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Bem Casados - Bruna Eloísa
Bem Casados - Bruna Eloísa
Ai meu Deus.
Ai meu Deus.
Ai meu Deus.
Não consigo parar de repetir isso enquanto olho para o estrago que
acabei de causar.
Henrique está com uma mancha enorme na camisa branca de botões.
Uma mancha causada pela garrafa de vinho que derrubei junto das
duas taças que agora são apenas caquinhos destruídos em cima do balcão de
mármore.
É um desastre.
Um desastre causado inteiramente por mim.
Cada dia que passa tenho mais certeza de que me esqueci de entrar
na fila das pessoas sortudas e acabei vindo ao mundo com uma dose extra
de azar.
— Deixa que eu limpo isso!
— Ariela...
— É sério! Não se mexe! — Me afasto para longe da banqueta e
contorno o balcão do minibar, até ficar de frente para Henrique. — Onde
tem um pano?
— Na segunda gaveta.
Me agacho e pego por dois panos, só para garantir. Quando fico
novamente de pé, ele está me olhando com um ar de diversão cintilando nos
olhos. Nem parece que acabei de destruir uma garrafa de vinho que
provavelmente deve custar metade do meu aluguel.
— Você está se divertindo às minhas custas, Henrique Fiore?
— Confesso que eu tinha me esquecido do quão desastrada você
consegue ser.
— É o meu maior charme, mesmo no meio do caos.
Pisco as pálpebras para ele do jeito mais brega possível, arrancando
de Henrique um grunhido esganiçado.
Como eu disse antes, ele nunca sorri, quem dirá dar risada diante das
minhas atrapalhadas, então vou me contentar com os barulhos esquisitos
que saem da sua boca.
Me aproximo mais dele e começo a enxugar o estrago que causei na
sua camisa. Henrique permanece de pé ao meu lado e, a cada vez que minha
mão sobe e desce pelo seu abdômen, sinto os olhos castanho-escuros
queimarem em minha pele.
Depois de cinco esfregadas e uns suspiros cansados sendo proferidos
da minha parte, chego a pior conclusão de todas. Fico com vontade de
chorar na mesma hora.
— Foi muito cara?
— O quê?
— A sua camisa... — Faço um biquinho ao olhar para a mancha. É
bem maior do que pensei e de uma coloração forte demais. O que diabos
tinha nesse vinho? Tinta permanente? — Nem mesmo se eu fosse a fada da
lavanderia conseguiria tirar essa mancha. Provavelmente você vai ter que
jogar no lixo. Se não custar mais de cem reais, talvez eu possa comprar
outra.
Ele passa a mão pelos pontinhos de barba que recobrem a sua
mandíbula e depois pelo bigodinho terrível.
Eu cometeria loucuras com uma navalha na mão só para deixá-lo
sem isso.
Não que seja feio, é só que eu acho que Henrique fica muito melhor
sem esse negócio.
Bigode é aquele tipo de charme que eu dispenso de bom agrado.
— Ariela... — Henrique estala a língua no céu da boca e tira o pano
da minha mão, que agora também está bordô. É um desastre que nunca
parece ter fim. — Você derrubou um vinho, quebrou duas taças e está
preocupada com a minha camisa?
Levo a mão à boca.
Ai meu Deus.
— Eu posso pagar também. Você aceita parcelamento em dez vezes
sem juros no cartão de crédito?
Ele sacode a cabeça em discordância e joga a garrafa dentro do lixo
atrás de nós. O barulho do vidro atingindo o fundo se assemelha muito ao
valor da minha conta bancária depois de hoje à noite.
E olha que eu achava que o pior que poderia acontecer neste mês de
outubro seria o meu encontro fracassado com o Murilo.
Eu não poderia estar mais enganada.
— Não. Eu não aceito.
Faço uma careta de desagrado.
— Posso fazer trufas de morango por cinco anos para você
totalmente de graça como forma de pagamento. O que acha? Sei fazer
também bombons de uva. Esses são os favoritos dos noivinhos.
Ele enxuga as mãos no pano que está limpo e começa a desabotoar
os primeiros botões da camisa.
— Não sei onde você está querendo chegar com essa conversa,
Ariela.
— Estou te dando opções de quitar a minha dívida depois desse
prejuízo que causei. Você ainda gosta de brigadeiros de maracujá? Eles
agora são a minha especialidade número um e...
As palavras morrem dentro da minha boca quando Henrique
simplesmente termina de desabotoar todos os botões e a joga no lixo.
Eu tento não olhar.
Juro que tento.
Mas é humanamente impossível.
A última vez que o vi sem uma peça de roupa cobrindo boa parte do
seu corpo foi a cerca de dois anos, quando o encontrei correndo na orla da
praia enquanto levava os cachorros da Cibele para passear. Mesmo de
longe, tive um pequeno vislumbre do que uma academia + aulas de Krav
Magá são capazes de fazer.
Henrique tem os músculos corporais bem definidos, com os
gominhos se destacando de um jeito tímido no abdômen e veias
proeminentes por toda a extensão dos braços. As tatuagens estão espalhadas
ao longo da sua pele, se concentrando principalmente nos bíceps e nos
antebraços.
É bem mais bonito do que eu gostaria de admitir.
Vou dormir hoje à noite pensando nisso e ter consciência desse
pensamento me aterroriza de dez mil jeitos diferentes.
Não vai ter jeito.
Vou ter que tomar um litro inteiro de chá de camomila.
— Você jamais vai ser um prejuízo para mim, Ariela — murmura
naquele tom monótono de sempre, totalmente alheio ao fato de que está sem
camisa na minha frente. — Não precisa me pagar nada.
— Eu insisto.
— Não, você não insiste.
Henrique se estica sobre o balcão, recolhendo os cacos das taças que
quebrei. Desvio o olhar na mesma hora pelo bem da minha saúde mental.
Não quero arruinar por completo as poucas horas de sono que ainda me
restam.
— Por que você nunca me deixa fazer as coisas do jeito que eu
quero?
Ele me lança um olhar de lado.
O roxo causado pelo soco, pelo menos, já não está mais tão terrível.
— Porque você tem uma tendência terrível de tomar as piores
decisões. — Ele coloca os cacos de vidro dentro do pano sujo de vinho e o
joga no lixo também. — Esqueça essa história de me pagar. As trufas de
morango já são o suficiente para mim.
— Nada de bombom de uva e brigadeiros de maracujá?
— Você está querendo que eu passe a noite no hospital de novo, por
acaso?
Meu rosto se contorce em uma expressão de mágoa. Então,
segundos depois, entendo o que Henrique acabou de fazer.
— Você está fazendo uma brincadeirinha comigo?
É algo inesperado e até um pouco estranho, porque essa versão de
Henrique é uma que não vejo há muito tempo.
Depois dele me jogar dentro do armário do esquecimento e retornar
como uma pessoa totalmente diferente da Itália, eu meio que obriguei a
minha cabeça a apagar qualquer memória feliz relacionada a amizade que
tínhamos.
No entanto, existem alguns momentos que me levam diretamente
para essa época que eu custei tanto para esquecer.
As noites que passávamos assistindo programas de culinária no meu
computador capenga.
As tardes em que eu o obrigava a experimentar as novas receitas que
eu estava tentando aprender.
As manhãs em que ele me dava carona até a universidade só porque
odiava me ver andando embaixo do sol logo cedo.
Esses momentos são um pesadelo.
Porque esse Henrique em específico não existe mais.
Agora ele faz mais o tipo que odeia tudo e todos.
Inclusive a mim.
— Estou enferrujado, né?
Mordo o interior da bochecha para refrear o sorriso que insiste em
crescer em minha boca.
— Enferrujado é pouco. Vou até tomar o reforço da minha vacina
antitetânica.
— Você se acha muito engraçadinha.
— Eu? — Aponto o dedo para o meu peito. — Você quem está
tentando relembrar o seu tempo de piadista comigo. Vai virar comediante,
Henrique? Porque, sendo bem sincera, acho que a carreira de chefe de
cozinha combina bem mais com você.
— Anos atrás você não tinha nenhuma dificuldade em rir das minhas
piadas.
— Anos atrás você era engraçado. — Aponto para o seu peitoral nu.
Não estou olhando, é claro. — Agora você só é taciturno e muito ranzinza.
— São os 30 anos batendo na minha porta. Quando você fizer 28
anos, vai entender do que estou falando.
— Eu sou naturalmente risonha, Henrique. Os anos amargos da
velhice jamais vão apagar o meu brilho.
Dou uma piscadinha divertida para ele.
A reação que recebo como sempre, é um revirar de olhos.
O dia que eu conseguir arrancar uma risada dele vai ser como ganhar
na loteria. Até porque, na minha concepção, é humanamente impossível
toda a dose de alegria e felicidade ter sido drenada de dentro do seu corpo.
A Itália não pode ser assim tão amarga, né?
— Vou me lembrar disso quando você estiver com 75 anos
alimentando o seu gato peludo e reclamando que não conseguiu ganhar um
liquidificador no bingo das amigas.
— Na verdade, quando a terceira idade bater eu quero ter um
pinscher chamado Alfredo. E eu só ficaria triste se não ganhasse uma
batedeira no bingo. Uma batedeira planetária, então... Me renderia três
noites de choro contra o travesseiro.
— Fico preocupado que você já tenha esses pensamentos aos 24
anos de idade.
— Gosto de planejar o futuro.
Henrique retorna para a adega de vinhos e pega de lá outra garrafa.
Pelo próprio bem dele, espero que essa garrafa seja mantida bem longe de
mim.
Quebrar uma foi azar.
Mas quebrar duas já pode ser considerada filha da putagem.
— E aquele seu sonho de se casar e ter uma casa com piscina? —
pergunta em um tom esquisito, de costas para mim. — Ainda continua de
pé?
Impulsiono o meu corpo para cima e me sento sobre o balcão de
mármore, as pernas balançando no ar. Daqui, consigo ver com perfeição
Henrique abrindo a garrafa de vinho e pegando duas taças limpas no
armário.
Quase solto uma risada quando noto que uma delas é de plástico.
— Eu não estaria aceitando sair com caras desconhecidos se não
estivesse em busca de um relacionamento — esclareço quando ele me
entrega a taça. — Então, sim. Esse sonho continua de pé.
Vejo a cabeça dele balançar em concordância e antes que eu possa
refrear a curiosidade que queima dentro de mim, acabo fazendo a temida
pergunta:
— E você? Ainda pensa em se casar e construir uma família?
As orbes inexpressivas se fixam em meu rosto.
É estranho pensar que um dia eu imaginei que seria Henrique o cara
que me esperaria no altar usando um lindíssimo terno e gravata e me faria a
mulher mais feliz do mundo inteiro.
A mente da gente às vezes viaja longe demais.
A minha, se eu não me cuidar, é capaz de ir até Júpiter.
— Não é o meu objetivo no momento.
— E qual é agora?
Henrique enche a minha taça de vinho até a metade.
— Focar no trabalho e tornar o meu restaurante mais reconhecido.
O Bacio Di Sole conquistou um espaço de respeito nos últimos dois
anos entre os moradores e turistas que visitam Santa Clara. Sei disso
porque, pelo menos uma vez por semana, escuto alguém comentar sobre os
pratos deliciosos que Henrique oferece no seu cardápio.
Minha mãe, por exemplo, é uma fã de carteirinha.
Se ela não passasse quase 90% do tempo viajando de cidade em
cidade com o meu padrasto, provavelmente estaria por aqui todos os finais
de semana exaltando o talento absurdo dele na cozinha.
E eu não discordo.
Henrique é muito bom.
Muito bom mesmo.
— Reconhecimento maior tipo cozinhar com a Ceci Braga?
— Esse é o seu sonho, Ariela — diz, enchendo a própria taça e
bebendo um gole do vinho. Os olhos permanecem grudados em mim. — Eu
gosto de manter os pés no chão. Conseguir conquistar uma clientela fiel já é
bom o bastante para mim. Ter um programa de televisão não faz muito o
meu tipo.
— Virou um cara tímido agora?
— Reservado, eu diria. Mas você provavelmente não vai concordar
comigo — murmura em um tom divertido que me deixa com vontade de
sorrir. — Deve haver uma definição terrível sobre esse meu traço de
personalidade de acordo com o seu dicionário.
— Vou te dar uma colher de chá porque estou te fazendo abrir dois
vinhos em uma única noite. Isso vai causar um rombo na minha conta
bancária. Já te falei que só tenho cinco reais no bolso.
— Não precisa se preocupar. Quem está pagando a conta hoje sou
eu.
— Está sendo cavalheiro comigo, italianinho?
O cenho dele se franze.
— Eu detesto quando você me chama assim.
Cruzo as pernas e solto uma risada nasalada.
— Eu te desafio a dizer algo que você não detesta, Henrique.
Como de costume, ele não me dá nenhuma resposta de imediato.
Henrique apenas me observa com aquela expressão impossível de
decifrar combinada com o cruzar dos braços sobre o peitoral que —
adivinha? — continua completamente nu.
Se ele quer me deixar com insônia, está conseguindo cumprir essa
tarefa com êxito.
— Cachorro salsicha, café preto sem açúcar, trufas de morango, lista
de compras do supermercado e Vasco da Gama.
— O quê?
— Fiz o que você me pediu — esclarece. — Essa é a minha lista de
coisas que eu não detesto. Sua vez agora, Ariela.
— Devo me sentir lisonjeada por você não odiar as minhas
maravilhosas e irresistíveis trufas?
— Sim, porque esse é o máximo de elogio que você vai receber de
mim na noite de hoje.
— Sempre um cavalheiro. Da próxima vez, vou trazer trufas de brita
— resmungo em um mau humor fingido. — Mas essa é fácil: chá de
camomila, bandeja de morangos, pizza de calabresa na promoção, imã de
geladeira e a lasanha de bolonhesa da sua avó.
— É um insulto você colocar a lasanha da minha avó e a tenebrosa
pizza congelada de supermercado na mesma frase. Chega a ser um crime
contra a culinária italiana, Ariela.
— Um crime que eu cometo de bom grado, tá? Mas não se
preocupe... — Dou um cutucão de brincadeira no seu ombro. — Quando eu
ficar milionária, vou te contratar como meu cozinheiro particular.
— E quem disse que eu vou aceitar?
— Vai deixar essa bela princesa aqui passando fome? Que homem
cruel você é, Henrique.
Henrique tensiona a mandíbula e desliza as íris para baixo, me
analisando quase em câmera lenta. Primeiro começando pelo rosto, depois
descendo para os ombros nus, se demorando nas pernas descobertas pelo
vestido azul marinho e por fim nas tiras da sandália que se enrolam ao redor
do tornozelo.
Quando os olhos retornam para cima, sinto como se estivesse
pegando fogo de dentro pra fora.
Minhas bochechas devem estar mais coradas que os tomates que ele
guarda na geladeira.
— Quem vai acabar passando fome vai ser eu, Ariela.
Passo a língua pelos dentes.
Se há segundas intenções por trás dessa frase, deve ser coisa da
minha cabeça.
Henrique não é do tipo que flerta.
Ainda mais se for comigo.
— Não precisa se preocupar, prometo te dar uns docinhos com
pouco açúcar como forma de recompensa — digo em um tom brincalhão.
— Seu fígado vai estar seguro comigo.
— Com você falando desse jeito, até parece que eu sou um cachorro
em fase de adestramento.
Eu até tento segurar, mas dessa vez a gargalhada me escapa em alto
e bom som, preenchendo todo o silêncio do restaurante vazio. Quando
consigo me recuperar, após enxugar algumas lágrimas que me escaparam,
Henrique está com o corpo apoiado contra o balcão e a sombra de um quase
sorriso brinca em sua boca.
— Tinha me esquecido de como pode ser divertido conversar com
você quando não está se metendo em um milhão de confusões.
Sua frase faz algo dentro de mim se agitar que prontamente afogo
com um gole da bebida alcoólica.
De novo não.
— Acho que posso dizer o mesmo. Quando você não está exibindo
por aí a sua personalidade emburrada, até que é legal aturar a sua presença.
A resposta dele é dar uma mordida na minha trufa de morango.
É só horas mais tarde, depois de ter bebido duas taças inteiras e
falado as aleatoriedades mais absurdas, é que percebo que Henrique não me
serviu qualquer vinho.
Ele me serviu o meu vinho favorito.
INGREDIENTES:
500g de carne moída
3 colheres (de sopa) de óleo
3 xícaras (de chá) de molho de tomate
120ml de polpa de tomate
240ml de água
1 ½ de cebola picada
4 dentes de alho
Cominho em pó, sal, pimenta-do-reino e orégano a gosto
300gr de massa de lasanha
250g de queijo mussarela fatiado
250g de presunto fatiado
50g de queijo parmesão ralado
Se eu não conhecesse a minha avó tão bem, até diria que ela está
devendo dinheiro para um agiota e o único jeito de pagar essa dívida é me
arrastar para o altar da igreja com uma das netas das suas amigas do bingo,
enquanto faço mil e uma promessas diante do padre Bentinho.
Porque somente isso é capaz de justificar a tortura que passei nessas
últimas quatro horas.
Como prometido na semana passada, vim almoçar na casa da tal
Dorotéia e conheci a sua filha Daniela.
Ela é professora de italiano em uma escola de idiomas e, no tempo
livre, é atendente na loja de uma amiga de infância. Gosta de ler o jornal
pela manhã, assistir filmes de romance após o expediente de trabalho e
visitar a sobrinha de cinco anos nos feriados.
Parando pra pensar, até que a gente tem algumas coisas em comum.
Mas é só isso.
Se saíssemos para um encontro de verdade, Daniela terminaria a
noite com a mesma certeza que a minha após esse almoço: é melhor
pararmos por aqui.
— Já sei o que você vai dizer e, como eu sou uma idosa de 80 anos,
vou fingir que não estou ouvindo — minha avó resmunga assim que
estaciono a caminhonete na garagem da sua casa. — Afinal, tenho que estar
sorridente e bem humorada pra ver o Silvio Santos na minha televisão hoje
à noite.
Ergo as mãos em rendição ao abrir a porta do carro para ela.
— Eu não falei absolutamente nada.
Ela arruma a bolsa de crochê ao redor do ombro e me direciona uma
careta de desgosto, as rugas causadas pela idade se acentuando em sua pele
branca.
— E você nem precisa abrir esse bico pra mim, Henrique. Consigo
ver através do rosto bonito que Deus te deu que você detestou a Daniela. —
Um choramingo fingido lhe escapa enquanto caminha até a porta de
entrada. — Do que adianta ser tão charmoso e bem sucedido se não quer ser
fisgado por nenhuma mulher?
Cruzo os braços.
Lá vamos nós ter a mesma conversa pela milésima vez.
Desde que fiz 28 anos, tenho essa discussão com a minha avó pelo
menos uma vez por semana. E, todos os meses, cedo às suas insistências e
acabo conhecendo uma das filhas ou netas das suas amigas. No final,
voltamos para casa com ela chateada porque mais uma vez a sua tentativa
de me arranjar uma namorada não deu certo.
— Detestar é uma palavra forte demais. Eu só não gostei, é diferente
— explico. — E nós já tivemos essa conversa, vovó. É claro que eu quero
me casar, mas não agora. Tenho a vida toda pra isso.
Ela revira os olhos e insere a chave na fechadura da porta.
— Você nunca gosta de ninguém, Henrique. Esse é o problema —
murmura em um tom sabichão e dá um passo para dentro. Faço o mesmo,
acendendo as luzes da cozinha. — Beleza não dura para sempre. É melhor
garantir o seu par enquanto ainda está com tudo em cima. Rugas e cabelo
branco afastam as melhores pretendentes, sabia disso?
— Existe uma solução hoje em dia pra isso: sugar daddy.
Quase que automaticamente, Matilda saí correndo do quarto,
abanando o rabo e pulando nas pernas da minha avó. Ela late, implorando
por atenção. Com um sorriso, Antonella a pega no colo e se senta em frente
a minúscula mesinha.
Matilda se acomoda entre as pernas da minha avó e olha para mim,
toda manhosa.
Ainda não me esqueci que dois dias atrás ela fez xixi em cima dos
meus sapatos.
Foi um péssimo jeito de começar a manhã.
Cachorros salsichas não tem muita educação mesmo.
— Tenho certeza que se eu perguntar o que significa vou perder os
poucos fios de cabelos que ainda me restam.
Balanço a cabeça em resposta e encho a chaleira de água para
preparar o seu chá.
Minha avó mora sozinha desde que saí de casa. Ofereci várias vezes
dar de presente para ela um apartamento para que ficássemos mais perto um
do outro, já que me mudei há alguns anos para a região gastronômica de
Santa Clara por conta do restaurante, mas Antonella é totalmente contra a
ideia.
E eu me preocupo demais com ela.
Afinal, Antonella é a única família que tenho.
Se um dia eu perdê-la por uma falha minha que poderia ter sido
evitada, jamais vou me perdoar.
— E a Sabrina?
— Quem?
— A Sabrina, a médica veterinária. — Ela faz carinho na cabeça de
Matilda. — O que você acha dela?
Aperto a ponta do nariz e solto uma longa lufada de ar, procurando
por qualquer dose de paciência que ainda possa restar dentro de mim.
Minha avó não vai desistir mesmo.
Estou quase contratando uma atriz para fingir ser a minha namorada
só para conseguir me livrar desse pepino que é ser um cara solteiro aos 28
anos.
Porque se continuarmos nesse ritmo — com Antonella me
carregando para os piores almoços de domingo já presenciados pela
humanidade — eu vou terminar o ano recluso dentro de uma caverna
cozinhando somente para mim mesmo.
E aí que não vamos ter casamento nenhum.
— Eu acho que é uma péssima ideia.
Minha avó leva a mão ao coração.
Matilda late, quase como se entendesse o rumo da conversa.
— Por que? Ela é tão parecida com você, Henrique... Vocês seriam
almas gêmeas perfeitas e me dariam os bisnetos mais lindos do mundo
inteiro. — Finge limpar uma lágrima que escorreu por sua bochecha. Se eu
já não estivesse acostumado com esse seu comportamento, até poderia ficar
comovido. — Você realmente vai me negar isso? Meu sonho é ter a minha
casa cheia de crianças de novo.
— Posso anunciar uma vaga de babá em seu nome na rádio, se esse
é o problema.
Antonella me lança um olhar de ultraje.
— Você é o meu pior neto de todos, Henrique.
— Eu sou o único neto que você tem, Antonella.
— Isso é pra você ver como eu sou azarada.
Solto um barulho pela garganta, nada semelhante a uma risada, e
encho uma das xícaras com o seu chá favorito. Logo em seguida, entrego o
líquido fumegante para ela. Matilda dá uma cheiradinha, mas ignora,
voltando a deitar a acomodar a cabeça entre as pernas da minha avó.
— Reclame menos e beba mais. — Beijo a sua testa. — Bem lá no
fundo sei que você ama me ter como seu único neto. Admitir isso não vai te
fazer perder cabelo.
— É claro que não. Só vou perder todas as minhas amigas se você
continuar chutando a bunda de cada uma das filhas e netas delas como se
fossem bolas de futebol.
Olho para ela com uma expressão chateada.
— Não estou chutando a bunda de ninguém.
— Mas também não está fazendo carinho, o que é mais péssimo
ainda.
— Você está fazendo todo esse drama só porque eu não convidei a
Daniela para um encontro?
— Ela ficou esperando...Você viu a carinha que ela fez assim que
entramos no carro? — Minha avó faz um biquinho semelhante aos que
Ariela me direciona quando minha resposta não lhe agrada. — Você partiu
o coração dela, Henrique. Quase pude ouvir os caquinhos se quebrando.
Não fico nem um pouco comovido.
As chantagens emocionais da minha avó não me enganam mais.
— Daniela vai se recuperar. Mas posso apresentar o Cadú para ela,
se isso for de alguma ajuda.
— Cadú? O filho da Margarida?
— Sim, ele próprio. O Cadú iria amar conhecer a Daniela. Eles dois,
sim, que seriam o par perfeito — digo, jogando esse pepino pra cima de um
dos meus melhores amigos de infância. Ele que lide com as expectativas
absurdas da minha avó em relação ao amor. — Posso perguntar o que ele
acha de um almoço de domingo na casa da Dorotéia. E aí você pode falar
com ela também. Pode ser?
Os olhos da minha avó se iluminam.
Quase posso ver os cenários se formando em sua cabeça: Cadú de
terno e gravata no altar, Daniela entrando na igreja com o maior buquê de
flores da floricultura e o bolo de dois andares enfeitado do jeito mais brega
possível.
Para ficar ainda mais emocionante, Antonella ainda faria um
discurso dizendo que foi a responsável por fazer duas almas perdidas
encontrarem o significado do amor verdadeiro.
Um arrepio me atinge só de pensar nesse assunto.
— Estou sentindo as energias voltando para o meu corpo depois
dessa notícia. — Antonella se abana com a mão, me lançando um sorriso
feliz. É fácil demais agradá-la. — Você até pode ser o padrinho! Mas você
sabe que vai precisar de uma acompanhante, né?
Ela balança as sobrancelhas grisalhas para mim.
É surreal o dom que a minha avó tem de fazer todos os assuntos se
voltarem para mim. Eu só queria ter um domingo de paz em que almoço
uma lasanha bolonhesa e esqueço todos os problemas envolvendo o Bacio
Di Sole.
— Vou levar a Leana. O que acha?
— A Leana está noiva da Elisa, Henrique. Seria muito deselegante
da sua parte.
— A Melissa, então?
— Ela está namorando com o Miguel. Ele fez o pedido na semana
passada enquanto eles dois faziam um passeio de barco em São
Bartolomeu. Não ficou sabendo?
Não.
As fofocas do bairro não me interessam nem um pouco.
Mas não digo nada disso.
Magoar o coração da minha avó é algo que jamais vou fazer.
— E a Lizi?
— Ela se mudou para Nova Granelle depois que conseguiu aquela
bolsa de estudos para fazer mestrado. — Bebe um gole do seu chá e me
observa através da borda da xícara. Fico até com medo de saber o que está
se passando na sua cabeça. — E a Ariela?
É como levar um chute nas bolas.
— Não. Eu não vou convidar a Ariela para ser minha acompanhante
no casamento do Cadú — resmungo, voltando para o fogão e preparando
um chá para mim também. Se vamos ter essa conversa, que seja com a
minha boca amortecida da água quente. — Casamento que nem vai
acontecer, pra começo de conversa.
— Daniela jamais negaria o pedido do Cadú. E a Ariela aceitaria de
bom grado o seu convite. Vocês ficam tão bonitinhos juntos... — divaga, me
lançando um olhar esperançoso. Matilda também me olha, me julgando
com seus olhinhos castanhos, que são idênticos a cor do seu pelo curto. —
Por que você nunca chamou ela pra sair? Se me lembro bem, vocês dois
eram bem amigos na época da faculdade.
Se o objetivo dela é acabar com o meu domingo, ela está tendo êxito
na sua tarefa.
— Ela é a irmã do Gustavo. Esse já é um motivo grande o bastante
para eu manter distância dela.
— Que bobagem. Romances proibidos são sempre os mais gostosos.
Encaro-a totalmente chocado.
— Você está querendo me contar alguma coisa?
— Já fui jovem que nem você, querido. É claro que tive minhas
aventuras proibidas também. Ou você acha que sou naturalmente idosa e
cansada desde sempre? — Bate com a língua no céu da boca, indignada. —
A beleza da juventude me caia muito bem. Eu era um colírio para os olhos e
tirei muito proveito disso. Se eu tenho essa casa hoje em dia, é porque eu
soube conquistar o coração do seu avô com o meu charme.
— Se você vai começar a falar das suas aventuras sexuais, eu vou
embora.
— Que bobagem, Henrique! Estou apenas dizendo que, de vez em
quando, vale a pena se arriscar no território inimigo.
— Não sei se estou entendendo as suas analogias.
Ela dá um longo suspiro e fica de pé, deixando Matilda deitada na
almofada e depois caminhando até mim. As mãos cobertas de anéis
repousam em meus ombros e os olhos esverdeados encontram os meus,
exalando aquela dose infinita de amor que nunca me faltou.
Minha avó pode ter vários defeitos, mas ela assumiu com maestria o
papel de me criar quase como o seu filho em todos esses anos.
É por causa de todos os sacrifícios que já fez por mim que não solto
um palavrão bem feio quando ela diz:
— Estou dizendo para levar a Ariela como sua acompanhante no
casamento do Cadú.
— Caso a senhora tenha se esquecido, o Cadú ainda nem saiu com a
Daniela.
— Eu sei disso, mas é tudo uma questão de tempo. Quando você
menos esperar, vai ter um convite de casamento batendo na sua porta.
Antonella me direciona uma piscadinha sabichona.
Matilda late, quase como se concordasse com a sua dona.
E o que eu faço? Apenas balanço a cabeça em um aceno, porque
discutir com a minha avó já se tornou uma tarefa falha há muito tempo.
Só me resta aceitar que, daqui alguns meses, Cadú e Daniela vão se
casar.
Mesmo que eu duvide muito que isso vá acontecer.
Tenho uma confissão bem horrível para fazer: sou meio maldosa e
um pouquinho cruel de vez em quando.
Aos seis anos, depois do meu irmão roubar todas as figurinhas do
meu caderno da Barbie e colar na parede do seu quarto, arranquei a cabeça
do seu brinquedo favorito como vingança. Guto chorou por dois dias
seguidos, abraçado no corpo decepado do seu Max Steel.
Aos oito, quando meu irmão já estava entrando na fase de pré-
adolescente chato que me fechava dentro do quarto só para me ouvir
gritando até quase chorar, me vinguei furando a bola de futebol que ele
tinha ganhado de aniversário da nossa avó. Guto ficou sem falar comigo por
quase um mês.
Aos catorze, as nossas provocações já eram piores: falei para a
ficante dele na época que ele trocava de cueca somente uma vez por semana
e nunca lavava as meias que usava. Carol terminou com ele dois dias
depois. A vingança? Gustavo jogou no lixo a minha revista da Capricho
que tinha o Edward Cullen na capa.
E por que estou me lembrando de tudo isso?
Porque o meu irmão, irritante e protetor do jeito que é, está me
fazendo pensar em dez maneiras diferentes de me vingar dele assim que
chegar em casa.
Tacar fogo nas suas roupas?
Encher a sua cama de aranhas de plástico?
Colocar descolorante no seu shampoo?
Vender a sua coleção de carrinhos no Mercado Livre?
As possibilidades são imensas, mas nenhuma me parece boa o
bastante.
— É como nos velhos tempos, Ari — ele diz ao se sentar no banco
do passageiro e ligar o rádio. — Eu, você, Henrique, Leana, Elisa e a
desagradável da Ísis indo no Kantando Karaokê depois de um dia exaustivo
de aula.
Fico com vontade de bater com a minha cabeça no volante.
— Você não tem coisa melhor para fazer em uma terça-feira à noite?
Ele sorri, exibindo a covinha do lado direito da bochecha.
— Acompanhar a minha irmãzinha do coração é o plano perfeito
para me divertir logo no começo da semana.
Canalha.
Não vou só tacar fogo nas roupas dele, como também em todas as
cuecas, sapatos e meias. Guto só vai conseguir sair de casa com uma toalha
enrolada no quadril.
— Coloca a droga do cinto e vamos logo, então.
Dou a marcha ré e saio do estacionamento do prédio em que
moramos, seguindo em direção ao apartamento que minha melhor amiga
mora. Menos de dez minutos depois, estou buzinando em frente ao portão.
Ísis aparece logo em seguida, usando um shorts jeans desbotado,
uma regatinha fina que evidencia o contorno dos seus seios e um par de
sandálias com tiras. Ela entra no carro e se acomoda no banco de trás, tão
empolgada que me sinto como uma velha ranzinza que chuta crianças.
Será que estou passando tempo demais com o Henrique e ficando
tão mal humorada quanto ele?
— Fazia tanto tempo que não íamos mais ao Kantando Karaokê que
estou me sentindo como se tivesse 20 anos de novo. — Ísis praticamente
saltita de tanta animação e dá um cutucão no ombro do meu irmão. — Está
preparado para ser derrotado novamente no duelo de talentos, Gustavo?
— Você não vai me ganhar dessa vez, Ísis Maria — declara,
olhando-a sobre o ombro. — Aquela vez você trapaceou, porque a sua voz
de taquara rachada é capaz de quebrar todos os espelhos do banheiro.
— Pode continuar falando essas baboseiras, porque não vai me
afetar. Eu sei que sou talentosa e a Ari está de prova. Não é mesmo, amiga?
— A pessoa mais talentosa do Brasil — provoco, só para ver meu
irmão se contorcer de raiva. — O The Voice está só esperando você se
candidatar para entregar o prêmio em suas mãos.
Gustavo relincha feito um cavalo do meu lado.
— Você é minha irmã! Deveria estar do meu lado e não do lado
dela!
Dou de ombros e volto a dirigir, agora seguindo rumo a casa de
Leana e Elisa. Henrique vai ficar por último, já que mora próximo da área
gastronômica da cidade. Quero só ver a cara feia que ele vai fazer quando
ver o carro lotado de gente.
Se formos parados pela Polícia, vou acabar descumprindo a única
promessa que fiz de não acabarmos a noite em uma cela de prisão.
Ops.
— É o preço que você paga por se intrometer na minha vida feito
uma toupeira.
— Fico depressivo vendo que você não quer mais sair comigo, Ari.
Mordo o interior da bochecha.
Quando Gustavo decide apelar pro lado sentimental, fico com
vontade de dar um chute na minha bunda e depois na dele, porque sei que
ele tem razão. Estivemos tão ocupados nas últimas semanas que nem
saímos mais para beber cerveja no barzinho lá perto de casa ou para assistir
um filme brega de baixo orçamento enquanto comemos pizza congelada no
chão da sala.
Meu irmão pode ser meio chato na maior parte do tempo, mas eu
ainda o amo mais que tudo no mundo. Não sei o que seria de mim se não o
tivesse ao meu lado todos os dias.
Essa é a droga de ter irmãos. Ao mesmo tempo em que você quer
esganá-los, também quer abraçá-los e protegê-los de todas as desgraças do
mundo.
— Isso não é verdade, Guto.
— Então, não reclame de eu estar aqui com você hoje, irmãzinha.
— Você e mais três pessoas, né?
— Está estressadinha por que? A noite de hoje era para ser um
encontro romântico entre você e o Henrique?
Ísis se engasga atrás da gente.
— Como assim? A gente vai ficar de vela?
Gustavo olha para trás, assustado.
— Não tem como ficar de vela se eles não são um casal, Ísis Maria.
Ela ergue as sobrancelhas ao mesmo tempo em que estaciono o carro
rente ao meio-fio. Dou uma buzinada, torcendo para que Leana e Elisa
venham logo. Essa conversa precisa acabar o mais rápido possível.
— Eles vão se casar, Gustavo. É claro que eles são um casal.
— É um casamento por conveniência.
— Ainda é um casamento. Você já viu o anel gigante na mão dela?
Escondo a mão embaixo da bunda.
Gustavo semicerra os olhos na minha direção na mesma hora.
— Desde quando você tem um anel de noivado?
— Desde que ela ficou noiva, sabichão.
Ele ergue o braço em um sinal para que minha amiga fique quieta.
— A conversa ainda não chegou no galinheiro, Ísis.
Ela dá um gritinho irritado e enfia o dedo indicador dentro do
ouvido dele.
Gustavo se esquiva para o lado, soltando um palavrão.
Se eu conseguir sobreviver a essa noite, será um milagre.
Estou prestes a mandar os dois calarem a boca quando a porta
traseira é aberta. Leana e Elisa lançam um olhar curioso na nossa direção,
como se fossemos bichos de zoológicos que escaparam na calada da noite.
— O que está acontecendo aqui?
Ísis se afasta do meu irmão na mesma hora.
— Fui chamada de galinha.
Elisa franze as sobrancelhas loiras que são do mesmo tom do seu
cabelo liso.
— Tipo a Galinha Pintadinha?
Leana dá um cutucão no ombro da noiva.
— Eu diria que é mais a Ginger de A Fuga das Galinhas.
— O único que pode responder qual o tipo de galinha de que
estamos falando é o Gustavo — digo, fazendo um sinal para elas entrarem
no carro. Leana e Elisa se acomodam em seus devidos lugares e fecham a
porta. — E aí?
Todo mundo olha para o meu irmão.
Ele somente dá de ombros.
— Toda galinha não é igual?
— Existem diferentes raças de galinha — Leana começa. — Sedosa,
Brahma, Legorne, Polonesa, Serama e por aí vai...
Gustavo coça o queixo.
— Não existe galinha vira-lata? Tipo o cachorro caramelo?
— Claro que existe, Gustavo. A Galinha Pintadinha é uma delas.
Dessa vez eu não me aguento e acabo gargalhando.
Essa é, sem sombra de dúvidas, a conversa mais aleatória que já tive
em toda a minha vida.
— Posso saber como é que chegamos nesse assunto? — Elisa
pergunta quando começo a dirigir em direção a casa de Henrique. — Eu
ainda estou meio sonolenta porque acabei de voltar de uma plantão de 24h
no hospital, então não abusem demais dos meus poucos neurônios restantes.
Diferente da maioria de nós que seguiu na carreira gastronômica,
Elisa Campos é médica pediátrica no HGSC. Todo mundo achou que
quando ela engravidou da Nina na faculdade, o sonho de seguir na medicina
iria por água abaixo.
Não poderíamos estar mais enganados.
Elisa seguiu firme e forte com a ajuda da família, dos amigos e
também do meu irmão. Me lembro até hoje de quando fez o discurso na
noite de formatura agradecendo a todo mundo que contribuiu para que ela
conseguisse chegar até ali, mesmo sendo mãe tão jovem.
Tenho orgulho demais dela.
Tanto por ser considerada uma das melhores médicas pediátricas da
cidade, como também por não ter receio nenhum de assumir diante de todos
que foi mãe jovem, que se descobriu como uma mulher bissexual já adulta e
que possui um relacionamento estável com uma mulher lésbica.
— Tudo isso começou porque o Henrique comprou um anel de
noivado para a Ariela e...
Ísis não consegue terminar de falar, porque Leana solta um gritinho
estridente e Elisa dá um pulo no assento, quase batendo a cabeça no teto do
carro.
— O quê?!
— Não é nada demais. — Reprimo a vontade de esconder a minha
mão embaixo da bunda de novo. — Precisávamos de um anel para
convencer o máximo de pessoas que essa história de casamento de última
hora é real. Eu sugeri a ideia e ele comprou.
Noto, através do retrovisor interno, Elisa abrir um sorrisinho.
— Simples assim?
— Precisa ser burocrático?
— Ah, não sei... O Henrique nunca faz nada por ninguém — Leana
é quem responde, olhando para a minha mão que segura o volante. — É
surpreendente ele ter comprado um anel tão bonito para um noivado que vai
durar menos de um mês.
Gustavo bufa.
— Vocês podem parar de querer transformar isso em algo maior do
que realmente é? É somente um anel, garotas.
Ísis bate com a língua no céu da boca.
— Homens... Nunca vão entender a magnitude que é ganhar uma
joia de presente.
— E você já ganhou algo assim de alguém, Ísis Maria?
Reviro os olhos diante da Terceira Guerra Mundial que está prestes a
explodir aqui dentro do carro.
Se eu soubesse que a minha terça-feira à noite seria assim, eu teria
mandado uma mensagem para o Henrique e desmarcado o nosso encontro e
colocando a culpa na minha dor de barriga.
Mas não.
Dei com a língua entre os dentes ontem pela noite enquanto
colocava a roupa na máquina de lavar e, num passe de mágica, meu irmão
convidou todo o nosso grupo de amigos para a noite do karaokê que deveria
ser só minha e do Henrique.
Intrometido.
Aposto que ele só está fazendo isso porque morre de medo que eu
acabe no banco de trás da caminhonete do seu melhor amigo. Mas se
Gustavo soubesse as chances minúsculas que isso tem de acontecer, ele
estaria bem menos preocupado.
— E o lema de mais amor e menos ódio? — pergunto, virando na
rua em que Henrique mora. Como ele vai entrar no carro, ninguém sabe. —
Não vale para vocês dois?
Minha amiga revira os olhos.
— Seu irmão é incapaz de sentir qualquer tipo de amor, Ari.
— Acho que a carapuça serve para você também, Ísis Maria.
Antes que minha amiga tenha a chance de responder, estaciono o
carro e afundo a mão na buzina. O som estridente repercute por toda a rua,
fazendo até os meus tímpanos doerem. Meu irmão se contorce do meu lado.
— Não precisava disso, Ariela.
— Foi só para garantir que o Henrique ouviu que a gente chegou.
Ele só sacode a cabeça.
Henrique surge dois minutos depois, usando calça jeans e camisa de
linho. As mangas estão dobradas novamente, deixando à vista as tatuagens
que fazem coisas estranhas despertarem dentro da minha barriga. Abaixo o
vidro, acenando com um sorriso.
— Pronto para se divertir de verdade, italianinho?
Ele olha de soslaio para Gustavo, Ísis, Leana e Elisa.
— Por que está todo mundo no seu carro?
— Longa história... Te explico depois. — Destravo as portas e
indico o banco de trás. — Você vai ter que se espremer, mas aposto que
consegue entrar aí.
Henrique cruza os braços.
— Seu carro é somente de cinco lugares, Ariela.
— Eu sei.
— Seremos parados pela Polícia.
— Pelo menos você vai passar a noite ao lado da sua linda,
maravilhosa e gentil noiva. Quer final de rolê mais perfeito que isso?
Um longo e cansado suspiro é proferido.
— Ariela...
— Eu prometo que vai ser divertido. Posso até te pagar uma
caipirinha com os únicos vinte reais que tenho dentro da carteira. — Pisco
as pestanas. — Você não vai negar esse simples convite da sua noiva, certo?
Ele trinca os dentes.
Mas minutos depois, após uma insistência interminável da minha
parte e dos nossos amigos, meu futuro marido está espremido no banco de
trás do carro enquanto seguimos em direção ao Kantando Karaokê.
Henrique ainda não sabe, mas hoje vai ser a melhor noite das nossas
vidas.
O Kantando Karaokê encontra-se lotado em plena terça-feira.
Quando estávamos na faculdade, vínhamos aqui com uma
frequência absurda. Toda sexta-feira, sem exceção, Gustavo mandava o
emoji de um microfone no grupo e todo mundo já sabia o que significava:
era noite de beber alguns drinques coloridos e cantar até as cordas vocais
doerem.
Eu adorava, principalmente quando chegava a minha vez de exibir
os meus dons artísticos que provavelmente me garantiriam em um futuro
não tão longe um troféu de Melhor Cantora do Ano.
Só que não.
Mas mesmo diante da minha voz desafinada, sempre tentei
convencer o Henrique a subir no palco comigo e cantar Sandy & Júnior.
Ele nunca cedeu, é claro.
Mas hoje isso está prestes a mudar.
— Sem chance, Ariela — ele reclama ao meu lado, enquanto sugo
toda a bebida do meu copo pelo canudinho de guarda-chuva rosa neon. —
Eu não vou cantar Quando Você Passa.
Lanço um olhar chateado em sua direção sobre a borda do copo.
— Por que não?
— Não gosto de cantar.
— Isso chega a ser um crime, Henrique.
Ele recosta a coluna no estofado do banco e cruza os braços.
— Dez anos de cadeia para mim, então. Juntando com o fato de que
estamos prestes a nos casar por benefício próprio, talvez mais um cinco ou
seis anos de pijama laranja. — Ergue os dedos, fingindo contar. — Meus
próximos dezesseis anos estão condenados.
Balanço a cabeça de um lado para o outro.
— Você é muito chato.
— Você conhecia os riscos quando decidiu me pedir em casamento.
Abaixo o copo, deixando-o em cima da mesa.
— Os únicos riscos que estou correndo aqui é ficar tão mal-
humorada, ranzinza e taciturna quanto você — choramingo. — Se
continuarmos assim, vou terminar esse casamento sem qualquer resquício
de felicidade habitando o meu corpo.
— Agora você está sendo dramática, Ariela.
Faço um beicinho.
— Posso ficar dez vezes mais se você não aceitar cantar comigo. —
Olho de relance para o palco, onde Ísis e Gustavo performam Você Me Vira
A Cabeça da Alcione em um duelo. Ela vai ganhar de novo, porque meu
irmão é tão desafinado que dói. — É só uma musiquinha, Henrique... Não
vai te tirar pedaço.
Henrique respira fundo e bebe um gole da sua água com gás e limão.
Consigo sentir seus olhos queimarem em mim.
Desde que chegamos, cerca de quase duas horas atrás, estamos
sentados todos na mesma mesa. Gustavo e Ísis não pararam de se implicar
um segundo sequer, enquanto Elisa e Leana sumiam e voltavam a cada
vinte minutos. Elas já cantaram duas músicas e agora estão na fila para
comprar batata-frita e dadinhos de tapioca para a gente.
Apesar de todo mundo estar se divertindo, Henrique permanece tão
duro e travado quanto uma armadura de guerra enferrujada. Não sei como
ele consegue viver desse jeito.
— Minha resposta continua sendo não.
— Você não vai mudar de ideia nem mesmo se eu me ajoelhar aqui e
pedir por favor?
As íris de Henrique descem em câmera lenta pelo meu corpo até
chegarem na altura da barra do vestido que estou usando. O tecido subiu
alguns centímetros, revelando a pele nua das minhas coxas.
Involuntariamente, fico com vontade de pressioná-las uma com a outra
diante da intensidade que emana do seu olhar.
Cacete.
Deve ter sido a caipirinha de morango que bebi meia hora atrás que
está me deixando tão quente quanto um espetinho na churrasqueira, né?
Aposto que sim.
Não existe outra possibilidade além dessa.
— Não, Ariela. — Ele engole em seco e foca em meu rosto. — Eu
não vou.
— Nem mesmo se eu implorar?
Henrique pigarra.
— Pare com isso.
— De implorar?
Ele sacode a cabeça, negando.
— De fazer a minha cabeça pensar em coisas que eu jamais deveria
imaginar.
Abro um sorrisinho.
— Subir em um palco e cantar comigo te assombra tanto assim,
italianinho?
Escuto-o suspirar ao meu lado e se virar de frente para mim.
— Não é disso que eu estou falando, Ariela.
A expressão que vejo em seu rosto...
Ela vai me assombrar por longas e terríveis noites de carência
masculina.
E o arrepio que logo em seguida se espalha por cada uma das minhas
células...
Preciso urgentemente beber uma bombona inteira de água para
afastar essas sensações esquisitas e inexplicáveis que estão se apoderando
do meu corpo.
O morango do meu drinque está estragado.
Só pode.
Mordo o interior da bochecha e pergunto, as palavras arranhando a
garganta:
— Do que você está falando, então?
Antes que Henrique tenha a oportunidade de me responder, os
aplausos irrompem pelo espaço do Kantando Karaokê e Ísis e Gustavo
retornam para a nossa mesa. Minha amiga está com uma coroa de papel na
cabeça, anunciando a sua vitória. A careta de desagrado do meu irmão
quase me faz esquecer o fato de que um certo par de olhos castanhos
permanecem fixos em mim.
— Como eu disse, venci mais uma vez. — Ísis joga o cabelo
comprido para trás e aponta para o topo da cabeça. — Desista de me
derrotar, Gustavo. Você teve quase quatro anos para se preparar e mesmo
assim fracassou miseravelmente.
— Eu odeio você.
Ela sopra um beijo na direção dele e se vira pra gente.
— E vocês dois, não vão cantar?
— De jeito nenhum — Henrique resmunga.
— Sim, nós vamos! — Fico de pé, esticando um dos braços na sua
direção. — Não vai negar esse mísero pedido da sua futura esposa, né?
Dizem os antigos que isso pode dar verruga no pé.
— Você acabou de inventar isso, Ariela.
— Talvez sim, talvez não... Você não vai querer descobrir por conta
própria, né?
Henrique olha para o teto e depois novamente para mim.
— Não, Ariela. Eu não vou querer acordar amanhã com uma verruga
no pé.
Solto um gritinho e balanço os dedos em um convite.
— Vamos, então?
Depois do que parece uma eternidade, ele entrelaça as nossas mãos e
finalmente, depois de quatro anos, Henrique caminha junto ao meu lado em
direção ao palco do karaokê.
INGREDIENTES:
1/2kg de bucatini
1 xícara (de chá) de molho de tomate
400g de tomate pelado
150b de bacon
2 colheres (de sopa) de óleo de soja
2 colheres (de sopa) de manteiga
1 unidade de cebola
1 colher (de chá) de molho de pimenta
50g de pecorino
Sal a gosto
Aqui vai um fato bem aleatório sobre mim: sou uma pessoa fraca
para bebida.
Quando experimentei álcool pela primeira vez — aos 18 anos, é
claro, porque nesta época eu ainda não era um criminosa que burla as leis
—, já comecei com o pé esquerdo tendo o pior porre da minha vida.
Acordei no dia seguinte no sofá da casa de Ísis com a mãe dela me
encarando com um copo de água e uma aspirina em cada mão.
Depois desse acontecimento, eu cheguei à conclusão que bastava
duas latinhas de cerveja para eu ficar molinha e felizinha além da conta.
Então, durante as festas universitárias, sempre cuidei para não ultrapassar o
limite e ser um incômodo para os meus amigos.
Afinal, ninguém gosta de ser o famoso estraga-rolê.
A única vez, em todos esses anos, que perdi um pouco a linha foi —
adivinha só? — na festa de aniversário de 25 anos do meu irmão.
As memórias que tenho dessa noite são meio bagunçadas.
Eu e Ísis se arrumando no quarto do Henrique na república em que
ele morava naquela época. Meu irmão fazendo uma jarra inteira de
caipirinha e eu enchendo o meu copo várias e várias vezes depois. Elisa
dançando forró com o Cadú enquanto a gente pulava ao lado deles batendo
palmas. Gustavo tirando a camisa e desenhando um coração no abdômen
com um batom vermelho. Henrique me encarando a noite inteira, quase
como se estivesse cuidando de mim.
A última lembrança que tenho é de acordar ainda com o par de
sandálias no pé e Ísis roncando baixinho do meu lado.
Passei aquela tarde inteira encolhida embaixo da coberta tomando
Gatorade, assistindo Bob Esponja e comendo bombons que Henrique tinha
comprado para mim na semana anterior.
Eu não sabia que tinha um encontro para ir.
Quero enfiar minha cabeça dentro de um buraco e chorar até ficar
com o nariz entupido.
— Tudo o que lembro dessa noite são fragmentos, Henrique. Sempre
fui meio fraca para bebida e dei uma exagerada. Passei o dia seguinte
inteiro enrolada na cama recarregando as minhas energias — prossigo
dizendo, minhas mãos ainda encaixadas ao redor dos seus ombros. Quero
puxá-lo para um abraço e enterrar o rosto no seu pescoço. — Se eu
soubesse... Eu teria ido. Porque eu...
Porque eu era louquinha por você.
Porque eu queria que você me beijasse.
Porque eu queria que a gente andasse de mãos dadas na pracinha.
Porque eu queria passar todos os meus finais de semana com você.
Miro o seu rosto.
Meu coração se aperta agora que sabe que se as coisas tivessem sido
diferentes — e eu não tivesse uma memória de peixinho —, provavelmente
Henrique jamais teria ido para aquele intercâmbio.
Jamais teria me ignorado.
Jamais teria se afastado.
Jamais teria achado que eu era uma cuzona sem sentimentos.
— Por quê, Ariela?
Engulo em seco e inclino a cabeça para o lado.
— Porque eu gostava de estar com você. Mas daí você foi embora e
quando finalmente voltou, já não fazia mais sentido nenhum sermos
amigos.
Henrique fica em silêncio.
Um estranho e gigante e assustador silêncio.
Mantenho as íris fixas nas suas, em busca de qualquer mudança de
expressão que possa indicar o que está se passando na sua cabeça.
Porque essa quietude vinda da parte dele está me matando por
dentro.
— Ariela, eu...
Ele não consegue completar a frase.
Eu quase grito por dentro quando Cadú abre a porta da despensa e
diz:
— Desculpa interromper o momento romântico entre o casal. —
Abre um sorriso malicioso. Mal sabe ele que Henrique e eu estávamos bem
longe de dar um amasso gostoso contra as prateleiras. — Mas tem uma
ligação importante de um fornecedor para você, chefe.
Henrique franze as sobrancelhas.
— Você nunca me chama de chefe.
As bochechas dele ficam rosadas.
— Estou querendo ser educado em frente a nossa querida senhora
Fiore.
Meu marido pressiona os lábios em uma linha fina e assente a
contragosto. Antes de sair da despensa, no entanto, ele se curva na minha
direção, os lábios roçando no meu ouvido ao sussurrar:
— Não ache que esse assunto acabou por aqui, Ariela. — Sinto a
ponta dos seus dedos tocar levemente os meus. — A gente termina essa
conversa hoje à noite. Sozinhos.
Dessa vez sou eu quem não respondo nada.
Nem consigo formular qualquer frase coerente, na verdade.
Apenas encaro o rosto de Henrique uma última vez enquanto ele sai
da despensa, me deixando sozinha com um milhão de questionamentos e
sem absolutamente nenhuma resposta.
Eu consegui!
Eu consegui!
Eu consegui!
Quatro dias já se passaram desde que Ceci Braga anunciou o meu
nome e mais o de outros dois confeiteiros no seu programa e ainda sinto
como se estivesse vivendo dentro de um sonho. Naquela primeira noite, mal
consegui dormir direito. Acabei tendo que enfrentar o elefante gigante no
meio da sala e liguei para minha mãe contando sobre o casamento. Ela
ficou abismada, mas feliz ao mesmo tempo. Humberto nos desejou os
parabéns, embora eu tenha sentido uma pontada de mágoa em sua voz por
não ter sido convidado, mas — para mim — foi melhor assim. Menos dor
de cabeça no futuro.
Depois de me despedir deles, Ísis me ligou poucos minutos depois e
Gustavo, quando chegou em casa, até trouxe uma pizza para
comemorarmos.
Henrique já tinha ido embora, é claro.
Mas o jeito que ele me parabenizou fez compensar a sua ausência...
Sim, ele me beijou.
De novo.
E de novo.
E de novo.
A gente se beijou até que as coisas começaram a esquentar de novo.
Se continuarmos nesse ritmo, a minha calcinha provavelmente não
vai sobreviver.
O lado bom de tudo isso é que Henrique prometeu que nada do que
aconteceu entre a gente vai nos atrapalhar no concurso. Estou confiando de
olhos fechados na sua palavra. Até porque, a última coisa que eu quero que
aconteça daqui pra frente é que algo dê errado.
Nada pode dar errado.
Essa é a minha única chance em um milhão e vou fazer de tudo para
conquistar esse prêmio e realizar um dos meus maiores sonhos.
Ter Henrique ao meu lado me enchendo de beijos e me deixando
mais molinha que gelatina é um bônus que vou aproveitar de muito bom
grado.
Mas não estou apaixonada por ele.
Não mesmo.
Esse é um problema que eu não quero ter que lidar.
— Esse é o quarto dos senhores — o atendente do hotel diz
enquanto insere o cartão na fechadura e abre a porta, indicando que
Henrique e eu entremos primeiro. Solto um suspiro de surpresa assim que
meus pés tocam o carpete fofinho na cor creme. — O café da manhã
começa às sete horas da manhã e se encerra às dez e meia. No último andar,
temos SPA, sala de jogos, piscina aquecida com borda infinita, academia e
bar com atendimento 24h à disposição. E para maior comodidade, a
senhorita Braga garantiu que todas as despesas relacionadas ao quarto serão
por conta de sua equipe.
— Agradecemos a hospitalidade, Luigi.
Ele dá um curto aceno de cabeça.
— Se precisarem de qualquer coisa, é só discar o número da
recepção — diz, cordial. — E sejam muito bem-vindos ao Hotel Riviera.
Henrique agradece mais uma vez e então Luigi vai embora,
fechando a porta em um clique. Quando o silêncio retorna, solto um
gritinho e me jogo de costas na cama, sacudindo os pés no alto.
— Você acredita que isso é real, Henrique? — pergunto, olhando
para o teto e sorrindo de orelha a orelha. Acho que minhas bochechas vão
se rasgar ao meio de tanta felicidade. — Será que não estou apenas
sonhando e vou acordar daqui cinco minutos com o barulho do despertador?
— Não, Ariela. Você não está sonhando — murmura e ergo a cabeça
para vê-lo. Ele também está sorrindo, daquele jeito que faz borboletas
baterem as asinhas dentro do meu estômago. — Você, mais do que
ninguém, merece estar aqui. Os outros participantes nem chegam aos seus
pés.
— Você pesquisou sobre eles?
Ele dá de ombros.
— Talvez.
Dou uma risadinha.
— Aprendeu a usar o Instagram, então.
— Tive que ver um tutorial no YouTube sobre como stalkear
alguém.
Ergo as sobrancelhas.
— Isso é sério?
— Claro que não, Ariela. Eu não sou assim tão da idade da pedra
também, sei como usar um celular e sei também para que serve aquela lupa
no Instagram.
Finjo um suspiro de alívio.
— Menos mal. Já estava começando a ficar assustada.
Henrique ri baixinho, um som que ainda estou me acostumando a
ouvir, e se senta ao meu lado na cama.
O quarto, realmente, é de tirar o fôlego. A varanda oferece uma linda
vista do décimo oitavo andar da cidade de Nova Granelle, uma espaçosa
sala de estar, uma cama quase do tamanho do meu quarto em Santa Clara
com vários travesseiros, um minibar privativo e o melhor de tudo: uma
banheira de hidromassagem.
Se a Ceci Braga queria me convencer a gostar ainda mais dela...
Bom, ela conseguiu.
Estou me sentindo nas nuvens.
Me viro na cama, ficando agora de barriga para baixo e com as mãos
apoiadas no queixo.
— Agora me conta... O que você descobriu sobre a história dos
outros dois participantes? Eu tentei não fuxicar nada, mas já que você
falou...
Henrique se acomoda entre os travesseiros e cruza as mãos atrás da
cabeça.
Tento não olhar para as tatuagens.
Tento também não olhar para os bíceps.
Mas é uma tarefa difícil pra cacete.
Meus hormônios estão fervendo dentro de mim como a água quente
em uma chaleira.
Vou acabar entrando em ebulição daqui a pouco
— O primeiro escolhido é Nicollas Moreau. Ele e Ana Liz se
conheceram em uma aplicativo de namoro. Ela tinha acabado de terminar
um relacionamento, então estava querendo conhecer pessoas novas. Eles
começaram a conversar com frequência, mas Ana Liz sentia que Nicollas
não estava muito interessado nela. Meses depois, ela acabou voltando com
o ex-namorado e deixou de seguir Nicollas em todas as redes sociais. Um
ano depois, Ana Liz descobriu que estava vivendo um relacionamento
abusivo.
Tapo a boca com a mão.
— Ah, não.
Henrique assente.
— Foi um tempo difícil para ela, mas depois que tudo passou, Ana
Liz mandou uma mensagem para ele, porque sentia saudades das conversas
que tinham juntos. Mas Nicollas estava na França, se especializando na
culinária francesa e passaria pelo menos mais seis meses por lá.
Arregalo os olhos, surpresa.
— E o que aconteceu depois?
— Mesmo com a imensa distância e o fuso horário, Nicollas fez de
tudo para se manter o mais presente possível na vida de Ana Liz. Eles
conversavam todos os dias por vídeochamada, ele mandava entregar bolos
da confeitaria favorita dela com bilhetinhos que diziam que logo se veriam
pessoalmente e até assistiam filmes juntos. Nesse mesmo período, Nicollas
confessou para Ana Liz que, durante aquele ano inteiro que passaram sem
se falar, ele nunca deixou de pensar nela.
Um soluço me escapa.
— Quando Nicollas finalmente voltou para o Brasil, ele saiu do
aeroporto e foi direto para o apartamento em que a Ana Liz morava —
Henrique continua a dizer. — Não precisou nem pensar no que iria dizer,
mas sabia que a amava mais que tudo no mundo. Eles se casaram seis
meses depois em uma cerimônia íntima em Paris, a cidade que ela tinha o
sonho de conhecer.
— É fofo.
— Não deveria pensar isso sobre seu concorrente.
— Estou falando do casamento deles — resmungo com um
beicinho. — Você sabe que histórias de amor são o meu ponto fraco.
Henrique sacode a cabeça naquele gesto de sempre e continua a
dizer:
— A segunda escolha da Ceci Braga foi a Pérola Garcia. O
namorado da melhor amiga dela tinha um melhor amigo, o Caíque. Foi
assim que eles dois se conheceram. Ela descreveu que, quando ele colocou
os olhos nela naquela noite, sentiu algo muito diferente — diz. — Eles se
deram bem logo de cara, mas ele disse que não iria beijá-la naquele noite
porque não precisavam ter pressa. Acabou que a Pérola acabou passando
por uma situação difícil e parou de falar com ele. Só que, meses depois, ela
se arrependeu e decidiu ir atrás dele.
— E o que aconteceu?
Henrique olha para mim e dá de ombros.
Não sei como ele não está mexido com essa história.
— Caíque estava com outra garota.
— Não!
Os olhos dele se reviram em diversão com o meu tom incrédulo.
— Mas ele não gostava dela como gostava da Pérola. Então, numa
noite, ela ligou bêbada para ele. Caíque não entendeu. Mas, no dia seguinte,
apareceu de surpresa na casa da Pérola. Depois disso, nunca mais se
separaram de novo.
Que droga.
É uma história fofa até demais.
Gostava mais quando não sabia nada sobre os outros dois
participantes. Agora estou me sentindo em uma corda bamba.
— Você acha que um deles pode ganhar?
— A única que pode ganhar esse concurso é você, Ariela.
Faço uma expressão tristonha.
— Mas se eu perde... Você vai me detestar?
— Por que eu te detestaria?
— Por te fazer perder tempo? Por te afastar do seu restaurante
enquanto poderia estar lá trabalhando junto com os seus funcionários? Por
te dar esperança de que as coisas iriam melhorar no Bacio Di Sole e...
— Ariela.
Pisco os olhos.
— O quê?
— Vem aqui.
Olho para o seu corpo.
As pernas estão esticadas e cruzadas em cima da cama, assim como
os braços atrás da cabeça. A camisa abraça os seus músculos, enquanto a
calça ostenta um caimento perfeito. Por um segundinho, me pego
imaginando-o sem todas essas camadas exageradas de tecido.
A imagem que se forma na minha cabeça é agradável até demais.
Até porque já o vi sem camisa.
Henrique tem um abdômen de tirar o chapéu, não nego.
Com as bochechas coradas, me arrasto pela cama e fico de joelhos
ao seu lado.
Ele nega com um estalar de língua no céu da boca.
— Mais perto.
Me aproximo um pouco.
Henrique balança a cabeça.
— Mais perto, Ariela.
Mordo o cantinho do lábio inferior.
Se eu me aproximar mais um pouquinho...
Não consigo terminar a linha de pensamento.
Com uma agilidade surpreendente, Henrique encaixa as mãos ao
redor da minha cintura e me coloca sentada em seu colo. Um suspiro de
surpresa me escapa, ao mesmo tempo em que minha bunda se acomoda
bem acima do seu quadril. Espalmo as mãos em seu peitoral, sentindo seu
coração bater por debaixo da minha palma.
Quando encaro novamente o seu rosto, vejo que há um sorriso
brincando em sua boca.
Essa versão descontraída de Henrique ainda é novidade para mim.
Mas eu gosto dela.
Gosto demais.
— Estou perto o bastante agora?
Seus dedos tocam de leve a ponta do meu queixo.
— Sim, você está.
Concordo com um aceno.
— E agora?
— Agora eu posso continuar o que eu estava dizendo. — Sinto o
calor do seu olhar queimar em mim. Tenho que me segurar muito para não
desviar as íris das suas. Mas permaneço paradinha, a atenção fixa em sua
face. — Você nunca vai ser uma perda de tempo para mim, Ariela.
Ganhando ou não esse concurso, embora eu saiba que você vá ganhar, os
meus sentimentos ao seu respeito não irão mudar.
— Não vai me odiar?
— Não.
— Não mesmo?
— Nunca, Ariela. Nunca vou te odiar. — Henrique coloca uma
mecha do meu cabelo atrás da orelha e depois acaricia a minha bochecha.
— Não te odiei nem mesmo quando você me deixou esperando por horas
naquela lanchonete.
Empurro seu ombro de brincadeira.
— Já te falei que eu não sabia de nada!
— Agora eu sei que não foi de propósito. — Ele se curva para
frente, os lábios tocando de leve os meus. Não é um beijo. É mais uma
provocação que deixa o meu quadril inquieto e meu ventre formigando. —
Mas tem algo que eu preciso saber... Se eu te convidasse de novo para um
encontro, você iria?
Meu coração dá uma galopada dentro do peito.
— Sim, italianinho — digo baixinho. Ele ainda está tão próximo de
mim que consigo sentir o calor da sua respiração e os pontinhos da barba,
junto do bigode, fazendo cosquinhas em minha pele. — E dessa vez eu
prometo que não vou me esquecer de aparecer.
Henrique não diz mais nada.
Mas nem é preciso.
Porque quando sua boca toca a minha, a língua pedindo passagem
entre os meus lábios e os dedos afundando em meu cabelo enquanto
aprofunda o beijo, ele já me dá a sua resposta.
E eu respondo de volta.