada:
— É melhor dares-me as chaves.
— Estas? — Comecei a rir e sacudi-as de novo. — Queres estas chaves?
O rosto dele abriu-se num sorriso e ele disse:
— Já chega.
Soltei um grito e desatei a correr mais depressa, mas conseguia ouvi-lo a
correr atrás de mim.
— Vais-te arrepender disto.
— Não me parece…
Ele apanhou-me, colocando os braços firmemente em volta do meu corpo
e levantando-me do chão. Guinchei e voltei a gritar quando ele baixou o
ombro, erguendo-me mais alto e atirando-me depois para cima do ombro.
— Nick! — Eu não conseguia parar de rir. — Põe-me no chão!
Ele tirou facilmente as chaves da minha mão e depois deu-me uma palmada
no rabo.
— Não me parece.
— Vá lá! — exclamei eu, rindo histericamente enquanto passávamos por
um casal mais velho que passeava o cão.
— Nem pensar. — Ele agarrou-me com mais força e disse: — Se te portas
como uma pessoa maluca, minha menina, vou tratar-te como tal.
— Boa noite — disse o empregado do parque quando passámos pela
bilheteira.
— Boa noite — disse o Nick com uma voz estrondosa, como se fosse a
pessoa mais simpática do planeta com uma mulher às costas.
— Estamos quase a chegar ao carro? — perguntei, olhando para o rabo
perfeito dele.
— Já o consigo ver — disse ele.
— Então, põe-me no chão. Eu porto-me bem.
— Acho que isso é impossível no teu caso — disse ele, mas um minuto
depois colocou-me no chão, ao lado da sua carrinha.
— Obrigada — respondi, afastando o cabelo para trás e ajeitando a
camisola — pelo passeio até ao carro. Na verdade, era o que eu pretendia
quando te roubei as chaves. Caminhar é para palermas.
Todo o rosto do Nick se abriu num sorriso e ele abanou lentamente a
cabeça enquanto me fitava.
— Gosto de te conhecer, Emilie Hornby.
Engoli em seco e, enquanto ele sorria para mim, pensei novamente que ele
não se iria lembrar disto. De nada disto. Ia acordar amanhã sem me conhecer,
mais uma vez.
Odiei tanto saber isso que senti um ardor atrás dos olhos, mas consegui
soar casual quando respondi:
— Igualmente, Nick Stark. Tive um dia espetacular contigo hoje.
O rosto dele tornou-se sério, mas ele não disse nada. Então, o momento
prolongou-se, preso entre os nossos olhares. Os olhos dele percorreram as
minhas faces, testa e queixo, e ocorreu-me que estávamos os dois a ver aquele
momento de maneiras muito diferentes. Eu esperava desesperadamente que
ele se lembrasse de tudo no dia seguinte e ele estava a memorizar cada
momento para relembrar com carinho.
Porque, para ele, o DSC significava esquecer o hoje quando o sol nascesse
amanhã.
— Pronta para ir para casa? — perguntou ele com a voz calma e um pouco
rouca.
Acenei afirmativamente com a cabeça, incapaz de falar por causa do
desapontamento.
*
— Em. Acorda.
— Hum? — Abri os olhos e ali estava o Nick, a sorrir para mim, enquanto
eu acordava da sesta que tinha aparentemente acabado de fazer, com a cabeça
apoiada no ombro dele.
Aquele rosto… caramba. Ele era doce, divertido e sexy, e eu só queria voltar a
adormecer. Em cima dele. Para sempre.
— Estamos na casa do teu pai — disse ele.
Olhei pelo para-brisas, um pouco desorientada, e fiquei aliviada quando
percebi que ele tinha estacionado nas traseiras da minha casa, em vez de na
entrada.
— Oh. Sim. — Por favor, que eu não me esteja a babar. Endireitei-me e estendi a
mão para o puxador, um pouco embriagada pelo cheiro do Nick e pelo calor
da carrinha. Saí e ele estava logo ali, ao meu lado, na escuridão fria.
— Tens a certeza de que queres entrar à socapa? — perguntou ele,
caminhando ao meu lado depois de eu fechar a porta e me dirigir para as
traseiras da casa, onde ficava a minha janela. — Parece arriscado.
— Não é. — Abri o portão e entrei no quintal. A lua estava alta e brilhante
enquanto avançávamos, esmagando a neve com os pés, e fiquei um pouco
surpreendida por ele vir comigo em vez de esperar na carrinha quente. — O
meu quarto fica na cave, portanto o meu pai e a Lisa dormem dois andares
acima de mim. E ele ressona como um comboio de carga.
— Dito como uma criminosa — comentou o Nick, e o meu riso criou uma
nuvem diante do meu rosto.
Destranquei a porta da cave e abri-a, sentindo o calor do Nick enquanto ele
me seguia para o interior. Ele não disse nada quando abri a porta do meu
quarto, mas, assim que a fechei atrás de nós e nos sentimos um pouco a salvo
em relação a sermos apanhados, ele sorriu abertamente no escuro — graças a
Deus pelo brilho do luar que entrava pela janela.
— Tu és uma sociopata — sussurrou.
Segui o olhar dele até às minhas estantes, as quais estavam codificadas por
cores e sem um único livro fora do lugar, e tive de admitir que o meu quarto
parecia um pouco… estéril. Mesmo sem as luzes acesas. Limitei-me a encolher
os ombros e sorrir, enquanto abria a minha gaveta da mesa de cabeceira e
tirava as chaves.
— Aquilo é?… — Ele apontou para o meu closet com as sobrancelhas
erguidas. — O closet? Onde vive a infame caixa das confissões?
Algo sobre o facto de ele se lembrar fez com que o meu coração palpitasse.
Senti-me como se o Nick me visse — visse tudo em mim —, o que me causou
uma sensação quente no peito. Assenti com a cabeça, sorrindo-lhe
envergonhadamente, e depois disse:
— Queres ver?
— Para de tentar fazer com que eu jogue ao «cinco minutos no armário»
contigo — sussurrou ele com um olhar brincalhão. — E é claro que quero ver.
Abri a porta do closet, acendi a luz e apontei.
Ele entrou no espaço e eu fui atrás dele. A minha mente desviou-se
imediatamente para lugares íntimos enquanto eu fechava silenciosamente a
porta; estávamos no meu quarto na cave, completamente sozinhos, juntos, no
silêncio do meu closet. Felizmente, antes que eu pudesse pensar de mais e
morrer de ataque cardíaco, ele ofereceu-me um sorriso rasgado de surpresa e
disse:
— Uau, o teu closet também é codificado por cores. És uma psicopata?
— Não, só gosto de saber onde está tudo, e este sistema torna as coisas
mais simples.
— Acho que estou com um pouco de medo de ti agora — sussurrou ele.
— Então, talvez não devêssemos tirar a caixa das confissões.
— Por favor, mostra-ma. — Ele cruzou as mãos sobre o peito e disse: —
Eu porto-me bem.
Soltei uma risadinha baixa e estendi a mão para a caixa de sapatos atrás dele.
Ele tocou-me nas costelas quando me pus em bicos de pés e senti tantas
cócegas que quase caí em cima dele ao agarrar a caixa. Ouvi o seu riso
profundo e baixo no meu ouvido — ele estava tão perto — e ocorreu-me que
o meu closet era um lugar muito bom para se estar.
Especialmente quando ele disse para o meu pescoço:
— O teu perfume está a deixar-me tonto, juro por Deus. Temos de nos
despachar.
Aquilo deixou-me sem fôlego. Virei-me e estendi-lhe a caixa.
— Aqui está.
Ele estreitou os olhos.
— Uma caixa de sapatos? A sério? Tinha imaginado algo muito mais
interessante.
— É um disfarce. Está escondida à vista de todos, e isso.
Ele pegou na caixa com uma mão e pousou a outra na tampa.
— Posso?
Revirei os olhos e assenti com a cabeça, nervosa por estar a deixar alguém
ver todas aquelas vulnerabilidades do passado, mas confiante de que era seguro
partilhá-las com o Nick.
Ele abriu-a e tirou uma tira de papel. Leu as palavras e depois ergueu os
olhos para mim.
— Atiraste batatas para a piscina do teu vizinho?
— Eles tinham ido para fora e eu estava aborrecida. Queria ver se
conseguia acertar na piscina deles da nossa varanda.
— E? — Ele estava a olhar para mim como se eu estivesse prestes a
confessar um crime.
— E consegui. Atirei quinze batatas seguidas.
O sorriso voltou com intensidade.
— Foste apanhada?
— Ninguém suspeitou sequer de mim.
Ele enfiou a mão na caixa e pegou noutra tira. Começou imediatamente a
rir quando a leu e eu tive de o mandar calar, enquanto me ria também e
esperava para ver o que ele tinha lido.
Ele ainda estava a rir quando perguntou:
— Tens um vídeo a cantar no YouTube com cem mil visualizações?
Assenti com a cabeça e mordi o lábio, numa tentativa de silenciar as minhas
risadinhas.
— Estava no 7.º ano na altura. Não tem o meu nome e eu estava disfarçada,
portanto nunca o vais encontrar.
— Mas vais mostrar-me, certo?
— Talvez um dia. — Encolhi os ombros, tentando ser descontraída e
brincalhona, mas a consciência da amnésia iminente dele em relação a tudo
isto quase o tornou impossível. — Tens de merecer esse privilégio primeiro —
acrescentei.
— Ah, é?
A maneira como ele disse aquilo, com uma voz baixa e um olhar intenso,
fez com que eu tivesse dificuldade em respirar.
Limitei-me a assentir com a cabeça.
— Pelo menos diz-me qual é a música. — Ele colocou a tira de volta na
caixa e perguntou com um sorriso: — Que música é que a pequena marrona
psicopata cantava?
Pigarreei antes de sussurrar:
— «Lose Yourself», do Eminem.
Ele nem sequer pestanejou.
— Estás a brincar.
Ergui o queixo e fitei-o nos olhos, o que o fez sorrir e abanar a cabeça.
Passámos por mais algumas confissões, mas tivemos de parar quando o
Nick desatou à gargalhada ao saber que eu tinha usado o cartão de crédito do
meu pai para enviar flores para o quarto de hotel do Justin Bieber, e ficámos
com medo de acordar o meu pai. Ouvimos passos no andar de cima quando
eu estava a guardar a caixa e ficámos os dois imóveis.
Esperámos.
Quem quer que estivesse lá em cima parecia estar a andar de um lado para o
outro ou a andar em círculos e, ao fim de alguns minutos, sussurrei:
— Vamos embora.
— Tens a certeza? — sussurrou ele em resposta.
Encolhi os ombros, lembrando-me de que era o DSC. Tinha havido
momentos naquele dia em que tudo em que eu estava focada era no Dia Sem
Consequências, mas noutros momentos esquecera-me completamente disso.
Contudo, a verdade era que o amanhã não iria contar, portanto esta noite
era tudo o que eu tinha.
Esta noite era o meu tudo.
Ele agarrou na minha mão e deixámos a casa sem sermos detetados.
Quando chegámos a casa da minha avó Max, fiquei contente por ter ido
buscar a chave, porque as luzes estavam todas apagadas, como se ela já
estivesse a dormir.
O Nick fitou-me sob o brilho amarelado da luz da varanda enquanto eu
enfiava a chave na fechadura. Abriu a boca e conseguiu dizer «Bem» antes de,
pela segunda vez naquele dia, eu lhe tapar a boca com a mão. Se ele nunca se
iria lembrar disto, eu ia dizer-lhe o que sentia.
— Amo-te, Nick Stark. — Pestanejei rapidamente e fiquei surpreendida por
me sentir tão emocionada. Tinha a garganta apertada quando disse: —
Amanhã não vai contar e vai ser como se eu nunca o tivesse dito, mas, neste Dia
dos Namorados, apaixonei-me por ti.
O maxilar dele contraiu-se, fletindo e relaxando, e observei a garganta dele
a mover-se enquanto engolia em seco.
— Mas é só por hoje, prometo. Amanhã terá desaparecido tudo —
sussurrei.
Ele olhou para mim como se estivesse frustrado e confuso, mas ao mesmo
tempo completamente atraído por mim contra a sua vontade, e eu senti a
atração gravitacional quando ele se inclinou para mim.
Então, olhou para o relógio e premiu um botão.
— Vem cá — disse, agarrando a minha mão e levando-me para fora da
varanda. Estava quase a correr quando me puxou para o lado escuro da casa da
minha avó, onde não havia varanda nem postes de luz a brilhar. Com os pés a
ranger sobre a neve, empurrou-me para trás até as minhas costas estarem
contra a parede fria da casa.
Estávamos frente a frente. Com a respiração trémula, perguntei:
— O que estás a fazer?
— Só faltam mais sete minutos.
Senti-me tonta quando ele olhou para mim com a mais intensa das
expressões.
— E?
O corpo dele inclinou-se para o meu enquanto ele me segurava as faces e
respirava contra os meus lábios.
— Só me amas durante mais sete minutos.
Ergui as mãos e coloquei-as sobre o maxilar dele. Ele baixou o rosto e eu
sussurrei:
— Vamos fazer com que sejam uns bons sete minutos, então.
Ele não podia saber que no dia seguinte nada disto teria acontecido, mas
beijou-me como se tivéssemos apenas sete minutos antes de o mundo acabar.
Senti os dedos dele nas minhas costas e contra a minha pele enquanto ele os
movia por baixo da minha camisola. Este era o Nick Stark — aquelas eram as
suas mãos confiantes — e o meu coração era absolutamente dele naquele
momento.
O coração dele batia com força debaixo dos meus dedos e os nossos
corpos esticavam-se um contra o outro. E então, num piscar de olhos, tudo
mudou. O nosso beijo não se tornou mais lento, mas pareceu de repente mais
profundo. Talvez fosse apenas eu, porque estava hiperconsciente de que aquele
momento iria desaparecer com a manhã, mas as coisas tornaram-se mais ricas,
com cada movimento carregado de significado e emoção.
O Nick continuou a beijar-me suavemente, mas os seus olhos abriram-se.
Eu senti-me a flutuar enquanto nos fitávamos, tonta com a intensidade dos
seus olhos azuis. As mãos dele ainda estavam nas minhas costas, mas os seus
dedos acariciavam suavemente a minha espinha. Ele ergueu ligeiramente a
boca e sussurrou o meu nome contra os meus lábios. E, então…
— Raios.
Ele deu um passo atrás e deixou cair as mãos para os lados. Demorei um
segundo até ouvir o bip e perceber.
Os nossos sete minutos tinham terminado.
O DSC tinha acabado.
Ele esfregou as faces, olhou para o meu rosto como se estivesse
desorientado e depois disse:
— Céus. Eu não quero isto, Hornby.
— O quê? — Engoli em seco e abanei a cabeça. — Oh. Eu sei. Não foi
nada.
— Emilie! — A voz da minha avó soou vinda do jardim da frente. — Estás
aqui fora? As tuas chaves estão na porta e há uma carrinha na minha entrada.
Vou chamar a polícia se não ouvir…
— Estou aqui, avó — gritei. Eu e o Nick afastámo-nos ainda mais e
ajeitámos as nossas roupas.
— Escuta, Nick…
— Vamos, antes que a tua avó chame a polícia — interrompeu-me ele.
Agarrou-me a mão e levou-me para o jardim da frente. Eu segui-o, ainda a
processar o que tinha acontecido. Quando chegámos à varanda, a minha avó
parecia um pouco feroz ao fitar-nos, carrancuda.
— Avó, este é o Nick Stark — disse eu, esperando que os meus lábios não
estivessem inchados do beijo. — Nick, esta é a minha avó Max.
— Prazer em conhecê-la — disse ele.
— Por favor, sai da minha varanda — respondeu ela.
Ele assentiu com a cabeça e sorriu, como se apreciasse a franqueza dela,
antes de se dirigir para a carrinha e ir-se embora. Eu fiquei ali, a olhar,
enquanto a minha mente revia cada coisa que tínhamos feito naquele dia
incrível.
— De manhã vou dar cabo de ti, querida — disse a minha avó, abrindo a
porta e entrando. — Mas primeiro preciso de dormir um pouco.
Fiquei na varanda, desejando que a noite nunca terminasse.
— Adoro-te. Boa noite, avó.
— Boa noite também para ti, sua chata.
Foi só quando entrei e tirei os sapatos que percebi que ainda estava a usar o
casaco do Nick.
12
«Van, go», no original. Jogo sonoro com a pronúncia do sobrenome do
pintor neerlandês, «Gogh», que o aproxima da forma verbal «go». (N T )
CONFISSÃO N.º 17
Passei por uma fase no 6.º ano em que usava a mesma T-shirt
todos os dias, só para ver se alguém notava. Ninguém notou,
portanto desisti ao fim de dezasseis dias seguidos.
— Acorda, Emilie!
A voz do meu pai acordou-me de repente. Senti o coração a bater com
força, enquanto olhava para a luz forte tentando vê-lo. Ele estava parado ao
lado da cama com as mãos nos quadris, parecendo furioso.
— Que horas são? — perguntei.
— É uma ótima pergunta, Em. — A voz dele explodiu. — É uma e quinze
da manhã.
— O quê? — Sentei-me, afastei o cabelo do rosto e agarrei nos óculos da
mesa de cabeceira. — O que se passa?
— O que se passa? — O rosto dele estava vermelho como um tomate e a
sua voz subiu ainda mais de tom. — O que se passa é que a minha filha não
voltou para casa ontem à noite. O que se passa é que ignoraste as minhas
mensagens e ficaste fora o dia todo sem me dizeres onde estavas. Ligámos
para todos os teus amigos e estávamos prestes a chamar a porra da polícia
porque pensávamos que podias estar morta!
Esperem. Uma e quinze?
— Já não estamos no Dia dos Namorados?
Ele resmungou furioso.
— Não me ouviste dizer que é uma e quinze? Pega nas tuas coisas e vamos.
Já.
— Thomas, precisas de te acalmar…
— Não, não preciso, mãe. Ela não voltou para casa ontem à noite e eu
estava doente de preocupação. — O meu pai cuspiu literalmente as palavras
para a minha avó, e eu nunca o ouvira a falar tão alto. — Eu devia saber que
ela estaria aqui.
Ou no closet da cave — debaixo dos teus pés, em tua casa — com o Nick Stark.
— Oh, isso ajuda imenso agora. — A minha avó cruzou os braços sobre o
peito. — Eu presumi que tu sabias que ela estava aqui. A coitadinha vem
sempre para cá porque é invisível para ti e para a Beth.
— Poupa-me. — O meu pai virou-se de novo para mim. — Pega nas tuas
coisas e veste-te, imediatamente.
Saltei da cama, peguei nas minhas coisas e corri para a casa de banho.
Fechei a porta atrás de mim e, silenciosamente, tirei o telemóvel da mochila.
— Onde está o meu carro? — gritou o meu pai através da porta. — Na
rua, onde pode ficar riscado, presumo?
— Não exatamente. — Pousei o telemóvel, abri a porta e desejei que
houvesse uma maneira de fazer com que isto não parecesse tão mau. Mordi o
lábio, olhei para a minha avó e disse: — Fui mandada parar por excesso de
velocidade e eles apreenderam o carro. Eu tenho as informações de como o
podemos ir buscar…
— Eles apreenderam o carro? — Pronto, aquilo era o mais alto que eu alguma
vez o ouvira a falar. Colocou as mãos no topo da cabeça e olhou para mim
como se eu tivesse acabado de confessar ter assassinado alguém. — A que
velocidade ias?
Engoli em seco.
— Hum…
— Vai-te vestir, Emilie. — A minha avó colocou-se entre mim e o meu pai
e fitou-me com uns olhos enormes. — Já.
Fechei a porta e soltei um suspiro, enquanto a minha avó discutia com o
meu pai e o levava para o andar de baixo. Peguei no meu telemóvel da
bancada, sentindo as mãos a tremer enquanto o ligava e esperava pela
confirmação do calendário. Porque… seria mesmo dia 15?
Conseguia sentir o coração a pulsar no pescoço enquanto a maçã se
iluminava no telemóvel, pouco antes de o ecrã inicial surgir.
Caraças! Era dia 15 de fevereiro.
Tirei rapidamente as calças do pijama que guardava em casa da minha avó e
vesti as calças de cabedal do dia anterior, completamente a passar-me
enquanto a realidade me atingia de frente. Imagens de coisas que eu tinha feito
no dia anterior começaram a percorrer-me a mente.
Roubar o Porsche, repreender a Lallie, a Lauren e a Nicole, acabar com o
Josh pelo intercomunicador, deixar o meu emprego, mencionar as pessoas
acima referidas quando publiquei uma foto da minha tatuagem nas redes
sociais…
Tive vontade de vomitar.
Então, olhei para o meu braço. Oh, não. Não, não, não. Tirei a ligadura e
soltei uma exclamação.
I had a marvelous time ruinin’ everything
Meu Deus, eu tinha uma tatuagem. Que dizia aquilo.
— Oh, meu Deus. — Olhei para o espelho e fitei o meu rosto.
O que é que eu fui fazer?
CONFISSÃO N.º 18
Tive três pneus furados no ano passado. Todos porque não
estava a prestar atenção e raspei no passeio.
— A tua mãe está aqui, fantástico.
Entrámos na garagem do meu pai e senti-me enjoada quando vi o carro da
minha mãe estacionado um pouco torto junto ao passeio, como se ela tivesse
travado de repente e corrido para a casa assim que parou o carro.
Lá dentro, ela estava de pé na cozinha, de braços cruzados, e, assim que
entrámos, o seu longo dedo indicador apontou diretamente para mim. Tinha
os dentes cerrados quando disse:
— Emilie Elizabeth, vai buscar o que precisas ao teu quarto. Vais para casa
comigo. Agora!
— Por amor de Deus, Beth, podes acalmar-te por um instante? — O meu
pai largou as chaves na bancada, parecendo exausto. Senti-me culpada por o
ter preocupado, especialmente porque ele se recusara a falar comigo no carro.
Assim que saímos da casa da minha avó, consegui apenas pronunciar a
palavra «Estou» antes de ele exclamar: «Não fales comigo agora, Em.»
Passei o resto da viagem de três minutos a pensar em todas as coisas que fiz
no DSC. Estava tudo confuso, depois de vários Dias dos Namorados, e eu não
tinha cem por cento de certeza de que tudo acontecera de facto.
Porque não podia ter acontecido aquilo tudo, certo? Quero dizer, dias
repetidos não existiam na realidade. Com certeza haveria alguma outra
explicação. Talvez tivesse sido um sonho em cima de outro sonho, como um
sonho sobre dias repetidos.
— Estás a brincar comigo? Acalmar-me? — Os olhos da minha mãe estavam
semicerrados e ela estava pronta para lutar. Usava um pijama de flanela Ralph
Lauren em xadrez e tinha o cabelo preso num rabo de cavalo apertado. O
cheiro suave do seu creme hidratante flutuava pela cozinha e atingiu-me com
um duplo soco de pavor nervoso e saudades de casa. — Tenho grandes
dificuldades em me acalmar quando a tua educação negligente levou a que a
nossa filha se portasse mal na escola e não voltasse para casa ontem à noite.
— Chiu. — A Lisa, que estava sentada numa cadeira à mesa, moveu as
mãos como se estivesse a dar palmadinhas no ar para recordar a todos que os
rapazes estavam a dormir.
— Ah, vá lá, tu sabes que eu não sou um pai negligente. — O meu pai
baixou a voz e passou a mão pelo cabelo despenteado. — A Emilie é uma
adolescente. Os adolescentes às vezes tomam decisões estúpidas. Só porque ela
fez essas coisas, não significa que…
— Significa, sim!
— Vocês, chiu! — A Lisa apontou para o andar de cima, onde os gémeos
dormiam.
— Não, não significa porra nenhuma — sussurrou o meu pai como se
gritasse. — Sei que és perfeita, Beth, mas o resto de nós, incluindo a nossa
filha, não somos. Será que não podes ser razoável…
— Não te atrevas a dizer que não sou razoável quando tu não a conseguias
encontrar!
— Chiu!
— Chiu para ti, Lisa. Cristo! — A minha mãe desistiu de controlar o
volume e gritou para mim: — Vai buscar as tuas coisas agora; amanhã, hoje, é o
meu dia, independentemente de tudo isto.
Eu ainda estava parada logo a seguir à porta, paralisada pela discussão deles.
Olhei para o meu pai e ele fez-me um aceno tenso com a cabeça, portanto
corri para o meu quarto. Pestanejei rapidamente a tentar não chorar enquanto
enfiava roupas na mochila; já era demasiado velha para chorar por causa das
discussões dos meus pais, certo?
Só que já tinha passado bastante tempo desde que eles tinham tido uma
grande briga. E eu detestava quando era eu a causa e eles falavam de mim como
se eu não estivesse presente. Como se fosse um objeto sobre o qual eles
discutiam, em vez da filha que deviam amar.
Felizmente, descobri cedo que tinha o poder de extinguir muitas das suas
divergências relacionadas comigo. Contorcendo-me para agradar àquele dos
dois que estava agressivamente mais irritado, conseguia muitas vezes encurtar a
discussão.
Era o meu superpoder, se quiserem.
Infelizmente, isso não me iria ajudar em nada. Não desta vez.
Desci as escadas a correr e, assim que entrei na cozinha, a minha mãe disse:
— Estarei no meu advogado assim que o escritório dele abrir, Tom. Vou
entrar com um pedido para alterar o nosso acordo de custódia, porque nem
pensar que a vou deixar visitar-te no Texas depois disto.
— Eu nem sequer tive a oportunidade de lhe contar…
— Ótimo.
— Beth… — soprou ele por entre dentes. — Estás doida se achas que a
Em esquecer-se de me enviar uma mensagem é motivo para essa alteração.
Vindo do andar de cima, e através do monitor na mesa da cozinha, soou o
gemido sonolento do Logan. A Lisa olhou irritada para os meus pais por um
instante e depois dirigiu o olhar para mim, acusando-me mais uma vez de
estragar tudo. Então, levantou-se e subiu as escadas.
O choro do Logan tornou-se mais alto no monitor e nós ficámos os três a
olhar para ele por um segundo, a ouvir.
— Anda, Emilie. — A minha mãe estava com as chaves na mão. — Vamos
embora.
— Hum… — Pigarreei. — Saio já. Só preciso de ir buscar mais uma coisa.
— Tens um minuto.
Ela saiu porta fora e eu virei-me para o meu pai.
— Eu vou falar com ela. Vou fazê-la…
Ele ergueu a mão.
— Vai-te embora antes que ela volte.
Engoli em seco.
— Desculpa, pai.
Ele fitou-me finalmente nos olhos e havia tanto desapontamento no seu
rosto que as lágrimas turvaram a minha visão. Ele engoliu em seco e a sua
boca estava triste quando disse:
— Não fazes ideia do que acabaste de fazer, miúda.
Assim que chegámos a casa da minha mãe, ela começou um discurso de
quarenta e cinco minutos sobre quão irresponsável eu era. Aparentemente, ela
não estava preocupada com o marido ou o puggle que dormiam, porque
mandou a casa abaixo com os seus gritos.
Tirou-me o telemóvel e disse que eu estava de castigo como nunca ninguém
estivera antes. Nada de amigos, nada de telemóvel, nada de biblioteca, nada de
carro — eu estava basicamente em prisão domiciliária. Podia ir a pé para a
escola e voltar, e era tudo.
Até me proibiu de ler.
A sério.
— Tirei todos os livros do teu quarto e nem penses em trazer nada da
biblioteca. — Ela cruzou os braços e pareceu revoltada comigo quando disse:
— É uma coisa bizarra para uma mãe ter de fazer, mas acho que tu ficarias
feliz em confinamento solitário se tivesses um livro para ler.
Mudou a senha do wi-fi para eu não poder ficar online e disse-me que ligara
para Boys Town para obter todos os pormenores sobre como enviar uma
criança «problemática» para viver lá durante algum tempo. Eu sabia que ela
estava apenas a tentar assustar-me, mas quando a minha mãe ficava furiosa
nunca se sabia o que poderia fazer.
E eu não a podia culpar por estar furiosa. Quero dizer, eu tinha ficado em
casa da minha avó sem dizer a ninguém, fazendo com que os meus pais
enlouquecessem de preocupação e passassem horas a ligar para toda a gente
que eu conhecia.
Fui para a cama, mas o sono não vinha. Havia tanta coisa a fazer ricochete
no meu cérebro que o botão de ligar/desligar estava totalmente preso na
posição de ligado.
Em primeiro lugar, não conseguia parar de me perguntar porquê. Porque é
que eu tinha experienciado aquela anomalia cósmica, aquela repetição
impossível de dias como no enredo de um filme? Porque, por mais que eu
quisesse varrer tudo para debaixo do tapete, a realidade era que aquilo tinha
acontecido.
Acontecera mesmo.
Quer fosse um estado de consciência alterada — como numa interação
com drogas ou algum sonho bizarramente longo — ou algo real, eu tinha
experienciado vários Dias dos Namorados.
Não estava a delirar.
Então… porquê?
Virei-me de um lado para o outro durante algum tempo, mas a preocupação
com o que teria causado a minha experiência bizarra acabou por ser ofuscada
pela enorme sensação de desgraça iminente. Porque, a cada minuto que
passava, eu lembrava-me de mais outra coisa — algo terrível — que tinha feito
no DSC. Coisas que fizera, palavras que dissera, pessoas que certamente
irritara.
Como é que eu podia ir para a escola de manhã?
Será que havia alguma maneira de mudar a minha aparência para que
ninguém me reconhecesse? Será que poderia mudar de escola antes de amanhã
de manhã? Enfiei o rosto no travesseiro e gemi porque, a não ser que houvesse
um acidente violento, a minha mãe não me iria deixar faltar à escola.
E isso não era um exagero.
Eu poderia estar a vomitar sem parar de manhã e ela dir-me-ia para arranjar
um saco de plástico para vomitar durante as aulas. Sempre que vomitares, Emilie,
pensa em como poderias ter evitado esta situação. Será uma boa lição.
Não havia como escapar daquilo. Ia ter de ir para a escola e ser destruída
por todo o corpo discente da Escola Secundária de Hazelwood. A Lauren, a
Lallie e a Nicole iam aniquilar-me em algum tipo de espetáculo público e
ninguém em toda a escola era tolo o suficiente para comprometer o seu
próprio estatuto social enfrentando aquelas miúdas para me apoiar.
Todos os outros iriam juntar-se ao ataque para salvarem a própria pele. E
quem os poderia culpar?
E não fazia ideia do que esperar do Nick.
Só de pensar nele na lateral da casa da minha avó deixava-me tonta. Tinha
sido um dia perfeito com ele, terminando num beijo de sete minutos
perfeitamente escaldante, mas cada segundo tinha sido marcado com a data de
validade do DSC.
O que iria acontecer no dia seguinte? Será que ele ia fingir que não tinha
acontecido nada ou ia ser a mesma pessoa comigo que fora quando estava no
telhado do antigo prédio do irmão?
Não sei a que horas adormeci finalmente, mas às três e quinze ainda estava
ali deitada, a alternar entre as lembranças enlevadas do Nick Stark e as imagens
do pesadelo que me esperava na escola.
Quando acordei, às seis, levantei-me da cama e desci logo as escadas sem
consultar a minha agenda. Que se lixasse a agenda.
A casa estava silenciosa e deserta e comecei imediatamente a praticar os
meus argumentos porque tinha de ser corajosa. Depois da escola, tinha de
arranjar uma maneira de fazer a minha mãe ouvir-me. Desejava que o meu pai
tivesse razão sobre ela não ter motivos suficientes para justificar uma alteração
à custódia, mas o meu estômago apertava-se sempre que me preocupava com
o que eles ainda não sabiam.
Será que ela teria motivos se descobrisse a minha multa por condução
imprudente?
Eu não suportava a ideia de não poder ir para casa do meu pai; a casa dele
era mais um lar do que a da minha mãe. Mesmo que ele se mudasse e me
deixasse para trás, eu sabia que ele me mandaria bilhetes de avião para eu
poder ir visitá-lo com frequência. Mas se a minha mãe convencesse o juiz de
que o meu pai era uma má influência, só Deus sabe quantas vezes — se é que
alguma — eu o poderia ver até aos dezoito anos.
Arrumei a louça que estava na máquina, pus uma carga de roupa a lavar e
preparei-me para ir para a escola. Estaria a mentir se dissesse que não demorei
tempo extra com o cabelo e a maquilhagem naquela manhã. Queria que o
Nick me desse aquele olhar quando eu entrasse na aula de Química, e se um
pouco de rímel e gloss pudessem fazer com que isso acontecesse, eu ia, sem
dúvida, usá-los.
Infelizmente, só à hora de me ir embora é que percebi que, como não tinha
telemóvel, não podia pedir boleia à Roxane nem ao Chris. Teria de ir a pé para
a escola, o que me parecia positivamente horrível.
Olhei para o termómetro do lado de fora da janela da cozinha. Dez graus
negativos.
Maravilhoso.
CONFISSÃO N.º 19
Quase me afoguei no rio Platte no verão passado,num dia em
que os meus pais nem sequer deram pela minha falta. Graças a
Deus que a Rox é uma boa nadadora.
Assim que entrei pela porta da frente da Escola de Hazelwood, toda a
esperança de que ninguém se lembrasse do dia anterior desapareceu.
Abri o fecho do casaco e tirei o gorro e as luvas, gelada até o âmago e com
umas saudades desesperadas da minha furgoneta Astro. Olhei para duas
pessoas paradas ao pé do gabinete escolar, duas raparigas quaisquer que eu não
conhecia, e elas sussurraram e ficaram a ver-me passar.
À minha frente seguia um grupo de quatro rapazes — estavam vestidos ao
estilo da malta que frequenta festivais alternativos e eu não os conhecia.
Viraram-se, sorriram e riram para mim, mas de uma forma solidária. Como se
eu tivesse feito algo engraçado que eles aprovavam.
O meu rosto ficou instantaneamente quente e a minha visão focou-se
nitidamente no facto de estarem todos a olhar para mim. Tipo, a-porra-de-
toda-a-gente. A rapariga ao pé do bar, os tipos ao lado da estante dos troféus,
o grupo de Matemática diante do gabinete de aconselhamento; todos os olhos
no edifício estavam focados em mim.
Fingi não notar e dirigi-me para a segurança do meu cacifo.
— Caraças, Em, és minha heroína! — O Chris apareceu atrás de mim e eu
nunca fiquei tão feliz por o ver em toda a minha vida. — Sinceramente, não
consigo acreditar que o fizeste. Ainda que a tatuagem seja uma loucura
extravagante, o facto de teres tido coragem de a fazer e mencionar o Josh na
tua publicação deixou-me sem palavras.
— Eu mesma não consigo acreditar. — Olhei em volta e ninguém parecia
estar a prestar-nos atenção, graças a Deus. O Chris estava radiante, o que me
fez perguntar: — Então, o que aconteceu com o Alex?
— Em, ouve bem isto. Tivemos a noite perfeita. Ele veio e parecia que já
tínhamos saído juntos centenas de vezes. Tipo, foi supertranquilo, apenas a
conversar e a ver filmes. E, então — continuou ele, baixando a voz e olhando
por cima do meu ombro com os olhos arregalados de felicidade —, quando o
acompanhei até ao carro, ele encostou-me contra a lateral daquele CR-V
prateado e beijou-me como… como…
— Como se estivesse a morrer de fome e tu fosses a única coisa que o
podia alimentar?
A boca dele abriu-se e ele grinchou:
— Parece algo saído do Crepúsculo, mas acertaste em cheio, é exatamente
isso!
— Cala-te!
— Não consigo! — Ele estava aos saltinhos e eu juntei-me a ele na sua
comemoração, porque nada era melhor do que o Chris ter encontrado o amor.
Ele merecia todos os momentos à filme. — E já me mandou uma mensagem a
dizer que não consegue parar de pensar em mim.
— Claro que não consegue; tu beijas como um sonho.
— Isso querias tu saber.
— Não preciso de querer quando já mo disseste, tipo, umas cem vezes.
— Mas beijo mesmo. — Ele inclinou-se para mim e disse: — É o meu dom
especial.
— Todos nós temos dons especiais.
Ele revirou os olhos.
— Não me cites o Pretty Woman quando me estou a passar com o meu
encontro maravilhoso.
— Vá, continua, então.
— Já te disse que ele vai comigo à Village Pointe depois da escola para
irmos comprar calças de ganga?
Aquilo fez-me rir.
— A sério? Quero dizer, comprar calças de ganga é uma seca, certo?
— Concentra-te, Em. Ele quer ir. — O Chris sorriu e parecia totalmente
bêbedo de amor quando perguntou: — É demasiado cedo para a palavra
começada por A?
Eu amo-te hoje, Nick. Abanei a cabeça e disse:
— Claro que não.
Ele olhou para o telemóvel.
— Tenho de ir — disse.
— Ei, dás-me boleia para casa?
— Claro. — Ele começou a afastar-se, dizendo por cima do ombro: — Vai
ter comigo ao meu cacifo depois das aulas.
Consegui sobreviver às minhas primeiras aulas, fingindo não perceber que
os olhos do mundo estavam sobre mim. Ignorei tudo e revi na minha cabeça
os momentos com o Nick no dia anterior, optando por me concentrar no
enlevo em vez de no incêndio da lixeira da realidade do dia. Ouvi as pessoas a
dizerem o meu nome nos corredores durante os intervalos, mas fingi que não
ouvia enquanto contava os minutos até à aula do professor Bong.
No caminho para a terceira hora, vi aquelas miúdas a virem na minha
direção. A Lallie estava a falar e as outras duas caminhavam ao lado dela,
ouvindo o que seria, de certeza, uma conversa fascinante. Os corredores
estavam cheios de alunos a saírem de uma aula e a irem para outra e parecia
que o tempo estava a passar em câmara lenta quando a Lauren virou a cabeça e
olhou diretamente para mim.
Oh, não, elas vão-me destruir.
Fiz o que qualquer um faria na minha situação. Virei para a direita e abri a
porta do auditório. Estava escuro lá dentro, com apenas algumas luzes do
palco a brilhar, e eu esgueirei-me para a direita enquanto a porta se fechava
atrás de mim.
Será que elas me iriam seguir? Ouvi a campainha a tocar enquanto corria ao
longo da última fila de lugares e rastejava para trás da caixa grande que era
usada para guardar os adereços. O meu coração batia com força enquanto me
agachava e esperava, perguntando-me se isto seria o fundo do poço.
Ouvi algumas vozes ao acaso enquanto me acocorava atrás do contentor —
era óbvio que havia uma aula de música prestes a começar — e o meu coração
começou a martelar porque, literalmente, não sabia o que fazer. Merda, merda,
merda. Isto não era um comportamento normal, pois não? As pessoas não se
escondiam durante a escola.
— Muito bem, acalmem-se — ouvi alguém a dizer, uma mulher cujo tom
de voz soava muito professoral, a ecoar pelo auditório. — Sei que estão
entusiasmados, portanto, se estiverem todos prontos, vamos começar do início
e ver como estamos.
Senti as pernas trémulas, ali agachada, enquanto a música começava a tocar
no sistema de som. O barulho fez-me pensar que devia ser seguro sair dali e
esgueirar-me em direção à porta, mas, assim que espreitei pela esquina, soube
que estava tramada.
Porque, naquele exato momento, cerca de quinze alunos do coro pop, que
estavam no palco, começaram a ensaiar a canção «Summer Nights». Cada uma
daquelas superestrelas iria ver-me se eu saísse agora.
Raios.
Não só ia ter problemas por faltar à aula em que devia estar, como agora ia
ter a música do encontro do Danny e da Sandy na minha cabeça o dia todo.
Sentei-me atrás da caixa e tentei ficar confortável.
Afinal, eles não eram nada maus. A sua interpretação das músicas de
Brilhantina quase me fez esquecer, durante algum tempo, o desastre que era a
minha vida, enquanto os acompanhava cantarolando baixinho. «Hopelessly
Devoted to You» ainda soava bem ao ouvido — quem diria? Quando tocou
finalmente para a saída e o auditório se começou a esvaziar o suficiente para eu
poder deixar o meu esconderijo sem ser notada, endireitei as pernas cheias de
cãibras e saí disparada dali.
Infelizmente, assim que abri a porta do auditório, choquei com o Josh.
— Ai! — Dei um salto para trás, sentindo a colisão no corpo mesmo
depois de o encontrão de uma fração de segundo já ter passado.
— Emilie. — As narinas do Josh dilataram-se e os seus olhos percorreram
o meu rosto antes de ele dizer: — O que estavas a fazer no auditório?
— Eu, hum…
— Sabes que mais? Não me interessa. Vem cá — disse ele, tocando-me no
braço, enquanto me levava para a zona das estantes dos troféus no corredor,
longe dos alunos que passavam. Aproximou-se de mim e perguntou com uma
voz calma, mas zangada: — Que raio foi aquilo ontem, Em?
Pigarreei. O que dizer? Não sabia que o dia 15 ia mesmo chegar. Vi-te a beijar
outra pessoa, mas já não sei se foi real ou não. Sim, como se isso não fosse uma
maluquice completa.
— Pensei que…
— As coisas estavam ótimas entre nós de manhã, ao pé do meu cacifo, e
depois tu vais-te embora e humilhas-me pelo intercomunicador? E depois a
tatuagem? Que tipo de pessoa faz isso?
Ele tinha o rosto um pouco corado e parecia magoado. Triste, na verdade,
enquanto olhava para o meu rosto como se realmente precisasse de uma
resposta. Respirei fundo e disse:
— Escuta, Josh, eu sei que parece…
— Que és uma besta?
Uau. Era a primeira vez que um tipo que eu amara me chamava nomes, e
foi uma sensação chocante e desagradável.
— Talvez eu não tivesse agido assim se não continuasses envolvido com a
tua ex — disse eu.
Os olhos dele arregalaram-se um pouco, como se estivesse surpreendido.
Mas não foi apenas surpresa que vi — havia mais alguma coisa, enquanto ele
inclinava ligeiramente a cabeça. Seria quase satisfação por eu estar com
ciúmes?
— Eu a a Macy somos apenas… — começou ele.
— Apenas o quê? — interrompi-o. — Amigos que se beijam?
Ele pestanejou, um pestanejar lento que de alguma forma o fez parecer
bonito e acentuou as suas pestanas ridiculamente longas.
— Nós não nos beijámos.
Inclinei a cabeça.
— Não me mintas.
— Não faço ideia do que estás a falar. — Ele tinha as sobrancelhas
franzidas. — Achas que beijei a Macy?
Bolas, ele parecia mesmo estar a dizer a verdade.
— Não a levaste contigo quando foste buscar café ontem?
As sobrancelhas dele endireitaram-se.
— Sim?…
— E não partilharam um momento no parque de estacionamento? No teu
carro?
Ele semicerrou os olhos e abriu a boca para falar, mas depois fechou-a
novamente, engolindo em seco antes de dizer:
— Admito que as coisas estão um pouco… hum… complicadas com a
Macy. Mas juro por Deus que não a beijei.
— A sério? — Olhei para ele, olhei mesmo, semicerrando os olhos para
tentar encontrar a minha mágoa. Nas primeiras vezes em que o vira a beijá-la
parecia que as minhas entranhas estavam a ser retorcidas. Mas agora olhei para
ele e vi apenas… um rapaz. Um rapaz que era relativamente atraente, mas que
não tinha absolutamente nenhum controlo emocional sobre mim. — Bem,
acho que descompliquei as coisas por ti. Adeusinho, Sutton.
Afastei-me dele e quase corri para a aula de Química, de cabeça baixa,
desesperada para evitar mais conversas. Não queria ser dizimada pelas miúdas
más e não queria ser falada como se fosse algum tipo de lenda urbana por ser
uma idiota.
Respirei fundo e entrei na sala. Parecia que o Nick ainda não estava lá e
fiquei contente por ter um minuto para me recompor antes de o ver. Sentei-me
e peguei no meu livro, mais nervosa do que estivera o dia todo.
Porque não fazia ideia do que esperar.
Será que o Nick ia ser engraçado e caloroso como na noite anterior? Iria ser
o parceiro de laboratório mal-humorado que eu tivera o ano todo? Iria
convidar-me para sair — e talvez beijar-me outra vez — ou estaria
arrependido de todas as suas escolhas de ontem?
O meu coração batia com força enquanto esperava que ele aparecesse.
Mas quando a campainha tocou, ele ainda não estava lá. O professor Bong
marcou falta e começou a falar sobre os nossos próximos projetos, enquanto o
meu cérebro entrava em hiperatividade paranoica.
Onde é que ele estaria? Estaria doente? Teria ficado em casa? Baldara-se à
aula?
E seria por minha causa? Quero dizer, logicamente eu sabia que não era por
isso, mas o meu coração inseguro tinha um mau pressentimento sobre a
ausência do Nick Stark.
O professor Bong falou durante uns bons cinco minutos antes de voltar a
sua atenção diretamente para mim.
— Menina Hornby, está recuperada dos maus comportamentos de ontem?
— O Bong olhou para a minha cara por cima dos óculos. — Presumo que o
gabinete escolar já falou consigo sobre a punição?
— Hum… sim — disse eu, a morrer de humilhação.
— Ótimo. — Ele olhou outra vez para a turma. — Temos muita matéria
para dar, portanto, ao trabalho, pessoal.
Começou a dar a aula e eu comecei a tirar apontamentos com o rosto em
chamas, mas a bola que ardia no fundo do meu estômago não desapareceu.
Piorava a cada minuto que passava.
Será que o Nick me estava a evitar?
Há doze horas ele estava a beijar-me e agora não estava em lado nenhum.
O resto do dia passou num borrão. Entre ter dormido mal, a ausência do
Nick e o facto de os olhos de todos estarem em mim o tempo todo, eu estava
basicamente entorpecida. Passei pela rotina da tarde, arrastando os pés de uma
aula para a outra e tentando manter-me invisível, e, quando cheguei finalmente
a casa, fui diretamente para o meu quarto e fechei a porta.
Com sorte, talvez conseguisse evitar um confronto com a minha mãe. Sabia
que ela ainda estava provavelmente desejosa de me infernizar a vida mais um
pouco, mas eu estava sem energia.
Aparentemente, o meu plano de porta fechada funcionou — incrivelmente
bem — porque comi um saco inteiro de Cheetos com o stresse e vi reposições
de Gilmore Girls até adormecer profundamente, ainda vestida.
Não falei com a minha mãe nem com o Todd.
Só acordei na manhã seguinte, na verdade.
Como alguém que sempre tivera grande orgulho na sua autodisciplina,
acordar com a roupa do dia anterior e resíduos de Cheetos na ponta dos dedos
não era um bom sinal. E, no entanto, por alguma razão, não detestei a
sensação.
*
Respirei fundo e entrei na sala de aula. Podia ver a parte de trás da cabeça
do Nick, enquanto ele olhava para o livro à sua frente, na mesa. De imediato,
senti um frio na barriga.
Quando cheguei à nossa mesa, ele estava a escrever uma mensagem e não
ergueu os olhos. Sentei-me e peguei no meu livro.
O Nick ergueu a cabeça, os nossos olhos cruzaram-se e todas as memórias
do DSC voltaram à minha mente.
Ele deu-me um sorriso de boca fechada, como se não me conhecesse, e
depois voltou a olhar para o telemóvel.
Senti o calor a inundar-me as faces e juro por Deus que perdi a capacidade
de ouvir por um segundo.
Olhei para ele, mas o Nick continuava a fitar o telemóvel.
Porque é que não olhava para mim?
Abri a boca para lhe dizer que tinha o casaco dele no cacifo quando o Bong
entrou e disse:
— Guardem os livros, meninos, vamos ter um teste.
Raios — tinha-me esquecido do teste. Tinha-me esquecido de estudar.
Guardei as minhas coisas e fui para a outra mesa, mas o nó de pavor no meu
estômago continuou a crescer.
E não tinha nada que ver com a minha falta de preparação. Pela primeira
vez na vida, estava-me nas tintas para as minhas notas.
Tudo o que me importava era o facto de o Nick me estar a ignorar.
A evitar-me.
Dois dias antes, ele estivera a agarrar-me no escuro ao lado da casa da
minha avó, mas agora não conseguia sequer sorrir, dizer olá ou simplesmente
reconhecer a minha existência?
Passei a aula inteira a fazer o teste, esforçando-me por manter os meus
pensamentos sob controlo enquanto tentava encontrar as respostas. Quando a
campainha tocou, finalmente, arrumei as minhas coisas, mas o Nick já ia a sair
quando peguei na mochila. Eu não ia implorar ou persegui-lo, mas andei um
pouco mais depressa do que o normal, esperando desesperadamente vê-lo à
minha espera.
Não estava.
Passei a hora seguinte a sentir-me triste, absolutamente destruída pela
rejeição dele.
Mas, então, percebi uma coisa.
A antiga Em podia simplesmente aceitar a rejeição dele e lidar com isso,
mas o DSC mudara-me. Podia ter sido um momento louco e um dia
absolutamente ridículo, mas viver a minha vida para mim mesma fizera-me
sentir bem. Eu vivera sempre para agradar a toda a gente, mas quem é que faria
o que eu realmente queria senão eu?
Pareceu ser coisa do destino o facto de, quando eu estava prestes a entrar
na biblioteca, à hora do almoço, o Nick vir a sair pela mesma porta. Tinha um
ar sério e pensativo e não me viu até eu dizer:
— Ei, tu.
Virei-me para me colocar ao lado dele, seguindo na mesma direção.
— Então, também apanhaste um castigo?
Ele franziu ligeiramente as sobrancelhas, como se estivesse a processar as
minhas palavras e a minha aparição repentina, e não sorriu.
— Ainda não — respondeu.
— Sortudo. — Dei-lhe um ligeiro encontrão. — Vou estar de castigo
durante duas semanas, mas grande parte disso é pela cena do
intercomunicador. Aparentemente, usei o equipamento audiovisual para
«intimidar outro aluno». Dá para acreditar?
— Sim… hum… é uma loucura. — Ele parou de andar. — Escuta, tenho
de ir para ali. — Apontou para o corredor à nossa esquerda. — Portanto,
vemo-nos mais tarde?
— Sim, claro, mais tarde — disse eu, mas, quando ele se afastou, abri
caminho por entre as pessoas para o alcançar novamente.
— Nick!
Ele olhou para mim, mas continuou a andar.
— Sim?
— Estamos bem?
— Hum… sim, claro. — As sobrancelhas dele franziram-se e ele olhou
para mim como se eu estivesse louca. — Estou com um bocado de pressa,
portanto vejo-te em Química amanhã.
As pessoas passavam à minha volta, esbarrando em mim e empurrando-me,
enquanto eu permanecia ali, imóvel. Fiquei a observá-lo até a cabeça dele
desaparecer na multidão, sentindo o coração a partir-se em mil pedacinhos.
— E não doeu? — A Rox estava a falar sobre a minha tatuagem quando
saímos pela porta lateral depois das aulas. — Amiga, a minha mãe matava-me se
eu fizesse o que tu fizeste.
— Doeu, mas não foi muito mau. — Recordei o Nick na cadeira à minha
esquerda, a fazer-me companhia enquanto o Dante me tatuava.
— O Nick Stark segurou-te na mão? — perguntou ela, num tom de
brincadeira, agitando as sobrancelhas.
— Cala-te — disse eu, no mesmo tom. Por algum motivo, não tinha
contado aos meus dois melhores amigos tudo o que acontecera. Ninguém
além de mim e do Nick poderia entender como um dia podia ser tão
importante; eu própria não teria acreditado se não tivesse acontecido e não
estava pronta para falar sobre isso.
— Ela está muito calada em relação a toda a situação. — O Chris pôs os
óculos escuros e acrescentou: — Parte de mim acha que aconteceu algo de
importante.
Revirei os olhos, mas não consegui encontrar um sorriso.
— Nem toda a gente tem um Dia dos Namorados perfeito com um giraço,
Chris.
— Consegues acreditar que ele beijou o Alex? — disse-me a Rox.
— Foi como uma cena de um filme — observou o Chris.
Senti ciúmes da ressaca amorosa do Chris.
— Tão romântico — comentei.
— Vou à frente. — A Rox abriu a porta da frente do carro do Chris e
entrou.
Eu estava prestes a entrar para a parte de trás quando ouvi o Chris a dizer:
— Parece que o parceiro de tatuagens da Em está a ter problemas com o
carro.
Parei e virei-me. O capô da carrinha do Nick estava levantado e ele estava
inclinado sobre a lateral com uma lata de fluido de ignição na mão.
— Que se lixe.
— O quê? — O Chris olhou para mim por cima dos óculos escuros.
— Oh, não era para o dizer em voz alta. — Pestanejei. — Mas mereço uma
conversa, pelo menos.
— Em… hum… o quê?
O Chris e a Rox trocaram um olhar do tipo será-que-ela-está-bem,
enquanto eu abria a minha mochila, tirava o casaco grande do Nick e largava a
mochila no chão.
— Volto já.
Fui até à carrinha do Nick.
— Precisas que eu entre e a ponha a trabalhar?
Ele olhou para cima. Engoliu em seco e disse:
— Não, está tudo bem, mas obrigado.
Revirei os olhos.
— Mas se eu a ligar enquanto tu colocas o fluido, não é mais fácil?
— Tenho tudo controlado, Emilie. — A voz dele era tensa, como quando
eu lhe perguntara sobre a família depois do café.
— Porque é que estás a agir assim? Estás zangado comigo ou algo do
género?
Ele suspirou e abanou a cabeça, com os lábios franzidos.
— Não. É só que… eu disse-te na outra noite que não tenho tempo para
isto.
— Para quê? Não te estou a pedir nada. Ofereci-me para te ajudar com a
tua…
— Emilie. — Ele exclamou o meu nome. — Foi muito divertido. Mesmo.
Um dia divertido. Mas agora é outro dia, está bem?
Fechei a boca, humilhada. Estava prestes a ir-me embora, mas depois mudei
de ideias e disse:
— Tive uma epifania na outra noite, depois de os meus pais terem gritado
comigo, me terem posto de castigo e jurado lutar até à morte em tribunal
sobre com quem devo viver. Sabes o que foi?
— Eu não…
— Foi que, independentemente do que acontecer, bom ou mau, vou
começar a viver para mim e para o que eu quero, em vez de para as outras
pessoas e para o que acho que elas querem que eu faça. Porque se eu não o
fizer, quem é que o fará?
Ele endireitou-se e enfiou as mãos nos bolsos do casaco, com uma
expressão ilegível no rosto.
— Aquele dia contigo foi incrível. E sei que não «tens tempo» nem queres
um relacionamento e eu não me importo de esperar ou de sermos apenas
amigos. Mas o DSC foi…
— Uma fantasia — disse o Nick. — Foi uma miragem, Emilie.
— E… depois? Vais evitar completamente a felicidade porque ela pode
escapar?
Ele olhou para mim por um momento antes de se virar e dizer:
— Eu apenas não estou interessado em ti dessa maneira, está bem?
De imediato, o meu cérebro pensou: Ah, devo ter percebido mal, desculpa.
A minha boca chegou mesmo a abrir-se para o dizer.
Mas eu não tinha percebido mal.
E não estava arrependida.
— Podes insistir nisso, Nick — disse eu, zangada e desapontada por ele
preferir ser um idiota comigo em vez de ser sincero com ele mesmo —, mas
eu não imaginei o que aquele dia foi. Dias assim não acontecem, Nick, nunca.
Percebo que estejas com medo de arriscar depois do Eric, mas…
— Por favor, não metas o meu irmão nisto.
Apertei os lábios e desviei o olhar, frustrada.
Ele passou a mão pelo topo da cabeça e disse:
— Tu não sabes nada sobre o meu irmão e estás a usar o que eu te disse
para me convenceres, e a ti mesma, de que houve mais no nosso dia de ontem
do que realmente houve. Lamento informar-te, Emilie, mas o DSC foi apenas
uma saída para nos divertirmos. Um dia em que duas pessoas faltaram à escola
e se divertiram no centro da cidade. Só isso.
— Hum… está bem, então. — Pestanejei para conter as grandes e gordas
lágrimas de humilhação.
— Não quero ferir os teus sentimentos, Em, mas foi só isso que f…
— Já percebi. — Atirei-lhe o casaco para as mãos e voltei para o carro do
Chris, onde ele e a Rox estavam, com as janelas abertas, a testemunhar toda
aquela rejeição humilhante. Espremi-me no banco da frente e os meus amigos
não me fizeram uma única pergunta. A Rox colocou o braço à minha volta e o
Chris entregou-me uma das embalagens de Kleenex que tinha sempre na
consola central.
Apenas uma saída para nos divertirmos.
CONFISSÃO N.º 20
No 6.º ano, toquei à campainha do Finn Parker, que vivia do
outro lado da rua, e fugi, caindo pelos degraus da casa dele e
partindo o pulso. Até hoje, os meus pais acham que o parti a
patinar.
Depois de chegar a casa, permiti-me finalmente chorar. Sentia um vazio
doloroso onde o Nick tinha estado, o que era estranho já que eu só o
conhecera no dia 14 de fevereiro. No entanto, de alguma forma, sentia que ele
me vira — tudo em mim — e me compreendera. Nada disto fazia sentido,
mas eu sentia uma enorme sensação de perda por causa do Nick.
Ouvi a minha mãe a chegar a casa e não me apetecia mesmo nada lidar com
a raiva dela. Tinha a certeza de que ela ainda estaria zangada, especialmente
depois de eu me ter escondido no meu quarto na noite anterior, e não me
sentia emocionalmente preparada para lidar com mais conflitos.
Comecei a fazer os meus trabalhos de casa — não sabia o que mais fazer —
e o meu estômago revirou-se quando a ouvi gritar:
— Em! Jantar!
Respirei fundo e corri escada abaixo. Conseguia sentir o cheiro de
almôndegas com esparguete — a minha refeição favorita —, mas algo em
relação ao aroma aumentou a minha melancolia. Trouxe de volta memórias de
esparguete na casa antiga, quando éramos apenas a minha mãe, o meu pai e eu
naquela velha sala de jantar amarela. Isso fez-me pensar nas refeições no
minúsculo apartamento do meu pai, quando éramos apenas nós dois, o que me
trouxe de volta lembranças sorrateiras de ambos a darem-me esparguete e a
apresentarem-me aos novos amores das suas vidas.
Percebi que o Nick me tinha tornado sensível quando o esparguete me
começou a deixar triste.
Sentei-me. Conseguia sentir a minha mãe a olhar para mim e preparei-me
para um sermão.
— Estás bem, Emilie?
O Todd, o marido dela, era um vendedor simpático e inofensivo que
parecia ter sempre uma opinião para partilhar sobre tudo, incluindo coisas que
não tinham nada que ver com ele e tudo que ver comigo e com o meu pai.
Portanto, a pergunta dele deixou-me nervosa.
— Estou ótima. — Olhei para o esparguete no meu prato e pus o
guardanapo no colo. — Porquê?
— Pareces apenas… — Ele apontou para o meu rosto com o garfo.
— Como se tivesse andado na rua até tarde na outra noite?
Obrigada, mãe.
— Como se estivesses triste. — O Todd inclinou a cabeça, dizendo aquilo
como se fosse algo extremamente impossível. — Como se tivesses estado a
chorar. Tens a certeza de que estás bem, miúda?
Assenti com a cabeça. Algo na preocupação inesperada na voz dele fez-me
sentir mais despedaçada do que já me sentia.
— Em? — Agora era a minha mãe que inclinava a cabeça dela. — Está tudo
bem?
Assenti com a cabeça mais uma vez, mas a minha visão ficou turva com as
lágrimas, pois tinha os olhos demasiado cheios para as conter a todas.
— Emilie. — A minha mãe parecia realmente perplexa ao ver as minhas
lágrimas. — Querida?
O termo carinhoso foi a gota de água. Desfiz-me numa confusão soluçante
à mesa da cozinha, chorando para cima do meu esparguete com almôndegas,
enquanto o meu «irmão» bebé, o Potássio, olhava para mim como se eu me
tivesse passado.
— Estás a gozar comigo.
— Estou aqui, não estou? — Bebi um gole do meu café e disse à Rox: — A
minha mãe, a mulher que deu o meu porquinho-da-índia quando eu tinha sete
anos porque me esqueci de limpar a gaiola, tirou-me do castigo.
— Ohh, tinha-me esqueci do Dre.
Suspirei.
— Paz ao Dre — disse —, o porquinho-da-índia que a minha mãe deu aos
Finklebaums, da casa ao lado, que o perderam imediatamente no quintal no dia
seguinte.
— Mas… não percebo. — A Rox tirou os óculos e olhou para eles,
limpando algo numa das lentes. Ela era uma daquelas pessoas que ficam bem
com e sem óculos. A pele dela parecia sempre perfeita, quer usasse
maquilhagem ou não, e qualquer penteado lhe ficava bem. Desde que a
conhecia, ela já usara tranças, rastas, cabelo curto, cabelo comprido, cabelo
loiro, cabelo cor-de-rosa e um penteado afro, e todos lhe ficavam bem.
Passei um dedo sobre o logótipo no copo e perguntei-me se não seria talvez
altura de mudar também o meu cabelo. De repente, a minha estética habitual
pareceu-me errada.
— Sem ofensa, mas tu merecias realmente ficar de castigo desta vez e agora
é que ela está a ser indulgente? — disse a Rox.
— Bem, não. — Recostei-me, sentindo-me ainda um pouco trémula. — É
mais como se ela tivesse decidido ser uma mãe humana. Tive um ataque de
choro ao jantar ontem, que começou por causa do Nick, mas depois passou
para a mais recente situação com os meus pais.
— E qual é?
Falei-lhe da promoção do meu pai e da discussão entre eles.
— A parte boa do meu colapso foi que eu já estava tão chorosa que deixei
escapar os meus verdadeiros sentimentos em relação a com quem quero viver.
— E que é com?… — perguntou ela.
— Com ambos — gemi eu.
No entanto, pela primeira vez, a minha mãe tinha-me realmente ouvido.
Abraçara-me e depois ligáramos ao meu pai em alta-voz. Eu não sabia se isso
iria mudar alguma coisa, mas ele prometera falar com a Lisa e explorar todas as
opções possíveis.
E isso fazia imensa diferença.
— Fico feliz que isso tenha acontecido, porque precisavas de lhes dizer. Já
estava na altura — comentou a Rox.
Fiz girar a bebida no meu copo.
— Concordo — disse.
A parte patética era que eu queria contar tudo isto ao Nick. Ele fora tão
incrível quando eu lhe falara sobre os meus pais, quando estávamos no telhado
no centro da cidade, que o meu coração achava que ele iria gostar de saber.
Afinal, ele mostrara lágrimas de empatia quando eu chorara por causa disso,
por amor de Deus.
Foi apenas uma saída para nos divertirmos, recordei a mim mesma, e a lembrança
ainda doía.
A Rox olhou para o telemóvel, provavelmente uma mensagem do Trey, e
disse:
— O Chris contou-te que o Alex o levou a jantar depois de irem às
compras na noite passada?
— Não. — A história do amor de sonho do Chris era a única coisa que me
ajudava a passar por tudo isto. — Foi bom?
— Aquele rapaz ligou-me à uma da manhã e falou durante uma hora sobre
o Alex. É a coisa mais fofa que já vi.
Olhei por cima do ombro da Rox, quando o empregado do café gritou
«Carl!» pela terceira vez.
— Espero que nunca se separem — disse eu.
— Ele contou-me que o Alex lhe disse que não o queria assustar, mas que
achava que já estava apaixonado por ele.
— O quê? — exclamei, fazendo-a erguer de novo os olhos para mim. — A
sério? Uau.
Ela assentiu com a cabeça e pareceu curiosa.
— Vais contar-me o que aconteceu com o Stark no Dia dos Namorados?
— perguntou.
Pensei sobre o assunto por um instante.
— Basicamente, tivemos um dia incrível juntos e agora ele quer fingir que
eu não existo.
A Rox abanou a cabeça.
— Que besta.
— Sim. Mas isso é o que torna tudo tão triste; ele não é nenhuma besta.
E, então, fiz o que prometera a mim mesma que não faria. Fiquei ali
sentada, na nossa mesa favorita à janela do Starbucks, e contei-lhe tudo. Não
sobre os dias repetidos — tinha a certeza de que nunca poderia contar isso a
ninguém —, mas cada pequeno pormenor sobre o que acontecera no DSC.
Quando terminei, não sei que tipo de reação esperava, mas deparei com a
cara de pena dela. Ela respirou fundo e disse:
— Ele disse-te, o dia todo, que não queria mais nada além daquele dia e o
que é que tu fazes? Assumes que ele está magoado ou ferido. Com medo de
arriscar. Eu adoro-te e acho que ele é um grandessíssimo idiota, mas ele disse-
te a verdade, querida.
— Sim, mas…
— E tu tens o teu telemóvel de volta, certo? — Ela lançou-me um olhar
cem por cento realista. — Havia alguma mensagem dele à tua espera? Ele pelo
menos pediu-te desculpa por te fazer chorar depois da escola?
Os meus olhos arderam de novo, porque é claro que eu verificara assim que
o meu telemóvel me fora devolvido pela minha mãe.
— Não.
— Não. — Ela levou o copo à boca e continuou: — Bom, ainda bem.
Agora já sabes, portanto podes seguir em frente e não olhar para trás.
E porque ela era uma amiga incrível, começou logo a enumerar quinze
razões pelas quais ele não era bom o suficiente para mim, seguida por dez
coisas incríveis que adorava em mim. Eu ainda estava supertriste por causa do
Nick, mas ela tornou o assunto um pouco menos terrível.
Na segunda-feira, vesti umas calças de ganga, uma T-shirt, calcei os ténis
Chuck Taylor, pus os meus óculos e apanhei o cabelo num coque semidesfeito.
Estava a falar a sério sobre toda a ideia de viver para mim mesma e não me
apetecia fazer nenhum esforço.
Nem sequer sabia onde estava a minha agenda.
As duas primeiras aulas passaram rapidamente e então, antes da terceira
aula, ao virar uma esquina no corredor, dei de caras com a Lauren, a Lallie e a
Nicole. Como é que era possível elas estarem sempre juntas? Olharam para mim
e eu soube que era uma rapariga morta.
— Ei, meninas. — Respirei fundo e deixei escapar: — Desculpem por ter
sido uma cabra na semana passada. Não me devia ter passado, mas senti pena
da Isla por vocês estarem a dizer mal dela.
A Lallie pestanejou.
— Oh.
— Estávamos a dizer mal da Isla? — perguntou a Lauren.
— Não interessa — disse a Nicole.
Dispensou-me com um gesto, como se eu não merecesse o seu tempo, mas
elas não me destruíram.
Eu mal podia acreditar.
Então, a caminho da aula seguinte, vi o Josh. Ele viu-me do outro lado da
sala de estudo e veio ter comigo.
— Em!
Agarrei com mais força os livros que tinha na mão.
— Sim?
— Podemos conversar depois da escola?
— O quê?
— Preciso de falar contigo. Podes ir ter comigo depois da escola?
— Hum…
— Por favor?
— Ah… talvez. Deixa-me pensar nisso.
Afastei-me, questionando-me sobre o que ele poderia querer falar. Ainda
estava a pensar nisso quando fui para a aula de Química, mas então a
ansiedade tomou conta de mim. Engoli o meu pavor nervoso e fui para o meu
lugar. O Nick já lá estava, mas agimos do mesmo modo de sempre.
Como se não nos conhecêssemos.
Senti-o a olhar para mim enquanto eu percorria o meu feed de notícias, mas
continuei a olhar para o telemóvel. Então, este relinchou porque recebi uma
mensagem do Josh. Olhei para cima, para ter a certeza de que o professor
Bong não tinha ouvido, mas ele ainda não estava na sala. Coloquei o telemóvel
no modo de vibrar e li a mensagem.
Josh: Olá.
Fiquei um instante a olhar para a mensagem.
Eu: Olá.
Josh: Já decidiste?
Eu: Decidi o quê?
Josh: Se vais falar comigo.
Eu: NÃO.
Josh: Não, não vais?
Eu: Não, ainda não decidi. Sinceramente, o que é que tu queres?
Josh: Ui.
— Diz-me que não estás a mandar mensagens ao tipo que te traiu.
Ergui os olhos e o Nick estava a olhar para mim. Havia um toque de
aborrecimento na sua voz quando ele continuou:
— És mais inteligente do que isso.
Eu queria atacá-lo, mas depois ele ia pensar que eu ainda estava interessada
nele. Então, disse calmamente:
— Desculpa, mas acho que não tens nada que ver com isso.
— Eu sei que não. — Ele pareceu… frustrado. Coçou a sobrancelha e
disse: — Mas detestava ver-te a confiar num tipo que só te vai enganar outra
vez.
— Vou levar isso em consideração, obrigada.
O meu telemóvel vibrou em cima da mesa naquele momento e eu nunca
me senti tão feliz por ignorar alguém e olhar para o telemóvel. Peguei-lhe.
Josh: Preciso de te explicar uma coisa.
Eu conseguia sentir o olhar do Nick sobre mim enquanto começava a
escrever uma resposta.
Eu: Vamos deixar tudo para trás. Estás perdoado. São águas
passadas.
Josh: A sério?
Eu: Sim.
— Estás a fazer isso de propósito?
Olhei para o Nick pelo canto do olho.
— A fazer o quê?
— A mandar-lhe mensagens.
Abanei a cabeça.
— Em primeiro lugar, não. Acredita no que quiseres, mas eu mando
mensagens para muitas pessoas, e não tem nada que ver contigo. Em segundo
lugar, não consigo perceber porque te estás a meter neste assunto.
— Só não quero que fiques…
— Magoada? — Fitei-o bem nos olhos. Pareceu-me sentir o meu coração a
falhar uma batida quando lhe disse: — Tu és a última pessoa que me poderia
proteger disso.
Ele engoliu em seco.
— Isso não é justo.
Ele estava a olhar para mim com aqueles seus olhos e só o facto de olhar
para ele doía. Desviei o olhar para o meu telemóvel.
— Tudo bem.
Felizmente, o professor Bong entrou, acabando com a possibilidade de
continuarmos aquela troca de palavras dolorosamente desconfortável. No
entanto, fiquei incomodada com a nossa conversa durante o resto da aula,
porque ele não tinha o direito de ficar com ciúmes quando não me queria. O
que é que lhe interessava se eu estava a falar com o Josh?
Mandei uma mensagem ao Josh: Podes dar-me boleia para casa depois da escola?
Josh: Claro.
Quando a aula acabou, arrumei as minhas coisas e saí o mais rápido que
pude. Precisava de esquecer tudo sobre aquele mal-humorado, embora fosse
difícil concentrar-me quando o seu cheiro a sabonete me chegava ao nariz,
atormentando-me com memórias dos sete minutos em que tínhamos estado
apaixonados ao lado da casa da minha avó.
— Em!
Ouvi a voz do Chris no corredor e, quando me virei, lá estava ele a vir na
minha direção de mãos dadas com o Alex.
— Olá.
— O teu aspeto! — O Chris ergueu as sobrancelhas e disse: — Tiveste de
limpar alguma cave antes da escola hoje?
O Alex cerrou os lábios, demasiado educado para se rir do sarcasmo do
Chris.
— A nova Emilie não estava com vontade de se arranjar hoje — disse eu.
— A nova Emilie parece que nunca ouviu sequer falar de beleza —
respondeu ele.
— Porque é que não me deixas em paz e tentas descobrir como domar o
teu remoinho?
O Chris vivia obcecado com uma pequena imperfeição no seu belo cabelo
grosso e encaracolado.
— Oh, Deus nos ajude. A nova Emilie é má — brincou ele.
— A nova Emilie — disse o Alex, sorrindo para mim — é encantadora. Tal
como o teu remoinho.
O Alex e o Chris trocaram um olhar que me deixou com inveja, portanto
revirei os olhos e disse:
— Vocês estão a dar-me cáries de tão melosos. Parem com isso.
Dei um passo na direção oposta, mas depois virei-me e disse:
— Ah, sim, não preciso de boleia para casa.
— OK — disse o Chris, e eu sabia que ele me iria mandar uma mensagem
durante a próxima hora para saber porquê.
Demorou apenas cinco minutos.
Chris: Quem é que te vai levar a casa? É o Stark?
Eu: O Josh.
Chris: Oh, meu Deus, mas que raio?
Eu: Não faço ideia porquê. Disse que quer falar comigo. Não
custa nada ouvir, certo?
Cris: Acho que não. Mas não o deixes voltar.
Eu: Acredita em mim, não vou deixar.
Depois da escola, o Josh estava à minha espera ao pé do meu cacifo. O meu
coração não palpitou quando o vi ali. Na verdade, o meu primeiro pensamento
foi: Será que ele não tem um par de calças de ganga?
— Ei. — Abri o meu cacifo. — Importas-te que eu passe pelo gabinete
escolar antes de irmos?
— Sem problema.
Agachei-me e tirei o meu livro de Química do fundo do cacifo, pondo-o na
minha mochila já cheia.
— Deve demorar apenas um instante.
Endireitei-me, fechei o cacifo e começámos a caminhar em direção ao
gabinete escolar. Eu devia ter sentido alguma coisa, a andar ao lado dele depois
de toda a confusão, mas sentia-me muito desligada de toda a situação.
— O que tens de fazer no gabinete? — perguntou ele.
— Bem — disse eu, com um meio-sorriso —, tenho de combinar como é
que vai ser o meu castigo por te ter intimidado.
Ele abanou a cabeça, confuso, e perguntou:
— Estás a brincar, certo?
— Não. Aparentemente, violei a declaração de direitos estudantis e fi-lo
pelo intercomunicador. — Sorri para o professor Bong quando passámos por
ele, mas ele não sorriu de volta. — E depois tenho de ir buscar o meu sinal do
programa de verão da Northwestern.
Ele pareceu chocado.
— Porquê?
— Resumindo, descobri que as inscrições foram classificadas
incorretamente e não fui aceite.
Ele pareceu superchocado.
— A sério?
— A sério. — Fiz um sorriso de cumprimento a uma rapariga da minha
turma de Governo quando ela passou. — Mas até estou contente. Depois de
pensar um pouco sobre o assunto, percebi que na realidade gostava apenas de
descontrair e descansar este verão.
As sobrancelhas dele franziram-se.
— Descontrair?
Tenho a certeza de que ele não conseguia reconhecer essa sensação.
— Eu sei, eu mesma mal posso acreditar.
O Josh ficou à espera fora do gabinete quando entrei e as coisas correram
relativamente bem, dentro do possível. Pedi desculpa ao diretor e agendei os
dias do meu castigo, situação em relação à qual ele foi surpreendentemente
descontraído. Depois, fui até ao gabinete do Sr. Kessler.
Ele pareceu nervoso por me ver depois da minha explosão anterior, mas,
assim que pedi desculpa e lhe disse que já não estava interessada em ingressar
no programa, ele transformou-se, mais uma vez, naquela pessoa
absolutamente entusiasmada com os meus planos de futuro.
Quando saí do gabinete, o Josh ainda estava onde eu o deixara.
— Obrigada por esperares — disse-lhe, pondo a mochila ao ombro.
— Tudo bem — respondeu ele, deitando-me um olhar estranho, como se
estivesse a tentar descobrir alguma coisa. Não disse mais nada enquanto
caminhávamos até ao carro, mas, assim que o ligou e pôs o cinto de segurança,
começou: — Bom, eis o que se passa, Em.
Eu estava um pouco distraída a olhar para o carro dele, porque da última
vez que ali estivera ficara entalada entre ele e a Macy e as minhas botas
cheiravam a lixo.
— A razão pela qual queria falar contigo é porque te devo um enorme
pedido de desculpa pela Macy.
Uau, aquilo não era o que eu esperava. Nenhuma negação? Zero culpa?
— A sério?
— Eu gosto de ti, Em. És, sem dúvida, uma das minhas pessoas favoritas e
odeio ter-te magoado. Ela pediu para ir comigo ao café e eu sabia que ela
gostava de mim… Foi errado levá-la.
Olhei para o rosto dele e senti-me… impávida.
— Mas tens de acreditar em mim. Não aconteceu nada.
Pensei no que ele estava a dizer e o mais estranho era que acreditava
verdadeiramente nele. Embora o tivesse visto a beijá-la nos outros dias
cósmicos, acreditei que ele não o tivesse feito naquele dia. E, na verdade, ele não
era o tipo de rapaz que traísse.
Dito isto, se eu ainda o quisesse, era provável que as palavras dele não
tivessem feito nenhuma diferença.
Eu estaria demasiado magoada para o perdoar.
Como me tinha sentido no primeiro Dia dos Namorados.
Mas agora… nem por isso.
No entanto, ele ainda não tinha terminado de explicar.
— Não espero que me perdoes. Eu estava totalmente errado e tens todo o
direito de me odiar. Mas só quero que saibas que és incrível. Eu estava
totalmente feliz contigo.
— Hum… — Eu não sabia realmente o que dizer em resposta. —
Desculpa, é que… estou chocada por estares a ser tão simpático depois da
cena do intercomunicador.
Ele olhou de relance para mim.
— Bem, não gostei nada, mas provavelmente merecia.
— Uau, Sutton, pareces tão maduro.
Aquilo fê-lo olhar outra vez para mim, acho que para ter a certeza de que
eu estava a brincar. Quando viu o meu sorriso, sorriu também.
— Vamos chamar-lhe crescimento pessoal.
— Então… — Pus o cabelo atrás das orelhas enquanto o meu cérebro
filtrava as informações. — Tu disseste que é complicado. Vais convidar a Macy
para sair agora? Voltar para ela?
Ele torceu o nariz.
— Duvido.
— O quê? — Ele estava a torcer o nariz em relação à Macy? — Quero dizer, não
é da minha conta, mas porque não?
Ele reduziu a mudança e olhou para mim.
— Além do facto de ter acabado de sair de um relacionamento?
Revirei os olhos para ele.
— Bem — disse ele com um suspiro, enquanto voltava a olhar para a
estrada —, apenas já não estou interessado na Macy.
Aquela resposta irritou-me.
— Mas vocês os dois têm química. — Eu vi-o. Mais vezes do que queria.
— Temos história.
— Essa é uma distinção irrelevante.
— Não é, não. — Ele engoliu em seco. — Quero dizer, claro que é. Mas
sabes o que me passou pela cabeça quando estávamos sozinhos no carro?

— «WWJD13»?
— Muito engraçada. — Ele estendeu a mão e ajustou uma das saídas de
calor. — O que me veio à cabeça, sua espertinha, foi perceber que tu nunca
foste assim comigo.
— Assim como?
— Vibrante. — Ele abanou a cabeça com os olhos fixos na estrada e disse:
— Nervosa. Eu sempre soube que tu gostavas de mim, como pessoa, mas
nunca senti que estavas mesmo apaixonada por mim.
Contorci-me um pouco no meu lugar.
— O que é isto, terapia de casal? Vais queixar-te de que não fui atenciosa o
suficiente, portanto tiveste de ir procurar noutro lado?
— Não é nada disso que estou a dizer. — Ele virou para a minha rua e
continuou: — Foi mais eu ter tido um momento em que me perguntei se
alguma vez gostaste mesmo de mim.
— Isso não é justo — disse eu, ainda que duvidasse.
— Eu não estou a pôr isto nas tuas costas, Em. O meu ponto é que,
quando voltei para a aula, depois do quase-beijo com a Macy, e tentei perceber
o que raio tinha acontecido, perguntei-me porque é que nós estávamos sequer
a namorar.
Olhei para o meu colo; não conseguia encontrar os olhos dele. As palavras
«porque estavas na minha lista de coisas a fazer» pairaram nos meus lábios,
mas contive-as.
O Josh era o namorado perfeito para mim no papel: inteligente, motivado e
encantador. Mas, até o ver a beijar a Macy, eu não tinha percebido que o papel
nem sempre se traduzia na vida real.
O Josh era o rapaz que a rapariga que eu queria ser devia querer.
Senti um nó na garganta enquanto pensava em como estivera errada, em
como ainda estava errada. Se o planeamento não nos trazia o amor verdadeiro
e o destino também não, será que o amor era sequer algo tangível pelo qual
podíamos ansiar?
— Gostamos imenso um do outro. — Ele pigarreou e reduziu a mudança.
— Desde o início. Somos, tipo, a combinação perfeita. E divertimo-nos muito
juntos. Mas consegues dizer, com toda a sinceridade, que sentes algo mais
forte por mim?
O Josh estava a sorrir-me pacientemente quando ergui os olhos para o
rosto dele. Mas, então, o rosto do Nick apareceu na minha mente. O rosto que
deixava os meus joelhos fracos sempre que ele olhava para mim. O rapaz com
quem eu instigara um beijo no centro da cidade.
— Foi o que pensei. — O Josh olhou para mim e abanou lentamente a
cabeça, mas não de um modo mesquinho. Foi um pouco doce, como um olhar
de ternura. — Acho que a ideia de nós os dois juntos era tão boa que talvez
tenhamos forçado as coisas.
Percebi que o Josh soube como eu me sentia antes de eu mesma saber.
— Então, tu nunca…
— Eu acho-te sexy, Em. Não te preocupes. — Como sempre, ele percebia
como o meu cérebro funcionava. — Só acho que talvez devêssemos ser antes
grandes amigos.
— Para de dizer coisas que fazem com que pareça que estás a acabar
comigo. Lembra-te do intercomunicador.
— Oh, eu lembro-me. — Ele tossiu uma gargalhada e disse: — Quando
tiver noventa e cinco anos e estiver num lar, ainda me vou lembrar de ti a
dares-me uma coça e aos Bardos.
Aquilo fez-me rir.
— Não é estranho, isto? Sentirmo-nos tão confortáveis como sempre,
embora já não estejamos juntos?
Ele abanou a cabeça.
— Parece certo, acho.
— Posso torturar-te um pouco? — Cruzei os braços. — Assim, numa
espécie de meu adeus especial a nós?
Ele diminuiu a velocidade ao ver um carro a tentar estacionar pessimamente
em paralelo na rua.
— Já estou com medo, mas tudo bem.
Olhei pela janela, para o sol de inverno do fim do dia, e disse:
— Comprei-te a bracelete Coach para o Dia dos Namorados. Se não
tivéssemos acabado, terias uma bela bracelete de couro cor de chocolate no
pulso.
Ele tirou a mão da mudança para cobrir o coração, como se eu o tivesse
ferido mortalmente.
— Tu sabes mesmo dar o golpe de despedida.
— É, não é? — disse eu, sorrindo para ele enquanto ele sorria para mim.
— Eu sei que isto é absolutamente inédito na vida real, mas achas que
podemos continuar a passar tempo juntos? E isto não é apenas, tipo, dizer só
por dizer. — Ele engoliu em seco e acrescentou: — Não te quero realmente
perder.
— Vamos ver como corre. — Peguei no meu telemóvel e verifiquei as
mensagens. Nada. — Mas, em teoria, posso continuar a dar-te uma coça no
Scrabble se não me irritares.
— Ótimo. — Ele virou para a minha entrada. — Porque se tu me
abandonares, quem é que me vai chamar a atenção quando eu estiver só a ser
do contra?
— Uh, eu gosto de fazer isso.
Ele soltou uma risadinha.
— Obrigado por me ouvires, a propósito.
— Idem. — Abri a porta. — E obrigada pela boleia.
— Sempre que precisares. A sério.
Saí e fechei a porta, e estava quase na varanda quando ele gritou:
— Em, espera.
Olhei para trás e ele tinha a janela aberta. Estava a acenar para me chamar.
Larguei a mochila e corri até à janela dele.
— Não te vou dar um beijo de despedida, Sutton.
— Ah! Ah! — Ele colocou o carro em marcha-atrás e olhou para mim com
atenção. — Então… qual é a cena entre ti e o Nick Stark?
Senti o meu rosto a corar.
— «Cena»?
— Quando estava à espera de que saísses do gabinete, tivemos uma
pequena conversa.
Esperem lá.
— O quê? Tu falaste com o Nick?
Os olhos castanhos dele estavam cheios de humor quando respondeu:
— Assim que entraste no gabinete, ele aproximou-se de mim.
Sinceramente, estava com um ar zangado e é um tipo alto, portanto fiquei um
pouco intimidado.
Senti os lábios a formigar e fiquei sem fôlego.
— O que é que ele disse?
— Disse: «Não te conheço bem, Josh», mas pronunciou o meu nome como
se achasse que eu sou um idiota.
— Bem, eu talvez tenha…
— Foi o que pensei. — O Josh deitou-me um olhar e continuou: — Mas
depois ele disse: «A Emilie é demasiado boa para ti. Se ela te aceitar de volta,
não estragues tudo desta vez.»
Eu não podia acreditar no que estava a ouvir.
— O quê? Ele disse isso?
— A cena é, e não posso acreditar que te estou a dizer isto, o tipo parece
realmente gostar de ti. — O Josh apoiou o cotovelo na janela aberta e
continuou: — Portanto, se tu gostas dele…
— Não gosto. — Abanei a cabeça e senti-me maldisposta. O meu corpo
estava completamente agitado com a ideia de o Nick ansiar por mim ou sequer
se importar comigo, mas não era o suficiente. — Obrigada por me contares
tudo isso, mas o Nick gosta de mim o suficiente para não me querer contigo,
mas não o suficiente para fazer, de facto, alguma coisa em relação a isso.
— Oh. — Ele pareceu surpreendido. — Bem…
— Pois — disse eu, tentando forçar os meus lábios a formarem um sorriso,
enquanto sentia o meu coração a doer dentro do peito.
Aquilo fê-lo sair do carro.
— Anda cá.
O Josh colocou os braços à minha volta e puxou-me para ele. Não era um
abraço casual, mas um abraço apertado e abrangente que parecia um adeus a
nós, ao Josh e à Emilie. O cheiro do seu perfume familiar trouxe-me algum
conforto, mas como um amigo.
— Estás bem? — disse ele para o meu cabelo, e eu apenas assenti com a
cabeça e engoli em seco.
De alguma forma, ao longo de inúmeros dias 14 de fevereiro, um DSC e
vários dias de consequências, tudo mudara.
Eu estava outra vez emocionada quando entrei em casa. Como alguém que
raramente era emotiva, isto estava a começar a tornar-se ridículo. Atirei as
chaves para a mesa ao lado da porta, mas parei quando olhei para a esquerda e
vi que a minha mãe e o Todd já estavam em casa.
— Ei. — Tirei os sapatos. — Porque é que já estão em casa?
— Quero falar contigo — disse a minha mãe. — Senta-te, Em.
Entrei na sala e sentei-me no sofá de dois lugares diante deles.
— É altura para uma reunião familiar improvisada?
— De certa forma — disse o Todd.
— Eu e o teu pai almoçámos juntos hoje — disse a minha mãe, unindo os
dedos como se estivesse numa sala de reuniões e não numa sala de estar. —
Para discutir a nossa situação.
Olhei para o Todd e ele fez-me um sorriso tranquilizador de boca fechada.
— Ele vai aceitar o emprego em Houston, mas a empresa dele vai deixar
que trabalhe de modo remoto até agosto. Dessa forma, podes terminar o 11.º
ano aqui e depois decidir se te queres mudar com ele ou ficar cá.
Pestanejei. Será que ela estava a dizer…
— Depois de muita discussão, decidimos que, desde que as tuas notas
continuem altas e não te metas em problemas, podes decidir se queres
terminar o secundário com os teus amigos em Hazelwood ou recomeçar com
o teu pai no Texas. — Ela sorriu-me e disse: — Respeitaremos os teus desejos,
sem ressentimentos.
— Estás a falar a sério?
A minha mãe assentiu com a cabeça, mas tinha a testa enrugada, como se
não se sentisse confortável a demonstrar tanta amabilidade. Olhei para o Todd
e ele sorriu.
— Oh, obrigada! — exclamei. Levantei-me e corri para a minha mãe,
abraçando-a, embora não fizéssemos isso com muita frequência. Inspirei
Chanel e laca de cabelo enquanto dizia: — Muito obrigada!
A minha mãe sorriu quando a larguei e afastou-me o cabelo do rosto.
— Foi ideia do Todd e foi o teu pai quem teve de renegociar o emprego
novo.
— Ainda assim — disse eu com o coração quase a explodir de amor pela
mulher desconcertante que eu tanto amava e da qual tinha pavor. — Sei quão
difícil é para ti, hum…
— Ceder? — O Todd riu-se e disse: — Sim, ela está a crescer.
A minha mãe sorriu para ele como se ele fosse o mundo inteiro dela, e, pela
primeira vez, aquilo não me irritou. Então, abracei-o também, sentindo-me
culpada pelos milhares de pensamentos nada generosos que tivera sobre ele ao
longo dos anos.
Talvez ele não fosse assim tão mau, afinal.
13
Acrónimo referente à frase «What Would Jesus Do» (O Que Faria Jesus),
muito popular entre os cristãos nos Estados Unidos e frequentemente usada
em pulseiras tecidas. (N T )
CONFISSÃO N.º 21
Derrubei uma caixa de correio com o meu carro no mês
passado, e nem sequer parei.
— Vocês são ridículos. — Empurrei a pilha de balões para dentro do meu
cacifo antes de o fechar. — Isto é horrível.
— Horrivelmente fantástico. — O Chris riu-se e a Rox endireitou uma das
serpentinas do lado de fora do meu cacifo. Era 4 de março, o meu aniversário
e, em vez de serem subtis, eles tinham decorado o meu cacifo, enchendo-o de
balões.
Era simpático, tinha de admitir. Eu tinha andado em baixo nas últimas
semanas, mas agora conseguia passar uma aula inteira de Química sem olhar
para o Nick Stark uma única vez.
Era uma heroína do caraças.
As coisas estavam melhores, portanto esta celebração era como um
pequeno sinal de pontuação na atualização da minha vida. Eu estava a usar um
adorável vestido pontilhado a preto-e-branco, que me fazia sentir como a
Audrey Hepburn, e um casaco com folhos, que me fazia sentir um pouco
Taylor Swift também.
— Tenho de ir para a aula — disse eu, pondo a mochila ao ombro. —
Encontramo-nos aqui depois das aulas?
— Combinado — disse o Chris, sorrindo para a Rox como se fossem
ambos hilariantes, antes de se afastar com ela.
Tive Literatura e a seguir — raios — Química.
Fui direito ao meu banquinho, peguei no meu livro, abri-o na página correta
e comecei imediatamente a olhar para o meu telemóvel. Como tinha feito
todos os dias nas últimas semanas.
Tinha acabado de abrir o Instagram quando o Nick disse:
— Emilie.
Parei de mexer no telemóvel, mas não olhei para cima.
— Sim? — Será que ele precisava de uma caneta ou algo assim?
— Parabéns.
Ergui os olhos e disse:
— Ah, obrigada.
No entanto, naquele meio segundo antes de voltar a olhar para o telemóvel,
o meu cérebro registou os seus olhos azuis sérios, o maxilar cerrado, o hoodie
preto e a rouquidão na sua voz profunda.
— É…
— Por favor, não. — Pestanejei lentamente e consegui continuar: — Já
disseste tudo o que precisavas de dizer, está bem? Não há problema.
Ele não disse nada, apenas engoliu em seco e fez-me um aceno com a
cabeça.
O Bong entrou e começou a dar a aula e eu forcei-me a esquecer o Nick e a
pensar em como me iria divertir com o Chris, o Alex, a Rox e o Trey depois da
escola. Íamos para o centro da cidade para um jantar de aniversário no
Spaghetti Works — o meu restaurante favorito — seguido de gelados no Ted
and Wally’s.
Eu mal podia esperar.
Quando a aula acabou, juntei as minhas coisas e saí rapidamente, não fosse
o Nick tentar sentir-se melhor outra vez. O dia tinha-se arrastado muito
devagar — talvez porque eu estava demasiado entusiasmada para que
terminasse —, mas, por fim, tocou para a saída.
— Até que enfim — disse eu, sorrindo, quando os vi à minha espera junto
do meu cacifo. O Alex estava rapidamente a tornar-se parte do nosso
grupinho de amigos, principalmente porque ele e o Chris eram inseparáveis, e
senti-me sortuda por o termos encontrado.
— Vamos embora, Aniversariante.
Eles deixaram-me escolher todas as músicas no rádio enquanto seguíamos
pelas ruas, o que era a minha coisa favorita no mundo. Divertimo-nos imenso
a cantar a plenos pulmões, mas engoli em seco quando chegámos ao centro.
Porque o meu lugar favorito estava agora manchado com memórias dele.
Olhei pela janela e lá estava o edifício do banco, a pairar acima de nós com
as lembranças vívidas do Nick a dançar o terrível Cupid Shuffle, a levar-me às
cavalitas, quase me beijando no elevador e subindo as escadas a correr comigo.
Fora um dia absolutamente espetacular.
Forcei-me a expulsar esses acontecimentos da minha mente e foquei-me em
divertir-me com os meus amigos.
Vasculhámos lojas de antiguidades, lojas de vinil e butiques caras antes de
entrarmos finalmente no restaurante.
— Estou a morrer de fome — disse eu, inspirando profundamente quando
os meus cheiros favoritos me chegaram ao nariz.
— Tu estás sempre a morrer de fome quando há hidratos de carbono
envolvidos — disse o Chris, e não estava errado. Ele tentava alimentar-se de
forma saudável e ficava sempre repugnantemente divertido com a minha total
falta de preocupação.
— Já comeram as tiras de frango frito deles? — perguntou o Alex enquanto
seguíamos a empregada até uma mesa.
— Estás no Spaghetti Works — disse eu, revirando os olhos e franzindo o
sobrolho para ele. — Por favor, não me envergonhes pedindo frango.
— Eu não a contrariava — disse a Rox, que seguia de mãos dadas com o
Trey atrás de nós. — Ela é absurdamente leal a este sítio.
— Entendido — disse o Alex.
Quando a empregada nos levou até uma mesa grande com vista para o bufê
de saladas, o Chris perguntou:
— Desculpe, podemos sentar-nos à janela?
Olhei para ele, sorrindo, e ele atirou-me um sorriso de volta. Eu e o Chris
costumávamos jogar um jogo quando ficávamos à janela, no qual
adivinhávamos a história de cada pessoa que passava. Fiquei um pouco
emocionada por ele ainda se mostrar sentimental em relação a isso.
— Sem problema — disse a empregada e indicou a mesa em frente da
grande janela saliente que dava para a rua.
— Obrigada — disse eu, e sentámo-nos todos à mesa da janela.
Perdemo-nos em gargalhadas e conversas depois disso. A Rox, o Trey e o
Chris — e, como se veio a descobrir, o Alex também — eram as pessoas mais
engraçadas que eu conhecia. Não havia nada tão divertido como passar várias
horas com eles sem coisas como empregos, trabalhos de casa e namorados a
atrapalhar.
Eles gozaram comigo — e com razão — quando terminei a minha segunda
porção de esparguete antes de o Alex ter sequer terminado a primeira e fartei-
me de rir quando a Rox e o Chris se lançaram a sério no jogo das histórias dos
transeuntes.
— O casal que está a passear o cão está junto há quinze anos, mas só se
casou há um — disse o Chris. — Tem sido o pior ano deles e ambos sabem
que estragaram tudo ao assinarem aquele papel.
— Que negativo — comentei, rindo-me.
— É, não é? — disse o Alex.
— Ela acabou por ceder porque percebeu que as suas recusas anuais o
magoavam — disse a Rox —, mas agora é ela quem está a sofrer. Ambos
querem acabar, mas nenhum deles consegue reunir a coragem para o dizer.
— Ele trabalha sessenta horas por semana só para evitar ir para casa —
acrescentou o Trey.
— Na verdade — interveio o Chris, apontando para o cão —, aquele cão é
o que os mantém juntos neste momento. Nenhum deles consegue suportar a
ideia de desistir da custódia do…
— Almôndega.
— Sim, do Almôndega — disse o Chris, aceitando a sugestão do Alex com
um aceno de cabeça. — Nenhum deles suporta ficar sem o Almôndega,
portanto passeiam o cão juntos, todas as noites depois do jantar, enquanto
sonham que estão em qualquer outro lado menos aqui.
Bebi um gole do meu refrigerante e disse:
— Vocês pegaram no jogo e tornaram-no deprimente. Resolvam isso com
esta senhora.
Olhámos todos pela janela, onde uma mulher alta de macacão e boina ia a
passar enquanto falava ao telemóvel.
— Esta é a Claire — disse o Chris. — Ela era modelo, mas deixou o seu
estilo de vida de jet-set para voltar para casa e cuidar do tio Billy.
— Que perdeu a memória num acidente com um micro-ondas. — O Alex
sorriu, entrando no jogo. — Agora, ele só consegue falar sobre a NASCAR e
as mulheres do The View.
Desatámos todos a rir.
— Ela cuida do tio durante o dia — continuou a Rox —, mas à noite gosta
de vestir as suas roupas de supermodelo e procurar no Mercado Velho por
homens que possam estar interessados em levá-la a dançar swing.
— Isso significa sexo?
— Claro que significa sexo. — O Trey revirou os olhos e acrescentou: —
Ela dança com eles e, quando eles adormecem, mata-os e vende os órgãos
deles no mercado negro.
— Terrível.
— Mas lucrativo.
Ri-me e peguei no pão de alho do Chris.
— OK, Alex, faz o próximo.
O Alex lançou-me um olhar rápido e depois olhou pela janela.
— Toda a gente que conhece este tipo acha que ele é uma besta porque
nunca sorri.
Levantei os olhos do meu pão e vi um tipo de blusão preto a passar com
uma caixa debaixo do braço.
— Mas, na verdade, ele é um tipo porreiro que se arrependeu de ter sido
um idiota com alguém de quem realmente gosta.
O tipo olhou para a nossa janela e…
Era o Nick.
— Ele teve um dia perfeito com a miúda perfeita — disse a Rox —, mas o
seu coração cínico recusou-se a acreditar que aquilo poderia durar, portanto
afastou-a.
Olhei para a Rox e mal consegui encontrar a minha voz para dizer:
— O que é que vocês estão a fazer?
— Foi só quando ele limpou a carrinha e viu que ainda conseguia sentir o
perfume dela no casaco do irmão — disse o Trey — que quase sufocou com a
falta que sentia dela.
— O que é isto? — Funguei e pestanejei rapidamente, enquanto o Nick
parava de andar e olhava diretamente para nós.
Para mim.
O Alex continuou como se eu não tivesse falado.
— Ele sabe que estragou a sua oportunidade, mas só lhe quer dar um
presente de aniversário. Depois, vai-se embora.
Olhei para o rosto dele, lindo e o único rosto no mundo que me dava
vontade de chorar. Enquanto eu o observava, ele engoliu em seco e lançou-me
um olhar intenso que consegui sentir do topo da minha cabeça até à ponta dos
pés.
Abanei a cabeça e desviei o olhar da janela para os rostos dos meus amigos.
— Acho que o meu coração não consegue aguentar mais este jogo.
— Vai lá e ouve-o — disse o Chris.
Respirei fundo. Depois, levantei-me e atravessei o restaurante até à porta da
frente, abrindo-a e saindo. Estava prestes a dirigir-me ao local onde o tínhamos
visto pela janela quando ouvi:
— Em.
Olhei para a direita e ali estava ele, parado ao lado da porta, à minha espera.
Não era justo quão bonito ele era. Ainda estava a usar o hoodie preto e eu
odiei o modo como o facto de o ver anulava toda a diversão que eu estava a ter
com os meus amigos. Olhar para o Nick só me fazia querer ir para casa e
chorar.
Cruzei os braços e disse:
— Estou a tentar jantar com os meus amigos. O que queres, Nick?
Ele fez um gesto com a cabeça para que eu o seguisse até uma das mesas na
esplanada, a qual estava vazia porque estava demasiado frio para se comer na
rua. Revirei os olhos e segui-o, irritada por ele estar, de alguma forma, a
conseguir ser mandão no meu aniversário.
— Abre-a. — Ele colocou a caixa em cima da mesa, olhou para mim com
aqueles olhos que me perseguiam nos meus devaneios e acrescentou: — Por
favor.
Ele parecia tão… intenso. Tinha o maxilar contraído e os olhos
completamente focados em mim. Respirei fundo e disse a mim mesma que
não sabia porque é que a minha barriga estava cheia de borboletas. Estendi a
mão e puxei a ponta da fita vermelha que estava atada num laço perfeito, mas
quando tirei a tampa da caixa branca e olhei lá para dentro não pude acreditar
no que estava a ver.
Olhei para ele e a única palavra que consegui proferir foi:
— Como?
Ele encolheu os ombros e eu enfiei as mãos na caixa e tirei o bolo.
O bolo do unicórnio roxo com a cobertura brilhante.
Aquele que eu queria no meu nono aniversário.
Não podia acreditar nos meus olhos enquanto o tirava completamente para
fora e o pousava em cima da mesa. O chifre dourado a luzir, o unicórnio
cintilante, o glacé roxo brilhante. Dizia «Feliz Aniversário, Em», tal como eu
queria desesperadamente quando estava no 4.º ano.
Mas… o Nick nunca tinha visto o bolo antes.
— Como é que fizeste isto, Nick?
Ele encolheu os ombros.
— Tive ajuda.
— Vais ter de fazer melhor do que isso — disse eu, colocando as minhas
mãos trémulas nas ancas, enquanto tentava perceber este rapaz que era capaz
de me ter dado o presente mais atencioso que eu já recebera.
— A Max conhece o dono da pastelaria — disse ele.
— A Max?
— A tua avó.
O meu cérebro não estava a funcionar com rapidez suficiente para eu
acompanhar. Franzi os olhos para ele e disse:
— A minha avó ajudou-te?
Ele assentiu com a cabeça.
— Tanto quanto sei, a única vez que a viste ela pediu para saíres da varanda
dela. — Observei o rosto dele em busca de uma resposta, mas ele moveu a
boca no seu sorrisinho típico, aquele que o fazia parecer satisfeito consigo
mesmo, embora não muito simpático. — Por favor, explica-te, Nick Stark.
— Fui até à casa da tua avó e perguntei-lhe o que é que ela sabia sobre o
bolo do unicórnio roxo. — Os olhos dele percorreram o meu rosto, fazendo
com que o meu coração batesse com força. Ele continuou: — Acontece que
ela tem um caso com o dono da pastelaria há anos, portanto ligou-lhe e pediu-
lhe que fizesse o bolo para ti.
Pestanejei.
— A minha avó namora com o velho Miller?
— Não sei se é tecnicamente um namoro, dado que ela disse que eles só
dormem em casa um do outro…
— Urgh…
— Mas são próximos.
Olhei para o bolo, incapaz de desacelerar os meus pensamentos. O Nick fora
a casa da minha avó só para ver se ela sabia do bolo?
— Não acredito que te lembraste do bolo — consegui dizer.
— Eu lembro-me de tudo sobre ti, Em.
A falha na voz dele fez-me voltar a fitar o seu rosto.
— A sério. — A voz dele estava rouca quando disse: — Lembro-me da
«Thong Song», do som ofegante da tua voz depois de eu te beijar e da maneira
como beijaste o meu nariz quando achaste que eu estava triste.
O apito de um comboio soou ao longe, um som quase fantasmagórico na
escuridão fria.
— Eu estraguei tudo — disse ele, olhando para mim — e arrependi-me em
cada minuto desde que te vi a ir embora naquele dia no parque de
estacionamento da escola.
Engoli em seco e os meus olhos viajaram por todo ele, bebendo a única
pessoa para quem eu não me tinha permitido olhar desde que ele me partira o
coração.
— Eu apaixonei-me por ti no Dia dos Namorados, Emilie, mas preciso de
mais do que apenas sete minutos.
— Precisas? — Uma sensação de calor começou a deslizar por cada
molécula dentro de mim. Eu queria estar mais perto dele, mas primeiro tinha
de perguntar: — Mas e tudo o que disseste depois do Dia dos Namorados? E
a miragem?
O Nick ergueu a mão como se me quisesse tocar no rosto, mas então
conteve-se e disse:
— Tu tinhas razão. Sobre eu estar a ser estúpido por causa do Eric.
Encolhi-me.
— Eu não disse isso.
— Insinuaste que eu me estava a conter por causa dele e, desde então,
comecei a pensar que talvez fosse verdade.
— Começaste? A sério?
— Sim. — Ele fez uma cara do tipo É tudo tão dramático e disse: — Ao que
parece, quando os teus pais fazem uma venda de garagem e tu te passas
completamente da cabeça porque eles estão a vender o boné de basebol do teu
irmão morto no dia a seguir a fazer um ano que ele morreu, é porque tens
problemas.
— Oh, não. — Dei um passo em direção a ele, estendendo a mão para lhe
tocar na manga da camisola. — Isso é péssimo. Lamento.
— Está tudo bem. — Ele pigarreou e disse: — Podes não acreditar, mas
estou contente. Até comecei a fazer terapia. Não sei, é muito esquisito
conversar com um estranho, mas também é uma espécie de alívio.
— Nick, isso é tão bom…
— Para. — Ele olhou para mim pelo canto do olho e disse com um sorriso
malicioso: — A última coisa que quero é que a miúda por quem estou
obcecado diga que está orgulhosa de mim por estar a fazer terapia. Tenho uma
mãe para isso, muito obrigado.
Aquilo fez-me rir.
— Eu sabia que tu estavas obcecado.
— Sim, Emilie Hornby, estou aqui para te dizer que estou um pouco
obcecado por ti. Por isto. — Ele levantou as mãos e envolveu-me o rosto. —
Por nós. — Os olhos dele enrugaram-se nos cantos e a sua boca formou um
sorriso rasgado que me deixou com os joelhos fracos.
— Não fiques todo meloso comigo agora, Stark — disse eu, mas o som do
«k» foi cortado quando a boca dele cobriu a minha. Eletricidade e calor líquido
percorreram o meu corpo quando o Nick me beijou como só ele era capaz.
Em algum lugar distante, ouvi os meus amigos a bater palmas, mas nada me
poderia afastar da única pessoa no mundo que sabia que era preciso um bolo
de unicórnio roxo brilhante para me conquistar.
O Nick ficou para a celebração, dando-me a mão enquanto passeávamos
todos juntos pelo Mercado Velho depois do jantar. E, quando chegou a hora
de darmos a noite por terminada, perguntou-me baixinho para que mais
ninguém pudesse ouvir:
— Posso levar-te a casa?
Claro que eu disse que sim.
Ele olhou para mim enquanto eu erguia as mãos diante das aberturas do
aquecimento da carrinha dele a caminho de casa.
— Alguma vez vestes roupa quente? — perguntou.
— Não gosto de tapar uma roupa boa com um casaco volumoso —
expliquei eu, sorrindo, enquanto ele olhava para mim como se eu fosse uma
criança tonta.
— Bem, toma — disse ele, esticando o braço para o banco de trás
enquanto conduzia —, podes usar o casaco do E outra vez. Ainda cheira ao
teu perfume do DSC.
Ele estendeu-me o casaco, e foi como olhar para um velho amigo.
— Não sabia que este casaco era do teu irmão. — Peguei-lhe com cuidado
e coloquei-o sobre o colo, passando as mãos pelo tecido.
— Isso é porque agiste como se te pertencesse — brincou ele.
— É verdade — concordei, pensando em todas as vezes que o tinha usado
e das quais ele nem sequer sabia. Tantos acidentes repetidos, tantos usos
daquele casaco.
Contudo…
Olhei para o casaco verde-tropa. Agora que estava a pensar nisso, eu usara-
o no primeiro Dia dos Namorados. Aquele que começara tudo.
O Dia dos Namorados.
O aniversário da morte do irmão dele.
Mas nunca adormecera com ele vestido — até ao DSC. O último Dia dos
Namorados.
Despertando-me dos meus pensamentos, o Nick encontrou a minha mão e
entrelaçou-a na dele. Deitou-me um olhar que enlouqueceu as borboletas
dentro de mim e depois disse:
— A propósito, nunca te agradeci por me teres feito concordar com o teu
dia DSC. Diverti-me imenso contigo…
— Claro que divertiste — provoquei-o, o que o fez dar-me um sorriso
engraçado.
— Mas as cenas à tarde? — Ele olhou para mim com uns olhos muito
sérios. — O E teria adorado.
— Sim? — Olhei para o casaco.
— Sim — disse ele, entrando na via rápida. — Não acredito em cenas hippie
maradas do universo e tal, mas, juro por Deus, se tu o conhecesses, ele teria
achado que era o dia perfeito.
Uau. Encostei-me no assento e enfiei as mãos nos bolsos do casaco. A ideia
do Eric de um dia perfeito — o dia em que me esquecera de devolver o casaco
— fora o dia em que o loop temporal terminara.
— Porque é que estás a sorrir assim?
Eu nem sequer me tinha apercebido de que estava a sorrir. Olhei para o
Nick e perguntei:
— Assim como?
Ele riu-se, enrugando os cantos dos olhos daquele modo feliz que eu
adorava.
— Estavas a sorrir de uma forma assustadora — disse.
— Eu não estava a sorrir de uma forma assustadora.
— Estavas sim. — Ele abanou a cabeça e disse com um grande sorriso: —
Como aqueles tarados que gostam de ver desfiles na televisão e vestem
camisolas aos gatos.
Ele estava a citar-se a si mesmo, de um dos Dias dos Namorados
esquecidos, e nem sequer fazia ideia. Juntei-me às gargalhadas provocantes
dele, o ressoar caloroso de felicidade que deveria ter sido sempre o seu som, e
senti-me incrivelmente grata.
Obrigada, Eric.
— Eu não sou tarada. — Aproximei-me dele no assento daquela velha
carrinha. — Sou apenas uma rapariga que está incandescentemente feliz neste
momento.
Os olhos dele encontraram os meus, com um sorriso travesso, e ele disse:
— Qualquer rapariga disposta a roubar uma frase de Austen para exprimir
a sua felicidade é completamente o meu tipo de tarada.
E eu era.
Eu era, sem qualquer dúvida, o tipo de tarada do Nick Stark.
Olhei para o meu braço e sorri. Não conseguia ver a tatuagem através da
camisola e do casaco, mas quase a podia sentir a zumbir. As palavras eram
como uma corrente elétrica a queimar na minha pele.
Tudo na minha vida tinha mudado e, no entanto, eu não tinha nenhum
arrependimento.
I had a marvelous time ruinin’ everything
PLAYLIST
1. Lover (Remix) [feat. Shawn Mendes] | Taylor Swift, Shawn Mendes
2. Let’s Fall in Love for the Night | FINNEAS
3. coney island (feat. The National) | Taylor Swift, The National
4. New Romantics | Taylor Swift
5. betty | Taylor Swift
6. Play with Fire (feat. Yacht Money) | Sam Tinnesz, Yacht Money
7. …Ready For It? | Taylor Swift
8. The Passenger | Volbeat
9. Street Lightning | The Summer Set
10. Sabotage | Beastie Boys
11. Nervous | Shawn Mendes
12. the last great american dynasty | Taylor Swift
13. Ghost of You | 5 Seconds of Summer
14. fuck, I’m lonely (com Anne-Marie) | Lauv, Anne-Marie
15. Lose Yourself | Eminem
16. Amnesia | 5 Seconds of Summer
17. fOol fOr YoU | ZAYN
18. So Damn into You | Vlad Holiday
19. I Don’t Miss You at All | FINNEAS
20. Forgot About Dre | Dr. Dre, Eminem
21. gold rush | Taylor Swift
22. Everything Has Changed (feat. Ed Sheeran) (versão da Taylor) |
Taylor Swift, Ed Sheeran
23. Driving in the City | Brandon Mig
24. The Joker and the Queen (feat. Taylor Swift) | Ed Sheeran, Taylor
Swift
https://open.spotify.com/playlist/4gex4YF0tYiPSuhID55dEY
AGRADECIMENTOS
Obrigada, leitores encantadores, por pegarem neste livro. Foram vocês que
afetaram a minha vida de uma maneira incrível, desempenhando um papel
fundamental na realização do meu sonho, e sinto-me eternamente grata.
Obrigada a Kim Lionetti, a minha incrível agente — por me dares a carreira
dos meus sonhos que estás sempre a tornar melhor. És mais do que eu alguma
vez soube que precisava.
Jessi Smith, a minha editora — a visão que tens para os livros é
simplesmente notável e tenho muita sorte em ter trabalhado contigo. Tu
tornas os meus pensamentos e palavras MUITO MELHORES e estou
EXTREMAMENTE agradecida pela tua experiência.
A todas as pessoas talentosas da SSBFYR e da S&S Canada — Marketing e
Marketing Digital, Publicidade, Vendas, Educação e Biblioteca, Direitos
Subsidiários, Produção, Distribuição —, muito obrigada pelo trabalho incrível
que fizeram neste livro. Liz Casal e Sarah Creech — obrigada por outra capa
de sonho que adoro. Morgan York e Sara Berko — obrigada por
supervisionarem os detalhes do processo e garantirem que a história se
tornasse um livro de verdade!
Obrigada aos meus amigos da Berklete por me deixarem entrar no vosso
grupo e estar com vocês o tempo todo (também conhecido como chat de
grupo). Vocês tornaram os altos mais altos e os baixos menos baixos e não sei
o que faria sem vocês.
Obrigada a todos os Bookstagrammers, TikTokkers, YouTubers e bloggers; vocês
fazem um trabalho incrível sem qualquer compensação e não sei o que
fizemos para vos merecer. São todos criadores talentosos e incríveis e não vos
posso agradecer o suficiente por tudo o que fazem em nome dos livros. Haley
Pham, adoro-te e aos teus encantadores seguidores.
Lori Anderjaska — és a rebelde mais fixe do sudoeste de Omaha; obrigada
por seres a minha editora do Nebrasca e por me emprestares os nomes dos
teus filhos.
Além disso, obrigada a Taylor Swift, por escrever músicas que parecem
livros.
E a família:
Mãe, és incrível e amo-te mais do que as palavras podem exprimir. Eu não
teria ISTO sem ti.
Pai, sinto a tua falta todos os dias.
Cass, Ty, Matt, Joey e Kate — obrigada por serem seres humanos incríveis
que me deixam orgulhosa e me fazem rir. Acho que são todos muito porreiros,
mas provavelmente isso é apenas porque fui eu que vos fiz.
E KEVIN:
Obrigada por aceitares que o meu lugar feliz é muitas vezes sozinha numa
sala com o meu computador. Obrigada por aceitares que sou péssima nas artes
domésticas e que só trouxe seis receitas para esta relação (ainda não consigo
acreditar nesse número). Todo o interesse amoroso que escrevo é inspirado em
ti, porque todo o interesse amoroso deve ser atencioso, respeitoso, sarcástico,
amável e totalmente hilariante. És, de longe, o meu ser humano favorito, e não
te mereço.

Você também pode gostar