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JEREMIAS, Joachim. A mensagem central do Novo Testamento.

São Paulo: Edições


Paulinas, 1977

[93]

O VERBO REVELADOR
1. A forma literária do prólogo de João

Como começo de um livro, o prólogo do Evangelho de João representa um caso único.


Sobre o que poderia ser habitualmente o começo de um livro, informamo-nos pelos cinco
outros do Novo Testamento, fora das vinte e uma cartas. Eles se apresentam sob duas
formas diferentes. A primeira é representada, por exemplo, por Ap 1,1: "Revelação de
Jesus Cristo: Deus lha concedeu para que mostrasse aos seus servos as coisas que
devem acontecer muito em breve. Ele a manifestou com sinais por meio de seu anjo,
enviado ao seu servo João". A frase inicial é aí um resumo do conteúdo do livro. A
introdução ao Evangelho de Lucas é semelhante: informa-nos sobre pesquisas anteriores,
fontes, intenção e caráter peculiar do livro. É igualmente assim que Lucas prefaciou o
segundo volume de sua obra, os Atos dos Apóstolos: um resumo do seu primeiro volume.
A segunda forma, geralmente utilizada para começar um livro acha-se em

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Mateus: "Genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão", e provavelmente em


Mc 1,1, que poderia ou antes deveria ser traduzido assim: "Como Jesus Cristo, Filho de
Deus, começou a anunciar a Boa-nova". Em cada um destes casos, é a abertura do
primeiro capítulo que constitui a entrada na matéria. Em outros termos, um livro começa
geralmente ou por um prefácio ao conjunto da obra ou pela abertura do primeiro capítulo.

O Evangelho de João é totalmente diverso, coloca-nos diante deste início dogmático: "No
princípio era o Verbo". Para compreender esta singularidade, é preciso examinar a forma
literária de Jo 1,1-18. Três observações encadeadas são necessárias. A primeira refere-
se à estrutura da frase. O prólogo está construído na base de paralelismo, acoplando os
membros de frase de ressonância análoga que constituem assim uma espécie de apelo e
de resposta — talvez um eco da alternância entre o cantor e a assembleia. Esta
construção nos é familiar, graças aos salmos. No Oriente Próximo, o paralelismo tem a
mesma função da rima entre nós: com a métrica, diferencia a poesia da prosa. Em outras
palavras, Jo 1,1-18 é uma passagem poética. O prólogo, como todo mundo sabe hoje em
dia, é um cântico vigorosamente construído, um poema religioso dos inícios do
cristianismo, um salmo, um hino ao Logos Jesus Cristo. Este Hino ao Logos se divide
naturalmente em quatro estrofes:

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 Primeira estrofe (vv. 1-5): o Verbo de Deus.


 Segunda estrofe (vv. 6-8): o testemunho que o designa.
 Terceira estrofe (vv. 9-13): o destino do Verbo no mundo.
 Quarta estrofe (vv. 14-18): a confissão da fé da comunidade dos crentes.

O paralelismo se apresenta geralmente sob três formas:

 paralelismo sinônimo ( o segundo versículo repete o conteúdo do primeiro ),


 paralelismo antinômico ( o segundo versículo diz o contrário do primeiro ),
 e paralelismo sintético ( o segundo versículo acrescenta uma nova ideia à
primeira)1.

Mas no prólogo de João achamos uma quarta forma muito acentuada e muito rara — uma
hábil elaboração da forma sintética, isto é, um paralelismo em série ascendente
(paralelismo como degraus de escada ), assim designado porque cada versículo retoma
uma palavra do precedente como que para erguê-la de um degrau. Os Evangelhos
sinóticos em Mc 9,37 ( e par. ) nos oferecem uma amostra disto:

Aquele que receber uma destas crianças


por causa do meu nome,
a mim recebe;
e aquele que me recebe,

[96]

não é a mim que recebe,


mas sim àquele que me enviou.

No prólogo de João, esta forma está presente, por exemplo, em 1,4s e 1,14b.16
(omitindo-se o v. 15 por razões que indicaremos):

Nele estava a vida


e a vida era a luz dos homens
e a luz brilha nas trevas
e as trevas não a apreenderam.
E nós vimos a sua glória,
como a glória do Unigênito do Pai,
cheio de graça e de verdade,
pois da sua plenitude todos nós recebemos
e graça por graça.

O paralelismo em série ascendente é a característica formal dominante do prólogo, mas


está ausente em alguns versículos. Podemos observar que nos vv. 14-16 só tivemos
paralelismo em série ascendente através da réplica "cheio de graça" que religa o v. 14b
com o v. 16, saltando o v. 15. Igualmente os vv. 12b e 13 não apresentam paralelismo em
série ascendente. Esta observação chama outra. Ao passo que as partes ascendentes do
prólogo diferem por seu vocabulário do quarto Evangelho (palavras tão importantes como
"o lógos", "graça e verdade", e mesmo "graça" isoladamente, não retornam fora do
prólogo ), as inserções não ascendentes traem a linguagem do quarto Evangelho (vv. 6-
8,12b-13,15 e talvez

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17-18). Conclui-se, pois, e com razão, que é preciso distinguir no prólogo de João entre o
prólogo original (Urprolog, muito provavelmente escrito em grego) e os comentários do
evangelista a seu respeito. Encontramos também em Fl 2,6-11 a citação de um hino pré-
paulino a Cristo, no qual Paulo inseriu comentários. R. Bultmann sustentava que o prólogo
original provinha do grupo de discípulos de João Batista, mas isto é refutado por Lc 1, que
mostra que os discípulos do Batista falavam de sinais miraculosos por ocasião do seu
1
C. F. BURNEY, The Poetry of Our Lord, Oxford, 1925.
nascimento, mas não atribuíam preexistência ao seu mestre. Isto indica que o Urprolog
deve ser de origem cristã. Era um hino cantado por ocasião da Eucaristia cotidiana
Christo quasi Deo, "ao Cristo como um Deus" (como o diz Plínio em sua célebre Carta X
96 a Trajano ).

Podemos agora dar um passo adiante. O hino ao Lógos não passa de um dentre todos os
outros hinos contidos no Novo Testamento. Como todas as igrejas missionárias e as
comunidades vivas, a Igreja das origens era uma Igreja onde se cantava. O fluxo da vida
nova, o impulso de uma grande energia espiritual, eram sem cessar traduzidos pelo
canto, pelo hino e pelo louvor. Os salmos floresciam em todos os lábios: "A palavra de
Cristo habite em vós ricamente: com toda sabedoria ensinai e admoestai uns aos outros
e, em ação de graças a Deus, entoem vossos corações salmos, hinos e cânticos
espirituais" (Cl 3,16 e o par.

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Fl 5,19). Os ofícios da Igreja das origens eram um contínuo júbilo, uma grande harmonia
de adoração e de louvores.

Nestes hinos de júbilo, encontramos uma profusão de temas diversos. Não é por acaso
que encontramos o maior número de hinos e de doxologias no livro do Apocalipse. Os
temas dominantes são o louvor do Deus rei eterno, e do Cordeiro, bem como a ação de
graças pela libertação. A Igreja perseguida está sempre um passo adiante, e, no meio das
tribulações, ela antecipa em seus hinos a consumação final. A salvação final se antecipa
também nos dois hinos de Lc 1, Magnificat e Benedictus. Por sua vez, Rm 11,33ss
exaltam-se as vias impenetráveis de Deus, e em 1Cor 13 celebra-se o amor. Outros
salmos exaltam Cristo: Fl 2,6-11; Cl 1,15-20; ITm 3,16; 2Tm 2,11-13.

De todos os hinos do Novo Testamento, o mais próximo do hino cristológico de Jo 1 é


com certeza Fl 2,6-11. Não só ambos falam de Cristo, não só a frase de Plínio Christo
quasi Deo se aplica a cada um deles (cf. Fl 2,6 e Jo 1,1 ), mas também tanto um como o
outro diferem dos outros hinos do Novo Testamento2 pelo fato de relatarem, narrarem e
pregarem a história de Cristo. Eles são Heilsgeschichte in Hymnenform (história da salva-

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ção em forma de hino). Este gênero literário, em que a história da salvação é cantada na
forma de salmodia, provém do Antigo Testamento; basta comparar os salmos que
exaltam a maneira como Deus conduz seu povo através de sua história, como, por
exemplo, o Sl 783.

Dois exemplos do séc. 2, provenientes de meios diferentes e mesmo opostos, mostrarão


o desenvolvimento deste gênero literário na Igreja das origens e ao mesmo tempo o
ilustrarão. O primeiro é o segundo artigo do credo, que diz e confessa, num hino de
louvor, a história de Jesus Cristo até à parusia. O segundo exemplo é o hino dito
naasseniano transmitido por Hipólito em sua Refutação de Todas as Heresias. Começa
nomeando os três princípios subjacentes a toda existência, pois ele apresenta uma
narração dramática da maneira como a alma, como um gamo tímido, é caçada pela morte
e se acha incapaz de reencontrar uma saída para fora do labirinto, e como Jesus se
oferece para salvá-la:
2
Hb 1,1-4 está muito próximo, mas a composição evidencia menos isto.
3
Salmo 77 nas Bíblias grega e latina.
A lei geradora do universo foi o Espírito primogênito;
Vem em seguida o caos espalhado pelo Primogênito;
Depois a alma recebe a lei da sua confecção.
É por isso que ela, revestida de uma forma aquosa,

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submergida pela dor, sucumbe à morte.


Ora, investida de força, ela vê a luz;
Ora, precipitada na miséria, ela chora.
Ora chora e ora se alegra;
Ora chora e ora é julgada,
Ora é julgada e ora ela morre;
Ora enfim ela não acha mais saída,
infortunada
que suas corridas errantes levaram a um
labirinto de males.
Então Jesus diz: "Olha, Pai!
Vítima da desgraça, ela erra ainda
na terra
Longe de teu sopro;
Procura escapar do odioso caos
E não sabe como atravessá-lo
E, por isso, Pai, envia-me!
Descerei levando os selos,
Atravessarei a totalidade dos eões,
Revelarei todos os mistérios,
Mostrarei as formas dos deuses,
E transmitirei, sob o nome da gnose,
Os segredos da Santa Via"4.

Estamos diante de um hino cristológico que começa, como o prólogo de João, pelas
origens primeiras para chegar ao Cristo pré-existente e à sua compaixão. Ainda uma vez
estamos diante de uma Heilsgeschichte in

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Hymnenform. Todavia, o hino naasseniano por um lado, e Fl 2, Jo 1 e o credo pertencem


a mundos absolutamente diversos: o cristianismo gnóstico e o Evangelho. Para
caracterizar sumariamente estes dois mundos, diremos que, por um lado, o gnosticismo
sustenta que o pior dos males é a morte, enquanto que para o Evangelho, é o pecado, e
que por outro lado o gnosticismo sustenta que a vida da salvação está no conhecimento
revelado (gnósis) , enquanto que para o Evangelho ela se acha no perdão dos pecados.

Precisamos, contudo, dar um último passo. Neste hino, existe uma ruptura, uma
interrupção. As três primeiras estrofes (vv. 1-13 ) estão na terceira pessoa; mas, se a
última estrofe ( vv. 14-18) começa da mesma maneira ("O Verbo se fez carne" ), ela
passa muito depressa para a primeira pessoa ("Nós vimos sua glória, nós recebemos
4
HIPÓLITO DE ROMA, Philosophumena ou Refutação de Todas as Heresias, V, 910. Retomamos
parcialmente a tradução de A. Sionville, Paris, 1928, t. I, pp. 162-163.
graça sobre graça" ). Isto significa que o hino cristológico termina com uma confissão
pessoal de fé e atinge o seu apogeu na ação de graças, nó louvor e na adoração. Não há
nenhuma dúvida: o começo, as três primeiras estrofes não poderiam constituir a
verdadeira substância do salmo, mas antes a confissão de fé da última parte; tudo o que
precede não passa de uma introdução, de um prelúdio que serve para preparar a
confissão de fé. O prólogo não é essencialmente uma passagem dogmática que nos
oferece especulações cristológicas concernentes à pré-

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-existência de Cristo, sua participação na criação do mundo e sua encarnação —


interpretando-se assim, cometer-se-ia um erro grave. É antes a celebração da
comunidade crente, por meio de um hino, do dom inefável de Deus através daquele em
quem a glória de Deus foi revelada.

Por que o evangelista colocou o seu hino ao Cristo no começo? Trata-se, como se
opinou, de um resumo do seu Evangelho? Se assim fosse, a paixão e a ressurreição
deveriam ter sido explicitamente mencionadas. A. boa resposta encontra-se no contexto.
A história de João Batista vem a seguir em 1,19ss. Isto indica que o prólogo se acha no
lugar ocupado em Lucas e Mateus pelo nascimento e pelos relatos da infância. O quarto
evangelista não fala da natividade, mas substitui a história de Natal pelo salmo ao Lógos.
A comunidade crente, não podendo mais contentar-se com a narração em prosa da
encarnação, cai de joelhos e canta um hino de adoração e louvor: nós o vimos, fizemos a
experiência da sua presença, "vimos sua glória".

Temos, pois, a resposta à nossa questão concernente ao estranho começo do Evangelho


de João: o evangelista começa o seu livro com um tom de exaltação. Ele tem, sem
dúvida, o sentimento de que a proclamação do Evangelho não poderia se acomodar ao
molde sem brilho que serve habitualmente como começo de um livro. É por isso que ele
começa com

[103]

um hino grandioso ao Logos, ensinando-nos assim que, para a proclamação do


Evangelho, não poderia haver tom elevado demais.

2. O encadeamento das ideias

O Logos está aí presente de três maneiras.

"No princípio era o Verbo". O hino ao Logos começa com uma reminiscência das
primeiras palavras da Bíblia: "No princípio Deus criou o céu e a terra" (Gn 1,1 ), mas a
palavra "princípio" tem sentido diferente no prólogo e em Gênesis. Não designa a criação
(que não se menciona senão mais tarde em Jo 1,3), mas a eternidade antes de toda a
criação. Em outros termos: "No princípio" em Jo 1,1 não é um conceito temporal, mas
uma apreciação qualitativa equivalente a "esfera de Deus". O Logos tem sua origem na
eternidade, e quem quer que entre em relações com o Logos, obtém relações com o
próprio Deus vivo.
O Logos é apresentado a seguir como o mediador na criação. "Tudo foi feito por meio
dele e sem ele nada foi feito de tudo o que existe"5. Qual é o sentido deste
theologoúmenon? O v. 10 dá a resposta:

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"Ele estava no mundo e o mundo foi feito por meio dele, mas o mundo não o conheceu".
É sobre o fato de que o mundo foi criado por seu intermédio que se funda o direito de
Jesus Cristo à autoridade soberana sobre todas as coisas. Assim, o v. 3, "tudo foi feito por
meio dele" quer dizer: o Verbo tem um direito que se refere a todos os homens — a cada
um deles, quer o reconheçam quer não.

Enfim, o Logos era a luz dos homens: "Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens".
O fato de o Logos ser a luz dos homens foi muitas vezes mal interpretado: acreditou-se
que se poderia entender que o Logos proporcionava a luz interior — a luz da razão e da
consciência de si — a todos os seres humanos, mas não é este com certeza o sentido.
Como o evidencia a frase seguinte ("as trevas não a apreenderam" ), esta luz não é deste
mundo. É preciso antes dizer que esta luz é a luz da nova criação, a luz escatológica com
o seu estranho e duplo efeito de fazer ver aqueles que não veem e de tornar cegos
aqueles que veem (Jo 9,39 ). Esta luz salutar brilhava nas trevas, mas brilhava em vão —
"as trevas não a apreenderam". À luz os homens preferiam as trevas.

A segunda estrofe (vv. 6-8)

Antes de o evangelista prosseguir sua citação do hino, ele insere uma breve passagem

[105]

de sua criação dizendo que Deus tinha anunciado a chegada do Logos por meio dum
profeta chamado João. O Batista é honrado como a testemunha que Deus enviou para
dar testemunho de Cristo, mas rejeita-se claramente qualquer sobrestima do seu papel:
"Ele não era a luz" (v. 8 ). Esta declaração devia ser muito importante para o evangelista,
porque ele a repete no v. 15, outra de suas inserções: o Batista dá testemunho do Cristo
como sendo superior a si próprio, porque Cristo vinha da eternidade. A razão desta
advertência contra uma sobrestima do Batista pode achar-se na situação da Ásia Menor
no fim do séc. 1 d.C. Os Atos, no capítulo 19, sugerem que havia rivalidade em Éfeso
entre os discípulos do Batista e a Igreja. Mas esta razão poderia também ser inteiramente
pessoal: talvez o orador seja daqueles que tomaram o Batista pela luz até o momento em
que encontrou Jesus.

A terceira estrofe (vv. 9-13)

A seguir o hino continua a nos dizer o destino do Logos no mundo. "O Verbo era a luz
verdadeira que, vindo ao mundo, ilumina todo homem" (v. 9). É importante compreender
corretamente o membro da frase "que ilumina todo homem". Foi interpretada com
frequência como se quisesse dizer "que ilumina interiormente todo ser humano". Este
sentido

[106]
5
Alguns exegetas ligam as últimas palavras com as que seguem ("o que foi feito, é a vida nele"), mas isto
não tem sentido. A criação não "era" zoé, que é a vida no sentido mais pleno possível. Somente o Logos
"era" a vida.
platônico de luz interior partilhada por todos os seres humanos está em contradição com o
v. 5, como o frisamos acima, e também com os vv. 7s. "Iluminar" significa antes "projetar a
luz sobre, revelar", e é exatamente assim que Jo 1,9 é interpretado em 3,19-21. Assim, a
frase "a luz verdadeira que ilumina todo homem" diz que a luz escatológica que brilhava
nas trevas tinha poder de tudo revelar. Com uma clareza implacável, que não se poderia
anular, fazia aparecer o estado do homem diante de Deus. O poder revelador do Logos
era a razão pela qual "o mundo não o conheceu" ( v. 10 ), o que não quer dizer que o
mundo não o reconheceu porque ele estava mascarado, mas (no sentido de "conhecer"
no Antigo Testamento) que o mundo o renegou, e recusou-se a obedecer-lhe. Mesmo
entre "os seus", em Israel, as portas se fecharam, ele foi como um estrangeiro na sua
própria pátria ( v. 11 ). Tal foi a sorte do Logos no mundo.

Todavia não foi assim em toda parte. Alguns o receberam: e lá onde ele era admitido,
onde os homens criam nele, ele concedia o dom supremo entre todos — "Mas a todos
que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus" ( v. 12 ). E o evangelista
explica o que significa "tornar-se filhos de Deus" num inciso que se refere a uma noção
fundamental da teologia joânica: o dualismo. Constantemente o quarto Evangelho repete
que existem duas espécies de vida, duas possibi-

[107]

lidades de existência: a vida inferior e a vida superior, carne e espírito, vida da natureza e
vida que surge do renascimento, filiação terrestre e filiação divina6. Este dualismo é usado
no v. 13 para explicar o dom do Logos, "tornar-se filhos de Deus". O nascimento natural,
embora não seja desprezível, não possibilita ao homem ver a Deus como ele é. Não
existe senão um só meio de ir para Deus: o novo nascimento, e o único que nos pode
fazer este dom é o Logos.

A quarta estrofe (vv. 14-18)

A história do Logos chega ao seu ponto alto com a confissão da comunidade dos crentes.
Ela começa pelas palavras "E o Verbo se fez carne e habitou entre nós" (v. 14). Em

nossos dias, não podemos sequer imaginar o quanto esta frase deve ter parecido
escandalosa e mesmo blasfema para os contemporâneos de João. Ela continha duas
proposições

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ofensivas. A primeira é a palavra "carne". A "carne" representa o homem em oposição a


Deus, sublinhando sua fragilidade e sua mortalidade; é a mais forte expressão de
desprezo pela existência humana. Dizer "O Logos eterno se fez carne" é dizer que ele
apareceu no mais profundo rebaixamento. E talvez as palavras "e habitou entre nós"
possam ter parecido ainda mais chocantes. Pois "habitar", "armar sua tenda", é uma
metáfora bíblica para a presença de Deus ( cf. p. ex. Ap 7,15; 21,3; Mc 9,5; Lc 16,9 ); "ele
6
é grande infelicidade que o comentário do Evangelho de João por R. Bultmann (Goettingen, 1941), a quem
o autor deve muito, tenha aparecido seis anos antes da descoberta dos manuscritos do mar Morto, pois
Bultmann fundou a sua interpretação gnóstica do quarto Evangelho na hipótese de que o dualismo joânico é
de origem gnóstica. Ora, os manuscritos demonstram que o dualismo do quarto Evangelho nada tem a ver
com a Gnose, mas é, antes, de origem palestinense; pois, como o dualismo de Qumran, apresenta três
características essenciais que são todas não-gnósticas: os dualismos joânico e essênio são monoteístas,
éticos e escatológicos (esperando a vitória da luz).
habitou entre nós" implica que o próprio Deus estava presente na carne, no rebaixamento.
Aqui se põe a questão capital: Como se pode dizer de um homem que sentia a fome e a
sede, que experimentava o medo e o tremor, que morreu como um criminoso, que Deus
estava presente nele?

A resposta é uma simples confissão de fé composta de duas proposições. A primeira


declara: "Nós vimos sua glória". O texto grego apresenta aqui o verbo theásthai, que tem
um sentido particular. Assim como o verbo habitualmente empregado para significar "ver"
(horân) no quarto Evangelho, implica uma verdadeira visão com os olhos corporais, mas,
contrariamente a horân, pode designar uma visão que penetra sob a superfície. Assim, "e
nós vimos sua glória" quer dizer: vimos a carne, a humildade da vergonha, a profunda
desgraça da cruz, mas atrás deste véu da carne e

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humilhação vimos a glória de Deus. O que significa "a glória de Deus"? A resposta acha-
se na frase de dois termos: "cheio de graça e de verdade", que é a linguagem da aliança
no Antigo Testamento. "Graça e verdade" resumem aquilo de que faziam experiência os
fiéis na aliança: "Javé, Javé, Deus de ternura e de piedade, lento para a cólera, rico em
graça e fidelidade" (Ex 34,6 ). "Sou indigno de todos os favores e de toda a fidelidade que
tivestes para com o vosso servo" ( Gn 32,11 ). Na aliança, os crentes do Antigo
Testamento faziam uma dupla experiência: conheciam a misericórdia de Deus, de que
eram indignos, e, mais ainda, a "verdade" ( isto é, a "fidelidade" ) de Deus, a constância
desta misericórdia divina. E é esta precisamente a glória que se torna visível em Jesus.
Aqueles que lhe pertencem, encontram nele a inabalável fidelidade de Deus. E de tudo o
que ele fazia e dizia, uma e a mesma coisa sempre sobressaía: "a graça e a verdade", a
imutável misericórdia divina.

Mas o testemunho da comunidade vai além da confissão de fé "nós vimos sua glória . . .
cheio de graça e de verdade", incluindo esta declaração: "De sua plenitude todos nós
recebemos e graça por graça" (v. 16). Não só vimos sua glória imutável, como também a
recebemos. A expressão "graça por graça" indica uma interminável progressão, uma
intensificação. Como que de um poço inesgotável, recebemos de Deus um dom depois do

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outro, cada um sendo maior do que o precedente. Tal era a experiência que os discípulos
tiveram de Jesus. É esta a resposta inteira da comunidade crente à questão: como se
pode dizer que no homem Jesus o Deus eterno habitou entre nós? Responde-se,
mostrando-se sua glória, a constância da misericórdia e da graça de Deus: nós a vimos e
a recebemos.

Aí termina a história do Logos, mas não o prólogo. À guisa de resumo, acrescentam-se


duas antíteses que terminam o hino, colocando em mais evidência o sentido da revelação
feita por Cristo. Esta revelação é antes de tudo apresentada em contraste com a do
Antigo Testamento: "Porque a Lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade nos
vieram por Jesus Cristo" ( v. 17). Uma vez já, Deus concedera aos homens um grande
dom, sua Lei, sua santa vontade. Mas não passava duma revelação preliminar. Agora, em
Jesus, Deus se revelou verdadeiramente na plenitude da sua graça imutável. Acima da
lei, existe a graça.
A segunda e última antítese vai até mesmo mais longe. Ousadamente ela opõe a
revelação dada pelo Filho não só ao Antigo Testamento, mas também a toda busca
humana de Deus. "Ninguém jamais viu a Deus: o Filho unigênito, que está voltado para o
seio do Pai, este o deu a conhecer" (v. 18). Deus é invisível. Ninguém o viu jamais,
ninguém está gabaritado para vê-lo. O homem que vê Deus deve morrer, pois Deus é o
Santo e nós somos

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sujos pelo pecado. Só o Filho unigênito o viu. E ele o deu a conhecer. "Quem me viu, viu
o Pai" ( Jo 14,9 ). Nesta frase final ( v.18 ), proclama-se o caráter absoluto e universal da
fé cristã.

3. O sentido da designação de Jesus como Logos

Depois de termos compreendido que o prólogo é um salmo, e ter tentado seguir o


andamento do discurso, podemos nos colocar agora nosso problema principal: qual é o
sentido da designação de Jesus Cristo como sendo "a Palavra"? De todos os títulos
dados a Cristo no Novo Testamento, este é o mais estranho. Só o encontramos nos
escritos joânicos (Jo 1,1; 1Jo 1,1; Ap 19,13 . Numerosas questões se nos põem.

Quanto à origem deste título, não poderia fazer aqui mais do que uma sugestão. Falou-se
com frequência, e acreditei nisto por muito tempo eu mesmo, que ele proviria do
gnosticismo, mas um exame das fontes provou, para minha surpresa, que W. Bousset7,
há cinquenta anos, tinha inteira razão ao notar que o conceito de Logos joga um papel
muito limitado entre os gnósticos. Aparece no gnosticismo primitivo — como por exemplo
na es-

[112]

cola valentiniana —, mas aí ele é com toda evidência retomado de Jo 1,1. Não é, pois, no
domínio do gnosticismo que se deve procurar a pré-história do título de Logos, mas no
campo do judaísmo helenístico, onde a "Palavra" era tida como a revelação de Deus. Se
este fato passou de certo modo despercebido nas pesquisas anteriores, isto é devido, eu
o creio, ao fato de que elas tomaram de partida uma base pouco favorável. Começaram
pelo estudo de Fílon. Todavia o conceito de Logos em Fílon não passa de um receptáculo
eclético das ideias do Antigo Testamento, de Platão e dos estóicos, que dificilmente se
pode aproximar daquele do prólogo. Mas o conceito de Logos como modo de revelação
de Deus remonta muito além de Fílon. Acha-se já na versão dos Setenta. Na vigorosa
descrição da teofania de Deus em Habacuc 3, diz-se no texto hebraico que a "peste"
(debher) caminhava diante de Deus (Hab 3,5 ). Ora, "peste" (debber) na escrita sem
vogais se escrevia exatamente como "palavra" (dabhar). É assim que a palavra foi
erradamente traduzida por "logos" (dabbar) na Septuaginta, onde em Hab 3,5 se pode ler:
diante de Deus "virá o Logos". O ponto de impacto deste conceito da Palavra como
precursora de Deus se acha em Sb 18, 15s, onde o Logos de Deus é descrito como um
guerreiro austero munido de espada afiada lançando-se do trono real para a terra. Isto
nos lembra imediatamente Ap 19,11ss, onde

[113]

7
W. BOUSSET, Kyrios Christo, 1913, 2, ed. Goettingen 1921, p. 305.
Cristo é descrito como o herói que chega num cavalo branco com uma espada na boca, e
onde é chamado "o Logos de Deus" (19,13). É, pois, possível, que o título "Logos de
Deus" tenha servido, para os primeiros cristãos, para designar o Senhor que iria vir. Num
segundo tempo, o título parece ter sido aplicado ao Senhor do Mundo (1Jo 1,1 ss) e
igualmente ao Cristo pré-existente (Jo 1,1ss; 1Jo 1,1). Se isto é verdade, o prólogo
refletiria um estado avançado do emprego do título pela Igreja.

Para o nosso propósito atual, não é sobre questões de origem e de desenvolvimento que
se deve voltar a nossa atenção, mas sobre a questão mais particular e limitada do
significado do título "o Logos" para os contemporâneos do evangelista. Isto foi expresso
de maneira impressionante por um homem que, no tempo em que o quarto Evangelho foi
escrito, era provavelmente bispo de Antioquia na Síria. Em 110 d. C., vinte ou trinta anos
depois da redação do Evangelho de João, os cristãos foram perseguidos na Antioquia. O
bispo da cidade foi preso e condenado a ser entregue às feras na arena. Enquanto ele,
como prisioneiro, atravessava a Ásia Menor, as igrejas locais delegavam mensageiros
para saudá-lo pelo caminho da morte. Inácio, era este o seu nome, por sua vez lhes
confiava cartas para estas igrejas. Estas cartas são vigorosos testemunhos da fé cristã,
pelas quais Inácio concita as Igrejas a se manterem firmes na fé, suplicando-lhes

[114]

que não se esforçassem para libertá-lo e não o impedissem de celebrar na arena os


louvores do Senhor crucificado e ressuscitado, até diante das feras. Na sua carta à Igreja
de Magnésia, Inácio fala de Cristo como o Logos de Deus: "Jesus Cristo, que é o Logos
de Deus, saiu do silêncio" (Magnésios 8,2) .

Inácio pressupõe que Deus estivera silencioso antes de enviar Jesus Cristo. O silêncio de
Deus é uma noção que provém do judaísmo8, onde estivera ligada com a exegese de Gn
1,3: "E Deus disse: Faça-se a luz". O que havia antes de Deus falar? — perguntam os
rabinos. E davam a resposta: o silêncio de Deus9. O silêncio que precedeu a revelação de
Deus na criação precedeu igualmente a revelação da cólera de Deus contra faraó10 e se
reproduzirá antes da nova criação11. No mundo helenístico, o "Silêncio" tornou-se o
símbolo da mais elevada divindade. Existe até mesmo uma oração ao Silêncio. No grande
papiro mágico de Paris, chamado de "Liturgia de Mitra" (s. 4), o místico, que na rota do
céu é ameaçado por deuses hostis e por potências estelares, recebe o conselho de pôr o
dedo na boca e pela oração pedir ajuda ao Silêncio:

[115]

Silêncio, Silêncio, Silêncio


— Símbolo do Deus eterno e imortal —
toma-me sob tuas asas, ó Silêncio12.

Prece comovente! Deus é silêncio. Está absolutamente longe e não fala. Diante deste
silêncio impenetrável, o homem só pode levantar os braços e gritar "Toma-me sob tuas
asas, ó Silêncio!"

8
B. SCHLATTER, Theologische Literaturzeitung 87 (1962) col. 785.
9
IV Esdras 6,39; Bar. Sir. 3,7; PSEUDO-FíLON, Biblical Antiquities 60,2.
10
Sb 18,14.
11
IV Esdras 7,30; Bar. Sir. 3,7; Ap 8,1.
12
4.558ss (ed. Preisendaz) = Mithrasliturgie 6,12 (ed. Dieterich).
É num mundo que considerava o silêncio de Deus como um sinal de sua indizível
majestade13 que ressoa a mensagem da Igreja cristã: Deus não é mais silencioso — ele
fala! De fato, ele já agiu; ele revelou o seu poder eterno através da criação, fez conhecer
sua santa vontade, enviou seus mensageiros, os profetas. Mas, apesar de tudo isto, ele
continuava cheio de mistério, incompreensível, imperscrutável, invisível, escondido atrás
dos principados e potestades, detrás das tribulações e angústias, atrás de uma máscara
que era tudo o que se podia ver. Todavia, Deus não ficou sempre escondido. Houve um
momento em que Deus retirou a máscara; de repente ele falou distinta e claramente. Isto
se deu em Jesus de Nazaré; isto se deu sobretudo na cruz.

[116]

É assim que a jubilosa profissão de fé do salmo de louvor a Cristo, no começo do


Evangelho de João, deve ter ressoado aos ouvidos daqueles que o escutaram pela
primeira vez: Deus não é silencioso. Deus falou. Jesus de Nazaré é a Palavra — ele é a
Palavra pela qual Deus rompeu o silêncio.

13
INÁCIO, Efésios 19,1; Filipenses 1,1, cf. H. CHADWICK, "The Silence of Bishops in Ignatius, Harvard
Theological Review 43 (1950) pp. 169-172.

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