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AMOR EM FASE DE TESTES

1ª Edição
Raquel Cavalcanti Figueiredo
COPYRIGHT © 2024
Todos os direitos reservados.
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Proibida a reprodução de toda ou
qualquer parte desta obra, por meio
eletrônico ou físico, sem o
consentimento da autora.
A violação dos direitos
autorais é crime estabelecido na
Lei n. 9.610/98 e punido pelo
artigo 184 do Código Penal.
Esta é uma obra de ficção.
Qualquer semelhança
com a realidade é
mera coincidência.
Revisão: Amanda Lima Mont'Alverne
Leitura Crítica: Amanda Turola
Diagramação: Raquel Cavalcanti Figueiredo
SUMÁRIO
AVISO
NOTAS DA AUTORA
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
AGRADECIMENTOS
AVISO
A leitura é recomendada para maiores de dezoito anos; contém cenas de sexo explícito,
palavras de baixo calão, linguajar impróprio, consumo de drogas lícitas, relações familiares
tóxicas e menção a transtornos alimentares.
Este livro contém temas que podem ser sensíveis para alguns públicos, porém não é intenção
desta autora ofender ninguém. Os acontecimentos desta trama são fictícios e qualquer
semelhança com a realidade é mera coincidência.
Se atente aos possíveis gatilhos:
Crise de ansiedade, transtornos alimentares e de distorção de imagem, relacionamentos
abusivos, negligência parental e gordofobia.
Esta obra contou com a leitura sensível de uma profissional Psicóloga.
É de extrema importância que se houver algum desconforto durante a leitura deste livro, você
pare. Sua saúde mental é muito importante!
Em casos de crises intensas ou de sentimentos de desesperança, procure ajuda de um
profissional qualificado.
NOTAS DA AUTORA
Olá! Tudo bem? Se você é um leitor novo, seja muito bem-vindo! Me chamo Raquel e sou autora
da série Ciência do Amor e este é Amor em Fase de Testes, o segundo livro!
Mas calma! É o segundo livro, mas são histórias independentes! Não é necessário ter lido o
primeiro, 52 Dias de Carnaval. Todos os livros da série são independentes de ordem, então pode
ler como quiser! Claro, os personagens podem ser citados em todos os livros, já que todos se
passam no mesmo “universo”, o Instituto de Biologia da UFF, mas nada que afete sua leitura.
Então leia tranquilamente e divirta-se com essa história maravilhosa que foi uma delicinha de
escrever!
Mais uma coisa; Apesar de ser uma comédia romântica, Amor em Fase de Testes contém temas
que podem ser gatilhos para algumas pessoas. Aconselho interromper a leitura caso se sinta
desconfortável. Os avisos estão na seção anterior a esta. Por favor, leia com cuidado!
Sem mais delongas, desejo uma boa leitura!
Raquel Figueiredo
DEDICATÓRIA

Para todos aqueles que têm dias de se sentirem como se não bastassem ou como se fossem
apenas um "segundo lugar" na vida. Sejam gentis consigo mesmos, pois cada um tem seu
próprio ritmo e sua própria jornada.
Um passo de cada vez, mas sempre em frente!

Raquel Figueiredo
EPÍGRAFE

"Seu defeito é de odiar todo mundo."


"E o seu" respondeu, sorrindo, "é deliberadamente entender mal a todos."

Orgulho & Preconceito - Jane Austen


OUÇA A PLAYLIST DOS CAPÍTULOS DE AMOR
EM FASE DE TESTES!
PRÓLOGO
“Porque eu sabia
Que você era problema
Quando você apareceu”
Now Playing: I knew you were trouble
Taylor Swift

27/11/2023

Lis apertou a tecla F5 no teclado pela milésima vez naquela manhã.


— É o que estou dizendo — Leandro tagarelava ao lado dela, sentado em uma das cadeiras
da sala de alunos do laboratório da professora Joana. Ele ainda mastigava o bolo que trouxera do
casamento de dois amigos dele, que tinha sido no último fim de semana. — O amor é lindo. É
simplesmente lindo.
F5. Lis apertou de novo. A página da pós-graduação em neurociências da UFF atualizou,
mas nada tinha mudado desde a última vez que ela apertara aquele botão. Ouviu Leandro, o
aluno de pós-doutorado do laboratório e seu coorientador no TCC, repetir pela milésima vez o
quanto o casamento de seus melhores amigos tinha sido lindo, que tinha feito uma viagem
inacreditável para Minas para o evento junto com a namorada e que o fim de semana que passara
lá o fizera acreditar no amor de novo.
Lis normalmente embarcaria em todas as ladainhas dele se fosse um dia comum – afinal,
ela gostava muito de histórias de amor reais –, mas nada tirava sua atenção da tela do
computador e da página da pós-graduação. Nem mesmo os pedaços de bolo maravilhosos e os
docinhos que Leandro trouxera faziam com que ela deixasse de olhar para a tela e atualizasse a
página.
Estava nervosa demais. Era seu futuro em jogo ali. Seu futuro acadêmico, profissional e
econômico, sua independência. Se Lis não passasse em primeiro lugar na seleção de mestrado,
ela não teria a certeza de que receberia a bolsa, já que ainda faltava um semestre para se formar.
E sem a certeza da bolsa, também não havia certeza de mais nada.
Ela teria que sair de Niterói se ficasse sem o auxílio. Teria que voltar a morar com a mãe e
a irmã em Jacarepaguá, na Praça Seca. Voltaria a ser a Cinderela da casa, a viver em função das
duas.
E, o pior de tudo, teria que voltar a conviver com seu ex-namorado.
A perspectiva desse futuro era desastrosa.
F5. F5. F5.
Nada ainda. A página continuava a mesma.
— Você vai quebrar o teclado desse jeito — Jana disse para ela enquanto afastava suas
milhares de trancinhas do rosto. Ela também devorava um pedaço de bolo, feliz e calma como
sempre. — Vai dar certo, Lis. Se acalma um pouquinho.
— É, até parece que alguém vai se sair melhor do que você na seleção. — Emília deu de
ombros. — Você não é chamada de “Deusa da Neuro” à toa.
Jana e Emília eram as melhores amigas de Lis desde o primeiro período da graduação em
biologia. Não eram da neuro – as duas eram do departamento de biotecnologia – mas sempre
vinham até o laboratório para jogar papo fora. E Leandro sempre as recebia de braços abertos,
porque o laboratório deles andava vazio demais ultimamente. A professora-chefe, Joana, estava
de licença maternidade em uma gestação complicada e Gustavo, o aluno de doutorado, estava
fazendo intercâmbio na Coreia do Sul. Então eram só Lis e Leandro naquele laboratório enorme
nos tempos atuais, o que às vezes era um pouco solitário.
Quer dizer, isso tinha mudado um pouco agora. Na semana anterior, Leandro comentou
que Joana havia aceitado um novo orientando e que ele também faria a seleção para o mestrado.
O cara não era nem da UFF, tinha surgido do nada e agora era mais uma ameaça ao primeiro
lugar de Lis.
Ela tinha visto seu novo rival na seleção. Até porque era impossível não vê-lo. Lis já estava
sentada em uma das carteiras, revisando todos os artigos das provas, quando um homem enorme
atravessou a porta da sala e se sentou nos fundos, no canto oposto a ela. Lis nunca tinha visto um
homem tão alto em sua vida. O que era um feito e tanto, já que ela mesma era bastante alta.
Não só isso, aquele rapaz era enorme não só no que dizia respeito à altura. Músculos para
todos os lados, escondidos pela camiseta preta e o jeans escuro. O cabelo era ondulado e loiro,
que emoldurava o rosto sério junto com os óculos simples que usava. Suas feições eram bem
fortes e intimidadoras, Lis conseguiu notar.
E as tatuagens. Ela também as notou. Os braços dele eram cheios delas, até os dedos das
mãos. Algumas escapavam pelo pescoço branco e subiam por sua nuca. Lis também era cheia de
tatuagens, então sabia o quanto aquilo chamava a atenção.
E a cereja do bolo: ele era lindo. Lindo de morrer. Lis chegou a perder o ar por um
momento enquanto o assistia se sentar. Percebeu que todos os outros da sala também faziam o
mesmo, metade embasbacada pela beleza e a outra intimidada pela presença dele. Lis mal
conseguiu refletir se aquele era o novo aluno de Joana, já que aquele rapaz parecia ser
desconhecido a todos ali.
A perspectiva de dividir o laboratório com ele lhe trouxe comichões repentinas. Mordiscou
os lábios, ainda sem conseguir desviar o olhar.
Contudo, assim que aquele ser intrigante e misterioso a encarou de volta, toda a animação
que Lis sentira escorreu como areia pelos dedos.
Ele olhou para ela como se Lis fosse uma formiguinha. Uma formiguinha insignificante
que ele pisaria sem nem pensar duas vezes. Tinha olhos azuis muito bonitos também, mas que
não transmitiam nada além de animosidade, o olhar sisudo emoldurado pelos óculos que parecia
querer atravessá-la. As comichões se tornaram arrepios, Lis desviou sua atenção e se encolheu.
E foi a semana inteira de seleção assim. A cada dia que passava, Lis concluía que aquele
rapaz achava que todos os outros naquela sala eram inferiores a ele. Não proferiu uma palavra
sequer, nem quando todos os candidatos esperavam pelas entrevistas e ficaram conversando
entre si. Naquela altura, Lis já tinha descoberto que ele era de fato o novo aluno de Joana e que
seu nome era Dante alguma coisa. Descobriu que nem biólogo ele era. Aquele tal de Dante era
um recém-formado em medicina e estava fazendo sabe-se lá o que em uma seleção de mestrado
de neurociências no Instituto de Biologia.
Bem, talvez ela não precisasse se preocupar tanto com isso. Ele era médico, provavelmente
não estava nem um pouco acostumado com a carga intensa e extensa da área de neuro. Biofísica,
neuroquímica, bioquímica, neurogênese, bases farmacológicas, técnicas avançadas de protocolos
científicos… o que ele teria aprendido disso tudo em uma faculdade de medicina? Mesmo se
passasse na seleção, ele não seria uma ameaça ao primeiro lugar de Lis, com certeza.
Com esse pensamento otimista, ela se permitiu suspirar. Virou a cadeira para ficar de
costas para o computador e alcançou um dos docinhos que Leandro trouxera. Todos tinham
como temática o fundo do mar, porque os amigos dele eram da biologia marinha. Era muito fofo
e Lis também se permitiu sorrir diante de toda história que Leandro contava, refletindo que o
amor era mesmo lindo, apesar das dificuldades.
Era bom saber que pelo menos as outras pessoas conseguiam conquistar sua felicidade,
mesmo com todos seus defeitos. Isso lhe dava um pouco de esperança de que, um dia, isso
aconteceria com ela também.
— Isso, come um pouquinho. — Leandro estendeu um pedaço de bolo para ela. — Você tá
pálida feito um papel. Você já passou, não tem por que ficar tão nervosa.
— Tá… — ela conseguiu dizer.
— E cadê o aluno novo da Joana? — Jana perguntou. — Ele também não devia estar aqui?
— Sei lá. — Leandro fez pouco caso. — Ele nem passou no laboratório ainda, acreditam?
E a Joana disse que ele só vai começar mesmo ano que vem.
— Se ele passar, né?
— Se ele passar, isso mesmo. Pra quem não é da área, a seleção é pior que os Jogos
Vorazes. Até pra quem é da área, ninguém da UFF tá de brincadeira.
Era verdade. Não foi fácil nem para Lis que, como Emília dissera, era a Deusa da Neuro.
Era uma semana de provas baseadas em artigos científicos, uma de manhã e uma à tarde a cada
dia. E, no último, havia a prova de inglês e a entrevista sobre o projeto com todos os professores
da banca. Lis havia terminado aquela semana quase sem se lembrar do próprio nome.
Isso, ela não tinha que se preocupar. Conhecia todos os outros candidatos e nenhum deles
chegava aos seus pés, verdade fosse dita. Seu projeto era incrível, seu inglês era impecável e,
com toda a certeza do mundo, Lis seria o primeiro lugar na seleção de mestrado. Garantiria sua
bolsa e não teria mais que se preocupar com o destino terrível de voltar a ser a Cinderela de
Jacarepaguá.
Endireitou-se na cadeira e aceitou o pedaço de bolo. Conseguiu se perder nas histórias que
Leandro contava sobre os amigos, permitiu-se sorrir e revirar os olhos quando ele falava alguma
besteira. Jana e Emília também a animaram, fizeram-na esquecer do novo rival bonitão e cheio
de tatuagens. Lis conseguiu ficar assim até Jana notar que Emília ficara muito quieta de repente.
E não era do feitio dela ficar quieta nunca.
— Que foi, Mi? Que cara é essa? — Jana perguntou.
Emília estava com o celular na mão, fitando a tela. Seus olhos amendoados pareciam
tensos e ela inclinou as sobrancelhas rapidamente. Depois mordeu os lábios enquanto enrolava
uma mecha do cabelo rosa no dedo.
— Ahn… Acabei de ver aqui. A página atualizou.
Silêncio. Lis ficou imóvel por um momento. Depois só virou a cadeira de volta e apertou
F5. Era verdade. Lá estava o link com os selecionados.
— Legal! Vou abrir o espumante! — Leandro se levantou, animado.
— Hm… — Lis ouviu Emília murmurar. Um calafrio passou por sua espinha.
Abriu o arquivo. A lista apareceu diante de seus olhos.
E lá estava: seu destino.
Classificação Nome do candidato Nota Bolsa
1º Dante Hoffmann Krause 9,9 1º Semestre
2º Elis Castro Duarte 9,8 A definir
CAPÍTULO 1
“Mas tenho que ter certeza
Quando eu sair por aquela porta
Como eu quero ser livre, amor
Como quero ser livre
Oh, como quero me libertar”
Now Playing: I Want to Break Free
Queen

08/01/2024
191 dias para o fim do semestre

“Prezada Elis Duarte,


Seu caso foi discutido no colegiado da biologia e, infelizmente, seu pedido de antecipação
de colação de grau foi negado. Achamos inviável a senhorita conseguir defender seu TCC em
março deste ano. A fim de não comprometer a qualidade de seu trabalho, pedimos que o defenda
em meados de junho ou julho, como todos os outros de sua turma. Tenho certeza de que isso não
afetará sua entrada no mestrado no próximo semestre.
Atenciosamente,
Renato Faria, coordenador da graduação de biologia da UFF”
Lis soltou um suspiro, guardando o celular na bolsa antes de atravessar a avenida de frente
às barcas. Ajeitou o guarda-chuva em uma das mãos enquanto puxava a mala de rodinhas,
fazendo de tudo para não começar a resmungar como uma louca naquela manhã chuvosa de
janeiro. O ano mal tinha começado e ela já tinha sido derrotada, humilhada e jogada na lama
pelos trâmites burocráticos de uma universidade federal.
Tudo por causa de seu novo nêmesis. Tudo por causa de um mísero décimo na média de
sua nota na seleção de mestrado.
Tudo por causa de Dante Krause. Aquele mauricinho gigante dos infernos que resolvera de
uma hora para outra destruir a vida de Lis e tomar seu primeiro lugar.
Tomar sua bolsa também. A garantia de ter a bolsa mesmo no próximo semestre era só
para o primeiro lugar. Tendo ficado em segundo, Lis agora dependia da disponibilidade do
auxílio no segundo semestre. E apesar do último ano ter sido bom quando se tratava de
incentivos para a pesquisa, ainda era difícil acreditar na certeza de que ela teria uma bolsa
quando começasse o mestrado.
Mas ela devia saber, devia ter entendido que nada na vida dela dava certo, por mais que se
esforçasse. Era óbvio que um empecilho para sua felicidade apareceria, Lis nunca tinha paz para
nada. Ela só foi ingênua em acreditar que agora seria diferente.
Atravessou a avenida, adentrando as ruas do centro. Pelo menos, ela tinha voltado para
Niterói. O feriado de fim de ano tinha sido um tormento por causa de sua família, como sempre.
Lis chegou para o natal na casa da Praça Seca e a primeira coisa que sua mãe lhe disse foi que ela
tinha engordado muito desde a última vez que se viram. Depois, reclamou das tatuagens,
perguntando quando ela ia parar de se rabiscar daquele jeito.
As alfinetadas de Dona Brenda de sempre, Lis já devia ter se acostumado.
Afinal, havia passado sua infância e adolescência inteira lutando contra seu peso e sua
altura excessiva. Aprendeu a gostar mais de si mesma na vida de jovem adulta, quando começou
a preencher seu corpo com as infinitas tatuagens lindas que conseguia fazer. Notou de forma
positiva seu quadril largo, sua barriga, os braços firmes, as pernas longas, todas as curvas lindas
que despontavam de seu corpo.
Lis já não tinha quase problema nenhum com sua imagem naquela altura do campeonato
de seus 23 anos, mas sempre que sua mãe cismava em apontar para seus ditos “defeitos”, a
autoestima dela caía até os confins da Terra.
E tinha sua irmã também. Isabela era muito difícil de lidar. Lis amava a irmã mais nova
com tudo que tinha, mas toda a atenção que ela demandava a levava aos limites da exaustão.
Qualquer coisinha fazia sua irmã se debulhar em lágrimas e Lis passou o natal inteiro a
consolando, depois que Isabela ficou triste porque poucas pessoas responderam suas mensagens
de feliz natal no Instagram.
E, claro. Também havia o Gabriel, o ex de Lis.
E atual namorado de Isabela. Era difícil até tentar compreender o que tinha acontecido,
mas fazia nove meses que Gabriel e Isabela começaram um relacionamento. Quatro
meses depois da própria Lis ter terminado o namoro de três anos com ele.
Era complicado. Sem dúvidas, muito complicado. E Lis não tinha mais tempo para pensar
em nada daquilo. Tudo que deveria estar em sua cabeça era defender seu TCC o mais rápido
possível. A bolsa de mestrado a ajudaria bastante e ela não precisaria mais se preocupar com a
possibilidade de ter que voltar para a casa da mãe. Ela só tinha que aguentar mais um semestre.
O último semestre. Daria um jeito, como sempre fazia.
Resoluta, deu passos rápidos pela Praça do Rinque, cortando caminho para chegar em casa
mais rápido. Ela só descansaria um pouco e depois iria direto para a UFF. Se trabalhasse bem em
janeiro, talvez conseguisse adiantar sua defesa para maio. Ainda faltava fechar resultados e
alguns experimentos de Lis haviam se tornado um beco sem saída, então ela tinha que se esforçar
para terminar no prazo, já que também tinha que focar na escrita do TCC.
E sem a presença constante de sua orientadora Joana – a professora estava de licença por
tempo indeterminado, por causa da gravidez de alto risco –, era difícil encontrar uma linha de
raciocínio para sua pesquisa. Por mais que Leandro estivesse sempre lá para ajudá-la, nada se
comparava à expertise de sua orientadora. Porém, Lis não queria atormentá-la em um período tão
difícil.
Já quase na portaria de seu prédio, Lis se perguntou por que diabos então Joana havia
aceitado um novo aluno para orientar. Quem era esse Dante? Que tipo de pessoa ele era para
atormentar uma pobre professora em uma gravidez de risco com pedidos de orientação?
E, o pior: quem diabos era aquele ser tatuado e hostil que conseguiu ultrapassá-la? Lis não
se considerava uma pessoa arrogante, sempre tentava enxergar suas próprias habilidades por um
viés imparcial, mas seu conhecimento em neurociência era algo que ela tinha muita confiança.
Seu orgulho estava ferido. Era idiota pensar dessa forma, mas era o que Lis sentia. Era
como se tivessem roubado a única coisa em que ela era boa.
— Tema pra terapia, comecei o ano bem… — resmungou para si mesma, entrando no
elevador.
Fitou a própria imagem no espelho, insatisfeita com sua expressão de poucos amigos. O
ano não devia ter começado daquele jeito, ela devia estar feliz. Encarou seus olhos azuis, irritada
com a raiva que transparecia deles. Ajeitou o cabelo castanho e a franja da melhor maneira
possível e soltou um suspiro, já cansada demais para o início do ano.
Tudo bem, vou dar um jeito. Eu sempre dou um jeito. Ela pensou quando a porta se abriu.
Caminhou pelo corredor e buscou as chaves do apartamento.
Ela já conseguia ouvir a barulheira do outro lado da porta.
— Lis, Lis, a Elis chegou! — Beatriz deu um grito assim que a viu entrando. — Feliz ano
novo, Lis!
Lis mal teve tempo de entrar direito, Beatriz correu para abraçá-la com toda força que
tinha. Por ser bem mais baixa, Bia se pendurou em seu pescoço, balançando o cabelo loiro e
cacheado para todos os lados.
— Todo mundo já voltou? — Lis perguntou enquanto tentava se locomover com Beatriz
ainda pendurada nela.
— Quase todo mundo. A Jana, a Manu e a Val já voltaram. Falta a Duda ainda. Mas que
bom que você já voltou, Lis! A casa tá uma bagunça sem você.
— Como sempre, né? — Por fim conseguiu se desvencilhar da amiga, deixando a mala de
lado na sala.
Era bom voltar para casa, mas às vezes ela se esquecia do quanto aquela república era
caótica.
Na verdade, nem era uma república de fato. Lis dividia um apartamento de um quarto com
mais cinco meninas. Na época em que procurava por um lugar para morar em Niterói, ela se
deparou com um anúncio de uma tal de Dona Etelvina que falava: “Ótima república feminina no
centro de Niterói, a poucos metros do campus Valonguinho e do Gragoatá. Ambiente familiar,
espaçoso, climatizado, com Wi-fi e cozinha completa.”
O “ambiente familiar, espaçoso, climatizado, com Wi-fi e cozinha completa” era um
apartamento velho e apertado, a climatização era feita por um ventilador de teto que nunca dava
vazão para tantas meninas, o Wi-fi era péssimo e a cozinha completa era um cubículo com uma
geladeira, fogão e um micro-ondas da década de 90. E o aluguel para cada uma ainda era de 550
reais. Sua mãe a ajudava a pagar, mas a situação financeira de Lis era bem ruim, visto que ela só
tinha a bolsa de 700 reais para se sustentar.
Contudo, era realmente perto da UFF. E as meninas eram ótimas, então não era tão ruim
assim. Claro, a Dona Etelvina era o Diabo encarnado na Terra e sempre ameaçava aumentar o
aluguel por qualquer coisinha ou pedir antecipadamente a quantia, mas Lis gostava de morar ali,
apesar de tudo.
Quer dizer, ela gostava de morar ali quase sempre. Conseguia odiar aquele apartamento
quando tudo começava a dar errado e todas as responsabilidades caíam em cima dela. E,
ultimamente, era o que andava acontecendo com frequência. Qualquer problema que surgisse,
era ela que tinha que resolver.
Afinal, sempre fora a mais responsável. A irmã mais velha, a amiga atenciosa, a colega de
quarto proativa. Lis sempre agiu dessa forma, então era natural que todos viessem pedir ajuda a
ela.
Mas era cansativo. Muito cansativo.
— O Wi-fi parou de funcionar de novo — Bia tagarelava. — E a TV ainda tá pifada, sabe?
Você disse que ia falar com a Dona ET.
Lis segurou uma risada. Ela sempre achava graça quando Beatriz chamava a senhoria
daquele jeito. Jana gostava de chamá-la de Bruxa do 71 também – o apartamento que moravam
era o número 71 – fazendo uma analogia à Chaves. Eram tantos apelidos que ela já tinha perdido
a conta.
— Posso chegar pelo menos, Bia? Eu vim lá de Jacarepaguá, estou morta, suja e cansada.
Mais tarde falo com a Dona Etelvina, tudo bem?
— Tá bom, mas resolve isso ainda hoje. Estou sem dados no celular, como vou mandar
mensagem? Meu namorado vai me matar.
Lis concordou com um aceno de cabeça. Buscou a mala e a puxou até o quarto. Depois
pegou algumas roupas confortáveis e correu para o banheiro. Deixou que o cansaço escorresse
com a água quente do banho, suspirando enquanto lavava o cabelo. Quando saiu, vestiu as
roupas ao mesmo tempo que se olhava no espelho, fitando suas inúmeras tatuagens pelo corpo.
Talvez ela devesse fazer uma tatuagem nova, talvez conseguisse ser tela para algum
tatuador e assim ter desconto. Isso sempre a animava. No entanto, o dinheiro estava curto e ela
não podia se dar ao luxo de ficar apertada naquele semestre, não quando havia tanto em jogo.
Só mais um semestre. Só mais um e tudo vai melhorar.
— Lis! — Jana exclamou assim que a viu saindo do banheiro. — Você chegou, que bom!
Lis sorriu para a melhor amiga, jogando-se na cama de casal do quarto. Ela dividia a cama
com Jana e havia duas beliches encostadas nas paredes, onde as outras garotas dormiam. Era tão
apertado que não tinha espaço nem para uma cômoda ou um armário, as coisas delas ficavam em
gaveteiros pela sala.
Aquela república era uma bagunça, Lis tinha que admitir pelo menos isso.
— Vai pra UFF hoje? — Jana perguntou, juntando-se a ela na cama. — Sinto que você vai
mesmo morrendo de cansaço.
— Vou de tarde. Vou tirar um cochilo e depois eu vou.
— É hoje que você conhece o Emissário das Trevas?
Jana deu uma risadinha. Ela estava falando de Dante Krause.
— Acho que sim. Se ele achar que somos dignos da presença dele dessa vez. Ele não
apareceu até agora — Lis comentou, ácida.
— Bem, o Leandro tinha falado mesmo que ele só ia começar esse ano.
— Mesmo assim, quem é que passa em um mestrado e não se dá nem ao trabalho de ir
conhecer o laboratório que vai trabalhar? Cara escroto.
— Cara escroto e gato, pelo que me lembro do que você me disse. E pelo Instagram dele
que eu fiquei bisbilhotando.
— Descobriu alguma coisa?
— Nada. Ele quase não posta nada. Só consegui ver algumas coisas pelas marcações do
primo dele. Outro gato, aliás.
Lis soltou um suspiro.
— Quem sabe ele é legal — Jana tentou apaziguá-la. — Quem sabe ele só estava nervoso
com a seleção e pareceu mal-humorado, só isso. Você também é mal-humorada às vezes.
— É diferente, Jana — Lis explicou. — O jeito que ele me olhou… Nossa, eu me senti
mal. Foi péssimo, fico pensando se ele vai ficar me olhando assim o tempo todo no laboratório.
— Por quê? Quer que ele te olhe de outra forma? — Jana deu outra risadinha. — Ele faz
seu tipo, não faz? Todo tatuado, cara de mau, fortão… Vocês são bem parecidos, achei que
combinam.
Lis jogou um travesseiro no rosto da amiga.
— Ai, tá bom. Não tá mais aqui quem falou. — Jana se levantou. — Tire seu cochilo,
vamos almoçar e depois vamos pra UFF. O ano acabou de começar, você tem que estar alegre,
não rabugenta como está agora. Bola pra frente, vai dar certo.
Isso, vai dar certo. Lis repetiu o que Jana dissera em sua cabeça. Tinha que dar certo, não
havia outra alternativa. Ela precisava terminar seus experimentos, escrever seu TCC e colar grau.
Só assim entraria no mestrado com tranquilidade. Se algo desse errado, Lis perderia um semestre
inteiro.
Ela conseguiria a bolsa. Se formaria. Alcançaria sua independência. Tudo daria certo e não
seria um tal de Dante Qualquer Coisa que se colocaria no caminho dela.
2024 seria o ano dela, com ou sem Dante Krause.
CAPÍTULO 2
“Sem mudanças
Posso mudar
Mas estou aqui no meu molde
Mas eu sou um milhão de pessoas diferentes
De um dia para o outro”
Now Playing: Bittersweet Symphony
The Verve

— O que acha? Preto ou preto? — Dante estendeu duas camisetas praticamente idênticas
diante do espelho.
Gororoba, sua gata escaminha, estava deitada na beirada da cama e só soltou um miadinho
doce, como se estivesse mesmo opinando na escolha de roupa do dono. Dante se achou um
pouco idiota por conversar tanto com a gata, mas estava nervoso e falar qualquer bobagem que
surgia em sua cabeça aliviava um pouco sua ansiedade.
Afinal, era seu primeiro dia oficialmente como aluno de mestrado da UFF. Seu primeiro
dia livre das amarras da família Krause. Era um dia para se comemorar, mas para se preocupar
também, já que tudo tinha que dar certo.
Porque ele não podia voltar. Aquele mestrado tinha que ser perfeito, porque Dante não
podia voltar para Florianópolis. Não depois da dificuldade que fora sair, ele praticamente havia
fugido de casa.
Tudo bem, não fugido de casa, já que Dante era um adulto em seus 26 anos e poderia fazer
o que bem entendesse, mas ele só contou para os pais que estava indo morar em Niterói com o
primo uma semana antes da mudança. E, desde então, seu celular quase explodia com as infinitas
ligações e mensagens de texto.
— Essa aqui, né? — Dante perguntou para Gororoba mais uma vez, ignorando que seu
celular vibrava e apitava do outro lado da cama. — Vai ficar ruim de qualquer jeito. Eu só quero
ficar um pouco apresentável.
Retirou a blusa do pijama, olhando de soslaio para a própria imagem. Anos de terapia e ele
sabia que não era feio e que podia até ser bem atraente agora, mas nunca conseguia ver sua
imagem como um todo positivo. Sempre tinha algo errado e espaço para mudança, mesmo que
seu corpo fosse torneado de músculos, mesmo que todos lhe dissessem o quanto o admiravam
fisicamente agora.
Ele sabia que ainda eram os resquícios do transtorno alimentar que tivera na adolescência e
que tinha que se policiar para não cair nas artimanhas da autocrítica patológica, mas eram nesses
momentos de ansiedade que Dante tinha mais problemas com sua autoestima.
Flexionou o bíceps diante do espelho, ainda se analisando. Ele podia ter problemas com o
próprio corpo, mas gostava das tatuagens. Gostava muito delas, das linhas escuras dos contornos
das flores e dos insetos, das letras sofisticadas girando ao redor dos braços, dos desenhos que
cobriam seu peitoral inteiro e subiam até seu pescoço. Olhar para elas sempre lhe trazia um bem-
estar tremendo, porque assim conseguia se lembrar do que realmente gostava: da música, da arte,
da beleza que via no mundo. Suas tatuagens eram sempre motivo de orgulho, apesar de grande
parte de sua família detestá-las. Seu pai principalmente.
Gororoba soltou outro miado e Dante sacudiu a cabeça, como se concordasse, enquanto
colocava a camiseta.
— Verdade, meu pai não gosta de nada em mim mesmo, com ou sem as tatuagens. Então
não faz diferença — falou.
Outro miado, Gororoba se levantou da cama e deu uma cabeçadinha em sua perna. Dante
interpretou aquilo como se a gata quisesse repreendê-lo pelo pensamento negativo.
— Mas você gosta, né? Então é isso que importa, Robinha. Sua opinião conta muito. —
Ele pegou a gata minúscula no colo, aninhando-a nos braços. Gororoba começou a ronronar,
alegre.
Por Deus, tenho que parar de conversar com essa gata desse jeito. Dante mesmo se
repreendeu. Tinha essa mania desde que seus tios deram a gata para ele, 14 anos atrás. Desde que
Dante pegara Gororoba no colo pela primeira vez, eles conversaram como se ela fosse sua
confidente mais sincera.
— Volta pra cama, você vai encher minha camiseta de pelo. E chegar com a roupa cheia de
pelo de gato não vai causar uma boa impressão, vai? Tudo tem que ser perfeito hoje. É meu
primeiro dia finalmente livre. Posso fazer qualquer coisa.
Qualquer coisa. A perspectiva de estar livre lhe trazia arrepios de animação, apesar do
nervosismo. Poderia começar do zero, ter amigos que não se aproximariam por interesse, ter os
próprios pensamentos, as próprias ideias.
Poderia ter uma vida. Acabou se lembrando do amado tio mais uma vez, falando que Dante
precisava de uma vida só dele para viver, não aquela que seus pais desejavam. Uma vida só dele,
um caminho só dele. A perspectiva disso era deslumbrante.
Retirou a calça do pijama, escolheu e vestiu uma calça jeans, arrumou o cabelo da melhor
forma e ajeitou os óculos, respirando fundo antes de pegar o celular e sair. Gororoba despediu-se
dele com outro miado alegre, esticando-se na cama para voltar a dormir. O quarto ainda estava
fresquinho por causa do ar-condicionado, então aquela gata ficaria o resto do dia ali, era um fato.
Estava chovendo, mas nem isso amenizava o calor de Niterói e Dante se perguntou se
estaria suando quando chegasse na UFF para se apresentar no laboratório. O apartamento do
primo era perto da praia de Icaraí, mas o calor abafado do Estado do Rio de Janeiro era bem
diferente de Florianópolis, sem as brisas amenas e marítimas, e Dante levaria um tempo para se
acostumar. Suado e com pelo de gato, definitivamente uma péssima primeira impressão, pensou.
Ele tentou não encarar isso como mais um obstáculo a ser ultrapassado.
— E aí, grandão? — Seu primo o tirou dos devaneios. Estava sentado na mesa da cozinha,
bebericando uma xícara de café. — Tudo certo com a sua cabecinha pro primeiro dia de aula?
Dante soltou um suspiro, aproximando-se sem dar muita bola para Henrique. Desde que se
mudara, seu primo o tratava de forma bastante condescendente, quase como se ele fosse uma
criancinha indefesa para ser salva, ainda que Henrique fosse só alguns anos mais velho que ele.
Tudo bem, as palavras de Dante quando implorara para o primo recebê-lo em Niterói tinham sido
“Me deixa morar com você, senão acho que vou morrer”, mas isso não justificava Henrique o
tratando como alguém incapaz de tomar uma decisão sequer.
Talvez esse comportamento desaparecesse com o tempo, era o que Dante esperava.
Pensou em toda a dinâmica de sua família desde que ele tivera as primeiras crises de
ansiedade e o diagnóstico de anorexia. Metade dela o tratava como um fraco que não sabia se
portar diante da vida, abafando o caso para que o público não soubesse que o primogênito do
diretor Otto Krause, do renomado hospital Ernst Krause, era cheio de problemas. A outra – a
parte que Henrique fazia parte – o tratava como um pobre coitado. Era assim desde seus 10 anos,
só seus tios não o trataram assim. O comportamento do primo não desapareceria tão cedo, era a
conclusão que chegava.
Suspirou mais uma vez, já cansado no início do dia.
Não fazia diferença. Com ou sem a condescendência de Henrique, nada o impediria de
trilhar seu novo caminho. Ninguém em Niterói ou na UFF sabia de seus problemas ou que ele era
um herdeiro de uma tradicional família de médicos, ninguém o veria como um pobre coitado ou
como um louco que largara a medicina e se mudara para outro Estado para estudar neurociências.
Era nessa perspectiva que ele tinha que se apegar.
Uma nova vida, um novo começo. Nada vai me impedir de seguir em frente, pensou mais
uma vez, buscando a pouca confiança que tinha para se animar.
— Não é meu primeiro dia de aula, não estou na escola — explicou. — Vou só me
apresentar no laboratório.
Abriu a geladeira e vasculhou seu interior com os olhos, procurando algo que pudesse
comer sem que chamasse a atenção do primo ou que alarmasse a si mesmo por estar comendo na
frente dele. Algo que meio que dissesse que Dante estava bem e que não precisava ser cercado
por toda aquela preocupação.
Engoliu em seco. A tarefa era mais fácil na teoria do que na prática. Por estar nervoso, o
gatilho de não conseguir comer na frente dos outros sempre se ativava. Suas mãos ficaram
úmidas de suor e Dante sentiu um bolo se contorcer em sua barriga, o estresse da ação lhe
deixando um pouco enjoado e sem apetite. Talvez mais tarde, quando Henrique não estivesse por
perto, ele se acalmasse um pouco e conseguisse almoçar.
Por isso, pegou só uma garrafa d’água, evitando o olhar do primo. Contudo, mordeu os
lábios quando o ouviu suspirar.
— Acho que vou malhar um pouco antes de almoçar. Vou trocar de roupa — Dante
murmurou, na tentativa de despistá-lo. — Depois você me leva na UFF? Ainda não sei me achar
muito bem por aqui.
— Claro, tudo pelo meu priminho! — Henrique soltou uma risadinha. — Cara, eu tô tão
animado por você. Queria eu ter essa determinação toda pra malhar antes de começar a trabalhar.
Você vai pegar tanta mulher aqui com essa mentalidade, cara. Eu tô sentindo!
Dante torceu os lábios, revirando os olhos. Suas interações com o primo se baseavam em
três assuntos: sua saúde mental, seu treino na academia e a quantidade de mulheres que Henrique
pegava. Pelo jeito, ele esperava que Dante compartilhasse seus segredos de sucesso para um
corpo malhado ou que o seguisse em todas as baladas que pudessem ir. As duas opções não lhe
agradavam nem um pouco.
Primeiro, porque ele não gostava de malhar tanto assim. Fazia isso para manter sua
sanidade e por causa de seus problemas de autoimagem. Segundo, Dante não tinha energia o
suficiente para se enfiar em choppadas ou festas intermináveis. Ele tentou seguir essa rotina na
faculdade de medicina e só terminou frustrado.
E terceiro, Dante não tinha tempo para se envolver romanticamente com ninguém, mesmo
que de forma casual. Ele tinha que transformar os dois anos do mestrado em uma perfeição sem
tamanho se quisesse continuar em Niterói em paz e prosseguir para o doutorado. Se tudo corresse
bem, ele poderia se inscrever para um doutorado sanduíche e se afastar ainda mais da família
controladora. Por isso, não havia tempo para se envolver com ninguém, quisesse ele ou não.
Um lampejo de memória atravessou sua mente assim que ele chegou à essa conclusão.
Lembrou-se da menina toda tatuada que se deparara na seleção de mestrado. Ela era tão bonita…
Será que ela passou também? Não conseguiu se impedir de pensar. Permitiu-se somente
esse deslize e colocou a lembrança daquela garota linda bem no fundo de sua mente. Não era
hora de pensar nisso. Ainda que tivesse quase congelado ao vê-la na sala e ficado pensando nela
por um tempo nada saudável, não era hora de pensar nisso, Dante não tinha tempo para nada
disso.
Ela era tão alta… Outro deslize. Dante gostava de mulheres altas, já que ele mesmo era
alto demais e se sentia um pouco desconfortável quando a diferença de altura era muito grande.
Sacudiu a cabeça. Henrique soltou outro suspiro ao avaliá-lo, pensando que aquele
comportamento era por causa do nervosismo pelo começo do mestrado.
— Animação, grandão. Vai dar tudo certo — falou enquanto dava tapinhas no ombro de
Dante. — Vai dar tão certo que teu pai não vai mais te encher o saco a todo segundo, você vai
ver.
Como se fosse a deixa, o celular de Dante apitou na bancada da cozinha. Ele só deslizou o
dedo na tela para recusar a chamada.
— Por que não bloqueia logo o número deles? — Henrique perguntou.
— Por causa da Ame — Dante explicou. Estava falando de sua irmã mais nova, Amélia.
— Mas como vai saber se é algo sobre ela se você nem atende?
— Quando for sobre ela eu vou saber, eles vão se certificar disso, pode ter certeza. —
Dante deu de ombros.
— Bem, isso não importa agora. — Henrique bateu as mãos uma contra a outra, como se
quisesse espantar o clima pesado. — Te encontro depois do almoço, então. Vida nova, aqui
vamos nós!
Dante tentou se animar com as declarações do primo, mas ainda estava preocupado com
seu futuro. Sabia que a ideia obsessiva de tudo ser perfeito era parte de sua ansiedade e que ele
tinha que aceitar que algo não iria de acordo com seus planos, mas era assustador pensar em
possibilidades que saíam de seu controle. Para Dante, era melhor que ele calculasse qualquer
desvio ou problema que pudesse ter. Era melhor assim.
Tudo já estava correndo como os planos dele: conseguira a orientação da professora Joana
de última hora, não só passara na seleção como passara em primeiro lugar. Tinha garantido uma
bolsa que o manteria bem em Niterói e, apesar de não ser muito conhecedor de práticas
laboratoriais e de pesquisa, aprenderia com rapidez todos os protocolos e técnicas necessárias.
Tudo caminhava de acordo com o que ele arquitetou desde que havia colocado na cabeça de que
tinha que sair de Florianópolis de qualquer jeito.
2024 seria o ano dele, Dante sentia isso.
CAPÍTULO 3
“Para onde eu vou?
Me dê algum tipo de sinal
Me atinja com um raio
Talvez eu volte à vida”
Now Playing: Hard Times
Paramore

Entrar. Dar boa tarde. Anotar meu nome e meus dados na portaria. Subir no elevador.
Entrar no laboratório. Cumprimentar quem quer que esteja lá dentro.
Essa era a lista que Dante fazia em sua cabeça, parado bem em frente ao Instituto de
Biologia da UFF. Respirou fundo, girando o cabo do guarda-chuva sem parar. Por ser grande
demais, seus ombros estavam molhados e ele estava um pouco suado por causa do clima
abafado. Olhou para o próprio peito e conseguiu contar diversos pelinhos de Gororoba presos no
tecido da camiseta. Não era um bom começo.
Cumprimentar quem quer que esteja lá dentro. Falar que estou muito animado. Pedir pra
conhecer o laboratório. Ele continuou, ignorando os maus presságios. Era a coisa mais normal
do mundo: subir e conhecer as pessoas com quem trabalharia durante seu mestrado. Não era nada
incomum, Dante só precisava controlar sua ansiedade primeiro.
Tarefa difícil? Um pouco.
— Ei, grandão, tudo bem aí? Você parece meio verde… — Henrique comentou do carro.
Henrique esticou a cabeça pela janela. Dante deu uma espiadela e amaldiçoou o primo por
sempre parecer legal, não importasse a ocasião. Henrique tinha aquele ar despreocupado que
conquistava qualquer um, com os cachos dourados e a pele bronzeada lhe dando uma cara de
surfista em qualquer época do ano ou mesmo que estivesse chovendo.
Já Dante era um gigante de 1,98m cheio de músculos e tatuagens, além da expressão
carrancuda que nunca conseguia largar. Os músculos e as tatuagens eram algo que ele trouxera
para si mesmo, ninguém o obrigava a entrar numa academia ou num estúdio de tatuagem, mas
ele sabia que chamava a atenção.
E isso era algo que Dante Krause não gostava muito: chamar a atenção.
Bastante irônico para um cara que era notado a mais de três metros de distância, fosse por
sua estatura ou aparência? Sim, mas essa era a vida dele.
— Quer que eu suba com você? — Henrique perguntou e Dante não conseguiu saber se o
primo estava implicando com ele ou não. — Posso estacionar o carro.
— Só vai embora, pelo amor de Deus — disse em um resmungo, caminhando até a entrada
do Instituto. — Eu te vejo mais tarde.
Seu primo deu uma risada enquanto dava partida no carro, dirigindo para fora do campus.
Dante respirou fundo e repetiu sua lista mental antes de fechar o guarda-chuva: Entrar. Dar boa
tarde. Anotar meu nome e meus dados na portaria. Subir no elevador. Entrar no laboratório.
Cumprimentar quem quer que esteja lá dentro.
Entrou na portaria, deu boa tarde para o porteiro, anotou seus dados na entrada. Chamou o
elevador. Quando conseguiu entrar e se viu sozinho, percebeu que estava praticamente
prendendo a respiração. Soltou o ar, franzindo as sobrancelhas, e ajeitou os óculos, além de dar
batidinhas na roupa para se livrar dos pelos de gato. Quando a porta se abriu no quarto andar,
procurou pelo laboratório de Joana. Era quase no fim do corredor.
Ele deveria bater na porta? Só abrir e entrar? Optou por bater uma vez. Nenhuma resposta.
Bateu de novo e nada. Resolveu abri-la com toda a suavidade que tinha, vasculhando o
laboratório enquanto procurava por alguém. A professora Joana não estaria ali, ele já sabia. Ela
havia dito para procurar por Leandro Mendes ou Elis Duarte. O nome Elis não lhe era estranho,
ela tinha ficado em segundo lugar na seleção de mestrado, logo atrás de Dante por um décimo,
então ele se lembrava de seu nome.
Que não fosse a garota toda tatuada que ele vira na semana da seleção. Que sua nova
colega de laboratório não fosse a mulher mais linda que Dante já vira na vida. Tudo menos isso.
Por quê? Alguém poderia lhe perguntar. Dante não era nenhum homem das cavernas e
certamente sabia como se portar como um ser humano normal diante de uma garota bonita. Mas
ela era bonita demais e Dante tinha ficado muito a fim dela, então sua ansiedade subiria a níveis
estratosféricos e ele com certeza falaria alguma idiotice ou faria alguma grosseria por puro
nervosismo. E Dante tinha que se dar bem com seus colegas de laboratório, por isso era melhor
evitar riscos. Não havia tempo para se interessar por ninguém e evitar que isso acontecesse seria
difícil demais se aquela garota fosse sua colega de trabalho.
Talvez eles se esbarrassem pelos corredores, seria mais fácil ignorá-la assim. Tudo menos
ser colega de laboratório dela, tudo menos isso. Era isso que Dante pensava, adentrando o
laboratório de vez.
Passou pela pequena saleta com computadores, identificou a sala escura da microscopia.
Avistou as bancadas no fim do corredor e um escritório com a janela de vidro coberta por uma
persiana.
Quando cruzou o corredor, percebeu que havia uma pessoa bem ali, de costas enquanto
lavava a vidraria. Era uma menina alta de cabelos castanhos e lisos presos em um rabo de cavalo.
Dante notou as tatuagens na nuca que escapavam da gola do jaleco. Ela estava com fones de
ouvido, então ainda não tinha notado sua presença.
Acho que vou me tacar de um prédio, foi o que Dante conseguiu pensar ao se dar conta de
quem era.
Elis Duarte era a garota tatuada da seleção de mestrado.
— Hm… — Ele mordeu os lábios, sem saber o que fazer. Elis ainda não tinha notado a
presença dele.
Cumprimentar. Falar que estou muito animado. Pedir pra conhecer o laboratório. Repetiu
seu mantra, respirando fundo. Tudo bem, ele tinha 26 anos, era um adulto funcional, conseguiria
falar com ela e se apresentar. Não era nada demais, era o começo de sua nova vida e Dante tinha
que se esforçar para tudo dar certo.
Pigarreou. Mas a música que saía dos fones de ouvido dela parecia muito alta. A garota
ainda lavava a vidraria com concentração total, murmurando a melodia da música que escutava.
Ela estava escutando Queens of the Stone Age? Dante também gostava dessa banda. Talvez
pudesse ser um tópico de conversa, talvez eles pudessem ser colegas. Quanto Elis tinha de
altura? Mais de 1,80m, com certeza. Tinha um corpo bonito, com quadris bem largos e coxas
grossas, curvilíneas mesmo debaixo do jaleco. Do que mais ela gostava? Será que eles
combinavam? Será que gostava de caras iguais a Dante? Não conseguiu evitar de pensar, ainda
que estivesse convicto de que não poderia se envolver com ninguém, muito menos com uma
colega de laboratório. Ficou observando as costas dela por um pequeno momento, conjecturando
todas as infinitas possibilidades para se aproximar.
Oi, me chamo Dante Krause. Sou o novo aluno de mestrado. Dante ensaiou em sua cabeça.
Eu te vi na seleção de mestrado, seu nome é Elis, né? A Joana falou pra te procurar. Prazer em
te conhecer. Isso daria certo. Era algo que um adulto funcional diria. Não havia necessidade de
deixar sua ansiedade vencer, era um ato normal e rotineiro, pessoas conheciam outras o tempo
todo. Dante só tinha que colocar a cabeça no lugar.
Esticou o braço. Cutucou o ombro dela com toda a delicadeza possível. Elis levou um leve
susto, virando-se para trás enquanto retirava um dos fones.
De frente um para o outro, Dante sentiu seu sangue subir todo para suas bochechas. Elis
tinha olhos azuis lindos, mas não pareciam muito amigáveis.
Na verdade, assim que se deu conta da presença de Dante no laboratório, uma aura de
antipatia começou a surgir em seu olhar.
Isso o deixou ainda mais nervoso.
— Hm… Dante Krause. O novo aluno — ele disse. Ficou minimamente satisfeito por sua
voz não ter tremido. — Você é a Elis Duarte, não é? Lembro do seu nome, a menina que ficou
em segundo lugar na seleção.
O olhar dela se tornou ainda mais frio. Retirou o outro fone e guardou o aparelho no bolso
do jaleco.
— Sou — foi o que ela disse.
— Ahn… A Joana… Quer dizer, a professora Joana me disse pra te procurar. Pra mostrar o
laboratório.
— Hm.
Silêncio. Ele engoliu em seco. Cumprimentar. Falar que estou muito animado. Pedir pra
conhecer o laboratório. A lista de coisas a se fazer já estava toda embolada em sua cabeça. Estou
muito animado pra começar, fiquei pensando nisso desde que passei na seleção. Não pude vir
antes porque estava resolvendo assuntos de mudança, não sou do Rio. Sou de Santa Catarina.
De onde você é? Estava ouvindo Queens of the Stone Age? Eu adoro essa banda. Do que mais
você gosta? Dante poderia falar tudo isso, começar uma conversa e quebrar o gelo. Mas o olhar
dela o fazia recuar.
— Então você pode, hm… — tentou recomeçar. Suas mãos estavam suadas e ele sentia
palpitações no peito. — Me mostrar o laboratório? Quero começar logo.
Pelo amor de Deus, ele praguejou para si mesmo. Parecia que estava demandando que Elis
cedesse às suas ordens.
Ela franziu as sobrancelhas e cruzou os braços.
— Quer, é? — falou, sua voz tingida de sarcasmo. — Está com pressa? Deveria ter vindo
mais cedo, então. Porque, é difícil até de acreditar, mas você só apareceu agora. A seleção foi em
novembro.
Dante se deu conta de uma coisa bem ali, quando as palavras dela cortaram o ar como
lâminas afiadas. Um desvio de seu plano perfeito para ter o mestrado dos sonhos.
Elis Duarte, a garota tatuada da seleção, a mulher mais linda que ele já vira na vida, já o
odiava com tudo que tinha.
— Eu juro que te odeio, Martim. Juro que te odeio — Leandro resmungou para a tela do
celular, assistindo o amigo pela chamada de vídeo. Ele estava cozinhando o jantar, pelo visto,
com seu eterno sorrisinho zombeteiro estampado no rosto.
— Por que você me odeia? — Martim deu de ombros, mexendo o que quer que fosse na
frigideira. — Eu só te convidei pro meu casamento. Como padrinho, aliás.
Leandro franziu a boca, sentindo uma pontada de raiva ao notar a felicidade do amigo que
agora desfrutava de sua incrível vida de casado na Dinamarca. Eles eram amigos desde a
graduação e Leandro o amava com tudo que tinha, mas estava um pouco irritado. Nada do que
acontecia com ele era culpa de Martim e, ainda assim, Leandro estava irritado.
Porque foi no casamento de Martim e Tatiana – sua outra grande amiga – que ele cometeu
um grande erro.
Leandro tinha engravidado a namorada no fim de semana que viajara para o casamento dos
dois. Toda a atmosfera de amor e vitória do casamento os animara e eles se esqueceram da
camisinha quando transaram na volta da cerimônia. Dois meses depois, a notícia: Leandro seria
pai em um dos anos mais conturbados de sua vida.
Primeiro, seu pós-doutorado estava terminando e ele estava com dificuldades em conseguir
uma renovação. Segundo, sua orientadora estava de licença por tempo indeterminado por causa
da gravidez, então Leandro agora era responsável pelo laboratório inteiro. Terceiro, seu aluno de
doutorado e um de seus grandes apoios, Gustavo Choi, ainda não tinha voltado do intercâmbio
na Coreia do Sul. Quarto, sua aluna de iniciação científica, Lis, estava cabisbaixa e desesperada
porque tinha que defender seu TCC naquele semestre e corria o risco de não ter bolsa no
mestrado, porque passara em segundo lugar na seleção e não tinha conseguido adiantar sua
defesa. Então Leandro, como seu coorientador, teria que resolver qualquer crise que surgisse
com ela.
E, quinto, ele agora tinha que lidar com um novo aluno de mestrado que surgira do nada,
que era médico, que não tinha experiência nenhuma de laboratório. Teria que ensinar tudo, ficar
de olho em qualquer coisa que pudesse dar errado.
Era muita coisa para lidar. E ele não se sentia preparado para nada daquilo.
— Você me fez acreditar no amor! — choramingou para o amigo. — Vocês dois me
fizeram acreditar em coisas impossíveis e agora quem tá na merda sou eu! Você é um filho da
puta, Martim Takahashi.
— Siqueira — Martim o corrigiu. — Peguei o sobrenome da minha esposa.
— Que seja. Você é um filho da puta. Sabe quantos pepinos eu tenho que resolver hoje?
— Faz o que você mesmo vive me dizendo, Leandro. — Seu amigo nem se importou com
os xingamentos, só continuou cozinhando com toda calma do mundo. — Vamos por partes. O
que você tem que fazer hoje?
— Reenviar os relatórios de renovação de contrato. Mandar o e-mail pra colaboração na
UERJ. Receber o aluno de mestrado novo. Fazer com que a minha IC não mate ele.
— Por que ela mataria ele? — Martim deu uma risada. — Eles nem se conhecem direito.
— Porque ele tomou o primeiro lugar dela. Porque a Lis é competitiva pra caralho, só ela
não nota isso. E porque ele olhou errado pra ela na seleção. Palavras dela.
— Histórias de amor começam assim…
— Cala a boca. — Leandro fez cara feia. — Se falar de amor e o cacete de novo pra mim,
eu juro que compro uma passagem direto pra Dinamarca só pra te socar.
— Melhor economizar pra comprar fralda…
Leandro o xingaria mais se pudesse. Contudo, ouviu uma movimentação do lado de fora do
escritório de Joana. Levantou uma das persianas para espiar o laboratório.
Lis estava lá, de braços cruzados. Um rapaz gigantesco estava parado bem em frente a ela,
devia ser o tal de Dante. E Leandro sentiu que poderia cortar a tensão que se formava ali com
uma faca de manteiga.
— Ah, eles vão se matar — sussurrou para Martim.
— Você está sendo pessimista demais. Deixa eu ver.
Leandro virou a câmera. Martim permaneceu alguns segundos em silêncio absorvendo a
cena.
— É. Eles vão se matar — concluiu.
— Falo com você mais tarde… — Leandro desligou a chamada, despedindo-se.
Levantou-se às pressas e saiu do escritório de Joana. Ficou um pouco assustado quando
teve que inclinar bem a cabeça para trás para encarar Dante Krause. Parou entre os dois,
ignorando o pensamento de que ele parecia encenar uma cena de Senhor dos Anéis, quando os
personagens atravessam as águas entre as Duas Torres.
E Leandro era um hobbit ao lado daqueles dois. Um hobbit indefeso bem no meio de duas
torres que pareciam bastante intimidadoras. Ele custou a se lembrar de que era praticamente o
chefe em exercício do laboratório no momento.
— Dante Krause! — ele quase deu um grito. Pigarreou e conseguiu se recompor. — Você
é o Dante, né? A Joana me disse que você chegaria hoje. Bem-vindo!
— Ah, obrigado — Dante falou baixo, engolindo em seco.
O clima estava estranho, Leandro conseguiu notar perfeitamente. Lis tinha dito algo para
ele? Há quanto tempo estavam conversando? Leandro estava distraído demais, ele era o
responsável, tinha que fazer tudo dar certo.
— Eu sou o Leandro, o pós-doc — disse com uma animação forçada. — Sou o responsável
pelo laboratório enquanto a professora Joana está de licença. Então qualquer coisa que precisar, é
só me chamar!
— Prazer. E… obrigado — Dante repetiu, parecendo cada vez mais desconfortável.
Leandro olhou para Lis de soslaio. Ela não parecia nada interessada pela presença do novo
colega. Na verdade, estava com uma cara de poucos amigos que lhe trouxe arrepios. Lis
costumava ser bastante simpática e acolhedora, mas ainda devia remoer o resultado da seleção e
seu grande rival estava bem na frente dela. Aquilo era outra coisa que Leandro teria que resolver.
Rivalidades acadêmicas em laboratórios nunca terminavam bem, ele se lembrou. E a
última coisa que precisava era de dois alunos se matando por causa disso.
— Essa aqui é a Lis, a nossa IC! A grande Deusa da Neuro! — Leandro a segurou pelos
ombros. — Ela é um docinho de pessoa, não hesite em procurá-la pra qualquer coisa! Tenho
certeza de que vocês serão grandes amigos!
Tem? Dante se perguntou, ousando olhar para Lis mais uma vez.
Ela ainda parecia querer assassiná-lo.
Leandro nem lhe deu tempo de responder qualquer coisa. Largou Lis e o puxou pelo braço,
ainda tagarelando sem parar.
— E agora vamos conhecer o laboratório! Você vai amar, vai ser incrível, você e a Lis vão
se dar muito bem, tenho certeza! Melhores amigos que vão trabalhar muito bem, né? E quando o
Gustavo, o nosso aluno de doutorado, voltar do intercâmbio, nosso time vai estar completo e
todos nós vamos nos dar muito bem, pode ter certeza!
Meu Deus do Céu, Leandro se repreendeu. Ele parecia um maluco.
Pensou no que seu amigo Martim dissera, que ele tinha que fazer as coisas por partes.
Quão difícil poderia ser receber um aluno novo de mestrado? Leandro só tinha que lidar com o
comportamento de sua IC por um tempo até que ela se esquecesse da rivalidade e voltasse a ser a
garota simpática e proativa que sempre fora.
Futura paternidade, chefe de laboratório sem ter experiência nenhuma, mentor de alunos
problemáticos, pós-doc em breve sem bolsa. Leandro tinha um longo semestre pela frente.
Mesmo dividindo tudo em partes, ainda era muita coisa para fazer.
2024 seria um ano longo demais, ele tinha certeza.

Lis observou Dante sair do campus pela varanda do segundo andar do Instituto,
debruçando-se no parapeito. Apoiou o queixo em uma das mãos, fitando a imagem de seu
nêmesis se distanciando do prédio no fim da tarde, quando a chuva já havia parado. Em seguida,
estendeu o celular diante do rosto para ler a mensagem que Leandro lhe enviara assim que o
novo aluno foi embora.
Leandro Mendes
Lis querida do meu coração
Por favor, pega leve com o aluno novo
Você sabe que eu tô cheio de coisa pra resolver esse semestre
Me ajuda aí
Você é incrível e vai dar tudo certo com o TCC
Mas preciso da sua ajuda com o Dante
Ele precisa aprender a rotina do laboratório
E eu não tenho tempo pra nada
Se todo mundo se ajudar
Todo mundo fica feliz
Conto com você, tá bom?
Soltou um suspiro. Repreendeu-se por estar sendo tão infantil ao ponto de até Leandro ter
notado seu mau-comportamento.
E ela tinha sido tão grossa com Dante à toa.
Lis odiava ser mal-educada, odiava deixar as pessoas desconfortáveis. Não era do feitio
dela ser antipática, mesmo que alguém lhe tratasse mal. Mas a presença de Dante ali a deixou
com raiva. O que ele havia dito? “Você é a Elis Duarte, não é? Lembro do seu nome, a menina
que ficou em segundo lugar na seleção.” Ele tinha mencionado a colocação na seleção de
propósito? E o que significava a frase “Então você pode me mostrar o laboratório? Quero
começar logo”? Tinha sido um pouco grosseiro da parte dele, como se Lis fosse obrigada a
atendê-lo de imediato. Aquilo ferveu o sangue dela.
Será que estou vendo coisas? Refletiu. Talvez ele tivesse dito de outra forma, talvez
estivesse nervoso como Jana havia sugerido. “A menina que ficou em segundo lugar na
seleção”. Importar-se tanto com essa frase a deixava ainda mais irritada.
Ainda insatisfeita, digitou uma resposta para seu coorientador.
Elis Duarte
Tudo bem
Desculpa
Não tava muito bem hoje e pareci um pouco mal-humorada
Vou ajudar com o Dante, não se preocupa
Eu vou dar um jeito

Eu vou dar um jeito. Lis pensou mais uma vez, respirando fundo enquanto ainda assistia
Dante ir embora.
Vê-lo tão de perto lhe trouxe arrepios que não tinham nada a ver com a antipatia que lutava
para sustentar. Ainda estava com as palavras de Jana na cabeça, de que Dante fazia o tipo dela.
Era verdade, ele fazia. Lis tentou se manter plena mesmo com o susto que levara ao se
deparar com Dante. Tentou não ficar olhando para as tatuagens, então acabou fitando o peito
dele, percebendo que havia vários pelinhos de gato presos na camiseta preta. Será que ele tem um
gato? Perguntou-se. Lis gostava bastante de gatos, ela mesma tinha um – ele ficava na casa da
mãe dela, porque Lis não poderia levá-lo para a república – então talvez isso pudesse ser um
assunto de conversa e os aproximasse. Talvez eles pudessem mesmo ser amigos.
“Então você pode me mostrar o laboratório? Quero começar logo”, “A menina que ficou
em segundo lugar na seleção”, as frases amargavam em sua mente. Como interpretar essas
frases para algo além da arrogância? Como não se sentir ameaçada no único espaço seguro que
lhe sobrava, no único tópico que ela tinha extrema confiança? Lis já era segundo lugar na família
dela, na vida em geral. Perder espaço no laboratório para alguém tão arrogante era algo que ela
não conseguia aceitar muito bem.
Afastou-se do parapeito, saindo da varanda. Daria um jeito, tinha que dar. Nutrir uma
inimizade com Dante Krause não lhe serviria de nada, só a deixaria mais frustrada. Ela tinha que
se focar no TCC. Tudo que importava agora era seu TCC.
Assim que saiu do prédio, ouviu seu nome ser chamado. Virou a cabeça para enxergar Jana
e Emília se aproximando, vindas do caminho pela orla. As duas estavam de braços dados e
pareciam mais animadas do que qualquer coisa. Emília se soltou e correu até ela, dando pulinhos
alegres, seu cabelo rosa esvoaçando por causa da corrida.
— E aí? — perguntou. — Se encontrou o Dante?
Lis torceu os lábios. Não era difícil saber o que Emília queria com aquela pergunta.
Emília Park, desde que entrara na faculdade, tinha a fama de ser a cupido da biologia. Sua
fama era tanta que a chamavam de Besourinha do Amor, por causa de uma aula de zoologia que
tiveram e Emília havia ficado encantada com o inseto, que na verdade era uma espécie de mosca,
não um besouro. A partir daí, Emília colecionava casos bem-sucedidos de casais que só ficaram
juntos por causa de sua intervenção.
E desde que Lis contara sobre o primeiro encontro na seleção, Emília e Jana arquitetavam
um plano tosco de juntá-la com Dante Krause. Só porque Lis comentou, como quem não quer
nada, que ele talvez fosse o cara mais lindo que já tinha visto na vida.
Só por causa disso!
Irritante, sem-noção, um absurdo. Mas aquelas eram as melhores amigas de Lis. E a
animação das duas sempre a contagiava de alguma forma.
— Sai fora, Besourinha. Nem começa — Lis se antecipou. Quis rir da careta de decepção
de sua amiga.
— Lis! — Emília soltou um gritinho esganiçado. — Só me diz como foi! É só isso que
quero saber.
— Foi normal, ele chegou e a gente mostrou o laboratório pra ele — explicou, indo pelo
mesmo caminho que as duas vieram.
— Se você não contar cada palavra que disseram um pro outro com os mínimos detalhes,
ela nunca vai calar a boca — Jana argumentou.
Lis bufou. Não adiantava querer esconder algo das amigas.
— Ele chegou e a primeira coisa que disse foi: “Você é a Elis Duarte? Lembro do seu
nome, a menina que ficou em segundo lugar na seleção.”
— A menina que ficou em segundo lugar?! — Jana quase deu um grito.
— E depois disse: “Pode me mostrar o laboratório logo?”
— Não acredito! Grosso assim?!
— Algo assim, já não me lembro mais. — Lis fez pouco caso. Ainda não sabia com qual
tom Dante havia dito aquilo.
— Esquece isso então, Mi — Jana pediu para Emília. — Ele parece ser mesmo um escroto.
— Certeza absoluta que foi um mal-entendido. Meu sexto sentido tá me dizendo que esse
Dante é uma boa pessoa.
— Você nem conhece ele.
— Por isso que falei que foi meu sexto sentido que disse. E ele nunca erra. Dante e Lis vão
dar match.
— Pelo amor de Deus… — Lis revirou os olhos.
Pensou novamente em Dante bem em frente a ela, com sua altura imponente, olhar
intimidador e pelos de gato na camiseta. Eram sinais contraditórios, Lis não sabia exatamente o
que pensar.
— Mesmo se ele fosse legal, a gente não ia dar match — tentou explicar para a amiga. —
Não tenho tempo pra isso, Mi. Quero defender no máximo em junho.
— E vai! Mas isso não te impede de se relacionar com um cara que tem tudo a ver contigo.
Confia em mim, eu nunca erro. Estaremos todas lindas e acompanhadas em julho, na nossa
colação.
— Nenhuma de nós tem namorado — Jana a lembrou.
— Detalhes. Até julho tudo pode mudar. E Lis vai ser meu melhor trabalho de cupido, eu
nunca brincaria em serviço com o coração de uma das minhas melhores amigas.
— E eu? — Jana fez um beicinho. — Também quero um match da Besourinha do Amor.
— Seu par vai chegar ainda, estamos no aguardo. Por enquanto, é a operação Dalis.
— Às vezes eu me pergunto por que ainda escuto vocês duas… — Lis resmungou.
— Porque você ama a gente. — Emília deu de ombros. — Agora, vamos. Você ainda tem
que contar cada detalhezinho, não esconda nada!
Lis deixou que Emília e Jana entrelaçassem seus braços com os dela, já imersa na alegria
das duas. Talvez ela devesse escutá-las de verdade e tentar enxergar um lado de Dante Krause
que ainda lhe era desconhecido.
Pelo bem de sua sanidade e convivência no laboratório naquele semestre conturbado, Lis
tinha que se esforçar para se dar bem com ele.
Custasse o que custar.
CAPÍTULO 4
“A cidade está lotada
Meus amigos estão longe
E estou por minha conta
Está muito quente para aguentar
Agora tenho que me erguer e ir”
Now Playing: Cruel Summer
Ace of Base

22/01/2024
177 dias para o fim do semestre
Lis queria muito se dar bem com Dante. Muito mesmo. De verdade, tudo que Lis mais
queria era deixar a rivalidade no passado e se dar bem com ele, que se tornassem bons colegas de
trabalho.
Contudo, durante as duas semanas que se passaram, Lis percebia que essa tarefa seria um
pouco difícil.
Dante era calado demais. Esse era o primeiro ponto. Não um calado de timidez, mas um
calado de pura arrogância. Ele não parecia se interessar por nada. Lis lhe mostrara o laboratório
inteiro mais uma vez no dia seguinte ao primeiro encontro e Dante mal esboçou reação. Só ficou
quieto, franzindo o cenho às vezes, seus óculos se mexendo sobre a ponte do nariz enquanto a
ouvia tagarelar sobre as técnicas de imuno-histoquímica que realizavam. Lis quase se viu
agradecendo pelo fato da maioria das salas ser um pouco escura, porque assim ele não a veria
revirar os olhos até que eles quase perfurassem seu cérebro.
Segundo, Dante não queria ser amigo dela, talvez nem colega quisesse. Eles pararam para
almoçar naquele dia e ele resmungou que arranjaria algo para comer. Desapareceu por uma hora,
depois voltou e ficou sentado no canto da sala dos alunos, esperando pelo resto das instruções.
Lis tentou relevar o incidente, pensando que no dia seguinte talvez ele pedisse algo ou trouxesse
comida de casa. Ledo engano, Dante desaparecia de vista a qualquer menção da hora do almoço.
E ele nem se dava ao trabalho de convidá-la para acompanhá-lo ou dar alguma justificativa.
Dante fugia da sala como se a ideia de almoçar com Lis fosse uma tortura medieval.
E, terceiro, Dante parecia menosprezá-la. No meio da semana passada, Lis tentou mostrar
o passo a passo da montagem de lâminas para a técnica de imuno-histoquímica. Ficou até irritada
consigo mesma, por sua voz ter saído um pouco fina e animada demais. Mas tudo que Dante lhe
ofereceu foi uma série de “Hm” e o som de sua lapiseira escrevendo no caderno. Ele não tinha
dúvida nenhuma, não tinha perguntas, nada.
Será que ele achava que aprender técnicas com uma garota que ainda não tinha se formado
era perda de tempo? Lis o vira acompanhando Leandro uma vez durante uma corrida de
proteínas e conseguiu ouvi-lo fazendo perguntas, sustentando uma conversa com Leandro. Como
se fosse uma pessoa normal.
O problema era ela? O que ela tinha feito? Essas eram as perguntas que Lis se fazia
naquela segunda-feira, acordada antes mesmo do despertador tocar. Normalmente ela tinha
problemas para levantar da cama, mas desde que Dante Krause havia chegado, ela acordava
quase com o nascer do sol.
Alcançou o celular na mesinha de cabeceira, fazendo o mínimo de barulho para não
acordar Jana ao seu lado. As outras meninas também estavam em um sono profundo, então Lis
só acendeu a tela do aparelho para conferir que horas eram, refletindo se poderia tentar dormir
mais um pouco.
5h50 da manhã e o ar já estava abafado. 2024 começara com chuva, mas nem isso
amenizava o calor, Lis já estava suando. Sem ter muito o que fazer e ciente de que não
conseguiria voltar a dormir, desativou o alarme antes que ele tocasse e conferiu as mensagens.
Várias de sua família já lotavam sua caixa de entrada do WhatsApp. Sua mãe pedia que Lis
fosse para casa em algum dia daquela semana para ajudar com o problema de gás que estava
tendo na casa. Isabela mandou um texto enorme se lamuriando por ter discutido algo com
Gabriel naquela noite e pedia sua ajuda para conversar com o namorado. E o próprio Gabriel lhe
mandou uma mensagem dizendo: “Não consigo entender a sua irmã. A gente pode conversar?
Minha cabeça tá explodindo”.
A mensagem de Gabriel a irritava um pouco, mesmo que não quisesse admitir. Na época
que Isabela e Gabriel anunciaram que estavam juntos, quatro meses depois do término com Lis,
ela havia jurado que não tinha problema nenhum, logo após a mãe tê-la puxado em um canto e
dito para não fazer alarde, já que essas coisas aconteciam e Isabela também merecia ser feliz.
Tinha sido a própria Lis que terminara o namoro, então ela não devia se importar, certo? Lis
garantiu para todos que não se importava mesmo e que estava feliz pelo casal, de verdade.
Não era nada verdade, Lis se importava até demais, teria que admitir isso se quisesse ser
sincera pelo menos uma vez na vida. Seu namoro com Gabriel foi cheio de companheirismo e
amizade. Lis havia terminado porque não se achava mais apaixonada por ele, só isso.
Mas em momento algum ela quis que Gabriel se transformasse na porra de seu cunhado.
Respirou fundo, ignorando a montanha de sentimentos que surgia sempre que pensava no
assunto, e começou a digitar as respostas. No entanto, seu celular começou a tocar de forma
estridente. Todas as meninas se remexeram e resmungaram, Jana a cutucou para que ela saísse da
cama.
Lis abaixou o volume e conferiu de quem era a chamada. Contudo, pela hora e a falta de
noção, só podia ser uma única pessoa.
— Gustavo, não são nem seis horas da manhã aqui — ela sussurrou, franzindo o rosto para
a imagem do amigo do outro lado da tela. Saiu do quarto em passos leves, fechando a porta.
Depois se sentou no sofá da sala, inclinando-se no braço do móvel.
Gustavo Choi, o aluno de doutorado de seu laboratório e que, no momento, estava
terminando seu intercâmbio na Coreia do Sul, só inclinou as sobrancelhas em resposta.
— Eu sempre esqueço do fuso horário — ele afirmou. — E vi que você tava online, então
liguei. Tá podendo conversar ou tá com muito sono ainda?
— Pode falar, eu já tinha acordado de qualquer forma. Tá um calor do cão aqui. Como
estão as coisas aí?
— Um inverno do cão? — Gustavo sorriu. — Mentira, podia estar pior. Hoje fez sol em
Seul, mas a temperatura tá em -8ºC.
— Credo.
— É sério. Não está tão ruim assim. Até saí pra caminhar. Aí comecei a pensar no seu
projeto e tive uma epifania, por isso te liguei. E se a gente visse os níveis de tirosina-hidroxilase
nos seus animais? Eu li uns artigos hoje de manhã e…
Lis soltou um bocejo. Seis horas da manhã e Gustavo queria que ela soubesse o que era
tirosina-hidroxilase. Ela nem conseguia se lembrar do próprio nome direito.
— …porque seus animais têm um perfil exploratório bem maior do que os animais
controle, então pensei que a gente podia dar uma olhada no estriado deles também e… —
Gustavo ainda estava falando. Parou quando percebeu os olhos sem brilho de Lis pelo outro lado
da tela. — Você não tá nem me ouvindo, Lis.
— Seis horas da manhã, Gustavo. E você teve essa epifania enquanto caminhava no meio
da neve? Cruzes.
— Não está nevando e já disse que fez sol hoje. — Gustavo torceu os lábios. Depois soltou
um suspiro, insatisfeito. — Tudo bem, vou te ligar de noite, então. Eu acordo cedo de qualquer
forma, então não vai ser problema.
Claro que Gustavo acordava cedo, mesmo em um inverno rigoroso na Coreia do Sul. Lis
conseguia imaginá-lo acordando às quatro da manhã, no frio, já pensando em artigos para ler e
experimentos para fazer. Não era à toa que o apelido dele no laboratório era “Gustavo Surtado”.
— Como estão as coisas no laboratório? — Gustavo perguntou. — Como o novato está
indo?
Lis demorou para responder. Pensou em alguma forma de contar as novidades sem que
Gustavo notasse o ranço em sua voz.
— Ahn… — Ela não conseguiu pensar em nada.
— Não gostou dele?
— Não tenho opinião formada ainda? — Lis arriscou a resposta.
— Lis…
— Não sei o que pensar. Ele é caladão e… Sei lá, parece que não se interessa muito pelo
que eu falo.
— Mas você não tá ensinando tudo pra ele?
— Tô, mas talvez ele se sinta desconfortável por ter que aprender as coisas com uma IC
sendo aluno de mestrado.
— Besteira. Você é especialista nas técnicas do nosso laboratório. Sei disso porque fui eu
que te ensinei todas. Se esse babaca tá te menosprezando por isso, eu…
— Ele não tá me menosprezando — Lis se apressou em dizer. Gustavo podia ser ranzinza
com a maioria das pessoas, mas era protetor quando se tratava de seus amigos. — Ele só é…
quieto. Devo ter entendido errado.
— Quer que eu fale com o Leandro?
— Não! O Leandro tá cheio de coisa na cabeça, vai ser pai daqui a pouco e… Não se
preocupa, Gustavo. Só estou com muita coisa pra fazer e sem paciência pra ensinar. Mas vai dar
tudo certo.
— Sei. Bem, eu volto em maio. Consegue segurar as pontas com o novato até lá? Aí depois
eu assumo esse pepino.
— Acho que sim. E obrigada. Não precisa se preocupar, eu vou dar um jeito.
— Sei que vai. Não duvido disso. Só não quero um babacão te colocando pra baixo no
meio do seu TCC. Vou deixar você voltar a dormir, então. Bom dia e qualquer coisa é só me
ligar.
— Bom dia. Ou boa noite, não sei. — Lis soltou uma risada. — Falo com você mais tarde,
até.
Lis desligou e se deitou no sofá, encarando o teto. Pelo menos a falta de noção de Gustavo
a fizera esquecer de seus problemas familiares.
— Foco, Lis. Foco — disse para si mesma, dando tapinhas nas bochechas para acordar de
vez. — Tá acabando. É só ignorar os problemas e terminar. Depois tudo vai dar certo.
Levantou-se e caminhou até o banheiro. Tomaria um banho, tomaria café e iria direto para
UFF. Apesar de tudo, ela e Dante tinham um longo dia de experimentos pela frente, Lis não
podia se atrasar se quisesse terminar tudo antes de escurecer.
Tirou a roupa e entrou no chuveiro. Soltou o ar quando a água morna tocou seu corpo.
Entretanto, o alívio se foi em poucos segundos. Ela ouviu um estalo alto da rua e a luz do
banheiro se apagou instantaneamente. Ao mesmo tempo que a água ficava fria, escutou as
meninas reclamando, gritando e acordando, já que o ventilador tinha parado pela falta de luz
repentina e o calor abafado se alastrava pelo apartamento com rapidez. No verão, dias assim
eram mais comuns do que deveriam.
— Porra… — resmungou, imóvel enquanto a água gelada esfriava seu corpo.
Pelo menos ela não estava mais com calor.

Lis só conseguiu ir para a UFF às 10h. Ficou o resto daquele tempo falando com a
companhia de luz e com Dona Etelvina, suando enquanto tentava fazer com que a energia
voltasse. Jana teve que sair cedo para o laboratório e Lis acabou tendo que resolver o problema
sozinha, já que as outras meninas só sabiam reclamar do calor e choramingar que tudo era culpa
de Dona ET. Lis ficou com o celular pendurado na orelha o máximo que pôde, mas também não
podia se atrasar, já que havia marcado com Dante às 10h30.
Ela mal teve tempo de tomar café da manhã. Pegou uma fatia de pão e passou margarina
enquanto vestia a blusa, calçou o tênis e abotoou a calça ao mesmo tempo que escovava os
dentes. E saiu correndo de casa sem mal pentear o cabelo, porque já era 10h e Deus a livrasse do
tormento de fazer Dante Krause esperar um pouco por ela.
Por isso, ela virava a esquina do campus Gragoatá esbaforida, com as bochechas vermelhas
e gotas de suor escorrendo pelo corpo inteiro, lhe dando aquela sensação pegajosa terrível
mesmo que tivesse tomado banho de manhã. Seu cabelo era uma bagunça esvoaçante e ela se
perguntou por um momento se tinha colocado a blusa do avesso, porque algo pinicava sua nuca.
Pelo menos ela teria tempo de se recompor no banheiro antes de ter que se deparar com seu
nêmesis.
No entanto, seu plano foi por água abaixo assim que ela entrou na rua da entrada do
campus. Um volvo preto, com os vidros escuros, estacionou na calçada oposta, tão silencioso que
mal parecia estar ligado. Dante saiu do espaço do carona e Lis quase pôde sentir a potência do ar-
condicionado do veículo. Ele bateu a porta e o carro foi embora, silencioso como antes.
Aquilo era um Uber Black? Lis não conseguiu evitar de pensar. Acho que é chique demais
até pra um Uber… Dante a avistou e ela notou novamente os pelinhos de gato na camiseta preta,
as tatuagens nos braços e na garganta, os cabelos ondulados.
E, claro, o olhar que fazia com que ela se sentisse uma poeira insignificante no universo.
Isso é coisa da sua cabeça, Lis. Você mal o conhece. Pensou. Dê uma chance e… Só dê
uma chance pra não ter mais problemas. Foi o que ela concluiu enquanto atravessava a rua para
cumprimentá-lo. Dante mal se mexeu, só ajeitou a alça da mochila em um dos ombros, seguindo-
a com os olhos.
— Oi! — Lis disse com toda animação que conseguiu reunir. — Chegou cedo, a gente
marcou só 10h30.
— Não queria te deixar esperando — ele murmurou, incerto.
Dante se manteve cauteloso, observando as ações de Lis. As últimas duas semanas tinham
sido um inferno para ele. Toda sua esperança de ter um mestrado perfeito escorria como água por
seus dedos, tudo por causa de um único fator.
E ele se chamava Elis Castro Duarte.
Que Lis não gostava dele já era um fato muito bem concretizado. Aquele olhar cortante e a
frase sarcástica no primeiro encontro lhe disseram tudo que Dante precisava saber sobre ela. Lis
o desprezava por algum motivo e não suportava a presença dele no laboratório. Ele se manteria
longe se pudesse, mas Leandro a colocou para ensiná-lo quase todos os protocolos, então os dois
estavam sendo forçados a conviver diariamente.
E como aprender com alguém que não estava disposto a ensinar? Lis demonstrava tudo de
uma maneira extremamente condescendente. Usava até um tom de voz infantil e um pouco
esganiçado, como se ele fosse incapaz de entender as coisas mais simples. Foi assim por duas
semanas inteiras e seria assim até que Dante pudesse fazer os experimentos por conta própria.
Algo que demoraria ainda, talvez ele passasse o semestre inteiro só aprendendo.
Um péssimo começo. Dante se considerava uma pessoa paciente e sabia que as coisas
melhorariam com o tempo, mas já estava ficando um pouco desesperado.
Os dois entraram no campus. Caminharam em silêncio um ao lado do outro, a quietude do
campus vazio amplificando o desconforto. Ele ousou espiá-la de soslaio, procurando alguma
abertura que pudesse amenizar o clima estranho.
Lis estava vestindo a blusa do lado avesso. Não era um bom tópico de conversa, talvez ela
se sentisse constrangida se ele a alertasse. Por isso, só permaneceu quieto, acompanhando-a até o
Instituto de Biologia.
Entraram no prédio, Lis pegou a chave do laboratório na portaria e os dois entraram no
elevador. Dante tentou não ficar encarando, mas notou quando Lis franziu o rosto ao fitar a
própria imagem.
Talvez tivesse se dado conta de que estava com a roupa ao contrário.
— Vou no banheiro primeiro, pode abrir o laboratório enquanto isso? — ela perguntou,
observando-o através do espelho.
Dante só fez um meneio com a cabeça, concordando. Ela se virou e estendeu a chave.
Fizeram contato visual direto e Dante espremeu os lábios, sentindo suas bochechas começarem a
esquentar.
Por que Lis era tão bonita? Era injusto que alguém que fazia totalmente o tipo dele fosse
tão antipática.
Chegaram no quarto andar, Lis foi direto ao banheiro e Dante caminhou até o laboratório
de Joana, destrancando-o. Ligou a luz e deixou sua mochila no armário. Depois abriu sua gaveta
– Leandro havia lhe cedido uma gaveta no laboratório, para que ele pudesse colocar suas coisas –
e retirou seu jaleco dobrado. Lis chegou no exato momento que ele terminava de abotoá-lo.
A blusa estava do lado certo agora e ela parecia um pouco mais arrumada. Não falou nada,
só deixou a mochila no mesmo armário que Dante e buscou o próprio jaleco, abotoando-o
enquanto abria seu caderno de experimentos.
— Ok, vamos lá! — Lis exclamou e lá estava aquele tom condescendente de novo. Dante
franziu o rosto para ela. — Muita coisa pra fazer hoje, vamos começar logo.
Dante concordou com outro aceno de cabeça. Lis o fitou por um momento, esperando
alguma resposta mais satisfatória, depois só soltou um suspiro, cansada. Ela tinha dormido mal,
estava com calor ainda e ser simpática à toa era exaustivo. Foi até a bancada e se abaixou para
pegar um isopor vazio. Ela o estendeu para Dante.
— Pode pegar gelo? Você lembra onde pega? Te mostrei isso semana passada —
perguntou. — Lembra por que a gente tem que fazer no gelo?
Claro que Dante se lembrava. A coleta de amostras era feita no gelo para evitar a
deterioração dos tecidos. Quem ela achava que ele era, um desmemoriado? Um pouco
impaciente, ele só deu outro meneio e pegou o isopor, saindo do laboratório em silêncio.
Lis tratou de arrumar todos os itens que usaria para a coleta e tentou não se importar com o
fato de que Dante mal se dava o trabalho de trocar mais de duas palavras com ela.
Vai ser assim o semestre inteiro? Pensou.
Dante voltou com o gelo assim que Lis tinha terminado de arrumar tudo na bancada.
Estava um pouco nervosa, então pigarreou antes de começar.
— Certo, senta aqui do meu lado. — Deu um tapinha na cadeira vazia para indicar o lugar.
— Meu projeto de TCC envolve áreas cerebrais sensíveis ao estresse. Basicamente, faço uma
análise comportamental e neuroquímica dos animais que são submetidos a fatores ambientais
estressantes. Sendo assim, hoje vamos colher amostras de hipocampo, córtex pré-frontal e talvez
o estriado também, todas áreas que podem ser afetadas por esse tipo de protocolo. E essa coleta
será pra corrida de proteínas.
— Ok — Dante concordou em um murmúrio.
— É importante que você entenda que estamos lidando com tecido vivo e com modelos
animais. Seguimos um protocolo estrito autorizado pelo CEUA[1] e todo o processo deve ser feito
com o máximo de cautela possível.
— Ok.
— Levamos em consideração todo o conceito de bioética, priorizando o princípio dos
[2]
3Rs , que são Redução, Substituição e Refinamento.
Silêncio. Lis se lembrou da piadinha que Jana costumava fazer, dizendo que sempre faltava
um “R” que ela nunca conseguia achar.
— Substituição no sentido de Replacement… — começou a explicar.
— Sei o que significa — Dante a cortou. Estava com o rosto franzido, as sobrancelhas
apertadas.
Mais silêncio. Enquanto Lis se perguntava sobre o motivo da rispidez, Dante refletiu se ela
achava que ele era tão incompetente ao ponto de nunca ter ouvido falar do princípio dos 3Rs.
Depois sentiu um pouco de culpa, reconhecendo a grosseria. Mas estava cansado da atitude dela.
Meu Deus, será que a gente nunca vai se dar bem? Perguntou-se. Era difícil sair do modo
autodefesa, talvez ele estivesse criando uma inimizade à toa.
Depois do primeiro embate, Lis ficou quieta o resto do tempo. Coletou o tecido cerebral e
retirou as partes que queria, espiando Dante anotar suas observações no caderno e desenhar
esquemas para ilustrar todo o procedimento. Ela deu uma olhadela nos desenhos. Eram bons e
eficientes, será que ela devia elogiá-lo? Mas e se Dante lhe desse outro fora, dizendo que era
óbvio que sabia desenhar? Lis resolveu continuar em silêncio.
Passaram horas assim. Lis estava prestes a recomeçar a coleta de mais tecidos quando
Dante se pronunciou pela primeira vez depois de muito tempo.
— Eu… — murmurou. — Posso tentar fazer?
Lis parou para pensar. Seria um bom momento para quebrar o gelo, mas a prática não era
muito recomendável. Gustavo só a deixou lidar com a coleta meses depois de sua entrada no
laboratório.
— Melhor não — resolveu falar. — Você não sabe fazer nada. Nunca fez nada do tipo na
sua faculdade, né?
Mais uma troca de olhares. Dante odiava ser subestimado, tinha sido assim a vida inteira
com sua família. Uma raiva começou a borbulhar dentro dele.
— Eu… — começou.
— E aí, galera! — O segundo embate foi interrompido pela entrada repentina de Leandro.
— Boa tarde, meus aluninhos! Tudo certo?
Dante mordiscou os lábios, desviando o olhar. Lis fez uma tentativa de entender aquela
expressão. Ela tinha sido grossa de alguma forma? Por que tudo que dizia para ele parecia soar
rude demais?
Leandro se aproximou da bancada, sorridente. Tivera que chegar mais tarde naquele dia,
porque precisou acompanhar sua namorada no obstetra. Feliz, deu tapinhas nos ombros dos dois,
estudando a fisionomia de seus alunos.
Como sempre, Lis e Dante pareciam em pé de guerra. Tinha sido assim desde a chegada do
novato. Lis sempre parecia um pouco ácida demais e Dante cauteloso demais. Leandro ficou
pensando no que poderia fazer para amenizar aquele clima de rivalidade.
— Como estão as coisas? — perguntou. Precisava ajudar na aproximação daqueles dois.
— Aprendendo e ensinando direitinho?
— Na medida do possível… — eles resmungaram ao mesmo tempo.
Leandro começou a suar frio.
— O que achou da coleta das amostras? — perguntou. — Difícil, fácil, molezinha?
— Não sei dizer só olhando.
— Não deixou ele fazer nada, Lis? — Leandro titubeou. — Nem macerar o tecido, pipetar
o tampão?
Lis mordiscou os lábios. Ela poderia ter feito isso, era verdade. Eram tarefas simples que
Dante poderia ter feito mesmo sem experiência e não ia interferir na qualidade das amostras.
Pensando agora, talvez ela tivesse sido um pouco grossa mesmo. O que havia dito?
“Melhor não. Você não sabe fazer nada”.
Misericórdia, ele vai começar a me odiar desse jeito! Pensou, preocupada.
Continuaram em silêncio. Leandro respirou fundo. Por que tudo que fazia parecia piorar a
situação?
— Ei, Dante! — Resolveu mudar de assunto. — Eu estava olhando a sua papelada pra
mandar pra Joana e vi que vocês dois têm o mesmo sobrenome, Krause! Eu não tinha me tocado
porque é o sobrenome do meio dela, mas aquele “K” nunca me enganou! Vocês são parentes?
Não é um sobrenome tão comum assim.
Pronto, era um bom início de conversa. Lis amava a professora Joana com tudo que tinha.
Com certeza ela puxaria um assunto sobre isso. Era o plano perfeito, tinha tudo para dar certo.
Leandro tinha mandado bem pela primeira vez depois de muito tempo, ele tinha certeza.
Contudo, pela expressão acanhada de Dante ao ouvir a declaração, a certeza de Leandro
esmoreceu um pouquinho.
— Ahn… — disse. — Ela é minha prima. De segundo grau.
Prima? Leandro não sabia que o parentesco era tão próximo assim. No máximo, pensara
que Dante diria que era só uma coincidência.
— Joana é sua prima? — Lis perguntou, estreitando os olhos. — Por isso que aceitou te
orientar do nada?
— Você faz parecer como se ela… — Dante gaguejou, um pouco nervoso. Suas bochechas
ficaram vermelhas e ele desviou o olhar para a janela, evasivo. — Não somos próximos, eu só…
Ele se calou. Engoliu em seco. Teria que contar toda a problemática de sua vida se quisesse
se explicar. E isso ele não queria fazer de jeito nenhum. Sabia como tinha soado para Lis e
Leandro, sabia que ser o aluno novato e desconhecido que aparecera do nada e ficara em
primeiro lugar mesmo não sendo biólogo era estranho.
Leandro pigarreou, desconfortável. Aquele silêncio parecia querer cortá-lo.
— Olha só a hora! — deu um grito repentino. — Que tal uma pausa pro almoço? Vocês
devem estar cansados, já são… Nossa, 14h! Eu assumo aqui, podem ir almoçar.
Dante não esperou por outra chance. Levantou-se e foi até a sala dos alunos, retirando o
jaleco. Depois pegou a carteira na mochila e saiu do laboratório, murmurando uma despedida.
Quando se viram sozinhos, Leandro deu uma espiadela em sua IC.
— Lis… — começou.
— Você acha que a Joana escreveu todo o projeto dele? — Lis nem o ouviu direito. Sua
mente arquitetava infinitas teorias para explicar a presença de Dante Krause ali. — Aí ele…
— Você tá dizendo que ela, de alguma forma, mostrou o caminho das pedras pro Dante e
por isso ele ficou em primeiro lugar? Acha mesmo que a Joana faria isso?
Lis não respondeu. Conhecia bem a orientadora e ela era a pessoa mais íntegra daquela
universidade, de longe. A professora nunca favoreceria ninguém, mesmo que essa pessoa fosse
seu primo.
Mas era difícil pensar direito. E se Lis tivesse perdido a bolsa para Dante de forma injusta?
Era quase impossível não pensar assim.
— Lis… — Leandro soltou um suspiro. — Não quero sequer imaginar que você tá
pensando em algo desse tipo. A seleção já passou e você e o Dante têm que se dar bem, pela paz
do laboratório. Vou ficar muito triste se souber que estão brigando por algo assim.
Lis engoliu em seco, concordando com um gesto de cabeça. Deixou que Leandro
assumisse o experimento e tratou de ir almoçar também, sua cabeça ainda fervilhando de ideias
conspiratórias para todo seu infortúnio.
Por que aquilo parecia ser só o começo?
CAPÍTULO 5
“Me diz
Por que você tem que vir
E tornar as coisas
Tão complicadas?”
Now Playing: Complicated
Avril Lavigne

05/02/2024
163 dias para o fim do semestre

— Essa Lis é uma salafrária — Dante afirmou, olhando diretamente para a imagem de sua
psicóloga do outro lado da tela.
— É um termo forte pra se dizer sobre alguém que você nem conhece direito, Dante. —
Laura, sua psicóloga há dez anos, mal pestanejou com a declaração de seu paciente. — E
interessante também. Não é uma palavra muito comum.
— Meu pai usa o tempo todo, por isso que… Não importa. Ela praticamente insinuou que
eu só passei no mestrado porque a Joana me ajudou. E não foi assim. Eu e Joana não somos
próximos, só calhou de ela saber sobre a minha situação familiar e eu querer estudar
neurociências… Terrível, então. Essa Lis é terrível, está implicando comigo e tornando minha
vida um inferno porque ficou em segundo lugar na seleção. Deusa da Neuro é meu ovo.
— Se você sabe que não foi assim e que você passou em primeiro lugar por mérito seu,
por que se importa tanto? Por que a opinião dessa Lis é tão importante pra você?
— Porque… Não sei. Não é importante. Eu só…
Respirou fundo. Endireitou-se na cadeira em frente à escrivaninha e arrumou os óculos no
rosto.
— Porque eu queria que esse mestrado fosse perfeito. E ela está impedindo isso.
— Aí que está. Perfeito é um estado inalcançável. Seu mestrado nunca seria perfeito, com
ou sem Lis. Algum desafio surgiria no período de dois anos, especialmente em uma universidade
pública.
— Sim, mas eu saberia lidar com isso. Com ela, eu… Ela me tira do sério.
— Por quê?
— Ela não fala direito comigo. Quando fala, é de uma maneira ridícula, como se eu fosse
um idiota.
— Vocês chegaram a conversar fora do ambiente de trabalho?
— Não. Assim que terminamos os experimentos, eu vou embora.
Laura ficou em silêncio. Dante respirou fundo mais uma vez. Tudo bem, talvez ele não
estivesse ajudando na situação também.
— É difícil conversar com ela. Acho que nossas personalidades não batem.
— Mas você mal a conhece. E o ambiente de trabalho dificulta interações mais
significativas. Todas as suas suposições se baseiam nos momentos em que ela estava incumbida
de te ensinar algo muito importante. Talvez se você se aproximar de outra forma, ela se mostre
mais receptiva.
— Você não pode só concordar comigo?
— Eu concordo com você. Acho que a acusação sobre você ter tido uma espécie de
vantagem na seleção de mestrado é muito séria. Por isso é melhor tirar essa história a limpo, ter
certeza se foi isso mesmo que ela quis dizer. Caso contrário, você pode acabar chamando a
atenção que não quer à toa.
“Joana é sua prima? Por isso que aceitou te orientar do nada?” Foi o que Lis dissera. Se
Dante pensasse melhor, ela nunca disse a palavra “vantagem” ou insinuou que Joana havia o
favorecido. E, na semana seguinte, o assunto nunca mais foi tocado. Era até compreensível ficar
um pouco surpreso com a informação de que Joana era sua prima.
Dante tinha se precipitado? Mas a atitude de Lis realmente o tirava do sério.
— Para finalizar… — Laura falou. — Pense nisso que eu te falei e tente se aproximar da
Lis de uma forma mais amigável, sem as amarras do trabalho. Te vejo daqui a 15 dias ou
prefere voltar aos nossos encontros semanais?
— 15 dias é ok, podemos continuar assim. Apesar de tudo, estou bem feliz.
— Fico muito satisfeita em ouvir isso.
— Niterói é bem legal e eu trouxe minha guitarra e minha gata. Então vou ficar bem. —
Dante sorriu para a psicóloga.
— Ótimo! Então até dia 19. Aproveite que o carnaval está chegando pra socializar, você
merece! Até mais.
Laura desligou e Dante se recostou na cadeira, fitando o teto enquanto absorvia as palavras
da psicóloga. “Perfeito é um estado inalcançável”, essa era a verdade que custava a aceitar. Ele
havia crescido na máxima que algo abaixo de perfeito era inaceitável. Suas notas, sua aparência,
seu peso, seu futuro, tudo tinha que ser perfeito para que seus pais ao menos considerassem sua
existência. Mas perfeição era algo inalcançável e ele sofreu a vida inteira por isso, então era
difícil ter que aceitar que as poucas coisas que podia controlar não fossem dar certo por causa de
um fator tão idiota quanto uma rivalidade acadêmica.
Levantou-se e caminhou até o canto do quarto, alcançando sua tão amada guitarra. Era uma
Fender Telecaster vermelha, seu tio lhe presenteara com ela quando Dante tinha apenas dez
anos.
Ele se lembrava daquele dia como se fosse ontem.
“Conhece o Tom Morello, garoto?” Seu tio Klaus perguntara, em um dos fins de semana
em que seus pais o abandonavam na casa dos tios para não ter que lidar com a choradeira dele.
“O guitarrista do Audioslave?” Dante o respondeu, interessado.
Ele sempre se interessava por tudo que Klaus dizia ou fazia. O tio era seu modelo de vida.
Era a ovelha desgarrada da família, um dos poucos que não seguiu na medicina. Pior, havia se
tornado artista plástico, para o terror da tradição familiar. O irônico era que Klaus ganhara muito
mais em vida e teve mais prestígio do que qualquer outro Krause. Mas ninguém da família
admitiria isso.
“Não conhece o Rage Against the Machine? O Tom se consolidou na música com essa
banda. Essa aqui é um dos tipos de guitarra que ele usa. Gostou? É sua se gostar. E a gente
pode rabiscar ela inteirinha igual às guitarras do Tom Morello! O que acha? Seus pais vão
pirar”. Eles realmente piraram, a nova guitarra de Dante foi tópico de discussão por anos. Sua
mãe detestava o som e seu pai dizia que era coisa de vagabundo, mas nunca conseguiu fazer com
que ele se desfizesse dela.
E quase todos os fins de semana desde então, Dante ia na casa do tio ouvir música, tocar
sua guitarra e estudar as letras do Rage Against the Machine e outras bandas, seus apelos de
rebeldia e revolução. Foi um dos períodos mais felizes de sua vida, seu tio não perdia o ânimo
mesmo depois do diagnóstico de câncer no estômago.
Depois da morte do tio, em 2014, a vida dele ficou sem rumo, a rebeldia da guitarra deu
espaço para o vestibular de medicina, para a ansiedade e para os transtornos alimentares que se
exacerbaram com o luto; anorexia, vigorexia, o medo e desconforto de comer na frente dos
outros e ser criticado. A felicidade infantil que tivera ao lado dos tios acabou perdendo para um
molde de perfeição que não lhe cabia.
E foi assim até que ele decidisse largar a ideia de ser médico, se inscrever no mestrado
onde sua prima de segundo grau era professora e fugir para Niterói. Tocar sua guitarra toda
rabiscada e desenhada no apartamento de Henrique, sua nova casa, lhe trazia a sensação de
rebeldia que ele sentia ao ouvir as letras do Rage com o tio, dez anos atrás. Era ótimo se sentir
assim, depois de tanto tempo.
Por isso ele afirmara para Laura que tudo ficaria bem se ele estivesse com Gororoba e com
sua Telecaster. Nem mesmo a implicância de Lis o faria recuar agora.
Pensou novamente nela, em seus olhos azuis e em como Lis era silenciosa quando
trabalhava, concentrada ao máximo. Pensou que os dois realmente não tinham conversado muito,
suas interações giravam em torno de experimentos e protocolos. Pensou também que ele mesmo
não era uma pessoa muito fácil de se fazer amizade. Sua aparência intimidadora não ajudava e
ele era um pouco tímido e introvertido, nunca se dava bem com as primeiras impressões.
E se Lis tivesse tido uma primeira impressão ruim dele? Isso talvez explicasse o
comportamento dela.
Perdeu-se em riffs e acordes, refletindo se ainda poderia se tornar amigo de Lis, pelo
menos um colega. Não era a perfeição, o certo seria contorná-la e ignorá-la até que ela o deixasse
em paz. Mas perfeito era um estado inalcançável, ele tinha que se lembrar disso.
E se não podia ignorá-la, tudo que Dante podia fazer era bater de frente.

— Ele é a porra de um herdeiro — Lis rugiu para as amigas. — A porra de um herdeiro


roubou a minha bolsa!
Ela e Jana estavam no apartamento de Emília, jogando papo fora. Tinham passado o fim de
semana ali e Lis terminava de almoçar para ir à UFF. Como sempre, a lista de tarefas era
interminável. Naquele dia, ela, Dante e Leandro iriam até a UERJ para realizar alguns
experimentos em conjunto, em uma colaboração do laboratório de Joana com o laboratório do
professor Humberto.
— Eu mal tenho dinheiro pra almoçar e a porra de um herdeiro da medicina roubou a
minha bolsa! — Lis esbravejou.
— Bem, você só ia receber essa bolsa no segundo semestre… — Jana tentou argumentar.
— Mesmo assim! Por que um herdeiro viria de Santa Catarina só pra passar perrengue na
UFF? A família dele é dona de um hospital! Um hospital inteirinho!
Tinha sido a semana inteira assim. Desde que Leandro lançara a bomba de que Dante e
Joana eram parentes, Lis tinha entrado em uma espiral de teorias da conspiração, cada uma mais
idiota e absurda que a outra. E ela não conseguia sair.
A primeira coisa que fez foi pesquisar o sobrenome dele, Krause. Primeiro foi no currículo
de Joana e verificou o nome inteiro da orientadora: Joana Krause Ferreira. Joana quase nunca
usava o nome do meio, no máximo usava só o K. Pior, Lis se deu conta de que a formação inicial
dela era medicina. A professora tinha se formado em medicina, mas seguiu na carreira acadêmica
e da pesquisa. Mais uma similaridade com Dante, pelo visto só havia médicos na família.
Depois ela jogou o sobrenome Krause no Google. A primeira coisa que apareceu foi:
Hospital Ernst Krause. E assim Lis descobriu que Dante não vinha só de uma família de
médicos, mas como era herdeiro de uma rede de hospitais. Uma rede enorme em toda a região
sul do país.
Ele devia ter rios de dinheiro. Isso explicava o carro luxuoso que o deixou na UFF semana
passada, isso explicava o ar de superioridade que ele exalava. Isso explicava tudo.
— Sabe de quem é a culpa? — perguntou, seus olhos arregalados diante de tantas teorias.
— Do capitalismo? — Jana abriu um sorrisinho para ela.
— Também. Mas a culpa é da Joana. Ela com certeza…
Parou de falar. Nem em seus delírios mais insanos, Lis teria a coragem de acusar sua
orientadora. E mesmo se Joana quisesse ajudar Dante, isso seria quase impossível, a gravidez
dela era de alto risco e a professora estava em repouso absoluto, com certeza não se prestaria a
escrever um projeto inteiro do zero só para ajudar um primo mimado. “Você faz parecer como se
ela… Não somos próximos, eu só…” ele havia dito. Conhecendo bem Joana, no máximo ela
fizera alguns ajustes na versão final do projeto, mandado alguns artigos para a bibliografia. O
esforço maior provavelmente tinha sido de Dante.
E se ele pagou pra alguém ajudar ele? E se… Lis se impediu de continuar na hora. Ficava
cada vez mais ridículo. Criar todas aquelas teorias para explicar seu segundo lugar era a coisa
mais ridícula na face da Terra.
Estava projetando suas frustrações nele. Era tão orgulhosa e sem-noção que queria
justificar sua derrota com estratagemas mirabolantes para não ter que encarar a verdade.
Dante Krause ficou em primeiro lugar por mérito próprio. Lis só não tinha sido boa o
suficiente.
Ela nunca era boa o suficiente, esse era o problema. Sua vida era um eterno segundo lugar.
— Perdeu a linha de raciocínio? — Jana perguntou quando Lis parou de falar de repente.
— Vou deixar a culpa só com o capitalismo mesmo. — Suspirou.
— Odeie o sistema, não as pessoas — Emília complementou.
— Isso, sei que seu coração tem espaço pra mais um riquinho, Lis. Tenho certeza de que a
Mi não se importa em compartilhá-lo.
Lis soltou uma risada barulhenta. Emília também vinha de uma família de médicos. Não
era herdeira de um hospital inteiro, mas com certeza tinha dinheiro.
— A Mi é a única burguesa safada que eu aceitei amar. Ela e o Gustavo — disse. — Não
tem mais espaço pra ninguém.
— Tem espaço, sim! — Emília reclamou. — Pro Dante Krause! Imagina se você casa com
ele? Esposa de um herdeiro de hospitais.
— Misericórdia.
Mais uma vez com Dante na cabeça, Lis refletiu que ele não combinava em nada com
aquela imagem de herdeiro. Ela passou a semana inteira passada bisbilhotando cada perfil de um
Krause que encontrava no Instagram e tudo que vira fora o luxo, o glamour, o dinheiro. Dante
mal postava qualquer coisa nas redes sociais. A última foto que colocara no Instagram era de
cinco anos atrás, de uma gata escaminha que Lis achou a coisa mais fofa do mundo.
Ele realmente tinha um gato, então.
— Também quero ser esposa de um herdeiro — Jana falou, tirando-a das reflexões. Estava
com o celular nas mãos, espiando o perfil de Henrique. — O primo dele é um gato. O que acha,
Mi? Match?
Emília deu uma olhada no perfil. Lis fez o mesmo e pensou que o primo de Dante
combinava muito mais com a vibe Krause. Inclusive, ela identificou o carro que vira antes nas
fotos de Henrique.
— Acho que não — Emília afirmou. — Não combina contigo.
— Por que você escolhe um herdeiro pra Lis e pra mim não? Isso é injusto, Besourinha.
— Não escolhi o Dante pra Lis por ele ser herdeiro, você sabe disso. Aliás, isso é um fator
contra pra ele. Ainda assim, acho que poderiam dar certo.
— Por que você acha tanto que eu combino com o Dante? Além das tatuagens, o que mais
a gente tem em comum?
— Vocês são tão altos que é difícil olhar pra vocês sem ter dor no pescoço — Emília
começou.
— Os dois têm sempre essa cara azeda como se o mundo inteiro irritasse vocês — foi a vez
de Jana falar.
— São extremamente mal-humorados.
— Lançam os mesmos olhares fulminantes.
— São bonitos até dizer chega — Emília pontuou.
Lis soltou um suspiro.
— Nossa, finalmente um elogio! — disse por entre os dentes.
— Aposto que gostam das mesmas bandas duvidosas e filmes ruins — Jana falou.
— Basicamente, vocês parecem ser a mesma pessoa — Emília concluiu. — Sei lá. Ainda
não conversei com o Dante, mas quando o vi pelos corredores do Instituto, achei que ele tem a
mesma energia que a sua, sabe? Intimidadores por fora, um docinho por dentro.
— Virou a Márcia Sensitiva agora? Que história é essa de energia? — Lis estava quase
rosnando.
— É só o que eu acho. E eu nunca erro nessas coisas, você sabe.
Lis torceu os lábios. Realmente, Emília nunca tinha errado. Ela tinha um sexto sentido
bizarro para coisas assim.
— Sempre tem primeira vez pra tudo — resmungou, levantando-se para lavar seu prato. —
Bem, tenho que ir. Pelo visto, tenho um encontro maravilhoso com a minha alma gêmea herdeira
de hospitais daqui a pouco.
— Aproveita pra conversar um pouco com ele — Jana aconselhou. — Conhecê-lo um
pouco mais.
— Isso, seja razoável, pelo menos — Emília disse. — Não precisa começar a planejar o
casamento, mas tenta se aproximar um pouco. Vai que vocês têm muito em comum? Eu sinto
que têm.
Lis resmungou mais um pouco, concentrando-se na louça que lavava. Era difícil largar os
preconceitos iniciais. Era difícil deixar de ser teimosa e parar de achar que a causa de seu
infortúnio era uma trama de quinta categoria. A vida era assim, ela daria um jeito e conseguiria a
bolsa, não adiantava ficar implicando com Dante Krause.
Encarar a realidade era sempre o primeiro passo para encontrar uma solução.

Dante e Leandro já estavam no laboratório quando Lis chegou. Seu coorientador girava
pelo local com o celular pendurado na orelha, em uma chamada com Joana. A professora
mandava instruções para a colaboração na UERJ e Leandro conferia a lista imensa de material
para ser levado. Já tinha separado dois isopores com insumos e amostras. Dante conferia se todos
estavam com gelo o suficiente e bem vedados. Apesar do tempo nublado, o calor do Rio de
Janeiro poderia estragar aquele material em poucos instantes.
— Lis, que bom que chegou. — Leandro acenou para ela. — Separa suas lâminas de
imuno-histoquímica mais novas, por favor. Já separei o material do Gustavo. Temos que sair
daqui a 10 minutos. Dante, são muitas caixas, ajuda ela e… Sim, Joana. Hipocampo e córtex pré-
frontal, sim.
Ele voltou a rodar pelo laboratório, nervoso. Dante se aproximou de Lis, cauteloso como
sempre.
— Oi! — Lis gaguejou. — Hm, tudo bem?
— Oi. — Dante também parecia um pouco desconfortável. — Tudo. Você, hm… como foi
seu fim de semana?
Passei o fim de semana todo bisbilhotando sua família na internet, Lis pensou.
Obviamente não podia falar isso para ele, mas ficou surpresa com a aproximação.
— Foi… Foi ótimo. Fiquei na casa de uma amiga minha, a Emília. Ela também trabalha no
Instituto.
— Entendi. Hm… legal. Não conheço… essa Emília.
Dante engoliu em seco. Todas suas interações com Lis o deixavam extremamente nervoso.
Ele sabia que não tinha muitas habilidades sociais, mas aquilo já era ridículo.
— Ah, bem. — Lis pigarreou. — Se vir uma menina de cabelo rosa e looks duvidosos
andando pelos corredores daqui, provavelmente é ela. Impossível de errar!
— Entendi… Eu… Vou prestar atenção nisso.
Meu Deus do céu. Dante queria se jogar de um prédio.
— E como foi o seu… — Lis pigarreou de novo. Estava mais nervosa do que gostaria. —
Como foi o seu fim de semana?
— Foi bom. Fiquei em casa, mas… Eu só fiquei em casa mesmo.
— Entendi. Legal. Bem… legal.
O papo terminou ali. Impossível, era impossível conversarem direito, talvez já não
houvesse como remediar.
— Lis, Dante, as lâminas! — Leandro chamou a atenção deles. — Sim, Joana, eu…
Espera, é minha namorada, preciso atender, ela…
Leandro apertou um botão na tela do celular. Respirou fundo antes de começar a falar.
— Oi, mozão — disse. — Não chora, tá tudo bem. Eu mesmo vou na coordenação da pós,
você não vai ficar… Se acalma, é claro que você não vai perder seu doutorado por causa disso.
Lis inclinou as sobrancelhas, preocupada. Leandro estava tratando de coisas demais ao
mesmo tempo. A gravidez de sua namorada tinha sido no susto e estava no meio do doutorado
em biologia marinha, também na UFF. Pelo que Lis sabia, ela estava tendo dificuldades em
conseguir a licença maternidade na pós, para continuar ganhando a bolsa e conseguir uma
extensão do período no doutorado. Para não estressá-la, Leandro tinha se incumbido de todos os
trâmites burocráticos. E isso, somando com sua responsabilidade de coorientador, pós-doc e
chefe do laboratório na ausência de Joana, o deixava uma pilha de nervos.
Lis tinha que se lembrar de sempre ajudá-lo e não causar mais problemas. Era o mínimo
que poderia fazer.
— Vem, vamos pegar as caixas de lâminas. Estão no freezer — disse para Dante.
Os dois foram em silêncio até um dos freezers do laboratório. Lis escolheu as caixas que
queria, seus experimentos mais recentes. Eram cinco caixas todas cheias de suas preciosas
lâminas, praticamente metade de seu TCC. Era o trabalho do semestre passado inteiro.
Colocou as caixas em uma bolsa térmica, conferindo mentalmente se tinha pegado tudo
que precisava. Dante ficou ao seu lado, olhando dela para Leandro, seu cenho um pouco
franzido.
— Já vou ligando o carro — Leandro falou correndo, caminhando até a saída do
laboratório. — Conseguem levar tudo? Eu preciso… Sim, mozão. Tô aqui ainda. Espera, a Joana
tá ligando de novo, eu já te ligo, eu…
Ele saiu correndo, não tinha levado nem o jaleco. A peça estava jogada em cima da
bancada, esquecida.
— Melhor a gente ir — Lis disse, pegando o jaleco na bancada.
Dante fez um meneio com a cabeça, concordando. Sem falar qualquer outra coisa,
começou a empilhar os dois isopores para levá-los, também pegou a bolsa térmica com as
lâminas de Lis.
— Não precisa levar tudo — ela falou.
— Não se preocupa, consigo levar.
Colocou os dois isopores debaixo do braço. Eram grandes demais, parecia que poderiam
cair a qualquer momento.
— É sério, posso levar um — Lis insistiu.
— Vamos logo — Dante a cortou. Estava preocupado com Leandro, portanto queria ajudar
da melhor maneira possível.
Lis torceu o nariz. De novo aquela grosseria.
— Você vai deixar tudo cair — disse, seguindo-o pelo corredor depois de trancar o
laboratório.
— Não vou, tá tudo muito bem seguro.
Pararam em frente aos elevadores. Lis apertou o botão para chamá-lo. Dante respirou
fundo, incomodado com as afirmações dela.
— Não sou tão incompetente assim, apesar do que você pensa — resmungou de repente.
O elevador chegou. Lis deixou que ele entrasse primeiro. Os dois se encararam pelo
espelho, os olhos flamejando na direção um do outro.
— Quando foi que eu te chamei de incompetente? — perguntou.
— E precisa? O que você acha de mim não é segredo pra ninguém.
Ele engoliu em seco. Falar aquilo não era bem o que ele pretendia, mas tinha saído sem
querer.
— Nossa, me desculpa por ter medo de que você deixe cair meu TCC inteiro. Nada do que
você tá carregando aí veio de mão beijada.
— Pronto, você finalmente disse.
— Disse o quê?
— Elis. — Dante se virou. Era estranho o fato de ele ser tão alto ao ponto de Lis ter que
inclinar um pouco a cabeça para encarar seu rosto. Não era uma ação comum. — Sei que parece
impressionante, mas tudo que consegui até agora foi por mérito meu. Só meu. Não recebi nada de
mão beijada. Talvez você que não seja tão incrível assim e esteja com um pouco de inveja, quem
sabe?
Lis estava com o rosto todo retorcido agora. A porta do elevador se abriu e Dante saiu
primeiro, indo em direção ao carro de Leandro. Colocou a bolsa com as lâminas no chão para
abrir o porta-malas. Ela o seguiu com cara de poucos amigos.
— Será que não é você quem anda um pouco paranoico? — sibilou. — Será que ouve
vozes? Eu nunca disse nada disso pra você.
— E precisa, Lis? — Dante colocou os isopores no porta-malas. Fechou com força demais
e o carro tremeu. Leandro já estava dentro do carro, ainda falando ao celular. — De novo, o que
você acha de mim não é segredo pra ninguém.
— Coitado, sofre mais que a Juliette! Ninguém aqui tá te perseguindo, Dante Krause.
Dante soltou uma risadinha desgostosa.
— Não sei por que me dei ao trabalho de conversar contigo. Você é impossível.
— Eu sou impossível? Você é a porra de um grosso e acha que consegue conversar?
— Vou manobrar o carro, galera! Saiam daí de trás! — Leandro gritou para eles, ligando o
veículo. Seu celular quase caía de seu ombro, escorregando por causa do suor.
Eles saíram. Não conseguiam despregar os olhos um do outro. Lis abriu a boca para
continuar a discussão, mas foi interrompida por um barulho estranho.
Algo parecido com um crec.
Parou com a boca um pouco aberta. Dante torceu as sobrancelhas, também achando
estranho. Até Leandro parou o carro. O silêncio reinou por alguns segundos, até que a dupla
percebesse de fato o que tinha acontecido.
Leandro tinha acabado de atropelar a bolsa com as lâminas de Lis.
CAPÍTULO 6
“Eu sou um risco
Para mim mesma
Não me deixe comigo mesma
Sou o meu pior inimigo”
Now Playing: Don’t Let Me Get Me
P!nk

Era irônico que Lis, uma futura cientista, alguém que prezava pelo método científico e a
lógica do universo, estivesse diante de sua ruína por causa de uma teoria idiota de conspiração.
Pior, uma teoria idiota que ela mesma criara.
Ela nem se deu conta de que tinha voltado para o laboratório. Tudo que fez depois que
Leandro atropelou metade de seu TCC foi caminhar até a bolsa destruída e pegá-la do chão.
Obviamente, estava tudo destruído e cacos de vidro se espatifaram pela terra. Um deles cortou
seu polegar em cheio. Lis largou a bolsa sem emitir som algum enquanto Dante corria até ela,
aflito.
— Você se machucou? — A voz de Dante tremia um pouco. Como por instinto, ele
segurou a mão ensanguentada de Lis entre as suas, para analisar a ferida. — Fica calma, me
deixa ver.
Ela permitiu, ainda em um estado entre a realidade e o pesadelo que começava a se criar
bem diante de seus olhos. Leandro saiu do carro às pressas, tão assustado quanto ela. Seu
coorientador ficou encarando a bolsa destruída até que Dante dissesse que ia levar Lis para
examinar o corte. Ela não conseguiu ouvir o que Leandro respondeu e deixou que Dante a
puxasse de volta para o elevador. E lá estava ela no laboratório de novo.
Dante a sentou em uma das cadeiras da área dos alunos, pedindo que fizesse pressão no
ferimento enquanto ele pegava seu kit médico para tratá-la. Lis o assistiu retirar um estojo de
couro da gaveta e levá-lo, depois o ouviu dizer que esterilizaria a bancada primeiro. Pediu mais
uma vez que ficasse calma, apesar da voz dele ainda tremer um pouco.
O que estava acontecendo? O que tinha acontecido? Pior ainda, o que aconteceria agora?
Ela não só corria o risco de ficar sem a bolsa de mestrado, como agora corria o risco de não se
formar.
Tudo porque ela acreditou na teoria da conspiração que Dante Krause tinha tido vantagem
na seleção de mestrado. Lis pensou que, se não tivesse o irritado ao ponto de ele provocá-la, ele
não teria deixado a bolsa no chão e ela não teria sido atropelada. Pensou também na burrice que
tinha sido questionar se ele conseguiria carregar tudo ou não. Era óbvio que conseguiria, tinha
conseguido. E mesmo se tivesse deixado cair, o estrago não teria sido tão grande.
“Não sou tão incompetente assim, apesar do que você pensa” ele havia dito. Lis também
se sentia um pouco culpada. Dante não tinha feito nada e estava tão desconfortável ao ponto de
acreditar que ela o via como incompetente. Se Lis enxergasse por outro ângulo, notaria que o
começo do mestrado de Dante estava sendo um inferno por causa dela.
Tudo porque ela acreditou na teoria ridícula de que ele tinha sido favorecido. Foi grossa e
antipática, não o recebeu como deveria. E então eles brigaram e Lis acabou perdendo metade de
seu TCC, como um castigo dos deuses.
A voz dele a tirou dos devaneios. Dante pediu que ela fosse até a bancada, onde todos os
instrumentos já estavam expostos.
— Posso ver? — ele praticamente murmurou.
Lis então se lembrou que Dante Krause era médico. Estendeu a mão e ficou o assistindo
limpar e examinar o corte. Já começava a doer muito.
— Você vai precisar levar ponto. — A voz dele soou ainda mais baixa. — Foi um corte
feio…
Eles se encararam. Lis o observou engolir em seco antes de tirar as luvas que usava e se
levantar, caminhando até a gaveta onde guardavam os anestésicos. Dante lavou as mãos, as
secou, colocou luvas novas e se sentou novamente em sua frente. Estava com um tubo de
lidocaína nas mãos.
— Posso suturar pra você — ele disse. — Mas se quiser, a gente pode ir na UPA e…
— Pode fazer. — Lis se ouviu dizendo. Parecia uma experiência extracorpórea. — Assim é
mais rápido. Eu preciso…
Do que ela precisava? Fazer lâminas novas? Era o trabalho do semestre passado inteiro.
Nunca conseguiria refazê-los a tempo de defender.
Dante passou o anestésico. Engoliu em seco mais uma vez.
— Talvez doa um pouco. Aqui só tem pomada, então…
— Tudo bem. Eu aguento. Eu… vou dar um jeito.
Dizer isso formou um nó em sua garganta. Como ela daria um jeito? Ela sempre dava um
jeito, mas como faria isso dessa vez?
— Vão ser só dois pontos, ok? Aguenta firme. — A voz de Dante parecia cada vez mais
longe.
Ele abriu o kit de sutura, retirado do estojo de couro. Lis pensou por um momento que era
engraçado ele ter um kit assim no laboratório. Mas a graça desapareceu quando ele começou a
costurar sua pele e a dor, apesar da anestesia, a atingiu em cheio, como um lembrete da amarga
realidade.
Lis não ia nem se formar. Perderia a chance de fazer o mestrado naquele ano, já que a
seleção só acontecia uma vez por ano. Provavelmente não teria renovação da bolsa de IC, então
não teria como se manter em Niterói. Teria que voltar para casa.
Sua mãe, Isabela e Gabriel. Teria que conviver com os três diariamente. A Cinderela de
Jacarepaguá, talvez ela até tivesse que desistir da carreira acadêmica por um tempo, sua família a
engoliria.
— Só mais um — Dante falou. — Você está indo muito bem, fica calma.
Bastou isso para que ela começasse a chorar. Um soluço pesado escapou de sua boca e
seus ombros se sacudiram. Depois mais um, as lágrimas já escorrendo sem piedade.
— Não chora, eu… — A voz de Dante tremia cada vez mais. Apesar disso, suas mãos
estavam incrivelmente firmes. — Me desculpa. Me desculpa…
Ah, meu Deus. Eu vou fazer ele chorar também. Lis pensou em seus últimos momentos de
sanidade. Odiava fazer os outros chorarem, odiava fazer com que se sentissem mal ou se
preocupassem com ela. Tentou abrir a boca para dizer que estava tudo bem, mas tudo que saiu
foi mais um soluço. Limpou o rosto com as costas da outra mão, tentando não se movimentar
demais.
Pontos feitos, Dante fez o curativo com cuidado. O corte latejava muito. Isso a atrapalharia
por um tempo no laboratório, com certeza. Mais tempo perdido, ela não conseguiria defender a
tempo.
— Lis… — Dante a chamou.
— T-tá tudo bem. Não está doendo, eu só…
Dante a encarou, um pouco incerto.
— Eu… você vai precisar trocar o curativo depois. E vou te receitar um remédio pra dor.
— Ok…
— O corte foi bem profundo, provavelmente vai levar umas duas semanas pra que eu
possa, hm… — Ele pigarreou. — Pra que eu possa tirar os pontos. Até lá, tente evitar usar esse
dedo.
Como? Ela pensou. Tinha sido bem na mão direita e Lis era destra, então não poderia nem
segurar uma pipeta. Teria que adiar seus experimentos, haveria mais atrasos.
Lis não ia conseguir se formar.
Ela ainda não tinha conseguido parar de chorar. Dante já tinha limpado tudo e lavado as
mãos. Sem ter muito que fazer, voltou a se sentar em frente a ela, olhos baixos espiando-a de
soslaio. A vida de Lis estava praticamente destruída, mas ela agora era assolada pela culpa de ter
sido tão ruim com ele. E ela não era assim, nunca tinha agido assim. Por que tinha feito aquilo?
Ficou com a mão machucada no ar, fitando o curativo recém-feito. “Não sou tão
incompetente assim, apesar do que você pensa”. A pessoa que tinha feito aquele curativo com
tanto esmero tinha ficado tão mal ao ponto de se achar incompetente. Por quê? Por quê?
Para sua surpresa, Dante estendeu as próprias mãos para alcançar a dela, colocando-a entre
as suas. Lis sentiu o polegar dele alisar sua palma, um carinho tímido. Teve coragem de levantar
o rosto e vislumbrou uma visão que nunca achou que teria: os olhos de Dante Krause estavam
molhados, à beira do choro. Seus lábios estavam apertados e Lis pensou por um momento que
aquela era a expressão mais doce que já vira na vida, como se ele tivesse deixado cair toda sua
armadura de uma vez só.
— Me desculpa. Me desculpa. Me desculpa… — ele ficou repetindo. Não conseguiu
manter contato visual, então só baixou a cabeça, ainda segurando a mão dela.
Não devia ser ela a pessoa a estar se desculpando? De quem era a culpa? De ninguém, dos
dois? Era difícil pensar.
Então ela só o imitou, abaixando a cabeça enquanto a sacudia, aceitando as palavras dele.

— Bem… — Leandro esfregou uma mão na outra. A situação era tão tensa que ele tinha
ficado enjoado. — Acho que a gente precisa fazer uma reunião emergencial agora.
Ele estava sentado na cadeira de Joana, de costas para a mesa, olhando para Dante e Lis
sentados no sofá logo a frente. Em um banquinho improvisado, seu tablet exibia a imagem de
Gustavo na tela. Já devia ser madrugada em Seul, mas era uma emergência. A única coisa que
não fez foi comunicar o acontecido para Joana. Primeiro ele remediaria a situação o máximo
possível.
Lis e Dante estavam jogados no encosto do sofá, derrotados. O cansaço que os abateu se
evidenciou nas olheiras fundas e no olhar perdido dos dois. Leandro chegara com uma caixa de
papelão com os restos mortais das lâminas de Lis no laboratório e os encontrou sentados ao lado
da bancada. Lis estava soluçando e Dante parecia prestes a começar a chorar também. De alguma
forma, aqueles dois tinham brigado e discutido atrás de seu carro e isso resultou na perda de
materiais valiosíssimos. Tudo porque Leandro estava distraído demais.
O silêncio se alastrou pela sala. Lis fungava baixinho, limpando o nariz com as costas da
mão enquanto Dante havia inclinado o pescoço para trás, encarando o teto. Já Leandro engolia
saliva, nervoso, preocupado, culpado.
— Alguém pode me explicar o que aconteceu direito? — Gustavo perguntou, as
sobrancelhas franzidas trazendo seriedade para seu rosto. — Como as lâminas da Lis foram
atropeladas? Por que elas estavam no chão?
Dante engoliu em seco. O som das lâminas quebrando ainda ecoava em sua cabeça. Isso e
os soluços roucos de Lis.
— Eu coloquei no chão pra abrir o porta-malas — murmurou. — Estava carregando todos
os isopores, então tive que colocar…
Ficou calado. Lembrou-se de Lis dizendo que tinha medo de que ele derrubasse seu TCC
inteiro, que nada daquilo tinha vindo de mão beijada. Independente da fonte, ele tinha
concretizado o medo dela.
— A culpa é minha, eu… — tentou dizer, a voz tremendo. — Não sei bem como resolver
isso, mas…
— A culpa não é sua — Lis gaguejou. Deu outra fungada antes de continuar. — Fui eu
que… Eu comecei uma discussão idiota e isso acabou distraindo o Dante e aconteceu o que
aconteceu. A culpa… A culpa é minha.
— A culpa é minha — Leandro choramingou. — Eu não devia ter deixado vocês sozinhos,
devia ter prestado mais atenção, sou o responsável por vocês e…
Mais silêncio. Gustavo tentou enxergar os três pela tela de seu celular, um pouco confuso
com a expressão de todos.
De quem era a culpa, afinal? Aquela conversa não chegava a lugar nenhum.
— Tá, isso não vem ao caso agora. — Suspirou. Os três pareciam um pouco em choque,
então ele talvez tivesse que tomar as rédeas da situação. — Quais foram as lâminas perdidas?
— As do semestre passado inteiro, as mais novas — Lis explicou. Lembrou-se de todo
trabalho que tivera para fazê-las sozinha, já que Gustavo fora para o intercâmbio ano passado.
— Já tinha as reagido com algum anticorpo? Conseguiu colocá-las no microscópio?
— Algumas, não todas. Acabei acumulando, então elas eram praticamente novas. A gente
ia começar a fazer isso na UERJ e…
Meu Deus, a colaboração com a UERJ, se lembrou. O quanto Joana ficaria decepcionada?
Ela não seria capaz de encarar a orientadora.
Pior, se Joana soubesse que a discussão tinha sido porque Lis achava que a professora dera
alguma vantagem para o novo aluno, talvez ela fosse até expulsa do laboratório.
— A culpa é toda minha! — Voltou a chorar. — Fui terrível com o Dante e eu não sou
assim! Eu só estava frustrada e a gente não conseguia conversar direito e…
Mordeu os lábios, achando-se a pessoa mais ridícula da face da Terra. O que viria depois?
Um vídeo vestindo uma camiseta branca e de cara limpa, dizendo “Quem me conhece sabe?” Era
ridículo demais tentar se justificar também.
— A culpa não é sua, eu não facilitei as coisas e… — Dante interveio. Os dois ficavam
cada vez mais nervosos e chorosos. — Eu também não sou fácil de lidar, não devia ter retrucado,
devia ter te ouvido.
— A culpa é minha — Leandro repetiu. Estava tão pálido que Gustavo quase quis
perguntar se ele estava passando mal. — Eu sabia que a Lis estava com dificuldades pra lidar
com tudo isso e mesmo assim pedi que ela ensinasse os protocolos. Sou o coorientador e
responsável pelo laboratório, eu devia…
Gustavo franziu o cenho mais uma vez. Mais uma rodada de Mea Culpa e ele começaria a
gritar com todos eles. Por Deus, eram duas horas da manhã em Seul.
— Já disse que isso não importa agora — falou. — Temos material para fazermos outras?
— Na teoria, sim. — Leandro se endireitou na cadeira. — Podemos realocar alguns
animais da corrida de proteínas pra fazer imuno-histoquímica, mas ainda não fechamos o número
amostral mínimo em alguns grupos experimentais.
— E vai levar praticamente o semestre inteiro pra refazer tudo — Lis argumentou. — Eu
não vou conseguir me formar…!
Escondeu o rosto com as mãos e Dante congelou ao seu lado, refletindo se deveria tentar
consolá-la ou ficar quieto.
— Lis, foco. — Gustavo agiu primeiro. — Eu chego em maio e te ajudo a terminar as
lâminas que faltarem, vou me dedicar a isso assim que voltar pro Brasil. Até lá, vocês vão ter
que fazer uma força-tarefa.
— Certo, isso. — Leandro sacudiu a cabeça. Tinha que se recompor, tinha que ajudar seus
alunos da melhor forma possível. — Uma força-tarefa. E colocamos sua defesa pra julho, acho
que assim vai dar tempo de fazer tudo.
Lis engoliu em seco. O semestre terminava no dia 17 de julho. Ela defenderia no laço, não
teria margem alguma para qualquer outro erro. Tudo teria que ser perfeito.
— Então vamos abrir o jogo pra acabar com desentendimentos — Leandro sugeriu. — Lis,
Dante. Olhem pra mim.
Eles obedeceram. Leandro respirou fundo.
— Primeiro, quero pedir desculpas pra vocês dois — começou. — Independente do que
esteja acontecendo na minha vida pessoal, nada disso é desculpa pra negligenciar vocês. Eu
concordei quando a Joana sugeriu que eu fosse o chefe em exercício na ausência dela, então
tenho que exercer esse papel, quer seja difícil ou não.
Ele pigarreou. Falar isso era fácil na teoria. Contudo, visto que era o último ano dele com a
bolsa de pós-doutorado e que ele em breve seria pai de primeira viagem, era complicado se
concentrar em algo que não fosse seu futuro. Ainda assim, ele tinha que perseverar.
— Segundo, vou esclarecer a situação da Lis pra você, Dante — continuou. — Lis é
extremamente confiável e solicita. Mas está sobrecarregada porque corre o risco de não ganhar a
bolsa do mestrado se não conseguir se formar a tempo. Ela teria a garantia da bolsa se tivesse
passado em primeiro lugar, mas… Bem, você sabe o que aconteceu.
Dante fez um aceno com a cabeça, concordando. Então não era só pirraça, Lis estava com
medo de não conseguir fazer o mestrado. Era até natural que ela quisesse descontar suas
frustrações nele.
— Terceiro, sei que você chegou agora, então peço desculpas novamente pelo tratamento
inadequado que te oferecemos — Leandro prosseguiu. — Gustavo está longe e Lis e eu estamos
um pouco estressados. Por isso, peço que tenha paciência conosco. E espero poder contar contigo
nessa força-tarefa que teremos que fazer. Você vai ter que dominar as técnicas o mais rápido
possível.
— Claro. Vou ajudar — Dante murmurou.
— Dito isso, apesar do cronograma apertado, vou sugerir que tirem essa semana agora e a
do carnaval pra descansarem. Lis se machucou e vocês dois estão com os nervos à flor da pele,
então… Farei os experimentos da semana sozinho. Não precisam se preocupar. Dante pode vir
acompanhar alguns, mas quero que pegue leve.
— Mas… — Lis quis retrucar.
— Sem “mas”, Lis. Você sempre passa mal quando se estressa demais, não vai conseguir
fazer nada nesse estado. Aliás, acho melhor te levar no médico.
— O Dante, hm — gaguejou. — O Dante já me tratou. Estou bem.
— Ah, é mesmo. Você é médico. — Leandro esticou as sobrancelhas.
Ele cogitou implorar por uma receita de algum ansiolítico que o acalmasse. Quem sabe
algo que o apagasse até o fim do semestre. Mas conseguiu se conter.
— Então, pra fechar… — Ele estendeu a mão no ar. — Vamos todos dar as mãos e
prometer que seremos bons amiguinhos e que não atearemos fogo no laboratório num futuro
próximo, tudo bem?
Gustavo soltou um grunhido do outro lado da tela, revirando os olhos. Ainda assim, Dante
e Lis aceitaram o gesto. Depois, viraram-se um para o outro, sentindo-se ridículos e inadequados
ao mesmo tempo. Mas se cumprimentaram de forma breve, a mão tatuada enorme de Dante
cobrindo a dela, suas tatuagens parecendo se misturar por um momento.
Finalmente, o início de um período de paz.
Fosse ele duradouro ou não.
CAPÍTULO 7
“Me veja dançar
Dançar a noite toda
Meu coração pode estar queimando
Mas você não verá isso em meu rosto”
Now Playing: Dance The Night
Dua Lipa

16/02/2024
152 dias para o fim do semestre
Janaína acordou com um estrondo de algo caindo no chão. A sensação que tinha era que
mal tinha conseguido dormir desde que chegara do bloquinho de pós-carnaval em Icaraí. Abriu
os olhos, os cílios postiços ainda meio colados em suas pálpebras e o glitter fazendo seu rosto
coçar, e teve um vislumbre de Lis alcançando o celular no chão. Pelo visto, ela o derrubou
enquanto saía.
— Foi mal, Jana — Lis murmurou, verificando a tela do aparelho. Estava quebrado, mas as
rachaduras eram antigas, então ela mal pestanejou ao colocá-lo de volta no bolso. — É esse
maldito dedo. Não queria te acordar.
— Meu Deus, quanto eu dormi? Você já está saindo? — Jana coçou os olhos, e um dos
cílios colou na lateral de seu dedo.
— Já, mas você chegou faz só umas duas horas. — Lis conferiu o relógio. — Então fica
tranquila, pode voltar a dormir.
Jana alcançou o próprio celular. Eram 6h30 da manhã.
— Por que está saindo tão cedo? — resmungou. — E na sexta-feira pós carnaval?!
Lis não respondeu. Tinha ido até a cozinha para tomar café da manhã antes de sair.
Quer dizer, qualquer coisa que lembrasse um café da manhã. Era o meio do mês e ela já
estava sem dinheiro, então não sobrara muito para fazer compras. Abriu a geladeira e analisou
sua prateleira, torcendo a boca para o leite pela metade, a margarina e o pacote de pão também
pela metade. Lis tinha tido gastos a mais por causa dos remédios para dor e os curativos, e teve
que visitar a família na Praça Seca mais do que planejara, então sua bolsa já estava quase no fim
no meio do mês.
Pegou o pacote de pão, retirou uma fatia e colocou na torradeira. Depois passou a
margarina e suspirou enquanto comia, pensando no que almoçaria também. O bandejão estava
fechado por causa do período de férias e comer fora era caro demais.
Tudo bem, pensou. Abriu o armário e retirou um pacote de miojo de seu estoque. Ela
poderia roubar café e alguns biscoitos na copa do laboratório e esquentar água para comer o
macarrão, então não seria tão ruim assim. Faria tudo que tinha que fazer antes de Leandro e
Dante chegarem no laboratório e eles não encontrariam sequer um único fio de cabelo dela como
prova de que estivera ali quando não podia.
Lis passou as duas semanas de descanso indo escondida para o laboratório. Ou ela ia muito
cedo ou muito tarde, o que lhe trouxe poucas noites de sono e o risco de ser assaltada no caminho
de volta para casa. E, pior ainda, naquela semana tinha sido o carnaval e ela não aproveitou nem
um pouquinho da festa, teve que ficar desviando seu caminho por causa dos foliões bêbados.
— Amiga, eu faço um sanduíche pra você. — Jana surgiu na cozinha. — Por que não tira o
dia de folga? Você não descansou nada do que o Leandro te pediu pra descansar.
— Não tenho tempo, preciso sair agora se quiser que eles não me vejam.
— Lis, tô preocupada contigo, você precisa descansar mesmo. Daqui a pouco vai ter um
piripaque daqueles que você costuma ter.
— Vira essa boca pra lá, preciso me formar. — Lis conferiu tudo que precisava levar na
mochila. — E estou ótima, não precisa se preocupar.
— Você nem curtiu o carnaval. Senti sua falta no bloquinho de ontem.
— Ano que vem tem mais carnaval. Não vou morrer só porque perdi um ano. Não se
preocupa.
Jana trocou o peso entre os pés, brincando com as tranças.
— Quer saber quem eu encontrei ontem no bloco? — perguntou. Tinha um sorrisinho
besta no rosto que Lis mal notou.
— Quem? Aquele gato da Imunologia?
— Melhor ainda. Avistei um gigante caminhando pela orla junto com o bloco, com cara de
poucos amigos. E o primo gatíssimo dele.
Aquilo chamou a atenção de Lis. Suas bochechas arderam com a menção de Dante Krause.
Desde o incidente, sentia-se desconfortável até de pensar nele. A culpa e a vergonha por ter
chorado tanto faziam com que ela quisesse cavar um buraco no chão e se esconder até que Dante
defendesse o mestrado.
O que era impossível, já que tinha que se formar de qualquer jeito. Então teria que
encontrar alguma forma de superar o constrangimento.
— Não me diz que você foi falar com ele — Lis implorou.
— Claro que fui. Me apresentei como sua amiga e disse que já tinha visto ele pelos
corredores. Nada demais. Talvez ele tenha ficado vermelho quando ouviu seu nome, mas eu já
estava um pouco bêbada, então não posso confirmar.
— Meu Deus do céu, eu vou te matar.
— Fica tranquila, não fiz nada demais. Ele é péssimo de conversa, então o primo dele
puxou um papo, conversa vai, conversa vem e, quando vi, o Dante tinha sumido e eu estava
ficando com o herdeiro mais próximo. Fiquei de casalzinho com um herdeiro o bloco inteiro,
amiga. Mal consigo acreditar.
— Você ficou com o primo do Dante?!
— Fiquei. Trocamos números, adicionei ele no Instagram… Ai, amiga. Foi ótimo. A Mi
diz que ele não é meu match, mas eu curti muito.
— Jana!
— Por isso digo que senti sua falta no bloquinho. Você e o Dante teriam se encontrado fora
do laboratório e talvez tivessem conversado direito. Talvez nós quatro ficássemos de casalzinho
e a gente já poderia começar a planejar o casamento em conjunto.
— Você é péssima. Juro que quero te matar agorinha mesmo com essa faca de manteiga.
— Você não tem tempo pra isso. Agora vai pra sua missão secreta e volta logo. Vou fazer
um jantar legal pra gente e depois vamos naquele barzinho terrível que você gosta de ir. Chega
de ficar trabalhando igual a uma condenada.
Lis riu com a menção de seu barzinho favorito. Era um bar na Cantareira, chamado “Notas
Noturnas”. Não fazia nada o estilo de Jana e Emília por ter uma vibe mais para o rock e o
underground, mas suas amigas sempre iam com ela. Já fazia tempo desde que Lis fora pela
última vez, aquele ano realmente estava sendo só trabalho.
Só mais um pouco. Depois que eu me formar, vou poder voltar a me divertir. Só preciso
aguentar mais um pouco, pensou, resoluta.
— Vou pensar no seu caso — disse. — Volta a dormir, você parece cansada.
— Nossa, eu tô um caco — Jana reclamou.
— Então descansa. Mas saiba que ainda estou puta contigo. Não acredito que você pegou o
primo do Dante!
— Acredite se quiser. Quer que eu convide os dois pra sairem com a gente hoje de noite?
— Não! Eu te mato se fizer isso, juro.
Jana só sorriu para ela, voltando ao sofá para se jogar e tentar dormir um pouco. Tiraria a
maquiagem mais tarde, quando tivesse forças para isso. Naquele momento, ela só queria ter mais
algumas horinhas de sono para que a ressaca não a atingisse em cheio.
Assistiu a amiga ir embora com o coração um pouco apertado de preocupação. Era
evidente que Lis estava se esforçando demais. E comendo mal, Jana conseguiu notar, quase lhe
deu uma bronca ao vê-la colocando o miojo na mochila. Mas sua amiga era uma cabeça-dura que
nunca aceitava ajuda e sempre dizia que daria um jeito. Não aceitou nem a ajuda oferecida no
TCC, quando ela e Emília souberam do acidente com as lâminas. Lis sempre queria fazer tudo
sozinha.
Jana se perguntou por quanto tempo Lis conseguiria viver daquele jeito.

Que Lis estava indo escondida para o laboratório, Dante já sabia bem, talvez desde o
terceiro dia de sua ausência. Leandro não notara nada, mas ele percebeu as coisas minimamente
fora do lugar, as garrafas de soluções que ele fizera ficando pela metade em um dia e no outro
cheias novamente. Dante chegou a duvidar se Lis ficou em casa sequer um único dia, ainda que
estivesse machucada. Mas nunca que ele falaria qualquer coisa, não depois de todo o fiasco do
acidente com as lâminas.
Que belo começo ele estava tendo no mestrado, não era mesmo? Tinha arranjado uma
desavença com sua colega de laboratório, tinha destruído os experimentos dela, Lis tinha se
machucado por causa dele. E Dante mal podia ajudá-la, já que ainda estava aprendendo. Por mais
que se esforçasse, era trabalhoso pegar a mão dos protocolos, ele ainda levaria um tempo se
quisesse atingir a perfeição.
“Perfeito é um estado inalcançável”, lembrou-se do que Laura dissera, antes do fatídico
acidente. Mas Dante precisava ser perfeito agora, era questão de vida ou morte, de Lis conseguir
se formar ou não. Sendo assim, mesmo sendo um estado impossível de se alcançar, ele tinha que
ser perfeito.
Com isso em mente, Dante resolveu chegar cedo no laboratório naquele dia. Tinha
marcado com Leandro para depois do almoço, mas queria adiantar as coisas que poderia fazer
sozinho para ajudar o máximo possível. Ele não tinha se estendido muito no bloquinho de
carnaval que Henrique o forçara a ir na noite passada, então não estava cansado, apesar de não
ter dormido tanto quanto gostaria.
Por causa do bloquinho? Não. Tinha sido por causa da amiga de Lis, Jana, e a
possibilidade de encontrar sua colega de laboratório fora do ambiente de trabalho. Quando Jana
mencionou que era amiga dela, Dante quase quis dar as costas e sair correndo antes que Lis
aparecesse. Depois, quando se deu conta de que ela não estava ali, chegou a ficar um pouco
decepcionado. Seria estranho e interessante encontrá-la no meio de um bloco de carnaval, toda
fantasiada e cheia de purpurina, sem aquele ar atribulado que sempre tinha no laboratório. Dante
chegou a imaginar que talvez veria um pouco mais das tatuagens dela ou que teria algum
vislumbre de um sorriso.
Lis nunca sorria para ele. Dante ficou se perguntando se ela tinha um sorriso bonito,
parecia que tinha. Enquanto voltava para casa sozinho naquela noite, ele pensou que queria
muito ver o sorriso de Lis Duarte.
Mas tudo que ele vira até agora foram as lágrimas dela. Que péssimo começo.
Chegou no Instituto de Biologia, cumprimentou os porteiros como de costume e pediu a
chave do laboratório. Quando eles disseram que a chave já tinha sido levada, Dante se deu conta
de que estava prestes a esbarrar com Lis no laboratório, a primeira vez depois do acidente.
Refletiu se deveria só dar meia volta e voltar mais tarde para não atrapalhá-la.
Contudo, por quanto tempo ele poderia ficar a evitando? Uma hora eles teriam que voltar a
conviver. Será que era melhor acabar com aquilo logo, como arrancar um band-aid?
Com esse pensamento, ele subiu até o quarto andar, caminhando a passos lentos enquanto
arquitetava suas próximas interações com Lis. Abriu a porta com toda a delicadeza possível,
tentando não fazer muito barulho.
Encontrou Lis sentada em frente ao computador, sua cabeça apoiada em uma das mãos e o
olhar perdido enquanto rolava as páginas com o mouse. Deveria estar lendo algum artigo, mas
não parecia muito focada. Muito pelo contrário, ela parecia prestes a cair no sono.
Entretanto, quando por fim se deu conta de que alguém tinha entrado no laboratório, Lis
deu um sobressalto, chegando a derrubar o caderno e o celular no chão.
— Ai, meu Deus! — ela deu um grito. Alcançou seus pertences com rapidez e se levantou,
quase começando a andar em círculos. — Me desculpa, eu não devia estar aqui, já vou embora,
não vou te atrapalhar!
— Calma, não tem problema… — Dante tentou dizer, mas ela não lhe deu ouvidos.
— Eu só vim procurar alguns artigos no computador do laboratório, não tenho notebook
então tive que… me desculpa, não conta pro Leandro, juro que só vim agora, eu descansei esse
tempo todinho, é sério!
Sério? Dante esticou as sobrancelhas. Assistiu a garota colocar suas coisas na mochila, se
afastando um pouco dela, a fim de lhe dar espaço. Como sempre, eles nunca tinham uma
interação normal, era melhor que não insistisse e a deixasse ir embora.
— E-eu vou indo, me desculpa e… — Lis gaguejou.
Parou de falar. Dante agora estava encarando as costas dela. Percebeu que ela respirou
fundo e ficou parada no lugar.
— Lis? Tá tudo bem? — Deu a volta para enxergá-la de frente.
— Tá tudo ótimo! Acho que levantei rápido demais e fiquei um pouco tonta, mas…
Dante deu a volta completa e arregalou os olhos quando enxergou o rosto dela.
O nariz de Lis estava sangrando.
— Meu Deus — exclamou. — Seu nariz.
— Minha pressão baixou um pouquinho, eu já vou… — Lis tentou dizer. Engoliu em seco,
sentindo-se enjoada.
Finalmente o cansaço tinha a atingido, então. Isso sempre acontecia quando ela se
estressava demais.
— Senta — Dante pediu, alarmado. Conseguiu tirar a mochila de suas costas e puxou uma
cadeira para ela.
Encarou Lis novamente. Ela ficava cada vez mais pálida. E não tinha se mexido ainda.
— Hm, se eu sentar, eu vou… — Engoliu em seco mais uma vez. Sentiu a boca pastosa,
um gosto ruim lhe subindo pela garganta. — Acho que vou cair.
Dante não perdeu tempo. Se colocou atrás dela e passou os braços por suas axilas,
enganchando-os.
— Solta seu peso pra trás, vou te segurar — pediu.
— Mas…
— Anda. Vou te deitar no chão.
Não era como se ela pudesse argumentar muito mais. Quando a segurou, Lis sentiu sua
cabeça ficar leve. Ele a deitou no chão e usou a mochila dela como travesseiro. Depois correu
para pegar seu kit médico na gaveta.
De novo o kit médico… Lis respirou fundo. Será que ele tem uma camisa de força aí
também? Acho que vou precisar.
Dante ligou a lanterna do celular e colocou bem próximo de seus olhos. Lis os espremeu,
incomodada com a claridade, mas ele as reabriu com rapidez.
— Bateu a cabeça recentemente? — perguntou.
— Não… Não precisa se preocupar, isso acontece sempre e…
— Lis, se concentra. — Ele examinou a reação das pupilas com a lanterna. Parecia tudo
certo. — Sua visão ficou turva, está com dor de cabeça?
— Só um pouco enjoada…
— Qual é o seu nome todo? E seu endereço?
— Eu tô bem, é sério.
— Lis, me escuta. Só me responde, tudo bem? Vai ser rapidinho. Qual é o seu nome todo?
— Elis Castro Duarte. Moro na rua Dr. Borman, número 16, apartamento 71. Pertinho da
Praça do Rinque.
— Ótimo, vou aferir sua pressão. Vou esticar suas pernas pra cima da mesa, tudo bem?
Lis fitou o rosto dele acima do seu, os olhos azuis transbordando preocupação. Mais um
olhar novo de Dante Krause, era a segunda vez naquele mês.
Deus, como ele é bonito. Não conseguiu evitar de pensar. Será que tinha mesmo batido a
cabeça?
— Tá bom… — respondeu, deixando que ele subisse suas pernas.
Ela conseguia sentir o sangue escorrendo pelo rosto, Lis devia estar deprimente naquela
posição. Aquilo era mais uma humilhação por ter implicado com Dante? Só isso explicava.
Ele voltou com um aparelho de pressão tirado da sala de Joana. Colocou a cinta no braço
dela e Lis virou o rosto de lado para observá-lo.
Lá estavam os pelinhos de gato na camiseta preta de novo.
— Qual é o nome do seu gato? — perguntou de repente.
Dante franziu o rosto com a pergunta, sem tirar os olhos do medidor. A pressão dela ainda
estava bem baixa.
— O quê?
Ela sentiu seu rosto arder de vergonha quando se deu conta do que perguntara. E se ele
descobrisse que Lis agora tinha o hábito quase religioso de espiar seu Instagram? A situação se
tornaria cada vez mais vergonhosa.
— É que… — tentou remediar. — Tem sempre pelinhos de gato… Quer dizer, presumo
que isso na sua camiseta seja pelo de gato.
Dante encarou o próprio peito.
— Ah. Entendi.
Ele ficou em silêncio. Retirou a cinta do aparelho e o guardou de lado.
— Desculpa, não queria invadir sua privacidade — Lis gaguejou. Estava sendo idiota
como sempre. — Não precisa responder.
— É que é um pouco constrangedor — ele admitiu. Inclinou as sobrancelhas, seu olhar
suave sobre ela.
— O quê?
— O nome dela é Gororoba.
— Gororoba? — Lis quis rir diante do nome fofo.
— Eu tinha 12 anos quando a peguei, não era muito bom de nomes. Então pode rir se
quiser.
Lis sorriu. Dante perdeu o ar por um pequeno segundo.
O primeiro sorriso. O rosto dela estava todo sujo de sangue, mas aquele tinha sido o
primeiro sorriso de Lis para ele. E, como imaginara, tinha sido lindo.
— Eu achei fofinho. Também tenho um gato, mas ele mora com a minha mãe — Lis
murmurou, desviando o olhar.
— Consegue se sentar?
— Acho que sim…
Ele a ajudou a ficar sentada no chão. Lis fitou seu antebraço direito, analisando as
tatuagens. Havia uma frase toda estilizada ocupando quase todo o espaço: “And the riot be the
rhyme of the unheard”, “Que o motim seja a rima do esquecido” era o que estava escrito.
— Rage Against the Machine — afirmou.
— O quê? — Dante pegou o estetoscópio do estojo. Colocou sobre o peito dela primeiro.
— Respira fundo.
Lis obedeceu. Dante fez o mesmo nas costas dela para auscultar o pulmão.
— No seu braço. É uma letra do Rage, né? — ela disse quando ele colocou o estetoscópio
de lado. — “Calm Like a Bomb”.[3]
— Ah. — Dante olhou para o próprio braço. Ela estava certa. — É, sim.
— Legal. É bem bonita.
Dante concordou com um aceno tímido de cabeça. Pegou alguns lenços para que ela
limpasse o rosto.
— E você, hm… — gaguejou, assistindo-a se limpar — gosta do Rage?
— Gosto. Acho que é uma das minhas bandas favoritas.
— Hm. — Dante tentou não ficar animado como uma criancinha com aquele ponto em
comum. Resolveu se aprumar e voltar com sua anamnese. — Quando foi a última vez que
comeu?
— No café da manhã? — Lis se lembrou. Não tinha achado nenhum biscoito ou café na
copa, então aquela realmente tinha sido sua única refeição.
— O que comeu?
— Uma torrada.
— E?
— Só.
— E que horas foi isso?
— Umas 6h30? Acho que por volta disso.
— Meu Deus, Lis. Você tem se alimentado assim desde que começou a vir escondida pro
laboratório?
— Como você…
— Não importa. Você precisa se alimentar. O que trouxe de almoço? Posso esquentar pra
você.
— Ah…
Lis se virou para alcançar a mochila. Retirou o pacote de miojo de dentro dela, percebendo
que o macarrão tinha se esfarelado quando deitara a cabeça ali.
— Você só pode estar de brincadeira comigo. — Dante parecia horrorizado.
— É bom por causa do sódio, minha pressão vai subir rapidinho!
— Meu Senhor.
— Foi só isso que eu trouxe. Não tem problema, eu vou só…
— Deita de novo.
Dante empurrou seus ombros para trás, deitando a cabeça de Lis na mochila mais uma vez.
Foi aí que ela percebeu que ainda estava um pouco zonza.
— Descansa um pouco, ok? — ele pediu. — Vou pedir algo pra você.
— Não precisa, é sério!
— Só um pouquinho, Lis. Por favor.
Ela se calou com o “por favor”. E com os olhos doces dele de novo, tão diferentes do
primeiro olhar que lhe lançara na seleção de mestrado. Deixou que ele se levantasse para pedir a
comida, ficou o observando mexer no celular até que seus olhos pesassem.
Tão bonito… foi o que conseguiu pensar antes de adormecer.
CAPÍTULO 8
“Oh, bem, você quer, você quer
Você quer ir?
Onde eu nunca te deixei ir antes?”
Now Playing: Do You Want To
Franz Ferdinand

Lis tinha se dado conta de que tinha ficado faladeira demais enquanto passava mal. Agora
que o pior já tinha passado e ela estava um pouco melhor, Lis ficou se achando idiota pelas
perguntas impertinentes, pela piadinha sobre o miojo e o fato de que tinha adormecido deitada no
chão. E agora estava sentada diante da mesa com um papelote enfiado na narina esquerda,
olhando para a marmita bonita que Dante comprara para ela. Comida de verdade, a boca de Lis
salivou ao fitar o bife à cavala. Não parecia ser uma marmita baratinha que ela compraria na
Cantareira quando tivesse dinheiro, claro que não. Lis conseguiu ver o pacote da embalagem e o
nome era de um restaurante de Icaraí, ele tinha pedido até um brigadeiro de sobremesa e um suco
natural.
Devia custar pelo menos uns 40 reais. E ela não tinha 40 reais para gastar, mas teria que
pagar Dante de volta.
Seus olhos começaram a lacrimejar. Dante estava bem ao lado dela, então só franziu o
cenho como de costume, atento às expressões dela.
— O que foi? — perguntou. Ela ainda não tinha se mexido para começar a comer. —
Ainda está se sentindo mal?
— Não, eu… — Lis engoliu em seco. Seria humilhação demais começar a chorar porque
não tinha dinheiro para pagá-lo de volta. — Quanto foi? Me passa seu pix.
— Não se preocupa com isso agora, só come — Dante a dispensou.
Alcançou o garfo. Pegou um bocado e mastigou devagar. Ela só andava comendo comida
de verdade na casa da mãe, visto que o bandejão estava fechado. E, ainda assim, sempre se
policiava nas porções, por causa da implicância de Dona Brenda com seu peso. E Lis não
gostava de pedir comida para as outras meninas da república, já que todas precisavam segurar as
pontas morando longe da família.
Outro bocado, as lágrimas escorreram sem piedade dessa vez. Ela estava realmente
cansada e sensível. Passar mal na frente de Dante era o fim da picada.
— Ei, o que houve? — Ele se aproximou um pouco. Passou a mão pelas costas dela, como
um carinho. — Lis, me fala o que aconteceu.
— Você não vai almoçar? — resolveu perguntar.
Dante engoliu em seco. Lis se lembrou de que ele nunca almoçava no laboratório.
— Tá um pouco cedo… — ele desconversou. — Mas não se preocupa com isso, pode
comer à vontade.
— Por que você nunca almoça comigo? — Lis choramingou. — Você sempre sai correndo
e…
Estava ficando maluca, sem sombra de dúvidas. O que era aquilo agora? Um interrogatório
sobre o porquê de Dante Krause não querer almoçar com ela?
Ele mordiscou os lábios. Não imaginava que isso a incomodava. Seus motivos não eram
óbvios, mas parecia que ele estava fugindo dela e da chance de socializar. Mas o que responder?
Não se sentia confortável em compartilhar seus problemas naquele momento.
— Eu… — Tentou pensar em alguma desculpa. Como nada lhe veio à mente, voltou a
querer consolá-la. — Lis, tá tudo bem. Você passou mal e precisa se alimentar.
— Mas eu me sinto mal comendo isso sozinha e… Eu vou te pagar, é só me passar seu pix.
Só tenho que dar uma olhada na minha conta antes, mas…
— Não precisa me pagar.
— Que tal se a gente dividir?
— Realmente não precisa…
Os lábios de Lis tremeram, quase formaram um beicinho. Ela ainda devia estar meio
avoada por causa da queda de pressão. Era bem diferente de seu temperamento habitual, então
Dante não sabia como agir direito.
— Uma batatinha? — Ela estendeu a batata-frita crocante em sua direção.
— Por que você quer que eu faça isso…? — A voz dele quase sumiu.
— Por favor? Pra não parecer que eu só tô te alugando.
Dante ficou em silêncio. Sentiu um leve desconforto com a ideia de comer na frente dela,
mas Lis estava em um estado tão deplorável que o sentimento maior era pena. Pelo que tinha
captado de toda aquela interação e das semanas que se passaram, Lis não gostava de dar trabalho.
E se isso a faria se sentir melhor, ele estava disposto a engolir seus receios, por algum
motivo obscuro. Era só uma batata-frita, não era nada demais.
— Tá bom — resmungou. Pegou a batata das mãos dela e enfiou tudo na boca.
Mastigou rápido e engoliu, como se fosse um remédio. Fazia tempo desde que ele não
comia uma batata-frita, seu instinto maior era pegar o celular e tentar calcular as calorias daquilo,
mas conseguiu se conter.
Olhou para Lis novamente, sua expressão tinha se suavizado um pouco.
— Come isso aqui também. — Estendeu a caixinha com o brigadeiro.
— Não precisa, comprei pra você…
— Por favor? — pediu de novo.
Esses olhos azuis enormes, Dante mordeu os lábios. Pelo visto, era difícil negar qualquer
coisa quando ela o olhava daquele jeito.
É só comida, pensou, abrindo a caixinha. Deu uma mordida no brigadeiro e torceu o nariz.
— O que foi? — Lis perguntou.
— É doce demais — disse, mas conseguiu comê-lo inteiro. Colocou a caixinha de lado. —
Agora para de enrolar e come.
Ela assentiu e obedeceu, almoçando com uma pequena alegria que não conseguiu
esconder. Quando terminou, Dante limpou tudo e pegou novamente o aparelho de pressão.
Aferiu e respirou fundo, aliviado.
— Doze por oito, normalizou — falou.
— Viu? É só estresse, acontece sempre.
— Não é normal sua pressão baixar tanto ao ponto de fazer seu nariz sangrar. Você devia
investigar isso.
— Eu sei… Assim que receber a bolsa de mestrado, vou voltar a ter plano de saúde e
cuidarei disso, pode deixar.
Lis se calou de repente. Falar sobre sua saúde era chato, porque uma hora ou outra sempre
mencionavam seu peso. E Dante, com seu porte de atleta e pelo fato de ser médico, com certeza
estava prestes a lançar algum comentário do tipo. Contudo, como ele tinha sido gentil com ela,
Lis só deixaria o desconforto passar.
— Não tem mais plano de saúde? — foi o que ele perguntou no fim. — Por quê?
— Ah. — Ela ficou um pouco surpresa. — Era minha mãe que pagava. A situação apertou
e a gente resolveu que seria melhor só a minha irmã ter o plano, já que ela é mais sensível.
— Entendi. — Dante só fez um meneio com a cabeça, franzindo o cenho de novo. Longe
dele querer questionar a dinâmica familiar de Lis, mas era um pouco estranho que a irmã
escolhida para ter plano de saúde não fosse aquela que passava mal ao ponto de ter sangramento
nasal.
— Melhor eu ir. — Lis começou a juntar suas coisas. — O Leandro me mata se me vir
aqui. Obrigada por ter me ajudado.
— Quer que eu peça um Uber pra você?
— Meu Deus, não. — Lis suou frio. Sua dívida só aumentaria mais. — Eu moro bem
perto, posso ir andando.
— Posso te acompanhar até em casa? Tenho medo de que você passe mal no caminho.
— N-não precisa — gaguejou. Não queria parecer ingrata, mas todo aquele cuidado era
estranho para ela. — Estou melhor agora, de verdade.
— Só até a entrada do campus então — insistiu.
Ela concordou. Deixou que Dante trancasse o laboratório e o seguiu até o elevador. Ele
entregou a chave na portaria e os dois saíram do Instituto em silêncio, caminhando pelo campus
vazio. O dia estava nublado, mas pelo menos não estava chovendo.
Passaram em frente ao bandejão fechado, ainda quietos. Foi quando Lis ouviu chamarem
seu nome. Ela congelou no lugar ao identificar a voz.
Gabriel.
— Lis! Eu tava indo passar no Instituto pra falar contigo, que bom que te encontrei — ele
disse, sorrindo. Ela não quis sorrir de volta.
Meu Deus, a humilhação não para, pensou. Gabriel também estudava na UFF, fazia
Biblioteconomia e estava para se formar. Desde o término, Lis fazia de tudo para não esbarrar
com ele pelo campus. O que era um pouco difícil, já que o IACS, o Instituto de Arte e
Comunicação Social, ficava bem em frente ao Instituto de Biologia.
Nem nas férias ela tinha o alívio de não o encontrar, pelo visto.
— Cara, você tem falado com a sua irmã? — Gabriel começou. Mal se deu conta da
presença de Dante ao lado dela. — Ela me infernizou o carnaval inteiro, ontem mesmo ela…
Dante observou o rapaz. Tinha a altura de Lis e um rosto bonito, emoldurado pelo cabelo
cacheado e castanho. Pelo que conseguiu adivinhar, parecia ser cunhado dela, mas Lis estava
bem desconfortável na presença dele, então talvez houvesse mais história por trás da relação.
E aquele tal de Gabriel sequer notou a palidez de Lis, nem mesmo o papelote enfiado na
narina. Por Deus, a blusa dela estava um pouco suja de sangue e ele ainda estava falando da tal
irmã.
— A gente pode almoçar juntos? — Gabriel pediu. — Tô precisando conversar, sinto sua
falta, você sumiu.
Lis estremeceu com o comentário.
— Ah, já almocei — falou. — Foi mal.
— Pode ir comigo mesmo assim? Realmente preciso conversar e…
— A gente tem um monte de experimento pra fazer — Dante resolveu intervir. Tinha
notado a expressão dura de Lis.
Todos ficaram em silêncio por um instante. Gabriel por fim notou a presença de outra
pessoa ali.
— Dante — ele o cumprimentou. — Colega de laboratório da Lis. Realmente estamos
cheios de coisas pra fazer.
— Ah, Gabriel. Prazer. Tudo bem, então. Posso te ligar mais tarde?
— Claro… — Lis suspirou. Não teria como fugir dessa.
Um pouco assustado com o porte de Dante, Gabriel murmurou uma despedida e foi
embora em direção ao IACS. Lis respirou fundo, cabisbaixa.
— Seu cunhado? — Dante perguntou.
Mais um suspiro.
— Meu ex — admitiu. — E meu cunhado.
— Hein?
— Essas coisas acontecem, não é nada demais. — Lis deu de ombros. Não sabia por que
tinha contado isso. — Minha vida é um caos, é só isso.
Por que ela tinha que se encontrar com Gabriel ali? Por que ele nunca a deixava em paz?
Por que ela mesma nunca tinha um momento de paz? A perda do primeiro lugar, a bolsa, as
lâminas, cortar o dedo e passar mal na frente de Dante Krause. Ela realmente nunca tinha paz.
Prestes a entrar nas profundezas da tristeza, Lis sentiu seus olhos aguarem mais uma vez.
Ia começar a chorar de novo, mas a ação seguinte de Dante a pegou de surpresa.
Ele deu um pequeno peteleco na testa dela. Isso a tirou dos devaneios autodepreciativos.
— Ai…? — Passou os dedos pela testa.
— Só pra te tirar desse espiral de ansiedade. — Foi a vez dele de dar de ombros.
— Não estava ansiosa, eu só…
— Um ansioso reconhece o outro. — Ele abriu um sorrisinho.
Ali estava outra expressão nova, um sorriso. E ele falar que também era ansioso era um
pouco surpreendente, já que sempre parecia calmo e desinteressado.
— E se te serve de consolo, minha família também é um caos — ele continuou. — Então te
entendo de certa forma.
Outra surpresa. Lis ficou refletindo se os Krause tinham desavenças por heranças e
enormes quantias de dinheiro. Um caos que eu queria ter, talvez, pensou.
— Mas minha irmã tem 15 anos — Dante explicou. — Então não sei bem como agiria se
ela começasse a namorar uma ex minha.
— Não sabia que você era um piadista, Dante Krause! — Lis sorriu também.
Aquele sorriso de novo. Dante teve a súbita vontade de falar mais idiotices só para que ela
continuasse rindo.
— Vai vir escondida pro laboratório no fim de semana também ou finalmente vai
descansar?
— Você sabia mesmo que eu estava indo escondida?
— Sabia. Você não é tão organizada quanto acha que é. Outro dia deixou a garrafa de
glicina fora da geladeira e eu tive que fazer uma nova.
— Sério? — Lis tentou se lembrar.
— Sério. Mas o Leandro não percebeu, então fica tranquila.
Ela assentiu, tímida. Era estranho ter uma conversa amigável com ele.
— E o seu dedo? — Dante perguntou. — Acho que semana que vem já posso tirar os
pontos, mas depende se você o deixou cicatrizar direito ou não.
— Hm… — Ela engoliu em seco. Ainda doía um pouco, então era improvável que tivesse
cicatrizado por completo.
— Lis…
— Olha, não consigo pipetar nada com a mão esquerda. Não dói tanto assim, já vai sarar.
— Você nunca consegue parar?
— Não é como se eu pudesse parar. Preciso terminar meu TCC. Não tenho outra opção.
Dante ficou um pouco triste com o comentário. Tinha sido insensível perguntar se ela
nunca conseguia parar. Afinal, parte de toda aquela correria era culpa dele.
— Não pode me deixar te ajudar? — falou. — Sei que ainda estou aprendendo, mas… Só
me deixa te ajudar, Lis. Por favor.
Ela soltou mais um suspiro. Ainda se sentia mal por Dante acreditar que ela o achava
incompetente. Todos aqueles mal-entendidos tinham atrapalhado muito a relação deles.
— Tudo bem — concordou. — Segunda a gente começa então?
— Combinado. Até lá vai descansar?
— Vou tentar, mas não prometo nada. — Ela lhe lançou um sorrisinho implicante. — Vou
indo, já estou melhor. Obrigada pela ajuda. E pela comida também. Me passa seu pix na
segunda?
— Não precisa me pagar de volta. Pensa nisso como um pedido de desculpas por ter
destruído suas lâminas — ele ponderou.
— Mas foi… a gente resolve isso depois, então. Até mais…
Ela acenou para ele, ainda sorrindo, e saiu do campus. Dante ficou a observando se
distanciar até sumir. Depois, deu as costas e voltou para o Instituto de Biologia. Pelo visto,
Leandro tinha chegado naquele meio tempo. Encontrou o pós-doc parado em pé na sala de
alunos, olhando para baixo.
— Por que tem sangue no chão? — Leandro perguntou, confuso.
Realmente, havia alguns pinguinhos de sangue ali, Dante se esqueceu de limpá-los antes de
sair. Tentou pensar em alguma desculpa, mas nada lhe veio à mente. Por isso, resolveu abrir o
jogo.
— A Lis estava aqui — disse. — Ela teve uma queda de pressão brusca e o nariz dela
sangrou um pouco. Ela já está bem, foi só um susto.
— Meu Deus! — Leandro quase deu um grito. — Essa garota… Isso aconteceu quando ela
teve que apresentar o projeto no Vasconcellos Torres[4] ano passado. Ela veio escondida pro
laboratório?
— Acho que ela queria ler alguns artigos, disse que não tinha notebook em casa… —
Dante desconversou. Não queria trazer problemas para ela. — Acho que foi só hoje.
— Meu Deus… Está tudo bem entre vocês dois?
— Sim, só fiquei um pouco preocupado.
Leandro o examinou. Dante tinha uma expressão tímida no rosto, talvez suas bochechas até
tivessem corado um pouco. Ele inclinou as sobrancelhas diante da cena.
Quem sabe aquele fosse o começo de uma aproximação entre Dante e Lis?
— Ainda está preocupado com ela? — perguntou.
— Um pouco. Ela não para nunca.
— Verdade. Quer o número do celular dela? Assim vocês podem conversar mais à
vontade. Só pra saber se ela ficou bem.
— Ah. — As bochechas dele ficaram ainda mais vermelhas. Leandro segurou um sorriso
com tudo que tinha. — Tudo bem. Só pra saber se ela chegou bem em casa.
Leandro concordou e pegou o celular. Compartilhou o número de Lis e disse que ia pegar
um pano para limpar o chão. Saiu escondendo uma risadinha, satisfeito.
Dante fitou a foto de perfil de Lis no WhatsApp. Ela estava sorrindo na foto. Engoliu em
seco e digitou algumas mensagens.
Dante Krause
Oi, é o Dante
O Leandro me passou seu número
Não se preocupa, ele não sabe que você tem invadido secretamente o lab
Conseguiu chegar bem em casa?
Só queria saber se você tá legal
A resposta demorou um pouco para vir. Ele soltou o ar que nem sabia que estava prendendo
quando Lis o respondeu.
Elis Duarte
Oi!
Acabei de chegar em casa
Vou salvar seu número então
Estou bem
Meu nariz parou de sangrar
Considero isso uma vitória
(•◡•) /
Dante Krause
Seu conceito de vitória é um pouco estranho
Elis Duarte
A gente tem que se apegar às pequenas batalhas vencidas
Obrigada de novo
Não esquece de me passar seu pix
Dante Krause
Já disse que não precisa me pagar de volta
Elis Duarte
Vou pagar de qualquer jeito
Nem que seja em dinheiro em papel
Você vai me obrigar a ir no banco sacar dinheiro?
Sabe há quanto tempo não uso dinheiro vivo?
Dante Krause
Não vou aceitar
Elis Duarte
Você é muito cabeça-dura
Dante Krause
Já se olhou no espelho?
Elis Duarte
Sempre
Sou toda natural
Bonita pra caramba
Dante Krause
Tá passando mal de novo?
Elis Duarte
É um meme
Pelo amor de Deus
Dante Krause
(ㆆ_ㆆ)
Elis Duarte
Enfim
Obrigada de novo
A gente conversa sobre essa história do pix outro dia
Dante Krause
Ok
Descansa
Até segunda
Elis Duarte
Até segunda!
Obrigada de novo
Leandro espiou Dante mexer no celular. Notou um pequeno sorriso no rosto do novato,
ainda sem tirar os olhos da tela. Ele teve vontade de ligar para seu amigo Martim e contar sobre o
que tinha acontecido.
Finalmente Leandro tinha mandado bem com aqueles dois.
CAPÍTULO 9
“Não, você não significa nada pra mim
Mas você tem o que é necessário pra me libertar
Oh, você poderia significar tudo pra mim”
Now Playing: Say it Right
Nelly Furtado

19/02/2024
149 dias para o fim do semestre
Dante resmungou quando ouviu seu celular tocar na mesa de cabeceira da cama. Coçou os
olhos, remexendo-se entre as cobertas, sentindo o peso de Gororoba deitada em seus pés. Pegou
o aparelho sem acordar completamente, encostando-o no ouvido.
— Alô? — Ele mal se deu conta de que estava atendendo uma ligação, tinha esticado o
braço para desligar o alarme.
— Finalmente você atendeu. — Uma voz grossa e imponente se fez presente do outro lado
da linha. Isso fez com que ele acordasse. — Um filho ingrato só se dá ao trabalho de atender ao
próprio pai quando é pego de surpresa.
— …oi, pai — Dante soltou um suspiro.
— Falei com seu primo ontem. — Seu pai nem fez questão de cumprimentá-lo de volta. —
Perguntei quais eram seus planos para voltar para casa e ele disse que você ainda não tinha
nenhum. É isso mesmo, Dante Hoffmann Krause? Vai continuar com essa palhaçada? Vai
mesmo jogar todo seu esforço no lixo pra perseguir uma carreira estúpida de pesquisador?
— Como tá a Ame, ela tá bem? — Dante ignorou as provocações. Não adiantava discutir,
ele sabia bem.
— Está bem, mas…
— Ótimo, até mais então. — Desligou.
Jogou o aparelho no colchão, revirando os olhos. Não demorou nem um segundo para que
ele voltasse a tocar.
— Oi, pai — atendeu novamente.
— Como você ousa…?
— Vou desligar de novo.
— Até quando vai ficar importunando seu primo, vivendo como um parasita aí em
Niterói? Se acha que vou te sustentar aí, pode acreditar que…
— Não precisa me sustentar. Recebo bolsa, posso me virar muito bem sozinho com ela.
— Você está aí já faz quase dois meses, não acha que já chega dessa infantilidade de
desistir da medicina e fugir de casa?
— Assinei um contrato, não posso largar o mestrado sem mais nem menos.
— Eu pago a rescisão da bolsa. Você precisa voltar para casa! Já falei com sua tia Inês,
há uma vaga na neurologia esperando por você no hospital. É neuro, a área que você gosta. É
só voltar pra casa.
— Não quero ser médico.
— Dante!
— Vou morrer se voltar — disse por entre os dentes. — Consegue entender isso?
— E como você vai morrer se voltar pra casa? Se só vai voltar e encarar suas obrigações
como um adulto?
Ele não respondeu, mas seu pai sabia bem o que ele queria dizer com aquilo. Ele tinha
assistido Dante definhar por anos e mesmo assim não se compadeceu. Só o forçou a perseguir
ainda mais a perfeição, ser mais como um Krause, engolir a dor e seguir em frente. Esse era o
lema de sua família. Seguir em frente até morrer.
Mas não era o dele, não mais. E seu pai agora não tinha mais poder nenhum sobre ele.
— Espero que esteja tudo bem com o senhor, pai — cortou o falatório do outro. — Não
vou voltar. Tenho pelo menos dois anos aqui. Depois tem o doutorado. Melhor aceitar isso logo.
— Vou falar com a Joana, ela ter te aceitado foi um disparate e…
— Até mais. Pare de me ligar de manhã.
Desligou novamente. Dessa vez, colocou o celular no silencioso. A ameaça de falar com
Joana o perturbou. Não por causa de si mesmo, mas porque a professora passava por um
momento delicado. Talvez fosse melhor mandar uma mensagem a alertando.
Joana devia se arrepender tanto de tê-lo aceitado como aluno. Mesmo sabendo como era a
vida de um Krause, ela provavelmente não imaginava o transtorno que seria ter que lidar com
seus pais. Dante estava se tornando um problema enorme para ela.
— Cacete — reclamou.
Levantou-se da cama. Seu despertador ainda não tinha tocado. Só Otto Krause para
interceptá-lo quase de madrugada. Ele tinha mesmo que bloquear o número dos pais. Assim que
arranjasse um jeito de falar com Amélia sem a interferência deles, Dante os bloquearia.
Tirou o pijama e colocou roupas esportivas. Fez um carinho em Gororoba antes de sair do
quarto e colocou os óculos. Ele tomaria café e depois iria para a academia. Ficaria lá até a voz do
pai parar de ecoar em seus ouvidos.
Por que ele ainda se importava tanto com o que Otto dizia?
— Caiu da cama, grandão? — Henrique já estava acordado. Pelas roupas que vestia, talvez
nem tivesse dormido, provavelmente estava voltando de algum plantão.
— Meu pai acabou de me ligar. — Dante torceu a boca, irritado com a presença do primo
ali. Ele não conseguiria comer na frente dele. Sendo assim, teria que ir para a academia de
estômago vazio.
— Ah. — Henrique girou os olhos, uma expressão de culpa os adornando.
— Por que você ainda tá falando com ele? Eu não tinha te dito…
— Ele é seu pai, cara. Tá preocupado contigo.
— Porra, Henrique. Preocupado?
— Visto sua situação, eu também ficaria preocupado se meu filho tivesse mudado de
Estado sem nem avisar. Consigo entender o lado dele.
Consegue porra nenhuma, Dante pensou. Tudo que você consegue pensar e achar é que
sou a porra de um idiota que teve anorexia e agora precisa de babá.
— Tô indo malhar — resolveu dizer, já estava ficando irritado demais com o primo.
— Não vai comer?
— Não, Henrique. Não vou comer. Você sabe muito bem disso.
— Por isso que digo que você tem que entender o lado do teu pai, você…
— Estou indo. Vou passar o dia fora no laboratório.
Enfurecido, ele só pegou as chaves, sua garrafa d’água, calçou os tênis e saiu do
apartamento. Deu-se conta que nem teve tempo de lavar o rosto ou escovar os dentes. Como iria
para a academia daquele jeito? Talvez fosse melhor só dar uma volta pela orla até que Henrique
fosse dormir e voltar para casa.
Perdeu-se em pensamentos, caminhando até chegar na orla de Icaraí. O dia já tinha
amanhecido, mas estava nublado como sempre. Ele teve poucos dias de sol desde que chegara
em Niterói. Assim como sua vida, aquela cidade só tinha lhe presenteado com dias escuros.
Respirou fundo, fitando o mar calmo e esverdeado, as nuvens cinzas, a paisagem bonita da
praia de Icaraí.
Tudo que Dante mais queria eram mais dias de sol em sua vida.

Ele ainda estava de mau-humor quando chegou na UFF. Se não tivesse marcado com Lis
naquela segunda-feira, Dante teria dado uma desculpa para não ir. Tinha pegado pesado demais
na academia por frustração, então estava com um pouco de dor de cabeça. Pensou até em tentar
adiantar sua sessão com Laura, mas depois abandonou a ideia. Não queria dar o braço a torcer
para o fato de que as grosserias de seu pai ainda mexiam com ele, então preferiu manter as
aparências, mesmo que sua psicóloga o conhecesse bem até demais.
Estava prestes a entrar no elevador para subir, já cansado no início do dia, quando a porta
estava se fechando, contudo, alguém gritou para que ele segurasse o elevador.
Ele viu uma menina asiática entrar correndo, o cabelo rosa preso em dois rolinhos no topo
da cabeça. Vestia um macacão cor de rosa, uma blusa cheia de corações e estava de óculos
escuros. Era tão baixa que mal alcançava a linha dos ombros dele.
Ela sorriu pelo reflexo do espelho e Dante franziu as sobrancelhas, confuso.
— Oi! — Ela tirou os óculos para cumprimentá-lo. — Você é o Dante, né?
— Ah… sou.
— Me chamo Emília Park, prazer! Sou amiga da Lis, do seu laboratório! Ela tem me
falado de você, finalmente consegui te conhecer!
Tem? Dante tentou ignorar o calor que surgia em seu rosto. Lis tinha falado dele? O que
teria dito? Provavelmente nada de bom, pensou.
— Você não era da UFF, né? — Emília continuou. — Bem-vindo ao Instituto de Biologia!
Não sou do seu departamento, mas considero todos do Instituto meus amados colegas de
trabalho! Então, bem-vindo! Precisando é só chamar!
O elevador chegou no quarto andar. Emília não tinha falado de qual departamento era,
então ele não conseguiu adivinhar se trabalhava no mesmo andar.
— Obrigado? — Seu agradecimento soou mais como uma pergunta. Emília era tão
enérgica que era um pouco difícil de acompanhá-la.
— Não precisa agradecer! Me veja como embaixadora do IB! Me adiciona no Instagram,
aí qualquer coisa que precisar, é só me mandar mensagem! Pesquisa aí o meu user, é @mipark…
Por algum motivo desconhecido, Dante pegou o celular e a adicionou no Instagram sem
nem contestar. Ele mal entrava na rede social, mas acabou fazendo o que ela lhe pediu.
— Vou pedir seu número pra Lis — ela afirmou. — Ela tem seu número, né?
Emília lhe lançou um olhar curioso, inclinando as sobrancelhas.
— Tem. — Dante até ficou na dúvida se devia responder ou não.
— Sério? — Ela inclinou ainda mais as sobrancelhas, surpresa. Depois abriu um
sorrisinho. — Quer dizer… Ótimo! Vou pedir pra ela!
Dante resolveu começar a caminhada para seu próprio laboratório, já que não sabia para
onde Emília iria. Ela o seguiu sem nem pestanejar.
— E como andam as coisas? — perguntou. — Tá gostando da UFF? E do seu laboratório?
Você se dá bem com a Lis? Ela me contou sobre as lâminas, que acidente terrível, com certeza
não foi culpa de ninguém, só do destino! Ela definitivamente não levou isso pro pessoal! O que
acha da Lis, hein? Eu acho que vocês têm um estilo tão parecido, parecem até que combinam,
sabe? Não acha? Tenho certeza de que se dão bem.
— São muitas perguntas… — O rosto dele se aqueceu ainda mais, talvez estivesse todo
vermelho.
— Ah, desculpa. Às vezes falo demais. Mas a Lis é maravilhosa, sabe? Uma das minhas
melhores amigas. Qual é o seu signo? A Lis é de câncer!
— Sou de libra… — Dante ainda não sabia qual era o intuito daquela conversa.
— Nossa, ar e água, ótima compatibilidade! Alguma chance de você saber seu ascendente?
Antes que ele sequer conseguisse pensar em algo para responder – não, ele não sabia qual
era seu ascendente –, Lis saiu do laboratório de Joana, encontrando os dois no corredor. Ela
fechou a cara quando notou a expressão divertida da amiga.
— Emília Park — resmungou.
— Se não é o amorzinho da minha vida! — A outra correu para abraçá-la. — Encontrei o
Dante no elevador! Sabia que ele é de libra?
Lis sentiu vontade de chorar diante de tanto constrangimento.
— O que você está fazendo no quarto andar? — perguntou. — Seu laboratório é no
terceiro.
— Já disse, encontrei seu amigo Dante no elevador e ficamos conversando.
Emília ficou na ponta dos pés para cochichar no ouvido de Lis.
— Por que não me disse que tinha o número dele? Vocês têm trocado mensagens? Como
ousa esconder isso de mim? Vocês têm se falado, como isso aconteceu, o que…
— Vou te arrastar pelos pés se você não for embora agora, Mi — Lis cochichou de volta,
entredentes. — Eu juro que vou te matar.
— Vai nada! — Emília se soltou dela. — Bem, eu vou indo. Muito prazer em te conhecer,
Dante!
— Prazer… — Dante ainda estava parado no lugar, tentando captar algo que fizesse
sentido naquela conversa.
— Um dia desses a gente te chama pra um rolê legal! Tem um bar na Cantareira que a Lis
adora, o “Notas Noturnas”! Você vai amar! Pede pra ela te levar lá algum dia, a gente pode
combinar! Qualquer coisa me manda mensagem que a gente combina!
E foi embora, como o furacão que sempre era. Lis soltou um suspiro quando a porta do
elevador se fechou.
— Então… — Dante começou. — Essa é a sua amiga Emília.
— É. — Outro suspiro. — Essa é a Emília.
“Sabia que ele é de libra?” Lis ainda não acreditava que Emília tinha perguntado qual era
o signo de Dante.
— Ela é maluca. Nunca dê ouvidos a ela — resolveu dizer. — Principalmente se ela
começar com uma história de Besourinha do Amor.
— Quê?
— Ela acha que é uma ótima cupido. Ela vê um casal em potencial e já quer…
Parou de falar. Estava piorando ainda mais a situação.
— Bem, a gente tem muito trabalho hoje. — Pigarreou. — Vamos entrar e… Vamos só
entrar.
Ela nem esperou por alguma resposta, só voltou para o laboratório. Pelo visto, desistira de
fazer o que queria antes de encontrá-lo com Emília.
“Ela acha que é uma ótima cupido. Ela vê um casal em potencial e já quer…” lembrou do
que ela tinha acabado de dizer. E, se tinha entendido certo, Emília estava testando a
compatibilidade dele com Lis. Ela os via como um casal em potencial? Por isso todo aquele
interrogatório?
Ele ainda estava vermelho quando entrou no laboratório também.

— Hoje vamos fazer a criosecção dos cérebros que você e o Leandro perfundiram com
paraformolaldeído na sexta-feira — Lis explicou. — A gente precisa começar a montar as
lâminas novas o mais rápido possível pra dar tempo de fazer tudo.
Dante concordou, examinando a bancada que Lis tinha arrumado. Os cérebros que eles iam
manusear já estavam congelados em tubos falcon. Pelo que ele se lembrava, Leandro havia os
deixado em uma solução de sacarose para depois congelá-los naquela segunda. No entanto, Lis já
tinha feito tudo, como sempre.
— Congelei os cérebros ontem — Lis gaguejou quando o percebeu analisando tudo. — Pra
adiantar.
— No domingo? — Dante levantou uma das sobrancelhas.
— Não é crime trabalhar num domingo…
— Acho que você viria de qualquer jeito, sendo crime ou não.
Lis soltou um suspiro.
— Olha, a pessoa que você tem que culpar por esse comportamento é o Gustavo. — Ela
deu de ombros. — Ele me ensinou tudo e o apelido dele aqui é “Gustavo Surtado”. A fruta não
cai muito longe da árvore, sabe.
Dante sentiu vontade de rir. Pelo menos o incidente de ela ter passado mal tinha ajudado os
dois a se aproximarem. Era bom se dar bem com ela.
— Bem, como meu dedo ainda não tá muito bom, pensei em te deixar usar o criostato —
continuou. Sua voz saiu baixa e ela desviou o olhar, tímida. — Eu te ajudo a montar os blocos
nos discos de corte e você tenta cortar. O que acha?
— Tudo bem.
Lis o levou até a sala do criostato. Montou os cérebros da maneira apropriada e explicou o
procedimento do corte. Dante a observou trabalhar, notando o olhar concentrado e a boca
apertada, a firmeza nas mãos. Mesmo com o dedo machucado, Lis fazia tudo com maestria.
— A gente tem que alinhar a direção do bloco pra ficar bem certinho na hora do corte,
porque queremos secções coronais do tecido — ela disse. — A gente faz isso ajustando com a
alavanca aqui do lado. Quando estiver certinho, podemos começar a cortar. Pode tentar.
Dante obedeceu. Mexeu a alavanca para frente e para trás. Era um trabalho milimétrico,
necessitava muita concentração. Demorou um tempo até conseguir ajustar da maneira que Lis
pedira.
Engoliu em seco. Ele tinha dito que ajudaria, mas talvez sua curva de aprendizado
estivesse sendo demorada demais. O que Dante menos queria era atrasar ainda mais o
cronograma dela.
— Isso. — Lis não notou seu nervosismo repentino. — Agora que tá certinho, pode
começar a cortar o excesso. Quando a parte que você quer começar a aparecer, vamos diminuir a
espessura da lâmina para cem micrômetros e começar a escolher os melhores cortes pras lâminas.
— Tudo bem.
Dante retirou o excesso. Quando chegaram na área que queriam, Lis mudou a espessura do
corte.
— Como é fino demais, o tecido pode acabar enrolando — ela falou. — É importante que
você não deixe enrolar, pode acabar danificando.
— Ok. — Dante mais uma vez engoliu em seco.
Primeiro corte, o tecido enrolou. As mãos dele pareciam ser grandes demais para aquilo.
Mais um corte, enrolou de novo. Dante soltou um grunhido de frustração.
— Calma, é assim mesmo — Lis murmurou. — Tenta de novo.
Ele tentou. O tecido enrolou mais uma vez. A voz de seu pai ecoou em seus ouvidos de
repente, “É isso mesmo, Dante Hoffmann Krause? Vai continuar com essa palhaçada? Vai
mesmo jogar todo seu esforço no lixo pra perseguir uma carreira estúpida de pesquisador?”
Mais um corte, mais um fracasso. Ele ia acabar destruindo mais experimentos de Lis. Era
compreensível que ela não o deixasse fazer nada, Dante não levava jeito para aquilo. Talvez seu
pai estivesse certo, talvez ele não devesse estar ali, fingindo ser pesquisador, fingindo que
poderia ter o destino que quisesse. Quando cortou de novo e o tecido se enrolou mais uma vez,
Dante teve vontade de jogar tudo para o alto e fugir. Soltou o ar pela boca, sentindo suas mãos
tremerem.
Lis dessa vez notou a tremedeira. Parte daquele nervosismo devia ser culpa dela. “Não sou
tão incompetente assim, apesar do que você pensa” ele havia dito daquela vez. Dante devia estar
se sentindo pressionado a ter que mostrar eficiência e não era isso que Lis queria, não fazia
aquilo para que ele se sentisse mal, só queria ensiná-lo da melhor forma possível. Pensou no que
fazer para amenizar o clima pesado.
— Dante — ela o chamou.
Ele trincou o maxilar antes de olhar. Lá vinha, a bronca. E, dessa vez, Dante não tinha o
direito de contestá-la, estava atrapalhando.
Lis não falou nada. Só esticou a mão e deu um pequeno peteleco na testa dele, do mesmo
jeito que ele fizera quando ela tinha ficado mal com a presença de Gabriel. Dante levou a mão à
testa, confuso.
— Só pra te tirar dessa espiral de ansiedade. — Ela sorriu de lado. — E para com essa
cara, ninguém consegue fazer um corte perfeito de primeira. Isso aí é um saco, demorei muito
pra pegar a mão.
Dante massageou a testa, franzindo as sobrancelhas.
— Olha, pega o pincel assim… — Ela mostrou o jeito certo. — Aperta aqui na pontinha
antes de abaixar a lâmina toda e… Pronto. Tenta de novo.
Lis devolveu o pincel que tinha pegado para ele. Dante manuseou a alavanca e fez um
novo corte, pressionando o tecido com a ponta do pincel com toda a delicadeza possível. Tinha
enrolado um pouco, mas saiu melhor daquela vez. Ela o deixou cortar mais algumas vezes e
começou a montar as lâminas quando as secções ficaram boas. As mãos de Dante pararam de
tremer e ele respirou fundo, mais calmo. Lis estava certa, ele estava quase surtando à toa.
— Acho que você me deu um peteleco mais forte do que o que eu te dei — comentou. —
Quis descontar algo em mim?
— Que isso, imagina! — Ela riu. — Minha mão é pesada.
— Sei.
— Aliás, sobre aquele dia. Seu pix não é o número do seu celular, né? Eu tentei, mas não
apareceu seu nome.
Dante torceu a boca para esconder um sorriso.
— Não é meu celular.
— Alguma chance de ser seu e-mail? Acho que devo conseguir ele em alguma lista…
— É meu CPF.
— Argh. Vou ter que pedir pro Leandro.
— Vai mesmo roubar meus dados só por causa de um pix de 50 reais?
Cruzes, aquela marmita custou 50 reais! Lis quase caiu para trás diante da informação.
— Você é muito chato — resmungou e voltou a montar as lâminas.
Os dois prosseguiram com o trabalho até a hora do almoço. No fim, Dante tinha
conseguido pegar o jeito do corte e as lâminas ficaram satisfatórias. Com tudo limpo e guardado,
ele a seguiu até a sala dos alunos. Guardou o jaleco e buscou a carteira para sair para almoçar.
Provavelmente teria que despistar Lis para que pudesse almoçar sozinho, então tinha que pensar
em uma desculpa convincente para não magoá-la.
— Vou almoçar com a Emília hoje — ela disse de repente. Por algum motivo, estava com
as bochechas um pouco coradas. — Eu até te convidaria, mas a Mi provavelmente vai te falar
alguma besteira maluca e você odeia a ideia de ter que almoçar comigo, então melhor deixar pra
próxima.
Dante quase quis retrucar, mas notou a expressão divertida de Lis e percebeu que era só
uma piada.
Ela tinha um senso de humor um pouco esquisito.
— Isso mesmo, não suporto a ideia de ter que almoçar contigo. — Ele entrou na
brincadeira. — Vai que você resolve me mandar um pix indesejado quando eu não estiver
olhando? Melhor evitar.
— Muito engraçado. — Lis revirou os olhos. — Mas toma. Fiz isso aqui pra você.
Lis retirou uma caixinha de plástico de dentro da mochila. Dante notou que eram quatro
brigadeiros, confeitados com granulado colorido.
— Fiz com chocolate meio amargo — murmurou. — Você tinha dito que aquele era muito
doce.
— Ah. — Dante gaguejou. — Não precisava, eu…
— Só aceita logo, não é nada demais. — Ela sacudiu a caixa. — Se não quer aceitar meu
pix, aceita pelo menos isso. É pra agradecer. Pelos pontos e por ter me socorrido na sexta. É uma
oferta de paz.
Ele pegou a caixinha. Lis não quis se demorar mais naquele gesto constrangedor. Ela tinha
ido no sábado para a casa da mãe e conseguiu pegar uma barra de chocolate escondido e catou
alguns confeitos que sobraram de alguma aventura culinária de Isabela. Era só um agradecimento
e um pedido de desculpas, nada demais.
Emília e Jana nunca poderiam saber sobre aquilo.
— É isso, te vejo às 14h. Até. — Ela só deu as costas para ele e saiu do laboratório com
pressa.
Dante fitou a caixinha, os confeitos coloridos e toda a dedicação que ela devia ter colocado
naquele doce. Sem conseguir se conter, abriu um sorriso e pegou um, já que estava sozinho na
sala. Mastigou um pouco incerto de início, mas estava bem gostoso.
Fechou e colocou a caixinha com cuidado na mochila, saindo do laboratório. Do lado de
fora, percebeu que o tempo tinha melhorado e o céu estava azul. O sol refletia nas águas da Baía
de Guanabara, uma barca navegava ao longe, uma visão agradável.
Finalmente um dia de sol, afinal.
CAPÍTULO 10
“ Eu queria ficar sozinho com você
E conversar sobre o clima”
Now Playing: Head Over Heels
Tears For Fears

27/03/2024
112 dias para o fim do semestre

Mais de um mês depois, na última semana de março, depois de dias e dias de convivência,
Dante já havia descoberto muitas coisas sobre Lis.
Descobriu que a banda favorita dela era a The Killers, descobriu que o aniversário dela era
no dia 19 de julho, que seus pais eram divorciados e que ela tinha uma irmã mais nova do
casamento de seus pais e dois irmãozinhos pela parte do pai. Descobriu também que seu nome
vinha da cantora Elis Regina e que sempre foi apaixonada por neurociências. Muitos fatos
interessantes e importantes sobre sua colega de laboratório.
E, acima de tudo, Dante havia descoberto que talvez estivesse gostando dela mais do que
deveria.
Era interessante: no primeiro dia que se deparara com Lis, na seleção, Dante tinha ficado
com a imagem dela presa na cabeça por diversos dias. Depois, quando a rivalidade começou e
ele a categorizou como a pessoa mais antipática da face da Terra, seu interesse diminuiu
bastante. Mas depois veio o acidente com as lâminas, os encontros atrapalhados e eles fizeram as
pazes. E, desde então, toda a atração que sentia o atormentava quase que diariamente.
Outras coisas que ele havia descoberto sobre Lis Duarte? Ela tinha uma pintinha bem
debaixo do olho direito. Um dia veio de regata para o laboratório e ele viu a linda tatuagem de
mariposa que ela tinha no peito, as asas subindo até as clavículas. Tinha a mania de arrumar a
franja o tempo todo, um senso de humor peculiar, um acervo de figurinhas horrorosas no
WhatsApp e gostava de se comunicar usando memes velhos.
Tinham sido aqueles malditos brigadeiros. O fato de que Lis havia se atentado em um
detalhe da fala de Dante naquele dia, mesmo passando mal, e que tinha pensado nele ao ponto de
se dispor a fazer brigadeiros. Um gesto inofensivo de gratidão casual, algo que ela não exigira
nada em troca.
Isso tinha mexido muito com ele.
Dante era carente ao ponto de se apegar a uma coisa insignificante assim? Pelo visto era, e
bastante. E Lis era doce. Era gentil, atenciosa. Esganiçava a voz quando ficava um pouco
nervosa. Tinha as tatuagens mais lindas do mundo, um piercing no topo da orelha esquerda,
olhos azuis fantásticos e um corpo que ativava seus instintos mais primitivos.
Dante estava muito a fim dela de novo, mas era puramente platônico. Ele às vezes pegava
no sono imaginando seus dedos traçando a tatuagem de mariposa, subindo até o pescoço dela e
fechando a mão de leve ali enquanto estocava com força, tentava adivinhar os barulhos que ela
faria. Mas eram só devaneios.
Puramente platônico.
— Ei, Dante! — Ouviu a voz de Emília logo atrás dele enquanto entrava no Instituto.
Virou-se para cumprimentar a amiga de Lis, alegre pelo encontro. Gostava de Emília,
mesmo que ela às vezes fosse agitada demais. Um dia, ela e Jana apareceram no laboratório de
Joana e Dante ficou observando as interações das três por um tempo, curioso. Descobriu que
Jana ainda estava ficando com seu primo – um feito e tanto, visto que Henrique era avesso a
compromissos – e que Emília e Gustavo Choi, o aluno de doutorado do laboratório, se
conheciam desde pequenos, apesar de não serem muito próximos atualmente. Ele também ficou
feliz em ser incluído na conversa e ficou sabendo de todas as fofocas do departamento pelas três,
um falatório sem fim.
Dante gostava das amigas de Lis, muito. Gostava de tudo que a envolvesse, pelo visto. Mas
era puramente platônico.
Talvez um dia ele se convencesse disso.
— E aí? — Emília o cumprimentou. Estava com um vestido verde de tricô e sandálias tão
altas que, dessa vez, ela atingia a altura dos ombros dele. — Quais são as novidades?
— Vamos ficar o dia inteiro usando o microscópio de deconvolução — respondeu.
— Legal, mas eu perguntei as novidades sobre você e a Lis. Algum avanço?
Durante todo aquele tempo desde que conhecera Emília, Dante conheceu também a
persona de Besourinha do Amor. Ela tinha o encontrado no Instagram – Lis não quis lhe dar o
número dele – e mandou uma DM perguntando: “O que você acha da Lis?”. Dante respondeu
que a achava legal, só isso, mas sabia onde Emília queria chegar. Ele nunca lhe dava uma
resposta direta, mas a Besourinha estava convicta de que daria certo.
E ele não queria negar. Não tinha esperança nenhuma e não via interesse algum vindo de
Lis, mas não queria acabar com a possibilidade. E era divertido assistir aos devaneios de Emília e
ela era boa de conversar, então Dante queria continuar com aquela loucura o máximo que
pudesse.
— Não sei do que você está falando — brincou.
— Para, não se faça de difícil. Eu sou observadora pra caralho, tá? Acha que não notei o
jeito que você olha pra ela?
— Você tá ficando cada vez mais direta nesse assunto, Mi. E vendo coisas que não
existem. — Ele riu. Os dois entraram juntos no elevador e Dante sabia que ela o seguiria até o
quarto andar.
— Sei. Não acha a Lis bonita?
— Ela é bonita.
— Muito bonita?
Dante revirou os olhos.
— Muito bonita. Mas por que você acha que a gente combina tanto? Só porque somos
tatuados e altos?
Emília bufou. Sua abordagem estava realmente sendo direta demais, ela tinha que admitir,
mas Lis e Dante eram muito lentos. Se deixasse o assunto quieto, nada aconteceria.
E ela soube que daria certo quando, um dia, Lis não conseguiu parar de falar dele.
Qualquer coisa fazia com que ela comentasse algum fato ocorrido no laboratório. E não era como
antes, quando ela destilava veneno sobre seu nêmesis. Dante tinha se tornado seu colega, um
colega interessante que ela gostava. Esse foi o primeiro passo.
E os brigadeiros. Lis não tinha contado para ela, mas Dante tinha deixado escapar. Uma
caixinha de brigadeiros meio amargos e confeitados. Ela não faria aquilo para qualquer um, Lis
não era muito de demonstrar afeto.
Tinha tudo para ser um sucesso. Emília só tinha que acelerar um pouco as coisas. Era a
felicidade de sua melhor amiga em jogo, afinal.
— Ela também te acha bonito — resolveu dizer. Segurou um sorriso de vitória quando ele
ficou vermelho.
— Você está inventando coisas.
— Claro que não. A primeira coisa que ela disse sobre você quando se encontraram na
seleção foi que você era um gato. E que tinha olhado errado pra ela, mas um gato.
— Eu fiz o quê?
— Olhou errado pra ela. A Lis disse que você chegou na sala e praticamente a dissolveu
com um olhar de raio laser. Mas depois eu entendi o que aconteceu: você é tímido e ela estava
nervosa. Um mal-entendido inofensivo.
Dante ficou ainda mais vermelho. Pigarreou e ajeitou os óculos. A chance de isso ser
verdade era bem grande. Ele não tinha a cara mais amigável de todas e Lis tendia a tirar
conclusões precipitadas, ele também tinha aprendido isso sobre ela.
— Bem, meu trabalho aqui está feito. — Emília deu de ombros. — Até mais! Manda um
beijo pra Lis!
Foi embora, deixando-o sozinho no corredor. Dante respirou fundo antes de entrar no
laboratório.
Lis já estava lá, sentada em frente ao computador. O semestre tinha começado oficialmente
e agora ela passava ainda mais tempo ali, visto que não tinha um notebook em casa e não gostava
de ficar na biblioteca da UFF. Então não importava a hora que ele chegasse, Lis já estava lá para
recebê-lo.
— E aí? — Ela nem tirou os olhos do computador. — Tudo bem?
Dante guardou a mochila e se sentou ao seu lado.
— Tudo — respondeu. — Qual é o artigo da vez?
— Simplesmente achei “O” artigo. Mas não consigo acessar. — Ela fez um beicinho. —
Vou ter que mandar um e-mail pro autor implorando pelo arquivo e… Nossa, tá tão quente assim
lá fora? Você tá todo vermelho.
Não estava. Estava até fresco para os parâmetros de Niterói. Dante só estava ainda mexido
com o que Emília havia dito.
— Ah, um pouco — mentiu, gaguejando. — Encontrei a Emília na entrada. Ela te mandou
um beijo.
— Hm. — Lis torceu os lábios, já irritada. — Qual foi a baboseira que ela te disse dessa
vez?
Dante deu uma risada.
— Que eu te olhei errado na seleção de mestrado e foi por isso que você me transformou
no seu arqui-inimigo — falou, seu coração acelerado. Queria só brincar com ela, mas ainda
estava um pouco nervoso.
— Argh. Eu vou matar essa garota…
— É verdade, Lis? Como foi que eu te olhei errado?
— Você olhou pra mim como se eu fosse um mosquitinho no seu ouvido — admitiu.
— Quê?
— É sério. Mas eu devo ter entendido errado, foi coisa da minha cabeça.
— Eu ainda não sei como que foi isso.
Ela se virou na cadeira. Torceu a boca e estendeu a mão para Dante.
— Me empresta seus óculos, vou te mostrar — pediu.
Dante obedeceu. Ela colocou os óculos e franziu as sobrancelhas, fazendo cara feia.
Contudo, tudo que ele conseguiu achar foi que Lis tinha ficado uma gracinha daquele jeito.
— Assim, você me olhou assim — ela explicou.
— Ah, entendi, obrigado. — Ele se segurou para não rir. Lis devolveu os óculos.
— Eu cheguei a achar que você queria bater em alguém. Talvez em mim.
— Ah, claro.
— Mas eu entendi agora, você é tímido.
— E você tem um parafuso a menos na cabeça, já te disseram isso?
— Todo mundo me acha adorável.
— Adorável e com um parafuso a menos na cabeça, uma coisa não exclui a outra.
Ela riu e Dante foi golpeado por borboletas agressivas em seu estômago. Amava o som da
risada de Lis, principalmente porque não acontecia com muita frequência. Ela também era
tímida, talvez ainda não tivesse se dado conta disso.
— Olha, pra você entender, eu fico com cara de mau quando estou morrendo de medo. Era
isso que estava acontecendo naquele dia, eu não queria te bater — disse.
— Você estava morrendo de medo na seleção? Por quê?
— Porque eu precisava muito passar. Porque era uma coisa completamente nova e… eu
precisava muito passar.
Ficaram em silêncio. Se Dante já sabia muitas coisas sobre Lis, o contrário não era
recíproco. Ele não fazia isso porque não confiava nela, mas porque não gostava de falar sobre si
mesmo, achava que não havia nada de bom para falar.
O que ele diria? Que foi uma criança idiota que sofreu bullying a vida toda por ser gordo,
que teve anorexia depois que o tio morreu e ele ficou sem ninguém para apoiá-lo? Que teve que
sair correndo de Florianópolis porque estava prestes a ter um colapso? Como contar isso tudo,
como encaixar coisas assim em uma conversa casual?
Não dava, ele não queria conversar sobre isso.
— Bem, eu também estava nervosa — Lis falou. — Deve ser por isso que interpretei
errado.
— E você ainda acha isso? Que eu te olho errado?
— Não. Não sou tão idiota assim.
“A primeira coisa que ela disse sobre você quando se encontraram na seleção foi que você
era um gato. E que tinha olhado errado pra ela, mas um gato.” Ele se lembrou do que Emília
dissera.
Será que ela ainda o achava bonito? Ou o interesse tinha passado? Dante estava com
vontade de perguntar. E se ele conversasse melhor com Emília, avaliar se Lis estava interessado
nele? Mas e se estivesse entendendo errado, e se deixasse o clima estranho?
Era melhor deixar para lá.
— Queridos alunos, vamos trabalhar! — Leandro surgiu da sala de Joana. — Deus ajuda
quem cedo madruga!
A conversa dos dois terminou ali e eles seguiram Leandro para a sala da microscopia.
Tinham muito trabalho a fazer, então era melhor que Dante se esquecesse do assunto.
Mais fácil falar do que fazer.

— Eu vou te matar — Lis resmungou para Emília pelo celular. Atravessou a Praça do
Rinque como de costume, para cortar caminho até sua casa.
O trabalho tinha corrido bem e eles conseguiram terminar tudo por volta das 14h30.
Leandro os liberou e Lis finalmente tinha conseguido um tempinho para si mesma.
Ela colocaria os artigos da matéria de neurodesenvolvimento em dia. Seria ótimo adiantar
as coisas.
— Por que contou pro Dante sobre a baboseira que eu falei na seleção? — continuou,
cumprimentando o porteiro do prédio. Entrou no elevador e apertou o botão de seu andar.
— Só uma curiosidade. — Ela quase conseguiu ouvir Emília dando de ombros do outro
lado da linha.
— E o que mais falou pra ele? Sei que você não deve ter parado por aí.
— Falei que você achou ele um gato.
— Emília!
— Não quer saber como a gente chegou nesse assunto? — Emília deu uma risadinha.
— Não.
— Ele disse que você é bonita. Muito bonita.
Lis quase começou a soltar gritinhos no elevador. Ainda bem que estava sozinha.
— Eu perguntei: “Não acha a Lis bonita?” E ele disse que sim, muito bonita.
— Você o induziu a falar isso. Ele só falou pra te agradar.
— Por que ele ia querer me agradar?
— Porque você é maluca!
— Lis, quanto mais rápido você aceitar que o Dante tá a fim de você, mais rápido vão se
pegar. Porque você também tá a fim dele.
— Não tô, não!
— Você tá a fim dele desde a seleção. Por isso ficou com tanto ranço. O cara bonitão
virou seu rival e ele continuou sendo um gato mesmo sendo babaca. Mas ele não é mais seu
rival, voltou a ser o cara bonitão que tem tudo a ver contigo. Já disse pra parar de querer me
enrolar.
— Vou desligar.
— Você deu brigadeiros pra ele. — Emília resolveu jogar sujo. — Você fez brigadeiros
pra ele.
— Como sabe disso?
— Ele me contou. Somos bests agora, sabe? Você nunca fez um mísero brigadeiro pra
mim e pra Jana, Lis.
— Foi só pra agradecer!
— Da próxima vez, agradeça com beijinhos.
— Babaca.
— O doce! — Emília deu uma risada. — Mas tudo bem, Lis. Não vou fazer mais nada.
— Obrigada — Lis resmungou mais um pouco. — Finalmente um pouco de juízo!
— Não vou fazer mais nada, porque agora não tem mais volta. Não dou nem duas
semanas pra vocês começarem a se pegar.
— Você é ridícula, eu te odeio e vou desligar.
— Também te amo, amiga! Até mais!
Ela desligou. Lis torceu a boca antes de colocar o celular no bolso e buscar as chaves. Mal
conseguiu abrir a porta e Jana já estava do outro lado.
— Ai, que bom que você chegou! — a amiga disse. — Você precisa me ajudar! É questão
de vida ou morte!
— Nossa, o que foi? Aconteceu alguma coisa? — Lis inclinou as sobrancelhas,
preocupada.
— O Henrique me chamou pra ir na casa dele, agora. Pra conhecer, sabe.
— Você vai transar com ele. — Lis fez uma careta. Então era isso.
— Talvez, ainda não chegamos nesse estágio. Mas fico com vergonha de ir até lá sozinha
desse jeito. Principalmente porque o Dante vai estar lá. Imagina que vergonha seu crush me
ouvindo transar!
— Não. — Ela nem deixou que Jana terminasse. Passou por ela pelo corredor. — Não vou
fazer o que você quer.
— Lis, por favor! — Jana fez manha. — O clima vai ficar estranho!
— Não vou ficar de vela na sala do Henrique te escutando transar com ele. Muito menos
do lado do Dante.
— Eu não sei ainda se vou transar. A gente vai só conversar. Mas é perigoso uma menina
ir na casa de um cara sozinha, sabia? Ele pode querer me esquartejar, dissolver meus ossos e
esconder cada pedacinho meu em um bairro diferente de Niterói. Quer que isso aconteça com a
sua amiga? Quer?
— Marca em outro lugar.
— Mas amiga, se rolar eu vou ficar muito feliz, faz tempo que não transo. — Ela fez um
beicinho. — Faz falta, você sabe disso.
Lis sabia. Desde que terminara com Gabriel, ela não tinha transado com ninguém. Dava
muito trabalho e ela não tinha tempo para nada daquilo.
“Não dou nem duas semanas pra começarem a se pegar.” Recordou-se da baboseira que
Emília havia dito. De repente, suas bochechas começaram a arder. Aquelas duas ainda a
deixariam louca.
— Chama a Mi, então — falou.
— Eu chamei! Olha a mensagem que ela acabou de me mandar!
Jana estendeu o celular para ela. Lá estavam uma série de mensagens de Emília.
Emília Park
Não vai dar
Acho que peguei uma doença super contagiosa por algumas horas
Janaína Albuquerque
Por algumas horas?
Emília Park
É
Exatamente o tempo que você vai ficar lá
Mas chama a Lis
Ela com certeza vai aceitar
Usa camisinha, amiga
Beijo
Aproveita bastante
— Todos os dias eu acordo e me questiono por que ainda sou amiga de vocês — Lis falou.
— Tiraram o dia hoje pra me atazanar!
— O que que custa, Lis? Não tô falando pra ficar com Dante, mas pra me acompanhar! E
vocês se dão bem agora, então qual é o problema? Vocês ficam conversando na sala e eu fico
conversando com o Henrique no quarto!
— Você faria a mesma coisa por mim se fosse o contrário?
— Óbvio que sim. E nem precisaria de um gato pra me fazer companhia. Eu ficaria
sentadinha e quietinha esperando você voltar. Pela sua segurança!
Lis suspirou. Verdade fosse dita, ela não duvidava que Jana realmente fizesse isso.
Mas se aceitasse, seria obrigada a se encontrar com Dante. E fora do laboratório, na casa
dele. Seriam obrigados a conviver sem o apoio do trabalho. E se ficasse estranho? O que ela faria
se não conseguisse sustentar uma conversa? Dante não era de falar muito, Lis teria que se
esforçar bastante.
“Ele disse que você é bonita. Muito bonita.” Seria difícil esquecer o que Emília falara. E
se ela acabasse levando aquilo muito a sério? Ia estragar todo avanço que tivera com ele.
“Lis, quanto mais rápido você aceitar que o Dante tá a fim de você, mais rápido vão se
pegar. Porque você também tá a fim dele.” Era difícil aceitar. Por que Dante estaria a fim dela?
Lis o tratou mal por quase um mês inteiro.
— Por favor, Lis. — O beicinho de Jana aumentou. — Por favorzinho? Não é nada demais,
não vai demorar muito.
Bem, se era difícil aceitar, Lis só tinha que ir até lá como amiga de Jana e colega de Dante,
não era mesmo? Era só não misturar as coisas. Poderia ajudar a amiga e ficar mais próxima dele.
Ela só não podia cair nas ladainhas de Emília.
— Tá… — murmurou, incerta. — Mas tem que ser rápido, hein? Não vou ficar a tarde
toda lá te esperando gozar.
— Ah, obrigada, amiga! Você é um anjo! Vai se arrumar, eu vou tomar um banho. Ai, tô
muito animada! Obrigada, obrigada!
Jana foi dando pulinhos até o banheiro, alegre. Lis suspirou de novo. Lá se iam os planos
de adiantar a matéria da faculdade.
Abriu seu gaveteiro, procurando algo satisfatório para vestir. Algo que não fosse igual às
roupas que costumava usar no laboratório e que não parecesse que ela tinha se esforçado demais.
Era só um favor para a amiga dela, um encontro casual com seu colega de trabalho fora do
trabalho.
Quem sabe um dia ela se convencesse disso.
CAPÍTULO 11
"E não quero que o mundo me veja
Porque não acho que eles entenderiam
Quando tudo é feito para ser quebrado
Eu só quero que você saiba quem sou”
Now Playing: Iris
The Goo Goo Dolls

— Porra, eles moram quase na orla! — Jana exclamou. — Dois burgueses safados, amei.
Lis soltou um suspiro, arrumando a franja pela milésima vez desde que saíra de casa com a
amiga. Tinha colocado um macacão jeans curto, uma camiseta simples vermelha e prendido o
cabelo em um rabo de cavalo, além do mínimo de maquiagem possível. Ela não queria passar a
impressão de que tinha se arrumado demais, mas estava se achando um pouco desarrumada, visto
o estilo da rua do prédio de Henrique e Dante. Jana estava linda como sempre, com um vestido
floral e um penteado bonito feito com as tranças que a deixava adorável.
Ela com certeza ia transar.
Jana interfonou e Henrique liberou o portão para elas. Subiram em silêncio, Lis assistiu a
amiga reaplicar o gloss no espelho do elevador. Quase pediu um pouco emprestado, mas aquilo
daria abertura para mais zoações. Não havia motivo para se arrumar mais, só estava
acompanhando Jana, não queria impressionar ninguém. E ela se encontrava com Dante todos os
dias, se arrumar demais só para aquele encontro seria bobagem.
Ele já tinha a visto com o rosto cheio de sangue, já tinha a visto chorando como uma idiota.
E daí se ela estava um pouco pálida? Diante de todos os constrangimentos que passara, ela estar
minimamente arrumada já era uma vitória.
Jana tocou a campainha e Henrique abriu de imediato. Lis ainda não o tinha conhecido
pessoalmente, mas o achou muito bonito. Não era tão alto quanto Dante, mas tinha um porte
elegante com a pele bronzeada e os cachos loiros. Ele cumprimentou Jana com um selinho e
depois a encarou, abrindo um pequeno sorriso.
— A tão famosa Lis! A Jana me falou muito de você! Nossa, você é quase da minha altura
— comentou.
— Oi, prazer. É, eu sou bem alta… — murmurou. Sempre ficava sem jeito quando
falavam de sua altura.
— Grandão, sua amiguinha chegou! — Henrique virou as costas para falar.
Lis teve um vislumbre de Dante debruçado na bancada da cozinha, observando a chegada
das duas. Conseguiu notar a cara feia que ele direcionou para o primo.
— Oi, Lis — disse, passando a mão pelos cabelos. — Entra aí. Oi, Jana. Fica à vontade.
Elas entraram. Henrique já estava de mãos dadas com Jana. Lis ficou parada no meio da
sala como uma estátua constrangida.
— Faz sala aí pra sua amiguinha, grandão — Henrique falou e Lis ouviu Dante soltar um
suspiro. — Vem, querida. Vou te mostrar a casa, você vai amar.
Jana deu uma risadinha. Lis lhe lançou um olhar fulminante e ela só sussurrou um “valeu”
antes de seguir Henrique pelo corredor. Em pouco tempo, Lis e Dante ficaram sozinhos na sala.
Ela então se deu conta de que a sala era simplesmente enorme. Talvez o apartamento
inteiro da república coubesse naquele espaço.
— Então… — Dante quebrou o silêncio. — Veio ficar de babá hoje?
— A Jana disse especificamente que seu primo ia deixar pedacinhos dela em diferentes
cantos de Niterói se eu não viesse.
— Um argumento válido.
— Pois é. Então tive que vir.
— Eu ia sair quando ela chegasse, mas o Henrique me disse que você viria. Fiquei com
pena de te deixar sozinha aqui, ele gosta de colocar Djavan pra tocar quando traz alguém.
Dito e feito, “Oceano” começou a tocar pelo apartamento.
— Meu Deus. — Lis abafou uma risada.
— Então… de nada. Pelo menos você vai ter alguém pra conversar nesse meio tempo.
Ficaram em silêncio. Lis ainda estava parada em pé no meio da sala, ouvindo “Você
desagua em mim e eu, oceano…” soar pelo corredor. Dante saiu da área da cozinha e caminhou
até ela. Usava uma regata preta e uma calça jeans escura, além de chinelos confortáveis. Lis
tentou não olhar para os braços cheio de tatuagens, nem as que escapavam pela gola cavada.
Será que o peitoral dele era todo tatuado também? Ela não conseguiu evitar de pensar.
— Quer uma água? — ele perguntou. — Devia estar quente lá fora.
— Ah, tudo bem — murmurou, quase gaguejando. — Quero sim, obrigada.
Ela o seguiu até a cozinha. Enquanto Dante pegava a água para ela, Lis notou uma caixinha
guardada no canto da bancada. Parecia familiar.
Era a caixinha dos brigadeiros que ela lhe dera. Estava limpinha e com as forminhas
coloridas empilhadas. Dante ainda não tinha jogado fora? Por quê?
“Ele disse que você é bonita. Muito bonita.” De novo a declaração de Emília.
Para de ser besta, Lis. Ele deve ter se esquecido de jogar fora. Esquecido por mais de um
mês? E limpado e organizado tudo? Ela não sabia bem o que pensar.
Certamente não significava nada.
— Aqui. — Ele estendeu o copo para ela.
— O-obrigada. — Lis aceitou o copo, sabendo que seu rosto estava corado. Bebeu o mais
rápido possível.
De novo imersos no silêncio, ela o acompanhou de volta à sala. Nenhum deles se sentou.
Lis cada vez se arrependia mais de ter caído nas ladainhas de Jana.
Olhou em volta, buscando algum assunto para puxar. Estava prestes a começar a elogiar a
decoração da casa quando sentiu algo roçando em sua perna.
Uma gata escaminha dava pequenas batidinhas de cabeça em sua perna. Era tão pequena
que parecia um filhote. Lis não conseguiu segurar o sorriso ao notá-la.
— Meu Deus, essa é a Gororoba? — perguntou.
— Essa é a Gororoba — ele afirmou, sorrindo. A gata foi até ele pedir carinho, miando
alto.
Dante a pegou no colo. Era tão pequena que ele conseguiu esticá-la no antebraço,
apoiando-a ali para fazer carinho em sua cabeça. Lis conseguia ouvir o ronronar da gata de onde
estava.
Meu Deus, que cena, pensou. Um homem lindo e enorme segurando uma gatinha
minúscula. Acho que meus ovários vão explodir.
— Posso pegar ela no colo? — pediu. Era melhor desfazer logo aquele encanto. — Ela é
boazinha?
— Claro. Ela vai com qualquer um. Diferente do pai, ela é bem sociável.
Meu Deus, ele se chama de “pai”. Acho que vou morrer, é fofo demais. Lis estava quase
guinchando diante de tanta fofura. Dante entregou a gata e Gororoba se aninhou em seus braços,
ronronando e miando. Lis a abraçou com delicadeza, animada.
— Se eu não morasse numa república, já teria roubado sua gata de você — falou.
Dante deu uma risada sonora.
— Você já não tem um gato? — perguntou.
— Já, mas ele fica na casa da minha mãe. E não é tão sociável quanto a Gororoba. Às
vezes acho que ele odeia todos os seres humanos, menos eu.
— Qual é o nome dele?
— Fitzwilliam Darcy.
— Nossa, que nome!
— Falou o cara que colocou o nome dessa gatinha linda de Gororoba. E é um personagem
de um livro, tá legal? Nunca ouviu falar de “Orgulho e Preconceito”?
Lis pegou o celular do bolso do macacão. Abriu a galeria e mostrou uma foto de seu gato
para Dante. Era um gato enorme, gordo e todo preto, de pelo longo. E com cara de que o mataria
se ele chegasse perto demais.
— Você o chama desse nome todo quando quer falar com ele? — Dante perguntou.
— Não. Na maioria das vezes o chamo de Sr. Darcy. Ou Dadá. Ou demoniozinho da
mamãe. Fitzwilliam Darcy é só pra quando ele faz alguma cagada.
— Nossa.
— Você não fica chamando essa bonitinha de Gororoba o tempo todo, né?
— Chamo ela de Robinha às vezes.
Ah, é fofo demais! Lis espremeu os lábios para não sorrir. Não tinha mais para onde correr,
Dante fazia totalmente o tipo dela. Chegava a ser covardia o tanto que ela estava atraída por ele
agora. O que um homem com um gato não faz com a gente… Ela quase soltou um suspiro.
— Senta aí, fica à vontade. — Dante apontou para o sofá. — A playlist do Henrique no
Spotify é enorme, então é melhor ficar confortável.
Lis aceitou o conselho e se sentou com Gororoba no colo, fazendo carinho em seu queixo.
Observou Dante se movimentar pelo canto de olho, assistindo-o pegar uma guitarra vermelha e
se sentar na poltrona ao lado dela.
Ele também tocava guitarra. Claro que ele também tocava guitarra.
— N-não precisa ficar me fazendo companhia — resolveu dizer. — Não quero te
atrapalhar.
— Tá com medo que eu comece a te olhar errado de novo? — Ele riu. Dedilhou um acorde
aleatório na guitarra, calmo.
Lis revirou os olhos. Ela ainda não tinha perdoado Emília por ter contado isso para ele.
— Guitarra maneira — mudou de assunto. — Parece a do Tom Morello.
Dante abriu um sorriso e Lis sentiu seu coração acelerar. Ainda não tinha se acostumado
com Dante Krause sorrindo para ela, mas era um ato que se tornava cada vez mais comum.
— Meu tio que desenhou — ele explicou. — Ele me deu a guitarra e me mostrou as
músicas do Rage.
— Caramba, seu tio é bem talentoso.
— Ele era. — Mais um acorde. Lis assistiu seus dedos mudarem de lugar sobre as cordas,
as veias se sobressaindo pela pressão. Engoliu em seco. — Era minha pessoa favorita no mundo.
Morreu quando eu tinha 16 anos.
Lis inclinou as sobrancelhas, pesarosa. Percebeu que Dante também tinha engolido em
seco. Ele quase nunca falava sobre a própria vida, talvez a informação tivesse escapado sem
querer.
— Minha pessoa favorita no mundo era o meu pai — murmurou. Era justo que
compartilhasse alguma coisa sobre ela também. — Ele ama música, foi ele que me deu o nome
Elis. Lembro de ficar escutando música com ele o dia inteiro quando era pequena.
Dante parou de tocar. Estava prestando extrema atenção.
— Mas ele não morreu — Lis se apressou em esclarecer. — Só se divorciou da minha mãe
e arranjou uma nova família. A gente acabou perdendo o contato.
Ele fez um meneio com a cabeça. Apesar do silêncio, não pareciam desconfortáveis. “Teus
sinais me confundem da cabeça aos pés, mesmo assim eu te devoro”[5] tocou de repente, vindo
do quarto de Henrique. Os dois riram e Dante dedilhou alguns acordes da música na guitarra,
fazendo um arranjo bonito.
— Tirou de ouvido? — ela perguntou.
— Tirei. Acho que já escutei tanto essa música que acabei decorando.
— Consegue tocar qualquer música de ouvido?
— Posso tentar. — Ele riu. — Fala uma aí.
Lis parou para pensar.
— Killer Queen do Queen.
Dante não falou nada, só tocou a melodia de forma perfeita.
— Acho que essa é fácil demais, você já devia saber tocar.
— Fala outra, então.
— Hm… Style da Taylor Swift.
Ele inclinou as sobrancelhas, pensativo. Mexeu a cabeça por um momento e murmurou a
letra, como se estivesse se lembrando da música, e depois tocou o que Lis pediu. Mais uma vez
perfeito. Fez até um riff elaborado. Lis riu com o nariz.
— Agora você só está se gabando — falou.
— Não esperava que eu fosse conhecer essa?
— Você não tem cara de que ouve Taylor Swift.
— Nem você. Mas você escuta, não escuta?
— Escuto. Porque é bom.
— Então pronto, eu também. — Ele torceu a boca, rindo. — Fala mais uma.
— Vou pensar numa bem difícil. Vou até… — Ela pegou o celular. Abriu o Spotify e deu
uma olhada em suas playlists. — Voando pro Pará, da Joelma.
— Meu Deus, Lis. — Ele soltou uma gargalhada. — Toca um pouquinho dela pra mim.
Lis obedeceu e colocou a música no celular. Dante escutou um pouco e já conseguiu
acompanhar. Ela se animou e começou a cantar também.
— “Eu vou tomar um tacacá, dançar, curtir, ficar de boa” — cantou.
— “Pois quando chego no Pará, me sinto bem, o tempo voa” — Dante a acompanhou.
Ele quase fez um solo de guitarra para a música. Lis não conseguia parar de rir, cantando e
batendo o pé, animada. Dante só parou de tocar quando ouviu o celular dele apitar.
Colocou a guitarra de lado e alcançou o aparelho. Soltou um suspiro ao ler a mensagem.
— O Henrique disse que se a gente não parar de cantar, ele vai nos expulsar daqui —
falou. Lis quase se engasgou com uma risada.
Dante se levantou da poltrona. Primeiro deu uma olhada nela, sem expressar reação
alguma. Depois respirou fundo e coçou a nuca, tímido.
— Quer dar uma volta na praia? — perguntou. — Tenho certeza de que não tem mais
perigo da Jana ser reduzida a pedacinhos espalhados por Niterói.
Os dois ficaram um pouco vermelhos. Lis pigarreou e colocou Gororoba no sofá. Depois
alcançou o celular para mandar uma mensagem para Jana.
Elis Duarte
Amiga
Tá tudo bem aí?
O Dante me chamou pra dar uma volta na praia
Mas posso ficar aqui te esperando
A resposta demorou um pouco para vir. Ela tentou não olhar para Dante enquanto isso.
Quase quis assassinar Jana pela montanha de mensagens que ela lhe mandou, uma atrás da outra.
Janaína Albuquerque
MEU DEUS
VAI SIM
VAI AGORA
TÁ TUDO BEM SIM
EU TE MANDO MENSAGEM DEPOIS
VAI AGORA
TÁ MUITO BOM AQUI AMIGA
APROVEITA SEU BOY
AI AMIGA
PORRA
DJAVAN CARA
VAI AGORA
QUE FELICIDADEEEE
Eu ainda vou matar essa garota, Lis pensou. Ouviu Dante dar uma risada.
— Liberada? — ele perguntou.
— Liberada, ela tava quase me expulsando.
— Então vamos. Vou só colocar uma camiseta. — Dante retirou os chinelos e calçou seus
tênis. — Acho que vou enlouquecer se ouvir mais uma música do Djavan.
Lis riu, levantando-se. Colocou a bolsa no ombro e esperou que ele se trocasse, seu
coração aos pulos.
Encontro casual uma ova, foi o que pensou antes de sair.
Em um dos poucos dias de sol desde que chegara em Niterói, Dante acompanhava Lis pelo
calçadão de Icaraí, fitando o rabo de cavalo dela balançando com a brisa de fim de tarde. Desde
que Henrique tinha dito que ela viria junto com Jana para a casa deles, o coração de Dante
parecia querer sair pela boca. Ainda estava com as coisas que Emília dissera na cabeça e vê-la
ali, fora do trabalho, tão bonitinha com aquele macacão jeans e as tatuagens bonitas nas pernas, o
fez querer enxergá-la mais daquela forma, longe das atribulações do laboratório, tranquila e
animada.
Ele até se surpreendeu com o fato de não ter ficado tão zangado com as playlists melosas
do primo ou com ele chamando Lis de sua “amiguinha”. A falta de noção acabou quebrando o
gelo do desconforto de ela estar ali e eles conseguiram conversar. E agora estavam caminhando
em paz pela praia, ainda que o assunto tivesse morrido e o passeio estivesse imerso em um
silêncio um pouco incômodo.
— Tá gostando de Niterói? — Lis perguntou de repente.
— Sim, apesar de ainda não conhecer muita coisa. Só tenho ido da UFF pra casa. O
Henrique parou de querer me arrastar pra todos os cantos depois que eu fui embora do bloquinho
de carnaval sem avisar.
— O bloquinho que ele conheceu a Jana?
— É. O que ele queria que eu fizesse, ficasse lá parado enquanto ele ficava com ela?
— Acho que eles têm isso em comum. Precisam de velas pra iluminar os dois.
— É, insuportável.
— Então por que aceitou ficar em casa hoje? Pra ser torturado pelo Djavan?
Porque eu queria te ver, ele pensou de imediato.
— Porque fiquei com pena de você, já disse — preferiu dizer. — Você é uma boa amiga,
mas a playlist é longa mesmo.
— Terceira vez que você me socorre, então. — Lis fez uma careta. — Obrigada, eu acho.
— Sou muito bonzinho contigo, você tem que me agradecer mesmo. E ainda tenho que
ouvir que te olhei errado um dia.
— Nunca vai deixar isso passar, né?
— Nem tão cedo.
Ela mordeu os lábios, parte se divertindo e parte sem jeito. Porque Emília não tinha dito só
que Lis achava que Dante tinha olhado errado para ela, mas que também o tinha achado bonito.
Então Dante tinha aquela informação em jogo e Lis não tinha nada, não acreditava ainda que ele
fora sincero quando Emília o indagou. Se ela insistisse mais naquele assunto, talvez não
conseguisse sair e o clima ficasse estranho.
— Já foi no MAC[6]? — Apontou para o museu no topo do Mirante da Boa Viagem. Não
era muito longe dali, só teriam que passar pela Praia das Flechas e subir a Avenida Engenheiro
Martins Romeo. — É de graça nas quartas.
— A nave espacial? — Dante perguntou. Visto de longe, o museu realmente parecia uma
nave extraterrestre.
— Na verdade é uma flor… — Ela riu. — Mas, sim. Quer ir? A discografia do Djavan é
imensa, acho que a gente consegue ir e voltar e ainda não vai ter acabado.
— Pode ser. — Dante abriu um sorriso e Lis sentiu que ia começar a derreter. — Ainda
não conheci o museu.
— E você mora tão pertinho! Assim não dá, Niterói é uma cidade maravilhosa, você tem
que conhecer tudo.
— Você tá parecendo a embaixadora de Niterói.
— Ah, eu amo Niterói, não sei explicar. — Suspirou. Os dois caminhavam em direção ao
museu, aproveitando a brisa. — É minha cidade da vida adulta. Vim pra cá com 19 anos. Não
que eu seja uma super adulta, mas foi minha primeira vez longe da minha mãe, da minha irmã…
— Você começou a tomar suas próprias decisões — Dante afirmou. Entendia o que ela
queria dizer. Também se sentia assim ali, de certa forma, apesar de sua liberdade só ter vindo aos
26.
— Isso. Eu só passo perrengue aqui, mas amo Niterói. É estranho, mas é isso.
— Sei. — Ele deu uma risada gostosa. — Bem, se você continuar me levando nos lugares,
aceito ir em todos.
Lis ficou em silêncio. Não sabia como responder àquilo. Dante puxou um assunto sobre o
laboratório e os dois permaneceram nele até chegarem no MAC.
Ela o levou até o espelho d’água, mostrando a paisagem. Ao fundo, era possível ver o Pão
de Açúcar e a orla do Rio de Janeiro.
— A melhor vista do Rio! — disse. — Alguns dizem que Niterói só tem isso de bom, mas
eu discordo.
— É uma bela vista mesmo, não posso negar.
— Também chamam a cidade de “Cidade Sorriso”. Não sei bem o motivo, mas é um título
legal.
— Ah, entendi agora por que você é a embaixadora de Niterói — Dante afirmou.
— Por quê? — Lis riu dele, arrumando uma mecha que voava por causa do vento atrás da
orelha.
Linda, pensou sem querer, fitando a imagem dela iluminada pelo pôr-do-sol. Por um
segundo, quis ele mesmo arrumar seu cabelo, enrolar as mechas com delicadeza enquanto olhava
para ela.
— A embaixadora da Cidade Sorriso tem que ter um sorriso bonito — foi o que ele disse.
Lis ficou vermelha na hora. Engoliu em seco, sem saber para onde olhar.
Ele estava flertando? Não era possível.
Subiram a rampa principal e entraram no museu. Lis conhecia o espaço de cor. Antes,
quando a faculdade ainda não tinha tomado todo seu tempo, ela vinha todas as quartas-feiras,
nem que fosse para dar uma olhada e depois voltar para casa. Gostava das curvas de concreto, a
arte ousada que era exposta ali, as cores vibrantes. Passaram pela exposição permanente no
segundo andar e subiram até o mezanino, onde obras de vários artistas em evidência eram
expostas. Pararam em frente a um quadro enorme, cheio de respingos de tinta.
— Ah, sabia — Dante falou enquanto lia as informações do quadro.
— O que foi?
— É uma obra do meu tio. Sempre acabo encontrando uma.
— Quê?
— Meu tio pintou esse quadro. — Ele apontou para a placa de informações. — Dá uma
lida aqui.
Lis se abaixou para ler. Estava escrito: “Zorn (Ira). Acrílico sobre tela por Klaus Krause,
2012. Apesar da aparente desordem, há uma harmonia subjacente na composição, uma
expressão da dualidade inerente à experiência humana.”
— Tá de brincadeira. — Ela ficou de boca aberta. — O mesmo tio da guitarra?
— Ele mesmo.
— Pensei que sua família fosse de médicos.
— Ele foi um dos poucos a não seguir a carreira. Pro desgosto dos meus avós.
— Caramba! — Lis analisou o quadro. Era tão grande que ela tinha que jogar a cabeça
para trás. — É lindo.
Dante a observou de lado, notando os olhos brilhantes e o sorriso solto de Lis. Era estranho
dividir aquele momento com ela, ainda que tivesse sido uma coincidência encontrar um quadro
de seu tio ali. Era como compartilhar um pedaço de sua vida sem que ele precisasse contar
qualquer coisa.
— Gostou? — perguntou, sua voz baixa e cautelosa.
— Muito. Sei lá, tem um toque de revolta, né? Não entendo quase nada de arte, mas não dá
pra sentir?
— O quê?
— A tensão. É colorido e desordenado, profundo.
Dante abriu um sorriso afetuoso. Lis espremeu os lábios, tímida.
— Viajei demais? — Ela deu uma risadinha.
— Não. Acho que meu tio ia gostar de você.
— Sério?
— É, ele adorava falar sobre essas coisas. Eu às vezes gostava de implicar e dizia que ele
só tinha tropeçado e derrubado a tinta. Ele ficava puto.
Olhou mais uma vez para o quadro, a saudade apertando um pouco seu coração.
— Mas ele gostava do caos, da imperfeição — explicou. — De ultrapassar limites, pintar
fora das bordas. Mas minha tia dizia que ele era só um bagunceiro.
— Pra todo lugar que olho tem um Krause agora, é incrível — Lis disse. — Seu tio é foda
pra caralho.
Voltaram a admirar o quadro em silêncio, saboreando a companhia um do outro. O celular
de Dante começou a tocar. Ele suspirou alto quando viu de quem era a ligação.
Seu pai queria atormentá-lo mais uma vez.
— Já volto, fica aí — disse para Lis. — Vou atender rapidinho.
— Ok.
Afastou-se um pouco, colocando o celular no silencioso. Não atendeu a ligação, mas
esperou pelas mensagens do pai. Ficou as assistindo chegar, as palavras raivosas de Otto
dançando pela tela. Suspirou outra vez e levantou a cabeça, tendo um vislumbre de Lis ainda
olhando para o quadro de seu tio.
Ficou com a imagem presa nas retinas, como se Lis estivesse mergulhando nas cores do
quadro, absorta, misturando-se com os sentimentos que seu tio derramara ali. Uma imagem tão
bonita, reveladora, hipnotizante. Uma imagem que ele queria guardar.
Estendeu o celular, tirou uma foto. Olhou o resultado e sorriu, ainda mesmerizado com a
cena. Depois voltou a se juntar a ela.
— Tudo bem? — Lis perguntou.
Ele assentiu, guardando o celular no bolso. Com mais um suspiro, voltou a olhar para a
pintura, fitando as cores fortes e os contornos borrados, a beleza no caos que seu tio tanto
gostava de ilustrar. Depois de ver Lis olhando para aquele quadro, ele conseguiu entender a obra
um pouco melhor. Lis Duarte tinha sido o caos na vida dele durante todo o início do ano, mas
agora ele só enxergava beleza. Era até estranho notar quão profundo estava mergulhando naquele
sentimento.
Mais estranho ainda era querer continuar mergulhando.
— Tudo perfeito — respondeu, sorrindo para ela.

O sol já tinha quase sumido quando Lis e Dante se sentaram na varanda panorâmica do
MAC. O museu estava para fechar, mas eles ainda não tinham tido notícias de Jana e Henrique,
então resolveram esperar mais um pouco.
Lis ainda estava com o coração acelerado, mesmo que o passeio tivesse sido tranquilo.
Desde que Dante falara do sorriso dela, estava inquieta. Um milhão de possibilidades rodavam
em sua cabeça, mas era difícil aceitar todas elas.
Dante Krause estava mesmo a fim dela? Não era mais só uma loucura de Emília? Pior, ela
mesma estava a fim dele? Aquilo não estava evoluindo rápido demais?
E o que fazer agora? Eles tinham que conviver quase que diariamente. Se não desse certo,
os dois voltariam ao pé de guerra, isso atrapalharia a dinâmica já caótica do laboratório. E Lis
não saberia separar as coisas, se apegava rápido demais e depois sofria quando era abandonada.
Era o rumo natural de todas suas relações, ela já devia saber bem. Já bastava ter que conviver
com a humilhação de Gabriel agora ser seu cunhado, se ela se envolvesse com seu colega de
laboratório e tudo desse errado, afundaria ainda mais na lama. E ainda havia o TCC para
terminar, seu foco devia ser nisso.
Mas por que ele tinha que ser tão bonito? E simpático, engraçado, atencioso. Tinha a porra
de um gato. Uma gatinha minúscula que o deixava mil vezes mais atraente. Era injusto, chegava
a ser cruel.
Vamos manter tudo só na amizade, é melhor assim, pensou. Mas a imagem de Dante
segurando Gororoba no colo tinha sido demais para ela, Lis demoraria para se esquecer daquilo.
— E aí, gostou do passeio? — perguntou, tentando manter a conversa casual.
— Gostei, você é uma ótima embaixadora. Espero que estejam te pagando bem. — Ele deu
uma risada.
— É trabalho voluntário. — Deu de ombros. — Niterói, conte comigo pra tudo.
Fitou a praia de Icaraí ao fundo, assistindo as pessoas caminharem pelo calçadão e os
carros lotando a avenida. Adorava aquela vista, parecia ser a pintura mais bonita do museu.
Realmente amava aquela cidade, mesmo com todos os problemas rotineiros.
— Me mudar pra Niterói foi meio que… Começar a respirar. Sei que parece meio bobo, já
que minha família mora na cidade ao lado, mas vir pra cá, ter minha própria vida e tudo mais, foi
como começar a respirar. Como se, pela primeira vez, eu tivesse conseguido respirar fundo… —
Ela inspirou profundamente, puxando o ar. Depois, Dante a assistiu soltá-lo com leveza e
devagar, como se o ato lhe trouxesse profunda satisfação. — E é ótimo. Respirar é ótimo. Por
isso devo muito a Niterói.
Dante a observou mais um pouco, espiando a expressão de Lis enquanto ela admirava a
vista da praia. Ficou assim até que ela virasse a cabeça para falar.
— E você? Conseguiu começar a respirar quando chegou em Niterói?
Ele se endireitou no assento antes de falar.
— Hm, quando eu cheguei não. — Abriu um sorrisinho zombeteiro. — Eu estava uma
pilha de nervos e conheci uma menina meio louca que jurou me destruir assim que olhou pra
minha cara, sabe? Então eu não estava respirando.
— Você é ridículo.
Ele riu. Fitou a mão de Lis próxima, os dedos quase encostando em seu joelho. Esticou os
seus, segurando o indicador dela.
— Mas depois a gente começou a se dar bem e… Acho que comecei a respirar. E você tem
razão. Respirar é ótimo.
Dante falou isso em quase um murmúrio, um pequeno sorriso doce adornando seu rosto.
Segurou o polegar de Lis, virando-o para si com delicadeza.
Passou o dedo na cicatriz que ainda estava ali, fruto do acidente com as lâminas, e ela
estremeceu com o contato, mas não conseguiu se afastar. Ficou assistindo os dedos dele
acariciarem suas tatuagens, contornando os desenhos. Dante subiu o olhar, os olhos azuis presos
nos dela, uma expressão ininteligível em seu rosto, e ela perdeu o ar por um momento.
— Lis… — ele a chamou em um sussurro.
Como a quebra de um feitiço, o celular dela apitou tão alto que ambos se assustaram. Lis
puxou a mão de volta e Dante pigarreou, desviando a atenção para a paisagem. Ela alcançou o
aparelho com as mãos tremendo. Era uma mensagem de Jana.
— Acho que a playlist finalmente terminou — gaguejou. Guardou o celular rapidamente e
se levantou. — Melhor, hm… melhor a gente ir. O museu já está pra fechar também.
Ela nem esperou por uma resposta, só procurou pela saída mais próxima, seu coração
querendo escapar de seu peito. Quando chegaram do lado de fora, Jana mandou outra mensagem
dizendo que Henrique os buscaria ali e depois as levaria para casa. Dante ficou ao seu lado,
também esperando, sem falar qualquer outra coisa. Também parecia um pouco aturdido com a
cena anterior.
Quando o carro de Henrique estacionou na frente do museu, Lis só entrou e se colou na
porta, tentando se afastar o máximo possível. Ficou balançando o pé até enxergar o prédio em
que morava. Quando estacionaram, Jana ficou beijando Henrique da forma mais melosa possível,
então ela só gaguejou uma despedida para ele antes de abrir a porta.
— Hm, te vejo amanhã? — murmurou para Dante enquanto saía, finalmente tendo
coragem de encará-lo.
Ele estava todo vermelho. Engoliu em seco de forma rápida e Lis foi obrigada a desviar o
olhar. Não era possível, parecia uma cena de outro mundo. Ela queria ignorar aqueles sinais
confusos.
— Isso, até amanhã — ele disse. — Até mais.
Jana finalmente saiu do carro. Lis se afastou do veículo e eles foram embora, deixando as
duas sozinhas na calçada.
— Ai, amiga! Muita fofoca pra te contar! — Jana exclamou. — E vocês? Como foi?
Lis sacudiu a cabeça e piscou os olhos. Mal ouvira o que Jana havia dito.
— Foi… foi bom. Eu… — Passou a mão pelo cabelo, aflita. — Vamos subir logo.
E entrou primeiro na portaria, sua mente entupida de pensamentos conflitantes.
CAPÍTULO 12
“Que coisa cruel de se dizer
‘Você nunca se sentiu assim’
Que coisa cruel de se fazer
Me fazer sonhar com você”
Now Playing: Wicked Game
Chris Isaak

29/03/2024
110 dias para o fim do semestre

Dante Krause
Ei, Lis
Você vai hoje naquele bar que a Mi falou?
O Henrique disse que vai com a Jana
E eu fiquei me perguntando se você ia também
Só pra saber
Elis Duarte
Qual?
O Notas Noturnas?
Dante Krause
Esse mesmo
Você vai?
A Jana e a Mi vivem dizendo que lá é a sua cara
Elis Duarte
Ah
Não sei
Tô na casa da Mi com a Jana agora
Mas tô aproveitando pra usar o PC da Mi
Acho que depois que elas saírem vou voltar pra casa pra estudar mais um pouco
Você vai?
Dante Krause
Tô me decidindo ainda
Não sei se vou
Por isso perguntei se você ia
Só pra saber
Elis Duarte
Ah
Entendi
Não sei ainda se vou
Lis não estava estudando naquele momento. Estava jogada na cama de Emília, encarando o
teto enquanto tentava acalmar o próprio coração. Assim que viu que as mensagens que chegaram
eram de Dante, ela quase teve um treco. Estava assim desde o passeio no museu. Lis passou a
quinta fugindo dele e não tinha ido à UFF naquela sexta por ser feriado, ainda que sua vontade
maior fosse aproveitar o tempo livre para adiantar o trabalho. Teve que ficar se desviando de
qualquer assunto que pudesse retomar o que aconteceu no MAC.
Por que estava fazendo isso? Nem ela sabia direito.
Outra mensagem chegou. Levantou o braço para ler, engolindo em seco.
Dante Krause
Lis
Tá tudo bem?
Elis Duarte
Tá sim
Só muita coisa pra estudar
Último semestre da graduação
Sabe como é
Dante Krause
Entendi
Tenta descansar um pouco
Ah
Esqueci de te dizer
Tirei uma foto sua no museu
Vou te mandar
(ANEXO)
Lis abriu o arquivo. Na foto, ela estava um pouco de lado, fitando o quadro do tio de
Dante. Olhava para cima, seus olhos brilhando, um esboço de sorriso pintado em seu rosto. Era
uma foto muito bonita, ela tinha que admitir.
Elis Duarte
Uau
Caralho
Você é um ótimo fotógrafo
Acho que vou até usar de foto de perfil
Valeu!
Dante Krause
Hahahaha
De nada
Não foi uma foto difícil de tirar
Lis respirou fundo, um pouco mais calma. Pronto, ela conseguiria dissipar aquele clima
estranho. Dante estava só sendo amigável e nada do que ela pensou no passeio do museu estava
certo. Com certeza tinha entendido errado. Ela e Dante eram amigos, só isso. E era natural que
ficassem mais próximos, já que conviviam quase diariamente e ele não tinha outros amigos em
Niterói. Nada para se alarmar, na semana seguinte tudo já estaria de volta aos eixos.
Seu celular apitou mais uma vez. Lis acendeu a tela para ler.
Dante Krause
A modelo ajudou muito
A modelo é linda
O quê? Ela sentiu seu coração querer parar de bater por um momento.
— Acho que vou me matar — resmungou, sem ar. Jogou o celular longe, apertando os
olhos com os dedos.
— O que foi? — Jana tirou sua atenção do espelho para perguntar. Estava experimentando
as dezenas de roupas de Emília, tanto que o quarto dela parecia um cenário de guerra. —
Aconteceu alguma coisa?
— Nada… — Lis respirou fundo.
— Por que você tá toda vermelha?
— Alergia. Acho que vou pra casa.
— Como assim vai pra casa? A gente não ia naquele bar mequetrefe que você gosta? A
gente não tá se arrumando pra isso?
— Você chamou o Henrique também?
— Claro. — Jana fez um meneio com a cabeça. — Por quê?
— Por nada. Vocês podem ir sem mim, tenho um estudo dirigido pra segunda-feira que é
enorme e…
— Desembucha, Lis. — Jana colocou as mãos na cintura. — O que aconteceu?
Com um grunhido, pegou o celular de volta, destravando a tela para a amiga ler a
mensagem. Jana arregalou os olhos quando terminou de ler.
— Ai, meu Deus! — gritou. — Ai, meu Deus! Mi, corre aqui!
Emília entrou no quarto usando o pé para abrir a porta. Carregava uma caixa cheia de
salgadinhos, além de refrigerantes e copos. Ela tinha ido pegar o delivery que pediram enquanto
se arrumavam.
— O que houve? — perguntou.
Jana mostrou a mensagem para Emília. Ela quase deixou tudo cair no chão.
— Ai, meu Deus! — exclamou.
Lis suspirou, tapando os olhos com o antebraço. Toda aquela animação a irritava.
— O que você vai responder? — Jana perguntou.
— Nada. Não vou responder nada — Lis afirmou, categórica. — Vou fingir que não li.
— Você vai no bar hoje, né? — foi a vez de Emília questioná-la.
— Não vou. Tenho que estudar.
— Lis!
— Olha, não tem como, tá legal? — Sentou-se na cama. Ainda estava toda vermelha e seu
cabelo era uma desordem total, já que estava há muito tempo deitada. — Simplesmente não tem
como.
— Você ainda tá com dúvidas de que ele tá a fim de você? Ele tá te chamando pra sair,
acabou de te chamar de linda!
— Ele só estava sendo… gentil? — arriscou.
— Gentil? Ele quer é te comer. — Jana fez uma careta para ela, insatisfeita com a cegueira
da amiga.
— Jana, eu sei que parece ser isso, mas não é.
— Por que não?
Lis passou os dedos pelo rosto, nervosa e irritada.
— Porque nunca que um cara como ele se interessaria por alguém como eu — admitiu.
— Vou te dar uma chinelada.
— Eu tô falando sério. Não é papo de baixa autoestima nem nada disso…
— Ah, não é?
— Jana, ele só quer ser meu amigo. A gente começou meio mal e ele está sendo gentil pra
quebrar o gelo, entende?
— Ele te chamou de linda só pra quebrar o gelo da amizade?
— É um flerte amigável.
— Isso existe?
Ela se jogou de volta na cama, suspirando infinitamente. Era cansativo ter que explicar
aquilo tudo.
— Se você fosse gorda, saberia que existe — disse. — É só uma brincadeira. No fim, a
verdade é que ele sequer cogitaria a possibilidade de ficar comigo. Sou invisível pra caras como
ele.
— Ai, não gosto quando você se coloca pra baixo assim, amiga. Não gosto mesmo.
— Não estou me colocando pra baixo, só estou te dizendo como o mundo é.
Jana e Emília se entreolharam. Lis parecia certa daquilo.
— Longe de mim querer invalidar suas vivências, Lis — Jana argumentou. — Mas esse
homem nitidamente quer te comer. O que ele te disse mesmo? Que começou a respirar por sua
causa?
O rosto de Lis se aqueceu mais uma vez. A lembrança daquilo fazia seu estômago se
contorcer em agonia.
— Ele disse que a gente começou a se dar bem e que começou a respirar depois disso. —
Suspirou de novo. Verdade fosse dita, a interpretação dessa fala não dava muito espaço para
dúvidas. — Ai, não sei porque conto essas coisas pra vocês.
— Eu achei a coisa mais fofa do mundo. Não tem como ele não estar a fim de você, amiga,
para com isso! Você parece aquelas protagonistas tontas de comédias românticas que ficam se
lamuriando, dizendo “Ai, será que ele gosta de mim?” E quando você vai ver, o cara só falta
lamber o chão que ela pisa.
— É, mas a minha vida não é um livro. Essas coisas não acontecem comigo. Eu só…
Fechou os olhos. Não era como se Lis não tivesse realmente pensado na possibilidade de
Dante gostar dela. Ela não era cega ao ponto de ignorar sinais claros, mas era estranho se ver
como um interesse romântico do homem mais lindo que já vira. Claro, ela tinha alguns
problemas de autoestima, mas se achava bonita na maior parte do tempo, gostava da imagem que
via no espelho. Era só nesses momentos que sua confiança vacilava um pouquinho.
Ela era só… insuficiente. Lis era bonita, mas não era suficiente. Era interessante, mas não
o suficiente. Era amável, caridosa, gentil, cheia de infinitas qualidades, mas nunca era o
suficiente. No fim, sempre havia alguém ou algo melhor que ela, alguma coisa melhor para se
apostar. Se era sempre assim, por que arriscar? Por que se colocar em risco de se machucar mais
uma vez, mesmo que o desejo que crescia dentro de si estivesse se tornando cada vez mais
incontrolável?
Lis tinha que se concentrar em seu futuro, na vida que estava construindo. Não era hora de
se envolver com ninguém, ela devia saber bem.
Jana cutucou Emília com o cotovelo. Ela pigarreou antes de falar qualquer coisa.
— Meu amorzinho — disse. — Não acha que isso é só a sua ansiedade falando? Sei que
você fica irritada quando a gente começa a te zoar com essas coisas, mas os sinais estão aí pra
você ver. Você disse daquela vez que o Dante tinha dito que você era bonita só pra me agradar,
mas agora ele falou por livre e espontânea vontade.
— Mas…
— E tem mais. Sei que às vezes faço parecer que tudo é uma piada com essa história de
Besourinha do Amor, mas eu nunca brincaria com seus sentimentos. Não acho que o Dante te vê
como uma ficada qualquer, nunca apostaria nele se sentisse isso. Realmente acho que ele gosta
de você. E depois da conversa que tiveram no museu, tenho certeza. Não estou falando de signos
ou energia, estou falando de um homem que está deixando bem claro que gosta de você.
Lis soltou outro grunhido. Pegou um dos travesseiros e afundou no rosto, resmungando.
— Admite pelo menos isso, Elis Castro Duarte! — Jana falou. — E que você também tá
gostando dele. Porque se estivesse encarando isso só como uma ficada, já teria ficado com ele.
Você não é de fazer tanta cerimônia também.
— É esse o problema! — Lis deu um grito, sentando-se na cama de novo. — O problema é
eu gostar dele! Porque eu sou a porra de uma emocionada, vou cair de cabeça nessa merda, fazer
tudo por ele, pra depois ser chutada! Vai ser a mesma coisa que o Gabriel, vou ser obrigada a
conviver com ele como a grande mulher madura e compreensiva que tenho que ser! No mínimo,
ele vai me trocar por uma de vocês duas!
— Vou te dar um soco. — Jana jogou um vestido de Emília na cara dela. — Tá achando
que a gente é igual à tapada da sua irmã?
— A culpa não é dela, essas coisas acontecem e…
— Não quero te ouvir passando pano pra tua irmã sem-noção, Lis. Quero te ouvir falando
que vai ter coragem de beijar na boca daquele gostoso que tá de dando mole! E quem sabe até
mais coisas. O Henrique vai pro plantão depois do bar, só vai poder ficar um pouquinho. O
apartamento deles vai estar totalmente vazio essa noite. Você merece ser bem comida, amiga.
Chega daquele sexo morno do besta do teu ex.
— Misericórdia — Lis choramingou.
No entanto, Jana tinha um pouco de razão. Sua vida sexual com Gabriel nunca tinha sido
grande coisa.
— Lis, pelo menos tenha responsabilidade emocional — Emília argumentou. — Se não
quer ficar com o Dante, tem que deixar claro pra ele. Ele gosta de você e quer uma resposta. Não
pode ficar evitando isso pra sempre.
— Minha vontade é te mandar enfiar essa responsabilidade emocional no rabo, Emília —
Lis quase rosnou. — Porque isso tudo é sua culpa. Porra de Besourinha do Amor. Eu só queria
terminar meu TCC em paz.
— E vai. Uma coisa não exclui a outra.
— Da última vez que escutei vocês, minhas lâminas de imuno foram atropeladas e agora
eu tô tendo que fazer o trabalho de seis meses em um. Cortei a porra do meu dedo, passei mal na
frente dele e fiquei com o nariz sangrando. Me diz por que eu deveria ouvir vocês agora.
— Nada disso. — Emília estalou a língua. — Se tivesse escutado mesmo a gente, nunca
teria discutido com o Dante e nada disso teria acontecido. Você ignorou os nossos conselhos e
deu no que deu.
Lis franziu o cenho, zangada. Bem, Emília tinha um ponto.
— Sendo assim, escute a gente agora — sua amiga continuou. — E vem com a gente pro
bar pra conseguir conversar direito com o Dante. Seja pra dar um fim em tudo ou continuar. A
escolha é sua, mas você vai ter que ir.
Jana e Emília ficaram quietas, esperando a resposta de Lis. Ela fez um muxoxo e um
beicinho, insatisfeita, e se jogou na cama pela milésima vez.
— Tá bom — murmurou. — Eu vou.
As outras duas deram gritinhos e pulinhos de felicidade. Lis virou o rosto para assistir à
dancinha patética, cada vez mais irritada.
— Mas é só pra dar um fim nisso tudo — continuou. — Vai ser melhor assim, menos dor
de cabeça.
— Sei, claro. O que te fizer levantar dessa cama. — Jana deu de ombros. Pouco acreditava
nas palavras dela.
— Vou fazer sua maquiagem. E seu cabelo — Emília pediu. — E… Você estaria disposta
a me deixar cortar sua franja? Ai, e se a gente fizesse um GRWM? Get Ready With Me pra ser
cupido pra minha amiga. O que acha? Posso montar a live.
— De jeito nenhum — Lis grunhiu. — Deixa a minha franja em paz. E esquece essa
história de live, pelo amor de Deus.
— Acho melhor a gente se arrumar bem rápido — Jana falou. — Porque vai chover e
vamos precisar passar em casa. Vamos pegar aquele seu vestidinho preto, aquele com o decote
quadrado nas costas? Você fica uma gostosa com ele.
Lis revirou os olhos. Mas cogitou a possibilidade. Ela realmente ficava bonita com aquele
vestido.
— E sua calcinha — Jana continuou. Lis quis socar aquele sorrisinho zombeteiro da amiga.
— Ainda tem aquelas bonitonas que você usava com o idiota do Gabriel?
Ela soltou um suspiro alto.
— Tenho.
— Ótimo. Vamos trocar tudo também. Porque acho que hoje você vai precisar.
E voltou a dançar com Emília, as duas felizes como se não estivessem ditando o destino de
Lis.
Eu ainda vou matar essas duas de verdade, pensou, escondendo o rosto novamente com o
travesseiro.

Emília Park tinha uma missão.


Não só uma missão, mas o ponto crucial dela. Um erro e toda a missão Dalis daria errado,
o que seria uma tragédia. Duas pessoas que estavam se gostando, mas eram tímidas demais para
dar o primeiro passo. Pior, mesmo sendo extremamente tímido, Dante tinha dado passos
importantes, mas Lis ainda estava indecisa. Então, se o movimento fosse errado, ela daria para
trás e Dante eventualmente desistiria.
E Emília não podia deixar isso acontecer. De novo, era a felicidade de sua melhor amiga
ali, que merecia ser amada depois de tantas decepções. Sim, Emília não conhecia Dante tanto
assim para ter 100% de certeza de tudo, mas havia algo nele que combinava muito com Lis.
Ele a lembrava da amiga no início da faculdade, no primeiro período. Emília primeiro
fizera amizade com Jana, já que as personalidades das duas eram muito parecidas. Lis sempre foi
a caladona da turma, sentava-se no canto da sala e não falava com quase ninguém, sempre
absorta no conteúdo das aulas e intimidadora até o último fio de cabelo. Não tinha tantas
tatuagens quanto agora, mas a vibe de bad girl a perseguia e a turma às vezes tinha receio de
falar com ela.
Foi em um trabalho em grupo que Jana e ela puderam conhecê-la um pouco mais e se
deram conta da verdade absoluta sobre a amiga: Lis era a pessoa mais doce, gentil e amável do
universo. E Emília acabou tendo a mesma sensação quando se deparara com Dante.
Tinha tudo para dar certo. Mas ela teria que jogar direito naquela noite. Estava encostada
na parede dos fundos do Notas Noturnas, observando de longe a mesa em que Dante, Henrique e
Jana estavam. Lis tinha sumido e o primo de Dante não calava a boca por um segundo sequer,
exigindo a atenção dos outros dois. Emília saiu já um pouco irritada, pensando em um modo de
afastá-lo da mesa e encontrar Lis.
— Besourinha! Há quanto tempo! — Uma mulher a abordou. Tinha o cabelo azul e muitas
tatuagens, além de um sorriso alegre no rosto.
— Valéria, que bom te ver! — Emília a cumprimentou. — Faz tempo que não te vejo
mesmo, como estão as coisas?
— Ah, vivendo o sonho, querida! Nem te contei, o Jonathan me pediu em casamento! —
Valéria mostrou a aliança para ela. — Acredita nisso? Tudo por sua causa!
— Que isso, eu só dei uma ajudinha. — Emília sorriu de lado. — Vocês que foram feitos
um pro outro.
Valéria sempre frequentava o Notas Noturnas. Quando Lis levou as amigas pela primeira
vez ao bar, Emília acabou conversando muito com Valéria e descobriu que ela era apaixonada
pelo barman Jonathan há anos, mas nada nunca acontecia. Tudo bem, mais um trabalho para a
Besourinha do Amor. Emília se orgulhava muito de ter conseguido juntar os dois.
A melhor cupido de Niterói nunca errava. E não seria com Lis que Emília erraria agora.
— Mas o que conta de novo? — Valéria perguntou. — Você tá com aquele olhar de águia,
o que tá aprontando? Qual é o novo casal que a Besourinha vai juntar?
— Valéria, querida, você vai cair pra trás quando eu te contar. Mas a escolhida da vez é a
minha amada Lis. E olha ali quem a minha flecha atingiu.
Emília apontou para Dante. Valéria abriu a boca, embasbacada com a beleza do rapaz.
— Meu Deus! — exclamou. — Eu quase tive um treco quando vi esse homem entrando no
bar! Quem a Lis salvou na vida passada pra ter tanta sorte? Que sortuda da porra.
— Ela merece, principalmente depois daquele ex babaca dela.
— Nossa, é mesmo. Tinha esquecido de todo aquele rolê horroroso. Mas cadê ela? Por que
ainda não está sentada no colo daquele gostoso?
Emília soltou um suspiro.
— Você sabe que a Lis é uma medrosa, né? Ela tá com medo de não dar certo e o clima
ficar estranho entre eles. Só que eles se gostam, já tenho provas concretas disso. Ela só tá com
medo de se machucar.
— Entendi. E o que você vai fazer?
— Não sei ainda. Preciso de algo que chame muito a atenção dela, sabe?
— Algo que diga: “preciso beijar esse homem agora”?
— Isso. Eu só não sei o que ainda…
Mordiscou os lábios, olhando em volta. E tinha Henrique também. Ele ainda não tinha
parado de falar. Emília teria que tirar Dante da mesa.
Virou a cabeça para enxergar o pequeno palco do bar, local onde os frequentadores podiam
cantar e se apresentar, além de sediar shows de pequenas bandas de vez em quando. Uma ideia
se acendeu na mente dela.
Lis não tinha dito que Dante tocava guitarra? Ela não tinha parado de comentar sobre isso.
Foi algo que a marcou bastante, pelo visto.
— Val, você vai cantar hoje? — perguntou.
— Daqui a pouco, o pessoal tá preparando os instrumentos ainda — a outra explicou.
Valéria costumava se apresentar sempre com a banda do bar. Tinha uma voz maravilhosa. — Por
quê?
— Alguma chance de você incluir mais um guitarrista em uma ou duas músicas? Pedido da
Besourinha do Amor.
Valéria abriu um sorrisão.
— É pra já, querida. Vou fazer o anúncio no microfone e você faz o resto? Vou seguir sua
liderança.
— Deixa comigo. Valeu, você é um anjo!
Valéria se despediu dela. Emília voltou para a mesa, sentando-se ao lado de Dante.
Henrique ainda tagarelava sobre algum caso médico que teve no hospital. Ela teve que lutar para
não revirar os olhos.
— Ei, Dante — sussurrou. — Me escuta com atenção.
Dante virou a cabeça na direção dela. Desde que Lis sumira, ele não parava de procurá-la
em todo canto com os olhos. Lis provavelmente fugira porque quase tinha tido um treco ao vê-lo
sem óculos. E ele ainda estava com uma camisa preta um pouco desabotoada, que mostrava seus
cordões metálicos. A gota d’água foi quando ela viu os anéis. Emília assistiu a amiga engolir em
seco, sem tirar os olhos das mãos de Dante, e gaguejar que ia tomar um ar.
Tinha sido um pouco engraçado, Emília tinha que admitir. Mas era mais um obstáculo que
teria que contornar.
— O que foi? — ele perguntou, franzindo o cenho.
— Sabe, quando uma oportunidade aparece, a gente tem que agarrar ela com tudo que
pode, né? — Emília abriu um sorriso forçado.
— Sim…?
— Mesmo que essa oportunidade pareça meio estranha, a gente tem que aceitar os sinais
do universo e agarrar ela com tudo que a gente tem, né?
— Do que você tá falando?
— Tô falando que, se uma oportunidade dessas surgir, certifique-se de agarrá-la, ok?
Mesmo que pareça meio aleatória e você sinta vontade de se enterrar em um buraco.
Dante franziu mais ainda o cenho. Ao mesmo tempo, Valéria já tinha subido ao palco.
— Boa noite, pessoal! — falou ao microfone. — Estamos precisando de mais um
guitarrista pra tocar uma música bem legal! Alguém se voluntaria? É um pedido muito especial.
— O Dante sabe tocar! — Emília se levantou na hora. Puxou o amigo pelo braço para que
ele fizesse o mesmo.
— O quê? — ele gaguejou. Mas deixou-se ser levado até o palco.
— A Lis me falou que você toca muito bem! Lembra daquele papo sobre oportunidades?
Então, é agora.
Ela o empurrou até Valéria. Dante já estava vermelho de vergonha.
— Ela falou que você tira músicas de ouvido! — Emília continuou. — Ela ficou muito
impressionada. Muito mesmo.
Dante ficou em silêncio. E ainda mais vermelho, ela conseguiu notar mesmo com as luzes
baixas do bar.
Ele tinha entendido o recado.
— Mas não sei pra que eu… — tentou argumentar.
— Oportunidades, Dante. Você veio aqui pra isso, né?
Ele engoliu em seco e fez um meneio, concordando. Emília abriu um sorrisinho.
— Então confia em mim. Vai dar certo. — Virou-se para falar com Valéria. — Val, esse é
o Dante! Ele vai te ajudar com o que for!
— Prazer! — Valéria o cumprimentou. — A gente tá querendo cantar Crazy On You, do
Heart. Conhece? O Kleber vai tocar o violão, então precisamos de outro guitarrista.
— Conheço — ele murmurou. — Eu… eu posso tocar.
— Ótimo! — Emília exclamou. — Te vejo mais tarde, então!
Certo, primeiro passo dado. Emília riscou mais um item de sua lista. Deixou Dante com
Valéria e começou a procurar por Lis. Encontrou-a nos fundos, encostada na parede,
mordiscando os lábios e sem tirar os olhos da movimentação do palco. Ela fez uma careta
quando Emília se aproximou.
— O que você tá aprontando? — perguntou, espiando a amiga de soslaio.
— Eu? Nadinha. — Emília deu de ombros. — Acabei lembrando que você tinha falado
que o Dante toca, só isso.
— Sei.
— E o que você tá fazendo aqui sozinha? Por que não tá lá com a galera?
Lis soltou um suspiro. Depois alternou o peso entre os pés, ansiosa.
— Eu… Eu não sei bem o que fazer.
— Sobre o quê?
Outro suspiro. Cruzou os braços sobre o peito, encostando-se mais na parede.
— Sobre isso. — Apontou para Dante no palco. Ele já estava posicionado com a banda e
Kleber já começava a dedilhar a música no violão. — Com certeza vai dar errado.
— Por que daria errado?
— Porque sempre dá errado.
Emília assistiu a banda. A música começou a preencher o ambiente. Os acordes
começaram suaves e rápidos, só o violão tocando naquele momento. Em seguida, a batida se
tornou mais intensa e Dante tocou o primeiro acorde de guitarra. Emília ouviu Lis soltar o ar ao
lado dela.

“But I tell myself


That I was doing all right
There's nothing left to do at night
But go crazy on you
Crazy on you
Let me go crazy
Crazy on you, oh”[7]
Enquanto tocava, Dante procurou por Lis pelo espaço. Seus olhares se conectaram e ele
sorriu, mesmo ao longe, dedilhando a guitarra com maestria e pouco esforço, confortável com a
situação. Lis se segurou para não sorrir de volta, mordendo os lábios. Por outro lado, Emília era
só sorrisos. Tinha dado certo.
— Olha, acho que você está sendo um pouco precipitada — disse. — Ninguém tá dizendo
que você precisa namorar ele nem nada disso… Mas se você tá a fim e ele também, por que não?
Vai e depois vê no que dá.
— Não tenho tempo pra nada disso — Lis tentou argumentar, mas mal estava prestando
atenção. Ainda parecia hipnotizada com Dante no palco, seus olhos brilhando.
— Sei. Então por que veio hoje, Lis? E não vem me dizer que foi porque a gente te
obrigou.
Lis por fim a encarou, torcendo os lábios.
— Escuta, é só você ser sincera com ele — continuou. — Ele é um cara legal e com
certeza vai te entender. Mas não deixa o medo te impedir de fazer o que realmente quer. Se você
quer ficar com o Dante, fica com o Dante.
— Mas e depois?
— Foda-se o depois, amiga. Você tá sempre pensando no futuro, deixando de viver
enquanto planeja milimetricamente seus passos. Mas o agora tá bem aí na sua frente, tocando
guitarra e quase te fazendo derreter. Pensa no depois… depois.
As duas assistiram mais um pouco da apresentação. Valéria estava dando tudo de si,
usando sua voz potente para transmitir o significado da música. Em um momento, apontou na
direção de Lis e cantou mais uma estrofe, sorrindo.
“And you don't need to wonder
You're doing fine
My love, the pleasure's mine
Let me go crazy on you
Crazy on you
Let me go crazy
Crazy on you, oh”[8]
— Ah, isso com certeza tem dedo seu, Besourinha. — Lis revirou os olhos, quase rindo.
— Será? — Emília deu uma risada e se fez de desentendida. — Bem, vou voltar pra mesa.
Tenho certeza de que o Henrique está contando uma história interessantíssima agora, não posso
perder.
E se despediu dela, feliz.
Seu trabalho ali estava feito.
CAPÍTULO 13
“Continue tocando as cordas do meu coração
Cada vez mais rápido
Você pode ser exatamente o que eu quero
Meu verdadeiro desastre”
Now Playing: True Disaster
Tove Lo

30/03/2024
109 dias para o fim do semestre

Oportunidades. Emília tinha dito isso para Dante e ele ficou com a ideia na cabeça durante
todo o tempo em que tocara com a banda de Valéria. De início achou um absurdo, se fosse no
passado, ele certamente recusaria a oportunidade oferecida pela amiga. Contudo, desde o passeio
no MAC, Dante se via querendo agarrar qualquer oportunidade que fizesse com que se
aproximasse um pouco mais de Lis.
Por isso ele tinha pedido a Henrique para ir junto com ele no Notas Noturnas, mesmo sem
saber se ela ia ou não. Por isso aceitou o pedido absurdo de Emília de ajudar a banda. Por isso
estava dando tudo de si na guitarra enquanto procurava por Lis, encontrando-a nos fundos do
salão, olhando para ele. Dante daria tudo e mais um pouco para fazer dar certo, para que o
turbilhão de sentimentos que o acometia fosse recíproco.
Porque era a mesma força, a mesma certeza, que ele tinha tido quando decidira se mudar
para Niterói, para começar a trilhar a vida do jeito que queria.
Lis estava no meio daquele caminho. Às vezes parecia precipitado demais, já que não se
conheciam tanto assim, mas desde que a imagem dela olhando para o quadro de seu tio tocou
suas retinas, o quadro de seu tio Klaus, sua inspiração de vida, de motivações, seu norte durante
todo tempo, ele teve certeza de que aquela cena era um sinal do universo de que Lis tinha
cruzado seu caminho para ficar.
A banda fez uma pausa e ele se despediu de Valéria, caminhando até Lis, que permanecia
encostada na parede dos fundos do bar. Henrique já tinha ido embora, então, quando ele deu uma
olhada na mesa em que estiveram, só viu Emília e Jana ali, cochichando e rindo. A Besourinha
lhe lançou um sinal de positivo, piscando um dos olhos, e Jana só lhe deu um sorriso abobalhado,
voltando a sussurrar no ouvido da amiga.
Quando Dante chegou nos fundos, Lis se endireitou, desencostando-se da parede e
mordendo os lábios enquanto batia de leve a bota, um pouco inquieta.
— Caiu no papo da Emília, né? — ela perguntou. Cruzou os braços sobre o peito,
alternando o peso entre os pés.
— Caí. — Ele deu uma risada. Brincou com os anéis nos dedos para dissipar o nervosismo.
— Mas foi divertido, tenho que admitir.
— Que bom! É bom sair um pouco do ambiente do laboratório, né? Às vezes a gente passa
tanto tempo lá que nem parece que há vida fora da faculdade.
— Interessante ser você dizendo isso. — Dante semicerrou os olhos para ela. — Logo a
garota que parece que mora na UFF.
— Eu moraria na UFF se pudesse. — Lis deu de ombros. — Imagina o tempo que eu ia
economizar? Meus experimentos ficariam prontos em um pulo.
— Consigo te imaginar trabalhando de madrugada.
— O melhor horário, convenhamos.
— Claro. — Ele riu mais um pouco, aproximando-se. Lis passou a ponta da língua pelos
lábios, em alerta pela proximidade. — Então por que decidiu vir hoje, Deusa da Neuro,
Embaixadora de Niterói, Moradora Honorária da UFF?
— Nossa, são muitos títulos… — tentou desconversar.
Ficaram em silêncio por um instante, absorvendo a música que tocava, um rock melódico e
gostoso que os embalava.
— Eu vim porque… — Lis quis respondê-lo, mas não retribuiu o olhar dele. — Sei lá,
pareceu uma boa ideia.
— É? Por quê?
— Porque… porque todo mundo vinha, porque você… porque você vinha também. Achei
que seria legal… te ver aqui.
Dante fez um meneio, concordando. A banda terminou sua pausa e voltaram a tocar,
preenchendo o ambiente com música alta e agitada. Dante primeiro analisou o local para depois
tornar a falar.
— A gente pode conversar lá fora? — pediu. — Aqui tá meio barulhento.
— Lá fora? — Lis gaguejou um pouco. Passou a mão pelo cabelo antes de limpar a
garganta. — Tá bom…
Dante guiou Lis em direção à saída, deixando para trás a música alta e o burburinho do
local. Juntos, desceram a escadaria que levava a uma das ruas da Cantareira, encontrando abrigo
sob a marquise, onde a melodia dos pingos de chuva se tornava uma sinfonia.
Como previsto por Jana, o clima havia mudado e a chuva caía com intensidade. Dante se
apoiou na porta de enrolar, dando a Lis espaço para se mover e não se sentir encurralada. Ela se
aproximou, deslizando as mãos pelos braços e observando ao redor, percebendo que estavam
sozinhos ali por causa da chuva. Ao fundo, a música do Notas Noturnas continuava a soar,
emanando de cima e do lado de dentro.
— Cuidado pra não se molhar — ele murmurou, puxando-a levemente pela mão para que
ficasse um pouco mais perto e evitasse a água.
Ela fez um aceno com a cabeça e encurtou a distância, virando a cabeça para o lado para
analisar o local. Quando virou de volta, percebeu que ainda estava de mãos dadas com Dante,
segurando os dedos dele.
Da mesma forma que no museu, ele virou sua palma para cima e fez um carinho com o
polegar. Depois apertou seus dedos, passando um por um enquanto contornava as tatuagens.
Parou no polegar com a cicatriz, aquele elo estranho entre eles, quando começaram a se ver com
outros olhos. Lis respirou fundo, mas não se afastou.
— Hm, acho que tô nervosa… — gaguejou, sua voz estremecida e baixa.
Dante levantou a cabeça, suas pupilas escuras e aumentadas pela falta de luz, deixando um
pequeno aro azul em volta delas. Entrelaçou seus dedos com os dela, ainda sem quebrar o
contato visual.
— Muito? — perguntou.
Lis engoliu em seco, acenando com a cabeça para concordar. Dante depositou a mão dos
dois sobre o peito, firmando-as ali.
— Você não tá? — Ela deu uma risada. — Se bem que você nunca parece nervoso com
nada…
— Não? — Dante esticou sua mão, deixando que sentisse o calor de sua pele pelo decote
da camisa.
Lis desenhou o contorno das tatuagens naquela região, sentindo o coração dele bater
rápido, um tambor abaixo de sua palma. Um calor lhe subiu as pernas ao notar seu descompasso.
— Eu tô sempre nervoso perto de você, Lis — ele admitiu. Subiu a mão dela pelo colo,
pescoço, até chegar na altura de sua boca. Beijou seus dedos, sem desviar o olhar. — Desde o
primeiro dia.
— Por isso que me olhou errado na seleção? — Sorriu de lado, um pouco mais calma.
Dante a soltou e ela brincou com as madeixas de seu cabelo, guardando algumas mechas atrás da
orelha dele.
— Agora você me pegou. — Ele riu também.
Ambos se calaram por um instante. Sem conseguir parar de tocá-lo, Lis buscou a outra
mão dele e a segurou, fazendo o mesmo carinho de outrora. Era confortável senti-lo daquele
jeito, perceber o calor de sua pele.
— Dante… — começou.
— Hm?
Ela esticou a cabeça para fitá-lo.
— A Emília me disse uma coisa que acho que concordo, sabe? E eu quase nunca concordo
com ela nesses assuntos, então acho que vai valer a pena.
— O que é?
— Ela me disse pra ser sincera com você — falou. Sua voz tremeu mais um pouco. — Que
você é um cara legal e que com certeza me entenderia.
Dante permaneceu quieto, só escutando.
— Então… Sendo bem sincera, eu… Talvez esteja indo rápido demais. Não sei onde isso
vai parar e… Eu tenho medo de me machucar.
— Não vai. Não vou deixar.
A fala dele lhe trouxe borboletas no estômago. E o olhar profundo, forte, a expressão de
certeza. Tudo isso a deixava em um estado de pura vertigem.
— Você não tem como saber… — sussurrou.
— Não vou deixar você se machucar, eu prometo.
Mais uma vez de mãos dadas, Dante buscou aquela com a cicatriz no polegar. Apertou a
pele novamente, fitando o machucado.
— Te machucar significa me machucar também — afirmou. — E a última coisa que quero
é me machucar. Eu… Eu só quero respirar agora.
Lis ficou sem fôlego ao ouvir aquelas palavras. Quase sem perceber, aproximou-se
devagar, criando mais pontos de contato que eletrificavam seu corpo. Dante segurou seu rosto
com uma mão de forma suave e, com os olhos semicerrados, traçou o contorno dos lábios por um
instante.
— Eu só quero o seu sorriso — murmurou. — Quero sua voz cantando enquanto toco
guitarra, quero olhar pra você todo dia. Quero respirar com você. Só… respirar.
Só respirar. Foi com essa frase que Dante tomou os lábios dela, um beijo doce, sem pressa,
suas línguas se envolvendo em sincronia, como música, caminhos se entrelaçando, mistura de
desejo e algo mais. Saboreou o toque suave de seu rosto, o fogo dos corpos se fundindo, dedos
adentrando por seu cabelo enquanto os braços dela circundaram seu pescoço. Hálitos misturados,
acordes perfeitos, a beleza no caos das artes do tio, inspiração e expiração, um suspiro e o fôlego
para continuar e querer ainda mais, tudo que pudesse alcançar.
Só respirar. Dante queria apenas continuar respirando.

O beijo de Dante era difícil de categorizar.


Tinha começado suave. Ele passou os dedos pelo cabelo dela e capturou seus lábios de
forma leve, macia, um carinho. Os dedos se fecharam e de repente o beijo ficou mais forte,
dentes mordiscando seu lábio inferior e Lis foi ficando cada vez mais sem ar, seu corpo inteiro
tremendo.
Depois, ficou lento de novo. Dante desceu uma das mãos e a outra ficou em sua nuca,
acariciando a curva da mandíbula, roçando no lóbulo de sua orelha. Ele pegou ar e a mão que
tinha parado na cintura a segurou ali, com força o suficiente para marcar sua pele. A outra subiu
por seu cabelo de novo, aproximando-a mais, um movimento meio possessivo que deixou Lis
com as pernas bambas e com um calor incontrolável a tomando quase que por completo, um
ritmo pulsante no meio das coxas que, em breve, a deixaria mais molhada do que a chuva que os
cercava.
Depois suave de novo, como se ele quisesse se controlar. Suave, firme, suave, forte, firme,
firme, esse era o ritmo que ela tentava prever. O polegar dele circundou suas costelas, a ponta do
dedo roçando a base de seu seio. Ele se firmou ali e o ritmo do beijo mudou de novo.
Forte, forte, forte, forte, não havia constância nenhuma, só força e pressão. Não sobraria
muito de Lis para contar história se continuasse assim.
Afastou o rosto, ofegante, e observou a expressão dele, os olhos cada vez mais escuros e
sedentos. Ele estar sem os óculos de sempre deixava tudo ainda mais estranho. Dante de óculos
era seu colega de laboratório, o rapaz que suturou seu dedo e a acompanhou no museu. Dante
sem os óculos era o homem que a enlouquecia com um único beijo.
— Posso te tocar? — murmurou a pergunta, hipnotizada com a boca vermelha e um pouco
inchada dele, o cabelo desgrenhado. Há quanto tempo estavam se beijando? Lis já tinha perdido
a noção das horas.
Dante semicerrou os olhos, arfando tanto quanto ela, e fez um meneio, concordando. As
mãos dela estavam pousadas em seu peito, então Lis só as escorregou para baixo, passando da
camisa até o cós da calça. Fechou os dedos para sentir o contorno da ereção, mapeando o
formato. Já ansiando por mais, desafivelou o cinto e escorregou a mão por dentro, sentindo-o por
completo. Passou a língua pelos lábios para segurar um gemido de pura excitação.
Meu Deus, é enorme, não conseguiu se impedir de pensar. Acariciou a glande,
entusiasmada com o calor e umidade que já havia ali, e fez pequenos movimentos de vai e vem,
observando as reações dele.
Dante reprimiu um gemido, apoiando primeiro a testa no ombro de Lis, aspirando seu
perfume, e a colou ainda mais contra si, recostando-se na porta de enrolar.
— Você pode me tocar também… — Lis afirmou, entregue às sensações que pareciam vir
de todos os lados.
Ele não falou nada, só a mordeu de leve no pescoço enquanto descia as mãos pelo corpo
dela. Elas pararam em sua bunda e Dante a apertou com vontade, fincando as unhas ali por um
momento. Lis acelerou seus movimentos.
— Lis — ele por fim conseguiu proferir alguma coisa.
Dante levantou o rosto. Estava com uma expressão interessante, como se estivesse se
segurando com toda força que tinha.
— Vem pra minha casa — falou, as sobrancelhas franzidas em seriedade. Mas não parava
de engolir em seco, então ela percebeu que ele só estava tentando se recompor. — Por favor.
Ela ainda não tinha parado de masturbá-lo e sua mão já começava a ficar viscosa. Talvez
estivesse perdendo um pouco a razão, mas a cara de filhotinho perdido dele a fazia querer
provocá-lo.
E talvez Lis estivesse com a súbita vontade de se ajoelhar bem ali e abocanhá-lo por
inteiro, em frente ao Notas Noturnas.
Seria uma cena e tanto.
— Lis — ele a chamou de novo. — Por favor.
— O quê? — Ela abriu um sorrisinho.
— Vem comigo pra minha casa. O Henrique não vai estar lá, ele foi pro plantão.
Ela já tinha essa informação, lembrou-se. Jana a fizera trocar até de calcinha por causa
disso. Sua depilação estava em dia, a pílula também. Tudo se encaminhava para a conclusão
inevitável.
Ela ia transar com Dante Krause. Seu rival, seu nêmesis, o cara que a deixava meio louca
desde o início do ano. Ainda parecia um pouco surreal. E ele ter dito “Eu só quero o seu sorriso.
Quero sua voz cantando enquanto toco guitarra, quero olhar pra você todo dia. Quero respirar
com você. Só… respirar” era impactante de uma forma que ela não sabia nem interpretar direito.
— Lis. — Mais um chamado. Não dava para saber se ele estava ficando impaciente ou só
desesperado.
— Não quer ficar aqui? — perguntou com outro sorriso pendurado nos lábios, sua mão
fazendo um pouco mais de pressão.
— Não. Quero você na minha casa.
— Não é fã de atentados ao pudor?
— Nem um pouco. — Ele abaixou um pouco a cabeça para alcançar um dos ouvidos dela e
continuou a falar. — E não dá pra fazer o que quero fazer contigo aqui. Então para de gracinha e
aceita logo o que estou te pedindo.
— Nossa, você é um lorde — suspirou. Fez a vontade dele e o soltou, enlaçando seu
pescoço. — Tudo bem.
Dante se aprumou e fechou o cinto enquanto a beijava. Lis o sentiu tirar o celular do bolso.
— Vou chamar um Uber, se comporta — grunhiu quando ela voltou a se esfregar nele.
Virou-a de costas, prendendo-a com os braços ao mesmo tempo que fazia a solicitação. Entregou
o próprio celular nas mãos dela, mais uma vez afundando o rosto em seu ombro. — Fica de olho
enquanto eu… preciso de um tempo.
Lis não conseguiu segurar a risada. Mas logo ela se transformou em um gemido quando
Dante pressionou a ereção em sua bunda e usou a mão para segurá-la pelo abdômen. Se ele
descesse só mais um pouquinho, chegaria na barra do vestido.
E se voltasse a subir só mais um pouco, descobriria o quanto Lis estava molhada. Ela
estava quase implorando por isso.
Oscilou o quadril, satisfeita quando ele gemeu e a acompanhou, vítima da fricção que se
criava ali. Mordeu de novo o pescoço dela, cada vez colocando mais força nos dentes. Lis, por
um minuto, desejou que ele a mordesse daquele jeito em todos os espaços de pele que
encontrasse.
— Porra, Lis — ele xingou. Conseguiu soltá-la um pouco e levantou a cabeça, respirando
fundo. — Que parte de se comportar você não entendeu?
Lis revirou os olhos, dando de ombros. Demorou só alguns segundos para que o carro
chegasse de fato. Dante se desencostou da porta e a conduziu pela mão, tentando fazer com que
ela não se molhasse tanto no curto trajeto.
Entraram no carro e o motorista falou algo que nenhum dos dois quis entender. Lis
primeiro segurou a mão de Dante, que repousava no joelho dele. Depois desceu para a coxa,
fincando as unhas na região interna. Escutou-o respirar fundo e reprimiu um sorriso quando ele
só segurou a mão dela de volta, firmando as duas no joelho e a mantendo ali.
Chegaram no prédio, mais uma vez Dante só tentou fazer com que ela se molhasse menos,
um gesto pouco eficaz visto a força da chuva. Chegaram na portaria com os cabelos molhados e
pingando um pouco, mas nada daquilo parecia importar no momento. Dante não falou nada, só
chamou o elevador e deixou que ela entrasse primeiro.
Estavam sozinhos. Um pouco envergonhada por causa das câmeras, Lis se recostou na
parede e mordiscou os lábios, lançando um olhar intenso. A expressão de Dante era ininteligível.
A visão dele um pouco molhado, com a camisa entreaberta e colada no peito, trouxe
comichões intensos no corpo de Lis. Se aquele elevador demorasse um pouco mais, ela perderia
a vergonha das câmeras de uma vez só.
Assistiu Dante retirar os anéis, um por um, com uma calma inabalável. Quando seus
olhares se cruzaram de novo, ele só sorriu de lado.
— Não quero te machucar — explicou. Lis fitou as mãos enormes, as veias elevadas
criando contornos sob as tatuagens.
Os dedos dele. Os dedos dele também eram enormes. Lis os queria dentro dela. Em sua
boca, em sua boceta, em qualquer lugar que Dante quisesse colocá-los. Dar-se conta disso era
quase alarmante.
Meu Deus, o que tá acontecendo comigo? Pensou, certa de que suas bochechas
começavam a enrubescer. O elevador chegou ao andar do apartamento e os dois saíram em
silêncio, seus passos ecoando pelo corredor vazio.
Dante digitou a senha na fechadura eletrônica, destrancando a porta. Lis batia o pé,
ansiosa, esperando que ele abrisse. Entraram no apartamento escuro e ela só registrou que a porta
foi fechada.
Não demorou nem um segundo para que estivessem se atracando novamente.
CAPÍTULO 14
"Eu tenho amor em meus dedos
Luxúria em minha língua
Você diz que não tem nada
Então venha e pegue um pouco”
Now Playing: Little Monster
Royal Blood

Dante a imprensou na própria porta, o barulho rouco da batida só sendo suprimido pelo
som de seus corpos colidindo. Voltaram a se beijar com ferocidade, ele escorregou as mangas do
vestido de Lis pelos ombros dela até que descobrisse seus seios. Ao mesmo tempo, a barra da
saia subia até sua cintura, exibindo a roupa íntima e as coxas curvilíneas, os diversos desenhos
tatuados que ela escondia ali. Lis só teve tempo de se segurar em seu pescoço enquanto ele abria
suas pernas e espalmava a mão bem no meio delas, para depois colocar sua calcinha de lado e
acariciar seu clitóris. Sem cerimônia alguma, inseriu dois dedos em sua boceta, deslizando-os
com força. Lis enganchou uma das pernas ao redor das dele, perdendo o ar por um momento.
— Você tá molhada pra cacete — ele grunhiu, deixando que ela se movimentasse ao redor
de seus dedos. — Quer tanto assim ser fodida, Lis? Que mal conseguiu esperar até chegar em
casa? Por isso me provocou tanto?
Ela calou um gemido espremendo os lábios, jogando a cabeça para trás. Dante estalou a
língua, impaciente.
— Não, nada disso — falou. Passou o polegar pelos lábios dela, para abri-los. — Você vai
gemer bastante enquanto eu estiver te fodendo.
Lis abriu um sorrisinho provocante, seus olhos escuros e enevoados de prazer. Como o
dedo dele ainda estava em sua boca, ela só o mordiscou em resposta.
— Que mandão — conseguiu dizer, mesmo que concluir pensamentos fosse uma tarefa
difícil naquele instante. — Por que tenho que te obedecer?
— Porque você tem me deixado maluco há meses. — Ele também abriu um sorriso de pura
provocação. — Porque tenho sonhado contigo gemendo enquanto meto em você desde que te vi
pela primeira vez.
Aquilo a colocou no limite. Segurou-se melhor nele, entregue às sensações que a
acometiam, cada vez mais próxima do ápice.
— Mais forte, Dante — implorou. Rebolou o quadril, em busca de atrito, arrepiando-se
com cada círculo que ele fazia em seu clitóris enquanto estocava com os dedos. — Mais forte…
Meu Deus, eu tô tão perto… ela pensou. Estava quase lá, mas acabou se lembrando de uma
coisa que a fez parar por um momento.
Lembrou-se do que Jana havia dito, por algum motivo idiota que ela não conseguia
entender. “Você merece ser bem comida, amiga. Chega daquele sexo morno do besta do teu ex”.
E, por isso, acabou se lembrando também de toda a dinâmica cansativa que tivera com o ex
durante os anos que namoraram.
Foi como despertar de um feitiço. Sua ansiedade voltou na hora.
— E-espera — gaguejou, segurando a mão de Dante. — Melhor parar, eu…
Ele franziu as sobrancelhas, desacelerando. Ficou preocupado, pois ela parecia um pouco
receosa.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou, muito mais suave do que antes. Retirou os
dedos de dentro dela com cuidado para averiguar seu estado. — Eu te machuquei?
— Não! — Lis quis esclarecer. — Tá muito bom, é só que… Se eu gozar agora, não vou
conseguir mais depois. E talvez seja melhor a gente, hm…
Suas bochechas arderam de vergonha com o silêncio dele. Era ridículo falar isso, mas ela
se sentiu na obrigação de avisar. Com Gabriel, Lis sempre preferia terminar junto com ele ou
depois, porque seu ex às vezes ficava frustrado por não conseguir satisfazê-la direito. E como
queria que Dante se sentisse bem ali, talvez fosse melhor adiar seu prazer para que estivessem na
mesma página.
Mas ela se sentiu um pouco boba e idiota por ter parado algo tão bom. E se acabasse
estragando tudo? Sua vontade de sempre querer agradar às vezes atrapalhava.
Dante ainda estava de sobrancelhas franzidas, tentando assimilar o que ela dissera. Lis
engoliu em seco, nervosa. Ela com certeza tinha estragado tudo.
No fim, ele só riu.
— Acho que consigo te fazer gozar mais de uma vez, Lis — disse.
Aquela risada. Tão divertida e despretensiosa. Ela sentiu vontade de socá-lo bem ali.
— Eu tô falando sério! — Fez um muxoxo, que logo se derreteu quando ele a beijou no
pescoço. — Eu só quero que seja legal, não tô fazendo doce ou…
— Lis. — O chamado a arrepiou até o último fio de cabelo.
Dante a mordiscou e a mão que antes a acariciava beliscou seu mamilo descoberto, de leve.
Era até estranho que um mínimo toque a desestabilizasse tanto, que seu corpo reagisse de uma
forma tão avassaladora com um único sopro da respiração de Dante contra seu pescoço. Viu-se
mais uma vez presa entre os braços dele, entre suas mãos dominantes e firmes, que deixavam
rastros quentes em cada canto que tocavam. Deixou que ele descesse uma delas novamente até o
meio de suas coxas, segurando a respiração quando a calcinha foi afastada mais uma vez e as
carícias em seu clitóris recomeçaram. Dante passou os lábios e a língua em seu queixo antes de
erguer a cabeça para murmurar, os olhos ardentes semicerrados.
— Não há a mínima possibilidade da gente fazer isso rápido, Lis. Já disse, você tem me
enlouquecido há meses, tudo que eu consegui pensar nesses dias foi em você. Você, você, você…
Você. Cada repetição era uma oscilação mais forte, uma estocada dos dedos que reentraram
em sua cavidade umedecida. Dessa vez, Dante segurou uma de suas pernas contra a cintura para
expô-la ainda mais, aumentando a sensibilidade. Lis só conseguiu abrir a boca para gemer alto,
sem vontade de contestar ou deter o prazer que florescia dentro de si. Fechou a mão nos cabelos
dele, apoiando o outro braço em seus ombros.
— Você gemendo meu nome — ele continuou. — Você em todas as posições possíveis
enquanto eu te como. Você toda vermelha enquanto goza no meu pau, você sem conseguir parar.
Não tem como a gente fazer isso só uma vez hoje, Lis. Você vai gozar pra cada vez que me
deixou louco nesse ano. E vai ser à noite inteira.
Meu Deus. A força do orgasmo a arrebatou de uma vez só. Choramingou de prazer,
fechando os olhos enquanto Dante diminuía a velocidade. Ofegou, na tentativa de recuperar o ar,
seus olhos lacrimejando. Ele abriu um sorriso, aninhando-a entre os braços, dando-lhe tempo
para se recuperar.
Lis pensou em dizer alguma coisa, mas sentiu algo roçar em sua perna. Os dois abaixaram
a cabeça para avistar Gororoba se enfiando entre eles, miando e ronronando. Lis mordeu os
lábios e escondeu o rosto com uma das mãos, abafando uma gargalhada.
— Meu Deus, a gente fez isso tudo com a sua gata olhando — disse. — Que horror!
Dante se afastou para que ela se aprumasse, deixando Lis arrumar o vestido e se cobrir.
Depois a enlaçou pela cintura de novo, sem conseguir conter o ímpeto de beijá-la. De volta à
forma suave e doce dele, Lis se deleitou com as sensações pós-orgasmo, mole pelos carinhos e
pelo beijo lento.
— Quer ir pro quarto? — Dante sugeriu em um murmúrio, sua boca ainda colada na dela.
Lis fez um meneio, ainda sem vontade de interromper o beijo.
Ele a conduziu pelo apartamento, fechando a porta do quarto quando chegaram. Ligou o
ar-condicionado e as luzes indiretas, submergindo o cômodo em tonalidades de azul e roxo. Do
lado de fora, a chuva torrencial caía sem piedade, as luzes dos relâmpagos escapando pelas
frestas das cortinas.
Lis vasculhou o quarto rapidamente, seus olhos capturando a visão da espaçosa cama e dos
quadros adornando as paredes, além da guitarra de Dante pendurada em um canto. Quando
tivesse tempo, queria analisar cada detalhe do espaço, na ânsia de conhecê-lo melhor. No
entanto, naquele instante, tudo que ela se importava era continuar com o que estavam fazendo na
sala.
— Tira a camisa — pediu, aproximando-se devagar. — Quero ver até onde suas tatuagens
vão.
Ele obedeceu, desabotoando o resto da roupa para retirá-la. Seu peitoral era tomado por
belos desenhos, descendo pelas costelas e abdômen, continuando por debaixo da calça. Variavam
entre flores, insetos e frases estilizadas. Lis gostou particularmente da que desenhava seu peitoral
esquerdo e descia pelas costelas, um ramalhete de lírios-aranha vermelhos e delicados. Passou a
ponta dos dedos sobre ela, sentindo a respiração calma de Dante e o calor ameno de sua pele.
— Lindo — murmurou.
— Fiz quando meu tio morreu, escondido dos meus pais — Dante explicou. Ela conseguiu
notar que ele engoliu em seco rapidamente. — Tem um significado bonito.
— É? Qual é?
— Algumas lendas japonesas dizem que esse tipo de lírio ajudava as pessoas a se
comunicarem com seus entes queridos falecidos. E eu queria… acho que de alguma forma eu
queria me comunicar com o meu tio, mesmo ele tendo ido embora.
Lis assentiu, silenciosa, voltando a percorrer o corpo dele. Desafivelou o cinto, abrindo a
calça jeans. Depois se afastou para que ele pudesse tirar os sapatos e retirar o resto das roupas,
permanecendo apenas com a cueca boxer. Enquanto isso, ela escorregou o vestido pela cabeça e
descalçou as botas e as meias, ficando só de calcinha na frente dele. Sentou-se na cama sem
pressa, jogando as costas para trás, e se apoiou nos cotovelos para fitá-lo.
— Amo essa mariposa no seu peito — Dante disse, aproximando-se. — É a tatuagem mais
linda que já vi na vida…
Ela desviou o olhar, tímida, jogando o cabelo para trás enquanto traçava a própria
tatuagem. Passou a ponta da unha nas asas abertas, quase alcançando o mamilo intumescido.
— É a minha favorita — falou. — Mariposas são filhas da noite, da lua. Sempre encontram
o caminho pra luz. Significam mudança, transformação… Fiz quando me mudei pra Niterói.
— É minha favorita também. Mas todas as suas tatuagens são lindas.
Lis sorriu. Endireitou-se na cama, dando abertura para que ele se aproximasse. Enganchou
os dedos no cós da cueca, abaixando-a para libertar o membro ereto e pulsante. Acariciou
primeiro da mesma forma que fizera na entrada do Notas Noturnas. Depois o colocou entre os
seios, aconchegando-o ali, fazendo-o deslizar em cima da tatuagem de mariposa. Dante apoiou as
mãos em seus ombros, deixando que ela tomasse conta dos movimentos. Lis ergueu a cabeça
para fitá-lo, seus olhos brilhando de prazer.
— Seu pau é tão grande — brincou. — Não sei se vou aguentar.
Ele deu uma risada, entretido com a espontaneidade dela. Segurou seu rosto pelo queixo,
fazendo um carinho ali.
— Você aguenta — afirmou.
— Tem certeza? Acho que não…
Lis soltou os seios, voltando a segurá-lo com as duas mãos. Aproximou o rosto e lambeu a
glande. Dante arfou, sem falar qualquer outra coisa, e ela o colocou inteiro na boca, indo para
frente e para trás com a cabeça para comportá-lo. Ele passou as unhas por seu couro cabeludo,
inclinando o pescoço para trás, sem conseguir conter os gemidos que escapavam da garganta.
Teve que usar toda sua força de vontade para se lembrar do que queria fazer com ela de verdade.
— Eu sei o que você tá tentando fazer — falou, afastando-a. Lis só sorriu e se deitou na
cama, passando a ponta da língua nos lábios.
— O que estou tentando fazer?
— Você quer me distrair. — Ele também sorriu. Retirou a cueca e apoiou o joelho na
cama. — Mas sou bem resistente, linda. Você vai gozar umas três vezes ainda antes de mim.
Minha Nossa Senhora. A promessa a arrepiou até o último fio de cabelo. Ela ainda não
acreditava tanto assim, mas a expectativa de ele cumprir aquilo a deixava excitada também.
— Primeira gaveta da cabeceira. — Ele a arrancou dos devaneios.
Lis se virou para abrir a gaveta e alcançar o preservativo. Entregou sem cerimônia alguma,
confortável, e tratou de retirar a calcinha e se acomodar nos travesseiros enquanto ele deslizava a
camisinha pelo próprio membro.
— Feri seu orgulho quando disse que só consigo gozar uma vez? — Ela o atiçou,
assistindo-o se colocar entre suas pernas e apoiando as coxas nas dele.
— Você me desafiou. — Dante riu de novo. Deslizou a cabeça do pênis por sua fenda,
provocando-lhe arrepios. — E sou competitivo, Lis. Você sabe disso.
Ele a penetrou sem pressa, colocando só a ponta de início, cauteloso. Isso foi o suficiente
para Lis sentir um calor brotar no meio de suas pernas. Inclinou as sobrancelhas, incerta e
incrédula.
— Machuca? — Outra vez, Dante a tirou de seus pensamentos altos.
Era realmente grande, mas não doía. A sensação era que ela estava sendo preenchida em
totalidade, mas seu corpo estava excitado o suficiente para aceitá-lo. Fez que não com a cabeça e
Dante se afundou mais. Um gemido agudo brotou na garganta dela.
Será que ele tinha razão? Lis não estava acostumada com aquela montanha de sensações,
seu relacionamento com Gabriel tinha sido doce e feliz, mas também um pouco tedioso naquele
quesito. Ela tinha transado com outros caras também, mas nada que se destacasse. Era o normal
na vida da mulher moderna, não era? Gozar só uma vez, às vezes nem isso.
Mas a forma como seu corpo inteiro parecia queimar com qualquer toque de Dante era até
então desconhecida. Ela já se sentia bem próxima de novo só com aquele início.
Dante abaixou o tronco, juntando seus corpos, estocando devagar enquanto estudava as
reações dela. Lis jogou os braços por seus ombros, as unhas se arrastando pelas costas dele, e
tomou seus lábios em um beijo intenso.
— Ah… — Afastou o rosto, sem ar, seus olhos já turvos e sem rumo. — Dante…
Ela só teve tempo para chamar o nome dele. Dante foi mais forte e mais rápido, o
necessário para que ela se desfizesse, e o segundo orgasmo veio tão forte quanto o primeiro.
Mesmo que ele tivesse mandado que ela fizesse barulho ao gemer, Lis mordeu o lábio com toda
força que tinha, espremendo os olhos, os dedos dos pés se contorcendo.
Meu Deus do céu, foi o que sua mente derretida conseguiu formular. Seu corpo relaxou e
ela o soltou para se jogar nos travesseiros, o peito subindo e descendo para recuperar o ar. Dante
voltou a se erguer na cama, enroscado em suas pernas. Ainda não tinha saído de dentro dela, só
desacelerado bastante, acompanhando as pulsações do orgasmo de Lis.
A sensação era que ele não tinha derramado uma única gota de suor. “Sou bastante
resistente, linda” ele havia dito. Pelo que parecia, ainda tinha forças mais do que suficientes para
cumprir a promessa que fizera.
Meu Deus, será que dá pra morrer disso? Lis pensou, metade desesperada e a outra quase
guinchando de tanta animação.
— Lis — ele a chamou. Acariciou seu clitóris com os dedos ao mesmo tempo que a
penetrava. Estava com um sorriso diabólico no rosto. — Que cara é essa?
Ela engoliu em seco, atenta às novas carícias. Estava extremamente sensível, mas gostoso
da mesma forma. Soltou o ar pela boca quando ele aumentou a pressão nos dedos, para em
seguida se afundar um pouco mais nela.
— Quer parar? — Dante perguntou.
Lis fez que não com a cabeça.
Mais um sorriso. As carícias continuaram, um pouco mais fortes, e ela tentou controlar a
respiração para se acalmar. Dante ainda estava dentro dela e tudo ficava cada vez mais intenso. O
terceiro orgasmo veio quase depois do segundo, forte como os outros, mesmo que ele mal tivesse
feito alguma coisa.
Era o jeito que ele a tocava. Parecia ser sempre certo. Não importava a velocidade, a
pressão. Era sempre do jeito certo.
— Linda, você já gozou de novo? — Dante apoiou as mãos nos joelhos erguidos e
dobrados dela, excitado com os sons que ela fazia, que escapavam dela. — Aguenta mais um
pouquinho?
Enganchou as dobras dos braços na parte de trás de seus joelhos, inclinando o corpo para
baixo. A posição deixou tudo ainda mais fundo. Lis choramingou e gemeu, jogando os braços
para trás e segurando-se na cabeceira da cama.
Dante se colou mais nela, oscilando com cada vez mais força, o barulho de seus corpos
colidindo preenchendo o espaço. Lis não sabia se queria xingá-lo ou só pedir para que
continuasse, mas era difícil proferir uma palavra sequer. Arrastou as unhas pelo antebraço dele,
abrindo a boca para gemer. Era possível que seu corpo estivesse tenso e relaxado ao mesmo
tempo?
— D-dante — gaguejou. Novamente, ela só conseguiu pronunciar o nome dele antes de
gozar. Engasgou-se com ar, derretida pelo prazer que vinha de todos os lados. — Ah, meu Deus.
Dante respirou fundo. Ele era resistente, mas também já estava no limite da razão ali. Vê-la
gozar tantas vezes depois de dizer que não conseguia aflorava seus instintos mais selvagens.
Ele era mesmo muito competitivo.
— Sabe o que eu acho? — Deu uma estocada lenta, permitindo que ela recuperasse o
fôlego. — Acho que você gosta de ser fodida com força. Sem parar.
Ela nem teve tempo de contestá-lo. Um único movimento dele já era o suficiente para que
Lis ficasse pronta de novo.
— Fica de quatro, Lis — Dante mandou, esbaforido, se afastando para lhe dar espaço.
Por mais incrível que parecesse, ela obedeceu sem nem protestar. Afundou o rosto no
travesseiro, empinando a bunda. Dante a penetrou mais uma vez, soltando o ar ao mesmo tempo
que fechava os olhos, extasiado.
— Você é tão macia… — murmurou ainda de olhos fechados. — Você é exatamente do
jeito que imaginei. Macia, quente, molhada, maravilhosa… tudo que eu sempre quis. Exatamente
como imaginei durante todo esse tempo…
Ele não tinha imaginado Dante daquela forma, Lis conseguiu pensar. De início, nas
primeiras aproximações, no primeiro beijo, ela pensou que Dante se manteria calmo como
sempre era, que faria tudo de forma suave e controlada, aquela aura descompromissada que ele
tinha. No entanto, aquele Dante – selvagem, provocador, bruto – a fazia querer ainda mais dele,
se entregar cada vez mais.
— Dante… — choramingou. Era como se seu corpo exigisse mais contato. — Por favor…
— Quer gozar de novo, linda? — Ele reabriu os olhos para sorrir. — Quer ser fodida com
força, do jeito que você gosta?
Lis virou o rosto para encará-lo. Mexeu a cabeça para cima e para baixo, concordando. A
expressão dela o atiçou ainda mais, impelindo-o a ir mais fundo e com mais força, cada vez mais
rápido. Ela mal conseguiu conter os gemidos com os travesseiros, sua voz ultrapassava o barulho
da chuva e dos trovões. Ainda parecia insuficiente, então Lis estendeu uma das mãos para
alcançar seu clitóris, perdendo-se em movimentos circulares e bruscos enquanto Dante a
preenchia cada vez mais.
Ele, ao assistir à cena, fincou os dedos nos quadris de Lis, grunhindo ao senti-la cada vez
mais apertada ao seu redor. Ela gemeu ainda mais alto, sua boceta palpitando com o novo
orgasmo e aquilo foi o suficiente para que Dante se despejasse dentro dela, também sem controle
da força de seus gemidos. Diminuiu as estocadas aos poucos, arquejando e tremendo, segurando-
a para que ela não caísse de mau jeito. Mais uma vez com o rosto enterrado nos travesseiros, Lis
choramingou qualquer coisa que ele não conseguiu entender e se virou para ficar de costas para o
colchão.
Era uma visão e tanto, ele pensou. Lis estava toda descabelada, com as bochechas coradas,
a tatuagem de mariposa subindo e descendo rapidamente por causa da respiração entrecortada. E
a expressão de filhotinho perdido, seus olhos lacrimejantes.
— É só assim que gosto de te ver chorando, Lis. — Ele riu. — Você fica gostosa pra
caralho desse jeito.
Mesmo com a cara feia que ela lhe dirigia, Dante só continuou sorrindo. Retirou a
camisinha e a amarrou, levantando-se da cama para jogá-la fora. Enquanto isso, Lis continuava
tentando recuperar o ar.
— Não sinto minhas pernas — falou. — Isso é normal?
Dante deu uma risadinha.
— Quando você goza umas seis vezes, acho que sim — respondeu.
— Foram cinco — ela o corrigiu, encarando o teto. Ainda parecia inacreditável.
— Verdade, me equivoquei. Quer mais uma pra consertar o meu erro?
— Pelo amor de Deus, não. Acho que eu morreria.
Outra risada. Dante se aproximou, se sentou na cama e fez um cafuné no topo da cabeça
dela.
— Tudo bem? — perguntou. — Respira fundo.
Lis respirou, mole com o carinho, deixando que ele a acalentasse até que seu coração
voltasse a bater normalmente. No fim, ela suspirou e Dante se inclinou para lhe dar um selinho.
— Quem te disse que você não conseguia gozar mais de uma vez? — fez outra pergunta,
uma das sobrancelhas inclinadas.
— A vida?
— Hm. — Ele torceu a boca.
Provavelmente tinha sido aquele babaca do ex-namorado dela. Dante mal tinha o
conhecido e Lis quase nunca falava sobre ele, mas a antipatia foi instantânea quando se
encontraram na UFF.
— Levanta pra tomar um banho, você precisa descansar — disse, mudando de assunto. —
Vou arranjar alguma roupa pra você vestir pra dormir.
— D-dormir? — Lis gaguejou. — Quer que eu durma aqui?
— São quatro horas da manhã e tá caindo o mundo lá fora.
— Hm, isso não é… Não quero te deixar desconfortável. Eu pego um Uber, você não
precisa…
— Ah, então você só queria me usar mesmo. — Dante fez uma careta implicante,
estalando a língua. — Não sabia que você era daquelas que transa e desaparece. Que horror.
— Não foi isso que eu quis dizer! — Ela ficou vermelha na hora. Sentou-se na cama e
segurou o braço dele. — Eu não queria…
Dante revirou os olhos, rindo. Levantou a mão e deu um pequeno peteleco na testa dela.
Lis choramingou, mas riu também.
— Para de pensar demais, foi só uma brincadeira — ele esclareceu. — E, sim, você vai
dormir aqui. Cinco orgasmos e dormir de conchinha, faz parte do pacote.
— Mas…
— Você é tão bonitinha — ele disse, carinhoso, passando os dedos pela bochecha dela. —
Mas desliga um pouco esse cérebro incrível da Deusa da Neuro. Não é nada demais, você toma
um banho, dorme, a gente acorda cedo e você vai embora. Casual, simples, um passo de cada
vez, tudo bem?
Lis refletiu por um momento. Ela realmente não queria colocar a carroça na frente dos
bois, mas era mesmo algo simples. E seria difícil voltar para casa naquele momento, por causa da
chuva e tudo mais.
— Pode tomar banho no meu banheiro. — Dante apontou para o banheiro da suíte. — Vou
pegar algo pra você vestir.
Ela concordou, levantando-se da cama. Dirigiu-se até o cômodo enquanto ele abria o
armário e as gavetas, na busca para encontrar algo confortável para que ela vestisse. Lis ligou a
luz e se assustou com o próprio reflexo no espelho.
Estava toda descabelada. Era como se um passarinho tivesse acabado de fazer um ninho
muito elaborado na cabeça dela. A maquiagem borrada era um a mais também.
— Posso usar seu xampu? — perguntou para Dante. — Acho que vou ter que lavar o
cabelo pra desembaraçar.
— Pode usar o que quiser. — Ele surgiu com as roupas. Era uma camiseta preta e um short
azul de cetim. — Aqui.
Lis o fitou. Com a luz direta do banheiro, conseguiu captar detalhes que lhe escaparam até
aquele momento.
Dante estava todo arranhado. Havia arranhões em seus braços, no pescoço, no peito. Assim
que se virou para sair, Lis teve um vislumbre de suas costas: uma coleção de arranhões
vermelhos e gigantes desciam até quase sua lombar, havia até alguns pontinhos de sangue em
alguns deles.
Meu Deus do céu. Eu que fiz isso? Lis não conseguia acreditar. Não era adepta ao sexo
bruto, nunca tinha feito nada parecido.
Ligou a água do chuveiro, ensopando-se em poucos segundos. Esfregou as pernas uma na
outra, averiguando o inchaço no meio das coxas, a sensibilidade que ainda estava ali. “Quer
gozar de novo, linda? Quer ser fodida com força, do jeito que você gosta?” ele havia dito. A
lembrança daquele momento a deixou excitada de novo.
Talvez ela até conseguisse uma sexta vez. Talvez ela realmente gostasse de ser fodida com
força.
— Meu pai do céu. — Cobriu a boca com uma das mãos, abafando uma risada.
Ela realmente gostava daquilo. Era um fato.

— Esse é o Naruto? — Lis perguntou, olhando para a camiseta que Dante lhe emprestara.
Havia um garoto de cabelo rosa estampado nela.
Dante inclinou as sobrancelhas. Enquanto ela tomava banho, ele tratou de se banhar no
banheiro de visitas rapidamente, para arrumar o quarto e se preparar para dormir com ela.
Naquele momento, afofava os travesseiros e o edredom ao mesmo tempo que dava uma olhadela
em Lis.
Havia como aquela garota ficar ainda mais apetitosa? Vê-la vestida com sua camiseta e o
short que lhe emprestara mal cobrindo sua bunda por inteiro era demais para seus neurônios.
E o cabelo molhado pós-sexo. Só aquela visão lhe dava forças para mais três rodadas,
quem sabe.
— Itadori Yuji — explicou, segurando uma risada. — De Jujutsu Kaisen.
— Ah, não conheço. — Deu de ombros. — Acho que só conheço o Naruto mesmo. E mal,
pelo visto.
— Um dia a gente pode assistir juntos. Se você quiser, claro.
Lis engoliu em seco, assistindo-o arrumar o quarto. Ele tinha tirado as lentes e recolocado
os óculos, então a impressão era que o Dante de sempre tinha voltado. Mas tinha permanecido
sem camisa, vestindo só uma calça de moletom, então os arranhões e o peito nu cheio de
tatuagens misturavam as duas imagens que Lis tinha na cabeça.
Era um pouco confuso, ela tinha que admitir.
Dante se deitou na cama, passando um dos braços pela cabeça para apoiá-la, seu bíceps se
flexionando de uma forma atraente. Lis permaneceu parada na frente da porta do banheiro, sem
saber o que fazer.
— Deixei água pra você ali. E uma escova de dentes. — Ele apontou para a mesinha de
cabeceira do outro lado. — Quer comer alguma coisa antes de dormir?
— N-não precisa. Não quero te dar trabalho.
— Você não me dá trabalho nenhum — ele afirmou, categórico.
Ela acenou com a cabeça, mordendo os lábios. Caminhou até a mesinha de cabeceira e
alcançou a escova de dentes. Sem falar nada, voltou ao banheiro e fechou a porta. Dante ficou
esperando, um pouco nervoso, até que ela retornasse.
Linda, linda, linda, linda, linda, sua mente repetia sem parar, seu coração acelerado de
repente. Assistiu Lis dar a volta e se sentar na beirada da cama. Imersos em silêncio, ela se deitou
na ponta do colchão, cobrindo-se com o edredom, as bochechas em um tom escarlate.
Dante desligou a luz, seu coração cada vez mais em descompasso. Lis se virou de lado,
dando as costas para ele. Soltou um suspiro receoso e Dante respirou fundo.
— Longe demais — murmurou, puxando os ombros dela para aproximá-la. Lis não
ofereceu resistência alguma.
Enlaçou sua cintura, encaixando-a contra si, e afundou o rosto em seu cabelo, aninhando e
aconchegando-a de uma vez só.
— Dante…
— Você tá com o meu cheiro… — Mais murmúrios. Uma de suas mãos entrou pela
camiseta dela, fincando as unhas em suas costelas, subindo até um dos seios.
Dante brincou com o mamilo, aspirando o perfume dela – o perfume dele, o cheiro do
sabonete e do xampu que sempre usava –, aproximando-a ainda mais, seus dedos trêmulos contra
a pele quente. Lis gemeu, quase em protesto, mas não saiu do lugar. Já estava entregue em seus
braços, o quadril roçando nele em busca de contato.
— Você é tão linda… — ele disse, escorregando a mão livre pelas pernas dela. Soltou um
grunhido ao notá-la molhada de novo, pronta para ele. — Quero ficar com seu cheiro também.
Quero ficar com seu cheiro em mim pra não sentir sua falta quando você for embora.
Inseriu dois dedos em sua boceta, mas não fez nada com força ou rápido dessa vez.
Aproveitou seu tempo, a textura, saboreou os gemidos dela. A mão que acariciava o mamilo
subiu um pouco mais, parando na garganta e firmando-se ali, de leve, suave, somente para senti-
la respirar. Lis voltou a arranhá-lo de todo jeito, criando marcas que ele agora queria tatuar, a
lembrança que queria manter.
— Eu vou gozar de novo… — ela sibilou, de olhos fechados. — Dante… ah…
Dante movimentou-se do jeito que Lis queria, sentindo-a oscilar em sua mão, o som da
respiração dela o colocando também no limite. Aproveitou cada pulsação do orgasmo que veio, o
aperto em seus dedos. Lis relaxou o corpo um pouco depois, arfando, ainda presa em seus
braços, segurando-se nele.
Ele a virou de costas para a cama. Ficou de joelhos em frente a ela, assimilando a cena de
Lis mais uma vez desfeita e pronta ao mesmo tempo. O pensamento de outrora lhe voltou à
mente. Dante aguentaria muito mais ainda, a faria gozar de novo enquanto usava aquela
camiseta, até que ela perdesse a voz de tanto gemer, até que seu cheiro estivesse impregnado nele
de uma forma que nunca mais saísse.
— Acho que a gente não dorme hoje. — Foi o que concluiu, um sorriso gostoso adornando
seu rosto.
Lis só conseguiu sorrir de volta antes de tudo recomeçar.
CAPÍTULO 15
“ Eu não quero ligar para meus amigos
Eles podem acabar me acordando deste sonho
E não quero deixar essa cama
Arriscando esquecer tudo que aconteceu”
Now Playing: Here With Me
Dido

Eles realmente não tinham dormido. Eles realmente não tinham parado.
Era um estado de puro torpor. Não era só sexo, Lis se lembrava de um momento ter ficado
só o beijando com profunda intensidade, até que seus lábios doessem, num limiar entre sonho e
realidade que a fazia querer ficar para sempre daquele jeito. Um borrão de sensações e ela só
notou que o dia já tinha amanhecido quando seu celular tocou o alarme das 6h30. Uma hora ou
outra no meio daquele turbilhão, ela tinha conseguido programar o celular para despertar, para
que pudessem dormir um pouco. Dante tinha concordado, se deitado ao lado dela para dormir.
Fora Lis que iniciou tudo de novo.
Conseguiu estender a mão para desligar o celular e jogá-lo longe. Suas pernas estavam
dobradas para cima, ela mesma segurando as próprias coxas, e os dedos dos pés tocavam o
peitoral de Dante enquanto ele oscilava na frente dela, de joelhos na cama, esfregando o pau em
sua fenda, sem penetrá-la. Dante não tinha tantas camisinhas assim, então foi o que lhes sobrou:
atrito, fricção e intensidade.
— Porra, Lis, caralho. — Nada do que ele dizia já fazia mais sentido. Eram só grunhidos e
gemidos. Tinha perdido o ar zombeteiro e só lhe restou a fome insaciável. — Ah… Meu Deus, tá
tão… meu Deus.
Usou o polegar para apertar mais seu pênis contra ela, e Lis movimentou o quadril,
jogando a cabeça para trás. O orgasmo veio de novo e ela já tinha perdido a conta de quantos
foram, mas todos eram sempre fortes e intensos, sempre lhe deixando com a vontade de ter um
pouco mais. Espiou a condição dele, extasiada com o suor que escorria pelos músculos bem
delineados, pela respiração entrecortada. Dante era resistente, mas já tinha se perdido há muito
tempo. Era deslumbrante enxergá-lo daquele jeito.
— Amor, na minha barriga — pediu, manhosa, sua mente girando de prazer, pouco se
importando em chamá-lo assim. Não parecia estranho naquele momento, só parecia certo. — Vai
na minha barriga, a gente vai ter problemas se…
Ele engoliu em seco e obedeceu, juntando as pernas dela para ficar mais acima. Bombeou
o pênis algumas vezes até se despejar, sujando um pouco a camiseta que ela ainda vestia.
Assistiu o sêmen escorrer pelo ventre dela, sentindo seu corpo inteiro tremendo. E não tinha sido
pelo orgasmo, Dante sabia bem.
Lis o tinha chamado de “Amor” e ele talvez tivesse gostado de ouvir aquilo mais do que
deveria.
— Já tem bebês demais pra vir no nosso laboratório — Lis disse do nada, tirando-o dos
devaneios. — Melhor não dar sorte pro azar.
Dante riu, jogando-se na cama ao lado dela. Os dois ficaram encarando o teto por alguns
instantes, até que o celular de Lis voltasse a tocar. Ela não tinha desligado, só adiado o alarme,
pelo visto. Voltou a buscar o aparelho e o desligou do jeito certo dessa vez.
— Mas eu tomo pílula e… — continuou a dizer. Sua cabeça ainda estava girando. — Eu
não sei nem do que tô falando. Qual é o meu nome? Não sei.
— Elis Castro Duarte. A menina que disse que só conseguia gozar uma vez e quase sugou
minha alma pelo pau.
Lis deu uma gargalhada sincera. Virou-se de lado para beijar a bochecha de Dante,
afetuosa.
— Eu tenho que ir — murmurou. — De verdade agora. É feriado de Páscoa, eu já tinha
que estar na casa da minha mãe.
Levantou-se da cama, pegando o vestido jogado no chão e se dirigiu para o banheiro.
Dante suspirou alto e fez o mesmo, indo em direção ao banheiro de visitas. Conseguiu se arrumar
antes de Lis e a esperou sentado na cama. Ela saiu de lá com os cabelos molhados novamente e o
rosto corado, um sorrisinho bobo no rosto. Aproximou-se e se colocou entre as pernas dele,
apoiando os braços em seus ombros enquanto Dante enlaçava sua cintura. Não demorou muito
para que estivessem se atracando em um beijo intenso. Lis só conseguiu se afastar quando
percebeu que ele já a puxava para seu colo.
— É sério, preciso ir — disse, arfando, dando passos para trás para se afastar.
Dante sacudiu a cabeça, concordando, e se levantou para acompanhá-la até a sala.
Gororoba os esperava do outro lado da porta, um pouco magoada por ter ficado fora do quarto
pela noite inteira.
— Coitadinha! — Lis a pegou no colo e a gata se derreteu com os carinhos. — Me
desculpa por roubar seu pai, Robinha. Estou devolvendo ele agora.
— Talvez ela esteja te pedindo pra ficar mais um pouco — Dante a provocou.
— Para, gatos são a minha fraqueza. E hoje vou ver meu filho, Robinha. Você entende, né?
— Ah, o… Sr. Darcy?
— Isso. E tenho que deixar a mesadinha dele do mês. Se não fizer isso, minha mãe é capaz
de colocá-lo pra fora. Você entende, né, fofinha?
Dante franziu o cenho com a frase. Nunca tinha conversado sobre isso com Lis, mas
achava a família dela um pouco… estranha. A começar pelo fato de que o ex dela tinha virado
cunhado e isso foi tido como algo normal, por ter visto Lis se desdobrar em dinheiro e tempo
para ir em casa ajudar em qualquer problema que surgisse. Lis era focada no trabalho e poucas
coisas a afastariam de terminar um experimento, mas não foi uma ou duas vezes que ela foi
interrompida por ligações ou pedidos para que ela fosse para Jacarepaguá de última hora.
E ela sempre ia, sempre.
Lis era uma filha e uma irmã dedicada, era evidente. Mas Dante tinha experiências com
famílias tóxicas. Talvez ele estivesse vendo pelo em ovos, mas aquele comportamento lhe
ativava alguns alarmes preocupantes.
— Quer um café? — Ele afastou as teorias por um momento. — Come alguma coisa antes
de ir, pelo menos.
Ela aceitou o pedido, sentando-se em uma das cadeiras da cozinha enquanto o assistia
preparar o café e um sanduíche. Quando ele a serviu, Lis inclinou as sobrancelhas para ele.
— Não vai comer? — perguntou.
Dante sentiu um arrepio. Tinha se esquecido desse detalhe.
— Ah — gaguejou. — Não estou com fome.
Lis o encarou por alguns segundos, sem saber como agir. Era um fato: Dante não gostava
de comer na presença dos outros. Ela tinha percebido isso durante o mês que se passou. Mesmo
depois de fazerem as pazes e começarem uma amizade, Dante sempre se esquivava ou
desaparecia na hora do almoço. Não tinha comido nada no Notas Noturnas e devia estar com
fome e um pouco desidratado, visto todo o esforço que fizeram naquela noite. E o problema não
era ela, obviamente. Dante gostava e queria ficar perto dela, Lis entendia isso muito bem agora.
Ele só… não gostava de comer com ela? Era um pouco confuso.
Dante engoliu em seco. O olhar e o silêncio dela o deixavam um pouco preocupado.
Queria que Lis gostasse dele, que o desejasse. Se Lis soubesse de seus problemas, provavelmente
se afastaria.
Por que ele tinha que ser tão idiota, tão fraco? A espiral de pensamentos negativos o
atingiu em cheio. Ela se afastaria, o acharia um doido, todos do departamento uma hora
descobririam sobre seu passado vergonhoso. Por que ele…
— Bem, eu tô cagada de fome! — Lis falou alto, quase como se quisesse despertá-lo
daquele pesadelo que se criava. — Você acabou comigo, cruz credo.
Dante deu uma risada com a espontaneidade. Um pouco mais calmo, ficou a assistindo
comer em silêncio até que ela terminasse.
— Agora eu tenho que ir de verdade. — Ela se levantou e pegou a bolsa. — Qual é o
endereço daqui? Vou pedir um Uber.
— Deixa que eu peço pra você. — Dante a acompanhou.
Lis fez uma careta constrangida. Dante revirou os olhos e pegou o celular.
— Tá dentro do pacote, Lis. Cinco orgasmos, dormir de conchinha e um Uber de volta.
Não pode recusar.
— Foram bem mais de cinco — ela se lembrou. — Acho que perdi a conta.
— Esses outros foram por conta da casa… — Dante se aproximou um pouco mais
enquanto mexia no celular.
Quase sem perceber, Lis tinha parado encostada na parede, a poucos centímetros dele.
Dante inclinou a cabeça e semicerrou os olhos, um brilho perigoso os acendendo.
— Vai chegar em oito minutos — disse.
Entregou o celular nas mãos dela, do mesmo jeito que fizera na entrada do Notas Noturnas.
Lis mordeu os lábios, contendo uma risada de incredulidade e excitação. Deixou que ele a
mordiscasse e beijasse, seus dentes roçando pela pele descoberta pelo decote.
Ficou sem fôlego quando o assistiu se ajoelhar e subir as mãos para retirar sua calcinha.
Ela só teve tempo de se encostar melhor na parede e deixar que ele apoiasse uma de suas pernas
nos ombros.
Antes de começar, Dante lhe lançou um sorrisinho provocante.
— Fica de olho — disse.
E afundou o rosto entre suas pernas, lambendo e chupando com força. Lis teve que juntar
toda sua força de vontade para não fechar os olhos.
Oito minutos era pouco e muito ao mesmo tempo.
Grupo Biólogas Apocalípticas
Janaína Albuquerque
Meu Deus
Lis
Você morreu?
Dá algum sinal de vida
Você nem avisou quando foi embora
Espero que esteja transando que nem uma doida
Porque você sempre avisa por mensagem
E eu tô preocupada
Mas se estiver transando
Continua
Me avisa que está bem quando for ao banheiro sei lá
E volta pra batalha
Elis Duarte
Tô viva
No Uber
Vou passar em casa pra mudar de roupa
E ir pra casa da minha mãe
Janaína Albuquerque
É SÓ ISSO QUE VOCÊ VAI DIZER
ELIS CASTRO DUARTE
CONTE TUDO
AGORA
AGORAAAAAAA
Emília Park
Eu também quero saber T.T
Lis mordiscou os lábios, seu rosto ardendo de vergonha. Ainda estava sem ar pelo oral que
Dante lhe dera, quase desceu sem calcinha para pegar o Uber. Era muita humilhação para uma
pessoa só. Dante era louco? Inventar aquilo com só oito minutos para fazer qualquer coisa?
Mas ela não podia negar que tinha gostado. Que tinha gostado muito. Ela gozou rápido e
depois ficou só saboreando a língua e os dedos dele em sua boceta enquanto arrastava as unhas
por seu couro cabeludo com a mão livre. Se Dante era louco, Lis era mais ainda, porque
embarcaria em qualquer coisa que ele inventasse.
Por Deus, aquilo parecia um sonho muito doido. E Lis não estava muito a fim de acordar.
Elis Duarte
Foi…
Janaína Albuquerque
FOI???
Elis Duarte
Foi bom pra caralho
Sei nem o que dizer
Janaína Albuquerque
Conseguiu gozar????
Elis Duarte
AMIGA
Quando foi que eu não gozei
Eu nem sabia que dava pra ter tantos orgasmos assim
Foi um atrás do outro e atrás do outro e…
Acho que meu cérebro derreteu
Emília Park
Minha Nossa Senhora
Sabia que daria certo
Janaína Albuquerque
EU QUERO DETALHES
Elis Duarte
Não tem como dar detalhes agora
Depois a gente conversa melhor
Eu tô morrendo de vergonha
Emília Park
Por quê?
Elis Duarte
Ai
Acho que a overdose de ocitocina me deixou maluca
Teve uma hora
Que eu chamei ele de amor
Janaína Albuquerque
COMO É QUE É?
Emília Park
@.@
Elis Duarte
EM MINHA DEFESA
Eu tava numa posição
Que meu joelho
Quase tocava minha testa
Janaína Albuquerque
Ah
Compreensível
Quem nunca, né não?
Então para de vergonha
E CONTA TUDO
Elis Duarte
Agora não dá mesmo amiga
Tenho que me recompor
Pra me preparar psicologicamente
Pra encarar minha família nesse feriado
Minha mãe já tá puta porque eu não fui ontem
Preciso chegar plena em casa
E lembrar da loucura que eu fiz agora não vai me ajudar em nada
Janaína Albuquerque
Ah não
Emília Park
Por que não vem pra casa da minha bisa também, Lis?
Meu pai te busca na Praça XV
Eu a Jana já estamos aqui
Janaína Albuquerque
É
O tio Park comprou ovo de Páscoa pra gente
A gente inventa uma desculpa pra despistar sua família
Elis Duarte
Realmente não dá
Amanhã uns amigos e parentes da minha mãe vão vir
E eu tenho que ajudar

Lis soltou um suspiro alto. Parecia mesmo o fim de um sonho muito bom. Ela agora teria
que lidar com sua família por um fim de semana inteiro. A dura e insuportável realidade.
Não só sua família. Era uma reunião dos parentes intermináveis do lado de sua mãe e todos
tinham o verdadeiro dom de deixá-la desconfortável e constrangida com comentários sem-noção.
E desde que Gabriel e Isabela começaram a namorar, a situação tinha piorado bastante. Lis mal
tinha se recuperado do natal e do ano novo.
Chegou em casa e tratou de subir e arrumar suas coisas o mais rápido possível. Pensou em
mandar uma mensagem para Dante dizendo que havia chegado, mas hesitou por um momento,
refletindo se pareceria grudenta demais.
Tê-lo chamado de “amor” ainda a deixava mortificada de vergonha.
Que ideia idiota, Lis. Meu Deus do céu. Praguejou para si mesma, descendo de elevador.
Já começava a entrar na espiral de ansiedade instantânea quando seu celular apitou com uma
mensagem.
Dante Krause
Chegou bem?
Lis soltou o ar, segurando um sorriso que se formava no canto de seus lábios. Dante era
sempre tão atencioso, às vezes parecia que ele conseguia sentir quando ela começava a ficar
ansiosa. E era estranho ter tanta atenção assim de alguém, pelo menos para ela.
Era só uma mensagem cordial, mas Lis se sentia especial de alguma forma. Sentia-se
ouvida, desejada, querida. Era bom se sentir assim de vez em quando.
Elis Duarte
Cheguei sim
Obrigada de novo pelo Uber
Cheguei e já tô saindo de novo
Pronta pra peregrinação até os confins de Jacarepaguá
Dante Krause
Não precisa agradecer
Quando você volta?
Elis Duarte
Acho que amanhã mesmo
Domingo à noite
Porque segunda a gente tem um monte de experimento pra fazer
Dante Krause
Ah
É mesmo
Nossa, você nem vai conseguir descansar direito
Devia ter te deixado dormir um pouco então
Hehehehehehe
Elis Duarte
Que engraçadinho!
Vou deixar a dosagem de proteínas pra você na segunda então
Já que vai estar mais descansado
Dante Krause
Dosagem não T.T
Você não seria tão malvada assim
Mas tudo bem
Tenta descansar um pouco
Se ficar muito ruim
Me avisa
Dou um jeito de te buscar
Pra você pelo menos dormir direito dessa vez
Elis Duarte
Você nem sabe onde é Jacarepaguá
Dante Krause
Detalhes
Sei me virar no Rio de Janeiro?
Não
Mas eu dou um jeito
Lis riu com as mensagens, caminhando até a estação das barcas. Pensou no escândalo que
seria Dante chegando no meio do almoço de Páscoa no domingo para buscá-la, com seu porte
imponente e expressão mal-humorada. Seria o assunto da família por anos.
Será que sua mãe gostaria dele? Dona Brenda amava Gabriel com tudo que tinha. Talvez
tivesse sido por isso que ela não se importou tanto com o genro pulando de uma irmã para a
outra, com um espaço de somente quatro meses. Quando Gabriel e Isabela começaram a
namorar, a sensação que Lis teve foi que, para sua mãe, tudo tinha voltado ao lugar certo, ele
tinha voltado a ser seu genro tão amado.
Respirou fundo, espremendo os lábios em seguida. Já tinha embarcado e agora atravessava
a Baía de Guanabara, recostando a cabeça na janela enquanto apreciava a vista do Rio de Janeiro
se aproximando. A alegria e animação que sentira com as mensagens de suas amigas e de Dante
sumiram assim que ela começou a pensar no caos que era ter Gabriel como seu cunhado.
Ela só… sentia um pouco de raiva. Pela situação um pouco humilhante em si, só isso. Em
breve passaria, Lis tinha certeza.
Releu as mensagens de Dante mais uma vez, agora com um olhar mais agridoce do que
outrora. Parecia mesmo um sonho bom. Dante parecia um príncipe encantado que surgira na vida
dela, a Cinderela de Jacarepaguá.
Parecia mesmo um sonho.
Mas Lis talvez fosse obrigada a acordar.
CAPÍTULO 16
"É uma noite fria pra caramba
Estou tentando entender essa vida
Você não vai me levar pela mão?
Me leve a algum lugar novo
Não sei quem você é
Mas eu estou com você”
Now Playing: I’m With You
Avril Lavigne

31/03/2024
108 dias para o fim do semestre

— Nossa, Lis. Tá gordinha, hein? — Seu tio Paulo gritou do outro lado do quintal
enquanto se aproximava dela.
Lis torceu a boca, apertando a borda da bandeja com fatias de carne que servia no
churrasco de Páscoa da família. Tinha sido assim o fim de semana inteiro.
O. Fim. De. Semana. Inteiro.
— Quer carne, tio? — Ela só soltou um suspiro, estendendo a bandeja com cara de poucos
amigos.
— Quero sim, minha querida. — Ele catou alguns pedaços e colocou no próprio prato sem
parar de tagarelar por um segundo sequer. — É que você é tão bonita de rosto, Lis. Mas não para
de engordar e de se rabiscar desse jeito. É meio desleixado, sei lá.
Lis suspirou de novo, revirando os olhos. A pergunta que não queria calar era quando ela
tinha dado tanta intimidade assim para o tio para que ele comentasse sobre sua aparência. Mas
tinha sido assim sua infância e adolescência inteira, ela já nem se chocava mais com a falta de
noção.
Mas era interessante notar o quanto as pessoas se dispunham a ser agressivas com ela só
porque Lis era gorda. Fosse com conselhos indesejados ou comentários ácidos, todos eles se
achavam no direito de humilhá-la por causa de seu peso.
— Sabe, por que você não pede uns conselhos pra sua irmã e… — Seu tio ainda falava.
— E o transplante capilar, sai quando? — Lis falou de repente.
— O quê?
— Você ainda é jovem, tio. E ser calvo desse jeito é sinal de desleixo. Quer que eu
pesquise clínicas que fazem transplante capilar? O que acha?
Ela nem esperou pela resposta, só desviou dele e voltou a oferecer a carne para os
convidados. Quando terminou, esgueirou-se para dentro de casa, a fim de fugir dos parentes
inconvenientes. Entrou em seu antigo quarto e fechou a porta, soltando mais um de seus infinitos
suspiros.
Sr. Darcy estava lá, encolhido como uma bolota de pelos em seu travesseiro. Assim como
ela, o gato já tinha ultrapassado sua cota de interações com o resto da humanidade.
— Só você me entende, Dadá — Lis disse, jogando-se na cama para se deitar ao lado dele.
O gato preto ronronou, apoiando a cabecinha em seu braço. Lis achou a cena fofa e tirou
uma foto. Feliz com o resultado, resolveu mandá-la para Dante.
Se eles tinham parado de conversar por mensagem desde que se despediram? Não, ainda
não tinham parado. Na verdade, as mensagens se tornaram ainda mais frequentes e Lis se viu
segurando risinhos histéricos toda vez que seu celular apitava. Era quase como voltar à
adolescência; qualquer bobeira que ele lhe mandasse era o suficiente para que as borboletas em
seu estômago se agitassem fervorosamente.
Dante Krause
O grande Sr. Darcy!
Ele é muito fofo
Acha que ia gostar de mim?
Elis Duarte
Um pouco difícil
Ele não é nada sociável
Acho que sou a única pessoa que ele gosta
Dante Krause
Então eu e ele temos algo em comum
Elis Duarte
O quê?
Dante Krause
Hm
O que será?

— Lis! — Sua irmã entrou no quarto antes de ela sequer pensar no que responder. — Tá
fugindo da família?
Isabela entrou e fechou a porta, correndo para se sentar na beirada da cama de Lis. O
movimento irritou Sr. Darcy, que só guinchou e pulou para se esconder debaixo da cama.
— Gato ingrato. — Isabela deu a língua. — Só porque troquei a ração dele.
— Você trocou a ração dele? — Isso chamou a atenção de Lis. — Por quê? E por que não
me avisou?
— Ai, a ração que você compra é cara demais, pra que gastar isso tudo num gato? E eu
precisava de um dinheiro, tive que usar uma parte pra mim, foi mal.
Lis torceu os lábios, insatisfeita. Deu uma olhada nela, procurando traços da irmãzinha que
ela sempre amou demais. Isabela sempre foi seu xodó, seu bibelô desde que Lis se deu conta de
que tinha que cuidar da irmãzinha mais frágil depois do divórcio dos pais. Sempre foi sensível
demais, chorava por qualquer coisa, ficava mal e inspirava cuidados. Lis faria de tudo e mais um
pouco pela irmã por saber disso tudo, mas desde o começo do namoro com Gabriel, tudo que a
irmã fazia parecia uma facada nas costas dela.
Ela ainda não tinha superado. Não o término, mas por ter perdido o amigo e a irmã em uma
tacada só. Lis agora se via questionando o próprio relacionamento que tivera com Gabriel,
pensando se ele e a irmã já davam indícios de que se gostavam e Lis foi a única que não
percebeu.
Porque Isabela era linda, parecia uma modelo, uma boneca, um anjinho de cabelo
esvoaçante e olhos azuis imensos. Quem não se interessaria por ela?
Às vezes era difícil aceitar. Muito difícil.
— Não te dei permissão pra mudar a ração dele. E não sei de onde você tirou essa ideia de
que pode pegar meu dinheiro sem nem pedir — disse de forma ríspida.
— Ai, Lis. Você anda rabugenta demais ultimamente. Só me dá bronca e não faz mais
nada comigo. Sinto sua falta, sua chata. Você é muito má. Antes sempre me dava um agradinho,
agora só quer saber desse gato e das suas amigas em Niterói.
Por que será que não faço mais nada com você? Ela não conseguiu evitar de pensar.
— Isabela, — Lis franziu o cenho, zangada. — Para de testar minha paciência. Destroca a
porra da ração do gato.
Sua irmã fez um beicinho, magoada. Lis respirou fundo.
— Você não vai saber se eu dei a ração certa ou não — ela disse. — Você nunca vem aqui
mesmo…
— Eu sempre venho aqui! Não sei de onde… — Lis rugiu. Estava prestes a começar uma
briga, mas conseguiu se conter. — Deixa. Eu mesma vou comprar o saco de ração e deixar aqui.
Pronto, resolvido. Só dá comida pra porra do gato. Ou isso é muito difícil pra você?
Outro beicinho. Lis revirou os olhos, contando até dez.
Talvez até mil.
— Quando todo mundo for embora, que tal eu, você e o Gab assistirmos a um filme? —
Isabela sugeriu. — Como nos velhos tempos.
Gab. Lis odiava ouvir Isabela o chamando assim. Era um costume que ela incorporara
desde que começaram a namorar e toda vez que ela chamava o namorado daquele jeito enjoado,
Lis tinha vontade de socar os dois.
Quando Lis tinha começado a namorar Gabriel, três anos atrás, ele sempre chamava
Isabela de pirralha e às vezes se incomodava com a presença da irmãzinha sempre colada neles.
Isabela tinha 16 anos na época, mas se comportava como alguém de 10, grudada na irmã mais
velha até dizer chega. Também não tinha muitos amigos na escola, então Lis sentia um pouco de
pena e sempre a incluía em tudo que podia, já que Isabela se sentia solitária desde que Lis fora
para a faculdade.
E agora Gabriel estava namorando a dita pirralha, era chamado de Gab e vivia grudado
com ela, a menininha que tinha crescido e se tornado uma beldade.
O mundo girava de formas estranhas de vez em quando.
— Não dá — Lis falou. — Assim que acabar aqui, vou voltar pra Niterói. Tenho que ir pra
UFF amanhã de manhã.
— Você só fala dessa UFF, que saco. — Isabela fez manha. — Você e o Gab. Também
quero passar pra lá. A gente podia morar os três juntos, né? Seria o máximo.
— Claro… — Lis se levantou da cama, caminhando até a porta para sair. — Vou ver se a
mãe precisa de alguma coisa.
Saiu do quarto, indo até a cozinha. Isabela foi atrás dela e as duas encontraram a mãe
sentada na mesa com uma de suas amigas. Gabriel estava com elas, conversando animadamente.
Isabela correu até o namorado, sentando-se em seu colo. Lis desviou o olhar, encarando o
chão. A amiga de sua mãe sorriu para o casal.
— Vocês são tão bonitinhos! — disse. — Combinam tanto! Um casal de dar inveja! Foram
feitos um para o outro, fiquei tão feliz quando soube que começaram a namorar!
Lis espremeu os lábios. Esperou até que a mulher se desse conta do que dissera e
começasse a querer consertar sua fala.
— Ah, mas você e a Lis também ficavam bem juntos! — gaguejou. Lá estava. — Mas a
vida é assim, né? Que bom que todos permaneceram amigos. E bola pra frente, a gente não pode
parar de viver.
Lis fechou os olhos por um momento, respirando fundo. Ter que ficar ouvindo coisas
assim a todo momento certamente era cansativo.
— Sim, a Lis é muito responsável — sua mãe disse. — Ela sempre coloca a felicidade da
irmã em primeiro lugar. Nunca implicaria com algo assim. Não é, querida?
— Claro… — foi o que conseguiu responder.
— Eu tava falando pra Lis pra gente assistir um filme de noite — Isabela comentou com
Gabriel. — Mas ela disse que tem que voltar pra UFF hoje. Ela não quer fazer mais nada com a
gente.
— Posso te levar em Niterói amanhã de manhã, Lis — Gabriel falou. — Também tenho
que voltar, posso te dar uma carona.
— Ah, — Lis parou para pensar por um momento. Mesmo com o desconforto, ela poderia
economizar desse jeito. E não se cansaria tanto da viagem. — Eu preciso estar bem cedo na UFF
amanhã. Tem problema?
— Não tem problema, eu te levo.
Dona Brenda pigarreou, chamando a atenção de Lis. Era aquele olhar de sempre, Lis
conseguia ler os pensamentos dela: “Acha que isso é de bom tom? Pegar carona com o seu ex?”
Quase como se ela pudesse querer tomar Gabriel de volta e magoar Isabela. Era cansativo e
angustiante ter que lidar com essa desconfiança.
Que Isabela era a filha favorita de Dona Brenda não era novidade alguma para Lis. Ela só
queria que sua mãe não deixasse tão óbvio de vez em quando.
— Eu tenho que estar lá bem cedo mesmo, vou acabar te dando trabalho. — Ela sorriu para
o ex. — Não se preocupa, vou pegar o BRT e a barca. Chego em Niterói em um pulo.
Seriam três horas de viagem ao todo, mas Lis aguentaria firme. Teria menos dor de cabeça
dessa forma.
Sua mãe emendou em outra conversa e Lis viu aquilo como uma oportunidade para se
afastar. Saiu em passos leves, voltando para o quarto. Dessa vez, quando entrou, lembrou-se de
trancar a porta. Tentaria descansar um pouco antes de ir embora, mataria a saudade de seu gato
até os últimos minutos. Ultimamente, só a presença de Sr. Darcy fazia valer a pena as visitas
torturantes àquela casa.
Deitou-se novamente, chamando o Sr. Darcy. Enquanto o gato voltava a se aninhar ao lado
dela, Lis releu as mensagens de Dante, um hábito que ela estava começando a cultivar. Leu
aquela que ele havia dito “Se ficar muito ruim, me avisa. Dou um jeito de te buscar”.
— Queria que isso fosse verdade… — murmurou para si mesma, fechando os olhos.
— “Do I wanna know? If this feeling flows both ways?” — Dante cantou a música
enquanto dedilhava acordes em sua guitarra, sentado em uma das poltronas da sala e encarando o
teto. — “Sad to see you go. Was sorta hoping that you'd stay…”[9]
Já era noite e ele tinha ficado o fim de semana inteiro assim, encarando o teto enquanto se
lembrava da noite que passara com Lis. De novo e de novo, Dante ficava recordando de todas as
sensações arrebatadoras que tivera ao lado dela, em como tudo se encaixou perfeitamente em sua
cabeça, como se fosse o destino ou algo muito louco que o impulsionava em direção a ela.
Ele gostava muito de Lis, isso era um fato. Só não imaginava que fosse ser tão forte
daquele jeito. Quase como se se tornasse uma necessidade, um desejo incontrolável de estar
perto o tempo todo, de tê-la de todas as formas possíveis. Chegava até a ser um pouco assustador
se dar conta disso.
— “Baby, we both know that the nights were mainly made for saying things that you can't
say tomorrow day” [10]— continuou, suspirando ao mesmo tempo que cantava. Mal se deu conta
de que Henrique surgiu, vindo da cozinha, para se juntar a ele.
— Nossa, Artic Monkeys. — O primo deu uma risada. — O caso é sério.
Dante não falou nada, só continuou tocando a melodia, perdido em pensamentos. Henrique
estalou a língua, sentando-se no sofá em frente.
— Não acredito que você se apaixonou pela primeira garota que comeu aqui em Niterói,
cara — disse. — Você tinha tanto potencial.
— “Crawling back to you…” [11] — Dante continuou a cantar, na tentativa de dar a
entender que não queria conversar sobre aquele assunto.
— E ainda foi com a amiga esquisitinha da Jana. Ela não é sua colega de laboratório?
Tanta mulher bonita pra pegar e você foi logo na…
Dante deu um tapa na guitarra, provocando um som alto e ensurdecedor. Henrique levou
um susto, olhando assustado para o primo.
— O que você ia dizer? — Dante perguntou.
— Ah, cara. Não me olha assim. Sei que você tem problemas com isso e tudo mais, mas
pensei que essa fosse ser sua nova vida. Você tá com o shape perfeito e vai perder tempo com
uma garota mais ou menos? Você pode pegar a mulher que quiser, cara. É só escolher.
— Já escolhi.
— Tá, mas você tá agindo como se estivesse cogitando namorar com ela e…
— Eu estou.
Henrique fez uma careta.
— Por isso que digo que você devia ir um pouco mais devagar nessas coisas — falou. —
Sua autoestima ainda é muito baixa, por isso…
— Henrique. Melhor parar por aí. Porque se estiver insinuando que eu tenho baixa
autoestima porque gosto de uma mulher que você não acha bonita, não vai gostar do rumo que
essa conversa vai levar.
Porque ela vai acabar com o meu punho no meio da sua cara, era assim que a frase
terminava. Mas manteve essa parte escondida para não assustar o primo à toa.
— Eu só tô dizendo que… — Henrique tentou argumentar.
— Não precisa me dizer nada. — Dante se levantou. Guardou a guitarra em um canto,
calmo como sempre. — Não quero ouvir.
Caminhou até a cozinha, enchendo um copo d’água. Acendeu o celular, debruçando-se na
bancada, e digitou uma mensagem para Lis.
Dante Krause
Já chegou em Niterói?
Ficou esperando pela resposta dela, sorrindo enquanto relia as mensagens, sem nem ouvir
direito o que seu primo ainda tentava dizer. Bebeu a água e esticou-se assim que uma nova
mensagem chegou.
Elis Duarte
Ainda não T.T
Tô quase chegando na Praça XV
Aí ainda tem a barca
Não aguento mais
Dante Krause
Me avisa quando pegar a barca
Elis Duarte
Por quê?
Dante Krause
Só me avisa
Assim que entrar
— Escuta, o que estou tentando te dizer é que você não precisa se precipitar. — Henrique o
seguiu até a cozinha. — Pode continuar ficando com a Lis, mas ainda pode…
— Henrique — Dante o interrompeu. — Dá pra parar?
— Eu só quero que você seja feliz, cara. Você passou por tanta coisa e…
— Eu estou feliz.
— Mas…
— Henrique, eu gostei pra caralho de ficar com a Lis. Muito. E acho ela linda, gostosa pra
caralho, nunca fiquei com alguém que me atraísse tanto. E não sou criança, sou completamente
capaz de construir a relação que for com qualquer pessoa. Se não consegue enxergar que estou
feliz por causa dela, só posso lamentar.
— E você consegue comer na frente dela? — Henrique franziu o cenho, irritado. — Eu te
vi naquele bar, Dante. Você não comeu nada.
Dante não respondeu. A raiva que começava a borbulhar dentro de seu estômago o
impedia.
— Quando acordaram ontem, conseguiu tomar café com ela? Ou deu uma desculpa
qualquer e desconversou?
— Então não posso me relacionar com ninguém? Porque não consigo comer na frente dos
outros? Você é a porra de um médico, Henrique. Pensei que soubesse melhor o que é a droga de
um transtorno alimentar.
— É claro que pode! Só estou dizendo que tem que tomar cuidado. Porque você é frágil
e…
— Já chega.
— Ao menos contou pra ela que já foi anoréxico?
— O que é isso? Você conta todos os seus problemas pras garotas que fica? Contou pra
Jana que você é um idiota que nunca vai ficar com ninguém de verdade porque tem medo do que
a sua família pode achar?
— Eu só tô ficando com a Jana, não é nada sério e…
— Você é a porra de um babaca.
— Olha, você que quis vir pra cá. Você que me mandou uma mensagem desesperada
dizendo que morreria se continuasse em Floripa. E não quer que eu me preocupe contigo?
— Agradeço a preocupação. — Dante respirou fundo. Não adiantava discutir com o primo,
ele nunca ia mudar de opinião. — Mas não precisa.
Assim que falou isso, seu celular apitou com mais uma mensagem. Lis avisava que tinha
acabado de entrar na barca.
— Tenho que ir — falou, guardando o celular no bolso. — Depois a gente conversa
melhor.
— Aonde você vai?
Dante se virou, encarando o primo com um olhar zombeteiro no rosto. Não conseguiu
segurar o sorriso idiota que brotou ao notar a careta consternada de Henrique.
— Vou ver a Lis — afirmou.

Lis estava exausta. Simplesmente exausta.


Era difícil manter os olhos abertos. Tentou se concentrar nas águas escuras da Baía durante
o trajeto da barca, mas seus olhos pesavam. Ela não descansava direito desde que dormira na
casa de Dante, então o cansaço acumulado começava a cobrar seu preço. Se não tivesse se
alimentado direito naquele fim de semana, com certeza teria mais um episódio de baixa pressão e
sangramento nasal.
Era sempre tão estressante visitar sua família. E ficava cada vez pior, ao ponto de ela se
questionar do motivo de sempre acabar indo. Lis pensou no convite das amigas para passar o
feriado com a família de Emília e ela quase se arrependia de não ter aceitado. Era sempre
divertido e os Park sempre a acolheram muito bem, principalmente o pai da amiga. Às vezes, Lis
se sentia mais incluída e amada com os Park do que na própria casa.
Mas sua dinâmica familiar sempre foi difícil, Lis já devia ter se acostumado. Desde o
divórcio dos pais, ela, a mãe e Isabela se equilibraram por anos em uma relação de extrema
dependência, já que tinham sido praticamente abandonadas pelo pai. Eram elas contra o mundo,
Dona Brenda tinha dado tudo de si para criar as filhas. Por isso, Lis fez de tudo para ajudar, para
aliviar aquele fardo. Assumiu suas responsabilidades, se tornou o arrimo da família, a base em
que todos poderiam confiar.
Tudo funcionou bem por anos. Começou a desmoronar quando Lis passou na faculdade.
Sua ida para Niterói foi vista como mais um abandono. O primeiro atrito veio quando ela decidiu
que era melhor morar na cidade, já que ir e voltar todo dia para Jacarepaguá era extremamente
cansativo. Desde então, nada do que Lis fazia era o suficiente. Sua irmã sentia sua falta, sua mãe
a culpava pela ausência. Mas Lis só queria ter a própria vida, crescer de outras formas, respirar.
Era egoísta da parte dela querer isso? Ela não sabia a resposta para essa pergunta. Tudo
que sabia era que, às vezes, sentia-se muito solitária. Muito. Mesmo na presença das amigas.
Jana e Emília a apoiavam, mas às vezes não a entendiam. Nem Lis se entendia de vez em
quando. Era um querer ter independência, mas também querer ser cuidada. Seguir seu caminho e
seus desejos, mas também ser acompanhada.
Confuso. Muito confuso.
— Eu só quero me formar… — choramingou para si mesma, abraçando a mochila. —
Tudo dá errado porque não consigo defender essa porra de TCC.
A barca atracou na Estação Araribóia e Lis suspirou antes de se levantar para sair. Ela só
precisava de um banho quente e uma boa noite de sono. O dia de amanhã sempre era melhor. Ela
só precisava aguentar mais um pouco.
Retirou o celular do bolso, já pronta para mandar uma mensagem para Dante para dizer
que tinha chegado bem. Ele devia estar um pouco preocupado pela hora tarde da chegada dela,
então era natural que quisesse saber onde estava.
Já começava a digitar a mensagem quando ouviu alguém a chamando. Levantou a cabeça,
confusa, só para ver Dante perto dos portões da barca, acenando para ela.
— Lis! — ele a chamou novamente, sorrindo.
Lis se aproximou com cautela, confusa e animada ao mesmo tempo. O que ele estava
fazendo ali?
— Dante? — perguntou assim que se aproximou.
— Fez boa viagem? — Ele sorriu ainda mais ao notar a confusão em seu olhar.
— Hm, fiz, mas…
— Que bom. Me dá sua mochila, eu carrego pra você.
Lis franziu as sobrancelhas. Dante deu uma risada e retirou a mochila dos ombros dela.
— Cansada? — perguntou. Fez um carinho na bochecha de Lis. Depois acariciou seus
cabelos, escorregando os dedos por sua cabeça.
— Muito, eu… Acho que estou vendo coisas.
Outra risada. Dante se colocou ao lado dela.
— Vem. Vou te levar até a sua casa — disse.
— Você veio me buscar?
— Vim.
— Por quê?
— Não gostou de me ver aqui? — Dante esticou uma das sobrancelhas, divertindo-se com
sua falta de jeito.
— Não é isso! É que… Eu moro bem perto daqui. Você não precisava ter se dado ao
trabalho. Tá bem tarde.
— Mas eu quis vir — ele falou. Atravessaram juntos a avenida e adentraram pelas ruas do
centro.
Os dois passaram pelo shopping, desviando das pessoas que curtiam o restinho do fim de
semana de feriado. Lis ainda estava um pouco aturdida.
— Mas… por quê? — resolveu perguntar de novo.
— Quer mesmo que eu diga, é? — Dante riu mais um pouco.
Lis o encarou. Por algum motivo, suas bochechas começavam a arder sem controle. Ela
agradeceu por estar um pouco escuro, assim evitaria que Dante a visse toda vermelha.
Contornaram a Praça do Rinque e logo chegaram na entrada do prédio de Lis. Ela o fitou
mais uma vez, mordiscando os lábios por puro nervosismo. Por outro lado, Dante estava calmo
como sempre, o sorriso leve o deixando ainda mais bonito.
— Eu vim porque gosto de você — ele por fim disse. — E fiquei com saudades.
— Ah. — O coração de Lis parecia querer sair pela boca. — A gente se viu ontem.
— Sim.
— E nos veríamos amanhã de manhã.
— No laboratório. É diferente.
— É?
— Lá você é a Deusa da Neuro. E não se engane, adoro a Deusa da Neuro. Mas eu queria
ver a Lis.
— Ah.
Era um fato. Lis estava prestes a ter um treco. Era informação demais para processar.
Mas era fofo. Extremamente fofo. E gentil, atencioso, algo que quase a fazia derreter.
Estava mesmo acontecendo, ela não estava alucinando? Poderia parecer bobagem para qualquer
um, mas era estranho para ela.
Lis estava acostumada a cuidar das pessoas, não ser cuidada. Não ter alguém para carregar
sua mochila depois de um dia cansativo, vir só para caminhar os poucos quarteirões da barca até
sua casa e depois ir embora. Ela sempre carregou tudo sozinha, sempre ajudou os outros a
carregarem o que fosse. Era estranho, era muito estranho se ver do outro lado, mesmo em um
cenário tão pequeno.
Seu rosto ardeu mais ainda e ela engoliu em seco, sem saber o que dizer. Queria ter
palavras bonitas para ilustrar o que sentia, queria deixar claro que tinha ficado feliz em vê-lo ali,
que só estava surpresa. Começou a gaguejar, na tentativa de articular alguma frase que prestasse.
Mas Dante só estalou a língua, ainda sorrindo, e deu um peteleco em sua testa.
Isso fez com que Lis voltasse à realidade.
— Tá pensando demais de novo — ele disse.
Ainda sem saber o que falar, ela só se aproximou e o abraçou, afundando o rosto em seu
ombro. Dante deu outra risada e a aninhou nos braços.
— Também senti saudades… — Lis murmurou, enfim, sua voz abafada. — Também
queria te ver. Eu só…
— Você só tá muito cansada? — Dante a afastou para segurar seu rosto.
— Muito. Muito mesmo… — choramingou. — Minha família é meio bosta.
— Ah. Disso eu entendo bem.
— Sério?
Ele fez um meneio com a cabeça, concordando. Lis se esticou para beijá-lo, entrelaçando
os braços em seu pescoço.
Foi um beijo lento, carinhoso, sem pressa. Quando ele a soltou, Lis se sentiu mole e
quentinha, feliz. Como se um peso tivesse sido tirado de seus ombros.
— Obrigada por vir — murmurou ainda colada nele. — Acho que eu precisava disso.
— Posso fazer isso mais vezes? — ele perguntou. — Te acompanhar até em casa?
— Não vai ser cansativo demais pra você?
— Nem um pouco.
Lis voltou a corar com a declaração. Porque, basicamente, Dante estava sugerindo que eles
continuassem ficando.
E, nossa, como ela queria continuar. Era o que ela mais queria no momento.
— Hm, tá bom, então — murmurou, ainda um pouco encabulada.
— Então vai descansar agora. — Dante lhe deu um beijo na bochecha. — Você parece que
precisa de umas cinco noites de sono pra se recuperar.
— Parte disso é culpa sua, sabe? — Ela deu uma risada.
— Coitadinha. Mal posso esperar pra te cansar daquele jeito de novo. Mas pra isso você
precisa se recuperar primeiro.
Ambos riram, confortáveis com a companhia um do outro. Demoraram-se no último beijo
e Lis ficou um pouco triste quando ele entregou sua mochila de volta. Não queria se separar de
Dante de jeito nenhum.
— Te vejo amanhã? — ele perguntou enquanto a assistia entrar.
Lis sorriu e concordou. Subiu a escadaria do prédio o mais lentamente que pôde.
— Me liga quando subir? — Dante tornou a falar. Dessa vez, estava um pouco vermelho e
envergonhado.
Ele não queria parecer muito grudento, mas não conseguia evitar. Queria ter tudo que
pudesse dela.
— Ligo. — Para sua sorte, Lis nem pestanejou ao respondê-lo. — Toma cuidado na volta.
Tá tarde e Niterói é perigoso.
— Pode deixar. Vou pegar um Uber ali no shopping.
Lis aceitou a resposta dele e se despediu. Entrou no elevador com o coração leve e agitado,
suas pernas bambas e um sorrisinho besta pendurado no rosto.
Ela nem se sentia mais tão cansada assim.
CAPÍTULO 17
“Coisas frágeis e preciosas
Precisam de cuidado especial”
Now Playing: Precious
Depeche Mode

24/04/2024
84 dias para o fim do semestre

— Se ficar parado aí não vai sobrar comida pra você! — um dos professores do
departamento disse para Dante. Ele lhe entregou um pedaço de bolo de chocolate. — E olha o
seu tamanho, não pode ficar sem!
Dante sorriu meio sem jeito, segurando o doce como se fosse uma bomba atômica em suas
mãos. Ele sabia que aquele gesto tinha sido nas melhores das intenções, mas era o pior cenário
possível: ter que comer na frente de pessoas que ele mal conhecia, seus professores e colegas,
além dos convidados do simpósio que acontecia naquele momento. Era quase como um
pesadelo.
Racionalmente, Dante sabia bem que ninguém o julgaria por comer um único pedaço de
bolo. Na verdade, ninguém sequer processaria a informação, passaria despercebido para qualquer
um. Mas sua cabeça criava nós e gatilhos, vozes do passado que o criticavam por cada coisinha
que comia. Que tinham batido nele, humilhado, que o fizeram chorar. Era difícil calar todas elas,
mesmo com os anos de terapia.
É só um pedaço de bolo. Ninguém liga se você comer a porra de um pedaço de bolo, é
só… Ele tentava se lembrar. O enjoo característico da ansiedade começou e Dante se sentiu um
idiota por estar congelado ali, no meio do saguão do Instituto de Biologia, suando frio por causa
de algo tão pequeno.
Suas mãos começaram a tremer, a situação estava evoluindo de uma forma ruim. Era só
um pedaço de bolo, só um pedaço de bolo, ele não precisava surtar por causa de um pedaço de
bolo, ele só…
Antes que pudesse pensar em qualquer outra coisa, alguém retirou a comida de suas mãos.
Dante mal se deu conta de que era Lis ali, bem ao seu lado, conversando com o professor como
se nada estivesse acontecendo. Ela só colocou a comida de lado na mesa e continuou a conversar,
sem nem fazer contato visual com ele. Como se fosse o gesto mais casual do mundo.
E, pronto, lá estava. O motivo de Dante gostar tanto dela. Era um motivo relativamente
novo, mas muito importante, que surgiu um pouco depois que eles começaram a ficar. Lis já
tinha notado que ele tinha problemas para comer na frente dos outros. Notado também que o
problema não era com ela, mas com todos, e que isso o deixava extremamente desconfortável e
ansioso. E mesmo sabendo de tudo, ela não o pressionou para contar, não o tratou com
condescendência como sempre faziam com ele, não o viu como uma pessoa fraca. Ela só
permaneceu ali, evitando colocá-lo em situações que ele precisasse comer, resgatando-o quando
o pegavam de surpresa. Sem alarde, sem pressão.
E ele gostava muito disso. Muito mesmo. Gostava do fato de ela lhe dar espaço, mas não
ficar longe demais ao mesmo tempo. Era estranho que algo tão pequeno fizesse tanta diferença
para ele.
Mas era aí que estava: não era pequeno para Dante. Era a primeira vez que o tratavam
daquela forma. Era precioso, importante, doce.
Era a melhor coisa do mundo.
— Quer ir na minha casa depois daqui? — sussurrou para Lis assim que o professor se
afastou. — Você podia dormir lá.
— Hoje é quarta-feira. — Lis riu. — E tenho aula amanhã de manhã.
— A gente acorda cedo.
— Você quer dizer: “A gente nem dorme.”
— Detalhes. Não precisamos fazer nada. Te empresto meu notebook pra você estudar.
— Sei.
— Juro que me comporto.
— Acha que acredito nisso?
— Não. Mas não custa tentar.
Lis riu mais um pouco e as borboletas o atingiram com tudo. Ele já tinha até se
acostumado. Toda vez que Lis sorria, era como se novas constelações nascessem ao seu redor.
Profundo e intenso, Dante tinha a completa noção de que não havia mais volta para ele.
Contudo, eles não estavam namorando. Não oficialmente. Passavam o tempo todo que
podiam juntos, agarrados, respirando o ar um do outro, como se a separação fosse a mesma coisa
que a morte. Mas não estavam namorando, Dante ainda não tinha coragem de pedir.
Porque ele queria que fosse perfeito. Porque tinha prometido à Lis que não a machucaria e
essa era uma promessa difícil de cumprir. Não por causa dela, mas por todas as questões que ele
carregava dentro de si.
E se ele não cumprisse com todas as expectativas dela? Namorar implicava em várias
coisas. Ele nunca poderia levá-la em um restaurante? Como explicar os remédios que tomava?
Ele teria que contar sobre sua família? E se isso atrapalhasse o TCC dela? Porque era um fato,
eles passavam cada vez mais tempo juntos e isso talvez a deixasse um pouco distraída. Apesar de
tudo estar correndo bem no laboratório e com os experimentos, Lis ainda tinha um prazo muito
apertado, precisava passar nas matérias da graduação e escrever o texto.
“Perfeito é um estado inalcançável” Laura, sua psicóloga, vivia repetindo isso para ele.
Nunca haveria o cenário perfeito para os dois, pelo menos não tão cedo. E ele já tinha perdido
tempo demais buscando a perfeição, deixando de viver.
Então ele só precisava de um pouquinho mais de coragem. Ela viria, Dante tinha certeza.
— Que tal se a gente continuasse assistindo Jujutsu Kaisen? — sugeriu. — Você tava
gostando.
— Mais alguém importante vai morrer? — Lis perguntou, desconfiada. — Se não, tudo
bem.
— Ah… Não me faz ter que mentir pra você, linda.
Ela soltou um suspiro resignado.
— Tudo bem. Só vou porque quero saber o que acontece.
Dante teve vontade de enchê-la de beijos bem ali, no saguão do Instituto de Biologia, na
frente de todos os professores do departamento. Mas conseguiu se conter.
No entanto, como conter uma felicidade que parecia infinita?
Era quase impossível.

— Ei, grandão. Posso falar com você? — Henrique o chamou assim que ele e Lis
chegaram ao apartamento.
Lis foi atrás de Gororoba e Dante suspirou antes de se juntar a ele na cozinha. Depois da
conversa que tiveram, Henrique via a relação dos dois com um pouco de cautela. Ele parecia se
dar bem com Lis, mas ainda achava que Dante estava agindo rápido demais. Era um pouco
irritante ter que lidar com esse comportamento, mas na maioria das vezes, tudo funcionava bem,
na medida do possível.
— Fala. — Deu abertura para o primo, querendo parecer receptivo. — Desculpa ter
avisado em cima da hora que a Lis vinha, eu…
— Não é isso. — Henrique agitou uma das mãos. Foi aí que Dante percebeu que ele
parecia sério demais para ser só sua preocupação de sempre. — Quero só te perguntar uma coisa.
— O que é?
Henrique coçou a nuca, ansioso.
— Eu nem sei se devia comentar nada, porque você mesmo não comentou nada, então
achei um pouco estranho, mas sei lá, não sei mais o que se passa na sua cabeça. Mas seu pai e a
tia ligaram e eu pensei…
— O quê? — Dante franziu o cenho, confuso.
— Você vai no memorial do tio? — Henrique perguntou de uma vez só. — Vai ser nesse
fim de semana.
— Memorial?
— É, Dante. Vai fazer dez anos que o tio Klaus morreu nesse fim de semana. A tia Dulce
vai fazer um memorial lá na casa de praia dele. Eu achei que você já tinha decidido não ir, mas
ela me ligou perguntando de você e aí eu percebi que… talvez você tenha esquecido?
Tio Klaus. A lembrança o atingiu como uma pedra.
Ele tinha mesmo esquecido. Dante se esquecido do aniversário fúnebre de seu tio.
— Não precisa ir se não quiser — Henrique continuou. — Mas eu realmente achei que
você tinha esquecido e sei que é importante pra você, então… Posso pagar sua passagem.
— Ah…
— Pensa no assunto com carinho. — O primo deu tapinhas em seu ombro. — Afinal, é o
tio Klaus.
Henrique se afastou depois de dizer isso, recolhendo-se para o próprio quarto. Dante foi até
a sala, onde Lis estava sentada no sofá com Gororoba no colo. Ela esticou as sobrancelhas ao
notar a fisionomia dele.
— Tudo bem? — perguntou.
Dante mal ouviu. Sua mente já estava longe e acelerada. Era o aniversário de morte de seu
amado tio e ele nem se dera ao trabalho de lembrar. Pior, uma década já havia se passado, a
sensação era de que havia um mundo inteiro separando-o da pessoa que foi a mais importante de
sua vida.
E ele não conseguiria voltar para Florianópolis, Dante sabia bem. Voltar agora seria sua
sentença de morte, seu pai o engoliria, talvez ele não tivesse forças para retornar a Niterói.
Mas era seu tio, seu tio Klaus. O tio que lhe deu a guitarra, as músicas, o motivo de querer
continuar.
E ele tinha esquecido, Dante tinha se esquecido do tio.
— Dante? — Lis o chamou de novo. Já tinha se levantado e se aproximava dele,
preocupada.
— Ah… Tudo bem, sim. — Ele sacudiu a cabeça. — Melhor, hm… Vamos pro quarto,
vou colocar os episódios.
Ele nem esperou por qualquer outra coisa. Caminhou até o quarto e pegou o controle da
TV, escolhendo o aplicativo certo. Lis entrou no cômodo também, silenciosa, e se sentou na
cama, analisando-o. A música de abertura do anime começou e Dante engoliu em seco.
Deitou-se na cama e agarrou um dos travesseiros, assistindo pouco o que passava na TV.
Sua mente estava em curto-circuito. Tudo que ele conseguia pensar era que não podia voltar para
Florianópolis ao mesmo tempo que queria estar lá para honrar o tio.
E o que vinha depois não era novidade para ele. Essa confusão toda só acontecia porque
ele era fraco, um idiota que não sabia como agir como adulto. Tinha se esquecido do tio que
fizera tanto por ele porque agora estava confortável fugindo.
Era só um fim de semana, por que ele não conseguiria ir? Dante já não devia ter se
fortalecido? “E como você vai morrer se voltar pra casa? Se só vai voltar e encarar suas
obrigações como um adulto?” seu pai havia dito uma vez. Não era obrigação dele voltar? Por
que ele não conseguia?
Idiota, estúpido. Você é tão ridículo que nem consegue comer na frente da garota que
gosta. Você nunca vai mudar. Esses foram os pensamentos nocivos que vieram a seguir. Tentou
respirar fundo, mas não havia muita escapatória. Os barulhos da TV começaram a ficar cada vez
mais baixos e abafados, ele mal conseguia sentir a presença de Lis ao seu lado.
Lis? Lis. Dante acabou se lembrando de que ela estava bem ali. Na verdade, o que fez
lembrar foi o toque da mão dela sobre a sua, além do silêncio repentino. Ela tinha desligado a
televisão.
— Dante, o que aconteceu? — Lis perguntou, sua voz suave, os dedos apertando os seus.
— Ah, nada. Eu só…
— Dante.
Lis se inclinou até ele. Retirou seus óculos com delicadeza. As lentes estavam embaçadas.
— Me fala, por favor — ela murmurou, fazendo um carinho em seu rosto.
Teve coragem de retribuir o olhar dela, engolindo em seco. De alguma forma, o toque
contra sua pele fez com que ele voltasse um pouco à realidade. Conseguiu identificar a crise de
ansiedade que se formava ali, os gatilhos que Laura sempre mencionava. Sendo assim, ao se
acalmar, só lhe sobrou a tristeza.
Dante tinha se esquecido do tio. E isso o deixou inconsolável.
— É difícil explicar — disse, desviando os olhos. Mas segurou a mão dela de volta.
— Me explica. Vou fazer de tudo pra entender.
Ficaram em silêncio por um momento, Dante ainda não tinha a coragem de soltar a mão
dela, como se Lis fosse uma âncora que o impedisse de afundar mais.
— É que… — começou. — O Henrique acabou de me dizer que nesse fim de semana é o
memorial do meu tio lá em Floripa. De dez anos da morte dele.
Lis fez um meneio com a cabeça, mostrando que estava prestando atenção.
— E… Eu esqueci. Esqueci completamente. E eu nunca esqueço essas coisas, nunca tinha
esquecido.
— Foi isso que te deixou preocupado? Por ter esquecido?
— Também. Mas… Não seria grande coisa se eu simplesmente fosse pra Floripa no fim de
semana. O Henrique me lembrou, eu não perdi a data, mas…
Engoliu em seco mais uma vez. Seus olhos começavam a arder com as lágrimas
acumuladas.
— Eu não vou conseguir ir — murmurou, sua voz quase sumindo.
— Por quê?
— Porque… Eu simplesmente não consigo. Não posso voltar, não tenho como voltar. Se
eu voltar, eu vou…
Dante soltou um suspiro profundo. Falar só aquilo já o cansara. Mesmo gostando de Lis, se
abrir daquela forma era exaustivo para ele.
— Eu… — tentou recomeçar. — Eu cheguei a te contar que estava com cara de mau na
seleção porque estava com medo, né? Você lembra disso?
— Lembro. Você disse que estava com medo porque precisava muito passar.
— Isso. E eu precisava muito passar, porque não podia mais ficar em Floripa. Eu tinha me
formado e… Achei que fosse morrer se continuasse lá.
Lis fez mais um carinho em seu rosto, encorajando-o. No entanto, isso era tudo que sua
mente lhe permitiria contar. Pelo menos por agora.
— Sua família é meio bosta também, né? — Lis disse para quebrar o clima pesado.
Isso fez com que ele desse uma risada. Algumas lágrimas escorreram por seu rosto e ela as
limpou com carinho e paciência, sem pressioná-lo.
— Muito bosta, de verdade. — Ele riu. — E eu finalmente consegui ir embora, então…
— Você ainda não tem forças pra voltar.
— Não é meio idiota? — Dante fungou, triste. — Não conseguir voltar pra casa?
— Não acho que é idiota. É sua saúde mental. Você não pode adoecer por causa disso.
— Sim, mas… É o meu tio. Meu tio fez tudo por mim, tudo que sou, as poucas partes que
gosto em mim só existem por causa dele. Então, se eu não for…
— Dante, não conheci seu tio, mas por tudo que você contou, acho que ele entenderia.
Ele realmente entenderia, Dante pensou de imediato. Seu tio Klaus sempre foi o primeiro a
desejar que Dante tivesse a própria vida, que conseguisse se reerguer. Ele ficaria tão feliz se
soubesse que Dante tinha conhecido Lis, todo o caos de sua aproximação, o quanto gostava dela.
Seu tio ficaria tão feliz com isso, ele nunca desejaria que Dante voltasse só para se ferir.
Mas ele tinha esquecido. Como ele pôde se esquecer do tio?
— Não sei bem o que fazer — falou. — Eu… não sei o que fazer.
Ficaram em silêncio. Dante pensou que pelo menos tinha conseguido evitar a crise de
ansiedade. Mas tinha estragado seu tempo com Lis, já não havia mais clima para fazer nada ali.
— Ah, lembrei — ela disse de súbito, tão de repente que ele levou um susto. — Hoje é
quarta-feira.
— Ah, é. Você tem que estudar. A gente pode…
— Não é isso. O museu é de graça nas quartas.
Dante demorou para entender. Depois inclinou as sobrancelhas, captando a ideia dela.
— Quer ir? — Lis o convidou, um sorriso tímido em seu rosto.
De novo, lá estava, o motivo de Dante gostar tanto dela. Sempre próxima o suficiente para
que ele pudesse segurar sua mão e acompanhá-la, sem medo de que ela pudesse julgá-lo ou
maltratá-lo.
— Quero. — Sorriu de volta, esticando-se para lhe dar um selinho.

Lis e Dante estavam sentados no chão do MAC, bem em frente ao quadro do tio dele.
Olhando de baixo, o quadro parecia uma onda de cor e respingos, como se quisesse engoli-los. A
arte de Klaus era sempre assim: caos e intensidade, o turbilhão de sensações da complexidade
humana. Dante não se lembrava do tio pintando aquele quadro especificamente, mas pelo nome
da obra, Zorn (Ira), ele se perguntou se Klaus estava bem puto no dia que a pintou, porque era
visível a força das pinceladas.
“A vida é uma merda, garoto. Só não deixa ela te atropelar” ele havia dito uma vez,
fumando um cigarro enquanto jogava tinta em uma tela. Dante se lembrava de só franzir as
sobrancelhas em confusão. E de gritar quando o tio espirrou aquela mesma tinta nos óculos dele,
só para provocá-lo. Dante chorou e Klaus no fim o levou ao Mc’ Donalds como pedido de
desculpas. Aquele era um dos poucos momentos que Dante comia porcaria sem se importar com
o que pensariam dele, seus pais nunca o deixavam ir. Por isso, às vezes, ele chorava de propósito
só para o tio levá-lo.
— O que mais me deixa triste é ter me esquecido dele — falou de repente, quebrando o
silêncio que se alastrava por vários minutos. — Como eu tive a coragem de me esquecer do meu
tio?
Lis respirou fundo, como se refletisse. Abraçou as pernas e apoiou o queixo nos joelhos.
— Você não se esqueceu do seu tio. Você fala dele o tempo todo.
— Falo? — Aquilo o pegou de surpresa.
— Fala. — Lis sorriu. — Sempre que a gente fala de alguma banda ou música, você fala
dele. Quando conversamos sobre as tatuagens, sobre a Gororoba. Você sempre menciona o seu
tio.
Dante sentiu seu rosto aquecer. Não tinha se dado conta. Normalmente, ele nunca
comentava nada sobre o tio, porque era doloroso. Nem mesmo com Henrique ou com os primos
que ainda mantinha contato. Todos sabiam que Dante não conseguia conversar sobre isso.
— Sempre que você está feliz, você fala do seu tio — ela continuou. — Então você não se
esqueceu dele. Esqueceu uma data, essas coisas acontecem. Mas não se esqueceu do seu tio, nem
por um momento.
Voltaram a fitar o quadro. Dante absorveu as palavras dela, um pouco confuso de início.
Ele realmente nunca tinha se dado conta de que falava tanto assim do tio para Lis. Que estava tão
confortável ao lado dela. Era um passo e tanto, isso quase nunca acontecia.
Na maioria das vezes, Dante só sabia se fechar. Mesmo com os anos de terapia, com os
remédios, o instinto dele era sempre se fechar e se afastar.
Mas não com ela, não com Lis. Naquele momento, mesmo com um pouco de medo, tudo
que ele mais queria era falar mais e mais, até que ela soubesse tudo. Queria que ela o conhecesse,
que o entendesse, mesmo que parecesse complexo demais de início.
Porque parecia a coisa mais natural do mundo. E certo. Tudo sempre parecia certo ao lado
dela.
— Posso te perguntar uma coisa? — murmurou, sorrindo. Mas seu coração estava
acelerado.
— Hm? — Ela virou a cabeça para fitá-lo, seus olhos brilhantes o encarando de volta.
— Quer namorar comigo? — Seu sorriso se estreitou, seu coração entrou em descompasso,
sem saber se era alegria ou nervosismo.
Lis abafou uma risada esganiçada.
— Pensou nisso agora? — perguntou.
— Penso nisso desde que a gente se beijou pela primeira vez. Talvez até antes.
— Meu Deus. — Ela escondeu o rosto entre os joelhos, quase explodindo de vergonha. —
Então por que não pediu antes, Dante Krause?
— Porque eu queria que fosse perfeito — admitiu. — Mais aí me dei conta que qualquer
momento com você é perfeito, então pra que adiar mais?
— Você quer me matar, isso sim. — Lis deu um beliscão no braço dele. Dante só riu e
segurou a mão dela, beijando seus dedos. — Para de falar coisas fofas, vai me fazer gostar
demais de você.
— Mas é isso que eu quero. Quero que goste muito de mim. Muito mesmo.
Lis se encostou mais na lateral dele, aninhando-se o máximo que pôde. Mal conseguia
conter a risadinha de felicidade que brotava em seus lábios.
— E parece perfeito, não acha? — Dante voltou a murmurar. — Bem aqui, em frente a
esse quadro?
— Eu gosto. É… Você disse daquela vez que seu tio ia gostar de mim. É verdade?
Dante sorriu para ela.
— Ele ia te amar. Eu ia ter que te esconder, porque vocês nunca iam parar de conversar. E
ele provavelmente te empurraria um filhote de gato pra adotar. Ele e a minha tia sempre
resgatavam.
— Acho que eu ia amar o seu tio também. De verdade.
Dante não duvidava disso. Não duvidava que Lis e Klaus se dariam muito bem. Por isso,
estava feliz por ter feito o pedido em frente ao quadro dele, por ter conseguido mostrar que tinha
alguém ao seu lado de alguma maneira.
Pensou que talvez a melhor forma de honrar o tio fosse mostrando o quanto estava feliz ali,
seguindo o próprio caminho, um passo de cada vez.
— Então tudo bem, Dante Krause. — Lis escondeu um sorrisinho. — Vamos namorar.
— Namorando seu arqui-inimigo, quem diria? — Foi a vez dele de rir. — A Mi vai amar
saber disso. Mais um sucesso pra Besourinha do Amor.
— Argh. Ela vai ser a última a saber.
Lis se levantou do chão e estendeu a mão para ele. Depois o enlaçou pela cintura,
abraçando-o com firmeza. Dante retribuiu o abraço com tudo que tinha.
— E eu já gosto muito de você — ela sussurrou. — Muito mesmo.
CAPÍTULO 18
“Não me importo se a segunda é obscura
Terça, quarta, um ataque do coração
Quinta, nunca olhando para trás
É sexta-feira, estou apaixonado”
Now Playing: Friday I’m in Love
The Cure

24/05/2024
54 dias para o fim do semestre

— Acho que essas são as últimas lâminas pra montar — Lis afirmou. — De verdade, acho
que essas são as últimas!
Emília e Jana deram pulinhos ao redor do laboratório, comemorando. Elas tinham vindo
ajudar na última força-tarefa para refazer as lâminas que Lis perdera, tinham passado o dia
inteiro no laboratório de Joana junto com Lis, Dante e Leandro. E o grupo finalmente tinha
terminado.
Lis tinha conseguido, tinha recuperado as lâminas perdidas antes de junho chegar. Tudo
bem, ainda faltava colocá-las no microscópio, fotografá-las, quantificar os resultados e fazer os
gráficos, mas a maior parte do trabalho estava feita.
Ela ia conseguir se formar no tempo certo, receberia a bolsa do mestrado. Tudo começaria
a dar certo na vida dela, finalmente os dias de glória estavam chegando.
Um dia para se comemorar, com certeza. Ainda mais que, naquele mesmo dia, Dante e ela
faziam um mês de namoro.
Lis o espiou de soslaio, encontrando-o do outro lado da bancada, arrumando o local. Seus
olhares se cruzaram e ele só sorriu, silencioso, bem diferente da barulheira de suas amigas. Ele
tinha se esforçado tanto para ajudá-la, tinha aprendido todas as técnicas em tempo recorde. Lis
não teria conseguido fazer aquilo sem ele, sem sombra de dúvidas.
Era tão bom tê-lo ao seu lado. Lis nunca tinha se sentido daquela forma, nunca tinha
vivenciado aquela cumplicidade intensa, aquela confiança. Era estranho ainda se sentir assim, tão
acolhida, tão apreciada.
Era estranho, mas também era viciante. Lis já não sabia mais como viver sem aquilo.
— E tudo isso sem nem precisar do Gustavo! — Leandro disse quando notou a
comemoração. — Ele disse que já estava pronto pra montar um monte de lâminas assim que
voltasse.
— E quem precisa do Gustavo Choi… — Emília comentou baixo, ácida, e deu uma
risadinha venenosa. — Ele está velho demais pra essas coisas, provavelmente vai precisar de
meses pra se recuperar da viagem.
— Ele é mais novo que eu, Emília. — Leandro riu. Já estava acostumado com as
implicâncias dela contra o aluno de doutorado. — Ele foi meu calouro, sabe? Tá me chamando
de idoso?
— A mentalidade dele é idosa — ela explicou. — É isso. Você é bem jovial, muito mais
enérgico do que aquele rabugento.
— Quando o Gustavo volta mesmo? — Jana perguntou.
— Acho que ele voltou ontem pro Brasil. Mas pro laboratório, só na segunda — Leandro
explicou.
— Já deu de cara com ele, Mi? — Lis questionou a amiga.
— Pela graça divina, ainda não. — Ela soltou um suspiro alto. — Tive paz por mais de um
ano, ainda não me acostumei com o fato de que vou ter que voltar a ver a fuça daquele mala sem
alça, ranzinza…
Antes que ela terminasse de falar, alguém abriu a porta. Para a surpresa de todos, era o
próprio Gustavo Choi. Ele entrou no laboratório quase como se não tivesse ficado fora do país
por mais de um ano.
— …chato pra caralho do Gustavo — Emília por fim terminou a frase, a tempo de fazer
contato visual com ele.
Ela ficou com a boca aberta, encarando-o como se ele fosse um fantasma. Gustavo só
torceu a dele e fechou a porta.
— Que ótimo — ele resmungou. — Você tá aqui.
— Gustavo! — Lis deu um grito. — O que você tá fazendo aqui?!
— Voltei, ué. — Ele deu de ombros. Colocou a mochila no armário com toda a calma do
mundo.
— Você não vinha só na segunda? — Leandro perguntou. Estava tão surpreso quanto
todos ali. Afinal, era sexta-feira e quase noite.
— O jet lag tá me deixando louco. Eu fui direto pra casa dos meus pais quando cheguei e
ninguém me deixa dormir lá. Pensei que aqui pelo menos teria um pouco de paz.
— Por que não foi pro seu apartamento aqui em Niterói?
— Eu fui, mas pensei que já podia adiantar alguma coisa por aqui. O que tem pra fazer, é
só me dizer e…
Leandro e Lis nem o deixaram terminar de falar. Foram pulando até ele, gritando e o
abraçando, felizes em terem o colega de volta depois de tanto tempo. Emília, Jana e Dante
ficaram um pouco para trás, dando espaço ao trio.
— Ele chegou no modo “Gustavo Surtado” total. — Jana riu.
— Ai, eu tava gostando tanto de vir visitar vocês aqui — Emília reclamou.
— Não pode mais vir? — Dante inclinou uma das sobrancelhas, curioso.
— Ela e o Gustavo não se dão muito bem — Jana explicou.
— Eu ainda não entendi o que vocês são um do outro. Primos?
Jana soltou uma gargalhada sonora. Emília mostrou os dentes para ele, zangada. Dante só
conseguiu rir da expressão dela.
— Só porque a gente é descendente de coreanos temos que ser primos?! — Emília rugiu.
— Não, mas é que você disse que se conhecem desde sempre e… — Dante tentou se
explicar.
— Não somos primos. Nossas bisavós eram muito amigas e saíram juntas da Coreia do Sul
para o Brasil. Nossas famílias são muito próximas, mas não há uma única gota de parentesco
entre nós. Cruzes.
— Não há parentesco porque nunca houve a oportunidade. — Jana deu uma risadinha. —
As duas famílias só tiveram filhos homens. Adivinha quem é a primeira herdeira mulher depois
de gerações da família Park?
— Minha aposta é na Emília. — Dante riu.
— Você, querido Dante, está diante da primeira bisneta da família Park e do primeiro
bisneto da família Choi, os herdeiros das famílias que só tem um desejo: virarem uma só.
— Ah, começou. — Emília fez um muxoxo. — Até parece que eu ficaria com esse
ranzinza, chato, antipático, arrogante…
— É estranho te ver não gostando de alguém, Mi — Dante confessou. — A gente não se
conhece há tanto tempo, mas a impressão que tenho é que você gosta de todo mundo.
— Eu gosto. Mas ele me tratou feito idiota a vida inteira só porque é dez anos mais velho
que eu, como se ele fosse o grande rapaz maduro e perfeito e tudo mais e eu fosse algum tipo de
bebê remelento. Não se engane, ele é insuportável.
— Caramba.
— Ele não é dos mais simpáticos — Jana teve que admitir. — Mas não é tão ruim assim.
Ele e a Lis se dão muito bem.
Dante espiou sua namorada com Gustavo. Os dois sorriam e pareciam muito felizes em se
ver. Ele sentiu uma pontinha de ciúmes com a cena.
— Ah, nem se preocupa com isso. — Emília torceu a boca e agitou uma das mãos. — O
Gustavo e a Lis tem uma relação de irmãos. E ele não fica com garotas mais novas e blá-blá-
blá…
— Verdade. Já tentei. Ele ignorou minha existência. — Jana soltou um suspiro. — Uma
pena, porque ele é um gostoso. E eu gosto de caras mais velhos.
— Meu Deus. — Dante riu com o nariz.
Era ótimo se dar bem com as amigas de Lis. Desde que começaram a namorar, os quatro
sempre saíam juntos e ficavam cada vez mais próximos. Ele já até as considerava suas próprias
amigas, algo que o deixava extremamente feliz, já que nunca foi muito bom em fazer amizades.
— Gustavo, esse é o Dante. — Lis empurrou o amigo até ele. — Vocês têm que se
conhecer pessoalmente!
Gustavo se colocou em sua frente, analisando-o da cabeça aos pés. Dante acabou fazendo o
mesmo, já que não tinha outra escolha. Gustavo era bem alto – não tão alto quanto ele, claro – e
tinha um rosto bonito, emoldurado pelo cabelo preto curto. Mas tinha uma expressão neutra que
o deixava impassivo.
— Ah, Dante Krause. — Gustavo estendeu a mão por fim. — O cara que atropelou as
lâminas da Lis.
— Quem atropelou fui eu, na verdade — Leandro o lembrou. Ninguém o escutou de fato.
— O cara que atropelou minhas lâminas e meu namorado, Gustavo — Lis esclareceu.
Tinha um sorriso ameaçador no rosto.
Gustavo franziu o cenho. Depois olhou de Lis para Dante, finalmente captando a
informação.
— Ah — falou. Não esboçou qualquer reação. Só recalculou a rota da conversa. —
Presumo que estejam se dando bem agora, então.
— Na medida do possível. — Dante sorriu e o cumprimentou de volta.
Talvez Gustavo só não tivesse muito filtro social.
— Você chegou bem quando terminamos as últimas lâminas! — Lis contou, alegre. —
Conseguimos refazer tudo!
— Ótimo. Vou começar a reagi-las. Talvez consiga até fotografar hoje. Posso?
— Pode, mas… Você acabou de chegar.
— Vim pra trabalhar mesmo. — Gustavo pegou o jaleco na mochila. — Não consigo
dormir de qualquer forma.
— Jesus Amado — Leandro falou. — A gente pode sair pra comemorar sua volta, cara.
Não precisa…
— Na segunda a gente faz isso — ele os dispensou. — Podem ir, não se preocupem.
Lis e Leandro se entreolharam. Do jeito que ele estava falando, era quase como um “Só me
deixem em paz e vão embora logo.”
— Senhoras e senhores, Gustavo Choi. — Leandro deu uma risada. — Vamos embora,
então. Ele pode mudar de ideia e inventar um seminário de todos os dados que conseguiu no
intercâmbio. Hoje é sexta-feira, pelo amor de Deus.
Todos riram com a declaração. Jana e Emília se despediram primeiro, indo cada uma para
o próprio laboratório. Leandro foi pegar suas coisas na sala de Joana e Dante e Lis juntaram seus
pertences para irem embora juntos.
— Pronta? — Dante perguntou, segurando sua mão.
— Prontíssima. Pra onde vamos?
— Surpresa. Mas você vai gostar. Te deixo em casa pra você se arrumar e já te busco, ok?
— Ok. Um mês! Passou tão rápido!
Entraram no elevador. Ao se verem sozinhos, Lis se esticou para lhe dar um selinho. Seu
sorriso se refletia no espelho, brilhante e enorme. Dante sorriu da mesma forma, alegre,
apaixonado, satisfeito. Era como se todos seus sonhos estivessem se realizando.
E saíram do instituto juntos, animados com a perspectiva da noite.

— Uau — Lis exclamou quando entrou no quarto. — Uau!


Sem conseguir se conter, ela correu para o meio do quarto espaçoso, girando o corpo para
captar todo o cenário. Era enorme, era gigantesco.
Dante tinha reservado uma suíte em um hotel em Ipanema, pertinho da orla. Lis correu até
a grande janela e admirou a vista do Calçadão, as luzes brilhantes deixando tudo ainda mais
bonito.
Era luxo demais. Ela certamente não estava acostumada com nada daquilo.
— Gostou? — Dante perguntou, sem conseguir esconder o sorriso de vitória ao notar a
felicidade dela.
— Eu amei! Minha Nossa Senhora, nem sei como agir. Nunca fui num lugar tão chique.
— Só fica confortável. É pra você relaxar também. Você merece.
Lis deu pulinhos alegres até ele, enchendo-o de beijos. Mas diante de tanta animação, ela o
soltou rapidamente e voltou a explorar o quarto. Retirou os sapatos e deixou a bolsa na cama,
vasculhando o cômodo com os olhos.
— Meu Deus, o que é isso? — Ela quase deu um grito. — É pra gente comer?
Ela estava falando da mesa que havia no canto do quarto, lotada de frutas, doces e uma
garrafa de espumante em um balde de gelo.
— Nossa, nossa. — Lis pegou um morango e se sentou. Provou a fruta e fechou os olhos
com o sabor perfeito, gemendo de satisfação. — Caralho, tá docinho. Nossa, nossa, é muita
coisa, é muito…
Olhou para Dante. Ele tinha se aproximado da mesa e a observava com um profundo
deleite.
Lis corou na hora.
— Ah, a gente pode fazer outra coisa… — gaguejou.
— Come, não quero que passe mal. Você vai se cansar hoje.
Ela deu uma risada barulhenta. Provou mais um morango, tímida e sem saber bem o que
fazer. Não queria deixá-lo desconfortável.
— Tá gostoso? — Ele se sentou também, apoiando o cotovelo na mesa. Tinha um olhar
ininteligível no rosto.
— Muito.
— Hm…
Dante pegou um morango. Estendeu a fruta para ela.
— Aqui — murmurou.
Lis aceitou o agrado, comendo a fruta da mão dele. Dante riu, já meio excitado, e passou o
polegar pelos lábios dela. Depois, pegou outro morango.
— Coloca entre os dentes — pediu.
Ela obedeceu. Assim que mordeu a fruta, Dante a segurou pela base do queixo e
aproximou seu rosto do dele. Lis quase deixou tudo cair quando ele também mordeu, seus lábios
se tocando, molhados pelo suco que escorria. Dante se afastou e deu uma risadinha, mastigando
o resto enquanto vislumbrava o choque no rosto de Lis.
— Realmente, tá uma delícia — disse, limpando a boca.
Meu Pai do Céu, Lis pensou, quase sem conseguir processar a informação. Dante tinha
acabado de comer na frente dela, algo que a deixava muito feliz, mas o tesão que sentia no
momento só a fazia querer arrancar as roupas dele. Era difícil ser racional naquele momento.
— Vem cá — Dante a chamou. — Me dá mais um.
Ele nem precisaria ficar pedindo por muito tempo. Lis buscou outro morango e colocou na
boca, assim como antes, apoiando as mãos em seus ombros para se abaixar, colocando-se entre
as pernas dele. Dante a segurou pelos quadris, fincando as unhas no tecido do vestido claro que
ela usava. Mordeu o morango, mergulhando na mistura de fruta, lábios e língua. Lis gemeu em
sua boca, já sem ar, segurando-se melhor.
— Você é uma delícia… — ele sussurrou. — Minha doce Lis, agora eu quero provar
você…
Não demorou muito para que eles parassem na cama. Lis afundou nos lençóis, de barriga
para cima, esbaforida, e Dante se colocou entre suas pernas, afastando sua calcinha para o lado.
— Minha fruta preferida… — falou, o ar de sua voz em contato com a pele já lhe
provocando arrepios. — Deliciosa, perfeita, só minha…
Lis arqueou as costas quando ele começou a chupar e lamber seu clitóris, arfando. Fechou
os olhos, entregando-se, escutando só o som de seus próprios gemidos.
Quer dizer, seus gemidos e seu celular tocando de repente.
— Merda… — reclamou, apoiando-se nos cotovelos. — Esqueci de colocar no
silencioso…
Dante alcançou sua bolsa. Lis conferiu de quem era a chamada antes de desligar.
— É a minha irmã — disse, franzindo o cenho.
Ele tentou não fechar a cara. Durante o mês que namoraram, Dante teve uma certeza: ele
não gostava nem um pouco da família de Lis. Ainda não tinha as conhecido, mas depois de tudo
que ela lhe contara, era impossível sentir alguma simpatia. Ele só tentava não transparecer
demais.
— Quer atender? — perguntou. Ainda assim, sabia que ela se preocupava.
— Não, a gente tá no meio… — Engoliu em seco. — Vou só colocar no silencioso.
Desligou e colocou o aparelho de volta na bolsa. Mas não demorou nem um segundo para
que ele voltasse a se acender e vibrar. Dante mordeu os lábios enquanto a assistia pegar o celular
de novo.
— Agora é a minha mãe… — resmungou, fazendo uma careta. — Que merda, o que elas
querem?
Desligou de novo. Mas ficou com o aparelho em mãos, encarando a tela. Uma nova ligação
de Isabela chegou.
— Atende, Lis — Dante sugeriu. — Deve ser importante.
Ele duvidava muito.
Lis engoliu em seco de novo antes de atender. Depois respirou fundo e aceitou a chamada.
Dante arregalou os olhos quando ouviu os gritos do outro lado.

Isabela e Gabriel tinham terminado.


Foi isso que Lis comunicou quando conseguiu desligar, depois de passar vários minutos
tentando acalmar a irmã. Dante ainda estava um pouco abalado com a cena, porque, por causa da
gritaria, ele achou por um momento que algo ruim tinha acontecido com Isabela. Mas depois Lis
explicou que ela sempre agia daquela forma. Era por isso que a consideravam “frágil”.
Uma mimada, Dante pensou, repreendendo-se logo em seguida. Ele não devia medir a dor
dos outros, mas estava irritado. Se ela ficava tão mal assim, por que a mãe dela não a levou no
pronto-socorro? Por que era sempre Lis que tinha que resolver tudo? O que ela poderia fazer
diante de uma crise estando a quilômetros de distância, no meio da noite?
Bem, ela já estava fazendo alguma coisa. O clima tinha evaporado totalmente e foi o
próprio Dante que perguntou se ela queria ver a irmã, só para garantir que estava bem. Lis ainda
tremia por causa dos gritos, sem saber direito como agir. Depois concordou em deixar que ele a
levasse até a casa da mãe.
E lá se foi a noite perfeita. Pelo menos, ela o deixou acompanhá-la. Estava tarde e Dante
não queria muito deixá-la sozinha com a família, principalmente com algo envolvendo o ex dela.
Não que ele sentisse ciúmes, mas era uma situação complicada.
Porra, Lis agora tinha que consolar a irmã que resolveu namorar seu ex. Quão fodido era
aquilo? Ele não sabia nem por onde começar para entender.
— Amor, desculpa… — Lis murmurou, segurando a mão dele que repousava na marcha
enquanto dirigia. Henrique tinha emprestado seu carro para que os dois pudessem aproveitar a
noite.
— Hm? — Dante voltou à realidade. Percebeu que estava de cara feia, o que
provavelmente chamou a atenção dela. — Não precisa se desculpar.
— É que você se esforçou tanto pra hoje…
— Tá tudo bem. Não se preocupa com isso. Só não quero que você fique nervosa demais.
— É que a Isabela sempre foi sensível, eu fico com medo…
Dante soltou um suspiro. Talvez aquele comportamento da irmã mais nova tivesse sido
incentivado pela própria Lis. Era um nó sem fim e não seria agora que ela conseguiria desatá-lo.
Tudo que lhe restava era ficar ao seu lado, remediando os danos.
Ele estava com um mau-pressentimento.
Chegaram na rua da casa, Dante estacionou no fim dela, em frente ao portão. Deixou que
Lis saltasse primeiro, buscando o kit médico que Henrique guardava no porta-luvas antes de sair.
Pelo menos ele seria útil de alguma forma.
— Lis! — Isabela surgiu. Correu até a irmã e a abraçou, choramingando. — Finalmente
você chegou! Ele terminou comigo, ele terminou comigo!
— Calma… — Lis a abraçou de volta. — Me conta o que aconteceu…
Isabela começou a contar e Dante se aproximou das duas, incerto. Quando a mais nova
notou sua presença, ergueu os olhos molhados para ele, curiosa.
— Ah. — Lis notou a aproximação. — Esse é o Dante. É o meu namorado.
— Seu… namorado?
— Oi. — Dante tentou sorrir. — Sou o Dante. Prazer.
— Ah… Prazer. Desculpa por ter que te conhecer desse jeito…
Não me importo. O pensamento atravessou a mente de Dante. Tinha ficado irritado de
novo.
Isabela não estava passando mal. Estava triste, magoada. Mas não era uma emergência.
Não algo para tirar a paz de Lis no meio da madrugada.
É a família dela, não tire conclusões precipitadas. Você não conhece a irmã dela pra
saber de verdade que ela não está mal, pensou. Acompanhou as duas para dentro da casa,
silencioso. Dona Brenda os esperava na sala e franziu o cenho quando o avistou.
Era uma péssima noite para conhecer a sogra, ele concluiu enquanto entrava. E ele era
terrível em primeiras impressões, vide toda a confusão que teve com Lis no início do ano, então
Dante teria que se esforçar ao máximo.
— Mãe, esse é o Dante — Lis o apresentou. — Ele me trouxe até aqui. É o meu namorado.
— Hm, prazer, Dante. Sou a Brenda, mãe da Lis e da Isabela. — Dona Brenda mal se deu
ao trabalho de olhar muito para ele. — Lis, querida, você demorou demais. A Isabela passou
muito mal.
— Eu achei que fosse morrer — Isabela voltou a choramingar. — Meu coração ficou tão
acelerado, pensei que estivesse infartando!
— Fica calma, a gente pode…
— Posso te examinar, se quiser — Dante falou de súbito.
As três olharam para ele ao mesmo tempo.
— Ah, é mesmo. O Dante é médico. Ele pode ver se você está bem ou se precisa ir pro
pronto-socorro.
— Você é médico? — De novo, os olhos de Isabela só transmitiam curiosidade.
— Sou. — Ele torceu os lábios. — Senta. Vou aferir sua pressão.
Isabela obedeceu e Dante começou sua anamnese, medindo a pressão, batimentos
cardíacos, qualquer coisa que justificasse a presença dele e de Lis ali, o fato de terem estragado a
comemoração deles.
— Tudo normal — falou, guardando os instrumentos de volta ao estojo. — Um descanso
vai te fazer bem.
— Tem certeza? Ainda estou tremendo, olha. — Ela ergueu a mão.
Realmente, estava tremendo. Tremendo, não infartando, Dante teve que se segurar para
não revirar os olhos.
Isabela fez um beicinho para ele ao notar a falta de reação. Lis franziu o rosto, incomodada
com a cena.
— Melhor a gente dormir aqui — disse para a mãe. — Tá tarde e a Isabela pode passar mal
de novo.
— Ah, sim. Ótima ideia que você teve, querida. Fico mais tranquila com um médico aqui
pra cuidar da Isabela. Que bom que veio, Dante.
— Claro…
— Dorme comigo, Lis? — Isabela pediu. — Por favor?
Lis espiou Dante de soslaio. Ele continuava sem reação alguma, mas era um pouco triste
pensar em deixá-lo sozinho na noite que era para ser deles.
— Não dá, Isa — tentou consolar a irmã. — Mas vou estar no meu quarto com o Dante, tá
bom? Precisando, é só chamar.
— Tá bom… — A irmã mais nova se deu por vencida. Estava um pouco encabulada com a
presença de Dante ali.
E foi para o quarto, fungando. Dona Brenda suspirou antes de se virar para o casal.
— Vou ver se está tudo bem com ela — disse. — Tem um colchonete no quartinho lá fora,
filha. Coloca ele pro Dante dormir. Não fechem a porta, ela pode precisar de vocês.
Dante engoliu em seco, assistindo a sogra se retirar. Certo, era normal que cuidassem de
Isabela em um período difícil, mas havia algo ali que o deixava irado.
Onde aquelas duas estavam quando as lâminas de Lis foram atropeladas e ela ficou
chorando por dias? Quando ela passava mal de tanto trabalhar? Lis também passava por um
período difícil, mas onde a mãe e a irmã dela estiveram esse tempo todo? Era difícil aceitar
aquela diferença. Principalmente quando Lis era a pessoa mais altruísta que existia, sempre
pronta para ajudar qualquer um.
Por que Lis tinha que continuar vivendo daquele jeito?
E o que Dante poderia fazer para salvá-la disso tudo?
CAPÍTULO 19
“Dentro do conto de fadas que é você
Eu quero viver sozinho
Sou egoísta
Ando me perguntando
Se você sabe como me sinto”
Now Playing: Bambi
BAEKHYUN

25/05/2024
53 dias para o fim do semestre

Lis tinha fechado a porta do quarto. Tinha trancado, na verdade.


Ela e Dante tinham conseguido tomar um banho e Lis pegou o colchonete que sua mãe
mencionara e estendido no meio do quarto, bem ao lado de sua cama. Ficou observando Dante
parado no meio do cômodo, ainda com as roupas de sair – ele não tinha outra para vestir naquele
momento – e olhando para a imensidão de pôsteres de Crepúsculo e todas as bandas que ela
gostara na adolescência presos na parede. E pensar que eles estavam em uma suíte de luxo em
Ipanema pouco tempo antes. E agora estavam presos naquele quarto de criança, a noite arruinada
por uma situação que nem era tão dramática assim, Lis se deu conta depois.
— Caguei no pau — resmungou para si mesma, passando a mão pelo rosto. Estava deitada
na própria cama, vestindo um pijama velho e surrado. — Que ódio.
Ela tinha comprado um vestidinho lindo para aquela noite. Era estranho ficar triste por ter
perdido a oportunidade de transar com Dante o vestindo? Nossa, ela tinha pensado naquilo o dia
inteiro, mal conseguiu se concentrar na montagem de lâminas no laboratório.
— O quê? — Dante se virou para encará-la.
— Nada. Só tô pensando… Estraguei a nossa noite.
— Não foi bem você que estragou…
— Eu devia ter só desligado. Mas fiquei com medo e… É tipo a história do menino e do
lobo, sabe? Mas o meu medo é não estar aqui quando for uma crise de verdade, porque um dia
vai ser.
— Lis. — ele semicerrou os olhos, sério. — Não sou a melhor pessoa pra dar conselhos
familiares, mas você precisa começar a dar um limite pra sua irmã e pra sua mãe. Senão, uma
hora, você vai estourar.
— Eu sei. É meio fodido, sabe? A minha cabeça. Às vezes acho que permito que isso
aconteça, porque assim sei que elas ainda precisam de mim. Porque se não precisarem…
Ela soltou um suspiro pesaroso.
— É tudo que eu tenho. Minha família é tudo que eu tenho. Meu pai já foi embora, então…
O que garante que elas não vão me abandonar também? Mas também me sinto como se estivesse
sufocada aqui. Às vezes, tudo que quero é nunca mais voltar pra cá. E me sinto culpada por
pensar assim.
Passou a mão pelos cabelos, angustiada.
— Ninguém merece noite de terapia agora — choramingou. — Não era o que eu queria
mesmo.
Dante deu uma risada. Retirou os óculos e colocou na escrivaninha do quarto. Depois tirou
a camisa e a calça, ficando só de cueca. Seria mais confortável dormir assim.
— Ai, que sina. — Lis suprimiu um sorriso ao fitá-lo. — Olha só pra você. Meus planos
eram sentar na sua cara hoje, não te alugar como meu psicólogo.
— Você nunca aceitou sentar na minha cara antes. — Ele inclinou as sobrancelhas. —
Hoje ia deixar?
— É porque sou pesada. Mas aquele quarto me fez mudar de ideia. Estava disposta a fazer
qualquer coisa naquele quarto.
Dante mordeu os lábios. Era para ser uma risada, mas o som que saiu de sua garganta
pareceu mais um grunhido meio desesperado.
— Linda, não fica falando essas coisas — implorou. — Eu já tô duro olhando pra você
com esse pijaminha ridículo, você não tá facilitando pra mim.
— Quê?
Lis olhou para o próprio pijama. Era um baby-doll antigo, a parte de cima era preta com
bolinhas rosas e a de baixo, os shorts, era o contrário. Talvez estivesse um pouco pequeno, ela
tinha aquele conjunto desde os 17 anos. Agora, o decote acentuava demais seus seios e os shorts
tinham ficado bastante curtos, deixavam escapar a popa da bunda quase que completamente.
— Esse pijama? — Apontou para as peças de roupa.
— É. E o fato de eu saber que você tá sem calcinha.
— Ah. — Mesmo na meia-luz do quarto, ela sabia que seu rosto devia estar tão vermelho
que brilhava.
Lis tinha o costume de dormir sem calcinha.
— E também saber que você tá ficando molhada só de ouvir essas coisas. Porque você
reage a qualquer coisinha que eu digo e isso é…
Outra risada que mais parecia um grunhido. Ele coçou a nuca.
— Mas a gente tá na casa da sua mãe — continuou. — E sinto que ela já não gosta muito
de mim, então…
— É só a gente não fazer muito barulho.
— E você consegue não fazer barulho?
— Tá me desafiando?
Eles se encararam. Havia um brilho selvagem e perigoso no olhar de Dante que arrepiava
cada fio de cabelo dela.
Ficou sentada na beirada da cama. Abriu as pernas, mostrando-se para ele. Mesmo no
escuro, Dante conseguiu enxergar a pele molhada e inchada, quase podia sentir o calor que
emanava dali, tudo escondido parcialmente pelo gancho do short.
— Me come com o meu pijaminha ridículo, então — ela sussurrou. Alisou a própria
boceta, lambuzando os dedos. — Que eu fico bem quietinha.
— Você é teimosa pra caralho… — Lambeu os lábios enquanto se ajoelhava.
Colocou as pernas dela sobre os ombros, puxando seus quadris mais para a borda. Afastou
o tecido solto com os dentes para ter passagem e deu uma lambida no clitóris, sugando com
força. O primeiro instinto de Lis foi abrir a boca para gemer.
Mas aí se lembrou de que tinha mesmo que permanecer silenciosa. Sua mãe tinha um
ouvido quase biônico para essas coisas.
— Teimosa pra caralho… — Dante continuou, falando enquanto alternava os movimentos.
Inseriu dois dedos em sua boceta, deslizando, apreciando a maciez extrema. — Gostosa pra
caralho… Vira de costas, quero ver tudo.
Sem ter outra escolha a não ser obedecer, Lis ficou de joelhos no chão, apoiando o tronco
na cama e arrebitando a bunda. Afundou o rosto nos lençóis quando ele voltou a estocá-la com os
dedos.
— Você quer ficar quietinha, mas não vou aguentar pegar leve contigo hoje, linda. Tô no
meu limite.
— Pensei… — tentou falar. Mas Dante tinha curvado os dedos dentro dela, tocando em
seu ponto mais sensível. — Pensei que fosse super resistente.
— Eu sou. Mas fiquei pensando nisso o dia inteiro. E esse seu pijaminha ridículo… Não
dá, vou ser meio bruto.
Ele se colocou acima dela, afastando novamente os shorts para ter passagem. Abaixou a
cueca, bombeando a ereção, e trocou os dedos pelo pau, afundando-se de uma vez só. Lis fincou
as unhas no lençol, abafando seus gemidos, seus dedos dos pés se contorcendo.
— Ai… — ela choramingou, mas não de dor, de prazer.
Tinha acabado de gozar só com a primeira estocada.
Dante arfou. Não podia acelerar, pois, caso contrário, ele mesmo gozaria naquele
momento. Arqueou as costas, aproximando seus corpos. Mas o espaço era limitado e os dois
eram altos demais, então a posição tinha ficado um pouco estranha.
— Lis — disse quase sem ar. — Vem por cima. De costas. Por favor.
Afastou-se, extasiado com a visão do próprio pau lambuzado com a lubrificação dela, em
tê-la deixado daquele jeito em tão pouco tempo. Atordoado, deitou-se no colchonete, apoiando as
costas na parede.
Lis ainda estava jogada na cama, seu rosto escondido nos cobertores enquanto tentava
recuperar o ar. Sua boceta palpitava pelo orgasmo e seus joelhos tremiam.
Talvez ela não devesse tê-lo desafiado a não fazer barulho.
— Lis — Dante a chamou de novo.
Ela conseguiu se levantar. Fez o que ele pediu e se colocou de costas, circundando seus
quadris com os joelhos. Dante a ajudou a direcionar o pau até sua entrada e Lis sentou devagar,
apesar de não ter dificuldade nenhuma para comportá-lo.
— Puta que pariu — arquejou, fechando os olhos. Era inacreditável o quanto ela sempre
desejava por mais mesmo já tendo tanto.
— Shh, quietinha… — Dante a provocou. Afastou os shorts de novo para ter a visão de
seu pau entrando e saindo devagar à medida que Lis cavalgava.
Em seguida, espalmou as duas mãos em suas nádegas, fincando as unhas ali. Lis gemeu,
mas logo abafou o som com uma risada baixa.
— Queria dar um tapa nessa bunda linda — ele sussurrou. — Mas vai fazer muito barulho.
— Para… — ela implorou. — Eu vou gozar rápido demais se você…
Mordeu os lábios com força. Dante ainda a segurava pela bunda, ajudando com os
movimentos. Separou as carnes, expondo-a um pouco mais. Uma de suas mãos escorregou até o
ponto que os unia e os dedos de Dante espalharam a lubrificação por todo lugar. Lis estremeceu
quando ele roçou em seu ânus.
— Hm… — Ela conseguiu sentir o divertimento na voz dele. — Gosta quando te toco
aqui?
Lis sacudiu a cabeça para cima e para baixo, concordando. Dante circulou o local com a
ponta do dedo, massageando.
— Então você falou a verdade quando disse que estava disposta a fazer qualquer coisa
naquele quarto? — perguntou.
Ela virou a cabeça para enxergá-lo. Havia um sorrisinho provocante em seu rosto que
quase fez Dante perder a razão.
— Não vou te deixar ficar sem nada. — Ele sorriu também. A ponta do dedo que a
circundava a penetrou com suavidade. — Então se você me prometer que vai mesmo ficar
quieta, a gente ainda pode se divertir.
— Ai… — ela grunhiu. Dante levantou o quadril ao mesmo tempo que afundava mais o
dedo, devagar.
— Dói?
— Não… Mas você é muito grande e tudo ao mesmo tempo é… Ai…
— Você aguenta, linda. Sei que aguenta.
Lis apoiou as palmas das mãos no colchonete, para se estabilizar melhor. Dante deu uma
segunda estocada, soltando o ar de uma vez só.
— Eu tô quase gozando, Dante… — Lis sussurrou, sua voz tremendo.
— Porra, você fica tão apertada assim…
Mais uma estocada. Lis prendeu a respiração, quase sem conseguir se mexer, deixando que
ele tomasse conta dos movimentos. Dante não queria machucá-la, tentava fazer tudo com o
pouco de calma que lhe restava, mas seu pau já latejava dentro dela.
— Vai devagar, meu amor. Não goza ainda, você tá tão gostosa assim… — Quando ela
conseguiu relaxar um pouco, ele inseriu mais um dedo. Primeiro fez pequenos círculos, depois os
empurrou até o fim. Ao mesmo tempo, levantou o quadril novamente.
— Ai… — ela choramingou de novo. — É muita coisa, não consigo…
Sem conseguir se aguentar, Lis transferiu o peso para um braço só, usando a mão livre para
alcançar o clitóris. Já não conseguia mais ficar parada, seu quadril se mexeu involuntariamente
para cima e para baixo, acompanhando o ritmo de Dante.
Dante olhou para a cena, assistindo Lis se movimentar ao redor de seu pau enquanto ele
preenchia seu cu com os dedos. Ela rebolou com mais força, mordendo os lábios para abafar o
som. Mas era um pouco inútil, visto a força que começava a se construir com a colisão de seus
corpos. Dedilhou o clitóris em busca do prazer imediato, as sensações vindas de todos os lados.
A onda do orgasmo a arrebatou de uma vez só. Dante sentiu as paredes internas dela o
apertando, o calor selvagem que brotava ali. Aquilo o fez ver estrelas.
— Porra… — rugiu.
Retirou os dedos de dentro dela. Lis quase caiu para frente, ficando de barriga para baixo.
Dante só a colocou empinada para si, abrindo suas pernas e a deixando de quatro, e colou o
peitoral em suas costas, penetrando-a mais uma vez. Apoiou o cotovelo no chão para ter mais
apoio e usou uma das mãos para tapar a boca dela, para abafar os gemidos.
E começou a estocar rápido e forte, seu pau latejando ao sentir as ondas do orgasmo que
ainda a acometiam, o corpo dela se contorcendo de prazer abaixo dele. Lis choramingava e
gemia, a boca atada e seus olhos lacrimejando. Dante gozou forte, bruto, selvagem, ele próprio
tentando controlar o som dos gemidos, jorrando dentro dela.
Ele a libertou e Lis soltou o ar, ainda soluçando de prazer. Dante afundou o rosto nos
cabelos castanhos, recuperando o fôlego, segurando-a por baixo para não desabar em cima dela.
— Acho que… — arquejou. — Acho que arruinei seu pijaminha ridículo.
Com essa declaração, afastou o quadril, separando-os, e deixou que Lis se deitasse. Fitou
as costas dela subindo e descendo, os cabelos esparramados, as alças do pijama caindo pelos
ombros.
E os shorts. Estavam tortos, amassados, molhados e melados. Porra, que visão perfeita…
pensou, quase ficando excitado de novo.
— Lis, tá tudo bem? — Ele riu ao notar que ela ainda estava com a cara enfiada no
colchonete. Fez um carinho em suas costas, retirando o cabelo do caminho.
Conseguiu ajudá-la a se virar, colocando-se entre as pernas dela. Lis ainda respirava com
dificuldade.
— Você é competitivo demais — disse. — Não tem nem como chegar aos seus pés.
— Sei.
— Sério. Não sei se sobrevivo mais um mês. Você sempre faz questão de me destruir.
— Coitadinha. — Dante se inclinou para lhe dar um selinho. — Mas espero que sobreviva.
Planejo ficar muito tempo ao seu lado ainda.
— É? — Lis abriu um sorrisinho. Acariciou os braços dele, contornando as tatuagens. —
Quanto tempo?
Dante sorriu de lado, seus olhos transbordando afeto. Queria dizer “para sempre”, mas
isso talvez a assustasse um pouco.
— O tempo que for, o tempo que desejar — resolveu falar. — Enquanto me quiser, vou
ficar com você.
— Eu te quero sempre — sussurrou, seu corpo se aquecendo com as palavras dele. —
Quero ficar com você pra sempre.
Novamente, o motivo de Dante gostar tanto dela. Já eram tantos que ele tinha perdido a
conta, sempre descobria algo novo que o deslumbrava.
Dessa vez, era a sintonia. Às vezes era inacreditável perceber o quanto estavam na mesma
página. Dar-se conta de que não precisava ter medo de falar nada, que não precisava esconder
um milímetro do que sentia.
— Então a gente fica junto pra sempre. — Ele sorriu um pouco mais, mal conseguindo
controlar as batidas do coração. — Porque eu sou seu. Sou nada além de seu. Estou
completamente na sua mão.
Abaixou-se de novo, tomando os lábios dela com avidez. Lis se enroscou nele, entregue,
apaixonada, desejando cada vez mais.
— Linda — Dante murmurou ao se separar um pouco dela. Beijou seu queixo, sua
garganta, todos os pontos que conseguia alcançar. — Minha linda, minha Lis, minha, minha, só
minha…
— Sua… — Lis também falou em murmúrios, perdendo os dedos de vista em seu cabelo.
— Só sua…
E ficaram ali, apreciando a companhia um do outro, trocando promessas e anseios,
dividindo e compartilhando o deleite que era estarem juntos.
Um mês, um ano, uma década, uma eternidade.
Para sempre.
CAPÍTULO 20
“Garota
Você é uma grande traidora
Ah, garota
Você só fala merda”
Now Playing: Backstabber
Ke$ha

Dante acordou com um chiado perto de sua barriga.


Abriu os olhos vagarosamente, perguntando-se de onde vinha aquele som. Lis estava
deitada com ele no colchonete no chão, ainda dormindo.
E bem entre eles havia um gato preto enorme e gordo, de pelo longo. E chiando e rosnando
para Dante.
— Fitzwilliam Darcy — murmurou para o gato. — Então a gente finalmente se conheceu.
O gato chiou de novo, mas não fez nada para sair de perto dele, deitado feito uma bola
entre os dois. Lis se remexeu e resmungou, puxando-o para mais perto. Sr. Darcy se acomodou
entre os braços dela, quase como um ursinho de pelúcia, e lambeu as costas da mão da dona,
ronronando.
— Dadá, se comporta — disse para o gato, ainda grogue de sono.
— Acho que ele ficou com ciúmes. — Dante tentou fazer carinho, mas o gato só mostrou
os dentes de novo.
— Ele detesta todo mundo, menos eu. De verdade.
— Vou conseguir te conquistar um dia, Sr. Darcy, igual fiz com a sua mãe. Ela também
não gostou de mim de início.
— Ele é um desafio maior do que eu, pode ter certeza…
Lis se levantou. Sr. Darcy se irritou com a movimentação e saiu pela janela, de onde
aparentemente tinha vindo. O quarto de Lis dava para a área telada onde ele sempre costumava
ficar.
— Vou tomar um banho e ver como minha irmã está — falou enquanto coçava os olhos.
— Vamos tentar ir embora antes do café da manhã, pra evitar problemas.
Buscou as roupas que usara antes, destrancando a porta e rumando para o banheiro. Tomou
o banho o mais rápido que pôde, na tentativa de encurtar o tempo que teriam que ficar na casa de
sua família. Ainda estava irritada com a comemoração arruinada, mesmo que o resto da noite
tivesse sido maravilhoso.
Foi maravilhoso por causa de Dante, porque ele sempre dava um jeito de remediar uma
catástrofe. Mas ele poderia ter ficado chateado, e com razão. Lis o colocou em segundo plano
para resolver algo que ela nem devia se meter.
“Você precisa começar a dar um limite pra sua irmã e pra sua mãe. Senão, uma hora,
você vai estourar” Dante havia dito. O problema era que ela nunca via a situação como um todo.
Sempre via a irmãzinha e a mãe passando por algo ruim e corria para ajudar, era o
comportamento natural de uma filha e irmã mais velha.
Mas Isabela tinha se envolvido com Gabriel. Eles começaram a namorar quatro meses
depois do término de Lis. E ela nunca se colocou contra o namoro, só não queria ser envolvida
nele, era o mínimo que podia fazer pela sua sanidade mental.
Envolver-se nos problemas deles era o limite que não podia ultrapassar. No entanto, ela
acabou o ultrapassando ao arruinar a comemoração perfeita que seu namorado tinha organizado
para socorrer o término de Isabela.
Pelo menos eles terminaram e tudo vai voltar ao normal agora, pensou ao sair do
banheiro. Gabriel agora era passado para as duas e quem sabe um dia elas nunca mais
precisassem tocar nesse assunto.
— Isa… — falou enquanto entrava no quarto. Isabela estava deitada na cama, mas
acordada. — Como você está?
Lis se deparou com um olhar furioso da irmã. Aquilo a deixou surpresa.
— Não quero falar com você — Isabela disse.
— Quê?
— Pode ir embora, Lis. Não quero falar contigo.
— O que eu te fiz?
— Pra que você veio, hein? — Isabela se sentou na cama, enraivecida.
Lis deu um passo para trás, confusa.
— Eu vim porque você me chamou — respondeu, esticando as sobrancelhas.
— Eu te chamei pra me consolar. — Lágrimas escorreram pelo rosto dela, uma verdadeira
cascata. — Não pra dar pro seu namorado aqui!
— Como é que é?
— Você já teve a insensibilidade de trazer seu namorado aqui quando eu acabei de
terminar meu relacionamento. E ainda teve a coragem de se trancar no quarto com ele quando eu
mais precisava de ajuda! Eu fui bater na sua porta, Lis. Só consegui ouvir os barulhos que vocês
faziam.
— Pelo amor de Deus, Isabela! — Lis quase rosnou para a irmã. — Eu falei pra você bater
caso estivesse passando mal!
— Eu tava muito triste, não conseguia dormir! Você veio pra me consolar!
— Eu vim pra te socorrer. Socorrer. Não ficar segurando sua mão à noite inteira por causa
da porra do Gabriel!
— Como você pode ser tão egoísta?
— Egoísta?! Você tem a coragem de me chamar de egoísta?
— Você nunca me apoiou no meu namoro. — Isabela chorou mais. — Aposto que foi por
isso que o Gabriel…
— É óbvio que eu nunca apoiei esse seu namoro ridículo! — Lis gritou. A raiva que sentia
fazia seu corpo inteiro tremer. — Você quis namorar a porra do meu ex!
— Você veio pra cá com seu namorado pra esfregar na minha cara o quanto tem a vida
perfeita, só porque não consegue superar que eu e o Gabriel nos apaixonamos sem querer!
— É isso, já deu — Lis sibilou. Deu as costas para a irmã, saindo do quarto. — Tô indo
embora, então.
— Isso, vai mesmo! — Isabela berrou. Seguiu a irmã até o corredor. — Egoísta, invejosa!
— Quê? — Lis se virou de volta. — Acha que eu tenho inveja de você?
— Só isso explica você querer vir até aqui esfregar seu namorado na minha cara e…
— Vai tomar no cu, Isabela. Esfregar meu namorado na sua cara? Pra quê? Pra você tentar
ficar com ele se a gente terminar?
— Você fala como se eu tivesse feito de propósito!
— Foda-se se foi de propósito ou não. Eu nunca faria isso com você.
— Olha só o que você tá fazendo! — Isabela gaguejou. — A gente tá brigando porque
você não consegue superar…
— A gente tá brigando porque aparentemente você não consegue me ver feliz! — Lis
rugiu. — Pelo fato de eu aparecer com meu namorado aqui te deixar mais zangada do que a
porra do teu término!
— Você veio pra me consolar!
— Eu vim porque você fez parecer que estava morrendo! Eu estraguei a porra da
comemoração perfeita que o meu namorado fez pra mim de um mês de namoro pra vir correndo
até aqui te ajudar. E agora tenho que ouvir você dizendo que eu tinha que secar todas as suas
lágrimas pelo término de um namoro que nem devia ter começado!
— Para de gritar comigo! Você nunca grita comigo, por que tá fazendo isso?
A gritaria chamou a atenção de Dante e Dona Brenda. Ele saiu do quarto a tempo de ver
Isabela soluçando no corredor enquanto a mãe corria até elas.
— O que houve? — Dona Brenda perguntou. — Vocês estão brigando?
Isabela abriu mais o berreiro.
— A Lis que tá! — gritou. — Por que você tá fazendo isso comigo?
— Lis, o que falou pra ela?
— Eu não falei nada, eu só fui…
— Ela se trancou no quarto à noite inteira pra transar com o namorado! E agora disse que
eu nem devia ter começado a namorar com o Gabriel! Só porque a gente se gostou sem querer.
Dante arregalou os olhos. A falta de noção de Isabela o deixou extremamente
constrangido.
— Eu não tinha falado pra deixarem a porta aberta? — Dona Brenda falou. — Como pôde
ser tão irresponsável, Lis? Sua irmã passou mal e…
— Ah, não fode. — Lis espremeu os olhos com a ponta dos dedos. Era inacreditável.
— Não fala assim comigo, Elis!
— Mãe. A Isabela não estava passando mal. Ela estava triste, só isso. Vocês não deviam
ter me envolvido nisso. O Gabriel é meu ex, a situação é ridícula e desconfortável. Não
justificava vocês quererem me tirar do meu aniversário de namoro só pra…
— Um mês de namoro nem é tão importante assim! — Isabela berrou. — Por que isso
seria mais importante do que a sua irmã?
— Minha vida não gira em torno de você, Isabela! — foi a vez de Lis gritar. — Pode
parecer inacreditável, mas eu tenho uma vida além de ser indulgente com a porra de uma
mimada!
— Não me chama de mimada!
Isabela ameaçou partir para cima de Lis. Dona Brenda a segurou a tempo, mas Dante já
tinha se aproximado e conseguiu afastar a namorada, colocando-se entre elas.
— Acho melhor a gente ir embora agora… — ele sugeriu, cauteloso.
— Já falei pra ela ir embora mesmo! — Isabela continuava gritando. — Egoísta, invejosa!
— Para de ser infantil, garota — Lis rosnou.
— Ah, é? Então se eu sou tão mimada e infantil assim, leva aquele seu gato idiota com
você, porque não vou mais cuidar dele! Já que eu não sirvo pra mais nada além de te dar
trabalho!
— Quê?
Todos ficaram em silêncio. Isabela fungou e choramingou, abraçando a mãe.
— Você não pode tá falando sério… — A voz de Lis tremeu.
— Tô. Não tenho cabeça pra cuidar dele.
— Mãe. Isso é…
— Lis. Talvez por um tempo seja melhor…
— E onde eu vou deixar ele, mãe? Na república não pode e…
— Fala com as suas amigas, seu namorado. — Dona Brenda suspirou. — Só por um
tempo. Até a Isabela melhorar.
— Isso só pode ser brincadeira.
— Você é muito irresponsável, Lis. Brigar com sua irmã desse jeito quando ela está mal,
sabendo que ela é frágil. E esse gato é história sua, você que tinha que lidar com ele, não a gente.
Lis sentiu o ar lhe faltar. Raiva, tristeza, confusão, tudo se embolava em sua cabeça. O que
faria com o Sr. Darcy agora.
Como puderam fazer isso com ela?
— Tá bom — arfou de raiva e angústia. — Eu levo o gato. Mas nunca mais volto aqui.
— Não seja tão… — sua mãe tentou dizer.
Ela nem conseguiu ouvir o resto, tudo virou um borrão. Deu as costas para todo mundo,
caminhando até a área de serviço. Pegou uma caixa de areia limpa, colocou em uma sacola. Fez
o mesmo com a ração, os potinhos de comida, todos os pertences de seu bichinho. Sem nem
respirar direito, pegou a caixa de transporte.
Sr. Darcy estava deitado em cima da máquina de lavar. Soltou um miadinho para ela que a
fez voltar para a realidade. Lis suprimiu um soluço com tudo que tinha antes de abrir a caixa e
chamá-lo para dentro.
— Vem, meu amor. A gente vai… — gaguejou. Sem nem pestanejar, o gato entrou na
caixinha e se deitou.
Para onde eles iriam? Como ela resolveria aquele problema? Não poderia deixá-lo na
república, Dona Etelvina a expulsaria. Também não poderia deixá-lo com Dante, por causa de
Gororoba. Ela era uma gata idosa e Sr. Darcy poderia estressá-la demais, era perigoso.
O que ela faria agora?
— Lis! — Ouviu Dante chamá-la. Foi aí que se deu conta de que já tinha saído de casa e
estava andando a esmo pela calçada. Tinha até esquecido a bolsa, Dante estava com ela
pendurada no ombro.
Isso foi o suficiente para que desabasse.
— Meu gato. — Abraçou a caixa de transporte, suas mãos trêmulas a sacudindo, as
lágrimas escorrendo sem piedade. — O que eu vou fazer com o meu gato, o que eu vou…
— Lis. — Dante se aproximou. — Respira fundo. Me dá a caixa.
— Eu não tenho onde deixar ele, o que eu vou fazer, ele não tem onde ficar, não posso
abandonar ele…
Sua visão ficou estreita, como se paredes invisíveis quisessem esmagá-la. Dante tinha
pedido que ela respirasse fundo, mas era difícil. Parecia impossível.
— O que eu vou fazer, o que eu vou fazer, eu não devia ter feito aquilo, eu não devia ter
brigado… — repetiu sem parar.
— Lis, olha pra mim — ele mandou. Segurou o rosto dela com as duas mãos para forçar o
contato visual. — Fica calma, respira fundo. Vai ficar tudo bem, olha pra mim.
Ela conseguiu olhar. Dante tirou a caixa das mãos dela e a colocou no chão. Depois a
abraçou com força, aninhando-a entre os braços.
— O que eu fiz de errado…? — foi o que Lis conseguiu dizer no fim. Afundou o rosto no
ombro dele, soluçando pesadamente.
— Você não fez nada de errado.
— Então por que elas me odeiam tanto…?
Por que elas me odeiam tanto? Essa era a pergunta que ficou reverberando em sua mente.
De novo e de novo.
CAPÍTULO 21
“Diga-me tudo de que precisa
Todos os segredos que você guarda
Mesmo que isso leve o dia todo
Mesmo que isso leve a noite toda”
Now Playing: You Before Me
Hoobastank

Lis acordou dentro do carro. Lembrava-se pouco de como tinha conseguido chegar ali, mas
sabia que tinha tido uma queda de pressão brusca e que seu nariz começou a sangrar como
sempre. Dante, de alguma forma, tinha conseguido socorrê-la e colocá-la no carro.
Piscou algumas vezes, assimilando o cenário. Não estavam mais na rua da casa de sua mãe,
estavam no estacionamento de um prédio que não era o de Dante. As janelas estavam fechadas e
o ar-condicionado estava no talo, o assento em que ela se sentava estava todo inclinado para trás.
Lis ouviu um miado de Sr. Darcy no banco de trás, o que a fez se lembrar de tudo que ocorrera.
— Como você tá? — Ouviu Dante ao seu lado.
Ela mal tinha coragem de olhar para ele. Dante ter escutado tudo aquilo a deixava
mortificada. Se Lis tivesse feito as coisas de forma diferente, a essa hora eles estariam acordando
na suíte linda em Ipanema, felizes, satisfeitos. Olhou para o próprio vestido, notando que havia
algumas manchas de sangue na gola e no colo, Lis provavelmente limpara o nariz ali no meio da
crise. O vestidinho lindo que tinha comprado para ele, todas as expectativas que Dante devia ter
criado.
Tudo destruído. E agora ele tinha mais um problema para lidar. A pobre garota e seu gato
que não tinham para onde ir.
— Eu tô bem — murmurou. — Trabalhei demais ontem, a gente não dormiu direito… Vou
ficar bem, isso sempre acontece e…
— Lis. Você não tá bem.
— Eu… Mas vou ficar, vou dar um jeito. Não precisa se preocupar.
— Como não vou me preocupar? — Dante franziu o cenho. — Você quase desmaiou na
minha frente.
— Me desculpa…
— Não precisa se… — Dante respirou fundo, interrompendo-se. Espremeu os olhos com
os dedos, na tentativa de se acalmar. Estava soando ríspido demais e não era o que queria.
Ele estava simplesmente irado. Foi por muito pouco que ele não voltou até a casa da mãe
de Lis e falado todas as barbaridades que estavam presas em sua garganta. Mas Lis estava
passando mal e fazer isso só pioraria a situação.
Mas ele estava furioso. Fúria era até pouco para descrever.
“Então por que elas me odeiam tanto…?” Ouvir isso dela partiu seu coração. Toda aquela
dor e ele não podia fazer nada para ajudar, não tinha a capacidade para sarar aquela ferida.
E doía nele também. Porque sabia o quanto era terrível ser desprezado pela família. Ele já
tinha se conformado com isso, mas Lis não. “É tudo que eu tenho. Minha família é tudo que eu
tenho.” Essa mesma família tinha a jogado fora no primeiro ato de rebeldia. Isabela fez aquilo
com Lis por puro despeito.
— Vou falar com a Dona Etelvina — Lis disse. — Vou ver se consigo deixar o Sr. Darcy
só por alguns dias na república, aí depois…
— Não precisa — Dante a cortou. — Já resolvi isso.
Lis engoliu em seco. Estava com vontade de chorar de novo.
— Eu não me sinto bem em juntar o Dadá com a Gororoba, Dante. Ele é arisco e pode
machucar…
— Eu sei. Falei com a Mi. Ela disse que pode ficar com ele. A gente tá no prédio dela.
Lis se deu conta finalmente de onde estava. Conseguiu identificar a rua que Emília morava
no Ingá. Era mesmo verdade.
Dante saiu do carro primeiro. Abriu a porta do carona para ela, ajudando-a a se levantar.
— Vai devagar. Me dá sua mão — pediu.
— Não precisa, eu consigo…
— Lis.
Ela obedeceu. Conseguiu ficar de pé e assistiu Dante pegar as coisas de Sr. Darcy e a caixa
de transporte. Ele trancou o carro e os dois subiram até o apartamento de Emília em silêncio.
— Meu amorzinho! — Emília gritou assim que abriu a porta. Correu para abraçá-la. — O
que aconteceu?
— Ah, é difícil de explicar…
— Não tem problema, a gente vai resolver isso! — Emília parecia mais animada do que o
normal. Chegava a estar com os olhos vidrados. — Agora pode me dar seu fofinho, eu vou
cuidar muitíssimo bem dele!
Ela não estava nem piscando, Dante e Lis conseguiram notar.
Não estava nem respirando. Emília estava prendendo a respiração por algum motivo.
— Mi, tá tudo bem? — Lis franziu o cenho, olhando para a imagem de sua amiga com os
braços estendidos para pegar a caixa. Os olhos dela estavam lacrimejando.
— Tá tudo ótimo, é só me dar ele e…
Antes que conseguisse terminar a frase, todos ouviram uma porta sendo aberta no fim do
corredor. Olharam por reflexo, identificando a pessoa que saía.
Gustavo Choi estava bem ali, saindo do apartamento com uma sacolinha de lixo nas mãos.
Vestia um moletom e chinelos, bem diferente da imagem arrumadinha de sempre dele no
laboratório.
Ele avistou o grupo parado no meio do corredor e percebeu Emília segurando a caixa de
transporte. Franziu o cenho, confuso.
— O que estão fazendo? — perguntou.
— Vou ficar com o gato da Lis por um tempo, nada demais. Não se mete — Emília falou
quase como uma metralhadora, sem olhar para ele. — Vamos entrar, gente. Preciso saber como
cuidar desse fofinho e…
— Você é terrivelmente alérgica a gato — Gustavo afirmou. — Já te vi quase tendo um
choque anafilático porque fez carinho em um quando criança.
— Quê? — Lis quase deu um grito. — Você é alérgica?!
— Detalhes. Ele tá exagerando, eu tomei remédio.
— Não posso te colocar em risco, Mi… Nem todo o remédio do mundo vai ser o suficiente
com você tendo contato direto com ele. Por que não disse nada?
— Porque eu queria te ajudar e… — Emília soltou o ar. Sua respiração era quase um
chiado.
— Você só tá atrapalhando — Gustavo a interrompeu, ríspido.
Deu uma olhadela em Lis e Dante, os dois com uma expressão pesada no rosto. O que quer
que estivesse acontecendo ali, era sério.
— Eu fico com o gato — falou, suspirando. — Me dá ele aqui.
— Não posso te dar trabalho desse jeito, Gustavo. Você acabou de chegar.
— Que trabalho um gato pode dar? — Ele fez uma careta entediada. — Anda, vem. Coloca
ele lá em casa e me explica o que preciso fazer.
Ele praticamente arrancou a caixa das mãos de Emília. Trocou a sacolinha de lixo por ela e
deu as costas para todos, voltando ao apartamento. Emília quis xingá-lo, mas só conseguiu
espirrar em resposta.
— Vocês são vizinhos também? — Dante perguntou, curioso.
— Isso foi coisa do meu pai quando eu passei pra UFF. — Emília fez um beicinho de
desgosto. — Pra “cuidar” de mim. É quase uma maldição, sabe?
Emília tentou suavizar o clima pesado ao falar mal de Gustavo. Mas nem Lis nem Dante
pareciam bem o suficiente para piadinhas. Ela tinha que manter o foco no bem-estar da amiga.
— Vão lá com ele — disse. — Eu vou logo depois.
— Mas e a sua alergia?
— Ele fez parecer como se eu fosse cair dura só por causa de um gatinho! Idiota. Podem ir.
É sério.
Assistiu Dante segurar Lis pela cintura, conduzindo-a pelo caminho. Ele tinha contado
muito por alto sobre o que tinha gerado aquele problema pelo chat do Instagram, mas Emília se
sentiu péssima ao averiguar o estado da amiga. Lembrou-se também de que o dia anterior tinha
sido o aniversário de namoro deles, o quanto os dois estavam animados. O que quer que tivesse
acontecido, tinha estragado a comemoração, eles ainda estavam com roupas de sair.
Triste, Emília foi até a lixeira do andar e jogou a sacolinha de Gustavo fora. Soltou um
suspiro que se misturou com outro espirro e voltou para casa.
Ela teria que pegar uma máscara.

— Ele vai achar que eu abandonei ele — Lis sussurrou, sentada encolhida no sofá de
Gustavo, assistindo Sr. Darcy explorar o apartamento. — Ele nunca tinha saído de casa antes.
O gato estava agachado, com o pelo arrepiado e cheirando tudo que podia da sala
organizada. Emília observou o bichano, ajeitando o elástico da máscara no rosto ao mesmo
tempo.
Ela era realmente muito alérgica a gato. Aquela máscara devia ser resquício da pandemia.
— Você pode visitá-lo sempre que quiser — Emília tentou consolá-la. — Mais até do que
quando ele morava com sua mãe.
Podia até ser verdade, mas a situação deixava Lis desconfortável. Ela amava Gustavo, mas
não era tão próxima dele quanto de Emília, então não se sentia à vontade de ir todo dia em sua
casa para isso.
E por quanto tempo poderia deixá-lo ali? Aquilo era um remendo temporário. Mas Lis não
tinha dinheiro para alugar um apartamento sozinha ou se mudar para um lugar melhor. Ela mal
conseguia pagar a república capenga que morava, sua mãe a ajudava com o aluguel.
Ela tinha deixado todo mundo desconfortável com aquele problema. Sua mãe, sua irmã,
Dante, Emília e Gustavo. Todos agora estavam sendo obrigados a resolver algo que era de sua
responsabilidade. Dante ia querer levar Sr. Darcy para casa e isso incomodaria Henrique, poderia
prejudicar a própria gata dele.
Tudo porque Lis não conseguiu se controlar. Ela devia saber bem que bater de frente com
Isabela nunca era bom, sua mãe sempre ficaria do lado dela.
“Isso, vai mesmo! Egoísta, invejosa!” Os berros da irmã ainda ecoavam em seus ouvidos.
Por que doía tanto ouvir aquilo?
Lis era mesmo egoísta e invejosa? Talvez ela fosse. Ela às vezes sentia inveja de Isabela.
De como todos a viam, como cuidavam dela, como sempre tinha apoio.
Por que ela não conseguia ser assim? O que ela sempre fazia de errado para ser tratada
daquele jeito? Era difícil de entender.
É porque você é insuficiente, pensou. As pessoas te abandonam porque você nunca é
suficiente pra elas. Nem seu gato podia contar com ela, estava sendo abandonado na casa de um
estranho por causa de sua incompetência.
Soltou um suspiro. Depois ficou assistindo Emília bisbilhotar o apartamento de Gustavo,
mais curiosa do que qualquer outra coisa.
— Nunca tinha vindo aqui? — perguntou. Pelo menos aquilo a distraía um pouco.
— Eu não. — Emília fez pouco caso. — Vocês não acreditam quando eu digo que não
somos nada próximos.
— Sei. Não é você ali naquela foto?
Emília olhou para onde Lis apontava. Era uma foto das duas famílias, Park e Choi, um
pouco antiga. Lis conseguiu identificar Emília ali porque ela era a única garotinha vestindo um
hanbok,[12] já que o resto das crianças eram meninos.
— A gente só é forçado a esbarrar de vez em quando. Nossas bisavós moram juntas, você
sabe. — Emília analisou a foto. — Mas ele não me deixou nem regar as plantas dele enquanto
estava na Coreia. Deixou tudo com a mãe dele, sendo que somos vizinhos.
Gustavo e Dante surgiram assim que ela terminou de falar. Dante tinha se incumbido de
explicar tudo que ele precisava para cuidar de Sr. Darcy, desde a quantidade de ração a como
limpar a caixa de areia.
Gustavo olhou para Emília. Bufou e retirou o porta-retrato das mãos dela, colocando no
lugar. Provavelmente estava um pouco irritado com sua presença ali dentro. Depois foi até Lis.
— O que mais preciso saber sobre seu gato? — perguntou. A expressão impassiva dele
deixava tudo ainda mais bizarro.
— Gustavo, você tem certeza de que quer fazer isso? É muita coisa e…
— Já falei que vou fazer. O Dante me explicou o básico, mas como o gato é seu…
Lis engoliu em seco. Bem, ela não tinha para onde correr. Era melhor aceitar a situação
logo.
— Ele… — começou. — Ele é bem arisco. Não gosta de estranhos, então não vai querer
fazer muito contato com você. Mas ele ama comer sachê, então é só dar pra ele que…
Respirou fundo. Quanto mais falava, mais triste ficava. “Como você pode ser tão
egoísta?” As acusações de Isabela ainda não saíam de sua cabeça.
— Ele é um bom gatinho — falou, sua voz quase sumindo. — Gosta de ficar no canto dele
e fazer as coisinhas dele. Não dá tanto trabalho assim, só não gosta muito de pessoas em geral.
— Ótimo, consigo lidar com isso. Não precisa se preocupar. Tenho certeza de que eu e o
Sr. Dávis vamos nos dar muito bem.
— Sr. Darcy — Emília o corrigiu. — O nome dele é Sr. Darcy.
— Que seja. Resolvido. Acho que você precisa descansar um pouco, Lis. Sua cara tá
péssima. Quer dormir um pouco no quarto de hóspedes? Ele tá arrumado.
— Não precisa! — Lis se levantou rapidamente. Ainda estava um pouco zonza, então o
movimento lhe deu dor de cabeça. — A gente já vai embora, não vamos mais te incomodar.
— Não estão me incomodando. — Ele deu de ombros. — Era só um problema pra ser
resolvido. Só isso.
Lis agradeceu mentalmente pela gentileza do amigo. A praticidade de Gustavo era muito
boa em momentos como esse.
— Vem, vou te levar pra casa. — Dante se colocou ao seu lado, fazendo com que ela se
apoiasse nele. — Muito obrigado, Gustavo. E Emília. Obrigado por ter se prontificado a ajudar.
— Não precisa agradecer… — Emília inclinou as sobrancelhas.
Ela os acompanhou até o lado de fora, despedindo-se do casal. Dante colocou Lis no carro
e entrou, silencioso. Lis abraçou o próprio corpo, angustiada.
Ficou observando a paisagem passar pela janela, perdida em pensamentos.

— Hm, acho que vou voltar pra casa — Lis murmurou assim que Dante aferiu sua pressão
pela última vez, já no apartamento dele.
Tinham ido direto para lá depois de deixarem Sr. Darcy com Gustavo e acabaram
encontrando Henrique e Jana no local. Ela levou um susto com a fisionomia da amiga e os
respingos de sangue no vestido, mas Lis não teve forças para explicar nada. Sendo assim, Dante
só a conduziu até o quarto dele, para que pudesse descansar.
Já era quase hora do almoço e Lis não queria mais incomodá-lo. Dante já devia estar farto
daquilo tudo.
— Dorme aqui hoje — ele disse, guardando o aparelho de pressão na gaveta.
— Ah, melhor não. Eu tenho uns artigos pra ler e…
— Dorme aqui hoje, Lis. Não vou ter paz com você longe nesse estado.
Lis engoliu em seco. Lá ia ela, dando trabalho demais para os outros.
— Me desculpa… — pediu.
— Por que você tá pedindo desculpas?
— Porque tô te dando trabalho…
Dante só suspirou em resposta.
— Quer tirar o vestido? — sugeriu. — Posso colocar pra lavar.
Ela aceitou a sugestão. Deixou que ele a ajudasse a retirá-lo, mais uma vez pensando que
tinha estragado tudo. Dante dobrou a roupa, colocando-o de lado, e buscou algo que ela pudesse
vestir. Novamente, era a camiseta de anime dele e short de cetim da primeira vez.
Lis vestiu tudo com cuidado, aspirando o perfume do sabão que Dante sempre usava para
lavar suas roupas, a familiaridade que lhe trazia.
Aquilo a fez relaxar um pouco. E relaxar naquele momento significava voltar a chorar.
— Não chora… — Dante se ajoelhou em frente a ela. Limpou cada lágrima com cuidado.
— Tá tudo bem.
— Não tá…
— Tá, sim. Falei com o Gustavo agora a pouco, o Sr. Darcy deitou na cama dele e ficou
ali. Ele até me mandou uma foto. Quer ver?
Lis aceitou. Dante lhe entregou o celular e ela viu a foto que seu amigo mandara. Sr. Darcy
tinha deitado no travesseiro de Gustavo, bem ao lado dele.
Aquele gato tinha se dado bem com alguém além dela? Seria a primeira vez.
— Acho que as personalidades deles são parecidas — Dante afirmou. — Vão acabar se
dando bem por isso.
Ela conseguiu dar uma risada com o comentário.
— Viu? Vai dar tudo certo — Dante continuou.
— É que… Eu me sinto mal por causar tantos problemas pra tanta gente. Eu só…
decepcionei todo mundo.
Limpou o rosto com as costas da mão, infeliz. As lágrimas já estavam impossíveis de
conter.
— Eu mesma estou muito decepcionada. Nada sai do jeito certo, eu sempre acabo
estragando tudo. Por que fui resolver consolar a Isabela? Por que fui brigar com ela? Por que fiz
isso sabendo que tudo ia desabar quando eu falasse alguma coisa? Se tenho tanto medo de ser
abandonada assim, por que continuo decepcionando as pessoas?
— Lis…
— Eu só queria… Só queria que gostassem de mim. Sem nada em troca. Queria que um
dia gostassem de mim sem que eu precisasse fazer algo pra elas, que um dia chegasse ao ponto
que tudo que fiz fosse o bastante. Mas nunca é suficiente. Não importa o que eu faça, nunca é
suficiente. Você disse que eu devia dar limites pra elas, mas eu sabia que se desse, elas me
jogariam fora. E eu só tinha que ter aguentado mais um pouquinho, sabe? Em breve eu ia
começar o mestrado, seguiria com a minha vida e ia ter a distância perfeita pra elas não me
abandonarem, mas também não me usarem. Porque sei que isso é tudo que teria delas.
Ficaram em silêncio. Tinha como Lis se sentir pior? Agora estava alugando Dante com
seus problemas, se fazendo de pobre coitada. E se ela acabasse o perdendo também? Ele já
estava zangado, por que Lis estava piorando a situação se lamuriando daquele jeito?
— Eu… — Limpou o rosto de novo. Depois fungou e respirou fundo. — Tá tudo bem.
Vamos fazer alguma coisa, a gente podia…
— Me dá sua mão — ele pediu de repente.
Lis acabou obedecendo e estendeu a direita, deixando que Dante a segurasse com a palma
voltada para cima. Ele passou os dedos pelos sulcos e linhas, apertando seus dedos por um
momento.
— Tudo que você tem que se importar está bem aqui. — Apontou para o centro da palma
dela. — O resto que você não consegue alcançar não importa.
Ela espremeu os lábios, confusa.
— O que sua família acha de você, os problemas delas, a vida delas. Isso está fora do seu
alcance. E se não dá pra alcançar, se está fora do seu controle, não precisa se importar com isso.
Mais um carinho em sua mão. Lis já estava chorando de novo.
— O que importa é o que está aqui dentro, o que você pode segurar — Dante continuou. —
Aqui dentro tem a Jana e a Mi, tem seu sonho de ser pesquisadora, de conquistar sua
independência. Tem o Leandro e o Gustavo, a Joana, o laboratório. Seu TCC, sua formatura, sua
saúde mental. Todas as coisas e pessoas que você já alcança, seus objetivos. Você não pode
deixar de segurar tudo isso pra tentar pegar coisas inalcançáveis, abrir mão de tudo que importa
por algo que é impossível de alcançar.
Lis olhou para a própria mão, sentindo as lágrimas impossíveis de parar molharem seu
rosto. Dante entrelaçou seus dedos para beijá-los logo em seguida.
— Você esqueceu de se colocar aqui dentro… — ela murmurou. Estendeu novamente a
palma para ele.
Ele deu uma risada afetuosa. Arrumou algumas mechas de seu cabelo e limpou as lágrimas
insistentes que não paravam de escorrer. Contudo, no fundo, também estava com vontade de
chorar. Ficava inconsolável ao vê-la daquele jeito, perceber o quanto ela era frágil e quanto
podiam machucá-la.
— Eu também tô aqui dentro? — perguntou, engolindo em seco para dissipar a tristeza.
Queria que ela voltasse a sorrir, mesmo que por um instante.
— Você tá aqui. — Em vez de sorrir, Lis colocou a mão sobre o peito, apontando para seu
coração. — Bem aqui. Vai sempre ficar aqui.
Ela soltou um soluço alto.
— E eu me sinto tão mal por não conseguir retribuir ou demonstrar o quanto você tá aqui
dentro, o quanto você significa pra mim. Queria ser mais pra você, queria te dar mais, porque
você merece tanto, me oferece tanta coisa… E eu nem consegui… Eu nem consegui fazer uma
comemoração de namoro direito, estraguei tudo e você ainda teve que escutar todo aquele drama.
— Lis…
Dante a puxou para um abraço. Lis se agarrou nele como pôde, molhando sua camisa.
— Por que você quer ser mais quando já é tudo…? — sussurrou.
Ele a soltou para olhá-la nos olhos. Lis engoliu em seco, mexida com as palavras dele.
— Você sabe que tenho um problema pra comer na frente dos outros, não sabe? — Dante
perguntou. Depositou a mão dela em seu peito, firmando-a ali.
Ela só fez um meneio, concordando.
— E mesmo sabendo, você não me pressionou, não se afastou. Só ficou do meu lado.
— Porque queria que você ficasse confortável…
— Eu sei. E isso já é tudo pra mim. Você já faz tanto por mim, como pode se achar
insuficiente? Você me dá o mundo inteiro sem nem se dar conta.
Dante arrumou outra mecha do cabelo dela. Depois, sua mão escorregou até sua bochecha,
acariciando-a.
— Você já é suficiente — disse. — As pessoas que importam já te amam sem precisar de
nada em troca. E você não vai ser abandonada por elas, eu prometo.
Lis aceitou as palavras dele, voltando a abraçá-lo. Quando se deu conta, Dante tinha
conseguido deitá-la na cama, afofando-a entre as cobertas. Era estranho ser cuidada daquele
jeito, mas também era bom, consolador. Era poder ser vulnerável sem receber julgamentos.
Normalmente, ela era a pessoa que estava do outro lado. Com seu relacionamento com
Gabriel, quem sempre segurava as pontas era ela, quem arranjava um jeito para tudo. De novo, o
medo de ser abandonada a fazia mover mundos e fundos para fazer dar certo. Ela tinha terminado
com o ex simplesmente porque estava exausta de sempre ter que agir assim.
Com Dante era diferente. E ele não fazia aquilo para impressioná-la, fazia porque gostava
dela, porque para ele era natural agir assim com a pessoa que gostava. E era natural para Lis
também. Ela não o apoiava porque não queria ser abandonada, fazia isso porque gostava dele.
Faria de qualquer jeito, sem pedir por nada em troca.
Que sentimento bonito. Era algo que preenchia seu coração por inteiro.
— Dante — ela o chamou.
— Hm? — Ele tinha se deitado ao lado dela e agora fazia um carinho em seus cabelos.
— Eu te amo.
Ficaram em silêncio. Lis só conseguiu ver o quanto ele tinha ficado vermelho.
— Pensou nisso agora? — Ele riu, a risada mais gostosa do mundo.
— Desde que você apareceu nas barcas pra me buscar. — Ela riu de volta.
— Então por que só falou agora?
— Porque eu queria que fosse perfeito — sussurrou, aproximando-se.
— Mas já é perfeito… Já disse, com você, é tudo perfeito…
Roubou um beijo dela, lento, firme, intenso, impregnado de emoções sinceras. Quando se
deram conta, já estavam enroscados um no outro, compartilhando do mesmo ar, respirando
juntos.
— Eu também te amo — disse. — Muito. Você não faz ideia do quanto.
Afundou o rosto no ombro dela, aspirando seu perfume, uma mistura do cheiro dele e dela,
simplesmente irresistível e viciante. Dante não se via conseguindo viver mais sem aquilo.
— Dizendo “eu te amo” pro seu arqui-inimigo, quem diria? — Riu.
— Dizendo “eu te amo” com um mês de namoro, que dupla de emocionados. — Lis
estalou a língua.
— Tempo é relativo. O importante é o resultado do experimento no final.
— A gente tá testando o amor, é isso?
— É, com todas as variáveis possíveis. Rivalidade, lâminas atropeladas e famílias tóxicas.
— Cadê as condições normais de temperatura e pressão?[13] É o básico.
— Não tem. Pra gente, só tem caos.
— Entropia?[14]
— Isso aí. Pintar fora das bordas.
Lis sorriu, aconchegando-se nele. O cansaço já a atingia em cheio.
— Que bom, então — murmurou, fechando os olhos. — Porque assim é perfeito.
CAPÍTULO 22
“Você é uma grande inspiração
Para as coisas que eu nunca escolherei ser”
Now Playing: Judith
A Perfect Circle

10/06/2024
37 dias para o fim do semestre
— Olha que bonitinho, Tati. — Leandro estendeu a câmera do celular para a janela da sala
de Joana. Ele queria mostrar a cena de Dante e Lis juntinhos, trabalhando no computador do
laboratório. — De mãozinhas dadas. Que fofo.
— Meu Deus, Leandro. — Sua amiga deu uma risada pela chamada de vídeo. Tati era
esposa de Martim e também sua amiga desde a graduação. — Não era você que tava surtando
por causa desses dois uns meses atrás?
— Ah, isso foi antes. Agora tudo está correndo bem e eu voltei a acreditar no amor. O filho
da Joana nasceu saudável, vou ser pai de menina e meus alunos estão se dando bem, estão
namorando! E nada tem explodido nesse laboratório nos últimos meses, o amor venceu.
Gustavo bateu na porta da sala para entrar, carregando seu iPad para mostrar alguns
resultados. O pós-doc apontou a câmera para ele.
— E não lembro se te falei, mas olha quem voltou! — disse. — Nosso calourinho! Os
astros voltaram a se alinhar, tudo vai dar certo agora!
— Oi, Gustavo! — Tati o cumprimentou. — Quanto tempo! Como está?
— Oi, Tati. — Ele abriu um sorriso envergonhado. — Estou bem. Feliz em ter voltado.
— Fala o que você tem achado do casalzinho do nosso laboratório, Gustavo! — Leandro o
chamou para se sentar ao lado dele. Os dois ficaram observando Lis e Dante trabalhando juntos.
— Você não costuma gostar de nada, se passou pelo seu crivo, tem tudo pra dar certo.
Gustavo analisou o casal. Depois deu de ombros, desinteressado.
— Gosto do Dante. Ele é bem quieto e trabalha bem. A Lis sempre foi uma boa aluna,
então… Sou favorável.
— Uau, fiquei até arrepiado agora! — Leandro mostrou o braço para ele. — Nunca te vi
elogiando alguém assim antes. É um casal escrito nas estrelas, então.
— Para de atormentar o Gustavo, Leandro. — Tati riu.
— Agora só falta você e o Martim voltarem. — Leandro fez um beicinho. — Quando
voltam? Saudades do meu casalzinho apocalíptico.
— Só ano que vem. — Tati soltou um suspiro. — Mas vamos ficar bastante tempo, nos
aguardem.
Tati se despediu deles, sorrindo e fazendo promessas de muita festa quando ela e o marido
voltassem para o Brasil. Leandro desligou com um sorriso no rosto.
Era tão bom que as coisas estivessem dando certo naquele laboratório.
— Alexa, toque “A Paz” do Gilberto Gil — cantarolou para o vazio. Levantou-se
alegremente, pronto para trabalhar.
— A gente nem tem uma Alexa aqui. — Gustavo franziu o cenho.
— Então eu canto. “A paz invadiu o meu coração, de repente me encheu de paz…”
Foi até o casal, olhando para a tela do computador em que os dois trabalhavam. Lis estava
fechando seus últimos resultados das corridas de proteínas e tudo parecia correr perfeitamente
bem. O prazo ainda estava apertado, ela defenderia o TCC no último dia do semestre, dia 17 de
julho, mas estava com tudo nos conformes, já tinha até iniciado o texto.
Era um fato: os dias de paz tinham chegado no Laboratório de Neuroquímica Molecular e
Comportamental. Se tudo desse certo nos próximos dias, Leandro estava até inclinado a acreditar
que havia mesmo felicidade em uma universidade federal brasileira.
— Como estamos? — perguntou para os dois.
— Olha que lindo! — Lis mostrou a revelação de sua membrana de proteínas. — Marcou
tudo direitinho!
— Uau, mas isso tá digno de livro didático, hein? — Ele deu uma risadinha triunfante. —
Que espetáculo.
— Já consigo sentir meu 10 com louvor no TCC. — Lis fingiu limpar uma lágrima
imaginária. — Vou até receber a láurea acadêmica assim.
— Vem aí, artigo em destaque da revista Nature[15]… Que orgulho dos meus aluninhos! A
paz finalmente chegou pra gente, é até difícil de acreditar!
Todos riram, felizes e confortáveis. Leandro e Gustavo se juntaram para discutirem uma
série de resultados, os pós-doc ainda cantarolando, e Lis desligou a tela do computador, alegre.
— Vamos almoçar? — perguntou para Dante. Havia um sorrisinho fofo no rosto dela que o
fazia querer apertar sua bochecha.
— Vamos. — Sorriu de volta, tão feliz quanto ela.
E saíram juntos, sempre de mãos dadas.

— Sabe, não faz sentido o autor deste artigo presumir que o tratamento que ele fez poderia
ser aplicado na pesquisa clínica — Lis afirmou. Estava deitada na grama do campus, bem em
frente a orla do Gragoatá. O dia estava bonito, então ela e Dante resolveram almoçar ali, debaixo
de uma amendoeira não muito longe do Instituto de Biologia. — De ensaios in vitro até ensaios
clínicos existe um universo inteiro.
Mostrou o celular para ele e Dante leu a discussão do artigo enquanto mastigava um
sanduíche, concentrado nas palavras dela. Desde o episódio do gato de Lis e das declarações, sua
confiança em comer perto dela tinha aumentado um pouquinho. Ele ainda não tinha chegado ao
ponto de sair para um restaurante, mas conseguia comer coisas simples, desde que não se focasse
tanto na ação. Parecia um passo minúsculo, mas era importante.
E não havia motivo para querer correr. Eles tinham todo o tempo do mundo.
— Ele tá tentando vender o peixe dele — disse. — Vai que alguma empresa queira
patrocinar a pesquisa dele?
— O sonho de princesa de todo pesquisador. Mas não serve pra mim. Se eu colocar esse
argumento no meu TCC, a banca me massacra.
— De volta à estaca zero, então.
— De volta à estaca zero. Que saco. Tenho um pouco mais de um mês até a minha defesa,
assim não dá.
Dante terminou o sanduíche. Lis achou que ele lhe devolveria o celular, mas ele só o
colocou no próprio bolso.
— Chega de TCC por hoje, Deusa da Neuro — falou. — Daqui a pouco você passa mal.
— Mas…
— Nada de “mas”. Que horas chegou hoje na UFF hoje, Lis? Eu cheguei às 8h e você já
estava aqui.
— Às 6h30… — ela disse em um murmúrio.
— Você nunca aprende, né?
— Em minha defesa, é o finalzinho do semestre. Falei sério sobre a láurea acadêmica,
quero ganhar.
— Sei. E vai adiantar receber essa láurea internada no hospital?
— Não…
— Então pronto. Vamos lá pra casa, vou fazer você dormir um pouco.
— Vai ficar me assistindo dormir? Credo.
— Pensei que gostasse disso. Seu favorito em Crepúsculo não é o Edward?
— Você não é vampiro. Mas a gente podia assistir hoje, né? A gente parou no terceiro ou
no quarto filme?
— Não lembro. Não estava prestando atenção.
Lis, ao se lembrar do dia em que inventaram de ver a saga, ficou corada repentinamente.
Por certo, Dante não tinha prestado atenção em nada, alegando que não gostava muito de fantasia
teen. Sendo assim, ele acabou resolvendo se distrair com outra coisa. Ou melhor, com ela.
Agora as lembranças de Lis sobre seus filmes favoritos da adolescência estavam
misturadas com Dante a fodendo devagar enquanto ela tentava assistir.
Interessante como era a vida adulta.
— Deixa o Crepúsculo pra lá, então — falou, dando de ombros. — Já que você quer que
eu durma.
Ele riu. Alcançou o bolso da calça para lhe devolver o celular, mas acabou pegando o dele
sem querer.
— O Henrique me ligou — falou, franzindo o cenho. — Umas quatro vezes.
— Será que ele quer alguma coisa?
— Deve ser a ladainha de sempre. Falo com ele quando chegar em casa. Vamos?
Os dois entrelaçaram as mãos e caminharam juntos até a saída do campus Gragoatá. Dante
chamou um Uber e não demorou muito até que chegassem no prédio em Icaraí. Chamaram o
elevador e engataram no questionamento se Dante era Time Edward ou Time Jacob. Ele digitou
a senha refletindo que talvez preferisse o Jacob, o que fez Lis revirar os olhos. Entraram no
apartamento gargalhando.
E se depararam com o pai de Dante parado bem no meio da sala.
— Finalmente você chegou, filho — Otto falou, sua voz imponente ecoando pelo amplo
espaço. — Estava esperando por você.
Não era só Otto Krause que estava ali. Lis identificou mais duas pessoas na sala, além de
Henrique. Havia uma mulher loira e elegante bem ao lado de Otto, quem ela presumiu ser a mãe
de Dante, Marília. A senhora a olhou de cima a baixo, torcendo um pouco o nariz quando viu
que Lis e o filho estavam de mãos dadas.
A outra pessoa era uma menina alta e magra, de cabelos lisos e longos. Estava sentada
encolhida no sofá, olhando para eles de soslaio. Aquela devia ser a irmã mais nova de Dante,
Amélia.
Outra coisa que Lis conseguiu identificar? O fato de que Dante tinha praticamente
congelado ao seu lado e apertado sua mão com uma força considerável sem nem perceber. Ele
ainda não tinha proferido uma palavra sequer desde que chegara.
Henrique estava encolhido no canto da sala, assistindo à cena. Então devia ser esse o
motivo para tantas ligações. Se ao menos Dante tivesse retornado…
— Não vai falar nada? — Otto perguntou. — Há quanto tempo não vê sua família?
Seis meses. Dante pensou. Seis meses de paz, seis meses longe daquele caos.
E ele finalmente tinha o alcançado.
— Hm, oi — murmurou, incerto. Ainda não tinha soltado a mão de Lis. E tinha começado
a tremer, ela notou isso também.
— Quem é essa com você? — sua mãe perguntou. Voltou a analisar Lis da cabeça aos pés.
Dante engoliu em seco antes de responder. Parecia estar com dificuldade de respirar.
— Minha namorada — falou, dessa vez um pouco mais firme. — Essa é a Lis, a minha
namorada.
A mãe dele franziu o cenho. Dante tinha herdado o rosto dela, Lis pensou. O olhar
fulminante que fazia com que todos se sentissem meras formiguinhas ao seu redor.
— Ah, meu querido — ela suspirou. — Todo aquele esforço pra emagrecer pra se
contentar com isso?
Ai. Lis sentiu a porrada. Ela não tinha caído nas graças da sogra, isso era um fato.
Dante fez cara feia para a mãe e apertou mais a mão de Lis.
— O que estão fazendo aqui? — perguntou. — Presumo que não vieram me visitar.
— Viemos para fazer um apelo — Otto se pronunciou. — Um apelo que, se você for
sensato, vai aceitar.
— Não vou voltar pra casa, se esse é seu apelo — Dante resmungou. — Então nem precisa
se dar ao trabalho.
— É sobre a sua irmã, Dante — o pai disse, estreitando os olhos. — Pensei que se
importasse pelo menos com ela.
Dante deu uma olhada em Amélia, inclinando as sobrancelhas. A menina engoliu em seco,
seus olhos marejados.
— Aconteceu alguma coisa, Ame? — resolveu perguntar diretamente para ela. Não tinha
gostado da fisionomia da irmã, ela parecia abatida demais.
— Eu…
— Imagina a sorte que tive: dois filhos anoréxicos. Amélia está seguindo todos os seus
passos, Dante.
O quê? Lis arregalou os olhos.
Anorexia?
— Amélia está ficando tão parecida com você que também se tornou uma rebelde sem
causa — Otto continuou. — Não quer comer, não quer ser madura, não quer ouvir ninguém. Eu e
sua mãe pensamos que ela pelo menos te ouviria, já que são tão parecidos.
Dante ficou em silêncio, encarando a irmã. O turbilhão de ansiedade lhe havia atingido em
cheio. Lembrou-se de todo o inferno que fora os primeiros episódios de anorexia em sua
adolescência, toda a pressão que sofrera para esconder seu transtorno dos parentes mais distantes
e dos conhecidos de seu pai. Para Otto, era inaceitável que um filho dele sofresse de tal coisa,
ainda mais seu filho mais velho, seu herdeiro. Dante nunca fora o orgulho do pai, mas o
diagnóstico de anorexia só afundou de vez a relação dos dois.
Isso estava acontecendo com Ame? Ela era tão jovem, não tinha completado nem 16 anos
ainda. Era quase a mesma idade de quando Dante fora diagnosticado pela primeira vez. E Otto
tinha falado aquilo de uma forma tão cruel. Era sua infância e adolescência acontecendo tudo de
novo.
E o pior: Lis tinha escutado. Dante ainda não tinha contado sobre a anorexia.
Sentiu vontade de vomitar. Aquele pequeno sanduíche que comera já tinha sido o
suficiente para deixá-lo enjoado. Seu desejo maior era dar as costas e fugir.
Mas e Ame? Ela não tinha tido nem uma figura como o tio Klaus para apoiá-la. E era
mulher, Dante mal conseguia imaginar a pressão que sua mãe fazia nela por causa de sua
aparência.
— Eu… — gaguejou. — Eu vou levar a Lis lá embaixo.
— Dante… — Lis murmurou. Não queria deixá-lo sozinho naquele momento. — Não é
melhor…
— Por favor — sussurrou para ela, seu olhar tomado por nuvens de medo. — Por favor.
— É melhor mesmo, querida — a mãe de Dante sugeriu. — É assunto de família. Espero
que entenda.
Lis e Dante se encararam. Ela notou que ele estava prestes a ter um colapso mental.
— Tá… — falou baixo.
Dante conseguiu dar as costas para a família. Abriu a porta em um solavanco, puxando Lis
pela mão. Entraram no elevador e o corpo inteiro dele começou a tremer, Dante estava quase
hiperventilando.
— Dante — Lis tentou fazer com que ele prestasse atenção nela. — Dante, olha pra mim.
Não dava. Sentia-se sufocado ali dentro, preso e sem ar. Ficou encarando o visor dos
andares, assistindo os números descerem mais devagar do que ele gostaria.
— Dante, Dante! — ela o chamou, um pouco desesperada, vendo-o quase saltar para fora
do elevador quando ele chegou no térreo. — Espera!
Não dá. Não tinha como. Ele correu até o estacionamento, sua visão já escurecendo, sua
mente girando sem parar.
Conseguiu chegar no pequeno canteiro que havia ali. E vomitou seu almoço ridículo, o
sanduíche que tinha se esforçado tanto para comer.
— Dante, fica calmo! — Lis pediu, nervosa, segurando-o pelos ombros. — Vai ficar tudo
bem, vai ficar tudo bem!
Não vai, conseguiu pensar. As primeiras lágrimas escorreram sem piedade pelo seu rosto,
soluços lhe roubando o pouco ar que lhe restava. E a certeza de uma coisa só.
A paz tinha acabado.
Lis conferiu o celular pela milésima vez naquela noite. Ainda não havia uma mensagem
sequer de Dante.
A cena no estacionamento não saía de sua cabeça. Foi a primeira vez que ela tinha visto
seu namorado chorar. Antes, no máximo tinha testemunhado algumas lágrimas, olhos
lacrimejantes. Contudo, Dante chorou de uma forma tão desesperada naquele estacionamento
que ela acabou chorando também. De nervoso, preocupação, confusão. Ficaram os dois chorando
ali, abraçados, até que conseguissem se acalmar.
Ela nunca tinha visto Dante apavorado. Porque era isso que o descrevia: Dante era a face
completa do pavor ao reencontrar sua família. Lis não sabia muito sobre ela, ele sempre
mencionava mais o tio. “E se te serve de consolo, minha família também é um caos. Então te
entendo de certa forma” ele havia dito pela primeira vez. Não tinha passado disso. Dante não se
estendia nesse assunto nunca.
Lis agora entendia o porquê.
Ele não falou muita coisa depois que se acalmou. Tinha só dito que não queria que seus
pais a maltratassem, por isso era melhor que ela fosse para casa. Lis relutou muito, com medo de
deixá-lo sozinho naquele estado. Mas não havia muito o que fazer. Dante precisava encarar a
família pelo menos naquele momento. Ele prometeu ligar para ela quando tudo se acalmasse.
Desde então, Lis ficava encarando o celular na beirada da cama, esperando algum sinal de vida.
Mas já era noite e não havia nada.
“Imagina a sorte que tive: dois filhos anoréxicos. Amélia está seguindo todos os seus
passos, Dante”. A frase que o pai dele dissera ardia em seu coração. Lis também entendia que
Dante estava envergonhado por ela ter descoberto daquela forma. Talvez se sentisse um pouco
humilhado também, era uma questão sensível.
Por isso ela aceitou ir embora, mesmo com receio. Do pouco que tinha observado dos pais
dele, era evidente que Otto e Marília despejariam todo o passado de Dante na frente dela se Lis
continuasse ali, ainda mais com o problema de sua irmã. Aquilo seria a morte para ele, Lis sabia
bem.
Sendo assim, tudo que lhe restava era esperar. Esperar, torcer e orar para que tudo desse
certo.
O sono já começava a pesar em seus olhos. Ela realmente tinha dormido pouco, então
estava mesmo cansada. Mas nada a faria dormir naquele momento. Lis esperaria por algum sinal
de Dante mesmo que ele viesse de madrugada.
Entretanto, ela não precisou esperar por muito mais tempo. Seu celular começou a tocar.
Lis atendeu em um pulo.
— Alô? — falou, sua voz tremendo.
— Lis — Dante a respondeu do outro lado da linha.
— Meu amor, como você tá? Você tá bem?
— Já estive melhor…
— Você quer que eu vá até aí, a gente pode…
— Eu tô aqui na portaria do seu prédio. Pode descer rapidinho?
O coração dela entrou em descompasso. Lis saltou da cama, buscando os chinelos, e correu
para sair. Desceu o mais rápido que pôde.
Ela o encontrou em frente à escadaria do prédio. Mal teve tempo de processar a expressão
dele, só conseguiu correr para abraçá-lo. Dante retribuiu o gesto, apertando-a entre os braços.
— Lis…
— Você tá bem? Sobe comigo, a gente conversa um pouco…
— Não dá…
Separaram-se. Lis então se deu conta de que ele estava com uma cara péssima. E parecia
exausto. Ela nunca o tinha visto cansado daquele jeito.
— Me explica o que tá acontecendo — implorou.
Ele soltou o ar pela boca, inclinando as sobrancelhas. Passou os dedos pelo cabelo dela,
como fazia de costume.
— Vou ter que voltar pra casa por um tempo — murmurou.
— O quê?
— Por causa da Ame, ela não tá bem…
— Mas…
— Vai ficar tudo bem, eu prometo.
— Dante, não toma essa decisão agora. Você tá nervoso e…
— Não dá — ele afirmou. — Eu… a gente tá indo pro aeroporto agora. Consegui a muito
custo que passassem aqui antes pra eu te ver.
A sensação foi que o coração de Lis tinha parado. Do que ele estava falando?
— Você tá indo embora agora? — conseguiu perguntar. — Agora? Nesse instante?
Ele só mexeu a cabeça para cima e para baixo, confirmando. Lis sentiu vontade de
começar a chorar.
— Vai dar tudo certo, eu prometo — ele garantiu. — Falei com a minha psicóloga, vou
ficar bem. Mas não posso abandonar a Ame agora, ela é só uma criança.
Engoliu em seco. Depois só soltou um suspiro.
— E eu sei o que ela está passando — continuou. — Sei o que é ser anoréxico nessa idade,
na minha família. Ela precisa de ajuda.
Dante a abraçou de novo. Lis já não conseguia mais conter as lágrimas.
— Eu vou voltar — ele sussurrou, o rosto afundado em seu ombro. — Eu vou voltar pra
você. Não se preocupa. Não fica com medo. Eu vou voltar.
— Eu tô com medo por você — Lis gaguejou. — Não quero que te machuquem, não quero
que te façam mal.
Dante refletiu se aquilo seria possível. Seria impossível que seus pais não o machucassem
naquela visita à Florianópolis. Tudo que lhe restava era estar forte o suficiente para aguentar.
E ele estava, Dante sentia isso. Por causa de Lis, por causa da vida que sempre quis ter e
que agora tinha. Ainda não era uma força absoluta, mas talvez ele conseguisse.
— Eu te amo — voltou a sussurrar. — Eu te amo muito. Vou voltar pra você, prometo.
Não fica chateada, não fica doente com isso. Vai passar e eu vou voltar, você vai ver.
Falar aquilo foi o suficiente para que ela desabasse. Mas teve que deixá-lo ir embora, o
carro que o esperava já começava a buzinar no meio da rua.
— Me manda mensagem — falou enquanto o assistia se distanciar. — Todos os dias, a
qualquer hora, sempre que precisar. Não faz isso sozinho, eu tô aqui com você.
— Eu sei. — Dante sorriu para ela. — Lis, não se preocupa. Eu sei.
E entrou no carro. Demorou só alguns segundos para que ele sumisse de vista. Lis ficou
encarando o vazio enquanto chorava.
Era difícil acreditar que tudo daria certo. Mas tinha que dar.
Tinha que dar.
CAPÍTULO 23
“Porque todas as estrelas
Estão desaparecendo
Apenas tente não se preocupar
Você as verá algum dia
Pegue o que precisa
Siga seu caminho
E pare de chorar tanto”
Now Playing: Stop Crying Your Heart Out
Oasis

17/06/2024
30 dias para o fim do semestre

Uma semana depois, Dante ainda estava em Florianópolis e sem previsão para voltar. Teve
até que pedir uma licença para sua ausência no laboratório, o que acabou alarmando a todos. O
silêncio tinha reinado ali e Lis tentava manter a rotina, apesar de não conseguir se concentrar em
nada sem ser a preocupação que sentia por ele.
Pelo menos, Dante não tinha se afastado. Mandava mensagens a todo momento, eles
faziam chamadas de vídeo sempre que podiam. Apesar da situação tensa, ele estava bem – na
medida do possível –, só lidando com algo que não seria fácil resolver. Seus pais não queriam
criar alarde sobre a condição de Amélia, mesmo ela sendo um tanto crítica.
Na verdade, era difícil entendê-los. Dante um dia falou que eles talvez só tivessem usado
aquilo para forçá-lo a voltar para casa. O que seria de Amélia no futuro não era do interesse
deles, o que importava era que o primogênito tinha voltado.
Revoltante, frustrante, um absurdo. Mas essa era a realidade que Dante tinha que encarar
no momento. E Lis fazia de tudo para apoiá-lo, mas era difícil, não havia tanto que ela pudesse
fazer. Sua ansiedade não ajudava em nada e ela sempre pensava no pior, na possibilidade de ele
não conseguir voltar.
E ainda havia o TCC para terminar. Faltava um mês, mas aquilo agora parecia ser sua
prioridade menos importante. Ela ficava esperando por notícias de Dante, então não conseguia
dormir direito, se alimentar direito. Na noite passada, ela se esqueceu que tinha marcado uma
reunião para Gustavo dar uma olhada em seu texto, então teve que revisar e escrever mais
durante a madrugada.
Naquele momento, ela estava ao lado do colega, observando-o ler e apontar os erros que
encontrava. Seus olhos pesavam e sua cabeça doía, o prenúncio de mais um mal-estar se
construindo ali. Mas ela tinha que aguentar firme, pois não podia tomar o tempo inteiro de
Gustavo.
Por que ela nunca aprendia? Ia passar mal e se tornaria um peso morto novamente. Estava
sempre dando trabalho para os outros.
— Por que essa referência aqui é tão antiga? — Gustavo perguntou. Lis não conseguiu
nem enxergar para onde ele estava apontando. — Você não nasceu em 2001? Por que
referenciou um artigo que tem a sua idade?
— Hm, vou atualizar — murmurou. — Foi mal.
— E acho que essa figura aqui não tá nas normas da ABNT.
— Beleza, pode deixar.
— Falta um mês, Lis. Como vai encarar a banca assim? Seu texto podia estar melhor.
— Tá… — Lis respirou fundo. Já estava um pouco enjoada.
E lá estava. Sentiu o sangue escorrendo pelo nariz de imediato.
— Sem contar que nem sei se essa figura é relevante pra… — Gustavo olhou para ela e
arregalou os olhos, assustado. — Lis!
— Relaxa, não é nada demais. — Abanou as mãos, fazendo pouco caso. Nem sabia do que
estava falando. — Só preciso me deitar um pouco…
Dante tinha feito isso naquela primeira vez, não tinha? Deitar e colocar as pernas para
cima. Ele era médico, seria melhor seguir seus conselhos, sair daquilo o mais rápido possível.
Tentou sair da cadeira, mas seu corpo estava pesado.
Ela caiu no chão como um saco de batata. Gustavo correu até ela.
— Ai… — choramingou.
— Lis! Ficou maluca?!
— Eu tô bem. Só vou fechar um pouco os olhos.
— Você vai desmaiar?! — A voz dele estava toda esganiçada por causa do nervosismo.
Era até um pouco engraçado ver alguém tão sério tendo aquela reação.
— Não, só… Para de gritar, Gustavo. Pelo amor de Deus.
Gustavo saiu correndo para pedir ajuda. Lis respirou fundo, finalmente conseguindo esticar
as pernas.
— Pau no cu da banca, caralho de ABNT — resmungou. — TCC dos infernos.
Por nada nunca dava certo? Seria cômico se não fosse trágico. Tanta coisa para resolver e
ela ficava passando mal daquele jeito, aquele estresse todo não ajudava em nada. Era a porcaria
de um círculo vicioso que ela nunca conseguia sair.
Ouviu uma movimentação do lado de fora do laboratório. Por algum motivo, escutou a voz
de Emília.
— Por que você tá me arrastando desse jeito? — Ouviu a amiga dizer. Gustavo abriu a
porta em um solavanco. — Não tem motivo pra… Lis!
Ela teve vontade de rir. Só uma situação absurda como aquela colocaria os dois desafetos
de acordo. Eles a ajudaram a se sentar no chão, quase como uma unidade. Enquanto Gustavo
pegava lencinhos para Lis se limpar, Emília a examinava.
— O que aconteceu? — ela perguntou. — Bateu a cabeça quando caiu?
— Não, é só a minha pressão de novo… — Lis murmurou. Apesar de achar graça na cena,
estava mesmo passando mal.
— Guto, vamos levar ela até o meu pai — Emília falou para Gustavo. — Tá com o seu
carro?
Guto? Um apelido de infância, Lis tinha que se lembrar disso para zoar a amiga depois.
Pelo menos, aquilo estava a distraindo.
— Tô. — Gustavo nem pareceu se dar conta de como tinha sido chamado. — Pega as
coisas dela, vou ajudá-la a se levantar.
— Pessoal, não precisa — Lis tentou argumentar. — Só preciso descansar um pouco.
— Fica quieta. Você podia ter me avisado antes que estava passando mal — Gustavo
falou, zangado. — Agora deixa a gente cuidar de você.
Ele a segurou pelas axilas, enfim a levantando. Passou um dos braços dela pelo ombro e o
grupo seguiu até o lado de fora. Depois ele falou que ia pegar o carro e deixou Lis sentada perto
do canteiro, junto com Emília.
— Tem certeza de que não bateu a cabeça? — Emília a examinava de cima a baixo. —
Falei com meu pai, ele já está te esperando no consultório. Fica calma, tudo bem? Quer ligar pro
Dante?
— Meu Deus, não. — Lis ajeitou o papelote que colocara na narina. Tudo que menos
queria era trazer mais problemas para seu namorado. — Isso acontece sempre, Mi.
— Mas já chega de isso acontecer. — Emília fez cara feia. — Você tá passando por um
período tenso demais, precisa se cuidar. E se não quer fazer isso por conta própria, vou ter que te
arrastar! Você cuida de todo mundo e não pode fazer o mesmo por você?
— Não tenho tempo, não precisa se preocupar com isso…
— Preciso sim! — Emília deu um grito. — Eu tô me tremendo toda! O Gustavo apareceu
no meu laboratório e me arrastou pelo braço como se uma bomba tivesse acabado de cair na
UFF! Passei um nervoso do caralho, então vou me preocupar, sim!
Lis se calou. Ela já estava acostumada com aquela situação, mas devia mesmo parecer
assustador visto do lado de fora. Ela sequer imaginava que seu estado de saúde preocupava tanto
seus amigos.
Passou a mão pela nuca, sem jeito.
— Você chamou ele de “Guto” — falou, tentando dissipar o clima pesado.
— Chamei? — Emília fez uma careta. Depois deu uma risada. — Nossa, ele deve ter
odiado. Eu chamava ele assim quando era pequena, depois o apelido foi banido da face da Terra.
Acho que foi força do hábito.
— Sei.
— Você tá me fazendo conviver demais com esse idiota, meu amorzinho. — Emília fez
um beicinho. — Então se cuida, tá bom? Pela minha sanidade.
Lis abriu um sorriso, concordando. Gustavo apareceu com o carro e a ajudou a se sentar no
banco de trás. Emília se sentou no banco do carona e os três saíram do campus em direção ao
consultório do pai de sua amiga, no Rio de Janeiro. Mais uma vez, Lis pensou que estava dando
trabalho para todo mundo. Emília e Gustavo provavelmente tinham dezenas de experimentos
para fazer, mas estavam colocando tudo de lado para socorrê-la.
Mas o que fazer?
Ela já não tinha forças para mais nada.

— Minha querida Lis, é bom te ver — o Dr. Park disse. Ele e Emília compartilhavam do
mesmo sorriso. — Quer dizer, a situação é um pouco tensa, mas é sempre bom te ver.
Lis sorriu para o pai de Emília, sentada em uma das poltronas do consultório de psiquiatria
do Dr. Park. Ainda estava um pouco constrangida com toda a cena que causara, já que ele teve
que adiar algumas consultas por causa disso, mas estava mesmo feliz em vê-lo. O pai de sua
amiga sempre a tratou muito bem.
— Sua pressão já normalizou, então acho que a gente já pode conversar melhor. — ele
analisou as aferições da pressão de Lis que fizera mais cedo. — Ela baixou bem, é um pouco
preocupante. Isso acontece sempre?
— Tem acontecido com mais frequência ultimamente… Acontece quando fico estressada.
— Os sintomas aparecem de forma repentina? Ou você já consegue identificar que vai
passar mal?
— Costuma acontecer quando eu não durmo bem — ela refletiu. — E quando não me
alimento direito.
— E com que frequência isso tem acontecido? Você não dormir e não se alimentar direito?
— Ah, bastante… — Lis abriu um sorriso amarelo.
O Dr. Park sorriu para ela e fez algumas anotações em seu bloquinho.
— E o que você tem feito pra evitar essa rotina exaustiva? Já que sabe que é isso que
provoca suas quedas de pressão?
— Hm, torço pra não acontecer de novo?
— Mas sempre acontece.
— É.
— A Mimi me contou que você passou por uns maus bocados nesses últimos meses. Como
tem lidado com tudo isso?
— Não é tão ruim assim, eu dou conta.
— O Gustavo me disse que essa é a segunda vez que você passa mal em menos de um mês.
Certeza de que está dando conta?
Gustavo e sua memória impecável, que saco, Lis pensou. Não adiantava querer esconder
sua situação agora.
— Eu… — tentou se explicar. — É que não tem muito que fazer, entende? Estou
terminando meu TCC, tive parte dos meus experimentos destruídos, meu namorado está tendo
que resolver uma situação complicada. É um período turbulento, mas vai passar.
— Mas e depois?
— Depois?
— É. — Ele ajeitou os óculos, pensativo. — Depois vai vir o mestrado, doutorado, você
vai querer criar família, crescer na carreira. Vai continuar passando mal desse jeito em todos os
períodos turbulentos da sua vida?
— Ah. — Lis sentiu seu rosto se aquecer. Ela não era do tipo que pensava em sua condição
no futuro, só presumia que daria conta como sempre dera. Nunca tinha pensado dessa forma. —
Mas não sei bem o que fazer em relação a isso. Já fui no médico antes, no máximo me disseram
pra emagrecer.
— Às vezes tenho vergonha dos meus colegas de profissão… — Dr. Park suspirou. Fez
mais anotações em seu bloquinho, sério.
Ele digitou algumas informações no computador, silencioso e concentrado. Lis ficou
torcendo os dedos da mão, preocupada.
— Fiz alguns encaminhamentos pra uma série de exames que quero que faça, Lis. Vamos
investigar isso melhor — ele disse. — Mas meu palpite é que é a sua ansiedade a causadora disso
tudo. Já fez algum tratamento pra isso?
— Não, nunca.
— Tudo bem, vou te passar algumas receitas. Um remédio pra te ajudar a dormir já vai
ajudar bastante.
Lis engoliu em seco. Admirava a benevolência do Dr. Park, mas como ela pagaria aquilo?
Remédios psiquiátricos custavam uma nota. Não poderia pedir ajuda nem para sua mãe, visto
que brigaram. Ela teria que mentir que os tomaria, não tinha condição de arcar com aquele custo
no momento.
Dr. Park deu uma olhadela nela. Depois, levantou-se da cadeira e foi até um pequeno
armário no canto de sua sala. Havia várias caixinhas de remédios dentro dele. Ele demorou para
encontrar o que queria, mas assim que o fez, começou a escolher diversas caixas.
— Acho que essas amostras aqui vão dar conta até nossa próxima consulta — ele falou,
sorrindo. — Mas caso acabe antes, é só falar com a Mimi. Mando mais algumas por ela.
— Sr. Park, não posso aceitar! — Lis agitou as mãos, nervosa. — Eu já te atrapalhei hoje,
não posso simplesmente…
— Isso não é nada, minha querida — ele garantiu. — Você e a Jana são muito especiais
pra mim, por todo o cuidado que têm com a minha Mimi. Ela foi muito jovem pra faculdade,
sempre morri de preocupação. Saber que vocês cuidam dela me deixa muito aliviado, então tudo
que puder fazer por vocês duas, farei com todo o prazer.
— Ah… É ela que cuida de mim, na verdade. Quase teve que me arrastar pra vir ver o
senhor.
— Ela vive me dizendo que você é cabeça-dura, Lis. Você também precisa aceitar que
cuidem de você. Não é fraqueza deixar que te ajudem, sabe?
Ela fez um meneio com a cabeça, concordando. Não era bem uma fraqueza, mas Lis
sempre achou que dar trabalho aos outros só faria com que eles se afastassem.
— E essa ansiedade não tratada só vai te atrapalhar — o Dr. Park continuou. — Você vai
ver como vai encarar as coisas com mais clareza quando os remédios começarem a fazer efeito.
E vou te encaminhar pra psicologia também. Mas estar medicada já é um ótimo começo.
Lis concordou, aceitando os remédios e as receitas. No fim, Dr. Park a acompanhou até a
recepção, onde Emília e Gustavo a esperavam.
— Prontinho — Dr. Park disse. — Agora levem ela pra descansar um pouco, tudo bem?
— Obrigada, papai! — Emília o abraçou. — Você é incrível.
— Também agradeço, Sr. Park — Gustavo murmurou, bem mais comedido do que Emília.
— Nos desculpe pelo incômodo.
— Você fez o que era certo, Gustavo. Não precisa se preocupar.
Seus amigos a levaram de volta para o carro e Lis, pela primeira vez, não se sentiu tão
incomodada assim ao ver todo o esforço que eles faziam para ajudá-la. Muito pelo contrário, ela
se sentia acolhida, segura. Um fiozinho de esperança e força para continuar.
Dr. Park estava certo, não era mesmo fraqueza pedir ajuda. Lis também precisava se
fortalecer para conseguir ajudá-los, ela entendia isso agora. Pensou em Dante em Florianópolis,
tendo que lidar com um problema terrível. Não ajudava em nada se Lis continuasse tão fraca ao
ponto de não conseguir nem pensar direito.
Por isso, tomaria os remédios, se atentaria à sua saúde. Encararia as coisas com mais
clareza, arranjaria soluções.
Um passo de cada vez, mas sempre em frente.
CAPÍTULO 24
"As coisas não são mais do jeito que eram antes
Você sequer me reconheceria mais
Não que você me conhecesse naquela época
Mas tudo voltou para mim no fim”
Now Playing: In the End
Linkin Park

26/06/2024
21 dias para o fim do semestre
Já fazia 16 dias que Dante estava preso em Florianópolis.
Preso talvez não fosse a palavra certa. Dante poderia ir embora a hora que quisesse, ele
sabia bem. Mas por causa de Ame, era impossível. Assim que chegou em Santa Catarina, ele se
deu conta do quanto a condição de sua irmã era séria. Ela tinha tido convulsões, não pesava
quase nada, talvez seu caso fosse até mais sério do que o dele, havia episódios de bulimia
também. Então Dante não podia simplesmente dar as costas e ir embora.
Mas ele estava irritado. Mais do que isso, ele estava puto. Não com Amélia, claro, mas
com seus pais. Sua irmã estava sofrendo e eles tinham usado aquela oportunidade para forçá-lo a
voltar para casa. Não tinham estratégias para o tratamento de Ame, mesmo sendo médicos,
mesmo tendo uma rede de hospitais ao dispor para ajudá-la.
Eles não queriam o alarde que a notícia de mais um filho com transtornos alimentares
traria. Na adolescência de Dante, o fato de ele ter sido diagnosticado com anorexia gerou um
burburinho na família. Seus pais conseguiram varrer aquilo para debaixo do tapete com a
justificativa que o luto pela morte de Klaus tinha afetado Dante, então não era como se a culpa
fosse da criação doentia que eles seguiam em casa. Como se o fato de eles terem praticamente o
torturado por ter sido uma criança gorda não tivesse peso em seu diagnóstico.
E foi assim que Dante foi tido como o pobre coitado transtornado da família, o menino
rebelde que se encheu de tatuagens e fugiu de casa. Mas com o caso de Ame, um padrão havia
sido criado. Amélia foi sempre uma criança magra, comportada, o retrato perfeito de um Krause.
Admitir que ela também havia sido diagnosticada com um transtorno alimentar ressuscitaria os
burburinhos de que Otto e Marília Krause eram péssimos pais.
Por isso, tudo que Dante sentiu ao voltar para casa foi raiva. No avião, ele tinha ficado
nervoso. Acreditou que, assim que colocasse os pés em casa, todos seus traumas e gatilhos
apareceriam e ele seria engolido pela autoridade de Otto. Por um momento, Dante acreditou que
não conseguiria manter a promessa que fizera à Lis de que ia voltar, de que não a machucaria.
Era cedo demais para retornar à fonte de seus tormentos, talvez ele não conseguisse cumprir a
promessa. Mas assim que se deu conta de toda a teia de esquemas de seus pais, Dante foi tomado
pela mais completa e visceral fúria.
Mas o que fazer? A raiva era um bom combustível para agir, mas o que Dante precisava
era de poder. E isso era algo que ele não tinha. 16 dias tinham se passado e ele não fazia ideia do
que poderia fazer para reverter a situação de Ame.
E faltavam três semanas para a defesa do TCC de Lis, ele queria estar lá. Estava
preocupado com ela também, sabia que aquela situação a estressava. Pelo menos ela tinha
começado um tratamento psiquiátrico, isso o deixava mais tranquilo. Mas queria estar por perto,
tinha medo de que a família dela inventasse mais algum problema com ele longe.
Um casal cheio de problemas familiares. Eles eram realmente parecidos.
Porra, que saudade da minha Lis, pensou, respirando fundo. Ele só queria ir para casa, era
pedir muito?
— Ame, quer dar uma volta na Lagoa? — Dante sugeriu para a irmã. Ele estava falando da
Lagoa da Conceição, um bairro de Florianópolis. — A gente pode tomar aquele gelato que você
gosta.
Sua irmã estava sentada no sofá da sala, mexendo no celular. Assim que ouviu o convite,
ficou animada e correu até o quarto para se arrumar, alegre. Enquanto isso, Marília soltou um
suspiro, bebericando uma taça de água saborizada.
— Isso, ótima ideia, meu querido — falou para Dante. — É disso que a Amélia precisa:
pegar um vento no rosto, sair do quarto. Ela vai melhorar rapidinho com o irmão mais velho em
casa.
— Sei — Dante resmungou, sem dar muita atenção ao que a mãe lhe dizia. — Um vento
no rosto, claro.
— E mês que vem começam as férias dela na escola, vocês vão poder sair mais… Tudo de
volta aos conformes.
— Acha que vou ficar aqui até julho?
— O mínimo que esperamos é que você fique até sua irmã melhorar.
— E como isso vai acontecer se não querem tratá-la? O caso da Ame é de internação.
— Bobagem. Você devia ter exercido mais a medicina, filho. A experiência lhe diria que
isso não é nada.
— Ou talvez alguém devesse cassar seu CRM, mãe. Você já foi uma médica melhor.
Marília fez cara feia para ele. Dante só soltou um suspiro, inabalável.
Amélia voltou para a sala, ainda animada. Marília a examinou de cima a baixo, torcendo o
nariz para as roupas que ela colocara. Era um blusão e uma calça de moletom, ambos bem largos.
— Você não pode vestir algo mais bonitinho, filha? — Marília bufou. — Por que não se
veste mais como as suas amiguinhas da escola? Eu vejo as fotos que elas postam no Instagram,
todas tão bonitas… E você com essas roupas horrorosas.
— Ah… — Amélia gaguejou. — Eu não sei se…
— Não dá tempo, a gente tem que ir agora. — Dante puxou a irmã pelo braço. — Até mais
tarde, mãe.
— Até, divirtam-se… — Marília acenou para eles, voltando a se distrair com o celular.
Amélia seguiu o irmão até o carro. Quando entraram, ela conseguiu respirar fundo.
— Obrigada, Dan — falou. — Eu não queria mesmo mudar de roupa. Nada fica bom.
— Relaxa, sei como é. — Dante sorriu. — Bora tomar um sorvete?
— Bora!
Dante ainda estava sorrindo, mas por dentro ficava cada vez mais irado. Era como se seu
corpo inteiro ardesse de raiva.
Ele precisava fazer alguma coisa.

— Deixa eu ver se entendi. — Amélia franziu o cenho. Os dois estavam na gelateria


favorita dela, aproveitando a brisa amena. — Você atropelou as lâminas da sua namorada?
— A gente não namorava ainda. — Dante deu uma risada. Ele tinha pedido só uma água e
ficou assistindo a irmã tomar seu sorvete. — Na verdade, a gente se odiava na época. E não fui
eu que atropelei, mas a culpa de elas estarem no chão foi minha.
— Caramba. E o que ela fez?
— Cortou o dedo e eu tive que suturar. E aí a gente virou amigo. Ou quase isso.
Amélia fez uma careta de confusão, tentando entender. Contar todo o processo da relação
dele com Lis era um pouco complexo, visto todas as interações caóticas que tiveram. Mas isso
divertia sua irmã, então Dante estava empenhado em contar todos os detalhes.
— Ela é tão alta — Amélia comentou. — Não me admira que tenha gostado dela.
— Ela é. Quase tive um treco quando a vi pela primeira vez. Aí ela achou que eu tinha
olhado errado pra ela.
— Consigo imaginar. — Ela tomou uma colherada do gelato. — Você faz cara feia quando
fica nervoso.
— Pois é. Demorou um tempo pra ela entender isso.
— Então a Lis te odiou de cara e você ficou correndo atrás dela até que mudasse de ideia?
— Basicamente. — Dante deu de ombros. — Uma bela história de amor, não acha?
— Queria ter conhecido ela melhor. — Amélia fez um beicinho. — Mas foi tudo tão
corrido daquela vez que…
Ela suspirou, uma tristeza repentina acinzentando seus olhos. Dante imaginava o quanto
tinha sido difícil para Amélia ser arrastada até Niterói só para forçar o irmão a voltar para casa.
Ela e Lis tinham uma coisa em comum: não gostavam de dar trabalho. Para Amélia ter aceitado
aquele absurdo, ela devia estar muito desesperada por ajuda.
Mais um motivo que o deixava quase morto de tanta raiva que sentia.
— Quer ligar pra Lis? — sugeriu. O foco tinha que ser em Amélia, ele precisava se
lembrar disso.
— Quero! Mas não vai atrapalhar? Você disse que ela tá cheia de coisa pra fazer.
— Que nada, ela vai amar conversar contigo.
Dante fez uma chamada de vídeo para Lis. Ela atendeu quase na hora e abriu um sorriso do
tamanho do mundo ao vê-lo junto com Amélia.
— Ame! Oi! — ela disse. — Como você tá? Meu namorado tá se comportando direitinho?
— Oi, Lis! — Amélia acenou para a tela. — Tá sim, ele me trouxe pra tomar gelato.
— Que legal! Tá tomando de quê? Qual sabor?
— Cheesecake de morango. É bem docinho.
— Eu amo! Já tomou algum de Nutella com morango? É sempre o meu preferido.
Dante as assistiu conversar, sorrindo feito um bobo por causa das interações amenas.
Gostava do fato de Lis ser sempre atenciosa e delicada com sua irmã, por mostrar uma
preocupação genuína. Sempre leve, sem apertar demais. Dante amava isso nela.
Se tudo der certo, eu me caso com ela e a Amélia vem morar com a gente, pensou de
repente.
Aquilo lhe deu uma ideia. Franziu as sobrancelhas, pensativo.
— Quando você vier de novo no Rio, vou te levar na Confeitaria Colombo. — Lis ainda
conversava com sua irmã. — Tem uns doces gigantes lá, você vai amar. E vamos em todos os
museus.
— Tem uma roda-gigante lá perto também, né? Vi uma vez no Instagram.
— Tem! A Yup Star! Nós vamos com certeza.
Dante deixou que elas conversassem mais um pouco, perdido em pensamentos, até que Lis
tivesse que se despedir. A chamada terminou e Amélia ficou em silêncio. Estava brincando com
o sorvete derretido. Foi aí que ele se deu conta de que ela não tinha tomado quase nada.
— O sorvete te deu vontade de vomitar? — perguntou.
— Não, mas fiquei enjoada… — ela murmurou. — Se eu comer mais, vou entrar em
compulsão. Aí vou querer vomitar.
Ela engoliu em seco.
— Eu me entupo de doces, esse é o problema — falou. — Não consigo me controlar, a
mamãe vive dizendo que…
— O que quer que a mamãe tenha falado pra você, tá errado — Dante a cortou.
— Eu sei, mas é… Eu entendo o que é, a anorexia. Mas na minha cabeça não parece nada
demais. Só quero ser magra.
— Ame. Você sabe que tá bem fraca, não sabe?
Ela acenou com a cabeça, concordando.
— Sabe que precisa ser internada também, né? Pra tratar essa crise.
— Sei… Eu não queria ter te enchido o saco com isso, mas tava tão ruim que… Não queria
ter te atrapalhado.
— Não me atrapalhou. Só estou dizendo isso tudo pra você entender o que vai acontecer
nos próximos dias, tudo bem? Eu vim pra te ajudar e vou te ajudar.
— Mas como? Você não pode ficar aqui pra sempre, tem que voltar.
— Eu sei. Mas não se preocupa, vou resolver tudo isso. Só acredita que você vai conseguir
receber tratamento e vai melhorar, assim como eu melhorei, ok? É só com isso que você tem que
se preocupar.
— Tá bom… — Amélia abaixou a cabeça, triste.
Dante se levantou para pagar o que consumiram. Ao mesmo tempo, recebeu outra ligação
de Lis. Atendeu enquanto esperava na fila do caixa.
— Como ela tá? — Lis perguntou, preocupada.
— Nada bem, só esse passeio já a cansou. — Dante semicerrou os olhos, enraivecido.
Espiou Amélia do lado de fora, infeliz ao notá-la tão debilitada.
— Alguma ideia do que fazer?
— Algumas. Mas talvez elas sejam um pouco… controversas.
— Como assim?
— Vou pintar fora das bordas, Lis. Eles queriam o filhinho medroso de volta, mas vão
receber outra coisa.
— Hein?
— Eles só vão se dar conta de que trouxeram uma bomba pra dentro de casa quando tudo
explodir na cara deles. E vai ser mais cedo do que imaginam.
CAPÍTULO 25
"É apenas um daqueles dias
Que você não quer acordar
Tudo está fodido
Todos são uma merda
Você não sabe bem o porquê
Mas quer justificar
Arrancando a cabeça de alguém”
Now Playing: Break Stuff
Limp Bizkit

02/07/2024
15 dias para o fim do semestre

15 dias para a defesa. Os remédios que Dr. Park passara para Lis tinham ajudado, mas o
nervosismo ainda era total. Mas ela estava dormindo melhor, o que aumentou um pouco sua
produtividade. Eram os últimos ajustes e sempre aparecia algo novo para resolver, mas Lis
estava lidando com tudo com uma gotinha de otimismo, o que era novidade para ela.
Afinal, pessimismo sempre foi seu nome do meio.
Dante já estava há mais de 20 dias em Florianópolis, ainda sem previsão para voltar. E
tinha bolado um plano maluco para resolver a situação de Amélia, um plano que ele não contara
nem para ela, para não a preocupar.
Durante todo aquele tempo que se conheciam, ele ainda não tinha aprendido que pedir que
ela não se preocupasse causava o efeito contrário? E aquela frase idiota de efeito dele quando
ligou da gelateria não tinha ajudado em nada. “Eles só vão se dar conta de que trouxeram uma
bomba pra dentro de casa quando tudo explodir na cara deles. E vai ser mais cedo do que
imaginam.” O que era aquilo? Ele era doido?
— Maluco, ele vai ver quando voltar… — resmungou para si mesma enquanto revisava as
últimas quantificações de suas imunos.
Ele tem que voltar, pensou, novamente aflita. Dante havia dito que voltaria para sua defesa,
mas Lis duvidava um pouco disso. Qualquer que fosse o plano dele, era complexo e não se
resolveria em menos de 15 dias.
“O que importa é o que está aqui dentro, o que você pode segurar”. Lembrou-se do que
Dante havia dito. Não adiantava querer abraçar o mundo, Lis tinha que se concentrar em terminar
seu TCC em paz para trazer tranquilidade para Dante, para que ele mesmo pudesse resolver seus
problemas sem se preocupar com ela. Se tudo que podia fazer era torcer por ele e apoiá-lo, era o
que Lis faria. Mesmo que a saudade que sentia lhe doesse na alma.
— Olha a foto que eu tirei do Sr. Darcy. — Gustavo lhe mostrou o celular. Ele estava
ajudando com as quantificações. — Ele deitou no meu colo.
Lis deu uma olhada na imagem, incrédula que seu gato mal-humorado tivesse feito
amizade com seu amigo mais mal-humorado ainda.
— Vai roubar meu gato? — Ela riu.
— Não vou negar que gostei de ter um bichinho — ponderou. — Mas não sei se teria
tempo pra ter um. Mas gostei de ficar com ele.
— Que bom. Vou ficar te devendo essa pra sempre.
— Me paga transformando seu TCC num artigo de alto impacto mais tarde. — Ele deu
uma risada. — E com meu nome como segundo autor.
— Nunca mais vou querer falar sobre o meu TCC depois de defender. Vou tirar uns cinco
anos de férias.
— Seu mestrado não começa em agosto?
— Começa. Tudo bem, 15 dias de férias. Diante de tudo que aconteceu, parece até
inacreditável.
— Mas deu tudo certo no fim. Então valeu a pena.
— O fim ainda não chegou. — Soltou um suspiro. — Só vou acreditar que deu certo
quando a banca disser: “Elis Duarte, aprovada com louvor no TCC”.
Afinal, nada era tão ruim que não pudesse piorar. Ela tinha sido inundada por uma gotinha
de otimismo, mas ainda era a vida de Lis Duarte, então tudo era possível.
Como um mau presságio, alguém bateu na porta do laboratório. Por algum motivo, Lis
sentiu um arrepio em sua nuca. Gustavo se levantou para abrir e, ao mesmo tempo, ela deu uma
olhada no celular. Estava no silencioso, mas havia algumas mensagens de Dante e algumas
ligações não atendidas.
Todas de sua família.
— Lis, é pra você — Gustavo a chamou.
Ela levantou a cabeça para ver. O arrepio se intensificou ao ver quem era.
— Lis — foi a vez de Gabriel chamá-la. — A gente pode conversar?

— Olha, o que quer que seja, não tenho tempo — Lis disse para Gabriel assim que foi para
o corredor. Fechou a porta do laboratório já bufando, irritada pela petulância do ex em procurá-la
em seu local de trabalho.
— É importante, Lis. Por favor, me escuta — Gabriel implorou.
Ele estava todo desgrenhado. O cabelo cacheado apontava para todas as direções possíveis
e seus olhos afundavam nas olheiras, dando-lhe uma impressão de muito cansaço.
Lis não podia se importar menos.
— Não vou te ajudar a voltar com a Isabela — disse. — E não foi você que terminou? Não
consigo entender o motivo de…
— Não é isso. Não quero voltar pra sua irmã.
— Então a gente não tem mais nada pra conversar. Porque não quero manter contato
contigo. Então se me dá licença…
— Ela tá grávida, Lis.
— Quê?
— A Isabela. Sua irmã tá grávida. Ela passou mal ontem e… Engravidei sua irmã.
Lis ficou em silêncio. Piscou algumas vezes, chegou a limpar os ouvidos.
— Como é que é?
— Porra, Lis. Isso vai acabar com a minha vida! — Gabriel passou as mãos pelo cabelo.
Então era por isso que os cachos estavam desfeitos, ele estivera os puxando pelo dia inteiro, pelo
visto. — Eu ainda nem me formei, eu… Você tem que me ajudar.
— Como eu vou te ajudar com isso?
— Eu não sei, você sempre encontra uma solução pra tudo, não pode simplesmente…
— Que solução acha que vou encontrar?
— Eu não sei! Porra, eu… Ela acha que vou casar com ela.
Mais silêncio. O que era aquilo, um pesadelo?
— Você deveria? — A afirmação dela soou mais como uma pergunta, porque aquela
conversa era inacreditável.
— Caralho, Lis! Não tem como eu me casar com a tua irmã, ela é imatura pra caralho! A
gente não devia ter namorado, tudo foi sempre um caos e…
— Então por que namoraram? — Lis perguntou sem querer, mas se arrependeu logo em
seguida.
Não queria ouvir a resposta para aquela pergunta.
Gabriel lhe lançou um olhar triste. O gesto fez Lis ter vontade de vomitar.
— Você é doente — falou. — E patético. E um babaca por vir até aqui achando que vou
resolver a lambança que você criou.
— Me ajuda a conversar com a tua família, por favor. A gente tá tentando falar contigo o
dia inteiro, você nunca atende! Eu tive que vir até aqui pra te encontrar.
Meu Deus, não há um único dia de paz nesse caralho, Lis pensou, passando a mão pelo
rosto. Seria melhor enfiar a cara em um vespeiro do que ter que lidar com isso.
Mas… era Isabela. Sua irmã de 19 anos. Grávida de repente e, pelo que parecia, com um
genitor babaca que estava a um passo de jogar tudo para o alto. E Gabriel falar “Ela acha que
vou casar com ela” só mostrava o quanto Isabela estava iludida com a situação. E sua mãe?
Como ela estaria lidando com isso? Dona Brenda amava Gabriel, mas Lis tinha dúvidas se
encararia a notícia da gravidez com bons olhos. Aquilo era o prenúncio de uma tempestade.
“O que importa é o que está aqui dentro, o que você pode segurar” ela tinha que se
lembrar disso. O que estava ao seu alcance era remediar a crise, dar conselhos, oferecer apoio.
Além disso seria impossível, ela se prejudicaria se ultrapassasse esse limite.
— Me leva até lá — falou para Gabriel. — Vou pegar minha mochila.
— Graças a Deus, Lis. — Ele respirou fundo, aliviado. — No caminho a gente pode…
— Não fala comigo, não quero conversar com você. Guarda a sua babaquice pra mais
tarde, não quero ouvir.
Voltou para o laboratório, pegando suas coisas e se despedindo de Gustavo. Ele disse que
terminaria as quantificações, concentrado no computador. Lis se sentiu mal por isso, por
postergar a conclusão de seu trabalho por causa de sua família mais uma vez.
É a última vez, pensou. Tudo bem, era sua mãe e sua irmã passando por um período difícil,
ela tinha que ajudar. Mas não se sacrificaria mais por isso, não vendo o quanto as pessoas que
importavam tinham se esforçado para ajudá-la a defender seu TCC.
Ela não jogaria o esforço delas no lixo. Nunca.
— Lis, você finalmente chegou! — Isabela correu até ela assim que Lis saiu do carro de
Gabriel. Tinha um sorriso gigantesco no rosto. — Não aguentava mais te esperar, vem cá!
Isabela abraçou a irmã, dando pulinhos ensandecidos. Lis nem sabia como agir direito.
Tinha passado a viagem toda refletindo se devia ou não falar com Dante sobre aquilo.
Ele ficaria possesso. Era melhor evitar que seu namorado se irritasse, visto o problema que
ele mesmo tinha que lidar. Lis teria que resolver aquilo sozinha.
Não vou resolver nada, só vim dar meu apoio. O que eles vão fazer depois não é problema
meu, pensou, abraçando a irmã de volta. Fazia mais de um mês que elas não se viam ou se
falavam, depois da briga que tiveram. E Lis mal se lembrava de ter brigado com Isabela daquele
jeito alguma vez em sua vida, então era estranho que ela estivesse agindo como sempre fora.
Lis ainda estava magoada. Ela tinha se dado conta assim que Isabela a abraçou.
— Aposto que está arrependida por ter gritado comigo naquele dia. — Isabela fez um
beicinho, puxando-a para dentro de casa. — Eu poderia ter perdido o bebê! Mas te perdoo.
Não pedi pra ser perdoada, mais um pensamento lhe atravessou a mente. Isabela tinha
quase jogado seu gato na rua, isso que era difícil de perdoar.
Todos entraram, Dona Brenda os esperava na sala. Sua mãe não estava com uma cara
muito boa, Lis conseguiu notar. Sentou-se ao lado dela e fez um carinho em seu braço. Ela só
espremeu os lábios e abraçou a filha mais velha, silenciosa. Enquanto isso, Isabela puxava
Gabriel para se sentar no outro sofá.
— Ai, vocês duas! — Isabela deu uma risada. — Que caras são essas? Agora tá todo
mundo aqui, nós quatro! Ou melhor, nós cinco!
— Meu Deus do Céu — Dona Brenda choramingou baixinho.
— Hm, bem… — Lis tentou começar. E era verdade, todos ali estavam com cara de morte,
menos Isabela. Talvez fosse melhor tomar as rédeas da situação. — Então… vocês voltaram?
— Não oficialmente, mas desde ontem esses são os planos, né, Gab? Você não imagina,
Lis! Foi quase uma cena de filme! Eu passei tão mal ontem, fui parar no hospital. Ele veio
correndo, mesmo a gente tendo terminado, ficou do meu lado o tempo todo! Uma coisa linda de
se ver.
Gabriel estava pálido feito um papel. Devia estar assim desde o dia anterior, quando
receberam a notícia. Lis quase sentiu pena.
Quase. As palavras dele sobre Isabela ainda faziam seu sangue ferver.
— Certo… — continuou. — E quais são os planos agora? Sei que está meio cedo ainda,
mas já é melhor se preparar, né?
Lançou um olhar fulminante para o ex e ele engoliu em seco.
— Hm… — gaguejou.
— A gente vai casar, né? — Isabela o interrompeu. — Meio óbvio isso.
— A gente não tem como casar agora, Isabela — ele conseguiu dizer. — Eu… Eu ainda
nem terminei a faculdade.
— Mas não posso casar com barriga. — Ela franziu o cenho. — Ou com um bebê de colo.
Como vou ficar no vestido, nas fotos? Tem que ser por agora.
— Meu Deus — Gabriel grunhiu. — É com isso que você tá preocupada? Com a porra do
seu vestido de casamento? Eu não tenho nem onde cair morto! Meus pais vão me expulsar de
casa quando souberem que eu te engravidei!
— Tá dizendo que não vai ter festa?
— Isabela — Dona Brenda rugiu. Lis chegou a tremer ao seu lado. — O que ele está
tentando te dizer é que o casamento não é o que importa agora.
— Como não?
— O importante é o futuro do bebê. Quais são os planos pro futuro de vocês como uma
família.
— Achei que esse futuro começasse com a gente casando.
— Certo, tudo bem. — Lis tomou o rumo da conversa. Sua mãe já estava ficando nervosa
demais com a ingenuidade da filha. — Digamos que vocês se casem, tudo bem. E depois? Como
vão sustentar essa criança? Onde vão morar? Coisas assim. É isso que a gente quer saber.
Gabriel e Isabela ficaram em silêncio. Ele estava prestes a cair no choro e Isabela ainda
tentava entender o que diabos Lis e sua mãe queriam com todo aquele questionamento.
— Eu ainda nem terminei a faculdade! — ele se lamuriou. — Não tenho nem onde cair
morto, não posso simplesmente…
— Você pode trancar a faculdade, arranjar um emprego. — Lis fez uma careta de raiva.
— Eu tô pra me formar, não posso…
— A Isabela fez esse filho com o dedo, Gabriel?
— Não, mas… Porra, a gente tinha terminado e… Eu só tenho 24 anos, Lis. Minha vida
vai acabar desse jeito.
— Bem, não é um problema que você pode evitar agora… Isabela pode arranjar um
emprego também, vocês podem juntar dinheiro durante a gestação, fazer um pé de meia.
— Não posso trabalhar estando grávida. — Foi a vez de Isabela fazer uma careta. — Sou
frágil demais, posso perder o bebê.
Caralho, Lis xingou mentalmente. Se ouvisse mais uma vez Isabela se autoproclamando
“frágil”, ela teria um treco.
— Então, hm… — tentou voltar à linha de raciocínio. — O Gabriel pode vir morar aqui,
pra cortar gastos. Você tem um carro, pode ir pra UFF daqui. Trancar algumas disciplinas e fazer
uns bicos, talvez. Usem o meu quarto como o quarto do bebê e… É isso.
Isabela deu um grito de alegria, batendo palmas. Gabriel soltou um soluço baixo, limpando
os olhos com os nós dos dedos. Ele por certo tinha odiado a ideia de ter que morar com a sogra,
mas era a melhor saída para todos naquele momento. Lis tinha medo de que ele desaparecesse se
não encontrasse solução imediata.
— O que acha, mãe? — Virou-se para Dona Brenda. Ela estava tão pálida quanto Gabriel.
Dona Brenda piscou algumas vezes, como se estivesse voltando à realidade. Depois
pigarreou e se endireitou no sofá.
— Sim, acho que é a melhor solução por enquanto… — falou baixo, sem olhar para
ninguém.
Depois se levantou, indo até a cozinha. Lis a seguiu, deixando o casal sozinho na sala.
Assim que se viu longe deles, Dona Brenda se pôs a chorar.
— O que vai ser da minha Isabela agora? — Chorou. — Ela é tão novinha, estragou a vida
dela! Nem foi pra faculdade ainda, ela nem…
— Mãe, fica calma. Não é o fim do mundo, eles dois vão conseguir…
— Esse Gabriel vai abandonar ela, não vai? Eu senti isso na cara dele!
— Talvez ele só esteja assustado. Pegou todo mundo de surpresa.
— Eu sabia que ele não prestava, eu sentia!
Então por que ficou babando o ovo dele durante todo esse namoro idiota? Lis pensou, mas
ficou quieta. Falar isso só pioraria a situação.
— Bem, a gente resolve isso aos poucos — falou. — Não é uma coisa que se resolve da
noite pro dia, aos poucos a gente vai se acostumando com a situação, eles mesmos vão se
adequar melhor.
— Quando você volta pra casa, Lis? — Dona Brenda disse de súbito. — Você disse pra
transformarmos seu quarto no quarto do bebê, mas você precisa de um lugar pra ficar. Podemos
colocar um berço no quarto da Isabela.
— Eu… — Lis ficou sem palavras por um momento. — Eu não volto.
— Como assim? Você mesma disse que aos poucos iríamos nos acostumar com a situação
e…
— Sim, mas… O que isso tem a ver?
— Lis, é a sua família.
— Espera. — Fez uma careta de desgosto. — Você tá querendo que eu saia de Niterói pra
voltar a morar aqui? Pra ajudar a criar o filho da Isabela?
— Ela é jovem demais, Lis. E esse Gabriel não vai prestar, tenho certeza. Isso vai arruinar
a vida dela!
— Tá, mas… e a minha vida?
— Por que você só pensa em si mesma? O que é mais importante que a sua família? Desde
que foi pra essa faculdade, você não liga mais pra gente. Não vai apoiar sua irmã, seu sobrinho?
— Apoiar, sim. Mas você não quer que eu apoie, quer que eu me sacrifique. E, mãe…
Jovem eu também sou. Tenho 23 anos.
— Você é a irmã mais velha, sempre foi responsável, sempre cuidou da sua irmã.
— É, e olha onde isso me levou.
— Lis!
Ela respirou fundo. Tentou se lembrar do que Dante dissera. Por mais que sentisse pena da
angústia da mãe, aquilo era algo que ela não conseguiria alcançar.
— Mãe, eu vou estar aqui com vocês — disse. — No que precisarem, vou ajudar. Babá,
comprar fralda, ir no médico, podem contar comigo. Mas não vou deixar de viver por causa das
escolhas da Isabela.
— O que a gente precisa é de você aqui! — sua mãe gritou. — Com sua família!
— Não vou voltar pra cá — Lis murmurou. Lágrimas já queriam irromper seus olhos. —
Não se estressa mais com isso, porque não vou voltar.
— Isso é por causa do seu gato? Se for por isso, ele pode voltar!
— Não é por causa do meu gato, não quero voltar pra cá. Não vou voltar pra cá.
— Ah, Lis. Você é egoísta igual seu pai.
Lis não quis responder àquilo. Sabia que não era, agora ela sabia. “Você já é suficiente”.
Esse era seu Norte agora. Para as pessoas que importavam, ela já era suficiente.
— Eu tô indo embora agora — gaguejou. — Se precisarem de alguma coisa, é só…
— Você quer viver essa sua vida maravilhosa sozinha, mas esquece que depende da sua
mãe pra te manter em Niterói! E ainda tem a coragem de nem fazer questão de ajudar sua irmã
quando ela mais precisa!
Ah, lá vem. Era isso que faltava, pensou. Nada é tão ruim que não possa piorar.
— Então se quer tanto ter essa sua vida perfeita sozinha, arque com suas despesas sozinha
— sua mãe continuou. — Porque eu não pago mais um tostão pra você. Boa sorte pagando seu
aluguel na sua tão amada Niterói.
CAPÍTULO 26
“Me doei muito
Pra quem nunca quis ficar
Já fui tão cega
que hoje desaprendi a enxergar
Mas vou te respirar
Até faltar o ar”
Now Playing: vou te respirar
Lou Garcia

Certo. Não precisa entrar em pânico, Lis. Ela respirou fundo, caminhando em passos
trôpegos pela calçada. Sua cabeça já começava a girar. O que esperar delas? Você que quis vir
aqui, era óbvio que ia sobrar pra você.
Abriu a mochila, pegando a garrafinha que sempre carregava e sua necessaire. Procurou o
remédio que Dr. Park passara para ajudar com suas quedas de pressão. Já estava quase na praça
perto do BRT quando conseguiu se sentar. Tomou o remédio de uma vez só, arfando.
Caralho. Tomar no cu. Bosta, boceta, que merda do caralho, xingou mentalmente. Isabela
e a porra de seu ex desconheciam o conceito de camisinha ou pílula anticoncepcional e quem
arcaria com as consequências seria Lis? Que espécie de trama de quinta categoria era aquela?
Sua mãe achava que todos viviam em um dramalhão mexicano?
Que porra é essa? Lis franziu as sobrancelhas. Certo, ela não precisava entrar em pânico,
mas precisava pensar em uma solução, e rápido. O aluguel vencia no dia 5, 550 reais. Sua mãe
pagava quase tudo, já que a bolsa de Lis era só de 700 reais. Pagar tudo sozinha a deixaria com
somente 150 reais para passar o mês. Era julho, fim do semestre, Lis não poderia contar com o
bandejão por metade do mês, já que ele fechava nas férias. Seria impossível arcar com suas
despesas só com aquela quantia. Agosto seria mais ou menos a mesma coisa. A situação de Lis
só melhoraria em setembro, que seria quando ela receberia a bolsa do mestrado. Também havia
as despesas de Sr. Darcy, ela não podia esquecer.
Tudo bem, viver só com a bolsa de iniciação científica era impraticável, ela precisava de
mais dinheiro. Mas como?
Era seu pior pesadelo se construindo ali: ter que pedir dinheiro emprestado para seus
amigos ou para seu namorado.
— Ok, se minha mãe não pode pagar, quem sabe meu pai…? — Fez uma careta com a
ideia. Desde que se casara de novo, seu pai mal reconhecia sua existência. — Não custa tentar…
Pegou o celular para discar o número do pai. Mordeu os lábios enquanto esperava, batendo
o pé. Quando se cansou, resolver mandar uma mensagem pelo WhatsApp.
Um tracinho só. Ele nem recebeu a mensagem. Seu pai provavelmente a bloqueara ou
tinha mudado de número.
— Não dá nem tempo de se decepcionar… — Guardou o celular de volta.
Recostou-se no banco da praça, fechando os olhos por um momento. Não era possível. Não
tinha como ser possível aquela realidade onde ela estava prestes a virar uma sem-teto.
Não vou voltar, pensou. Não vou voltar. Faço qualquer coisa, mas não vou voltar.
— Um passo de cada vez, preciso pensar no aluguel desse mês… — murmurou para si
mesma. Ainda estava tonta e enjoada, mas tinha conseguido se acalmar um pouco.
Seu nariz nem tinha sangrado, já era uma vitória. Lis tinha que se apegar às pequenas
conquistas.
Era dia 2 de julho. Lis tinha três dias para pagar. Aquela crise tinha que ter vindo no início
do mês, claro. Se Lis tivesse se atentado aos detalhes, talvez tivesse conseguido evitar seu
destino cruel por mais um tempinho. Mas ela nunca recebia uma colher de chá.
Sempre abandonada. Não tinha mesmo para onde correr, aquela ruptura viria mais cedo ou
mais tarde. Lis só tinha sido tola demais ao pensar que ainda tinha tempo.
Conseguiu se levantar, dando passos lentos até o BRT. Não tinha conseguido nem uma
carona, saíra de casa praticamente escorraçada. Agora seria obrigada a fazer o percurso exaustivo
de sempre até Niterói.
Eu tinha que atualizar os gráficos com as quantificações novas hoje também, recordou-se.
Preciso fechar o texto pra mandar pro revisor, fazer a apresentação. Como vou ter tempo pra
arranjar dinheiro?
— Meu Deus, tem como piorar? — lamuriou-se enquanto entrava no ônibus.
Como se captasse sua ansiedade, Lis recebeu uma chamada de vídeo de Dante. Ela nem
pensou muito, só atendeu. Estava morrendo de saudades dele.
— Linda, que carinha é essa? — ele perguntou. — Você tá pálida pra caralho. Passou
mal de novo?
— É… — Lis desviou os olhos. — Mas meu nariz nem sangrou, olha que bom! Considero
uma evolução.
— O que aconteceu?
— O de sempre, amor — desconversou. — 15 dias. Falta muito pouco.
— Por que você tá em um ônibus?
— Ah, fui passear um pouco. Pra espairecer.
— Hm… — Lis conseguiu vê-lo arquear as sobrancelhas, desconfiado.
Mas ele estava caminhando para algum lugar no momento, então talvez sua percepção não
estivesse tão afiada. Era o que Lis esperava.
— E pra onde você tá indo? — perguntou.
— Pra casa da minha tia Dulce. Viúva do tio Klaus.
— Ah, que bom. Resolveu fazer uma visita já que está aí?
— Também. Mas quero conversar algumas coisas com ela pessoalmente.
Ah, deve ser algo sobre o plano explosivo que ele tá arquitetando há semanas, pensou. Ela
ainda não sabia de nada que Dante estava planejando.
— Amor — Lis choramingou. — Não pode me contar o que vai fazer? Já faz uns 12 dias
que você tá nisso.
— Eu sei. É que a ideia tem muitos passos a serem feitos. E não quero te deixar
preocupada.
— Praticamente falar que vai explodir sua família já me deixou preocupada.
— É uma analogia. Mas vai ser tão chocante quanto uma verdadeira explosão.
— Dante…
— Lis, é sério. Não se preocupa. Eu tô bem, a Ame vai ficar bem. Assim que eu voltar, te
conto todos os detalhes, não vou deixar nada de fora.
— E… quando você volta? — Lis murmurou a pergunta. Não queria pressioná-lo, mas
estava mesmo saudosa.
Dante abriu um sorrisinho.
— Vou estar na sua defesa, com certeza — garantiu.
— Como você pode ter tanta certeza assim?
— É só o que eu acho. — Ele deu de ombros. — Tô quase chegando na casa da minha tia,
mas fiquei com saudades. É estranho não te ver todo dia.
Lis teve vontade de chorar. O estresse de tudo que acontecera e a falta que sentia dele
deixava tudo pior.
— Linda, não chora… — Dante murmurou. Chegou a parar sua caminhada.
Ela limpou o rosto rapidamente, sentindo raiva de si mesma. Nem tinha se dado conta de
que tinha começado a chorar mesmo.
— O que houve? Me conta.
— Eu também tô com saudades. E fico sempre preocupada contigo, então…
Fungou e limpou o rosto de novo. Depois só respirou fundo, um pouco mais calma.
— Mas eu tô bem. Tentando segurar só aquilo que posso alcançar, um passo de cada vez.
De verdade.
Dante sorriu de novo para a câmera. Como Lis sentia saudades daquele sorriso.
— Eu te amo muito, sabia? — ele falou. — Muito, muito. Muito mesmo.
— Eu também te amo. Muito.
— E vai passar. Todos esses problemas vão passar. Você vai ver.
— Eu sei…
— E tô orgulhoso de você. Por todo seu esforço, pela sua resiliência. Você é foda pra
caralho, Lis Duarte.
Ela soltou uma risada alta.
— Já falei pra parar de falar coisas fofas — disse. — Vai me fazer gostar demais de você.
— Você já gosta demais de mim, linda. Não tem mais pra onde correr. Acho que nem sabe
mais o que é viver sem mim.
— Exibido.
— Bem, tenho que ir. Talvez eu fique um pouco incomunicável, mas falo com você
amanhã.
— Como é?
— Nada demais. Te amo. Até mais.
Lis deixou que ele desligasse. Encarou a paisagem que passava pela janela do ônibus,
perdida em pensamentos.
— Segurar só aquilo que posso alcançar, um passo de cada vez. Um passo de cada vez…
Já chega de chorar. Já chega de ser a pobre coitada. Sou foda pra caralho, vou resolver
isso, eu vou conseguir.
— Eu vou conseguir… — disse em meio a um soluço que se formava em sua garganta. As
lágrimas voltaram a correr em seu rosto sem piedade.
Ela ia conseguir, tinha certeza.
Só precisava chorar mais um pouquinho.
— Onde você tava? — Jana perguntou assim que Lis chegou em casa. — Passei no teu
laboratório pra gente ir pro bandejão juntas, mas o Gustavo disse que você tinha ido embora.
— Ah… Fui na casa da minha mãe.
Jana fez uma careta de irritação. Desde o acontecido com Sr. Darcy, ela às vezes se via
planejando uma vingança cruel contra a família de Lis. Não que ela pudesse fazer muita coisa,
mas cogitou até jogar ovos na casa, furar o pneu do carro de Gabriel ou simplesmente dar uma
rasteira em Isabela.
Ela só precisava de uma chance. Um encontro ao acaso.
— Por que foi na casa da tua mãe, Lis? — Seguiu a amiga pelo apartamento, os braços
cruzados. — Por que ainda não cortou contato com elas?
— Agora cortei, de verdade. — Lis murmurou. Ela não tinha nem se sentado, só jogou a
mochila em um canto e começou a vasculhar o local a esmo.
Abriu o próprio gaveteiro. Será que havia algo ali que Lis pudesse vender rápido? Ela era
dona de uma prancha de cabelo velha, um box da saga Crepúsculo, maquiagens baratinhas,
roupas da SHEIN e um notebook da era mesozoica que nem ligava mais. Mas talvez conseguisse
alguns trocados com aquilo.
— O que aconteceu? — Jana perguntou.
Lis soltou o ar pela boca. A angústia e a tristeza já tinham ido embora, então agora só lhe
sobrava a raiva. Quanto mais pensava no ocorrido, mais raiva sentia.
— Isabela tá grávida. Minha mãe queria que eu voltasse pra casa pra ajudar a… Porra, ela
queria que eu criasse o filho da Isabela? Tomar no cu.
— Como é? Lis, explica isso direito!
— O imbecil do Gabriel engravidou a porra da minha irmã e minha mãe achou que seria
uma ótima ideia todos nós morarmos juntos na mesma casa! Queria que eu ajudasse a Isabela e a
porra do meu ex! Eu teria que criar o filho do meu ex com a minha irmã!
Jana fez uma careta de confusão. Ficou assistindo Lis rodar pelo apartamento, puxando os
cabelos e quase rosnando de raiva.
Ela nunca tinha visto Lis tão zangada. Esse era o problema com pessoas calmas demais:
quando elas perdiam o controle, era como uma panela de pressão estourando. Lis estava
ensandecida.
— Você recusou, né? — Jana perguntou de forma baixa, encolhida.
— Claro que recusei! Onde já se viu essa merda?! Tem noção que o Gabriel foi até meu
laboratório pra me pedir pra ajudar a conversar com elas? Ele é tão babaca que queria que eu
ajudasse a fazer a Isabela entender que ele vai dar no pé na primeira oportunidade que tiver!
Como foi que eu namorei esse traste, imundo, bosta, lixo…
— Bem, eu sempre me perguntei sobre isso.
— Aí a minha mãe falou: ajuda a sua irmã, ela é tão novinha, isso vai arruinar a vida dela e
blá-blá-blá! Como se eu não estivesse a 15 dias de defender meu TCC com o risco de perder a
vaga e a bolsa no mestrado! A Isabela não sabe o que é uma camisinha e eu que pago o pato?
Porra!
— É bem sem-noção mesmo. Mas amiga, se acalma. Já passou. Esquece isso e descansa
um pouco.
— Não dá! Acha que minha mãe aceitou numa boa eu recusar voltar pra casa? Ela disse
que não vai mais pagar meu aluguel! A gente tem que pagar a Dona Etelvina no dia 5 e eu tô
correndo o risco de virar uma sem-teto em três dias!
Lis deu um grito no meio da sala. Depois voltou a vasculhar as próprias coisas. Começou a
colocar tudo que achava que poderia vender em uma sacola.
— Lis! — Jana deu um grito também. — O que você vai fazer agora?
Ela parou de jogar as coisas na sacola. Ficou paralisada por um tempo, como se estivesse
refletindo bastante.
— E se eu vendesse fotos do meu pé…? — falou.
— Você tá maluca?!
— Preciso de dinheiro, Jana! Preciso de 550 reais caídos do céu!
— Fica calma! Vamos falar com a Dona ET, talvez ela…
Calou-se de repente. Dona Etelvina ser compreensiva era mais improvável do que 550
reais caírem do céu.
— Olha, não custa tentar, né? — disse. — O não você já tem.
— É, agora é hora de buscar a humilhação! Capaz de ela me cobrar o valor de três aluguéis
antecipado se eu falar que não tenho como pagar!
Lis grunhiu de raiva. Tinha juntado o que poderia vender naquele momento, nada de muito
valor, mas talvez ajudasse.
— Não é melhor você ligar pro Dante? — Jana sugeriu. — Ele é bem rico, 550 reais não
vão ser nada pra ele.
— De jeito nenhum! — gritou. — Ele tá cheio de coisa pra resolver, eu não posso
simplesmente dizer: “Nossa, amor! Esquece um pouco esses seus problemas familiares e olha pra
mim? Sua namorada em breve vai morar debaixo da ponte”!
— Isso é algo que se conta pro namorado mesmo ele tendo um monte de coisa pra
resolver!
— Não dá, Jana. — Lis deu um suspiro. — O Dante… Não tô dizendo que não vou falar
com ele, mas agora… Não dá.
— Então quando?
— Quando ele voltar, talvez… Ai, Jana. Sei lá, eu vou dar um jeito, eu…
Sentiu vontade de chorar de novo, o destrato de sua mãe fazendo arder todas suas
cicatrizes. Talvez nem fossem cicatrizes ainda, talvez fossem feridas abertas, cheias de sangue e
pus, um machucado que nunca cicatrizaria. Era doloroso demais.
Por que era sempre assim? Sempre jogada fora, sempre abandonada, sempre à própria
sorte.
Jana, ao perceber o desespero crescente da amiga, aproximou-se vagarosamente e retirou a
sacola das mãos dela, forçando-a a se sentar no sofá. Fez um carinho no cabelo de Lis,
consolando-a ao notar as primeiras lágrimas que começavam a cair.
— Amiga — disse. — Tá tudo bem. A gente vai resolver isso, com ou sem a ajuda do
Dante, tá legal? Nunca que a gente vai te deixar morar na rua.
— Mas eu não sei como…
— Ai, a gente faz uma vaquinha. Uma paleta de sombras da Mi deve ser esse valor. A
gente passa a caixinha por todo mundo: Leandro, Gustavo, a Joana… Eu mesma tenho uma
graninha na poupança, posso ajudar.
— Você tiraria dinheiro da sua poupança pra me ajudar?
— Claro! Não tem muita coisa, sou uma pobretona, mas uns 100 reais acho que posso dar!
O que eu tô tentando te dizer é que você não precisa fazer tudo sozinha, estamos aqui com você.
Era um comentário para rir, mas Lis sentiu ainda mais vontade de chorar com a atitude da
amiga. Conhecia a condição de Jana, a família dela era de Goiás e sua amiga passava por tantos
perrengues quanto ela para se manter em Niterói. E, mesmo assim, Jana sequer pestanejou
quando percebeu que Lis precisava de ajuda.
“As pessoas que importam já te amam sem precisar de nada em troca. E você não vai ser
abandonada por elas, eu prometo.” Não tinha sido a mesma coisa com Emília e Gustavo,
quando ela passou mal? Ou com o drama de Sr. Darcy? Gustavo também sequer pestanejou ao
acolher seu gato. Não tinha sido assim o semestre inteiro? Por que ela só se importava com o que
sua família fazia?
— Mais calma? — Jana perguntou.
— Eu… — Lis engoliu em seco. Tinha se acalmado, mas a raiva ainda estava ali. — Eu só
tô puta pra caralho, sabe?
— Normal. O que sua mãe tá fazendo é bem fodido. Mas vai passar, você vai ver.
Vai passar, mas eu deveria deixar passar? Lis pensou, mordiscando os lábios. Ela tinha
saído da casa da mãe com o rabo entre as pernas. Tinha ido ajudar a crise e acabou prejudicada.
E sua mãe ainda ficaria pensando que fizera o certo e que Lis era uma ingrata. E ela não
duvidava de que seria convocada novamente quando um problema maior surgisse, quando
Gabriel simplesmente desaparecesse, quando Isabela não desse conta de criar o filho. Lis seria
chamada de novo, sairia correndo de novo e seria maltratada de novo.
De certa forma, ela agora entendia um pouco as frases polêmicas de Dante ao ter que
enfrentar sua família. “Vou pintar fora das bordas, Lis. Eles queriam o filhinho medroso de
volta, mas vão receber outra coisa.” Ela agora entendia a revolta que o dominara para chegar
àquele ponto.
— E é até bom sentir um pouco de raiva — Jana continuou. — Ficar engolindo sapos só
nos envenena. A gente devia saber disso, somos futuras biólogas.
— Que piada péssima, Jana. — Lis finalmente conseguiu rir da situação.
— Mas é verdade! — Ela deu de ombros. — A gente fica cheia de sapos na boca e
ninguém se importa. Uma hora a gente vai ter que cuspir, é inevitável.
É inevitável, pensou de novo, deixando que Jana cuidasse dela. O que jogar dentro das
regras lhe trouxe? Lis sempre tentou ser a boa filha, mas só acabou envenenada.
Talvez estivesse na hora de pintar fora das bordas também.
CAPÍTULO 27
"Que o motim seja
A rima do esquecido
O que você diz?
Estou calmo como uma bomba”
Now Playing: Calm Like a Bomb
Rage Against the Machine

Dante soltou um suspiro assim que terminou sua chamada de vídeo com Lis. Estava
preocupado com ela, muito preocupado. Não tinha gostado nada de sua expressão, das lágrimas
sem controle. Ele deixou o fato de ela estar em um ônibus passar, já que não tinham muito tempo
para conversar, mas era óbvio que Lis estava voltando da casa da mãe. Só isso explicaria aquele
choro, a palidez repentina. No dia anterior, sua namorada tinha estado animada mesmo com o
cansaço evidente, os dois ficaram conversando por bastante tempo sobre o TCC dela, Lis estava
feliz com as perspectivas. Aquela mudança só podia ser fruto de mais uma visita desastrosa à
família Duarte.
Tudo bem, em breve vou estar com ela, pensou. Se tudo desse certo, seria realmente em
breve.
Se tudo desse certo de verdade, Dante estaria em Niterói no dia seguinte. Já tinha dado
certo, ele tinha certeza. Tanto que já tinha comprado a passagem.
Por isso estava com tanta pressa para chegar na casa da tia. Seu plano mirabolante estava
no último passo. Ele passou todo aquele tempo arquitetando cada detalhe, calculando variáveis,
impacto, consequências. E tudo aquilo havia montado o cenário final, a última peça da trilha de
dominós. Agora, só faltava o empurrãozinho que faria tudo desabar.
Um plano audacioso, as consequências respingariam nele em cheio, mas valeria a pena. Ser
cauteloso ou fugir só o fizera andar em círculos. Já estava na hora de começar a jogar para valer.
— Meu querido, que bom que chegou! — sua tia Dulce o cumprimentou assim que o viu.
— Entre, entre! Tá quase na hora.
Dante entrou na antiga casa de praia de seu tio Klaus, absorvendo toda a familiaridade que
havia ali, as lembranças de ficar o tempo todo correndo ou brincando pela casa quando seus pais
o chutavam para passar um tempo com o tio. A casa ficava bem próxima de uma praiazinha
privativa e ele também se recordava de passar a tarde inteira sentado no deque com o tio,
assistindo-o pescar. Klaus era péssimo em pescaria e passava a maior parte do tempo fumando,
mas Dante adorava cada minuto.
Era bom voltar para lá. Era o sentimento de pertencer retornando, de ter um lar.
Florianópolis para ele sempre foi uma tortura, mas aquela casa… Aquela casa era a certeza de
que um dia ele foi feliz.
Depois da morte do tio, Dante foi cada vez menos para lá, já que Dulce resolveu se afastar
dos Krause por causa de comentários maliciosos quanto à herança de Klaus e ele mesmo acabou
sufocado pelos seus transtornos e problemas. Mas ele amava Dulce com tudo que tinha também,
ela sempre o tratou como filho. Era ótimo recuperar o contato com ela.
— Me perdoa pela demora, tia — pediu. — Tive que ligar pra minha namorada no
caminho, estou um pouco preocupado com ela.
— Ah, que fofinho! — Dulce abriu um sorrisão, as pulseiras que usava balançando ao se
sacudir de alegria. Ela ainda se vestia com roupas fluídas e leves, o cabelo crespo preso em um
coque bonito no topo da cabeça, enfeitado com um lenço. Dante sempre a achou muito bonita. —
É tão bonitinho te ver namorando, Dan!
— Eu tenho 26 anos, tia. — Ele riu.
— Pra mim você vai ser sempre o garotinho que vinha pra cá quase todo fim de semana e
seguia eu e o Klaus pra todo lugar. Não consigo me acostumar com você alto desse jeito e todo
adulto!
Ela se esticou toda para beliscar sua bochecha. Dante soltou uma gargalhada com a cena.
— Bem, depois a gente se aprofunda nos papos sentimentais — Dulce falou. — Tá quase
na hora do noticiário. E você sabe que eles vão vir pra cá correndo depois de assistir. E os
advogados também já estão a caminho.
Dante respirou fundo, concordando com a tia. Apesar de ter se decidido de que aquele seria
o caminho certo, seu coração acelerado lhe dizia que não seria tão fácil e indolor assim. Era seu
passado sendo exposto ali, todas as coisas que ele sentia vergonha e que passou a vida inteira
escondendo. Não seria fácil. Não seria nada fácil.
Mas valeria a pena. Por Ame, por ele próprio, pelo futuro que queria ter com Lis. Talvez
não saísse de forma perfeita, mas “Perfeito é um estado inalcançável”. O importante era agir.
Seguiu a tia até a espaçosa sala de TV, sentando-se no sofá bem em frente. Assim que
Dulce ligou o aparelho, Dante se sentiu enjoado. Seu instinto maior era sempre fugir, evitar de
qualquer jeito que vissem aquela ferida gigantesca que foi sua infância. Dulce notou seu
nervosismo e estendeu a mão para segurar a dele, como um gesto de apoio.
— Vai ficar tudo bem, Dan. Prometo — disse com um sorriso doce no rosto. — E você
não está sozinho nisso, tudo bem? Estou aqui contigo. E em nome do seu tio também.
Dante aquiesceu, apertando a mão da tia e respirando fundo. Deu uma olhada nos
arredores, fitando cada quadro que estava exposto ali. Havia obras de seu tio, além de outros
artistas que ele gostava. Nas prateleiras, todos os vasos sofisticados que Dulce gostava de
colecionar continuavam no mesmo lugar de sempre, bonitos e coloridos.
E, entre eles, Dante conseguiu notar vários bonequinhos de ação, carrinhos de brinquedos e
coisinhas aleatórias de criança. Demorou para que ele se desse conta de que eram seus próprios
brinquedos antigos ali, como se ele os tivesse deixado lá e os esquecido por anos.
— Há quanto tempo meus brinquedos estão ali? — perguntou. — Por que não tirou?
— Acabou virando decoração. — Dulce deu de ombros. — E um jeito de me lembrar de
você.
Ela soltou um suspiro pesaroso.
— Não sei como me desculpar por ter me afastado de você durante aquele período, Dan —
murmurou. — Mas a minha cabeça estava… Minha cabeça virou o caos total depois da morte do
Klaus.
— Não se desculpa por nada, tia. Eu entendo. E a minha família não foi exatamente
acolhedora contigo depois da morte dele.
— Acredita que faz só uns dois anos que a justiça resolveu o imbróglio do patrimônio
dele? Seus parentes lutaram até o fim pra impedir que eu ganhasse minha parte em direito.
Dante se lembrava bem de toda essa história. Seus avós, seu pai e seus outros tios, todos
tentaram impedir judicialmente que Dulce herdasse a parte que lhe cabia do patrimônio de Klaus,
mesmo sendo casada com ele no papel. Foram anos de enrolação, truques sujos, ameaças,
queriam deixá-la com nada, mesmo que já tivessem garantido metade do dinheiro, já que Klaus
não tivera filhos. Tudo pela herança de um trabalho que eles repudiavam. Klaus sempre foi tido
como o rebelde da família, seguindo o caminho caótico da arte. Um fracassado, louco, irracional
e incoerente.
E mais rico do que todos eles. Foi exatamente por isso que seus pais permitiram que Dante
passasse tanto tempo na casa do tio; queriam restabelecer o contato assim que souberam que
Klaus era dono de uma verdadeira fortuna.
Por isso, entendia bem o afastamento da tia. Ele teria feito a mesma coisa.
— Inclusive, eu queria te falar uma coisa antes e… — Dulce tornou a falar, mas a música
do jornal da hora do almoço que começava chamou sua atenção. — Ah, depois conversamos.
Vamos nos focar.
Dante se endireitou no sofá. A câmera focou no âncora do telejornal, um homem sério e
confiante, sentado em uma mesa de estúdio bem iluminada. Aquele era o noticiário regional mais
assistido de Florianópolis, com certeza criaria burburinhos. Dante respirou fundo, nervoso.
Agora não tinha mais volta, ele teria que ir até o fim.
— Boa tarde — o âncora falou. — Em destaque nesta edição, uma revelação chocante
abala as estruturas de uma das famílias mais influentes de Florianópolis. Por baixo de uma
faceta de perfeição e altruísmo, os Krause escondem uma verdade violenta de maus tratos a
menores e negligência parental. E um jovem corajoso finalmente decide romper o silêncio e
expor um passado marcado por abusos. Dante Krause, filho mais velho de Otto Krause, atual
diretor do hospital Ernst Krause, chama a atenção das autoridades com um apelo emocionante.
Vamos aos detalhes.
A reportagem em si começou. Imagens colhidas de todas as redes sociais dos Krause
mostraram o luxo da família, do funcionamento do hospital de luxo, de toda a dinâmica familiar
que Dante conhecia muito bem. Em segundo plano, a narração do repórter ecoava pela sala.
— O que há por trás da máscara de perfeição da família Krause? — ele dizia. — Uma
das famílias mais tradicionais de Santa Catarina, os Krause somaram sua fortuna com trabalhos
excepcionais na medicina, há mais de um século no ramo. Quem poderia imaginar então que,
por trás de todo o cuidado primoroso com seus pacientes, haveria casos de negligência médica,
recusa de tratamento e incentivo a transtornos alimentares? E, pior: com as vítimas sendo seus
próprios filhos?
O tom da reportagem mudou. Tornou-se mais sombrio e Dante começou a ver fotos suas
passarem na tela, somente com uma faixa preta cobrindo seus olhos, já que eram imagens de
quando era menor de idade. Nelas estavam os registros dos maus tratos que sofrera na infância,
das surras que levara, as humilhações que puderam ser registradas. Dulce havia ajudado bastante
nisso, visto que ela e Klaus haviam documentado algumas coisas quando começaram a suspeitar
da conduta de Otto e Marília.
E, por último, fotos e provas da anorexia de Dante, o estado em que chegara antes de
conseguir receber tratamento, seus registros médicos, laudos psiquiátricos. Essa foi a parte mais
dolorosa de assistir. Dante sentia tanta vergonha daquelas imagens, sentia-se um fracassado por
ter passado por tudo aquilo. Parte sua sabia que ele era só um adolescente na época, mas mesmo
assim… Lembrava-se das provocações dos parentes, dos sussurros, dos comentários maldosos.
De terem dito que aquilo tudo tinha sido causado só pela morte de Klaus. Era um passado
doloroso que ele manteria para sempre muito bem enterrado, mas seus pais o forçaram a colocá-
lo sob a luz. A última violência contra ele que cometeriam.
Também foi por isso que não quis contar para Lis o que ia fazer. Não queria que ela
procurasse alguma forma de assistir ao noticiário e ver tudo aquilo. Dante contaria para ela no
futuro, não esconderia nada, deixaria que remendasse seu coração ferido. Mas não daquele jeito,
nunca daquele jeito.
E, por último, Dante não deixaria que seus pais fizessem a mesma coisa que fizeram com
Ame. Não deixaria que sua irmã também colecionasse aquelas fotos horríveis, os registros
médicos, o tratamento atrasado que lhe deixaria com sequelas. Amélia ainda podia ser salva,
ainda poderia crescer bem, sem tantos traumas, rodeada de pessoas que se importavam com ela.
Dante lhe daria ao menos isso.
Mesmo que doesse, mesmo que parecesse ser a pior dor do mundo ter que reabrir aquelas
feridas, Dante não fugiria.
Nunca mais olharia para trás.

— Você enlouqueceu! — Otto Krause rugiu. Estava andando em círculos pela sala da casa
de praia de Klaus, quase arrancando os cabelos. — Dante Hoffmann Krause, você enlouqueceu!
Dante ainda estava sentado no sofá, na mesma posição de antes, sem ter se mexido um
milímetro sequer desde que a reportagem terminou. Nesse meio tempo, seus pais receberam as
ordens judiciais e correram até a casa junto com Amélia. Além disso, os advogados de Dante
também tinham chegado, uma equipe completa para auxiliá-lo no caso.
Dante agora tinha advogados. Cortesia de sua tia Dulce.
— Por favor, Sr. Krause. Peço que não se dirija diretamente ao meu cliente — uma de suas
advogadas, uma mulher asiática e baixinha chamada Suzy, disse sem aparentar uma gota de
nervosismo. — Serei a interlocutora do processo.
— E quem é você? — Otto estava arfando de tanta raiva. Colocou as mãos na cintura,
lançando um olhar fulminante para a advogada.
— Suzy Nakamura, senhor. Advogada de Vara da Família. — Ela puxou um cartão do
bolso do blazer.
Otto o rasgou assim que o colocou nas mãos. Alguns papeizinhos caíram em cima dos tênis
de Dante.
— O que você planeja com isso tudo, seu fedelho? — Otto gritou para ele. — O que você
ganha expondo sua família desse jeito?
— Está tudo registrado na ordem judicial, senhor — Suzy disse. — Não a leu?
— Acha mesmo que vou ler aquele disparate…
— O Sr. Dante abriu uma ação judicial contra o Sr. Otto Krause e a Sra. Marília Krause. E
pretende entrar com um pedido de guarda provisória à definitiva da irmã mais nova, Amélia
Krause — Suzy explicou.
— Como é? — Marília deu um grito. — Você quer tirar a Amélia da gente?
— Tendo em vista o estado de saúde da Srta. Amélia, o Sr. Dante se viu obrigado a intervir
na situação, já que acredita que sua irmã não receberá o tratamento adequado da forma que está.
Dante engoliu em seco. Nossa, como era ótimo ter um advogado, ele nunca teria coragem
de dizer aquilo tudo para os pais. Ainda estava se recuperando dos efeitos da reportagem.
Otto deu uma risada amarga. Passou a língua por entre os dentes, encarando o filho com
uma fúria avassaladora. Dante tentou não tremer e manter o contato visual o máximo que
pudesse.
— Você acha mesmo que pode nos processar? Pegar a guarda da sua irmã? Você não tem
nem onde cair morto, Dante. Vai fazer sua irmã morar com seu primo, acha que pode nos atingir
com essa cadela que arranjou como advogada? Aposto que não tem dinheiro nem pra pagar os
honorários dela.
Era verdade, seu pai tinha razão nisso. Mesmo com os advogados da tia, todo aquele
processo judicial cairia em suas costas, seus pais iriam atrás de seu sangue. Sua tia o ajudaria a
comprar um apartamento, mas ele teria que arranjar um emprego como médico para sustentar a
irmã e ter a possibilidade de conseguir a guarda dela, mas não desistiria.
Só a satisfação de ver a reputação de seus pais cair na lama já era um prêmio. Tudo já tinha
valido a pena só por isso.
Ele abriu a boca para argumentar, mas Suzy esticou o braço, impedindo-o.
— Meu cliente é plenamente capaz de pagar meus honorários, senhor — disse. — E
suponho que questões de moradia também não serão um problema, visto o tamanho de seu
patrimônio.
— Acha que esse moleque tem algum patrimônio? — Otto riu mais um pouco. — Não há
nada de valor no nome dele. Até eu morrer, esse idiota não vai receber nada.
— Estou falando do patrimônio herdado do tio dele, o Sr. Klaus Krause.
Todos ficaram em silêncio. Dante ouviu Dulce pigarrear ao seu lado. Ele franziu tanto as
sobrancelhas que o ponto onde se encontravam começou a doer.
Que patrimônio? Tudo que tinha herdado do tio fora uma gata escaminha, uma guitarra e
uma certa aptidão à rebeldia.
— Quê? — foi o que conseguiu dizer.
— Legalmente, a única herdeira do Sr. Klaus é sua esposa, a Sra. Dulce Krause, visto que
não tiveram filhos. No entanto, foi entendido por ela e por registros familiares da época que foi
acometido pelo câncer, que o Sr. Klaus tinha muito interesse que o Sr. Dante, meu cliente,
herdasse metade de seu patrimônio, tendo em vista que o considerava um filho. Sendo assim, a
Sra. Dulce, a viúva, quis fazer a vontade de seu falecido marido e de bom grado doou a quantia
estabelecida — Suzy voltou com suas explicações. — Os papéis oficiais ainda estão sendo
emitidos, já que a decisão da própria herança da Sra. Dulce saiu há pouco tempo, mas muito em
breve tudo estará no nome do meu cliente. Espero que tenha esclarecido de forma satisfatória
para todos.
Meu Deus. Dante estava com os olhos totalmente arregalados. Ele nem fazia ideia do
tamanho real do patrimônio do tio, mas se fosse chutar…
Ele tinha acabado de ficar mais rico que o pai. Muito mais rico. Mesmo sendo só metade
do patrimônio inteiro, já que seus avós tinham herdado a outra parte, ainda era muito dinheiro.
— Tia… — Virou a cabeça para enxergar Dulce. — Mas…
— Querido, me desculpa por nunca ter falado nada — ela falou, seus olhos já marejados
pela emoção. — Klaus sempre quis cuidar de você quando começou a desconfiar do que seus
pais estavam fazendo. Mas ele ficou doente logo depois e… Eu não pude nem te ajudar, sua
família nunca me daria sua guarda, eu…
Ela fungou alto. Limpou as lágrimas com as costas da mão. Depois cerrou os punhos.
— Eu não queria que fosse tão dramático assim — admitiu. — Fiquei enrolando fazer a
vontade do Klaus porque tinha medo de sua família te engolir por causa disso. Mas você foi pra
Niterói, o Henrique me contou o quanto você estava indo bem e… Eu ia te contar no memorial,
mas não deu. Mas o que está feito está feito e fico feliz que isso te ajude a proteger sua irmã. É
isso.
— Ah, meu Deus! — Marília berrou. Tinha começado a chorar desesperadamente. —
Você vai mesmo fazer isso com a sua própria família, filho? Não acredito nisso!
— Dante, eu… — seu pai tentou falar também. Sua voz estava bem mais calma e
comedida agora.
— De novo, peço que não se dirijam diretamente ao meu cliente — Suzy interveio. —
Tendo em vista que tudo foi esclarecido, gostaria de pontuar que o Sr. Dante está disposto a
continuar com o processo de forma discreta caso aceitem o tratamento da Srta. Amélia em efeito
imediato.
— Você tiraria os processos se aceitássemos internar a Ame, filho? — Marília perguntou.
— Certamente não foi isso que quis dizer, senhora — Suzy não deixou que Dante
respondesse. — Meu cliente continua com o ímpeto de buscar justiça e pretende arcar com todas
as consequências do processo e da guarda, sejam elas dramáticas ou não. O que quis dizer foi
que tudo pode ser resolvido de maneira amistosa se aceitarem o tratamento da Srta. Amélia.
Nossa, realmente era ótimo ter um advogado. Suzy já tinha se tornado sua amiga pessoal
naquele ponto.
Todos ficaram em silêncio novamente. Dante teve um vislumbre de uma imagem
totalmente nova de seu pai.
A de derrota.
— Tudo bem — Otto murmurou. — Nós… Nós aceitamos.
— Entende que efeito imediato é neste exato momento, senhor? — Suzy perguntou. — A
Srta. Amélia será internada agora mesmo.
Dante olhou para a irmã. Procurou algum indício de que ela estivesse com medo ou que
não quisesse ser engolida em todo aquele drama. Mas Amélia sorriu para ele, contendo as
lágrimas, e deu um pequeno aceno com a cabeça. Dante sorriu de volta, mais aliviado.
— Eu… — Otto gaguejou. Era a primeira vez que Dante via seu pai gaguejar. — Eu
entendo.
Dante mal conseguiu ouvir o resto. Assistiu seus pais tentarem discutir mais um pouco
com Suzy, mas a advogada estava irredutível. Depois, eles decidiram deixar Amélia ali para
esperar pela internação, mal se despediram dela. No entanto, sua irmã não pareceu se importar.
Saiu correndo na direção do irmão, abraçando-o com a pouca força que tinha, as lágrimas
finalmente caindo por seu rosto.
— Dan, obrigada! Obrigada… — Ela chorou. Dante só conseguiu abraçá-la de volta.
— Vou cuidar pessoalmente dela, não precisa se preocupar — Dulce garantiu. — Você
pode ir pra Niterói em paz e resolver tudo que tem que resolver pra recebê-la quando Amélia
tiver alta, tudo bem?
Ele só aquiesceu, ainda aturdido. Dulce disse que ia levar Amélia para descansar um pouco
antes de ir para a clínica. A equipe de advogados e Suzy começaram a comemorar, gritando e
batendo palmas.
Dante estava completamente sem ar.
Levantou-se correndo, dirigindo-se para o lado de fora. Desceu o caminho até a praia nos
fundos, parando no fim do deque de madeira que costumava pescar com o tio. Fitou as águas
calmas, as pequenas ondas batendo na madeira, a espuma se formando. Depois olhou para o céu,
notando as nuvens tingidas de laranja, o começo do pôr-do-sol. Sentiu o vento sacudir seu
cabelo, o cheiro de sal.
E as lágrimas. Sentiu as lágrimas queimarem seu rosto. O primeiro soluço irrompeu de sua
garganta como um som oco. Depois o segundo, o terceiro. Dante chorou e soluçou tanto que
ficou sem forças até para ficar de pé. Deitou-se no deque, esticando os braços e pernas.
Inspirou e expirou uma vez. Seu peito doeu, mas ele repetiu o movimento. Depois de novo
e de novo, até o ar adentrar seus pulmões em totalidade.
Por último, fechou os olhos e sorriu.
Finalmente estava respirando.
CAPÍTULO 28
"Mesmo que estejamos passando por isso
E isso faça com que você se sinta sozinha
Apenas saiba que eu morreria por você
Amor, eu morreria por você”
Now Playing: Die For You
The Weeknd

03/07/2024
14 dias para o fim do semestre

Jana acordou com um post-it colado na testa.


— Mas que porra…? — resmungou, retirando o papelzinho para lê-lo. Era um dos post-its
que Lis costumava usar, em formato de gatinho.
Espremeu os olhos para ler, identificando a letra de sua amiga. Demorou alguns segundos
para que conseguisse, de fato, entender a mensagem.
“Fui pra casa da minha mãe” – Lis
— Ai, meu Deus. — Sentou-se na cama rapidamente, de coração acelerado. — Ai, meu
Deus!
Levantou-se em um pulo, buscando o celular na mesinha de cabeceira. Discou o número de
Lis enquanto andava em círculos pela sala, roendo as unhas.
A chamada nem completou. Lis tinha desligado o celular? Por quê?
— Ai, meu Deus. Ai, meu Deus! — Jana estremeceu. — Ela voltou pra casa da mãe? Ela
foi…
A Lis desistiu de morar aqui? Vai desistir de tudo? Pensou, estremecendo cada vez mais.
O que era aquilo? Ela não tinha acreditado no que Jana dissera, de que dariam um jeito?
Tentou ligar de novo. Nada. Jana não sabia se ficava com medo ou se ficava com raiva. Lis
ia mesmo desistir dos sonhos para viver como escrava da família? Tudo para não ter que pedir
ajuda para os amigos e o namorado? Ela era mesmo tão orgulhosa assim?
Não é nem orgulho, é… A Lis não bate bem da cabeça, é isso. Jana concluiu.
— Certo, acho que a única pessoa que pode colocar juízo na cabeça dela agora é o Dante
— falou para si mesma. — Vou ligar pra ele e…
Jana não tinha o número de Dante, nunca precisou. Tinha o número de Henrique, mas não
queria falar com o primo do amigo naquele momento. A relação dos dois estava um pouco
estremecida e Jana de vez em quando sentia vontade de castrá-lo quando Henrique lhe dava um
perdido, então era melhor deixá-lo como último recurso.
— A Mi deve ter… — Discou o número da amiga, Emília com certeza saberia o que fazer
naquela situação.
— Tão. Cedo! — ela resmungou assim que atendeu. — Espero que seja importante.
— É muito importante! — Jana quase gritou ao telefone. — Acho que a Lis foi voltar a
morar com a mãe!
— Como é?
— A porra da Isabela engravidou e a mãe dela queria que a Lis voltasse pra casa pra cuidar
do rebento melequento. A Lis recusou e a mãe dela disse que não pagaria mais o aluguel da Lis!
Eu falei que a gente daria um jeito, mas você sabe como ela é! Aposto que voltou pra casa
porque “não quer dar trabalho”! Eu vou matar essa garota!
— Caralho. O namorado dela é a porra de um herdeiro.
— Foi o que eu disse! Mas ela não queria incomodar o Dante, porque ele tá fazendo sabe-
se lá o que que ela nem quis contar! E quando ele voltar pra cá e descobrir que a namorada foi
banida pros confins de Jacarepaguá? Porra, eu nem sei onde é Jacarepaguá, a Lis vive dizendo
que é longe pra caralho! Como ela vai terminar o semestre assim?
— Tá, ok. Foco. Já ligou pra ela?
— Ela simplesmente não atende! Aquela cachorra sem-vergonha desligou o celular! Ela
nunca desliga o celular!
— Ok. Alguma chance de você ter o endereço da casa da mãe dela?
— Não. Acho que a única pessoa que sabe onde é seria o Dante, ele a levou quando deu
aquela crise do gato e tudo mais. Você tem o número dele?
— Não, a Lis não me deu e eu acabei falando com ele só pelo Instagram…
— Ah, essa safada da Lis! Não tô acreditando nisso! — Jana se pôs a chorar. Ela era do
tipo que chorava por qualquer coisinha, principalmente se tratando de uma de suas melhores
amigas. — Mi, e se ela não se formar? Tava tão perto!
Emília ficou em silêncio por um momento. Jana fungou e ficou esperando pela solução
milagrosa da amiga.
— Você vai ter que falar com o Henrique — foi o que ela disse no fim.
— Ah, caralho. — Jana espremeu os olhos com os dedos. — Ele nem vai ler minhas
mensagens, aquele escroto.
— Você pode bater na porta dele…? — A voz de Emília quase sumiu do outro lado da
linha.
— Você quer me destruir, Emília Park? Só porque eu não te ouvi quando você disse que
ele não era meu match?
— Eu não, a Lis. Pense que é por um bem maior. Também vou ter que me sacrificar, sabe?
— Ah, é? E o que vai fazer?
— A gente ainda vai ter que ir até a casa da mãe da Lis pra trazer ela de volta pelos
cabelos. E vai demorar se a gente pegar um Uber. Vou ter que pedir um favor pra um diabo.
— Quê?
— O Gustavo tem carro. Vou pedir que ele leve a gente. Como é pela Lis, talvez ele aceite.
Mas vou ser obrigada a me arrastar até a porta do maior babaca do universo. Feliz? Enquanto
isso, vou tentar falar com o Dante pelo Insta.
Jana respirou fundo. Maldita Elis Duarte, isso vai ser um sacrifício do caralho, pensou.
Bater na porta de Henrique significava correr o risco de cair nos encantos daquele salafrário.
— E se eu acabar transando com ele de novo e esquecer da vida…? — murmurou, falando
mais para o ar do que para Emília. Henrique era bem bonito, sempre haveria a possibilidade.
— Eu te mato e mato ele também. — A outra bufou. — Anda logo.
E desligou. Emília não era uma das pessoas mais simpáticas pela manhã. E ter que bater na
porta de Gustavo era quase como a morte para ela.
— Juro que te mato, Lis — choramingou, voltando para o quarto para mudar de roupa.
Olhou para o post-it jogado na cama, a letra da amiga no papelzinho bonitinho. Era
estranho, Jana já estava com saudades dela. Parecia que Lis tinha acabado de morrer.
— Juro que te mato e faço picadinho com seu fígado — repetiu, limpando as lágrimas. —
Mas aguenta firme, amiga. Vamos te salvar.
Custasse o que custasse.

— É ótimo te ver, minha querida. Mas realmente não é uma boa hora… — Henrique disse
assim que abriu a porta de seu apartamento para Jana.
Ela nem pestanejou, só entrou. Aquele idiota quase não a deixou subir, Jana teve que ficar
implorando.
— Lindão, preciso de um favor. — Ela deu uma virada de 180º, exibindo seu sorriso mais
sedutor.
— Eu faria o que você quisesse, você sabe. Você tá gostosa pra caralho com esse
vestidinho…
— Eu sei. — Ela deu uma risadinha forçada. Tinha o colocado exatamente por isso. —
Então, pode me ajudar?
— Eu poderia. Mas não hoje. Hoje é um dia complicado…
— Eu só preciso do número do Dante. Só isso.
Henrique suspirou alto, passando as mãos pelos cachos loiros. Jana não entendia aquele
drama todo. Era só um número de telefone, não era como se ela estivesse o pedindo em namoro.
Ele também nunca pediu, para início de conversa. Tinham ficado desde o carnaval e
Henrique sequer deu algum sinal de que queria aprofundar sua relação com Jana. Dante e Lis
tinham se beijado uma vez e já tinham se chamado de “amor”. O mundo era injusto às vezes.
Lis tinha fisgado o único Krause que valia a pena, pelo visto. E estava prestes a jogar tudo
para o alto.
— Lindão, por favor. — Esganiçou a voz, brincando com as tranças. Lis pagaria por cada
segundo daquela humilhação. — Serei eternamente grata e…
Ela teve um vislumbre de algo em cima da mesa de centro da sala. Era um buquê enorme.
— Ah, entendi por que você não queria que eu viesse. — Ela perdeu a postura sedutora na
hora. — Quem vai ser a agraciada pelo Djavan hoje?
— É isso que pensa de mim, gatinha? — Henrique deu uma risada.
— Óbvio.
— Sinto te decepcionar, mas não sou o dono desse buquê. Só fui forçado a comprá-lo.
— Ah, não vem com essa pra cima de mim. Só me dá a porra do número do Dante,
caralho. É caso de vida ou morte.
Henrique arregalou os olhos, surpreso.
— Por quê? — perguntou.
— Porque a namorada dele desapareceu.
— Quê?
— Porra, Henrique! Você acha que tenho tempo e energia pra te explicar? Só me dá a
porra do número!
— Posso até te dar, mas acho que ele não vai conseguir atender.
— Ah, mas eu vou… — Jana estava quase espumando de raiva. Esganaria Henrique se ele
continuasse enrolando.
— É sério! Da última vez que falei com ele, o Dante tava embarcando no avião! Nem sei
se já chegou no Rio!
Jana parou de repente. Como era? Dante estava voltando?
— Quê?
— O buquê é pra Lis. — Henrique revirou os olhos. — Ele me forçou a comprar. Vai vir
direto pra cá e depois vai fazer uma surpresa pra ela. É isso.
Jana estava de boca aberta, sem acreditar.
— Porra, você tem noção que o maluco do meu primo processou os pais dele? Saiu na
porra do jornal, Jana! Ele jogou a merda no ventilador e está voltando pra cá pra fazer uma
surpresinha pra namorada como se não tivesse jogado a reputação dos Krause no lixo! E você
ainda quer que eu te ajude com esse drama infantil da tua amiguinha? Me poupe!
Pronto, a raiva tinha voltado. Jana estava prestes a avançar contra Henrique quando ouviu a
porta da frente ser aberta.
E Dante entrando por ela.
— Ah. Oi, Jana. — Dante abriu um sorrisinho para ela. — Não sabia que tinha voltado a
sair com Henrique. Não vou atrapalhar, só vou pegar aquilo ali e…
— Você voltou…! — Jana começou a chorar.
Dante franziu o cenho. Fechou a porta e deixou a mala e a mochila no canto, ainda um
pouco confuso.
— Tá tudo bem? — ousou perguntar.
— Não! A Lis…
— Quê? — Ele congelou na hora.
Alguma coisa tinha acontecido com Lis? Não tinha falado com ela ainda porque queria
fazer surpresa e por causa de todo caos que seu plano mirabolante causou. O que poderia ter
acontecido naquele meio tempo?
— O que aconteceu? — perguntou.
— A Lis vai voltar a morar com a mãe! Ela desistiu de tudo, do TCC, da faculdade, do
mestrado! Tudo porque a Isabela engravidou! Ela vai ter que ser madrasta do filho do ex com a
irmã!
Dante nem sabia o que dizer. Tinha sido por isso que Lis chorara no dia anterior? “Mas eu
tô bem. Tentando segurar só aquilo que posso alcançar, um passo de cada vez. De verdade” ela
tinha dito.
Não fazia sentido algum.
— Jana, me explica direito o que aconteceu — pediu.
— Já expliquei! E ela nem atende o celular! Só colou a porra de um post-it na minha cara e
foi embora! Tá incomunicável há horas! Por isso vim aqui pedir seu número pro Henrique, você
sabe onde é a casa da mãe dela! A gente tem que ir até lá e tirar essa ideia idiota da cabeça dela!
Tudo isso por causa de míseros 550 reais! Quanto foi essa porra de buquê, uns 150? Você é rico
pra caralho, não dá pra entender…
Certo, agora que Dante não estava entendendo nada mesmo. Ainda assim, ele só pegou a
carteira da mochila e o celular. Conferiu rapidamente as mensagens, confirmando que não havia
nem sinal de Lis nas últimas 12 horas. E eles não eram do tipo de casal que ficava sem se falar
por muito tempo, o dia anterior tinha sido uma exceção.
— Henrique, me empresta o carro — pediu.
— Ah, você não espera que eu te ajude mais depois de tudo que fez! Você processou a sua
família, Dante Krause!
— Ai, cala a boca, Henrique! — Jana deu um grito. — Não precisa pedir nada pra ele, o
Gustavo já deve estar chegando. A Emília pediu uma carona, ele vai nos levar até lá. Você só
tem que falar onde é. Vamos descer logo.
Dante obedeceu, seguindo Jana pelos corredores do prédio com o coração aos pulos. Ele
não tinha entendido absolutamente nada do que tinha acontecido, mas estava preocupado, muito
preocupado. O que quer que tivesse ocorrido, envolvia o ponto mais sensível de Lis: sua família.
E nunca era algo fácil de resolver.
E se ela se decidisse por ficar na casa da mãe? Dante suava frio só com essa possibilidade.
O carro de Gustavo já estava lá embaixo quando Jana e ele desceram. Emília acenou para
os dois, sem sua energia habitual. Na verdade, estava um pouco desarrumada e com cara de
poucos amigos. Gustavo também não estava com uma cara boa, mas já era de se esperar.
Entrou no carro, deu as coordenadas para o colega.
E foi atrás de sua namorada desaparecida.
CAPÍTULO 29
"E você pensou que este idiota nunca ia conseguir?
Bem, olhe para mim, estou de volta outra vez
Provei o amor de um jeito simples
E se quer saber
Enquanto estou de pé
Você desapareceu”
Now Playing: I’m Still Standing
Elton John

— Lis! Tá fazendo o que aqui? — Isabela abriu o portão com uma expressão de surpresa
no rosto. Não parecia chateada ou com raiva, só a olhava como se a última coisa que esperasse
fosse ver Lis ali, na manhã do dia seguinte depois da briga com a mãe.
Lis lançou um olhar ininteligível para a irmã, esperando que ela lhe desse passagem para
entrar. Não estava nem um pouco a fim de conversa fiada ou torturas psicológicas, só queria
fazer o que viera fazer ali e voltar logo para casa.
— Você não tá voltando pra cá, né? — Isabela fez uma careta. — Já tô contando com seu
quarto pro quartinho do bebê, vai ter que dormir no sofá se quiser voltar mesmo.
— Sai da minha frente — Lis rosnou, empurrando de leve a irmã.
Adentrou pelo quintal, dando uma olhadela pelo espaço antes de entrar em casa. Queria
captar todos os detalhes que pudesse do lugar que morara por quase sua vida inteira, suas
lembranças infantis e da adolescência, recordações tanto boas quanto ruins, todo o tempo que
passara ali.
Porque seria a última vez. Lis não voltaria mais para aquela casa. Pelo menos não tão cedo.
— Ah, minha filha! — Dona Brenda quase deu um grito de surpresa. — Sabia que você ia
acabar voltando! Graças a Deus!
Lis congelou por um momento diante da declaração da mãe. Ainda era difícil contestá-la.
Ali, parada bem à sua frente, estava a mulher que fizera de tudo pelas filhas desde sempre, que se
transformou em duas depois do divórcio.
Contudo, era o fim de um ciclo. Se Lis não o interrompesse bem ali, ela nunca conseguiria
sair, se tornaria cada vez pior. Com o filho de Isabela em jogo, Lis se veria cada vez mais tragada
nos dramas de sua família.
— Onde a Lis vai ficar agora? — Isabela entrou na sala com uma cara emburrada, de
braços cruzados. — Já tirei quase todas as coisas dela do quarto, fiz até o projetinho de
decoração pro meu filho.
Lis ficou perplexa com aquela declaração. Era como se Isabela não tivesse deixado nem
seu corpo esfriar.
Era inacreditável.
— Lis vai ficar no quarto dela, Isabela! — sua mãe falou, ríspida. — Ela também precisa
de espaço.
— Mas e o meu bebê? Você não espera que ele fique no meu quarto, né? Vou ser uma
recém-casada com o Gabriel, eu que preciso de espaço!
— Pelo amor de Deus… — Lis grunhiu, apertando a ponte do nariz. — Não se preocupa,
Isa. Pode ficar com o quarto.
— Ah, que bom! Sabia que entenderia! Que tal se a gente fosse na loja de tinta hoje pra
escolher a cor nas paredes e…
— Pode ficar com o quarto, porque não vou voltar pra cá — ela a interrompeu. — Vim só
pegar minhas coisas.
Todas ficaram em silêncio. Dona Brenda pareceu prender o ar, Lis se encolheu. Isabela só
inclinou as sobrancelhas.
— Ah, então tá bom. — Deu de ombros. — Mas você ainda vai comigo na loja de tintas,
né?
— Vai à merda, Isabela — Lis resmungou, dirigindo-se até o antigo quarto. Não quis olhar
para a mãe de jeito nenhum.
Abriu a porta, arregalando os olhos por um segundo. Ela quase não reconheceu o lugar.
Seus pôsteres já tinham sido todos arrancados da parede. Arrancados, não tirados. Havia
pedacinhos rasgados ainda colados. Suas roupas estavam jogadas em um montinho no canto do
quarto e seus pertences em caixas ou no chão, algumas coisas estavam quebradas, como se
tivessem sido jogadas. Já tinham tirado até a cama, Isabela devia ter pedido ajuda para Gabriel
para retirá-la assim que Lis foi embora no dia anterior.
Lis sentiu vontade de chorar. Não esperava por aquilo. Tinha pensado que, pelo menos, lhe
dariam a dignidade de juntar suas coisas e ir em paz.
Se ela soubesse, teria tirado fotos do quarto, retirado os pôsteres com cuidado, dobrado
cada um. Teria passado um tempo ali, parada, se despedindo. De um jeito ou de outro, era a vida
dela naquelas paredes, seu passado.
Não tinha jeito, Lis começou a chorar. De raiva, de tristeza, por tudo. Aquilo tinha a
desarmado por completo. Já tinha sido difícil dormir ou pensar em qualquer outra coisa no dia
anterior, Lis ficou a madrugada inteira encarando o teto e pensando no que fazer. Tinha
conseguido juntar o mínimo de coragem de voltar para casa para pegar suas coisas e algo que
pudesse vender.
No entanto, não esperava por isso. Era como uma bofetada em sua cara.
— Filha, vamos conversar direito. — Sua mãe entrou no quarto. Franziu as sobrancelhas
quando percebeu Lis chorando. — Você não pode tomar uma decisão dessas sem nem pensar
direito.
— Acho que vocês já a tomaram por mim. — Lis fungou, limpando o rosto.
Dona Brenda deu uma olhada no quarto. Depois suspirou, triste.
— Eu falei pra Isabela esperar, mas ela tava tão animada… — disse. — Mas não tem
problema, filha. Se você voltar, a gente reforma seu quarto inteirinho, tudo bem? Não fica assim.
— Não posso nem ficar triste? — Lis soltou uma risada desgostosa. — Nem isso a senhora
me permite?
— Não foi isso que quis dizer. Só quero que encare a situação como a adulta que sei que é.
Não precisa fazer um alarde desse tamanho.
— Alarde?
— Você saiu correndo daqui ontem, não ouve mais ninguém. Só quer fazer o que quer, não
pensa mais na família e age como se a gente tivesse te apunhalado pelas costas.
— Destruir meu quarto não se encaixa perfeitamente nisso? Não deu nem 24 horas, mãe.
Vocês não esperaram nem um dia inteiro pra me jogar fora.
— É só um quarto, Lis! Não sei por que…
— O quarto sou eu, mãe! — Lis gritou. — Minha vida inteira tava aqui dentro! Eu cresci
aqui, vivi aqui! E vocês não me deram nem a chance de guardar minhas coisas, de pensar
melhor! Se livraram de mim na primeira oportunidade que tiveram!
— Ninguém se livrou de você. Você que quis ir embora.
— Por que eu querer continuar com a minha vida é tão absurdo assim? — Lis chorou mais.
— Mãe, tem noção do que me pediu? Você quer que eu desista de tudo pra ajudar a criar o filho
da Isabela.
— Porque a sua irmã é jovem demais, não vai conseguir sozinha!
— Por que eu tenho que ser a adulta e a Isabela pode continuar agindo como uma criança?
Por que sempre tem que ser eu?
— Porque sempre foi assim, filha! Ela é frágil, nunca aceitou bem as coisas… Isabela é a
sua irmãzinha, Lis. Você sempre fez tudo por ela. E agora é importante. É a coisa mais
importante de todas! É a vida do seu sobrinho em jogo!
— É. Eu sempre fiz tudo por ela. Tudo. Gastei meu tempo, meu dinheiro, meu afeto, minha
sanidade. E olha o que recebi em troca. Isabela é jovem ou frágil demais pra entender que isso
não se faz com a própria irmã? Roubar tudo que puder de mim? Meu ex, meu quarto, minha
vida, meu futuro? É isso que mereço dela?
Dona Brenda ficou em silêncio. O estado do quarto era tão gritante que era difícil
argumentar contra isso.
— E você deixa isso acontecer, mesmo sabendo que é errado. Tá tão magoada comigo
porque acha que eu te abandonei quando fui pra faculdade, que deixou a psicopata da Isabela
destruir tudo que eu tinha! Tudo que você faz desde que saí daqui é me punir!
— Eu não tô te punindo, só quero que entenda…
— E o meu gato, mãe? Qual era sua intenção ao praticamente jogar meu gato na rua? Não
queria me punir porque eu briguei com a Isabela?
— Aquele gato sempre foi responsabilidade sua, não da Isabela, não minha. Você foi pra
faculdade e esperou que a gente cuidasse dele sem mais nem menos. Tudo que sempre te peço é
que encare as coisas de forma madura, como uma adulta!
Lis riu, as lágrimas amargas escorrendo pelo seu rosto.
— É, ele é responsabilidade minha mesmo — disse. — Mas a Isabela não é. Por isso, pode
ficar com o quarto, com os meus restos. É tudo que vão ter de mim agora. Porque vocês não são
responsabilidade minha, não mais. Ser adulta é saber onde parar. E a gente para por aqui.
Pegou uma caixa com seus pertences. Havia livros e cadernos ali, fotos espalhadas. Não
daria para vender quase nada, mas não importava.
Aquele mês de aluguel já estava garantido de qualquer jeito. Lis entregara seu celular para
Dona Etelvina como garantia. Ele era velho e estava com a tela rachada, mas devia valer quase o
valor total do aluguel. Ela só teria que segurar as pontas até ganhar a bolsa do mestrado. Poderia
dar aulas particulares, bicos, faxinas, qualquer coisa. Ela faria qualquer coisa.
E, se pensasse bem, aquilo era a última coisa que sua mãe e sua irmã poderiam tirar dela.
Não havia mais nada, Lis tinha sido jogada fora por completo.
Era triste, um absurdo. Mas também libertador. Não havia mais expectativas para cumprir,
desejos que nunca se realizariam. A realidade se pôs concreta e só cabia a ela aceitar, seguir em
frente. Seguir ao lado das pessoas que realmente a amavam, que se importavam com ela.
Uma virada de página, era isso. Respirar por completo.
Sua mãe falou mais alguma coisa, mas Lis não conseguiu ouvir. Concentrou-se na própria
respiração, em seus batimentos cardíacos acelerados, em não passar mal e deixar tudo ainda pior.
Isabela uma hora entrou no quarto também e começou uma discussão com a mãe sobre aquele
quarto estúpido, pouco se importando com o estado da irmã mais velha. Lis colocou tudo que
conseguiu dentro de uma caixa só, era o que conseguiria levar sozinha. Teria que fazer toda a
viagem de volta com uma caixa enorme sozinha até Niterói.
Mas era aí que acabava a solidão. Lis chegaria em casa e seria recebida por Jana, a amiga a
ajudaria a guardar suas coisas enquanto xingaria sua família com todos os palavrões que
conhecia. Depois a arrastaria para a casa de Emília, as duas ficariam a consolando até que Lis se
sentisse melhor. Gustavo estaria a algumas portas de distância, Lis poderia visitar Sr. Darcy. No
dia seguinte, ela iria para o laboratório e Leandro estaria lá, animado com sua defesa, sempre
alegre e positivo. Joana ligaria para ela poucos dias antes da apresentação, ficariam horas
conversando sobre o TCC, seria a mãezona que sempre foi.
E Dante ia voltar. Ele ia voltar e a primeira coisa que faria seria abraçá-la, garantir que
ficaria tudo bem. Diria que a amava, que se orgulhava dela e que ficaria para sempre ao seu lado,
que nunca a abandonaria.
Todas as coisas e pessoas que amava, tudo que importava bem ali, ao alcance de suas
mãos.
Lis estava voltando para casa.

— Tá passando mal, Dante? — Jana perguntou enquanto olhava para ele, alarmada. —
Você tá pálido pra caralho!
Dante a espiou de lado, sem ter forças sequer para respondê-la. Passando mal talvez não
fosse o termo certo, mas seu coração estava em descompasso desde que Jana lhe dera a notícia de
que Lis havia desaparecido. Ficou pensando no que poderia fazer para resolver o problema
durante o trajeto do carro, sacudindo a perna e tamborilando os dedos para dispersar a ansiedade.
Ele ainda nem tinha compreendido a situação como um todo. Jana não parava de chorar e
não conseguia contar nada direito, ficava tentando ligar para Lis mesmo que soubesse que ela
não ia atender. O que deixava todos preocupados era isso, o fato de Lis sequer querer falar com
qualquer um deles.
Será que ela estava chorando? Será que tinha passado mal, desmaiado? O que ele faria
quando chegasse na casa da mãe dela? Dante ainda estava um pouco mexido com toda a situação
de sua própria família e a descoberta de que, de repente, tinha herdado metade da fortuna do tio.
Era muita coisa para processar, talvez por isso ele estivesse mesmo um pouco pálido.
Ele só queria alguns minutinhos de paz. Tinha pedido para Henrique comprar um buquê
bonito e tinha reservado a mesma suíte de luxo em Ipanema de antes, aquela que eles não tinham
conseguido aproveitar no aniversário de namoro.
Será que aquele quarto era amaldiçoado? Toda vez que Dante fazia uma reserva, algo ruim
acontecia.
— Eu… Só tô um pouco preocupado — conseguiu responder. Estavam quase chegando à
casa da mãe de Lis.
— Certo, qual é o plano então? — Jana perguntou.
— Vou jogar um tijolo na janela enquanto vocês entram — Emília rosnou. — Vou tacar
fogo no jardim. Só não dou um soco na Isabela porque ela tá grávida.
Emília era a epítome do mau-humor naquele momento. A mistura de preocupação, o fato
de ter acordado cedo demais e ter sido forçada a interagir com Gustavo quase tinham formado
uma nuvem escura no topo de sua cabeça.
— Para de ser infantil — Gustavo reclamou.
— Ah, e você tem um plano melhor, oh, rei da maturidade?
— Vou dizer que, se ela não voltar, não devolvo o gato dela.
Emília ficou quieta por um segundo, refletindo.
— Talvez seja um bom plano mesmo — admitiu.
— Óbvio que é. Se usasse dois neurônios pra pensar, teria percebido mais cedo.
— Ai, cala a boca. Senão vou jogar um tijolo em você.
— Para, vocês não tão ajudando em nada! — Jana chorou. — Ah, coitada da minha amiga!
Por que essas coisas ficam acontecendo com ela? A Lis não merece isso!
Jana continuou chorando e Emília e Gustavo permaneceram trocando farpas até virarem na
rua sem saída. O estômago de Dante se contorceu de nervosismo e ele engoliu em seco. Suas
condições mentais também não estavam tão boas. Dependendo do que Isabela e Dona Brenda lhe
dissessem, ele também teria vontade de jogar um tijolo em uma janela daquela casa.
Contudo, logo percebeu que nada daquilo seria necessário.
Porque Lis estava saindo pelo portão de casa naquele exato momento.

Lis talvez devesse ter colocado menos coisas naquela caixa.


Tentou equilibrá-la erguendo a perna enquanto abria o portão, mas refletiu que seria
terrível carregar tudo aquilo até o BRT, barcas e depois pela caminhada de volta ao seu prédio.
Chegou a pensar em pedir um Uber, mas seria um gasto que ela se arrependeria depois.
Só mais um esforcinho e acabou, pensou, apoiando a caixa nos antebraços enquanto
fechava o portão com o quadril. O peso da caixa em seus braços fez arder os arranhões recém-
feitos por Isabela bem ali, quando Lis resolveu recolher todos os presentes que tinha dado para a
irmã. O Kindle, as roupas, maquiagens, Lis recolheu tudo com Isabela a sacudindo e a agarrando
enquanto gritava que não era justo. Nesse ponto, Dona Brenda já tinha começado a chorar e
implorava que Isabela deixasse aquilo passar. Sua mãe nem sequer a impediu de pegar as coisas
da irmã. Parecia em choque por tudo que Lis dissera, talvez finalmente tivesse se dado conta do
que fizera com a própria filha.
Tudo que Lis disse foi que estava ajudando a conseguir espaço para o bebê. E foi embora,
carregando suas coisas e tudo que conseguiu tirar de Isabela.
Tinha sido uma cena e tanto, Lis por um momento se sentiu vitoriosa e vingada. Podia até
ser um pouco infantil, mas foi satisfatório ver Isabela não conseguindo o que queria pela
primeira vez na vida.
Mas aquela caixa estava bem pesada. Talvez ela devesse reconsiderar o Uber.
— Olha ela ali! — Por algum motivo, Lis ouviu a voz de Emília vinda do fim da rua.
Virou a cabeça em direção ao som, franzindo as sobrancelhas ao reconhecer o carro de
Gustavo se aproximando. Sua careta se aprofundou ao enxergar Jana colocando a cabeça para
fora e esticando o braço para acenar para ela.
Jana estava chorando? O que era aquilo?
— Não ouse entrar nessa casa, Elis Castro Duarte! — ela gritou. — Não ouse!
— Quê? — Lis endireitou a caixa que quase caía de suas mãos, tentando entender a cena
que se desdobrava diante de si.
Gustavo estacionou o carro. Suas amigas mal esperaram o veículo parar totalmente,
abriram a porta em um pulo, correndo até ela. As duas quase arrancaram a caixa das mãos de Lis.
— Solta, você não vai se mudar pra cá! — Jana gritou.
— Quê? — Lis arregalou os olhos, cada vez mais confusa.
— Porra, Lis! Caralho! — Emília berrou. — Ficou maluca? Vai desistir de tudo por causa
de um aluguel? Eu vou te matar!
— Do que vocês tão falando?! — Lis gritou também.
— Não se faça de sonsa! — Jana a beliscou. — Olha só você indo de mala e cuia pra casa
da tua mãe! Não vou te deixar ser madrasta do filho do teu ex, Lis! Nem que eu tenha que te
arrastar até Niterói!
Jana e Emília conseguiram fazer com que Lis soltasse a caixa. Ela estava prestes a
perguntar o que estava acontecendo quando ouviu outra pessoa chamar seu nome.
— Lis! — Dante também saiu do carro correndo, indo até ela.
Gente, será que eu infartei de vez? Lis refletiu por um instante, assistindo Dante a segurar
pelos ombros e falar qualquer coisa que ela nem conseguia entender. Será que, em algum
momento da briga com Isabela, Lis tinha passado mal e desmaiado? Talvez morrido? E agora
estava tendo alucinações com o namorado e os amigos na frente do portão de sua mãe?
— O que aconteceu com você? — Dante a segurou pelo braço, notando os arranhões. —
Lis, você tá bem? Quem fez isso com você?!
— Ahn…
Emília e Jana notaram também. Ao mesmo tempo, Gustavo trancava o carro e se
aproximava, semicerrando os olhos ao notar os machucados.
— Te machucaram e mesmo assim você vai voltar pra cá? — Jana deu um grito, voltando
a chorar. — Lis, não faz isso, por favor!
— É isso, vou arranjar um tijolo — Emília rosnou. — Coloquem a Lis no carro, eu vou
entrar e…
— Pelo amor de Deus. — Gustavo a segurou. — A Lis não tá entrando, ela tá saindo.
Todos ficaram em silêncio. Jana deu uma fungada alta que tirou todos do estado de torpor.
— Quê? — Jana perguntou.
— Você tava saindo quando a gente chegou. Com essa caixa enorme — Gustavo
continuou. Ainda segurava Emília pelo cotovelo. — Presumo então que não esteja voltando pra
morar com a sua mãe.
— É — Lis murmurou. Ainda estava aturdida com a situação. — Vim só pegar minhas
coisas.
Gustavo respirou fundo, seus olhos revirando de raiva. Soltou Emília enquanto estalava a
língua.
— Você disse que a Lis tinha desistido de tudo do nada — disse por entre os dentes. —
Quase arrombou minha porta, quis arranhar meu carro por isso e ela só tava vindo buscar as
coisas dela?
— Foi o que a Jana me falou! — Emília argumentou. — Ela me ligou chorando dizendo
que a Lis tinha dito que ia voltar pra casa da mãe!
Todos olharam ao mesmo tempo para Jana.
— Era o que tava escrito naquele maldito post-it! — gritou. — Que ela tava voltando pra
casa da mãe!
— Tenho certeza de que escrevi “Fui pra casa da minha mãe” — Lis disse.
— E não é a mesma coisa? Custava ter explicado melhor então? Sua mão ia cair se você
escrevesse: “Fui pra casa da minha mãe pegar minhas coisas, não se preocupa. Volto na hora
do almoço”?
Lis ficou sem ter o que dizer. Não tinha dormido direito e não estava pensando muito bem
quando acordou, só concluiu que tinha que ir logo para acabar de vez com toda aquela história, a
raiva ainda ardendo dentro de si.
E, em sua defesa, o post-it era bem pequeno. Não caberia tudo aquilo escrito.
— Ahn… — foi o que conseguiu murmurar de novo.
— E por que desligou a porra do celular? — Jana continuou. — A gente tá tentando falar
com você o dia inteiro!
— Entreguei meu celular pra Dona Etelvina — explicou. — Como… garantia.
Dante grunhiu ao seu lado. Ainda a segurava pelos braços, então ela sentiu quando ele
cambaleou um pouquinho.
— Dante! — Ela o segurou também. — Você tá passando mal?!
— Você tem um desejo oculto de me matar, só pode… — ele resmungou, respirando
fundo.
— Então… A Lis não tava desistindo de tudo e voltando pra casa pra criar o filho do ex?
— Jana perguntou, confusa.
— Não. — Emília bufou. — Isso foi só uma alucinação da sua cabeça psicótica. Eu vou te
matar, Jana.
— Ai, como é que eu ia saber?! — Jana chorou mais um pouquinho. Tinha ficado nervosa
demais com tudo aquilo.
Gustavo soltou um suspiro. Balançou a cabeça, fazendo um muxoxo, e se abaixou para
pegar a caixa de Lis. Abriu a mala do carro com o controle e a colocou lá. Em seguida, entrou no
próprio carro.
— Vocês duas, entrem logo — mandou.
Elas obedeceram sem nem pestanejar. Quando fecharam a porta, Gustavo virou a cabeça
para olhar para Dante e Lis.
— Volto em cinco minutos pra buscar vocês — disse.
E os deixou sozinhos, parados na calçada.
— Você tá bem? — Lis perguntou, alarmada.
— Não devia ser eu te perguntando isso…? — Dante respirou fundo mais uma vez. —
Você tá toda arranhada.
— Ah, aconteceu quando a Isabela tentou arrancar o Kindle dela da minha mão —
explicou. Olhou para os braços, averiguando o próprio estado. — Mas estou bem. Não precisa se
preocupar, já resolvi e…
— Lis — Dante a chamou.
Ela levantou o rosto, seu corpo finalmente se deu conta de que Dante estava mesmo ali,
depois de quase um mês separados.
— Você tá bem? — foi a vez de ele perguntar, segurando-a pelos ombros, olhos doces em
sua direção. Lis já começava a respirar com dificuldade.
Ela engoliu em seco. Era como se todo o estresse que passara estivesse escorrendo de sua
alma só com a presença dele ali.
— Não — gaguejou. — Eu… só fiz o que tinha que fazer. Mas foi bem difícil…
— Eu sei, meu amor. Eu sei… — Dante fez um carinho em seu rosto.
— Mas vou ficar bem. De verdade. E não sei como isso aconteceu, mas… obrigada por
estar aqui. Obrigada por terem vindo. Eu realmente precisava, eu realmente…
Ela não se aguentou mais. Caiu nos braços dele, soluçando, molhando sua camisa com seu
choro desesperado. Dante a aninhou e a apertou, afundando o rosto em seus cabelos.
— Eu tô muito orgulhoso de você — ele murmurou, apertando-a cada vez mais. — Eu te
amo. Prometo que vai ficar tudo bem agora, eu prometo…
— Obrigada, obrigada… — Era tudo que Lis conseguia pronunciar naquele momento.
CAPÍTULO 30
"Eu pensava
Que não era tolo por ninguém
Mas amor
Sou um tolo por você”
Now Playing: Supermassive Black Hole
Muse

Ainda parecia meio inacreditável estar ao lado de Dante naquele dia caótico. A sensação
que tinha era que ainda estava sonhando depois de ter ido dormir no dia anterior, amargurada
pela falta de tato de sua família. Como se sua cabeça tivesse criado o cenário perfeito para
consolá-la em seus sonhos.
Ajudava estar naquela suíte maravilhosa de Ipanema de novo, vestindo um cropped velho
rosa escrito “Team Edward” e uma calça de moletom que não a valorizava nem um pouco?
Ajudava ela estar com cara de morta e um pouco descabelada por causa da briga com Isabela,
toda arranhada nos braços?
E ajudava Dante estar bem ao lado dela, lindo como sempre, depois de quase um mês
longe? Não, não ajudava em nada.
Talvez o único detalhe que a fazia acreditar um pouco que era a realidade fosse o fato de
que ele não estava sorrindo para ela.
Não, Dante parecia bem puto na verdade.
— Ah… — murmurou. — Acho que estou meio desarrumada pra ocasião…
— Você acha? — Dante resmungou, revirando os olhos.
O susto de todo aquele drama ainda não tinha passado. Ele mal se lembrava de ter pedido
para Gustavo os deixar em Ipanema. Só ficou segurando a mão de Lis durante todo o trajeto,
como se soltá-la fosse o suficiente para que ela desaparecesse de novo.
Porra, o buquê… lembrou-se, espremendo os olhos com os dedos. Nunca mais tentaria
surpreendê-la, era inútil. Alguma coisa aconteceria e quem sempre terminaria surpreso seria ele.
Ele devia ter imaginado que nada com Lis era fácil, já devia ter se acostumado. O nome do
meio de sua namorada devia ser “caos”.
— Ah… sinto que você está um pouco zangado… — Lis continuou a murmurar. Seu rosto
ficava cada vez mais vermelho.
— Um pouco? — Ele deu uma risada ácida. Sentou-se na cama, apoiando os cotovelos nas
coxas. — Abri a porta da minha casa e dei de cara com a Jana falando que você tinha desistido
de tudo, voltado pra casa da sua mãe e que ia ser madrasta do filho do Gabriel. Assim. Que.
Entrei.
— Meu Deus do céu — ela choramingou. Se ele tinha encontrado Jana na casa dele, isso
significava que a amiga foi atrás de Henrique para conseguir contato com Dante.
Jana a amaldiçoaria para sempre. Lis sentia isso.
— O post-it era bem pequeno, não dava… — tentou se explicar.
— Por que vendeu seu celular?
— Porque eu precisava pagar o aluguel e… Era a solução mais segura.
— Era? Você não podia pelo menos ter avisado a alguém que ia fazer isso?
— Eu avisei. Com… um post-it.
Dante ficou em silêncio. Pensou que era até engraçado Lis se dar ao trabalho de vender o
único bem que tinha para pagar seu aluguel quase no mesmo dia que seu namorado tinha se
tornado milionário.
— Argh. — Dante escondeu o rosto com as mãos, jogando-se na cama espaçosa.
— Você tá passando mal? — Lis correu até ele. — Dante!
Ela escalou a cama para olhá-lo de cima, circundando-o com o corpo. Dante mal conseguiu
esconder o sorrisinho quando notou o rosto lindo e preocupado dela, suas bochechas ruborizadas.
Em um movimento rápido, prendeu suas pernas nas dela e a segurou pelos braços, girando
o corpo. Lis acabou embaixo dele, com os pulsos presos pelas mãos grandes. Dante os elevou até
que ficassem acima de sua cabeça, abaixando o tronco para beijar seu pescoço. Lis estremeceu
com o gesto.
— Te peguei — ele disse, mordiscando o ombro dela.
— Então… você não tá bravo? — Lis arriscou.
— Bravo é pouco pra descrever, Lis Duarte — falou, soltando os pulsos dela para subir a
barra do cropped e descobrir seus seios. — Eu tô puto pra caralho. E com saudades. E com um
tesão de mil homens.
— Ah — Lis gaguejou, seu rosto ardendo de vergonha. Quase perdeu o ar quando ele
colocou um de seus mamilos na boca, mordendo com força.
— Não vai sobrar muito de você hoje. — Ele sorriu, levantando da cama. Era o sorriso
mais diabólico do mundo. — Quais são suas últimas palavras?
— Hm… você podia ter me avisado que estava voltando?
— Sério? É isso que vai dizer?
— Eu poderia ter me arrumado…
— Poderia. Poderia estar arrumada e maquiada e ter recebido um buquê lindo na porta da
sua casa.
— Um buquê? Comprou um buquê pra mim?
— Comprei. Mas agora vai ser fodida até chorar usando essa sua blusinha ridícula de
Crepúsculo.
Dante deu uma olhadela nela jogada na cama, nos seios subindo e descendo com a
respiração já entrecortada, o cropped embolado perto de seu pescoço, a tatuagem linda de
mariposa. Lis não precisava mudar um fio de cabelo dela, sempre ficava linda e deliciosa de
qualquer jeito.
— Pois saiba que eu também tô puta com você — ela disse, mordendo os lábios ao assisti-
lo tirar a camisa. — Você disse que ia explodir sua família e que ia ficar incomunicável. Como
acha que fiquei?
— Curiosa? — Ele riu. Tratou primeiro de retirar os próprios sapatos e os tênis dela.
Depois enganchou os dedos no cós da calça de moletom que Lis usava, retirando-a.
Ela estava usando uma calcinha de gatinho.
— Eu te falei que você devia ter deixado eu me arrumar… — Suspirou. — E curiosa é o
caralho, eu fiquei preocupada!
— Não conhece o conceito de “surpresa”, linda? — Ele desceu a peça íntima pelas pernas
dela. Até gostaria de fodê-la com ela usando aquilo, mas gozaria rápido demais desse jeito.
E Lis ia sofrer hoje. Ele faria questão.
Ajoelhou-se no chão, abrindo as pernas dela e a aproximando mais da borda da cama.
— Não vai me contar o que aconteceu? — Lis o questionou, apoiando-se pelos cotovelos.
Dante retirou os óculos, jogando-o longe.
— Agora não — falou. Mordeu o interior da coxa esquerda de Lis, subindo
vagarosamente. — Mas posso te dar a versão resumida dos fatos pra matar sua curiosidade, se
quiser.
Ele deu uma lambida em seu clitóris com força, sem paciência. O corpo de Lis vibrou em
pura vertigem.
— Hm… p-pode ser — gemeu.
— Processei meus pais. Vou tentar pegar a guarda da Ame.
E a chupou de uma vez só, sem dar chance de Lis fazer outra pergunta. Ela arregalou os
olhos, surpresa com a notícia, perplexa com a declaração.
E a um passinho de gozar com só um toque.
Porra, só pode ser um sonho mesmo, conseguiu pensar. Estava tão fora de controle que
fechou o punho nos cabelos dele, para ter estabilidade para rebolar, friccionando sua pélvis
contra a boca que a chupava.
Se era um sonho, ela ia aproveitar. Que as explicações ficassem para depois.
— Ah… Dante, porra… Não para, não para, não para… — gemeu, fazendo círculos com o
quadril. Ele a segurou pelas coxas, aumentando a pressão.
Ela gozou em menos de um minuto. Forte, daquele jeito que fazia suas pernas bambearem.
Soltou o cabelo dele e se jogou na cama, arfando.
— Vira de costas — Dante só disse isso ao se levantar do chão.
Lis o observou retirar a calça jeans, ficando só de cueca. Seu membro já estava todo ereto,
marcando o tecido, ela quase podia sentir o calor que emanava dali de onde estava.
— Me deixa te chupar também — Lis pediu, manhosa. — Por favor…
Ele abriu outro sorriso. Toda vez que Dante Krause sorria naquele quarto, Lis tinha
vontade de derreter de felicidade.
Ele estava mesmo ali, era real. Dante tinha voltado para ela.
— Acha que vai escapar tão fácil assim? — ele perguntou.
— Não custa tentar…
Dante deu uma risadinha, empurrando o ombro dela de leve para que Lis se virasse na
cama. Pegou alguns travesseiros para que se acomodasse e a deixou um pouco empinada, o
suficiente para que pudesse ter a visão completa de sua boceta.
— E você quer que eu aguente tendo ficado quase um mês longe de você? — perguntou,
seus dedos já alisando sua entrada, espalhando a lubrificação. — Impossível.
Inseriu dois dedos, dando estocadas lentas. Lis se contorceu e arquejou.
— Olha como você já está… — ele murmurou. — Só de eu ter te chupado… Isso tudo é
saudades, meu amor?
— É… — admitiu. — Eu senti muito a sua falta.
— Você se tocou sozinha enquanto eu estava fora? Pensando em mim?
Lis virou um pouco a cabeça para fitá-lo. Soltava pequenos gemidos sequenciados, no
ritmo dos dedos dele. Só teve forças para concordar com um aceno de cabeça.
— Com seus dedos, assim? — Mais uma estocada. Sentiu Lis estremecer ao seu redor. —
Imaginando que era o meu pau?
Mais um meneio. Lis não cortou o contato visual nem por um segundo.
— Mas seu pau é maior que isso — falou com um sorrisinho provocante no rosto. — Então
eu tinha que usar três…
— Porra, Lis. Me mostra.
Tirou os dedos de dentro dela, deixando que Lis assumisse. Ela não hesitou por um
momento sequer, preenchendo-se com os três dedos de uma vez só, fazendo movimentos curtos.
Estava tão molhada que eles ficaram lustrosos, faziam barulho quando entravam e saíam.
— No chuveiro? — ele tornou a perguntar. — Sem poder fazer barulho?
— É…
— Quantas vezes teve que fazer isso, minha linda? — Dante acariciou as costas dela,
contornando as tatuagens que já conhecia como a palma de sua mão.
— Perdi a conta, pareceu… Pareceu uma eternidade.
— Hm, coitadinha… — A mão que a acariciava juntou suas madeixas, formando um rabo
de cavalo, e puxou seu cabelo de leve.
Dante a deixou mais empinada. Lis jogou a cabeça para trás, ainda se masturbando, indo
no próprio ritmo. Com a mão livre, ele usou dois dedos para penetrar seu ânus, o mais leve que
conseguiu. Lis gemeu alto ao ser tomada daquele jeito.
— E assim? Também fez algo parecido? — Dante perguntou. Deixou que ela rebolasse ao
redor de seus dedos à vontade, oscilando com mais força. — Apoiada na parede, usando as duas
mãos?
— Dante… — Lis arfou. — Ah…
Ela não conseguiu dizer mais nada. Gozou mais uma vez, excitada com a estimulação e as
palavras dele. Retirou os dedos dentro de si para conseguir mais apoio, afundando o rosto na
cama enquanto tremia.
Mas Dante não lhe deu tempo nem de respirar. Usou os dedos médio e anelar para penetrar
sua boceta, curvando-os para atingir seu ponto mais sensível. Lis deu um gritinho esganiçado.
— Ah, espera… — implorou, apesar de seu corpo estar sem controle.
— Falei que você ia ser fodida até chorar hoje, Lis. Então aguenta firme, ainda não acabei
contigo.
Aquela posição deixava tudo profundo demais. Ela arqueou as costas, enfiando as unhas no
lençol, tentando de alguma forma que seus gemidos saíssem mudos para que ninguém a
escutasse. Sentiu as estocadas profundas e rápidas dos dedos de Dante atingirem seu âmago,
atingindo aquele ponto com tanta força que ela começava a ver estrelas.
Parecia ser demais. Não demais como algo que ela não estivesse aguentando, mas demais
como se aquilo fosse capaz de fazê-la explodir em poucos segundos.
— Não se segura, quero ouvir tudo — Dante disse. Ela não conseguia enxergar o rosto
dele, mas tinha certeza de que estava sorrindo. — Quero ouvir cada gemido teu até você gozar.
Em um movimento rápido, ele a virou de costas para a cama, abrindo bem suas pernas.
Voltou a masturbá-la daquele jeito intenso, dessa vez sem deixar de olhar em seus olhos uma vez
sequer, penetrando-a com uma mão e dedilhando seu clitóris com a outra. Lis não tinha forças
nem para gemer, só conseguia abrir a boca, seus olhos se revirando de prazer. Ainda estava
profundo demais e ela já não tinha mais controle nenhum.
Antes, seu corpo estava tenso, mas agora começava a relaxar de forma abrupta, como se
estivesse ficando mais macio. Gozou de novo, como se fosse uma extensão do orgasmo interior,
uma sensação quente lhe tomando por completo.
Tentou apertar as pernas, mas era tarde demais. Sentiu um jato quente e muito líquido
escorrer por suas coxas, molhando os dedos dele, os lençóis, uma verdadeira bagunça
desgovernada, mas muito prazerosa.
Por um segundo de muita agonia e vergonha, Lis pensou que tinha feito xixi. Mas quando
se deu conta de que o líquido que saíra era transparente, ela finalmente entendeu o que tinha
acontecido.
— Ai, meu Deus — gaguejou, segurando-se em Dante. Tinha sido tão forte que ela ficara
um pouco zonza.
Jogou as costas na cama, arfando alto, na tentativa de recuperar o ar. Dante deu uma
olhada na bagunça que causara, os lençóis molhados, Lis literalmente pingando diante de si.
— Ah… — Ele também tinha começado a arfar. Teve que apertar o pau por cima da cueca
para se conter. — Preciso te comer agora. Por favor, por favor.
— Você… quer… me matar — sibilou.
— Não, mas preciso estar dentro de você agora, por favor. Essa foi a coisa mais gostosa
que já vi na vida.
Mesmo estando no limite, ouvi-lo dizer tudo aquilo a fez querer ter um pouco mais, senti-
lo mais perto, tudo que pudesse ter. Puxou os braços dele para que Dante se colocasse acima de
si, circundando-o com as pernas. Ele mal conseguiu tirar a cueca antes de Lis agarrar seu pau e
direcioná-lo até sua entrada, unindo-os de uma vez só.
— Porra… — ele xingou, dando a primeira estocada, o mais leve que conseguiu. Sabia que
ela ainda estava sensível demais. — Você ainda tá…
As paredes internas de Lis ainda pulsavam, o engolindo e o colocando naquela oscilação
profunda. Lis o segurou pela nuca, fechando os olhos, suor escorrendo pelo rosto, molhando suas
têmporas, a franja, suas bochechas quase escarlates. Dante teve esse vislumbre magnífico,
sentindo-se deslizar dentro dela, a harmonia do caos, a junção divina de seus corpos.
Perfeito. Simplesmente perfeito.
— Lis, minha linda, meu amor… — murmurou, colocando um pouquinho mais de força.
Ela gemeu abaixo dele, mordendo os lábios. — Não goza ainda, tudo bem? Aguenta só mais um
pouquinho…
— Acho que… não consigo…
— Só mais um pouquinho, por favor. Se você gozar, eu vou gozar também e tá bom
demais pra parar agora…
— Eu não sei nem se… consegui parar ainda…
Era difícil até falar. Dante foi mais rápido, mas ainda suave, o máximo de controle que
teria naquele momento.
— Merda… — gemeu. — Porra, Lis. Quero ficar pra sempre assim contigo, você foi feita
pra mim. Tudo em você foi feito pra mim…
— Dante…
Como em quase todas as vezes, Lis só conseguiu pronunciar o nome dele antes de se
desfazer. Ação e reação, Dante não teve outra escolha a não ser se deixar ir, perdendo-se dentro
dela. Quase sem forças, teve que se segurar para não esmagá-la, tombando ao seu lado.
Quando recuperou um pouco o ar, jogou um dos braços por cima dela, aproximando-a em
um abraço. Lis ainda não tinha chegado à conclusão se tinha morrido ou se ainda estava presa
naquele sonho estranho e muito prazeroso.
— Peguei muito pesado? — Dante perguntou, segurando um sorriso ao vê-la encarando o
teto.
— Você me fez esguichar — Lis resmungou. — E depois ainda teve a coragem de me
fazer gozar de novo. Queria me esfolar viva?
Ele abafou uma risada.
— Nem me deixou tirar a blusa, nem… você nem me beijou ainda! — Ela quase deu um
grito. — Sei que está zangado, mas isso já é demais.
Dante tentou se lembrar se realmente tinha se esquecido de beijar a própria namorada.
Recordou-se de abraçá-la na frente do portão da mãe dela, de entrar no carro de Gustavo e chegar
no hotel.
Depois era tudo sexo. Era verdade, ele tinha ficado tão enlouquecido que os dois nem
tinham se beijado, depois de quase um mês.
— Peço perdão, acho que exagerei — falou, esticando o pescoço para lhe beijar na
bochecha. — Como faço pra te recompensar?
— Que tal me beijar agora? — Ela fez manha.
Virou-se de lado, aproximando seu rosto do dele. Estava sorrindo, aquele sorriso lindo que
Dante queria tatuar em todos os cantos disponíveis de sua pele, em sua alma. Deu um selinho
nela, carinhoso.
— Hm, oi — Lis sussurrou, rindo um pouco, feliz e boba. — Que bom que voltou.
— Oi… — Ele sorriu também, perdendo seus dedos de vista pelo cabelo dela. — Falei que
eu voltava.
— Você tá bem? Fiquei tão preocupada contigo…
Dante semicerrou os olhos por um momento. Lembrar-se de tudo que aconteceu em
Florianópolis ainda era doloroso.
— Não muito — admitiu. — Mas vou ficar. Principalmente agora que a gente tá junto.
— Senti sua falta. Sentiu a minha?
— Muito, você não faz ideia do quanto.
— Foram as três semanas mais longas da minha vida.
— Acho que envelheci uns dez anos só nessa manhã.
— Desculpa, não sabia que ia causar tanta confusão.
— Por que resolveu vender logo seu celular? E se acontecesse alguma coisa, como eu ia
falar contigo?
— Era a coisa de mais valor que eu tinha. E foi como garantia, vou pegar de volta assim
que juntar o dinheiro do aluguel.
Dante soltou um suspiro cansado.
— Então vamos pegar ele assim que sairmos daqui. Vou pagar seu aluguel.
— Não precisa, eu…
— Fica quietinha. — Dante tapou a boca dela com a mão. — Se eu ouvir mais um “não
precisa”, juro que te compro o celular de última geração e faço você postar um texto enorme me
agradecendo. Pra todo mundo ver o quanto é mimada pelo seu namorado.
Lis falou alguma coisa, sua voz abafada pela mão dele. Como Dante ia contar que tinha
herdado uma fortuna? Ela ia pirar.
— Aliás, melhor ainda — disse. — A partir de agora, você vai me deixar pagar tudo. Seu
aluguel? Eu vou pagar. Precisa de um notebook? Vou comprar. Quer tomar o sorvete mais caro
de Niterói? Nós vamos. Até o menor e mais insignificante grampo de cabelo que quiser, eu vou
comprar. E você não vai ousar reclamar ou tentar me devolver com seus pix infernais.
Ele ainda não podia contar todos os detalhes de sua herança naquele momento, já que era
capaz de Lis ter um infarto de verdade, mas Dante queria fazer muito mais do que isso. Queria
dividir tudo, comprar uma casa, um lar, viver com ela bem ao seu lado o mais rápido possível.
Unir seus caminhos de vez.
Casar, ter filhos, ficar para sempre juntos. Mas faria isso aos pouquinhos, pela sanidade de
sua ansiosa namorada.
— Mas… — Lis tentou falar por debaixo da mão dele.
— Nada de “mas”.
— Mas você pagar tudo é muita coisa e…
— Não é. E eu quero fazer isso. Quero cuidar de você. Me deixa cuidar de você, por favor.
Lis parou para pensar por um momento. Era difícil largar o hábito de querer fazer tudo
sozinha, mas também era tão bom ter a garantia de que Dante cuidaria dela.
O sentimento de que havia alguém ao lado dela, de caminhar junto, de pertencer. Era bom
demais, talvez Lis devesse se deixar ser mimada um pouquinho.
— Estamos entendidos? — Ele semicerrou os olhos, sorrindo de lado.
Ela aquiesceu, suas sobrancelhas inclinadas. Sendo assim, Dante a soltou para que ela
pudesse falar melhor.
— Você devia melhorar suas ameaças — provocou. — Porque isso foi a coisa mais fofa
que já me disseram na vida.
— Então se acostuma. Porque essa vai ser sua rotina a partir de agora. Ainda tem muito
mais por vir.
— Tem? Meu Deus.
— Tem. Porque você é minha… — Dante murmurou, trazendo-a para si, aninhando-a
entre os braços. — E eu cuido muito bem do que é meu.
Lis o abraçou de volta, aspirando seu perfume, a familiaridade do cheiro de sua pele. Estar
nos braços dele sempre parecia o lugar certo.
— Fico feliz em ouvir isso… — murmurou, fechando os olhos. — Porque eu amo ser sua.
É o que mais amo ser.
CAPÍTULO 31
“Você é lar
Para onde eu queria ir”
Now Playing: Clocks
Coldplay

17/07/2024
É o último dia do semestre!
— A banca se reuniu e, junto com a orientadora, a Prof.ª Dr.ª Joana Ferreira e o
coorientador, o Dr. Leandro Mendes, decidiu aprovar a aluna Elis Castro Duarte em sua defesa
do Trabalho de Conclusão de Curso para graduação em biologia com nota 10, com louvor.
Parabéns — o presidente da banca disse, lendo a ata da defesa.
Lis soltou o ar e prendeu o choro, torcendo os dedos das mãos. Na plateia, todos no grande
auditório do Instituto de Biologia, Jana e Emília deram um grito, pulando de alegria e
comemorando. Gustavo estava bem ao lado delas, então só revirou os olhos e sacudiu a cabeça
em reprovação. Mas mandou um sinal de positivo com o polegar para Lis, sorrindo de lado.
Dante estava na fileira da frente, tirando fotos e filmando com o celular. Assim que parou a
gravação, abriu o maior sorriso do mundo para ela e Lis não conseguiu conter as lágrimas ao vê-
lo ali. Era um choro de gratidão, afeto, amor, de tudo que sentia por ele.
Olhou para a mesa da banca, sorrindo ao ver a professora Joana depois de tanto tempo. Ela
tinha se recuperado bem da gravidez e do parto complicado e conseguiu comparecer à defesa de
Lis. Fez um discurso lindo sobre o quanto estava orgulhosa dela, do caminho que Lis percorrera
até ali.
— Não esperava menos de uma aluna minha — Joana disse, feliz. — Aliás, minha equipe
inteira, todos são excepcionais. Dante, Lis, Gustavo e Leandro, o Brasil e o mundo ganham
muito com pesquisadores como vocês. Uma salva de palmas, por favor.
Jana e Emília fizeram coro, estimulando todos os outros colegas de Lis que assistiram à sua
defesa a bater palmas.
— Meu Deus — Leandro choramingou. Tinha se segurado pela defesa inteira, mas ouvir
aquilo de sua orientadora o fez começar chorar também. — Eu tô tão feliz. Nem sei como a gente
sobreviveu a tudo isso. No último dia letivo do semestre, meu Deus.
Leandro precisava de férias. Talvez aceitasse o convite de Martim e Tati e passasse
algumas semanas na Dinamarca com a namorada antes de sua filha nascer. Ele merecia.
— Bem, convido todos para a comemoração da defesa no hall do Instituto — Joana
continuou. — Comes e bebes dignos da mais nova bióloga e neurocientista!
— Temos espumante! — Leandro comemorou. — E salgadinhos!
Lis se levantou da cadeira em que estava sentada, pronta para seguir todo mundo. Mas sua
cabeça estava um pouco leve por causa do nervosismo.
Se eu passar mal agora, juro que me mato de vergonha, suspirou. Suas quedas de pressão
tinham melhorado bastante com o tratamento do Sr. Park, mas momentos de muita tensão eram
sempre um problema.
Sentiu alguém lhe segurar pelo braço. Dante já estava ao lado dela, a amparando.
— Quer tomar um ar? — sussurrou. — Antes que seu nariz comece a sangrar na frente da
banca inteira?
— Sim, é melhor. — Deu uma risada. — Acho que tirariam pontos de mim só por causa
dessa cena.
Dante a conduziu para o lado de fora do Instituto, levando-a até a orla da Baía. O sol estava
se pondo naquele momento, tingindo o céu de laranja e amarelo, as águas reluzindo como ouro
líquido.
Lis respirou fundo, vislumbrando a Ponte Rio-Niterói, o Rio de Janeiro do outro lado, o
céu e o mar, o dia lindo que terminava no campus Gragoatá. O último dia do semestre, o dia de
sua defesa, o dia em que ela se tornou bióloga, futura pesquisadora.
O dia mais feliz da vida dela, com certeza. Era até difícil acreditar que tinha conseguido.
— Acho que posso morrer agora — choramingou. — Sério, acho que se um raio cair na
minha cabeça nesse momento e eu morrer, não vou nem reclamar.
— Ficou louca? — Dante franziu o cenho. O senso de humor de Lis ainda era algo que
sempre o surpreendia.
— Ah, tem o mestrado. — Ela se lembrou. — Não posso morrer antes de receber minha
bolsa do mestrado. Então vou adiar esse raio pra mais tarde.
— E o doutorado?
— Nossa, é mesmo. Melhor cancelar.
Dante deu uma risada, aproximando-se para lhe dar um beijo.
— Parabéns por ter sobrevivido ao último semestre, linda — falou.
— Parabéns pra você também. — Ela riu. — Teve uns momentos aí que eu sinceramente
quis te matar.
— Idem. Parabéns pra nós, então.
Mais um beijo. Dante se separou dela para buscar algo no bolso. Lis, ao assistir à cena,
quase congelou no lugar.
— Aqui, um presente pela sua defesa — ele falou, estendendo uma caixinha de veludo
preta para ela.
O quê? O coração de Lis entrou em total descompasso. Sentiu seu sangue inteiro fluir para
as bochechas, as pernas começaram a tremer.
— Quando eu falei que poderia morrer agora, não tava falando sério… — conseguiu
murmurar. — Não precisa me matar de susto agora…
— Fica calma. — Dante a segurou pelo braço. — Você vai gostar.
Lis engoliu em seco. Pegou a caixinha com as mãos tremendo, abrindo-a vagarosamente. O
conteúdo lá dentro a deixou confusa por um instante.
Havia uma chave comum ali, pendurada em um chaveirinho em formato de gato.
— O que é isso? — perguntou. Não havia nada de especial naquela chave.
— A chave do nosso futuro apartamento — Dante afirmou. — Se quiser morar comigo,
claro.
— Quê?
— Eu precisava de uma residência fixa no meu nome pra conseguir a guarda da Ame.
— Você… comprou um apartamento? Quando?
— No meio de todo aquele drama em Floripa. Então se aceitar morar com uma
adolescente, uma gata idosa e um cara que te ama muito, vou ficar muito feliz.
— Vai aceitar morar com o Sr. Darcy? Preciso resgatar meu gato das garras do Gustavo.
— Claro. Fitzwilliam Darcy e eu seremos ótimos amigos.
Lis abriu um sorriso genuíno. Olhou novamente para a caixinha, para a chave simples, mas
que continha seu futuro inteiro ali. Um lar, a família que ia construir.
— Tá falando sério? — gaguejou, a emoção tomando conta de sua voz. — Realmente quer
que eu vá morar com você?
— Por que eu não ia querer?
— Porque pode ser rápido demais e… você pode acabar se arrependendo.
— Não vou. Nunca me arrependeria.
— Como pode ter tanta certeza?
— Porque tudo que tenho quando se trata de você é certeza. Desde o primeiro olhar. Posso
não ter entendido naquele dia da seleção, mas meu coração teve a certeza de que era você assim
que eu te vi.
Lis deu uma risadinha, limpando os olhos.
— Hm, isso explica por que me olhou errado então.
Ele riu também, abaixando o rosto para lhe dar outro beijo. Depois, limpou as lágrimas
dela com cuidado e paciência, sempre atento.
— A gente vai mesmo morar junto com só… Meu Deus, não deu nem três meses de
namoro!
— E você sabe, não sabe? — Dante esticou as sobrancelhas, provocativo.
— Sei o quê?
— Que até o fim do ano eu te peço em casamento.
— Dante!
— Vai ter que ficar se mordendo de ansiedade até lá. — Ele riu. Deu um peteleco na testa
dela como de costume. — Mas sei que você aguenta.
Isso e descobrir que em breve vai ser a mais nova milionária, Dante pensou. Por isso falou
do fim do ano. Talvez fosse tempo o suficiente para prepará-la para a notícia.
Ele mesmo queria ter tido mais tempo para processar.
— Minha Nossa Senhora, não faz nem um ano que a gente tava se odiando, Dante Krause!
— Lis exclamou, seu rosto ficando cada vez mais vermelho.
— Já te disse que tempo é relativo. Testamos o amor de todas as formas possíveis, com as
variáveis mais caóticas do universo.
— Ah, é? — Mais um sorriso. Mesmo agora sendo um hábito dela sempre sorrir para ele,
Dante ainda não conseguia se acostumar com o quanto Lis ficava linda daquele jeito. A pintura
mais bonita do mundo. — E qual foi o resultado desse seu amor em fase de testes?
— Você já sabe a resposta disso. — Dante também sorriu.
Ela fez um meneio com a cabeça, concordando. Quando percebeu, já estava em seus
braços novamente, imersa nas cores do crepúsculo, seus cabelos balançando com a brisa
marítima. O cenário de seus mais belos sonhos.
— Perfeito — Lis disse, enfim.
DANTE E LIS VOLTAM NO CONTO

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AGRADECIMENTOS
Diferente de 52 Dias de Carnaval, que eu “montei” e escrevi praticamente sozinha, Amor em Fase de Testes teve a
participação de muitas pessoas queridas para que a rivalidade acadêmica do século nascesse.
Agradeço então primeiro à minha mãe e meu irmão mais novo, Lucas, que deram os nomes dos protagonistas! Elis foi
escolha da minha mãe e Dante foi escolha do meu irmão e eu achei que combinou muito com esses dois! Depois, agradeço à
minha irmã Carol, que sugeriu que a Lis fosse uma mocinha gorda e cheia de tatuagens, porque ela me disse que esse tipo de
representatividade estava totalmente em falta (Eu concordo). Agradeço também ao resto da minha família: meu pai Moacyr, meu
irmão mais velho Daniel e meus cunhados, Karina e Luke. Agradeço também ao meu irmão de coração Rafael, que sempre me
incentiva nessa carreira muito louca de escritora.
A ideia do Dante tocar guitarra foi da Ana Vitória (Inicialmente ele tocaria Violoncelo) e ela chegou a me pedir para
inserir uma cena muito sexy do Dante ensinando a Lis tocar guitarra, mas acabou saindo a cena dos dois cantando “Voando Pro
Pará”, que no fim ela gostou bem mais! E aproveito aqui para agradecer às melhores assessoras do mundo, as meninas da Clavi,
Clarysse, Sabrina e Ana Vitória, por terem me ajudado com basicamente TUDO desse lançamento! Seja a capa, o título, a
estética, as ilustrações e os incentivos, sem elas esse livro não tinha saído MESMO. Não sei nem como agradecer, que nossa
parceria dure muito mais tempo ainda!
As nuances do transtorno alimentar do Dante foram muito bem revisadas e analisadas pela minha querida leitora crítica,
Amanda, que me ajudou a conseguir transmitir todas as informações com sensibilidade e responsabilidade. Os ajustes nas cenas
hots para elas ficarem daquele jeito também é trabalho dela! Nem sei como agradecer pela ajuda que você tem me dado desde 52
Dias de Carnaval!
Não posso deixar de agradecer às minhas betas queridas, Mariana e Carol, que leram o livro aos pouquinhos e foram me
dando os feedbacks necessários para ficar do jeito incrível que ficou! Mari é minha beta desde 52 Dias de Carnaval e quando ela
disse que tinha amado AFT eu senti que finalmente tinha acertado, porque ela tem O feeling pra boas histórias. E a Carol me
presenteou com as melhores reações do mundo, me incentivou e amou Dante e Lis do início ao fim! Agradeço tanto pela ajuda de
vocês duas! AFT não teria sido nem metade do que foi sem o toque de vocês!
Agradeço muito também à minha revisora, a outra Amanda, por ter revisado AFT com primor e maestria em tempo
recorde, porque sou uma procrastinadora de marca maior e entreguei o texto finalizado um pouco em cima da hora! Obrigada por
sempre me socorrer e aceitar revisar meus livros mesmo eu sendo uma pirada que entrega tudo quase na data do lançamento!
Não posso deixar de citar todas as INCRÍVEIS ilustradoras que trabalharam comigo nesse lançamento. Começando pela
@luuhdraw, que mais uma vez fez a capa mais incrível do mundo! Obrigada por aceitar trabalhar comigo de novo! A @thaliraes
que deu vida à Lis e ao Dante, tanto nas ilustrações de apresentação quanto as hot! A @mdop.art que fez as ilustrações das
biólogas apocalípticas e das versões em adesivo do Dante e da Lis. A @llibiarts pela ilustração do Dante e a @misuzeen pela
ilustração do casal! Eu me empolguei com esse lançamento e fiz um milhão de ilustrações e não podia ter ficado mais satisfeita!
Obrigada por terem dado vida os meus personagens!
Agradeço imensamente ao grupo de parceiras de divulgação de Amor em Fase de Testes! É o grupo mais animado do
século e eu fico toda bobinha quando vejo todo o conteúdo que vocês postam sobre o livro e o quanto gostaram da história! Eu só
tenho a agradecer a vocês! Espero ver todas novamente nos próximos lançamentos, porque ainda vem muito mais por vir!
E, por último, agradeço a você leitor, que deu uma chance ao livro, seja você novo ou que já me conhecesse de 52 Dias
de Carnaval! Como disse no início, os livros da série são independentes, mas eu amo esse universo de paixão e fico muito feliz
que gostem dos personagens que criei, mesmo eles tendo um zilhão de defeitos! Espero ver você de novo, porque ainda faltam
dois livros da série pra concluir!
É isso, novamente, espero que tenha gostado e que esteja ansioso pros próximos! Dizem por aí que talvez seja a vez de
uma tal cupido… É melhor eu parar por aqui.
Um abraço,
Raquel Figueiredo

[1]
Comitê de Ética no Uso de Animais
[2]
Os Princípios de Russell-Burch (1959) visam reduzir o número de animais usados em experimentos, substituir seu uso
sempre que possível e aprimorar métodos para minimizar seu desconforto.
[3]
“Calmo como uma bomba”
[4]
O Prêmio Vasconcellos Torres é uma premiação do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC)
na UFF.
[5]
Eu Te Devoro - Djavan
[6]
O Museu de Arte Contemporânea de Niterói, projetado por Oscar Niemeyer e inaugurado em 1996, destaca-se como
um cartão-postal de Niterói, Rio de Janeiro.
[7]
“Mas eu digo a mim mesma
Que eu estava fazendo tudo certo
Não há mais nada a se fazer essa noite
A não ser ficar louca por você
Louca por você
Me deixe ficar louca
Louca por você, oh”

[8] “E você não precisa se perguntar


Você está indo bem
Meu amor, o prazer é meu
Me deixe ficar louca por você
Louca por você
Me deixe ficar louca
Louca por você, oh”

[9]
Do I Wanna Know, da banda Artic Monkeys. Tradução: “Será que quero saber? Se esse sentimento é recíproco?”
“Triste por te ver partir. Eu meio que esperava que você ficasse…”
[10]
Do I Wanna Know, da banda Artic Monkeys. Tradução: Querida, nós dois sabemos que as noites foram feitas
principalmente para dizer coisas que não se pode dizer no dia seguinte…”
[11]
Do I Wanna Know, da banda Artic Monkeys. Tradução: “Me arrastando de volta pra você…”
[12]
Vestido tradicional coreano
[13]
As condições normais de temperatura e pressão (CNTP) são padrões utilizados em ciências físicas e químicas para
definir as condições de temperatura e pressão comuns em experimentos e medições.
[14]
A entropia é um conceito da termodinâmica que pode ser aplicado em várias áreas do conhecimento. Resumidamente,
refere-se ao grau de desordem e à quantidade de variáveis presentes em um sistema específico.
[15]
Revista científica global de altíssimo impacto

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