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I Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS/USP

Conversas com a música de culturas não ocidentais:


da composição do século XX para a conexão corpo/instrumento em
propostas de improvisação

Ana Luisa Fridman


USP-anafridman@usp.br

Rogério Luiz Moraes Costa


USP-rogercos@usp.br

Resumo: Descrevemos aqui a estrutura básica da tese de doutorado de mesmo título, sendo que a
mesma encontra-se em fase de finalização. O tema de pesquisa de doutorado consiste na elaboração de
propostas para a improvisação musical no formato de workshops sob o tema conexão
corpo/instrumento, criando ambientes híbridos de improvisação a partir de materiais da música não
ocidental. Para alcançarmos tal propósito, traçamos uma linha do tempo que aborda o contato com a
música não ocidental a partir do início do século XX, indo da composição à improvisação em contextos
formativos para o músico adulto.

Palavras-chave: música não ocidental, improvisação, conexão corpo/instrumento

The contact with the music of non-Western cultures: from the composition of the twentieth century to the
body / instrument connection in proposals for improvisation

Abstract: Here we describe the basic structure of the doctoral thesis of same title, which is being
finalized at the moment. The subject of this doctoral research is the development of proposals for music
improvisation in a workshop format under the theme body/instrument connection, creating hybrid
improvisation environments from materials of non-Western music. To achieve this purpose, we draw a
timeline that covers the contact with non-Western music from the early twentieth century, ranging from
composition to improvisation in training contexts for the adult musician.

Keywords: non-Western music, improvisation, body/instrument connection

1. Pontos de partida

O que há na música do oriente que tanto fascina o mundo ocidental?


Aspectos como os estados de imersão na performance – tratada muitas vezes de
forma ritualística – , a noção de tempo circular na prática da improvisação, os materiais
expressivos, a riqueza timbrística, os procedimentos rítmicos e a integração corpo/música,
entre outros, tem chamado a atenção de músicos e estudiosos do mundo ocidental, a começar
pelos compositores europeus do início do século XX. Materiais e procedimentos musicais do
mundo não ocidental passam a influenciar a música ocidental nos primórdios do século
passado, trazidos à Europa através de mostras culturais, feiras, criação de museus e eventos
que divulgaram a cultura oriental no ocidente.
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Nesse contato com a música de culturas não ocidentais, muitas contribuições


importantes foram feitas aos procedimentos musicais encontrados a partir do trabalho dos
compositores europeus do século XX. Constatando que muitos destes procedimentos estão até
hoje presentes em práticas musicais diversas, nosso trabalho parte da ideia de que tais
procedimentos podem ser mais explorados em contextos formativos do ocidente direcionados
ao músico da atualidade. Partindo desta ideia, o tema central da pesquisa de doutorado a qual
nos referimos consiste na elaboração de propostas de improvisação em formato de workshops
que se utilizam de materiais expressivos e procedimentos musicais encontrados na música não
ocidental. Para alcançarmos tal propósito, traçamos uma linha do tempo a partir do início do
século XX, analisando inicialmente os procedimentos da música não ocidental utilizados por
compositores do início do século XX, as contribuições dos materiais da música não ocidental
na performance e, por fim, iniciativas multiculturais e a criação de ambientes híbridos em
contextos formativos da atualidade.
Ao final da pesquisa, propõe-se que o diálogo e as transformações ocorridas a
partir do contato com a música de culturas não ocidentais possa se estender à prática e ao
estudo específico da improvisação. Com essa proposta, na parte final de nossa pesquisa,
elaboramos e aplicamos 4 workshops com a temática da conexão corpo/instrumento sob
parâmetros rítmicos complexos, como compassos assimétricos e estruturas polirrítmicas.
A seguir especificamos a estrutura básica de nosso trabalho, para que se
compreendam as etapas de sua elaboração.

2. A influência de estruturas da música não ocidental na obra de


compositores do século XX

“Se houvesse uma nova versão da música, esta não viria do ocidente, mas sim do
oriente 1” (GRIFFITHS, 1994, p.116)

Iniciamos nosso trabalho descrevendo em linhas gerais como ocorreu e o que


representou a influência da música não ocidental na obra de compositores do século XX.
Vamos abordar estas influências a partir do início do século XX, onde o contato com a cultura
não ocidental contribuiu para o processo que ampliou os territórios de ação dos compositores
que antes estavam sob a hegemonia do sistema tonal maior/menor que caracterizou o período
romântico.
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Em seguida analisamos como as estruturas da música não ocidental foram


utilizadas e expandidas na obra de alguns compositores do século XX através de análises de
partituras e estudos de outros pesquisadores. Chamamos de expansão a maneira particular
como cada compositor tratou as estruturas musicais que encontramos na cultura não ocidental
para além de seu contexto de origem. Deste modo, podemos dizer que Claude Debussy (1862-
1918), expandiu a noção de configuração escalar, combinando e criando configurações a
partir de escalas encontradas originalmente na música não ocidental, como as utilizadas na
música de Java e Bali, na Indonésia. Demonstramos que os compositores do século XX
expandiram estruturas da música não ocidental tanto no sentido escalar, com implicações
diretas no aspecto harmônico/vertical (expansão tonal/modal) , quanto no sentido rítmico,
através da utilização de recursos como a polimetria e a polirritmia.
Nosso recorte de análise foi feito a partir das estruturas da música não ocidental e
das expansões que consideramos pertinentes para as propostas de improvisação expostas no
último capítulo deste trabalho. É importante ainda estabelecer que, neste estudo em
específico, quando falamos da música não ocidental, referimo-nos à toda música fora do
contexto da música europeia que, desde o século XIX , configurava em uma hegemonia de
percurso da música erudita, com predominância germânica. Deste modo, em nosso trabalho, o
foco principal não é a estrutura musical em seu contexto de origem, mas suas possibilidades
de extensão.

Surge então a questão de como, em geral, este conhecimento da música não-


ocidental pode influenciar o compositor. A influência menos interessante, a meu ver,
é imitar o som de algumas das manifestações da música não-ocidental. [...]
Alternativamente, pode-se criar uma música de sonoridade própria, construída à luz
do conhecimento que o compositor possui sobre estruturas da música não-
ocidental. 2 (REICH apud HILLIER, 2002, p.70)

Partindo do princípio que os compositores do século XX fizeram muito mais do


que apenas incorporar a sonoridade da música não ocidental em seus trabalhos, como nos
menciona Steve Reich, propomos que as extensões estudadas neste trecho sejam
desenvolvidas em propostas de improvisação da mesma forma que foram desenvolvidas na
composição. É importante observar que nosso objetivo não é fazer uma análise completa da
obra destes compositores, já que há um extenso material com esse propósito, mas sim de
apontar sob qual aspecto a música não ocidental influenciou seu trabalho, já focados nas
extensões estruturais que serão utilizadas em propostas de improvisação. Observamos também
que os exemplos utilizados representam apenas uma amostragem geral dessa influência,
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havendo portanto outros compositores e outras abordagens que fizeram parte direta ou
indiretamente do processo de contato com a música não ocidental.

3. A música de culturas não ocidentais e a performance a partir da ideia de


interações transculturais

Hoje temos acesso retrospectivo a toda produção de música no ocidente e mais toda
a música feita em outros lugares do mundo e de origem não europeia. Esta situação
cria condições para um desenraizamento da música atual. Este desenraizamento
parece apontar positivamente para o advento de novos tempos onde as estruturas
mais profundas da arte, da linguagem e do pensamento se desprendem de suas
especificidades idiomáticas para expressar formas mais sutis da existência: o
"molecular", o cósmico. (COSTA, 2003, p.29)

Dando segmento ao nosso trabalho, abordamos as contribuições da música não


ocidental na performance musical, estudando principalmente o contato do músico performer
com formação baseada na didática ocidental com a música provinda de outras culturas. Nessa
abordagem também estudamos, comparamos e refletimos sobre parâmetros de improvisação
em alguns ambientes da música não ocidental, para depois abordarmos diretamente a
transformação e recontextualização de materiais e procedimentos da música não ocidental
dentro de um contexto formativo para o músico adulto. Nosso trajeto parte de considerações
gerais sobre o contato com outras culturas para depois abordar aspectos específicos relativos à
performance musical nas culturas não ocidentais. Nestes aspectos demos especial atenção
para a improvisação, trazendo conceitos e procedimentos que podem enriquecer a abordagem
dessa prática, almejando a criação de contextos híbridos e transculturais de formação musical.
Tentamos não estabelecer uma visão etnocêntrica em nossos estudos, escolhendo
como fundamentação o trabalho de autores que vivenciaram abordagens multiculturais na
performance e autores de origem não ocidental que trouxeram conceitos de suas culturas para
contextos formativos de música encontrados no ocidente.
Neste segundo trecho de nosso trabalho, concentramo-nos na possível ampliação
de possibilidades performáticas no campo de ação de um músico performer quando se depara
com fazeres musicais advindos de outras culturas. Aqui seguimos utilizando o termo música
não ocidental 3, com a ressalva de que nosso foco principal é a constatação da diversidade
cultural e musical na qual nos encontramos hoje. A partir dessa diversidade, vamos estudar
formas de nos relacionarmos com a música do outro, sob a perspectiva do performer com
formação musical nos moldes da tradição europeia.
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4. Desdobramentos dos materiais da música não ocidental em contextos


formativos do ocidente: corporalidade, hibridismo e improvisação

A cultura humana não é algo para ser apenas transmitido, perpetuado ou conservado,
e sim algo que está sob constante reinterpretação. Como um elemento vital do
processo cultural, a música é, no melhor sentido do termo, recriacional: ajudando
para que nós e as nossas culturas sejam renovadas, transformadas 4. (SWANWICK,
2005, p.119)

Pensando nos procedimentos e conceitos que permeiam a música de culturas não


ocidentais, nesse terceiro trecho de nosso trabalho atentamos para a diversidade desses
materiais e seus possíveis desdobramentos. Em uma realidade cada vez mais propícia para
iniciativas multiculturais, elementos como os que amostramos no trecho anterior podem ser
significativos quando utilizados em contextos formativos para o músico adulto. Nosso foco
principal aqui é novamente o diálogo, a transformação e a recontextualização de elementos da
música não ocidental, agora em contextos formativos do ocidente.
Começando pela ideia da corporalidade, forte marca das culturas não ocidentais,
vemos como alguns educadores do ocidente abordaram este tema e seu possível
desdobramento na formação musical adulta. Em nossos estudos sobre a corporalidade,
incluímos também o conceito de que o corpo funciona como parte ativa nos processos
cognitivos, conhecido por embodied mind.
A seguir observamos como alguns institutos de artes incorporaram elementos da
música não ocidental em sua grade curricular, incluindo cursos de graduação em música,
cursos de especialização e iniciativas isoladas. Embora nossa proposta final se concentre na
prática da improvisação, estudamos a forma como materiais e conceitos provindos da música
não ocidental influenciaram contextos formativos que envolvem a performance musical e os
processos criativos em geral. Nesse mesmo trecho, mostramos como alguns institutos de artes
abordam a música em contextos multiculturas e transculturais, sendo este último nosso
principal foco de interesse. Ainda sob este foco, discorremos sobre a prática da improvisação
em contextos formativos, incluindo estudos de educadores que abordaram o tema da
improvisação sob diversos aspectos, defendendo a importância desta prática em contextos de
formação musical do ocidente. Por fim, consolidamos o conceito da transculturalidade
utilizada em contextos formativos, incluindo a ideia da criação de ambientes híbridos para a
prática da improvisação.
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5. A proposta da conexão corpo/instrumento sob parâmetros rítmicos


complexos na improvisação

“Você diz “Eu” e fica orgulhoso dessa palavra. Mas melhor do que isso –embora
você não acredite – é seu corpo e sua grande inteligência, que não diz “Eu”, mas interpreta o
“Eu”.” (NIETZSCHE apud Marins, 2011, p.65)

Na última parte de nosso trabalho, relatamos experiências prévias diretamente


relacionadas à elaboração de 4 workshops de improvisação e a descrição das atividades
propostas nestes workshops, incluindo os princípios estabelecidos para sua elaboração e seus
resultados. Primeiramente detalhamos e comentamos os resultados das experiências realizadas
entre os anos de 2010 e 2012, incluindo o artigo escrito a partir do estágio realizado na
disciplina de improvisação oferecida na graduação em Música da ECA/USP, ministrada pelo
professor Rogério Luiz Moraes Costa; o curso de Assimetrias Temporais, ministrado no
segundo semestre de 2011 na escola Espaço Musical, e o estágio de 20 dias realizado em
janeiro de 2012 na Guildhall School of Music and Drama sediada em Londres.
Após a descrição destas experiências, detalhamos os princípios, os objetivos
gerais e as atividades propostas nos 4 workshops que elaboramos ao longo deste período. A
temática dos workshops tem por foco principal a improvisação em estruturas rítmicas
complexas e sua internalização pelas vias do movimento em ambientes híbridos. O processo
de trabalho que estabelecemos para nossos workshops foi denominado de conexão
corpo/instrumento, que consiste na transição de propostas de improvisação utilizando o
movimento e a coordenação motora para a improvisação com o mesmo enfoque no
instrumento. Para finalizar, comentamos os resultados da aplicação destes workshops e
tecemos algumas considerações a respeito dos temas abordados na última parte de nossa
pesquisa. Incluímos nestas considerações depoimentos de alguns dos músicos que
participaram dos workshops ministrados.

6. Considerações finais

É importante ressaltar que nosso trabalho não pretende defender uma


“orientalização” na formação do músico, mas sim, atentar para o fato de que materiais e
procedimentos da música não ocidental podem trazer uma contribuição relevante para a
formação do músico de nosso tempo. Não temos tampouco a intenção de propor uma
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“formação ideal” para o músico do ocidente, nem mesmo de elencar a prática da improvisação
como única forma de interação com a música não ocidental, considerando que nossa pesquisa
parte de outras interações possíveis, como as realizadas na composição e na performance.
Sendo assim, amostramos procedimentos musicais utilizados desde o século
passado que podem ser expandidos para propostas diversas, com o objetivo de ampliar o
espectro de linguagem do músico da atualidade. Partindo dessa ideia, nosso foco principal é
interagir com linguagens musicais sob parâmetros multiculturais, criando novas conversas
musicais e incentivando práticas como a improvisação a partir de ambientes híbridos e
transculturais. Neste aspecto, há muito da música não ocidental que pode aumentar nosso
vocabulário musical quando tratamos da formação do músico de hoje.
Um universo de palavras para enriquecer nossas conversas.

Referências:

COSTA, Rogério Luiz Moraes. O músico enquanto meio e os territórios da livre


improvisação. São Paulo, 2003. [179f.]. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica).
Pontíficia Universidade Católica de São Paulo.

GRIFFITHS, Paul. Modern Music: a concise history, New York: Thames and Hudson Inc.,
1994.

HILLIER, Paul (org). Steve Reich: Writings on Music (1965-2000), New York: Oxford
University Press, 2002.

NIETSZCHE, Frederich; tradução Alex Marins. Assim falou Zaratustra. 2ª edição. São Paulo:
Martin Claret, 2011.

SCHIPPERS, Huib. Facing the Music: Shaping Music Education from a Global perspective.
New York: Oxford University Press, 2010.

SWANWICK, Keith. Music, Mind, and Education. 4ª edição. New York: Routledge Falmer,
2005.

1
“If there were to be a new release in music, it would come not from the west but from the east”

2
“The question then arises as to how, if at all, this knowledge of non-Western music influences a composer. The
least insteresting form of influence, to my mind, is that of imitating sound of some non-Western music. [...]
Alternatively, one can create a music with own’s sound that is constructed in the light of one’s knowledge of
non-Western structures.”
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3
Em relação ao termo, o etnomusicólogo australiano Huib Schippers cita a dificuldade de tratar a diversidade
cultural em termos como world music, música indiana, música africana, música oriental e música não ocidental.
O autor menciona por exemplo que, quando falamos de música indiana, estamos em geral referindo-nos à
música tradicional do norte da Índia, enquanto existe a música mais ligada à religião feita no sul e a música
popular dos filmes que hoje figuram no circuito chamado de Bollywood music. Quando nos referimos à música
africana, alguns estudiosos podem desaprovar o termo, considerando as diferentes regiões da África e suas
peculiaridades musicais, como a música do Marrocos, da Gâmbia e da Tanzânia. O termo música oriental é mais
aplicado para referências à música da Arábia e da Ásia, também relacionadas à uma qualidade exótica, carregada
de um certo olhar de estranhamento, como se a música do Ocidente fosse normal e a do Oriente fosse diferente.
(Schippers, 2012, p. 17-27). Em nosso trabalho adotamos o termo música não ocidental, por este ser utilizado
em grande parte dos estudos que abordam o contato com a música de outras culturas fora da tradição europeia.
4
“Human culture is not something to be merely transmitted, perpetuated or preserved but is constantly being re-
interpreted. As a vital element of the cultural process, music is, in the best sense of the term, re-creational:
helping us and our cultures to become renewed, transformed.”

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