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ER ICH FRO MM

CONCEITO MARXISTA
DO HOMEM
Com uma traduçã o dos MANU SCRIT OS ECON ÔMIC OS E FILO-
SÓFIC OS de Karl Marx, por T. B. BOTT OMOR E, da Escola
de Economia e Ciência Política de Londres

Tradução de
ÜCTAV IO ALVES VELHO

Quinta edição

ZAH AR EDIT ORE S


RIO DE JANEIR O
Título origin al:
MARX'S CONCEPT OF MAN

Public ado em 1961 por Frede rik Unga r Ptiblis hing Co.,
de New York, U. S. A.

Copyr ight © .•y Erich From m

Capa de
ÉRICO

19 7O

Direi tos para a língu a portu guêsa adqui ridos por


ZAH AR EDIT ORE S
Rua México, 31 - Rio de Janei ro
que se reserv am . a propr iedad e desta tradu ção
ÍN DI CE

CON CEIT O MAR XIST A DO HOM EM


ERICH FROM M

PÁG.

Prefácio ..... ... ..... ..... . ..... ..... ..... ..... ..... ..... . 7
. ... . 13
I. A Adul teraç ão dos Conceitos de Marx ..... . . . ...
.... . 19
II. O Mate rialis mo Histórico de Marx . . .... . ... ..
tura Socia l e do
III. O Probl ema da Consciência, da Estru .. . 29
Uso da Fôrça ..... ..... ..... . ..... ..... .. . .....
IV. A Natu reza do Hom em ..... ..... ..... ... . ..... .. . 34
V. Ar1enaç-ao . .... . .... . ..... .... . ... . ..... • .. • • • • • • • • 50
VI. Conceito Marx ista do Socialismo ..... .... . ..... ..... . 62
VII. A Cont inuid ade do Pensamento de Marx ..... ..... .. .
71
VIII . Marx , o Hom em ..... ..... ..... ..... ..... ... . .... .
80

MAN USC RITO S ECO NÔM ICOS E FILO SÓFI COS


KARL MARX

Nota do tradu tor inglês ..... ..... ..... ..... ..... ..... .... . 85
···· 87
Prefácio ..... ..... ..... . . ..... ... • • • • • • • · · · · · · · · · · · · · · ... . 89
Primeiro Manu scrito : Trab alho Alienado ..... ..... . . .....
Manu scrito : A Relaç ão de Propr iedad e Privada ..... . .
103
Segundo 110
Terceiro Manu scrito : Propr iedad e Priva da e Traba lho ..... ... .
Propr iedad e Priva da e Comunismo .... . . . 114
Necessidades, Produção e Divisão do Tra-
127
balho ..... ..... ..... . .... · .. · · . · · . · · · ·
Dinh eiro ..... ..... ..... . • • • • • • • • • • • • • •
144
Crític a da Filosofia Dialética e Geral de
149
Hegel .. . .... . ..... . • • • • • • • • • · • • · • · · • ·
. . .... . 171
Excertos de IDEO LOG IA ALEM Ã. Karl Marx .....
DA ECO NO-
Prefácio a UMA CON TRIB UIÇÃ O A CRIT ICA 187
····
MIA POL ÍTIC A. Karl Mar x ... .. . ..... ... · . · · · ·
ITO, tle
Da Intro dução à Crític a da FILO SOFI A DO DIRE 189
Mar x .. . ..... ..... .
Hegel. Crític a da Religião. Karl 190
········
Reminiscências de Marx. Paul Lafar gue . . • • • • • • · · · 207
· · · · ········
De Jenny Marx a Josep h Weytlemeyer . . • • • • • • • 212
·······
Karl Marx. Elean or Marx -Avel ing .. . .. • • • • • · · · · · · · 219
Karl Mar x ..... ... . • • • • · · · · · · · · · · · · · · ·······
Confissão. 220
· ·······
O Fune ral de Karl Marx. Fried rich Enge ls • • • • • • • •
PREFACIO

A MAIOR parte dêste volume encerra a principal, obra filo-


sófica de Karl Marx em tradução inglêsa, pela primeira vez
publicada nos Estados Unidos. 1 · Evidenteme nte, esta publica-
ção é de grande relevância, se não por outra razão pelo fato de
dar a conhecer ao público norte-ame,-icano uma das mais notá-
veis obras de filosofia pós-hegeliana, até aqui desconhecida no
mundo de língua inglêsa.
A filosofia de Marx, assim como considerável parte do pen-
samento existencialista, representa um pt'otesto contt"a a aliena-
ção do homem, contra sua perda de si mesmo e contra sua
transformação em objeto; é um movimento oposto à desumani-
zação e automatização do homem, inerente à evolução do indus-
trial,ismo ocidental. Ela se m·ostra implacàvelm ente crítica para
com tôdas as rr soluções" para o problema da existência humana
que tentam apresentar propostas negando ou mascarando as di-
cotomias intrínsecas da existência do homem. A filosofia de
Marx tem suas raízes na tradição filosófica ocidental huma-
nista, que se estende de Spinoza, através dos filósofos do ilumi-
nismo francês e alemão do século XVlll, até Goethe e He-
gel, e sua essência mesma é a preocupação com o homem e com
a realização de suas potencialidades.
Pa,-a a filosofia marxista, que encontrou sua expressão mais
eloqüente nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, o proble-
ma central é o da existência d.o homem individual real, que
é aquilo que êle faz, e cuja rrnatureza" desabrocha e se revela
na História. Ao contrário de Kierkegaard e outros, porém,
Marx vê o homem em sua plena realidade como membro de

1 Uma tradução anterior para o inglês, feita na Rússia, está à


venda na Inglaterra desde 1959.
CONCEITO MARXISTA DO HOMEM
8
.,,dade e de uma dada classe, auxiliado em seu
uma dada so Cl "
desenvolvimento pela sociedade e,. ao mesmo tempo, prisioneiro
desta. A realizarão
l
total da humanidade do homem e de sua eman-
. • t, . lad
cipação das fôrças que o aprtstofn"am es ~ vt~cu a, !egun-
d,o Marx, ao reconhecimento dessas orças e a mu ança socra1 ba-
seada em tal reconhecimento.
A filosofia de Marx é de protesto; é um protesto impreg-
nado de fé no homem, em sua capacidade para libertar-se e para
realizar suas potencialidades. Esta fé, ~ um traç~ do pensamen-
to de Marx que caracterizou o esptrtfoo do Ocidente desde o
fim da Idade Média até o sé~ulo X~X, e hoje tão rara. . Por esta
razão mesmo, pa.ra muitos leitores 1nfectados com a atttude con-
temporânea de resignação e com o ressurgimento do conceito de
pecado original ( em têrmos de Niebuhr ou de Freud), a filo-
sofia de Marx parecerá obsoleta, fora de moda, utópica - e. por
esta razão, se não p,or outras, repelirão a voz da fé nas possibili-
dades do homem e de esperança em sua capacidade para tornar-se
aquilo que êle é potencialmente. Para outros, contudo, a filoso-
fia de Marx será uma fonte de nôvo discernimento e de espe-
rança.
Creio que esta esperança e êste nôv,o discernimento, trans-
cendendo os limites mesquinhos do pensamento positivista-meca-
nicista da ciência social, são hoje imp.rescindíveis para o Ociden-
te poder .emergir vivo dêste século de provações. Com efeito, en-
quanto o pensamento ocidental do século XIII ao XIX ( ou qui-
çá, para ser preciso, até a deflagração da Primeira Guerra Mun-
1i~~ em 19!1) era de esperança, de uma esperança aücerçada nas
11e1as profettcas e greco-romanas, os últimos quarenta anos têm
s1~0 de crescente pessimismo e desesperança. A pess,oa comum
vrve à procura dum refúgio; tenta escapar da liberdade e busca
se!urança no colo do grande Estado e da grande emp,rêsa. Se
n~o formos capazes de emergir dêste desespêro, talvez ainda pros-
sigamos algum. tempo apoiados em noss·o poderio material, mas na
longa perspectiva histórica o Ocidente estará condenado à extin-
ção física ou espiritt,al.
Por maio~ que seja a importância da filosofia de Marx co-
mpo, f_onte. de intr.ovisão filosófica e de antídoto contra o presente
es trito de resign ... l d
z... ... açao - ve a o ou franco - há ainda outra ra-
ao, nao menos relev t p
Unid
O an e, ara sua publicação agora nos Estados
vais os.
_ mundo
rr M
. dt·1acerad
. est,ª h 0Je o entre duas ideo /og1as
. n-.
o arxrsmo" e o rr Capitalismo". Enquanto nos Esta-
PREFÁCIO
9

dos Unidos usocialismo" é uma palavra demoníaca e que não


se recomenda, o contrário ·ocorre no resto do mundo. Não só
a Rússia e a _China empregam o nome usocialismo" para tor-
nar atraentes os respectivos sistemas, como a maior parte dos
países asiáticos e africanos está profundamente seduzida pelas
idéias do socialismo marxista. Para êles, o socialismo e o mar-
xismo são atraentes não apenas por causa de seus êxitos econô-
micos na Rússia e na China, senão também devido aos elementos
espirituais de justiça, igualdade e universalidade inerentes ao so-
cialismo marxista ( com raízes na tradição espiritual do Ociden-
te). Embora na verdade a União Soviética seja um sistema de
capitalismo de Estado conservador, e não a concretização do socia-
lismo marxista, e embora a China negue, pelos meios empregados,
a emancipação do indivíduo que é a própria meta do socidismo,
ambas utilizam ,o engôdo das idéias marxistas para recomenda-
rem-se aos povos da Ásia e da Africa. E como reagem a opinião
pública e a política oficial dos Estados Unidos? Fazemos tudo
para sustentar a alegação sino-rttssa ao proclamar que o siste-
ma dêles é umarxista" e ao identificar marxism,o e socialismo
com o capitdismo de Estado soviético e o totalitarismo chinês.
Fazendo as massas não-comprometidas do mundo defrontarem-se
com a alternativa entre rrmarxismo" e rrsocialismo", de um lado,
e rr capitalismo", do outro ( ou, como geralmente o enunciamos,
entre rrescravidão" e rrliberdade" ou livre iniciativa), proporcio-
namos à União Soviética e à China c.omunista o máximo possível
de apoio na batalha pela posse do espírito dos homens.
As alternativas para os países subdesenvolvidôs, cuja evo-
lução política será decisiva para os_ fróximos _c~m_ anos, . n~o
são capitalismo e socialismo, mas socialismo totalitano e. socralts-
mo humanista mr:trxista, conforme êle tende a expandir-se sob
várias formas diferentes na Polônia, Iugoslávia, Egito, Birmânia,
Indonésia etc. O Ocidente tem muito a oferecer como . líder de
uma evolução assim para as antigas nações coloniai_s,~ não só
capital e assistência técnica, porém igualm~nte a tradrçao huma-
nista ocidental de que o socialismo marxista é. um rebento,- a
ttadição da liberdade do homem - não apenas lt,be~dade de, f!l~s
sua liberdade para _ para desen~ol~er suas proprt~s potenc1al1-
dades humanas, a tradição da dignidade e fra!ernr~a~e huma-
nas. Está claro, todavia, que, para exercer esta 1nfluencra e para
entender as alegações russas e chinesas, temos de entender ·o
pensamento de Marx e descartar-nos da imagem ignor~nte
e deturpada do marxismo predominante nos Estados Unidos
CONCEITO MARXI5TA DO HOMEM
10

de hoje . Espero que êste volume seja um paJJIJ dado neJJa


direção .
Tentei em minha introdução, apresentar o conceito marxis-
ta do hor:iem de uma forma simples ( não exceJJivamente sim-
f
plificada, espero), porquanto ~ eJtilo dêle não aci/ita ~ compreen-
séw do que escreveu, e . co~f,o em rue essa tntroduçao venha a
ser valiosa para a ma10na doJ leitores compreender o texto
original de Marx . Abstive-me de aJresentar meus desacordos com
0 pensamento de Ma~x, porque sao po~cos, _ no q_ue to:a . a seu
existencialismo humanista. De fato, ha vanas d1screpanaas re-
ferentes às teorias sociológicas e econômicas dêle, algumas das
quais manifestei em ob1'as anteriores. 2 Dizem respeito, sobretudo,
a ter Marx deixado de ver a extensão em que o capitalismo po-
deria modificar-se, satisfazendo, com isso, as necessidades econô-
micas das nações industrializadas, bem como deixado de ver com
bastante clareza os perigos da burocratização e da centraüzação
e os sistemas autoritários que podiam surgir como aiternattvas
para o socialismo . Sem embargo, como o presente livro lida
unicamente com o pensamento filosófico e histórico de Marx1 não
é êsse o lugar para examinar os pontos controversoJ de sua teo-
ria econômica e política.
Entretanto 1 minha crítica a Marx é algo assaz distinto do
co1tumeiro julgamento fanático .ou condescendente1 tão carac-
te1'Ístico dos pronunciamentos de hoje em dia sôbre êle. E.stou
convencido de que somente se pudermos compreender o verda-
deiro sentido do pensamento de Marx 1 e por iss.o diferenciá-lo do
pseudoma,·xismo russo e chinês, ficaremos habilitados a com-
p-reender as realidades do mundo atual e de abordar o de1afio
destas de maneira redista e construtiva. Tenho esperanças de
êste volume vir a contribuir não apenas para uma compreensão
melh or da filosofia humanista de Marx , como também para re-
frea r a ~tit'!de irracional e paranóica que vê em i\1arx um diabo
e no soCJalJSm o o império dêste .
Apesat d e Manuscritos Econômicos e Filosóficos constituir
a_ parte principal dêste volume, tambéni inclui pequenas sele-
çoes de o~tros trabalho1 filosóficos d e Marx para rematar a ima-
gem dese1ada. A única parte maior acrescentada a isso abran-

2
N y Cf. , por exemplo , The S a n e Soc iety. Rineha rt & C o ., I nc.,
J. ew dork2 l 955. (N. do T . - P u bli cad a por esta editô ra em 1959,
na t ra uçao d L A B hi . .
' Psicana- ,
r d . e · · a a e G 1asone R ebu á , com o t ítu lo
zse a Sociedade Co n t em p orânea. )
PREFÁCIO 11

e que também
gt JJtír} a.r opiniõe~ acêrca da_ /Jessoa de Marx,
111111 cr1 f orr,1111 Jn1hl1cadas anter,o
rmente nos Estados Unidos. Ag i
1,.ui111 pofqttanto a fies.roa
de Marx bem como suas idéias têm sido
creio que uma des-
dtf rtm(1dr1.r e vilipendiadas por muitos autores;
ajudará a destruir
rr1crío mai.r adoq1ü1da de Marx co1no homem
rN/ O.r proconceitos ftice a suas idéias. 3
Rl1.rla-- me, apenas, exprimir minha cor
dial gratidão ao Sr.
Londres, pela per-
1'. B. Bottonwre, da Escola de Economia de
o dos Manuscri-
miJSáo para 11sar sut1 1-ecente 4e5 excelente traduçã
adecer-lhe por di-
tos Econôm .icos e Filosóficos , e também agr
ois de ler o ma-
versc,.r .wgestõe.r c,,íticas importantes que fêz dep
1111.rcrit.o do minha introdução.

E. F.

sido feito nesse sent ido


3
Um exem plo grosseiro do que tem
t a rece nte pub lica ção nor te-a mersican a de um pan flet o por Marx inti -
Mu ndo Sem Jud eus "). tste
tul ado The Wor ld Wh itho ut Jew ("O
dad o por Mar x ( o títu lo ver-
título, que dá a imp ress ão de ter sido
pare ce con firm ar a aleg ação ,
dadeiro é S6b re o Pro blem a Jud aico ),
x ter sido o fun dad or do anti -
feita pela pub licid ade do livro, de Mar
qm:r que leia o livro e con heç a
-semitismo nazi sta e soviético. Que m
a filosofia e o estilo liter ário de Mar
x reco nhe cerá que essa aleg ação
acêr ca dos
é absu rda e falsa. Ela torc e certos com entá rios críticos
um bril han te en!a io sôb,re. a
jude us, feitos de form a polê mic a em
ular essa acu saça o fantast1ca
em ancipaç ão burg uesa , a fim de form
con tra Ma rx.
pos teri or~ ente a Í_!lte_g ra
4
Wa tts & Co., de Lon dres , pub lica rão
dos Ma1!uscritos Econ~m~cos
da . !rad uçã o feita pelo Sr. Bot tom ore
cará ter 1!iu da~ ente , ec~:mom1co,
e l~i~os6fícos (inc luin do as part es de intr odu çao dele prop rio.
omitida s neste volu me) , jun to com a
uçã o Bot tom ore cons-
6
T ôdas as refe rênc ias aos ME F são à trad
tante dêste volume.
CAP ITU LO I

A Adulteração d.os Conceitos de Marx

U MA das estranhas ironias da História é não haver limites


para os erros de interpretação e as deturpações das teorias, mes-
mo numa época de acesso irrestrito às fontes; não há exemplo
mais drástico dêsse fenômeno do que o acontecido com a teoria
de Karl Marx nos últimos decênios. São constantes as referên-
cias a Marx e ao marxismo na imprensa, nos discursos de polí-
ticos, em livros e artigos escritos por respeitáveis cientistas sociais
e filósofos; no entanto, com poucas exceções, parece que os jorna-
listas e políticos jamais viram sequer de relance uma linha es-
crita por Marx e que os cientistas sociais se satisfazem com um
mínimo de conhecimento da obra dêle. Aparentemente sentem-
-se a salvo em seu papel de peritos no assunto, visto como nin-
guém com poder e status no campo da pesquisa social contesta
suas afirmações ignaras. 1

1 É triste dizer, mas não pode ser evitado, que essa i~orâ
n-
cia e essa deturp ação de Marx são mais comuns nos Esta?os U rudos do
que em outro qualqu er país ociden tal. Deve ser especialm~n!e. men-
cionado que nos últimos quinze anos houve um extrao rdman o re-
nascimento de discussões sôbre Marx na" Alema nha e n~ França,. mor-
" • E · F ·zosóficos public ados
b
mente em torno dos Manus critos conom icos e i s
..
sao rdso. r~-
neste volume. Na Alema nha os partici pantes dos debate
' •ono, micia· · · 1men t_e, os extrao Fma-
tu do teólogos protes tantes . Menci 1. ets-
· M · · os Marxi ·stas ") , orgamzados ) por Ad ·
nos arxism usstu.d ien ( "Estud 195 7
cher, 2 volumes · I · C · B· Mohr (Tübin gen, 1954, M. e~tais,
, . .. K d anuscri os.
a excelente introd ução por Lands hur a ediçao roner ~s d a· te
A seguir, as obras de Lukac s, Bloch, Pep,itz. e outros, u'::/~n ~:r:Ss t~ 0 ;
Nos Estados Unido s ' tem sido observ ado ultima mente ºf t atra
Marx que cresce aos poucos. Infeliz • mente, em Parte se ..mame s a The-
.. d Iteraçoes ' t como
ves e diversos livros cheios de prevença_o e ª u .ivamen
' d · simplifi-
Red Prussi an de Schwa rzschi ld, ou de bvros excess e
CONCP.ITO MARXISTA DO HOMEM
14

D cn. t _ tódas as incompreensões existentes, provàvelmente a


re " . li ,, d Ma
mais• d.a..ssc:m,·nada
. é a idéia sôbre o matena smo e. _ rx. Ale-
.
ga-sc t er S ido opinião de Marx. que a suprema motivaçao
, . psico-
lógica do homem é seu deseJo de v~~tagem ~n~ana ~ ~on-
f ôrto, e que éste anelo pelo lucro ~xuno constitui o prinopal
incentivo em sua vida pessoal e na vida da raça humana Com-
plementando esta idéia, há a suposi~ i~lrnenteA dif~dida
de ter Marx negligenciado o valor do 1ndiv1duo; dele nao ter
respc.-ito nem compreensão das necessidades esp~ituais do ho-
mem., e de ter sido seu "ideal" a pessoa bem nutrida e bem ves-
tida, porém, .. sem altna,.,. Sustentou-se que as críticas feitas por
Marx à religião equivaliam à negação de todos os valôres esp1n-
tuais, e isso pareceu bem mais evidente aos que julgam ser a
crença em Deus a base de qualquer orientação espiritual.
Esta opiníão acêrca de Marx prossegue para examinar seu
paraíso socialista como um lugar onde milhões de pessoas se
submetem a um.a burocracia estatal todo-poderosa, pessoas que
renunciaram à sua liberdade, ainda que possam ter alcançado
a igw.ldade; êsses ··indivíduos" materialmente satisfeitos perderam
sl.L1 indi vidualidade e foram devidamente transform~dos em milhões
de robôs e autômatos uniformes, dirigidos por uma pequena elite
de líderes mais bem alimentados.

cad05 e enganadores como The M eaning of Communism de Overstreet


Em con.tra5te, Joseph A. Schumpeter, em seu Capitalism, Socialism
and Demouacy (Harper & Brothen, 1947), dá uma excelente apre-
sen~ ~o marxismo. Cf., também, sôbre o problema do naturalis-
~o . hatón co, Christianity and Communism de John C. Bennet (Asso-
crat1.on Prc~, New York ) . Ver, igualmente, as excelentes antologias
((: rntrodu.çoc~ ) de Feuer ( Anchor Books ) e de Bottomore e Rubel
( Watts ,and Co., Londre! ) . Especificamente, acêrca da opinião de
Mane wb~e a . natureza humana de!ejo mencionar Human Nature:
The Marxist Vuw, por Venable, que, malgrado sagaz e objem-a, pa-
dece , ~ fato d~ ~ _autor não ter podido recorrer aos Manuscntos
! conomuo.r e Filoso/icos. . CL , ainda) para a base filosófica do pen-
- mento de Mane, o bnlh.ante e penetrante livro de H. Marcusei
Rea$/Jn and Reuolutio-n (Oxford Univenüy Press, New York, 1958).
~er,. ta.mbl-~; meu estudo de Marx em The Sane Socuty, já citada,
d. ~n,mha dacuu .ão anterior da teoria de Marx em Zeitschrift für S<>-
zdi.ah orschung, vol. 1 ( Hinchfeld LeirY7ig 1932) Na França, os
t ate! ti 1 ido ' r- , ·
púr fil6'o~ em _P~ co_nd_uzido-s por padres ~tóli_cos e ~ parte
<:ia~nte 'yna maiona social.atas. Entre os pnmeiros, Cl~ cs~
J 956 . em J. · ,C~lvez, La PensJe de Karl Marx, ed. Du Sewl, Pari!,
dt H
1
• ul{bv°:e. ultimO!, A. Kojcve, Sartre e, sobretudo~ a5 ,,árias obras
A AJ)TJ LTfllA <;Ão O<JS CON CEITOS DE MAP.X 15

Basta díz.cr, de~ logo, que esta imagem popular do ~tma-


tc:ri aJismo '' de M.arx - sua tendl-ncía antiespírítua~ seu desejo
de uníformid.a{le e subordinação - é inteiramente falsa. A
mda ck Mar/. era a eroanci pação ~pirít ual do homem, sua li-
bc-rtaçâú dos grilhões do dc,~~rninismo econômico, sua. reinte-
gração como ser hum.ano, sua aptidão para encontrar unidad e e
harmonia com seus semelhantes e com a natureza. A filoso-
fi a de: Marx f oí, crn línguagern secular1 não-teística, um nôvo
e; radjcaJ passo à frente na tradição do messianismo profét ico;
ela visava. à plena realização do individualismo, exrttarnF.Ote
o objebvo que presid iu ao pensamento ocidental desde o Re-
nascimento e a Reforma até a época bem avança da do
sfculo XIX.
:Bste quadro , sem dúvida, deve chocar a muitos leitores, em
face de sua incompatibilidade com as idéias acêrca de Marx a
que tê-m sido expostas. Antes de continuar para substanciá-lo,
porém., quero ressaltar a ironia exístente no fato de a descrição
feita da meta de Marx e a do conteúdo de sua visão do socia-
li smo ajustarem-se quase exatamente à realidade da sociedade ca-
pitaljs ta ocidental dos dias de hoje. A maioria das pessoas
{; motiva da por um desejo de maiores ganhos materiais, con-
f ôrto e aparelhos de tôda sorte, e êsse desejo só é restrin gido
pelo desejo de segurança e de evitar os riscos. Elas ficam cada
vez mais satisfeitas com uma vida regulamentada e dirigid a,
tanto na esfera da produção quanto na do consumo, pelo Estado
e grande s empresas e pelas respectivas máquinas burocráticas;
e:Jas chegaram a um grau de confor mismo que elimin ou o indi-
vjduaJismo em grande parte. Elas são, para empre gar a expressão
de Marx, impote ntes "homens-mercadoria" que servem a máqui-
nas viris. O própri o retrato do capitalismo de meados do século
XX é difícil de ser distinguido da caricatura do socialismo mar-
xista desenh ada por seus opositorts.

O que é ainda mais surpre endent e é o fato de as pessoas,


que acusam Marx mais amargamente de "materialista" , ataca-
~~ o . socia~smo _por ser visionário ao niw reconhecer que o
unteo 1ncentJvo ef1caz para o homem trabalh ar reside em seu
desejo de ganho s materiais. A ilimitada capacidade do homem
para negar contradições flagrantes por meio de racionalizações,
desde que lhe convenha, dificil mente poderi a ser melho r de-
?1~?-strada. As mesm~ssimas :az?es alegadas como prova das
1de1as de Marx serem mcompat1ve1s com nossa tradição religiosa
16 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

e espirin:aI, e empregadas para defender nosso sistema atual contra


Marx, sao ao me~m~ tempo usadas, pelas mesmas pessoas, para
provar , que o capit_ahsmo corresponde à natureza humana e, por-
tanto, e bem· superior a um socialismo "visionário".
f
Procurei demonstrar a t?tal alsi~ade desta interpretação de
M~rx, bem co~o. que a t~ona dele nao admite a vantagem ma-
ter!al. como principal motivação do homem; que, além disso, a
pro~na meta de Marx é libertar o homem da pressão das ne-
cessidades econômicas, de modo a poder ser completamente hu-
mano; que Marx está fundamentalmente interessado na eman-
cipação do homem como indivíduo, na superação da alienação,
na restauração da capacidade dêle para relacionar-se inteiramente
com ~e~s semelhantes e com a natureza; que a filosofia de Marx
_c onstitui um existencialismo espiritual em linguagem secular e,
por fôrça desta qualidade espiritual, opõe-se à prática materia-
lista e à tênuemente disfarçada filosofia materialista de nossa
época. A meta de Marx, o socialismo baseado em sua teoria
do homem, é essencialmente o messianismo profético expresso
em linguagem do século XIX.
Como pode, então, a filosofia de Marx ser tão completa-
n1ente mal interpretada e deformada? São diversas as razões. A
primeira e mais óbvia é a ignorância. Afigura-se que, não sendo
êsses assuntos ensinados nas universidades e, por conseguinte, não
sujeitos a exames, dão margem de ccliberdade" para todos pen-
sarem escreverem e falarem como bem entendem e sem qual-
quer 'conhecimento d~ ~a~sa. Não ?á propriamente autoridades
consagradas aptas a insistir no respeito pelos fatos e na verda-
de. Daí todos acharem-se com direito a falar de Marx sem o ha-
verem lido ou, pelo menos, sem o haverem lido suficientemente
para obter uma idéia de seu sistema de pensamento,_ dev_eras com-
plexo, intrincado e sutil. Em nad~ n;e!horou a _si~açao o fat?
de os Manuscritos Econômicos e Ftlosoftcos, a prmopal obra f i-
losófica de Marx dedicada a seu conceito do homem, de alienação,
.. at'e be.m pouco tradu-
de emancipação etc., não terem si'do senao
zidos para o inglês, 2 e por isso serem desconhecidas do mundo

2 A primeira versão inglêsa foi publicada em 1959, na GrJ-


-Bretanha, por Lawrence and Wishart, Ltd., utilizando uma t:aduç~o
recentemente publicada pela Editôra de Línguas Estrangeiras ~
Moscou. A tradução por T. B. Bottomore, incluída neste volume, e
a primeira feita por um estudioso ocide~tal.
A ADULTERAÇÃO DOS CONCEITOS DE .MARX 17

de língua inglês a algumas de suas idéias. ~ste fato, todavia,


não é de forma alguma suficiente para explicar a ignorância
predominante: primeiro, porque, não ter sido essa obra de Marx
traduzida antes para o inglês, é em si mesmo tanto sintoma co-
mo causa da ignorância; segundo, porque a orientação principal
do pensamento filosófico de Marx é bastante clara nos traba-
lhos anteriormente publicados em inglês para evitar a adulteração
ocorrida.
Outra razão . consiste em terem os comunistas russos se apro-
priado da teoria de Marx e tentado convencer o mundo de que
sua prática e teoria obedeciam às idéias dêle. Malgrado o oposto
seja a verdade, o Ocidente aceitou as alegações da propaganda
dêles e admitiu que a posição de Marx corresponde à opinião
e à prática russas. Não obstante, os comunistas russos não são
os únicos culpados da má interpretação de Marx. Embora o des-
prêzo brutal dos russos pela dignidade individual e pelos valôres
humanistas seja, de fato, específico dêles, o êrro de interpretar
Marx como propositor de um materialismo econômico-hedonista
também foi compartilhado por muitos dos socialistas anticomunis-
tas e reformistas. Não é difícil perceber as razões disso. Con-
quanto a teoria de Marx f ôsse uma crítica ao capitalismo, muitos
de seus adeptos estavam entranhadamente impregnados do es-
pírito do capitalismo que intrepretaram o pensamento de Marx
nas categorias econômicas e materialistas vigentes no capitalismo
contemporâneo. Com efeito, apesar de os comunistas soviéticos,
assim como os socialistas reformistas, acreditarem ser inimigos do
capitalismo, conceberam o comunismo - ou socialismo - se-
gundo o espírito do capitalismo. Para êles, o socialismo não é
uma sociedade humanamente diferente do capitalismo, mas, an-
tes, uma forma de capitalismo em que a classe trabalhadora ti-
vesse atingido uma posição superior; êle é, como Engels certa
feita observou irônicamente, "a sociedade de hoje sem seus de-
feitos".
Até aqui abordamos razões racionais e realistas para a de-
turpação das teorias de Marx. É inegável, contudo, haver tam-
bém razões irracionais que ajudaram a produzir tal distorção. A
Rússia Soviética tem sido encarada como a própria encarnação de
:ºd~ º, ~al; daí terem suas idéias assumido a qualidade do que
e d1abohco. Tal e qual em 1917, quando dentro de relativamente
p_o~co tempo o Kaiser e os "hunos" foram olhados como a corpo-
nf1:a~ã_o do ma~, e até a música de Mozart se tornou parte do
terntorio do diabo, assim também os comunistas tomaram 0
2
18 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

lugar do diabo e suas doutrinas não são examinadas com objetivi-


dade. A razão geralmente dada para êste ódio é o terror prati-
cado por Stalin durante muitos anos. Há sérias razões, contudo
para pôr em dúvida a sinceridade desta explicação; os mesmo~
atos de terror e desumanidade quando praticados pelos franceses
na Argélia, por Trujillo em São Domingos e por Franco na Es-
panha não provocam nenhuma indignação moral equivalente; de
fato, nenhuma indignação. Outrossim, a mudança do sistema de
terror irrefreado de Stalin . para o reacionário Estado policial de
Kruschev recebeu insuficiente atenção, malgrado fôsse de imagi-
nar que qualquer pessoa seriamente interessada na liberdade hu-
mana perceberia e ficaria feliz com tal mudança, que, embora
não suficiente, é um grande melhoramento com relação ao terror
indisfarçado da era de Stalin. Tudo isso faz-nos pensar se a in-
dignação contra a Rússia terá deveras suas raízes em sentimen-
tos morais e humanitário•s, ou antes no fato de um sistema que
não admite a propriedade privada ser considerado desumano e
ameaçador.
:e difícil dizer a qual dos fatôres acima mencionados cabe
maior responsabilidade pela deturpação e má interpretação da fi-
losofia de Marx. Provàvelmente variam de importância confor-
me a pessoa e o grupo político, e é improvável ser qualquer dêles
o único fator responsável.
CAPIT ULO .li

O Materialismo Histórico de Mar.x

A PRIMEIRA barreira .a ser


uma conveniente compreen
vencida, a fim de chegar-se a
são da filosofia de Marx, é a inter-
pretação errônea do conceito de materialismo e de materia-
lismo históric.o. Aquêles que julgam ser esta uma filosofia se-
gundo a qual o interêsse material do homem, seu desejo de ga-
nhos materiais e confôrto sempre crescente é sua principal mo-
tivação, esquecem o fato singelo das palavras "idealismo" e "ma-
terialismo", como são utilizadas por Marx e todos . os outros filó-
sofos, nada terem a ver com a motivação psíquica de um plano
superior e espiritual comparadas com outras de plano inferior e
abjeto. Na terminologia filosófica, "materialismo" ( ou "natura-
lismo") refere-se a uma opinião filosófica segundo a qual a maté-
ria em movimento é o elemento constitutivo fundamental do
universo. Nesta acepção, os filósofos gregos pré-socráticos foram
"materialistas", conquanto não o fôssem, de forma alguma, no
sentido acima mencionado da palavra como juízo de valor ou
princípio ético. Por idealismo, pelo contrário, entende-se uma
filosofia onde não é o mundo dos sentidos em permanente muta-
ção que constitui a realidade, e sim essências incorpóreas, ou
idéias. O sistema de Platão foi o primeiro sistema filosófico ao
qual foi aplicado o nome "idealista". Se bem que Marx fôsse, na
acepção filosófica, um materialista em ontologia, êle jamais se-
quer se interessou por essas questões, e muito menos tratou delas.
Entretanto, há muitas espécies de filosofias materialistas e
idealistas, e para compreender o "materialismo" de Marx temos
de ir além da definição geral dada acima. Marx, na verdade,
assumiu uma posição firme contra um materialismo filosófico
corrente entre muitos dos pensadores mais progressistas ( espe-
20 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

cialmente cientistas naturais) de seu tempo. ~sse materialismo


alegava que "o" substrato de todos o~ _fenômenos mentais e es-
pirituais devia ser encontr_ado na matena e. ~m ~rocess~s mate-
riais. Em sua forma mais vulgar e superfJCtal, este genero de
materialismo ensinava que sentimentos e idéias são suficiente-
mente explicados como resultados de processos da química or-
gânica, e que "o pensamento era para o cérebro o que a urina
, . ,,
e para os nns .
Marx combateu êsse tipo de materialismo mecânico, "bur-
guês", "o materialismo abstrato da ciência natural, que excluía
a História e seus processos", 1 e para seu lugar advogou o que
denominou, em Mamncrilos Económicos e Filos6f icos, ºnatu-
ralismo ou humanismo [que] é diferente tanto do idealismo quan-
to do materialismo, e, ao mesmo tempo, constitui a verdade
que os unifica". 2 De fato, Marx nunca empregou as expressões
"materialismo histórico" ou "materialismo dialético"; êle falou,
isso sim, de seu próprio "método dialético", em contraste com o
de Hegel, e de sua "base materialista", pelo que se referia simples-
mente às condições fundamentais da vida humana.
Este aspecto de "materialismo" , o "método materialista" de
Marx, é que distingue seu modo de ver do de Hegel. Im-
plica o estudo da verdadeira vida econômica e social do homem
e da influência do estilo real da vida do homem em seus pen-
samentos e sentimentos. "Em oposição direta à filosofia alemã",
escreveu Marx, "que desce do céu para a terra, aqui ascendemos
da terra ao céu. Quer isso dizer: não partimos daquilo que os
homens imaginam, concebem, nem de como são os homens
descritos, imaginados, concebidos, a fim de chegar aos homens
de carne e osso. Partimos de homens reais e atuantes e, ba-
seados no process,o de sua viela 1'eal, demonstramos a evolução
dos reflexos e ecos ideológicos dêsse processo vital." 3 Ou
então, segundo êle mesmo diz, de maneira um tanto diversa :
"_A fil?sofia da História, de Hegel, nada mais é que a expressão
filosóf1Ca do dogma cristão-germânico a respeito da contradição

1
O Capital, 1, Karl Marx, Charles H. Kerr & Co., Chicago, 1906,
pág. 406.
2
Economic and Phil.osophical Manuscripts, pág. 181.
. : (!erman I deology, Karl Marx e F. Engels organizado com uma
;;t;~ uçao por R. Pascal, New York International Publishers, Inc.,
' pág. 14. (O grifo é meu - E'. F.)
O MNt-4.tHüALlsMo HlSTÓ1tICO Dll M.ARX 21

c~r"f dt-u r tfült~da~ 1Jeus e b tnundo. . . A filosofia hege-


t·11 I 11t1
ll ,11\rt d11 l ll ~h'.1dtt pt'eMUlj5~ tU11 espfrito abstrato ou absoluto,
qul-1 t'\·r1lul de tal t't1ttnn que n hutnnnldade é apenas o corpo por-
t ,hl\111 d e~~~ r~1j tfH03 td11sdct1te ou inconsdehte. Hegel admite
,,1,,c, hi~t-udr:t e~lJCttLhttivEl, esotédca, precedendo e existindo subja-
n ul c ~ hl~L?d~ cint-,fdctt. . ,A história da humani~ade é transfor-
1,,r1dn r 1t 1 lustod,1 do espfrtto absttàto da ht1ma01qade, transcen-
dc-nl-c ,to htH11~111 tenL ' 1 4
l\ fr.u•x estreveü seu r,r6p1'1o método histórico assaz sucinta-
' A 111tu1ei t'tt pela qmtl os hotnéns produzem seus meios
1
tHe:tile :
LlC' $ttbsisl€neiu depet1de; n11tes de mais nada, da natureza dos
IH.do~ ttH1trdos de que dispõem e têm de reproduzir. .Este
1m~do dC' p.mdn~~o não deve set éonsiderado como mera repro-
dw:no tl tt <:xist~ndu. Hska dos indivíduos. ~, antes, uma forma
dcf'.inid t, de utividad.e dêsses it1dividuos, uma forma definida de
c~rt·essut·em snu vldn, nm modo de vida definido de parte dêles.
Conlô os .indiv kluos exprimem sua vida, assim êles o fazem.
O que dle são, pottà11to, cojncide com a produção dêles, tanto
eom o que pn1duze1n quanto co1n o como produzem. A natu-
rczu dos indivíduos depende, assim, das condições materiais de-
.
t en1111mntes de sua. pro duçao.
,., h 5
Mnrx distinguiu o materialismo histórico do materialismo
l'onlemporâneo de forma bastante clara, em sua tese sôbre Feuer-
bnch : 11
0 defeito capital de todo o material até agora (incluindo
o de Feuerbad1) é que o objeto, a realidade, o que apreendemos
por iutermédio de nossos sentidos, só é entendido sob a forma de
objuto ou contemplação ( Anschauung); não, porém, como ati-
11idt1du h111nanc1 sensorial., como prática; não subjetivamente. Por
isso, cm oposição ao materialismo, o aspecto ativo foi desenvolvi-
do abstratamente pelo idealismo - que, está claro, não conhece
a verdadeira atividade sensocial como tal. Feucrbach quer os
objetos sensoriais realmente distinguidos dos objetos do pensa-
inento; êJe não compreende, porém, a atividade humana em si
como wna atividade objetiva." 6 Marx - como Hegel - a vê
como um objeto em seu movimento, e1n seu vir-a-ser, e não co-
mo u1n "objeto" estático, suscetível de explicação pela descoberta

4
K. Marx e F. Engels, Die 1-Ieilige Famile ("A Família Sa-
grada''), 1845. (Tradução minha - E. F.)
5
German I deology, K. Marx e F. Engels, op. cit., pág. 7.
6
"Theses on Feuerbach", German Ideology, op. cit., pág. 197.
22 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

de sua "causa" física. Ao contrário de Hegel, Marx estuda 0


homem e a História partindo do homem real e das condições
econômicas e sociais em que êle tem de viver, e não primordial-
mente das idéias dêle. Marx achava-se tão afastado do materia-
lismo burguês quanto do ideal_ismo _hegelia~o -. daí poder diz~r,
acertadamente não ser a sua filosofia nem idealismo nem matena-
Iismo, porém 'uma síntese: humanismo e naturalismo.
A êsse ponto, já deve estar claro por que é errônea a idéia
popular acêrca da natureza do materialismo histórico. Ela pre-
sume que na opinião de Marx a mais forte motivação psicológica
do homem seja ganhar dinheiro e ter mais confôrto material; se
esta é a principal fôrça no íntimo do homem, prossegue essa "in-
terpretação" do materialismo histórico, a chave para se compreen-
der a história são os desejos materiais dos homens; portanto, a
chave para explicar a . história é a barriga do homem, bem co-
mo sua cobiça de satisfação material. O êrro fundamental em
que se apóia esta interpretação é a suposição do materialismo his-
tórico ser uma teoria psicológica concernente aos impulsos e pai-
xões do homem. De fato, contudo, o materialismo histórico não
é de forma alguma uma teoria psicológica; ela alega que a forma
por que o homem produz determina seu pensamento e seus de-
sejos, e não que seus desejos principais sejam os de máximo ganho
n1aterial. A economia, neste contexto, refere-se não a um im-
pulso psíquico, mas ao modo de produção; não a um fator
subjetivo, psicológico, porém objetivo e econômico-sociológico.
A única premissa quase-psicológica da teoria jaz na suposi-
ção de o homem carecer de alimento, abrigo etc., e por isso
p~e~isa p~oduzir;_ _daí o modo de produção, dependente de
varies fatores obJehvos, como que precede e determina as outras
esferas de sua atividade. As condições dadas objetivamente que
d~ter~inam. o modo _de produção, e em conseqüência a orga-
n1zaçao social, determinam o homem suas idéias assim como
• A ) )

seus interesses. Com efeito, a idéia de que "as instituições for-


~am os ho~ens", na ~xpressão de Montesquieu, era um disc~r-
nimento antigo; a novidade de Marx foi sua minuciosa análise
das instituições, mostrando como estavam enraizadas no modo de
prod~çã_o e nas fôrças produtivas subjacentes. Certas condições
~cono1?1Cas, como as de capitalismo, produzem como principal
incentivo
,. . o deseJ·o d e d.inh eiro
· e propriedade·
. . ,., eco-
outras condiçoes
nom1cas .podem p ro duzu · '.
de ascetismo e de " exatamente 1 ·
os desejos opostos como os
· ' como ' sao
,.,
sprezo pe as riquezas terrestres tais
encontrados em m ·t . . ' . .•·
ui as cu1turas orientais e nas etapas iniciais
o MA'fERlALISMO 1-mrrótllCO DJ.! MARX

do capitalismo . .., A 1,aixão felo dinheiro ~ , pel a pro1-,riccladc.


segundo Marx, é tão econô1n1caJt1cnte éondJCt orrnda cJuEtuto an
paixões diametralmente opostas. 8
. A interpretação tnaterialísta" ou "econômka'Í drt Hi1d6J'ht
41

feita por Marx nada tem a , ver, absb1utame11te1 côm um ~u..,


posto anelo "materialista., ou ''econ6tnkoil t~nsí~~rrtdo t ottto ó
impulso mais fundamental do homem. Ela s1gn1f1ca tjt lc o ht>•
mem o homem real e total os Hindivíduos vivos reais" .__.. e nã-o
as idéias produzidas por êst~s ''indivíduos'' .._. são o tema <la 1-J j~,.
tória e da compreensão das 1eis desta. De fato, a Jnterprctaçâo
marxista da História poderia ser denominada uma interpreta$,
ção antropológica da História caso se qujsesse1n cvHar as ambíg-Oj..
dades dos têrmos .. materialista" e "econômico"; ela é a compre~
ensão da Histór-ia baseada no fato de os homens seretn ''oa uu ..
tores e atôres da sua história". 9 , 1o
Com efeito, uma das grandes diferenças entre Marx e a
maioria dos escritores dos séculos XVIII e XIX é ~le não con~i~

7 "Enquanto o capital~smo do tipo clássico ferrtteia o con-


sumo individual como um vício contra sua função, de abt1tcr-Kc de
acumular, o capitalismo modernizado é capaz de úlhar a acumulação
como abstinência de prazer" ( O Capital, I, loc. cit., pág. 650).
8 Tentei elucidar êste problema em um artigo "Uber Aufgabe
und Method einer Analytischen Sozialpsychologie" ( "88bre o Método
e Objetivo da Psicologia Social Analítica"), Zeitschrif t für Sozial-
forschung, vol. I. C. L. Hirschfeld, Leipzig, 19·34, págs. 28-54.
9 Marx-Engels Gesamtausgabe, Marx-Engels Verlag, org. por P.
Riazanov. Berlim, 1932, I, 6, pág. 179. (A abreviatura MEGA será
usada nas referências ulteriores a esta obra.)
lO Ao rever êste manuscrito, deparei com uma excelente inter-
pretação de Marx, caracterizada não só pelo conhecimento perfeito
como por uma genuína compreensão, da autoria de Leonard Kriegcr
"The Uses of Ma:" for ~istory", em Política[ Science Quarterly:
vol. XXXV, 3. Diz êle: Para Marx, a substância comum da His-
tória era a atividade dos homens - "Os homens simultâneamente
autores e atôres de sua pr6pria história" - e essa atividade estendia-se
igu~l~~nte a todos os níveis: modos de produção, relações e categorias
sociais (pág. 362). Quanto ao alegado caráter "materialista" de
Marx~ escreve Krieger: . "O que nos intriga acêrca de Marx é sua
capacidade para descobnr um racional essenci<dmente ético através
e ao long? dos séculos, ao mesmo tempo que percebe a diversidade
e complexidade da exis.tência histórica" (pág. 362). ( Os grifos são
me,!".- E. F.) Ou adiante (pág. 368): "Não há aspecto mais carac-
terutic~ do ar~abo~ço filos6pc? de Marx do que sua reprovação
categórica do . mteresse econom1co como uma distorção vis-à-vis do
homem moral mtegral."
CONCEITO MARXISTA DO HOMEM
24

derar O capitalismo como r~sul~ado da natureza h~m:na e a mo-


tivação do homem no capitalismo como a motivaçao universal
intrínseca ao homem. O absurdo da opinião segundo a qual
Marx considerava ser o anseio de lucro máximo o mais profun-
do motivo do homem torna-se mais evidente quando se leva em
consideração ter Marx feito diversos pronunciamentos bem di-
retos sôbre os impulsos humanos. lHe diferençava entre im-
pulsos constantes ou "fixos", "existentes em quaisquer ci.rcuns-
tâ ncias e mutáveis pelas condições sociais no tocante a direção
e forma", e impulsos "relativos" que "devem sua origem apenas
a um certo tipo de organização social" Marx admitia o sexo
e a fome pertencendo à categoria de impulsos "fixos", mas nun-
c:1. lhe ocorreu considerar o impulso por vantagem econômica
máxima como um impulso constante. 11
Nem é preciso, aliás, de provas assim das idéias psicológi-
cas de Marx para mostrar que a suposição popular sôbre o ma-
terialismo marxista está totalmente errada. Tôda crítica feita
por Marx ao capitalismo é exatamente de êste ter feito do in-
terêsse pelo dinheiro e pelos ganhos materiais o principal motivo
do homem, e seu conceito de socialismo é precisamente o de
uma sociedade em que êsse interêsse material deixasse de ser
o dominante. Isto ficará ainda mais claro adiante, quando exa-
minarmos o conceito de Marx a respeito da emancipação e li-
berdade humanas em pormenor.
Como salientei anteriormente, Marx parte do homem, que
faz a sua própria história: "A primeira premissa de tôda a
história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos
humanos vivos. Assim, o primeiro fato a ser estabelecido é a
organização física dêsses indivíduos e sua conseqüente relação
com o ~esto da natureza. Evidentemente, não podemos envere-
dar a~u1 pela natureza física real do homem ou pelas condições
naturais. em _que o homem se encontra - geológicas, oro-hidrográ-
ficas, chmátICas e assim por diante. A descrição da história tem
s~mp!e de iniciar-se por essas bases naturais e pelas suas modi-
ficaçoes no curso da história graças à ação do hon1em. Os ho-
me!1~_ podem ser distinguidos dos animais pela consciência, pela
rehgiao ou por outro elemento qualquer que se queira conside-
rar. Eles próprios começam a produzir seus meios de subsistên-
Cia, um passo que é condicionado por sua organização física.

11
MEGA, V, pág. 5g 6_
O MATERIALISMO HISTÓRICO DE .MARX 25

Pelo fato de produzirem seus meios de subsistência, os homens


· 1 rea1. " 12
. do sua viºd a mat ena
indiretamente estão pro duz1n
É muito importante entender a idéia fundamental de Marx:
0 homem faz sua própria história; êle é seu próprio criador.
Conforme êle o exprimiu, muitos anos depois em O Capita/,: "~
não seria mais fácil compilar essa história, desde que, como diz
Vico, a história humana difere da história natural por nós têr-
mos feito a primeira mas não a última." 13 O homem dá a luz
a si próprio no decurso da História. O fator essencial dêste
processo de autocriação da raça humana está na sua relação com
a natureza. O homem, na alva da História, está cegamente
vinculado ou agrilhoado à natureza. Com o correr da evolução,
êle transforma sua relação com a natureza e, por conseguinte,
consigo mesmo.
Marx tem mais a dizer, em O Capital, sôbre esta depen-
dência da natureza: "Aquêles antigos organismos sociais de
produção eram, comparados com a sociedade burguesa, extre-
mamente simples e transparentes. Eram baseados, porém, seja
no desenvolvimento imaturo do homem individualmente, que
ainda não cortou o cordão umbilical que o liga a seus semelhan-
tes em uma comunidade tribal primitiva, seja em relações dire-
tas de submissão. ~les só podem surgir e existir onde o desen-
volvimento do poder produtivo de trabalho não tenha saído de
um estágio baixo, e quando, por conseguinte, as relações sociais
dentro da esfera da vida material, entre os homens, e entre o
homem e a natureza, sejam proporcionalmente mesquinhas. Esta
mesquinhez reflete-se na antiga adoração da Natureza e nos
outros elementos das religiões populares. O reflexo religioso do
mundo real só pode, em qualquer caso, desaparecer, finalmente,
quando as relações práticas da vida cotidiana não oferecem ao
homem senão relações perfeitamente inteligíveis e razoáveis com
seus semelhantes e com a natureza. O processo vital da socie-
dade, estribado no processo da produção material, não rompe
seu véu místico até ser tratado como produção por homens li-
vremente associados, e é conscientemente regulado por êles de
acôrdo com um plano assentado. Isso, entretanto, exige da socie-
dade um certo fundamento material ou conjunto de condições

12 German ldeol,ogy, op. cit., pág. 7.


13
O Capital, I, op. cit., pág. 406.
26 CONCJJITO MARXISTA DO HOMRM

de existênda que, a Sf'U turno, são o produto esponti nco & um


longo e penoso processo evolutivo." 14
Nesta declaração, Marx fala de um elemento que exc-ra
papel central em sua teoda: o trabalho. O trabaJho é o fator
que medeia entre o homem e ~ natureza; é o esfôrço do ho-
1nem para regular seu Jnetabohsmo com a natureza. O tra-
balho é a expressão da vida humana e através dêle se altera
a relação do homem co1n a natureza; por isso, através do tra--
balho, o ho1nem transforma-se a si mesmo. Adiante, estender•
-nos-emos acêrca dêste conceito de trabalho.
Concluirei êste capítulo, transcrevendo a mais completa
formulação feita por Marx do conceito de materialismo histó-
rico, escrita em 1859:
"O resultado geral a que cheguei, e que, uma vez alcan-
çado, serviu de guia a meus estudos, pode ser assim sintetizado:
na produção social de sua vida, os homens ingressam em re~
ções definidas, que são indispensáveis e independe m de sua von-
tade, relações de produção correspondentes a uma determinada
etapa de evolução de suas fôrças produtivas materiais. O grande
total dessas relações de produção constitui a estrutura econô-
mica da sociedade, o verdadeiro alicerce sôbre o qual se ergue
uma superestrutura jurídica e política à qual correspondem for-
mas definidas de consciência social. O sistema de produção da
vida material condiciona o processo da vida social e intelectual
em geral. Não é a consciência dos homens que determina seu
ser social, porém, pelo contrário, seu ser social é que determina a
consciência dêles. Num certo estágio de sua evolução, as fôrças
produtivas materiais da sociedade entram em choque com as re-
lações de produção existentes, ou - o que é mera expressão legal
da mesma coisa - com as relações de propriedade dentro das
quais elas têm atuado até então. De formas de evolução das
fôrças produtivas, essas relações passam a ser entraves a elas.
Inaugura-se, então, uma época de revolução social. Com a mu-
dança das fundações econômicas, tôda a imensa superestrutura
transforma-se mais ou menos ràpidamente. Ao apreciar essas
transf?rmações, sempre se deve distinguir entre a transformação
material das . condições econômicas da produção, suscetíveis de
serem determinadas com a exatidão da ciência natural, e as for-

14
O Capital, I, op. cit., págs. 91-92.
O MATERIALISMO HISTÓRI
CO DE MARX
27
mas jurídicas, políticas, religiosas est 't· .
uma pa1avra, 1ºd eo l'og1cas
. - , pelas , e icas
. ou filo so, f
1cas - em
nhecimento dêsse conflito e lutam P~~ais osl ~omens tomam co-
. ·- so"b
nossa op1n1ao re um indivíduo não a resa . · Assim
b ve-lo •
como
d . se ase1a no q "l
sa e s1 mesmo, tampouco podemos jul ar um , ue e ~ pen-
transformação pela própria consciência âêle· erriodo .~sim de
consciência tem de ser explicada a part. ' dp O contra~1~, essa
.d . 1
v1 a matena , d o conflito .
existente entre
ir as contrad1çoes d
f" . ª
. . 1 - d
soaa1s e as re açoes e produção. Nenhuma ord as orças produtivas
·
d
rece antes e se terem desenvolvido tôdas as fo"r em soc1a 1 pe-
d ·
ças pro uttvas
que ne1a cab em; e novas relações de produção, mais elevadas,
nunca aparecem antes das condições materiais para sua · t"' . _
. d .d ex1s en
oa terem ama ~reci o no ventre da própria sociedade antiga.
Logo, a h~manida d~ sempre se propõe apenas às tarefas que
possa solucionar; pois, olhando o assunto mais de perto, sempre
se constatará que a própria tarefa só desponta quando as con-
dições materiais para sua solução já existem ou, pelo menos,
estão em vias de concretizar-se. Grosso modo, os sistemas de
produção asiáticos, da Antiguidade, feudal e burguês moderno
podem ser designados como épocas progressivas da farmação eco-
nômica da sociedade. As relações de produção burguesas são
a última forma antagônica do progresso social da produção
não-antagonista na acepção do antagonismo individual, mas de
um antagonism o decorrente das condições sociai_s da vida . ~o in-
divíduo; ao mesmo tempo, as fôrças produ~1~as mater!a!s no
ventre da sociedade burguesa criaram as cond~çoes ~atenais pa-
ra a solução dêsse antagonismo. Essa formaçao soCtal, porta~tt~;
conduz a pré-histór ia da sociedade humana a um fecho.
Será útil novamente sublinharmos e aperfeiçoarmos cert~s
noções específicas desta teoria. . A t s de mais nada o conce1-
ne , d ''d à con-
.
to marxista de mu d ança h is onca. t' . A mudança e ev1 a
dições objeti-
tradição entre as fôrças produtivas (_el out!atsntceon Quando um
vamente supostas) e a organiza. · ção soeta exis e ·
,., social prejudica, ao invés
sistema de produção ou orga~izaçao 'd das uma sociedade,
,. produtivas cons1
d e f avorecer, as f orças , eraformas ' de produçao ,.,
para não entrar em colapso, escolhera dast. s e as desenvolverá.
adequadas ao nôvo con Junto . d e f"rças
0 pro u iva

. Economia Poli-
. • ,,,,
à Critica da ges Pu-
15 "Prefácio a uma Contr1bu1çao l I Foreign Langua
. ,,
t 1~a , Marx, Engels, S e lec t e d W, orksS62-364.
vo . '
hhshing House, Moscou, 1955, pags.
28 CONCEITO MARXISTA
DO HOMEM

A c,1oluçtio do ho1nem
e1n tôda a história caract
tu do hõ n' K' h' l contra a na eriza-se pela Iu-
tureza. Em certo ponto
t tô td o con1 1.fnrx, ein da História ( de
futuro próximo), o hom
vidn l\S fôrças produtivas em terá desenvol-
da natureza a tal ponto
~'tútÜstno entre êlc e
a natureza poderá ser, af que o anta-
Nesse púnto, "a pré~histó inal, solucionado.
ria do ho1ne1n" tenninará
o histórit\ verdadeiro.mente e principiará
hun1ana.
CAPITU LO III

O Problem a da Consciência, da Estrutura Social


e do Uso da Fôrça

UM PROBLEMA da máxima importância é aventado na pas-


sagem que acabamos de citar, o da consciência humana. A afir-
mação _cr~ci~l é: "Não é a consciência dos homens que determina
sua ex1stencia, mas, pelo contrário, sua existência social lhes de-
termina a consciência." Marx . apresentou uma afirmação mais
completa relativame nte ao problema da consciência em Ideologia
Alemã.
"O fato, portanto, é que indivíduos definidos que são pro-
dutivos ativamente de uma forma definida ingressam nessas rela-
ções sociais e políticas definidas. Em cada caso distinto, observ_aç?~s
empíricas devem revelar emplricamente, e sem qualquer m1shf1-
cação e especulação, a conexão da estrutura social e po~ítica com
a produção. A estrutura social e o Estado estão co~ti~uamente
evoluindo a partir do processo vital de indivíduos de!m~do~, m~s
de indivíduos não como talvez pareçam em sua propna 1IDagi-
. nação ou na de outros, e sim como realmente sao; .. ·t ' mo
is O e, e~ .
são eficazes, produzem materialme nte, e são_ ~tivos <lent~o de hmi-
· ·
tes matena1s, · -
supos1çoes e con dº1çoes
- def1rudas, alheios ª suas
vontades.
·" · é a prin-
.. A produção de idéias de conceitos, de consoen~a ' t . .
, . ' . l as relaçoes ma ena1s
c1p10, mesclada com a atividade matena e as
dos h omens a linguagem da v1 a rea ·
"d 1 Conceder pensar,
, . ' mo O aflu-
relações me~tais dos homens aparecem neSt e eS t ªg10 co se aplica
xo direto de seu comportam ento material. O ,n?eSro~as leis da
ª, produçao- 1·
mental expressa na 1nguagem da po ibca,
O
1 '
homens são os
moral, da religião, da metafísica de uin povo. s
CONCEITO MARXISTA DO HOM EM
30

produtores de suas conc~~ções, idéias etc. - h~~e ns reais, ati-


vos, tal como são condicionados pel~ desenvolvun.e nto explídt-0
de suas fôrças produtivas e das relaçoes a. ;st~s cor,tespondentes
,
até suas formas mais adiantadas. A consc1enoa nunca pode ser
senão existência consciente, e a existência dos homens em seu
processo vital real. Se em tôdas as ideo logi~ os homens e suas
circunstâncias aparecem de cabeça para baixo como · em uma
eamara obscura, * êste fenômeno deriva tanto do processo :vital
histórico dêles quanto da inversão dos objetos na rotin a de ·seu
processo vital físico." 1
Em primeiro lugar, deve nota-se que Marx , como ,Spinoza
e mais tarde Freud, achava que a maioria do que os home
ns
pensam conscientemente é uma percepção · "fals a", é ideologfa
e
racionalização; que as verdadeiras molas mestras das ações do
homem são inconscientes para êste. Segundo Freu d, elas têm
suas raízes nos anseios libidinosos do homem; segundo Mai:x, ,e
m
tôda a organização social do homem que norteia sua perceipção
para certas direções e o impede de dar-se conta de determinados
fatos e experiências. 2

* Instru mento aperfeiçoado no fim da Idade Médi a, para lan-


çar, por meio de espelhos, a image m de um cenár io. numa
superfície
plana . Foi larga mente usado por artist as para estab elece r
as propor-
ções de um objet o ou cena natur al. A imag em apare cia invertida
no papel , embo ra isso f ôsse mais tarde corrig ido com o uso
lente. de uma
1 German ldeol ogy, op. cit., págs. 13-14.
2 · Cf.
meu capítu lo em Suzuki, From m e De Marti no, Zen
Budd ~ism and Psychoanalysis, Harp er and Broth ers, New York,
1960.
Cf., am?,.ª, ~ decla ração de Marx : "A lingu agem é tão antig
a quanto
a consciencia, ela é consciência prátic a, pois existe para
outros ho-
mens, e por ~ssa ~azão come ça a existi r igual ment e para
mim pes- ·
soalmente =. pois a lmgu agem , como a consc iência [perc epção
], só brota
da necessidade, da necessidade de interc âmbi o com outro
s homens-
~nde há u~a relaçã o, ela existe para mim: o anim al não
tem rela-
ç~es com COISa algum a, nem as pode ter. Para o anim al su~ rela-
çao com outros não existe como tal. A consc iência p'orta~te, é
desde o começo " um pro d uto social
· , e assim
· '
t am os homens perm anece enqua nto ~l.P$·•
- A co '" · • , • ,
cepçao do mei 0· f' · nsciencia, a princ ipio está caro
, el e da ' 1
'
e mera +,,,n er-
• isico sensiv ligaçã o limit ada
s~as e dobJetos extrínsecos ao indiv íduo que se vai com outra s Pes•
torna ndo .oons•
ciente e si mesmo. Ao mesmo temp ~ ela é perce pção ' ,eia · natll-
reza, que de início f '
tamen te est h
dos h
~e ª igura aos home ns como uma · fôrça cotnP..le•
ra~ a, onipo tente e invul neráv el com a quaí
omens sao puram t · is· e que ' as rehlçoes
· · totalm
en e anima os deixa m ente ate-
CONSCI~NCIA, ESTRUTURA SOCIAL E USO DA FÔRÇA
31
É importante reconhecer que esta teoria não pret d
l i a e ou o poderio das idéias e ideais. M e con-
.d d . en
testar a rea
_ _ d .d . -.-; arx f a1a
de percepça~, nao e i eais. .r. exatamente a cegueira do pensa-
mento consciente do homem que lhe impede tomar conhecimen-
to de suas verdadeiras necessidades humanas e de ideais nêle
arraigados. Só se a falsa percepção é transformada em verdadeira
isto é, só se tomamos conhecimento da realidade, ao invés de de:
turpá-la por meio de racionalizações e feições, podemos também
dar-nos conta de nossas necessidades reais e verdadeiramente hu-
manas.
Também deve ser observado que, para Marx, a própria ciên-
cia e todos os podêres intrínsecos do homem fazem parte das
fôrças produtivas que interagem com as fôrças da natureza. Ainda
no atinente à influência das idéias sôbre a evolução humana, Marx
não se mostrou de forma alguma alheio a seu poder, como a inter-
pretação popular de sua obra dá a entender. Sua argumentação não
era contra idéias, mas contra idéias não arraigadas na realidade hu-
mana e social, que não eram, para recorrer à expressão de He-
gel, "uma possibilidade real". Acima de tudo, êle jamais esque-
ceu que não só as circunstâncias fazem o homem: êste também
faz circunstâncias. A passagem a seguir deve deixar claro quão
errôneo é interpretar Marx como se êle, à semelhança de muitos
filósofos do iluminismo e muitos sociólogos de hoje, atribuísse ao
homem um papel passivo no processo histórico, vendo neste um
objeto passivo das circunstâncias:
"A doutrina materialista [ ao contrário da opinião de Marx]
referente à mudança das circunstâncias e da educação esquec,e
que as circunstâncias são modificadas pel,os homen: e que o pro-
prio educador tem de ser educado. Esta doutrina, por conse-
guinte, tem de dividir a sociedade em duas partes, cada uma das
quais é superior à sociedade [ como um todo]•
"A coincidência da mudança das circunstâncias_ e da ati-
vidade humana ou mudança só pode ser compreendida e racio-
. , . ,, 3
nalmente entendida como prática revo /ucronarra.

. assim, uma percepção exclusiva-


:tnorizados como se f ôssem feras,· é, German Jdeology ,
:mente animal da natureza ( religião natural) .,, _
op. cit., pág. 19.
3
German I deolo .ob. cit., , s. 197-198 (grifo~ meus
32 CONCE ITO MARXISTA DO HOME M

O último conceito, o da "práti ca revolucionária", leva-nos


a um dos mais discutidos conceitos da filosofia de Marx de
fôrça. Ant~s de !11ais nada, deve ser observado quão estr;nOho é
as democrao~s ocidentais sentirem tamanha indignação por causa
de uma teoria segundo a qual a sociedade pode ser transforma-
da _pela c??qu ista, à fôrça, do poder político. A idéia de revo-
luçao pohttc a pela fôrça não é de maneira alguma marxista; ela
tem sido a idéia da sociedade burguesa nos últimos trezentos
~nos~ A democracia ocidental é a filha das grandes revoluções
inglesa, francesa e norte-americana; a revolução russa, de feve-
reiro de 1917, e a alemã de 1918 foram cordialmente saudadas
pelo Ocide nte, a despeito de terem recorrido à fôrça. É claro que a
indign ação contra o uso da fôrça, tal como existe no mund o oci-
denta l de hoje, depende de quem empregue a fôrça, e contra quem.
Tôda guerra baseia-se na fôrça; mesmo o govêrno democrático es-
triba-s e no princí pio da fôrça, que permite à maioria utilizar a fôr-
ça contra uma minoria, se necessário fôr, para assegurar a perma-
nência do status quo. A indignação contra a fôrça só é autêntica
sob um ponto de vista pacifista, para o qual a fôrça é absoluta-
mente errada, ou que seu emprêgo, salvo quando se tratar da
defesa mais imediata, nunca leva a uma mudança para melhor.
Entret anto, não basta mostrar que a idéia marxista de re-
volução como recurso à fôrça ( da qual êle excluiu como possi-
bilida des a Inglat erra e os Estados Unido s) seguia a tradição da
classe média ; deve ser ressaltado que a teoria de Marx consti-
tuiu um considerável aperfeiçoamento em relação ao modo de
ver da classe média, um aperfeiçoamento com raízes em tôda a
teoria de Marx sôbre a História.
Marx viu que a fôrça política não pode _prod~z~r nada p~ra
que não tenha havid o preparação no processo polttt~o e social.
Daí, a fôrça, se necessária, pode dar, por assim dizer, ape_nas
o último empur rão a uma evolução já virtualmente oco,:nd~,
"
mas nunca poder produ zir algo d e rea1mente novo. "A força ,
disse êle, "é a partei ra de tôda sociedade antiga que carrega no

. " afirma
.
Julho de 1893) em que ele terem e"le e Marx "negligenciad
, .o
[ao salientar os' aspectos formais da relação entre a estrutura socio-
-econô mica e a ideolo gia a estudar] a maneira e a forma de apare-
cimento das idéias".
coNSCffil~ClA, ES
TRUTURA SOCIAL
E u so DA FÔRÇA
33
-, tte uma noYa.,, .\
É êsse exatamen
' ~n ;n"\e:ntos de Mar te u m dos grandes
ce rn ~ x, ao tr an scender dis-
d :ti-Se média - ~~ o tr ad ic io na l conceito da
nao ªC:-.editava n~ Po d
,#,..
.,

idéi:l de que a _torç .


er <;nador da fôrça,
a política ~ e n a na
noY:1 ordem soaal. ~ r s1 mesma criar
~or_ ~ sa razao,. ~ !º uma
te no roá..~ o u r? -, p ~ a M
m significado trans1 arx,
::ento permanente na tono, 1amais o pape poderia
transformação da so l de ele-
àedade.

4 O Capital, I, loc.
cit., pá g. 824.
3
.,

CA PIT ULO IV

A ~latureza do H 011ie111

I. O CON CEIT O DE NATUREZA HUif ANA

1\1 ARX não acredi:ava, como o fazem muitos sociólogos e


ps1cólogos contemporaneos, que houvesse ale-o assim como uma
natureza do homem, . que êste ao ·nascer saja como uma fôlha
de papel branco na qual a rultura escreve seu te.'\.io. Bem ao
contrário dêsse relativismo sociológico, Marx partiu da idéia
de que o homem como homem é uma entidade identificável e
verificável, podendo ser definido como homem não apenas bio-
lógica, anatômica e fisiologicamente, mas também psicologica-
mente.
Evidentemente, 1'{arx nunca se mostro tentado a supor que
a ºnatu reza humanau fôsse idêntica àquela e..'.:pressão particular
da natureza humana predominante em sua própria sociedade. Ao
argum entar contra Bentham, disse l\{arx: "Para saber o que
é
útil para um cão, precisa-se estudar a nature2a canina. Essa na-
tureza, em si n1esn1a, não deve ser deduzida do priná pio de utili-
dade. Ao aplicar isso ao hon1em, quem criticar todos os atos,
movimentos, relações etc. humanos, pelo princípio de utilidade,
terá primeiro de lidar com a natureza humana en1 geral, e de-
pois com a natureza hun1ana modificad~ de cada época histó-
rica." 1 Deve ser notado que êste conceito de natureza humana
não é, para Marx - como tampouco o era para Hegel -. ~a
abstração. ~ a 6JS611cia do homem - em contraste com as Yar1,~
formas de sua existência históriat - , e, como falou itarx, a
essência do hon1en1 não é uma abstntçio inerente a cada indi .

l O Cap,'.tal~ 1, pág. 668.


A NATURE ZA DO HOMEM
35
víduo ~e per si_". 2 ~ambé m deve ser afirmado que esta frase de
O Capital escrita pelo "velho Marx" revela a continuidade do
conceito de essência do hom_em (Wesen) sôbre o qual o jovem
Marx escreveu nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Não
mais__ empr:g~:m o tênno "essência" posteriormente, por ser abstrato
e nao-h1stonco, mas claramente manteve a noção dessa essência
em uma versão mais histórica, na diferenciação entre "natureza
hun1ana e1n geral" e "nature za humana modificada" de cada épo-
ca histórica.
Obedecendo a essa distinção entre uma natureza humana
geral e a expressão específica da natureza humana em cada cul-
tura, Marx reconhece, consoante já mencionamos acima, dois ti-
pos de impulsos e apetites humanos: os constantes ou fixos, como
a fome e o desejo sexual, que são parte integrante da natureza
humana e só podem variar na forma e direção assumidas em
diversas culturas, e os relativos, que não fazem parte integrante
da natureza humana, mas "devem sua origem a certas estruturas
sociais e condições de produção e de comunicação". 3 Marx cita
como exemplo as "necessidades de dinheiro", escreveu êle nos Ma-
nuscritos Econômicos e Filosóficos, "é, portanto, a necessidade real
criada pela economia moderna, e a única necessidade por ela
criada. . . Isso é demonstrado subjetivamente em parte pelo ato
da expansão de produção e de necessidade tornar-se uma subser-
viência engenhosa e sempre calculista a apetites desumanos, de-
pravados, antinaturais e imaginários". 4
O potencial do homem, para Marx, é um potencial dado;
o homem é, por assim dizer, a matéria-prima humana que,
como tal, não pode ser modificada, tal como a estrutura do cé-
rebro tem permanecido a mesma desde a aurora da história. Con-
tudo, o homem de fato muda no decurso da história: êle se de-
senvolve se transforma, é o produto da história; assim como êle
faz a história, êle é seu próprio produto. A. História é a his-
tória da auto-realização do ho1nem; ela nada mais i: que a auto-
criação do homem por intermédio de seu pr~prio ~ra~~lho e pro-
dução: rr O conjunto daquilo a que se denomina historia do mun-

2 German Jdeology, op. cit., pág. 198.


3 "Heilige Famile" , MEGA, V, pág. 359. [Traduç ão minha do
alemão - E. F.]
4 Manusc ritos Econômic,os e Filos6ficos, pág. 141. (Doravante
será usada a abrevia tura MEF.)
t 'úN ( ttrt'tl MAll.XlSTA J)O HO~UM

4,, ndu {)ãSs.1 de nl,ttdl, tio Jmmetn pelo trabalho humano e


~tpàre(1.1ucoh_, \.t.\ _ tut un~t il p~u:-,1 o brunem; por conseguinte tl0
t-e1u ,\ Pfl)v~, ~vtJ~ute e ir.rc:fuhh·el de sua (/IJIO<TÚlf M, de ' sua~
própri ~ls or~~n~" . ~

l t. Al'l\ f tl) ADE PRóPRI A DO HO?vfEl\1

_ O ('l')n1..~it(1 ~nü~•x_i~hl do ho.J11t:'ll1 nasce do pensnn1cnto de


Heg~. . Ss~e pr~nl":'fl'~' c,-0111 o disce,rnin1ento de que aparência
e_ es.s~let~l n,to tUlnctdem. A n1issâo do pensador diaJético é "dis~
hngurr o esscnô!tl do processo np~trente da realidade e apreender
suas reL1çõe$ '' . 6 Ou:i por ,outn1s palnv rns, é o problema da re-
lação entr.t' cssênri,1 e ~.x istênci:t N·o processo da existência, a
essên<:Ül. se re~ui2t1 e tlú n1esn10 teinpo, existir significa un1 re-
1

tôrno à ·essência. "O mundo é un1 inundo alienado e falso enquan-


to o hon1ein niio destrói ~un objetividade inerte e se reconhece
e à su~ própritl vidil "por tnis ·· dtl forn1n fixa das coisas e das
leis. Quã.ndo êle) :.tf i tlltl, adquire essa a11toi-011sriência, está no
rumo nÃo só de sua próprüt. Yerdttde, mas tambén1 da do n1undo.
E o reconheciinento é tlCOtnpanhado pela tlÇão. Ele procurará
pôr essa ver~ade ern . a9~0, e jazer do ~1u~do o que é ~s;encial~
,ne1Jl<1; ou seJri., ~ reah2açao da autocon~oenc1a do. l:on1en1. P~a
Hegel: 0 conhecin1ento ni"io é conse~md~ na po~1çao de separaçao
entre sujeito e objeto, n!l qual o obJeto. e entendido como algo se-
arado e oposto a quei11 pensa. A f1m de c~nhecer o mundo,
o h.omen1
P "" · de 1·,,_JJ
· t etn _.,.,..~,· do m1111do o seu própno . . , m1111do. O. ho- ..
. · . , ndia.111-se e.111 constante trans1çao de uma s1m111-
me111 e a!S c01s~1s • ~ . , t
f li d e pa, ~-1
outr" a, · por isso ) '\una coisa é por s1
. mesn1a somen e
rr ) ·,~t--r/) todos os seus detern11nantes e tornou-os
quan do assen tou ( ô(;·1"- - • _ , • d .
l auto-real iznç:10, e está assun, em tô as as con
n101nentos d e su.. · .. s N te processo
dições n1utáveis, setnpre voltando a s1 n1esn~a : " es ê .'
~t . -• nesn10 converte-se em essenoa . Essa ess noa,
pen~trar ei11 ~1 r . .d tidade o-raças à qual a n1udança, na ex-
a unidade do ser. ~i, t en ~ ue "tudo enfrenta suas
pressao - de Heod o , e u1n proces~o en1 q

5 MEF, pág. 139. Oxford University Press,


6 H. Marcuse, R easoll and Re zwlutio,J,
New York, 1941, pág. l-46.
'1 Marcu.se, op. · cit., pág. 113. . and Logic,
42 149 Hegel, Scceuce
8 1'.farcuse, op. cit., pág-s. 1 • ;
vol. I, pág. 404.
A NATUREZA DO HOMEM
37

e . desdobra-s ·· " · ,, . A
e como cons equencia
,. . , s inerentes
contradiçõe . , .
·
essencia e, assun, tanto h1stonca quanto ontológica • A s pot enc1a-
·d d · · .
h a es essenoais das c01_sa: r~alizam-se no mesmo processo glo-
bal que estabelece sua existencia. A essência pode "alcançar" sua
. " • d
ex1stenoa quan o as potencialidades das coisas tiverem amad _
reciclo nas e através das condições da realidade. Hegel descre;e
êste processo como a "transição para a realidade". 9 Ao contrário
do positivismo, para Hegel, os fatos só são fatos se relacionados
com o que ainda não é fato e, no entanto, manifesta-se nos fatos
dados como possibilidade real. Ou, "os fatos são o que são apenas
como momentos em um processo que leva para além dêles até
aquilo que ainda não se concretizou de fato". 10
A culminânc ia de todo o pensamento hegeliano é o conceito
das potencialidades intrínsecas a algo, do processo dialético pelo
qual elas se manifestam, a idéia dêsse processo ser de movimento
ativo de tais potencialidades. Esta ênfase no processo ativo no
interior do homem já fôra assinalada no sistema ético de Spinoza.
Para Spinoza, todos os afetos podian1 dividir-se em afetos passi-
vos (paixões), e por meio dos quais o homem sofre e não tem
uma idéia da realidade, e afetos ativos (ações) (generosidade e
fôrça moral) nos quais o homem é livre e produtivo. Goethe,
que à semelhanç a de Hegel foi influenciado por Spinoza de várias
maneiras, transformo u a idéia da produtividade do homem em
um ponto central de seu pensamento filosófico; ~ara êle, tôdas _as
culturas decadentes caracterizam-se pela tendencia para a subJe-
tividade pura, enquanto todos os_ perí~d?s progres~i~o~ tentam
entender ff mundo como é por intermed10 da subJetlvidade de
cada um mas não separado dêste. 11 :êle dá o exempl~ ~o poet~:
"enquanto êle exprime apenas estas poucas frases subJehva:s, nao
pode ainda ser chamado de po:ta, 1;1as, logo que sa~e ,c~mo se
assenhorear do mttndo e expressa-lo, e um poeta. Entao e inexau-
r ível ' e pode sempre renovar-se, ao passo que sua natureza pura-
. d d. ,, i2
mente subjetiva se esgotou cedo e deixou e ter o que i~er ·
''O h " di·z Goethe , "conhece-se a si mesmod nad medidad em·
ornem , . e"le só conhece o mun o entro e si
que conh ece O mundo ,

9 Marcuse, op. cit., pág. 149.


10 Marcuse, op. cit., pág. 152.
ckermann, 29 de janeiro de
11 Cf. conversa de Goet h e com E
1826. E k 29 de janeiro de 1826.
12 Goethe, em palestra com e ermann, ª
[Tradução e grifos meus - E. F.]
CONCEITO MARXISTA DO HOMEM
38

mo e só toma conhecimento de si mesmo dentro do mundo.


Cada objeto nôvo verdadeiramente identt·t·ica d o d esven d a u:11 nov_o
mes "
órgão dentro de nós mesmos.,, 13 Goethe d~u. a expressao mais
poética e mais vigorosa da idéia . da produtividade humana em
seu Fausto. Nem a posse, nem o pode~, nem ~ s~t~sfação sensual,
ensina Fausto, podem preencher o deseJO de ~igntfi~ado para sua
própria vida que o homem tem; em tudo isso, ele p~rmanece
separado do todo, e por isso infeliz: Só ao ser ~roduavament e
ativo, pode o homem encontrar sentido para sua vida e, embora
assim êle a aproveite, não se agarra a· esta vorazmente. ~le
desistiu da cobiça de ter, e fica satisfeito em ser; sente-se farto
por estar vazio; êle é muito, por ter pouco. 14 Hegel apresentou a
expressão mais metódica e mais profunda da idéia do homem pro-
dutivo, do indivíduo que é êle mesmo, na medida em que não é
passivo-receptivo, mas ativamente relacionado com o mundo; que é
um . indivíduo apenas no processo de apreender o mundo produti-
vamente, e assim tornando o seu mundo. :Ele enunciou a idéia
assaz poeticamente ao dizer que o sujeito, ao desejar levar um
conteúdo à realização, o faz "traduzindo-o da noite da possibi-
lidade para o dia da realidade;,. Para Hegel, o desdobramento
de tôdas as f acu.ldades, capaéidades e potencialidades individuais
só é possível por meio -de ação contínua, nunca pela exclusiva
contemplação ou receptividade. Para Spinoza, Goethe, Hegel,
assim como para Marx, o homem só está vivo na medida em
que é produtivo, na medida em que abarca o mundo exterior no
ato de manifestar seus próprios podêres humanos específicos e
de abarcar o mundo com êstes. Na medida em que o homem
não é produtivo, na medida em que é receptivo e passivo, êle
nada é, está morto. Neste processo produtivo, o homem rea-
liza ~ sua própria :ss_ência, retorna_ à :ua própria essência, 0 que,
em lrnguagem teologtCa, nada mais e que seu retôrno a Deus.
Para Marx, o homem caracteriza-se pelo ((princípio do
movimento" e é significativo êle citar, a propósito, 0 grande
místico Jacob Boehme. 15 O princípio do movimento não de-

13
Citado por K. Lowith, V.on Hegel zu Nietzsche, Vv. Koh-
lhammer Verlag, Stuttgart, 1951, pág. 24. (Tradução minha _ E. F.)
14 Cf
. · a d escnçao
· - mmuc10sa
· · da orientação do caráter produ-
tivo _em E. Fromm, ~an for Himself. (N. do T. - Em português,
Análise do Remem, Rio, Zahar Editôres 5.• edição 1966 )
15 ' ' .
nado" Cf. H. P?,pitz, Der Enthfremdete M onsch ( "O Homem Alie-
)· Verlag for Recht und Gessellschaft, A . G ., Bas1·1-· ' 119 •
eia, pag.
A NATUREZA DO HOMEM
39

v.e ser i?terpretado ?1ecânica~e~te, mas como impulso, vita-


lidade criadora, . energia; a pa1xao humana, para Marx, "é a
faculdade essen~1al,, do homem esforçando-se energicamente por
alcançar seu obJeto .
O conceito de produtividade, em contraste com o de re-
ceptividade, pode ser mais fàcilmente compreendido quando
lemos como Marx o aplicou ao fenômeno do amor. "Supo-
nha~os ~ue o homem seja. homem", escreveu êle, "e que a
relaçao dele com o mundo seJa humana. Então, o amor só pode
se: t~ocado par amor, confiança por confiança etc. Se se de-
seJ a 1nfluenoar uma pessoa, é preciso ser-se uma pessoa real-
mente dotada de efeito estimulador e encorajador nas outras.
Cada uma das relações da gente com o homem e a natureza
tem de ser uma expressão específica correspondente ao objeto
escolhido, escolhido por nossa vida individual real. Se uma pes-
soa ama sem inspirar amor, isto é, se não é capaz, ao manifes-
tar-se uma pessoa amável, de tornar-se amada, então o amor
dela é impotente e un1a desgraça." 16 Marx também exprimiu
n1uito claramente o significado central do amor entre homem
e mulher como a relação imediata dum ser humano com ou-
tro ser humano. Combatendo um comunismo vulgar que pro-
punha a coletivização de tôdas as relações sexuais, Marx es-
creveu: "Na relação com a mulher como prêsa e serva da lu-
xúria comunal, expressa-se a infinita degradação de si próprio
existente no íntimo do homem; pois o segrêdo dessa relação
alcança sua expressão inequívoca, incontestável, franca e paten-
te na relação do homem com a mulher e na forma pela qual
é concebida a relação direta e natural da espécie. A relação
imediata, natural e necessária de ser humano com ser hu-
mano também é a relação do homem com a mulher. Nesta
relação natural da espécie, a relação do homem com a natureza
é diretamente sua relação com o homem, e sua relação com
êste é diretamente sua relação com àquela, com sua própria
função natural. Assim, nesta relação, é revelada sensorialmente,
reduzida a um fato observável, a extensão em que a natureza
humana se converteu para o homem : também a natu:eza se
converteu em natureza humana para ele. Desta relaçao po-
de-se estimar o nível total de evolução do homem. Do cará~er
desta relação decorre até que grau o homem se tornou, e assim

16 MEF, pág. 168.


40 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

se · interpretou, um homem-espécie, um ser humano. A relação


entre homem e mulher é a mais natural relação dum ser hu-
mano com outro. Indica, por conseguinte, até que ponto o
comportamento natural do homem se tornou humano, e até que
ponto sua essência humana se tornou uma essência nat!'rai para
êle. Ela também mostra a medida em que as necessidades do
homem se tornaran1 necessidades humanas, e conseqüentemente
a medida em que a outra pessoa, como pessoa, se tornou uma de
suas necessidades e a medida em que em sua existência indivi-
dual êle é igualmente um ser social.,, 17
É da máxima importância, para a compreensão do concei-
to marxista de atividade, entender sua idéia acêrca da relação
entre sujeito e objeto. Os sentidos do homem, por se tratar de
sentidos animais grosseiros, têm somente um significado restrito.
"Para um homem faminto não existe a forma humana de ali-
mento, mas apenas seu caráter abstrato como alimento. Po-
deria também existir apenas na forma mais rudimentar , e
é impossível dizer de que maneira esta atividade de alimen-
tar-se diferiria da dos animais. O homem necessitado, cheio
de preocupações, não pode admirar nem o mais belo espe-
táculo." 18 Os sentidos que o homem possui, por assim dizer,
naturalmente, precisam ser formados pelos objetos exteriores.
Qualquer objeto só pode ser a confirmação de uma de minhas
próprias faculdades. "Porque não são somente os cinco senti-
dos, mas também os chamados sentidos espirituais, os sen-
tidos práticos ( desejo, amor etc.), em suma, a sensibilidade e
o caráter humanos dos sentidos que podem c.oncretizar-se por
meio da existência do respectivo objeto, por meio da natureza
humanizada." 19 Os objetos, para Marx, "confirmam e reali-
zam sua individualidade [ do homem]. . . A maneira por que
êsses objetos se tornam dêle mesmo depende da natureza do
objeto e da natureza da faculdade correspond ente. . . O caráter
distintivo de cada faculdade é exatamente sua essência caracterís-
tica e, por isso também, a forma característica de sua objetivação,
de sua existência viva, objetivamente real. Portanto, não é ape-
nas em pensamento, mas através de todos os sentidos, que o
homem se afirma no mundo objetivo.,, 20

17 - MEF, págs. 126-127.


18 MEF, pág. 134.
19 MEF, pág. 134.
2
º MEF, pág. 133.
A NATUREZA DO HOMEM
41
Ao relacionar-se com o mundo objetivo, por intermédio de
suas faculda?es,, o ~~ndo ,,exterior torna-se real para O homem,
e de fato e so _o amor que faz o homem verdadeiramente
crer na realidade do mundo objetivo a êle extrínseco. 21 Sujeito
e objeto não podem ser separados. "O ôlho transformou-se em
ôlho human~ qua?do seu objeto se converteu em um objeto
humano, sooal, criado pelo homem e a êste destinado. . . .Eles
[os sentidos] se relacionam com a coisa devido a esta, mas a
coisa em si mesma é uma relação humana objetiva para si pró-
pria e para o homem, e vice-versa. A necessidade e o gôzo per-
deram, assim, seu caráter egoísta, e a natureza perdeu sua mera
utilidade pelo fato de sua utilização ter-se transformado em uti-
lização humana. ( Com efeito, só posso relacionar-me de ma-
neira humana com uma coisa quando esta se relaciona de maneira
humana com o homem.)" 22
Para Marx, O comunismo é a abolição positiva da pro-
rr
priedade privada, 23
da a11to-alienação h,,mana, e assim a ver-
dadeíra apropriação da natureza humana por meio do e para o
homem. .Ele é, •por conseguinte, o retôrno do próprio homem
como um ser social, isto é, realmente humano, um retôrno com-
pleto e consciente que assimila tôda a riqueza da evoluçã? an:
terior. O comunismo como naturalismo plenamente ·evolu1do e
humanismo, e como humanismo plenamente evoluído é natu-

21 MEGA, vol. III, pág. 191.


22 MEF pág. 132. Esta última afirmação é qu~se exatamente
a mesma feÚa no pensamento do budismo Zen, assim como por
Goethe. De fato o pensamento de Goethe, Hegel e Marx, se ~dc~a
intimamente ligado' ao · do Zen. O que h'a d e comum ne"les_ e a , 1 eia
de o homem superar a c1sao · - entre suJeI · "to e o bJ. eto ,· o obJeto de um
objeto mas no entanto cessa de ser objeto, e nesta n~va abor. agem
o ho~em se funde com o objeto, conquanto êle e o obJeto contmue;i
à ser dois. O homem, ao relacionar-se humanamente com O mun °
objetivo, supera a alienação de si mesmo. .
. . d ,, nf , empregada aqui
23 Por "propnedade priva a , co orme e . d · d e em de
. - f
outras af1rmaçoes, Marx nunca se re ere ª propneda ' e pnva a
füe tem em vista a
bens de uso ( como uma casa, uma mesa etc.~· ·t 1·stas que
· d ade das "classes propnetanas
· ' · " , 1·sto e ' dos cap1 a 1 ,
propr1e indivíduo,
, . d d -
por possu1rem os me10s e pro uçao, P odem contratar
"l emo condições
desprovido de propriedade para trabalhar para .edesd, i·,,ada" no
" , .
que este ultimo se ve,., obrigado
. ·
a aceitar. "Propne a e pr
· d de privada ,
emprego
" de Marx, portanto, sempre se refere . a proprie ª
categoria •
·social
na sociedade de classe capitalista, sendo, pms, uma exemplo em
e histórica; o nome não diz respeito a bens de uso, por '
uma sociedade socialista.
42 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

ralismo. Ble é a solução definitiva do antagonismo entre o


homem e a natureza, e entre o homem e seu semelhante. .Ele
é a verdadeira solução do conflito entre existência e necessidade,
entre indivíduo e auto-afirmação, entre liberdade e necessidade,
entre indivíduo e espécie. .Ele é a solução do enigma da His-
tória e disso êle mesmo tem conhecimento." 24 Esta relação
ativa com o mundo objetivo é denominada por Marx "vida pro-
dutiva" . ~ vida criando vida. No tipo de atividade da vida
reside todo o caráter da espécie, seu caráter como espécie; e a
atividade livre e consciente é o caráter da espécie dos sêres hu-
manos. 25 O que Marx tem em mente como "caráter da es-
pécie" é a essência do homem; é o que é universalmente hu-
mano e que é realizado no decurso da História pelo homem
graças à sua atividade produtiva.
Partindo dêsse conceito de auto-realização humana, Marx che-
ga a um nôvo conceito de riqueza e pobreza, diverso do en-
contrado em Economia Política. "Ver-se-á disso", diz Marx, "como,
em lugar da riqueza e pobreza da Economia Política, temos
o homem rico e a plenitude da necessidade humana. O homem
rico é, ao mesmo tempo, o que precisa de um complexo de ma-
nifestações humanas da vida e cuja própria auto-realização exis-
te como uma exigência interior, uma necessidade. Não só a ri-
queza, mas igualmente a pobreza do homem adquirem, em uma
perspectiva socialista, um significado h11mano e, por isso, social.
A pobreza é o vínculo passivo que leva o homem a vivenciar
uma necessidade de riqueza máxima, a outra pessoa. O desvio
da entidade objetiva dentro de mim, a ruptura sensorial de mi-
nha atividade vital, é a paixão que aqui se converte em atividade
de meu ser." 26 A mesma idéia fôra expressa anos antes por
Marx: "A existência do que verdadeiramente amo [ aqui êle se
refere especificamente à liberdade da imprensa J é por mim sen-
tida como uma exigência, como uma necessidade, sem a qual
minha essência não pode ficar realizada, satisfeita, completa." 27

24 MEF, pág. 127.


25 MEF, pág. 101.
26 MEF, págs. 137-138. tste conceito dialético do homem rico
como sendo o nobre necessitando dos outros é, em muitos aspectos,
análogo ao conceito de pobreza exposto por Meister Eckhart, em
seu sermão "Bem-Aventurados Sejam os Pobres". (Meister Eckhart,
trad. por R. B. Blakney, New York, Harper, 1941.)
27 MEGA, I, la, pág. 184.
A NATUREZA DO HOMEM 43

és
"Assim como a sociedade encontra, em seu início atrav
eza
da evol~ção da pr.opriedade pri~ada com sua riqueza e' pobr
s a
(tanto mtelect~ial quanto material), os materiais necessário
mente
êsse desenvolv11nento cultural, também a sociedade plena
ser
constituída produz o homem em tôda a plenitude de seu
0 homem rico dotado de
todos os sentidos, como uma realidad~
duradoura. ~ só em um contexto social que subjetivismo e
vida-
objetivismo, espiritualismo e materialismo, atividade e passi
como
de deixam de ser antinômicos e, assim, deixam de existir
nte
tais antinomias. A resolução das contradições teóricas some
prá-
é possível graças a meios práticos, somente graças à energia
ente,
tica do homem. Sua resolução, portanto, não é, absolutam
ue
apenas um problema de conhecimento, mas um problema porq
o via como um problema exclusivamente teórico." 28
Correspondente a seu conceito do homem rico é a opinião
ser.
de Marx sôbre a diferença entre o sentimento de ter e o de
idos
"A propriedade privada", afirma êle, "tornou-nos tão estúp
do
e parciais que um objeto só é nosso quando o temos, quan
do,
êle existe para nós como ·capital ou quando é diretamente comi
uer
bebido, vestido, habitado etc., em suma, utilizado de qualq
maneira. Apesar de a propriedade privada em si mesma só
vida
conceber essas várias formas de posse como meios de vida, a
de
para a qual êles servem como meios é a vida da proprieda
os
privada - o trabalho e a criação de capital. Assim, todos
alie-
sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pela simples
no
nação de todos êsses sentidos: o sentido de ter. O ser huma
ficar
tinha de ser reduzido a essa pobreza absoluta a 29fim de
apto a deixar nascer tôda a sua riqueza interior."
Marx reconheceu que a ciência da economia capitalista, mal-
ver-
grado sua aparência mundana e hedonista, "é uma ciência
Sua
dadeiramente moral, a mais moralizada de tôdas as ciências.
nas.
tese principal é a renúncia à vida e às necessidades huma
ou a
Quanto menos se comer, beber, comprar livros, f ôr ao teatro
ar,
bailes, ou à cervejaria, e quanto menos se pensar, amar, teoriz
tan-
cantar, pintar, esgrimir etc., tanto mais se poderá poupar e
-
to maior se tornará o tesouro imune às traças e à ferrugem
0 :ªPital. Quanto menos se fôr menos se expressará a vida,
do
mais se terá, maior será a vida alienada e maior a poupança
diz
ser alienado. Tudo que o economista retira da gente no que

28
MEF, págs. 134-135.
29
MEF, pág. 132.
44 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

respeito a vida e humanidade, êle restitui sob a forma de di-


nhefro e riqueza. E tudo que se é incapaz de fazer, o dinheiro
pode fazer pela gente: pode comer, beber, ir a um baile e ao
teatro. Pode comprar arte, saber, tesouros históricos, poder pc-
lítico, e pode viajar. Ele pode apoderar-se de tôdas essas coisas
para a gente, pode comprar tudo: é a verdadeira opulência. Mas
conquanto êle possa fazer tudo isso, só deseja criar-se a si mesmo
e comprar a si mesmo, pois tudo mais se lhe submete. Quan?o
se possui o senhor, também se possui o servo, e não se precisa
do servo do senhor. Assim, tôdas as paixões e atividades são for-
çosamente submersas na avareza. O trabalhador deve ter apenas
o que lhe é necessário para querer viver, e deve querer viver ape-
nas para poder ter isso". 30
A meta da sociedade, para Marx, não é a produção de coi-
sas úteis como meta em si mesma. Esquece-se fàcilmente, diz
êle, "que a produção de coisas úteis em demasia redunda em
pessoas inúteis em demasia" .31 As contradições entre prodiga-
lidade e parcimônia, luxo e · abstinência, riqueza e pobreza são
meramente parentes porquanto na verdade tôdas essas antinomias
se equivalem. É particularmente importante entender esta po-
sição de Marx hoje em dia, quando tanto os comunistas como
a maioria dos partidos socialistas, com algumas exceções notá-
veis como o indiano, o birmanês e certos socialistas europeus e
norte-americanos, aceitaram o princípio subjacente a todos os sis-
temas capitalistas, segundo o qual o máximo de produção e de
consumo são os objetivos inquestionáveis da sociedade. Não se
deve, evidentemente, confundir o objetivo de sobrepujar a po-
breza insondável, que interfere numa vida digna, com o de um
consumo cada vez maior, que se converteu em valor supremo
tanto para o capitalismo quanto para o kruschevismo. A posição
de Marx era assaz nitidamente em prol da vitória contra a po-
breza, mas igualmente infensa à adoção do consumo como fina-
lidade absoluta.
Independência e libetdade, para Marx, baseiam-se no ato
de autocriação. "Um ser não se considera independente a me-
nos que seja seu próprio senhor, e êle só o é quando deve sua
existência a si próprio. Um homem que vive graças ao favor
de outrem considera-se um ser dependente. Mas eu vivo com-

30 MEF, págs. 144-145.


31 MEF, pág. 145.
A NATUREZA DO HOMEM 45

tetamente por graça de outra pessoa quando devo a esta não


;penas a continuaçao de minha vida, como também sua criação,·
quando ela é minha fonte. Minha vida forçosamente tem uma
causa assim externa quando não é de minha própria criação." 32
Ou, conforme Marx o diz, o homem só é independente " . . . se
afirma sua individualidad e como homem total em cada uma de
suas relações com o mundo, vendo, ouvindo, sorrindo, provando,
sentindo, pensando, querendo, amando - em resumo se afirma
e exprime todos os órgãos de sua individualidad e", se não é
apenas livre de, mas também livre para.
Para 1-farx, a meta do socialismo era a emancipação do ho-
mem, e esta era a mesma coisa que a auto-realização dêle no
decurso de seu relacionamento e identificação com o homem e
com a natureza. A meta do socialismo era o desenvolvimento
da personalidade individual. O que Marx pensaria de um sis-
tema como o comunismo soviético manifestou muito claramente
em uma exposição daquilo a que chamava de "comunismo vul-
gar", com o que se referia a certas idéias e práticas comunistas
da época. Esse "comunismo vulgar" aparece sob dupla forma;
a dominação da propriedade material agiganta-se tanto que visa
a destruir tudo que é incapaz de ser possuído por todos como
propriedade privada. :me deseja eliminar o talento etc. pela
fôrça. A posse física imediata parece ser o objetivo da vida
e da existência. O papel do trabalhador não é abolido, mas es-
tendido a todos os homens. A relação da propriedade privada
permanece sendo a relação da comunidade com o mundo das
coisas. Finalmente, essa tendência para contrapor a proprieda-
de privada em geral à propriedade privada expressa-se sob uma
forma animal: o casamento ( que é incontestàvelmente uma forma
de p1·opriedade privada exclusiva) é contrastado com a comuni-
dade das mulheres, 33 em que as mulheres se tornam propriedade
da comunidade. Pode-se dizer que esta idéia de comunidade
~ mulheres é o segrêdo de Polichinelo dêsse comunismo gros-
seiro e irrefletido. Assim como as mulheres devem passar do
matrimônio à prostituição universal, igualmente o mundo intei-
~o da riqueza ( isto é, o ser objetivo do homem) deve passar
ª relação de prostituição universal com a comunidade. .Esse co-

32
MEF, pág. 138.
33
àor M~ refere-se, neste ponto, a especulações de certos pensa-
es cornumst ... · · ·
tud o era as. dexcentncos de seu tempo, que unagmavam . que se
propne ade comum também as mulheres o devenam ser.
r..6Nf .f(J1'0 MAR.X f.n 'J. 00 HOMJZM

1111mi ,1m,,, 'Jllc 11C;W1, a, /itr,ronalídadc do horru,-rfl cr_n t:o<lm ~ ~


lpr<.:H, 6 unicamtnl.t a é"1.prtfit>W Jógica da propn
~ pnvada.
(.Jut ó t 1ma negai;[<,. A invr:ja uni vtrMJJ, eá abdu ~w- re CJ.JffVJ
p<1ll:ncía
1
(:, rtptnru, uma forma camuflvJa de rupi.dL"Z, qU(; Sé
rtin•ilnla. t: Mtt.infa%,11c rlc mand ra dífcre;ntl:. 0 1 ptfls~
prc>pritc.htd t privada de: f.od o ·ín.dívídu.o w, ptfo meno r, voltadm
da.
~:onl ~a ,,wd<-jÚCr prüpríc:,ladl: . prí vad~. rnaí:; ~íca, wb a f orm3._ de
invt Jí.i t dt dtnCJ<J de: rtd uz1r tudo a urfl ruvd
cornum; _por_ 15W,
(;l'lfla inve: ja e brnt nívtlamt:nto de fuga con,~títuem a c-ssl.-
ooa eh
cc)mptliçfto. O romuní~mo vulgar (; sbmc ntc a cuJmíoa.ç.ão
dc-ssa
invtJ [L e: nívdamcnto na bru!c; de um mínimo preconcthído. Quão
púllCO rt ti rc:Htnlít tfltia ahol íçao da pr<jpríc::<la<lc privada coroo a.pro-
pria.ção 1,tnuína (.; d<:mrmr.trado pela nc:g;.i.ção alY;trata d.é todo o
mund,, d,l cultura. t da cívíliza,;ã.o, e pc:la rtgrtssão à símplí -
cídaLk tmtint1t11ral do indivíduo pob:r.c: e qut: ' nada quer, que
não f!i(, ulLra·pasfl<,u a pmprítdadc privada como ainda oc-m s«jUé l'
a alingi11. A comunidade só é uma comunidade; de trabalho e
dt ig11ald11dc de saláríoJ pagos pdo capital cornuoitário, pela
com11nídad(I CrJmo capitalista uni vc:rsal. Os doi_r, aspectos da. re-
h1çfio são elevadoa a uma supoJla universalidade:: 0 traba/,ho como
sitwiç[o cm <-JUC todos são colocados, e o capital como a uníver-
Mdidade e: o pode;r admitidos da comunidade. 24
Tôda a concepção dt Marx a respeito d.a auto-.rc.-alízação
do homem r,{; pode ser plc:namc-ntc compreendida em ligação
com sua conccpr,ãó do trabalho. Antts de mais nula, deve sc-r
notado c1ue trabalho e capital não eram, pára Marx, meras ca-
tcg<1rias tco.n~micas; eram ~atcgoría.~ antro ~lóg ícas, impregna-
das de um JUlí'.O de: valor oriundo de sua pos1.ção humanista. O
capjtal, aqui lo ,1uc {; acumulado, repre senta o passado; o tra-
balh~, por ,?11tro l~o, é, ou dc:v13:, ser_ quando livre, a expressão
da v!da. .. Na Sóc1cdadc bur ~sa , diz Marx no Man if e1to Co-
m11111.rta, . . . o passado domina o prcse:nte. Na sociedade co-
munis~a, o 1~rci,cntc domina o passado. Na sociedade burguesa,
o capital ~ indc:ptnde:-ntc e possui individual.idade, ao passo que
a pessoa viva {; depcndc:ntc: e não possui individualidade." Uma
v~z mais, Marx acompanha o pe:nsamento de Hegel, que enten-
dia o trabalho como "o ato de autocriação do homem". o
~r~b_a Jho, para M.a.rx? /: uma atí vidade:, não uma mercadoria. Marx
m1c1almcnlc: dcnomrnou a função do homem de "au•"' t' 'd _
.1 "
uc e nao - d bl ura JVI a
e.: tra a ho, e: falou na ··abolição do trabalho" como

~4 MEF, pltg1. 121- 126.


A NATUREZA DO HOMEM
47
objelivo do sociali smo. Ulteriormente, quando estabelece
u a di-
fe rc:nça entre trabalho livre e alineado, empregou
a expressão
"emancip ação do trabalho".
"O trabalho é, em primeiro lugar, um processo de que
par-
t icipa.m i!,rualmente o homem e a natureza
, e no qual o homem
es ponl ânc:a mcntc inicia, regula e controla as relações
materiais
entre si próprio e a natureza. Ele se opõe à natureza
como uma
Jc: suas próprias fôrças, pondo em movimento braços e pern
as, as
f6 rças naturais de seu corpo, a fim de apropriar-se das
produções
<la natur eza de forma ajustada a suas próprias necessida
de. Pois,
;ltu ando assim sôbre o mundo exteri.or e modificando-
o, ao mes-
mo tempo tle modifica sua própria natureza. Ele dese
nvolve seus
podfaes inativos e compele-os a agir em obediência à sua
própria
autorid ade. Não estamos lidando agora com aquelas form
as pri-
mitiv as de trabalho que nos recordam apenas o mero
animal.
Um intervalo de tempo imensurável separa o estado de
coisas em
(jUt um homem leva a fôrça de seu traba
lho à venda no mercado,
como uma mercadoria, daquele em que o trabalho hum
ano ain-
da se encontrava em sua etapa instintiva inicial. Pressupomos
o trabalho em uma f arma que o caracteriza como exclu
sivamente
hum ano. Uma aranha leva a cabo operações que lemb
ram as
de um tecelão, e uma abelha deixa envergonhados muit
os arqui-
lc.:los na construção de suas colmeias. Mas o que disti
ngue o
pior arquiteto da melhor das abelhas é que o arquiteto
ergue a
construção em sua mente antes de a erguer na 1ealidade
. Na
txtrcmidade de todo processo de trabalho, chegamos a
um resul-
tado já existente antes na imaginação do trabalhador
ao co-
meçá-lo. :ele não apenas efetua uma mudança de form
a no ma-
terial com que trabalha, mas também concretiza uma
finali-
dade dêle próprio que fixa a lei de seu modus oper
andi, e à
gual tem de subordinar sua própria vontade. E
essa subordi-
nação não é um ato simplesmente momentâneo. Além
do es-
f ?rço de seus orgãos corporais, o processo exige
que, durante
toda a operação, a vontade do trabalhador permaneça
em con-
scnância com sua finalidade. Isso significa cuidadosa
atenção.
Quanto menos t lc se sentir atraído pela natureza de
seu tra-
balho e pela maneira por que é executado, e, por cons
eguinte,
qu anto menos gostar disso como algo em que emp
rega suas
capac idades fí sicas e mentais, tanto maior atenção é obrig
prestar." as ado a

35
0c apita
·z, I, · págs. 197-198.
op. ctt.,
48 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

O trabalho é a expressão própria do homem, uma expre~-


são de suas faculdades físicas e mentais. Nesse processo de ati-
vidade genuína, o homem desenvolve-se a si mesmo,. torna-se
êle próprio; o trabalho não é só um meio para _um .f 1n:1 . - . o
produto - mas um fim em si mesmo, a expressao s1gn1f1cativa
da energia humana; por isso, pode-se gostar do trabalho.
A crítica central feita por Marx ao capitalismo não é a in-
justiça na distribuição da riqueza; é a perversão d? trabalho,
convertendo-o em trabalho forçado, alienado, sem sentido - por
conseguinte, a transformação do homem em uma "monstruosi-
dade aleijada". O conceito marxista do trabalho como expressão
da individualidade do homem é expresso sucintamente em sua
visão da abolição completa da sujeição do homem a vida inteira
a uma única ocupação. Visto que a meta do desenvolvimento
humano é a do desenvolvimento do homem total e universal,
o homem tem de ser emancipado da influência mutiladora da
especialização. Em tôdas as socíedades anteriores, escreve Marx,
o homem foi "um caçador, um pescador, um pastor, ou um
crítico maldizente, e tinha de assim permanecer caso não quisesse
perder o seu ganha-pão; já na sociedade comunista, onde nin-
guém tem uma esfera exclusiva de atividade, mas cada um pode
tornar-se consumado em qualquer campo que desejar, a socie-
dade regula a produção geral e torna possível, assim, a gente
fazer hoje uma coisa e amanhã outra, caçar de manhã, pescar à
tarde, criar gado de noite, criticar após o jantar, tal como se
deseje, sem jamais se tornar caçador, pescador, pastor ou crí-
tico". 36
Não há maior êrro de interpretação ou de representação das
idéias de Marx do que o encontrado, implícita ou explicitamente,
no pensamento dos comunistas soviéticos, dos socialistas refor-
mistas e dos capitalistas adversos ao socialismo, todos os quais
admitem que Marx só desejava o aperfeiçoamento econômico da
classe operária e queria abolir a propriedade privada de modo
que o operário pudesse ter o que o capitalista tem agora. A
verdade é que, para Marx, a situação de um operário de uma
fábrica "socialista" russa, uma fábrica de propriedade do Estado
na Grã-Bretanha ou uma fábrica norte-americana como a Gene-
ral ~otors . se afiguraria essencialmente igual. É o que Marx
exprime mwto claramente na seguinte passagem:

36 German Ideology, op. cit., pág. 22.


A NATUR EZA DO HOMEM 49

"Um at1mento _de salários impôst o ( sem considerar outras


dificuldades, e especia lmente a de que uma tal :1nomalia só po-
de ser mantid a pela fôrça) nada mais seria que uma remunera-
ção melhor de escravos, e _nã~ !estaur aria, seja para o trabalhador,
seja para o trabalh o, seu s1gmf1Cado e seu valor humanos.
"Ainda a igualdade de rendimentos reclamada por Prou-
dhon só mudar ia a relação do operár io de hoje com seu traba-
lho para uma relação de todos os homen s com o trabalho. A
7
sociedade seria consid erada, então, um capitalista abstrato." a
O tema central de Marx é a transformação do trabalho
alienado e despro vido de signifi cado em trabalh o produt ivo e
livre, e não a melho r paga do trabalh o alienado por um ca-
pitalismo privad o ou por um capitalismo de Estado uabstrato".

37 MEF, pág. 107.


4
CAPIT ULO V

Alienação

Ü CONCEITO do homem ativo e produtivo, que compreende


e controla o mundo objetivo com suas próprias faculdades, não
pode ser plenamente entendido sem o conceito de negação da
produtividade: a alienação. Para Marx, a história do gênero
humano é uma história do crescente desenvolvimento do homem
e, concomitantemente, da crescente alienação. Seu conceito do
socialismo é a emancipação da _alienação, a volta do homem para
si mesmo, a sua realização de si próprio.
A alienação ( ou "alheamento") significa, para Marx, que
o homem não se vivencia como agente ativo de seu contrôle sô-
bre o mundo, mas que o mundo ( a natureza, os outros, e êle
mesmo) permanece alheio ou estranho a êle. lHes ficam acima
e contra êle como objetos, malgrado possam ser objetos por êle
mesmo criados. Alienar-se é, em última análise, vivenciar o
mundo e a si mesmo passivamente, receptivamente, como o su-
jeito separado do objeto.
Todo êsse conceito de alienação foi pela primeira vez ex-
presso, no pensamento ocidental, através do conceito de ido-
latria do Antigo Testamento. 1 A essência do que era cha-
mado de "idolatria" pelos antigos profetas não está em o homem

1 A conexão entre alienação e idolatria foi também salien-


tada por Paul Tillich em Der Mensch im Christentu m und im Mar-
xismus, Düsseldorf, 1953, pág. 14. Tillich indica igualmente, em
outra conferência, "Protestan tische Vision", que o conceito de alie-
nação pode também ser encontrad o, no fundo, no pensamento de
[Santo] Agostinho. Lõwith também mostrou que o que Marx combate
não são os deuses, porém os ídolos [cf. Von Hegel zu Nietzsche, op.
cit., pág. 278].
ALI ENA ÇÃO 51

único. Está em os ídolos


adorar muitos deuses em vez de um
em - êles são coisas, e
serem a obra das mãos do próprio hom
elas e as reverencia; adora
no entanto o homem curva-se ante
ê-lo, êle se transforma em
aquilo que êle mesmo criou. Ao faz
ção os atributos de sua vida,
coisa. Transfere às coisas de sua cria
soa criadora, só entra em
ei em vez de experienciar-se com a pes Ele se
adoração do ídolo.
contato consigo mesmo através da
a, à riqueza de suas pró-
alheou às fôrças de sua própria vid
contato consigo mesmo de
prias potencialidades, e só entra em nos ídolos. 2
e sub me tendo-se à vid a con gel ada
maneira indireta,
o expressos no Anti-
O torpor e a vacuidade do ídolo estã
vêem, ouvidos êles têm e
go Testamento: "Olhos êles têm e não
em transfere seus próprios
não ouvem" etc. * Quanto mais o hom
pobre êle fica e tanto mais
podêres para os ídolos, tanto mais
lhe permitem reaver pe-
dependente dos ídolos, pois êstes só
dêle. Os ídolo·s podem
quena parte do que era originalmente
eja, uma pessoa, posses. A
ser imagens de deuses, o Estado, a Igr
olutamente encontrada ape-
idolatria muda de objetos; não é abs
sentido pretensamente re-
nas nas formas em que o ídolo tem
ão de algo em que o ho-
ligioso. A idolatria é sempre a adoraç
criadoras e a que agora se
mem colocou suas próprias fôrças
si próprio em seu ato cria-
submete, em vez de experienciar-se a
alienação, a mais freqüente
dor. Dentre as inúmeras formas de
um sentimento por palavras,
ocorre na linguagem. Se exprimo
palavras visam a indicar a
digamos, se eu falo "Eu te amo", as A
o pod er de meu amor.
realidade existente em meu íntimo,
do fato amor, mas assim
palavra "amor" é tomada como símbolo
é pro nun cia da ela ten de a ass um ir vida pró pri a tornando-se
que
pronunciar a palavra equi-
uma realidade. Fico na ilusão de que
digo a palavra sem nada
vale a ter a experiência, e em breve
expresso pela palavra. A
sentir, exceto o pensamento de amor

, a psicologia do fan átic o.


2
Esta é, inc ide nta lme nte , tam bém de
; 1e estf . ôco~ mo rto, dep rim ido ,
mas, par a com pen sar seu esta do
escolhe um ídolo, seja o Est ado ,
epressa~ e msensibilidade inte rior , Con ver te êsse ído lo no
u:: partido, um a idé ia, a igre ja, ou
Deus.
tota l. Ao fazê-lo, a vid a dêle
f soluto, e submete-se-lhe de ma nei ra
usia sma com a sub mis são ao ído lo
ogr ~ _obter um sen tido , e êle se ent -
nto , não bro ta da aleg ria do rela
e~co ido. Seu entusias,mo, ent reta. . f .
rzo,
p d t' mte nso , mas no ent ant, o " "l
d nto ro u 1vo; e . um ent usia smof I
. ame
cion
u i cam ent e, e
. b)..l ge o
oriu n o do . nor , ou, par a a ar sim
t orp or mte
ca d ,, ntry .)
Lewis, Elm er Ga
n ente • (N. do T. - Cf. Sin cla ir
* N. do T. - Salmos, XXXV.
52 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

alienação da linguagem demonstra tôda_ a c~mplexidade . da


alienação. A linguagem é uma das mais prec10sa_s con_qwstas
humanas; evitar a alienação deixando de fal~ sena tolice -
contudo, é mister ter sempre em conta o pengo da palavra f ~-
lada tender a substituir a experiência vivida. . ?. mesmo apli-
ca-se a tôdas as outras realizações do homem: 1de1as, _!lrte, _qu:I-
quer espécie de objetos criados pelo homem. Elas sao criaçoes
do homem, ajudas valiosas para a vida; no entanto, ~da ~a
é também uma armadilha, uma tentação para confundir a . v1da
com coisas, experiência com artefatos, sentimento co~ capitula-
ção e submissão.
Os pensadores dos séculos XVIII e XIX cntICaram sua
época por ser cada vez mais rígida, vazia e insensível. No pen-
samento de Goethe, uma pedra angular foi o mesmo con-
ceito de produtividade que ocupa posição central em Spinoza
assim cotno em Hegel e Marx. "O divino", diz êle, "é eficaz
no que está vivo, mas não no que está morto. :e eficaz no
vir-a-ser, no que está evoluindo, mas não no que está acabado
e rígido. Por isso é que a razão, em sua tendência para o divino,
só lida com o que se acha em evolução, e está vivo, enquanto o
intelecto lida com o que está acabado e rígido, a fim de uti-
lizá-lo." 3
Encontramos críticas análogas em Schiller e Fichte, e de-
pois em Hegel e Marx, que faz uma crítica generalizada de que
em seu tempo "a verdade é sem paixão, e a paixão é sem ver-
.. 4
dade .
Essencialmente, tôda a filosofia existencialista, desde Kier-
kegaard, é, no dizer de Paul Tillich, "um movimento de mais
de cem anos de rebeldia contra a desumanização do homem
n~. s~ciedade ind~stri~l". Deve~as, o conceito àe alienação é,
em lmguagem nao-te1sta, o equivalente do que em linguagem
teísta seria denominado "pecado": a renúncia do homem a si
mesmo, o abandono do Deus que existe dentro do homem.
O pensador que cunhou o conceito de alienação foi Hegel.
~ara êle, . a história do homem era, ao mesmo tempo, a histó-
~1a ~a,. al1_enaçao do home~.. ( Entf remdung) . "Aquilo por que a
mte11gencia de fato anseia , escreveu êle em Filosofia da His-

3
Co~versações d: ~ckenna nn com Goethe, 18 de fevereiro de
1829, publicadas em Le1pz1g, 1894, pág. 47. [Minha tradução _ E. F.]
4
18 Brumário de Luís Bonaparte.
ALIENAÇÃO
53
tóri~, "é .ª _percepção de _si _pró~r~a; mas, ao fazê-lo, ela oculta
aque!e obJetlvo ~e s~a propria v1s~o e fica orgulhosa e bem sa-
tisfe1ta nesta ahenaçao de sua propria essência." 5 Para Marx
tal como para Hegel, o conceito de alienação baseia-se na distin~
ção entre existência e essência, no fato de a existência do homem
ficar alh~ada de sua essência, de na realidade êle não ser O que
é pot~ncialmente, ou, por outras ralavras, de êle não ser o que
A

deveria ser, e de ele dever ser aquilo que poderia ser.


Para Marx, o processo de alienação manifesta-se no trabalho
e na divisão ~o trabalho. O trabalho é, para êle, o relaciona-
mento ativo do homem com a natureza, a criação de um mun-
do nôvo, incluindo a criação do próprio homem. ( A atividade
intelectual, está claro, para Marx, sempre é trabalho, como . a
atividade manual ou a artística). Com a expansão da proprie-
dade privada e da divisão do trabalho, todavia, o trabalho perde
sua característica de expressão do poder do homem; o trabalho
e seus produtos assumem uma existência à parte do homem, de
sua vontade e de seu planejamento. "O objeto produzido pelo
trabalho, seu produto, agora se opõe a êle como um ser estranho,
como uma fôrça independente do produtor. O produto do tra-
balho é trabalho humano incorporado em um objeto e transfor-
mado em coisa material; êsse produto é uma objetificação do
trabalho humano." 6 O trabalho humano é alienado porque tra-
balhar deixou de fazer parte da natureza do trabalhador e,
"conseqüentemente, êle não se realiza em seu trabalho mas nega-se
a si mesmo, tem uma impressão de sofrimento em vez de bem-
-estar, não desenvolve livremente suas energias mentais e físicas
mas fica fisicamente exaurido e mentalmente aviltado. O tra-
balhador, portanto, só se sente à vontade quando de folga, ao
passo que no trabalho se sente constrangido." 7 Assim, no ato
de produzir, a relação do trabalhador com sua própria atividade
é vivenciada "como algo alheio e não pertencente a êle, a atividade
como sofrimento (passividade), o vigor como impotência, a cri_a-
ção como emasculação". s Enquanto o homem se torna, pois,
alienado de · si mesmo, o produto de seu trabalho torna-se "um
objeto estranho que o domina. Esta relação é ao mesmo tempo a

5
• The Philosophy 0 / History, tradução de J. Sibree, The Colo-
nial Press, New York, 1899.
6
MEF, pág. 95.
7
MEF, pág. 98.
8
MEF, pág. 99.
54 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

relação com o mundo sensorial externo, com objetos natu-


rais, como um mundo estranho e hostil" . 9 Marx ressalta dois
pontos: 1) no processo do trabalho, e especialmente do trabalho
nas condições do capitalismo, o homem se afasta de suas pró-
prias faculdades criadoras, e 2) os objetos de seu próprio tra-
balho tornam-se sêres estranhos, e eventualmente o dominam,
tornando-se fôrças independentes do produt o. "O trabalhador
existe para o processo da produção, e não êste para aquêle." 10
~ bastante difund ida uma incompreensão de Marx neste as-
sunto, mesmo entre socialistas. Crê-se ter Marx falado primor-
dialmente da exploração econômica do trabalhador, e do fato de
sua participação no produto não ser tão grande quanto deveria,
ou que o produto deveria pertencer a êle em vez de ao capitalista.
No entanto, consoante já mostrei anteriormente, o Estado como
capitalista, tal como existe na União Soviética, não teria sido mais
bem recebido por Marx do que o capitalista particular. Ele não
está interessado primàriamente na igualação da renda. Está
interessado na libertação do homem de um gênero de trabalh o que
destrói sua individualidade, converte-o em coisa, e torna-o escravo
de coisas. Assim como Kierkegaard estava interessado na salva-
ção do indivíduo, também Marx estava, e sua crítica da socie-
dade capitalista não é dirigida contra seu processo de distribui-
ção da renda, mas contra seu modo de produção, sua destruição
da individualidade e sua escravização do homem, não pelo ca-
pitalista, mas a escravização do homem - trabalh ador e capi-
talista - por coisas e circunstâncias feitas por êle próprio .
Marx vai ainda mais longe. No trabalho não-alienado, o
homem não só se realiza como indivíduo, mas também como
um ente-espécie. Para Marx, tal como para Hegel, e muitos
outros pensadores do iluminismo, cada indivíduo representa a
espécie, isto é, a humanidade como um todo, a universalidade
do homem: o desenvolvimento do homem conduz ao desabro-
char de tôda a humanidade nêle existente. No processo de tra-
balhar, êle "não mais se reproduz a si mesmo meramente de
forma intelectual, como na consciência, mas ativamente e em sen-
ti d~ real, e vê seu próprio re~lexo em um mundo que êle cons-
trum. Enquanto, por consegurnte, o trabalho alienado afasta do
homem o objeto da produção, também afasta dêle sua vida como

9 MEF, pág. 99.


10 O Capital, I, op. cit., pág. 536.
.ALIENAÇÃO 55

espécie, sua ?bjetividad~ r~al como e~te-e~pé~ie, e muda sua su-


perioridade sobre os amma1s em uma 1nfenoridade, na medida em
que seu corpo inorgânico, a natureza, é afastado dêle. Exatamen-
te como o trabalho alienado transforma a atividade livre e diri-
gida pela própri a pessoa em um meio, também transforma a vida
como espécie do homem em um meio de existência física. A
consciência de espécie é transformada por intermédio da aliena-
ção de modo que a vida como espécie se torna para êle apenas
um meio". 11
Como indiquei antes, Marx admitiu que a alienação do tra-
balho, apesar de existir através qe tôda a História, atinge o auge
na sociedade capitalista, . e que a classe trabalhadora é a mais
alienada de tôdas. Esta suposição baseou-se na idéia de que o ope-
rário, não participando da direção do trabalho, sendo "emprega-
do", como parte das máquinas a que serve, é transformado em
coisa, em sua dependência do . capital. Por isso, para Marx, "a
emancipação da sociedade da propriedade privada, da servidão,
assume a forma política de emancipação dos ope,·ários; não na
acepção · da emancipação dêstes ser a única em jôgo, mas por
esta abranger a emancipação da humanidade com.o um todo. Pois
tôda servidão humana está abrangida na relação entre trabalhador
e produção, e todos os tipos de servidão são apenas modificações
ou conseqüências desta relação". 12
Novamente deve ser salientado que a meta de Marx não
se limita à emancipação da classe operária, mas visa à emanci-
pação de todo ser humano através do retôrno à atividade não-alie-
nada, e portanto livre, de todos os homens, e a uma sociedade
em que o homem, e não a produção de coisas, seja o objetivo,
em que o homem deixe de ser "uma monstruosidade aleijada,
tornando-se um ser humano plenamente evoluído". 3
1 O con-
ceito marxista do produto alienado do trabalho vem expresso em
um dos pontos mais fundamentais expostos em O Capital, no
que êle denomina "o fetichismo das mercadorias". A produ-
ç_ão capitalista transforma as relações de indivíduos em qua-
lidades de coisas cm-si, e essa transformação constitui a natu-
reza da mercadoria na produção capitalista. "Não poderia ser
de outra maneira, em uma forma de produção em que o tra-

11
MEF, págs. 102-103.
12
MEF, pág. 107.
13
O Capital , I, op. cit., pág. 396.
56 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

balhador existe para satisfazer a necessidade de , e~pansão_ pró-


pria dos valôres existentes, em vez de,_ ao contrano, a n9ueza
material _existir para satisfazer as necessidades de desenvolvimen-
to por parte do trabalhador. Com? ~a :eligião o . homem é
governado pelos produtos de seu propno cerebro, assim na, p~o-
dução capitalista é governado pelos produtos de suas propnas
mãos." 14 "A maquinaria é adaptada à fragilidade do ser humano,
de molde a converter o ser humano fraco em uma máquina." 15
A alienação do trabalho na produção humana é muito maior
do que o era quando a produção- se baseava nos ofícios manuais
e na manufatura. "Nos ofícios manuais e na manufatura, o tra-
balhador utiliza-se de uma ferramenta; na fábrica, a má-
quina utiliza-se dêle. Lá, os movimentos do instrumento de
trabalho procediam dêle; aqui, é o movimento das máqui-
nas que êle tem de acompanhar. Na manufatura, os tra-
balhadores são partes de um mecanismo vivo; na fábrica, temos
um maquinismo vivo, independente do operário, que se torna
mero apêndice vivo." 16 É da máxima importância, para se
compreender Marx, ver como o conceito de alienação foi e con-
tinuou sendo o ponto focal do pensamento do jovem Marx
que escreveu os Manuscritos Econômicos e Filosóficos, e do
"velho" Marx que escreveu O Capital. Além dos exemplos da-
dos, as seguintes passagens, uma dos Manuscritos e outra de
O Capital, devem deixar bem dara essa continuidade:
"Este fato simplesmente sugere que o objeto produzido pe-
lo trabalho, seu produto, agora se lhe contrapõe como um ser
estranho, como uma fôrça independente do produtor. O produto
do trabalho humano é trabalho humano incorporado em uma
objetificação do trabalho humano. A execução do trabalho é con-
comitantemente sua objetificação. A execução do trabalho apa-
r:c~ na esf~ra_ ~a ~conomia Política como uma perversão do ope-
rano, a obJehf1caçao como uma perda e como servidão ante o
objeto, e a apropriação como alienação." 17
Eis o que Marx escreveu em O Capital: "Dentro do sis-
tema capitalista, todos os processos para aumentar a produtividade
social do trabalho são empregados à custa do trabalhador indi-

14 O Capital, I, op. cit., págs. 680-681.


15 MEF, pág. 143.
16 O Capital, I , op. cit., págs. 461-462.
17 MEF, pág. 95.
ALIENAÇÃO
57
vidual; todos os ~eios para o. des:nvo lviment o da produção trans-
_formam-se em meios de dommaç a? e exploração dos produtores;
êles mutilam o trabalha dor, reduzmd o-o a um fragmento de ho-
mem, rebaixam-no ao nível do apêndice de uma máquina, des-
troem todo resquício de atrativo do trabalho dêle e convertem-no
em uma ferrame nta odiada; afastam-no das potencialidades inte-
lectuais do processo do trabalho , na mesma proporção em que a
ciência é nêle incorpo rada como um poder indepen dente." 1s
Também o papel da propried ade privada ( claro que não co-
mo propried ade de objetos de uso, mas como capital que con-
trata trabalha dores) já foi visto nltidam ente em sua função alie-
nadora pelo jovem Marx: "A propriedade privada", escreveu
êle, "é, por conseguinte, o produto , o resultado necessário, do
trabalho alienado, da relação eterna do operário com a nature-
za e consigo mesmo. A propriedade privada, pois, deriva-se da
análise do conceito de trabalho alienado; isto é, homem alienado,
vida alienada, e homem separado." 19
Não é só o mundo das coisas que se torna superior ao ho-
mem, mas também as circunstâncias sociais e políticas por êle
criadas se tornam seus senhores. "Esta consolidação do que nós
mesmos produzimos, que se converte em um poder objetivo aCI-
ma de nós, escapando a nosso contrôle, frustran do nossas ex-
pectativas, reduzindo a nada os nossos cálculos, é um dos prin-
cipais fatôres da evolução histórica até a presente data." 20
O homem alienado, que julga ter-se tornado o senhor da na-
tureza, tornou-se escravo das coisas e das circunstâncias, o apên-
dice impotente de um mundo que é simultâneamente a expres-
são congelada de seus próprios podêres.
Para Marx, a alienação no processo do trabalho, do pro-
duto dêste e das circunstâncias está inseparàvelmente ligada à
alienação de si próprio, de seus semelhantes e da natureza. "Uma
conseqüência direta da alienação do homem do produto de seu
trabalho, da atividade de sua vida e da vida de suà espécie é
que o homem é alienado dos outros homens. Quando o homem
se enfrenta a si mesmo também enfrenta os outros homens. O
que é verdade quanto à' relação entre o homem e seu trabalho, o

18
O Capital, I, loc. cit., pág. 708.
19
MEF, págs. 105-106.
20
German Ideology, op. cit., pág. 23.
58 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

produto de seu trabalho e êle próprio, também é verdade quanto à


sua relação com outros homens, e com o •trabalho e os objetos
do trabalho dêles. De maneira geral, a afirmação de o homem
estar alienado da vida da espécie significa cada homem estar alie-
nado dos outros e cada um dêles estar alienado, anàlogamente,
na vida humana." 21 O homem alienado não o está apenas
dos outros homens; êle está alienado da essência da huma-
nidade, de seu "ente-espécie", tanto em seus atributos naturais
como espirituais. Essa alienação da essência humana leva a um
egoísmo existencial, descrito por Marx como a essência humana
do homem convertendo-se em "um meio para a existência indivi-
dual dêle. :e le [ o trabalho alienado] aliena o homem de seu
próprio corpo, natureza externa, vida mental e vida humand'. 22
O conceito de Marx alude, nisto, ao princípio kantista de o
homem sempre dever ser um fim em si mesmo, e jamais um
meio para um fim. Mas êle amplia o princípio ao asseverar que
a essência humana do homem nunca deve converter-se em meio
para a existência individual. O contraste entre a opinião de
Marx e o totalitarismo comunista não poderia ser manifestado
de maneira mais radical; a humanidade no homem, fala Marx,
nunca deve vir a ser sequer um meio para a existência individual
dêle - muito menos poderá ser considerada um meio para o
Estado, a classe ou a nação.
A alienação conduz à perversão de todos os valôres. Fa-
zendo da economia e de seus valôres - "lucro, trabalho, poupança
e sobriedade" 23 - a meta suprema da vida, o homem deixa de
desenvolver os valôres verazmente morais, "as riquezas de uma
boa consciência, de virtude etc., mas como poderei ser virtuoso
se não estiver vivo, e como poderei ter uma boa consciência se
não tomar conhecimento de nada?" 24 Num estado de alienação,
cada esfera da vida, a econômica e a moral, é independente da
outra, "cada uma se concreta em uma área específica de atividade
alienada e ~stá, ela própria, alienada da outra". 25
Marx reconheceu o que sucede com as necessidades humanas
em um mundo alienado, e previu realmente, com nitidez espanto-

21 MEF, pág. 103.


22 MEF, pág. 103.
23 MEF, pág. 146.
24 MEF, pág. 146.
25 MEF, pág. 14Q.
ALIENAÇÁO
59

sa, a conclusão dessa march~ conf~r~e é h?je em dia perceptível.


Enquanto e~ u?1a J:.:rsp~ct1va sooaltsta a. unportância capital de-
veria ser atnbu1da a riqueza das necessidades humanas e con-
seqüentemente, também a um nôvo modo de produção e 'a um
nôvo objeto de produção", a "uma nova manifestação dos podêres
humanos e a um nôvo enriquecimento do ser humano", 26 no
mundo alienado do capitalismo as necessidades não são manifes-
tações de podêres latentes do homem, isto é, elas não são necessi-
dades humanas; no capitalismo, "cada homem especula sôbre como
criar uma nova necessidade em outro homem a fim de forçá-lo
a um nôvo sacrifício, colocá-lo em uma nova dependência, e in-
citá-lo a um nôvo tipo de prazer e, por conseguinte, à ruína eco-
nômica. Todos tentam estabelecer sôbre os outros um poder es-
tranho para com isso lograr a satisfação de sua própria necessidade
egoísta. Com a massa de objetos, portanto, cresce também o
rol de entidades estranhas a que o homem fica sujeito. Todo
produto nôvo é uma nova potencialidade de embuste e roubo
mútuos. O homem torna-se cada vez mais pobre como homem;
êle tem necessidade cada vez maior de dinheiro a fim de apos-
sar-se do ser hostil. O poder do dinheiro diminui diretamente
com o aumento do volume de produção, isto é, sua necessidade
cresce com o poder crescente do dinheiro. A necessidade de di-
nheiro, por conseguinte, é a necessidade real criada pela economia
moderna, e a única necessidade por esta criada. A quantidade de
dinheiro cada vez mais se torna sua única qualidade importante.
Assim como ela reduz tôda entidade à sua abstração, também re-
duz-se a si mesma, em sua própria evolução, a uma entidade quan-
titativa. O excesso e a imoderação passa1n: a ser seus verdadeiros
padrões. Isso é demonstrado subjetivamente em parte no fato de a
expansão da produção e das necessidades se converter em uma
subserviência engenhosa e sempre calculista a apetites desu-
manos, depravados, antinaturais e imaginários. A propriedade
privada não sabe como transformar a necessidade crua em
necessidade humana; seu idealismo é fantasia, capricho e ilusão.
Eunuco algum bajula seu tirano de maneira mais vergonhosa ou
procura estimular-lhe o apetite embotado por meios m~is, in~a-
mes, para granjear qualquer favor, do que o eunuco da 1ndustna,
0 homem ~e emprêsa,
para adquirir algumas mo~d_as de prata
ou para atrair o ouro da bôlsa de seu bem-amado proximo. (Todo
produto é uma isca por meio da qual o indivíduo tenta apanhar

26
MEF' pag.
' 140 .
60 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

a essência da outra pessoa, o dinheiro dela. Tôda necessidade:


real ou potencial é uma fraqueza que trará o passarinh o para 0
visgo. Exploração universal da vida humana em comum. Assim
como tôda imperfeiç ão do homem é um vínculo com o céu, um
ponto em que o coração dêle é acessível ao sacerdote, também ca-
da necessidade é uma oportunid ade para se achegar ao próximo
com um ar de amizade, e dizer: "Caro amigo, dar-lhe-ei aquilo
de que você precisa, mas você conhece a conditio sine qua non.
Você sabe qual tinta tem de usar para se entregar a mim. Eu o
trapacearei ao proporcio nar-lhe satisfação .") O homem de emprê-
sa concorda com os mais depravados caprichos de seu próximo,
desempen ha o papel de alcoviteiro entre êle e suas necessidades,
desperta apetites mórbidos nêle, e presta atenção a cada fraque-
za a fim de, posteriormente, reivindicar a remuneração por êsse
serviço de amor". 27 O homem que assim se tornou sujeito a
suas necessidades alienadas é "um ser mental e frsicamente desu-
manizado - a mercadoria com consciência e atividade próprias". 28
l?.sse 'homem-mercadoria só conhece um meio de relacionar-se com
o mundo exterior: o de tê-lo e consumi-lo (usá-lo). Quanto mais
alienado estiver, tanto mais a sensação de ter e usar constituirá sua
relação com o mundo. "Quanto menos você é, quanto menos ex-
prime sua vida, tanto mais você tem, tanto maior é sua vida alie-
nada e maior a poupança de seu ser alienado." 29
Só há uma correção introduzida pela . História no conceito
marxista de alienação. Marx acreditava ser a classe operária a
mais alienada; daí a emancipação da alienação ter de começar ne-
cessàriamente pela libertação dessa classe. Marx não previu até
que ponto a alienação · chegaria a ser o destino da vasta maioria
das pessoas, especialmente do segmento cada vez maior da po-
pulação que manipula símbolos e homens, em vez de máquinas .
Se possível, o empregad o de escritório, o comerciário, o diretor
de emprêsa estão hoje em dia mais alienados ainda do que o
operário especializado. O funcionamento dêste último ainda
depende da expressão de certas qualidades pessoais, como ha-
bilidade, confiança de que é merecedor etc., e êle não é obrigado
a vender sua "personal idade", seu sorriso, suas opiniões, ao ser
contratado; já os manipuladores de símbolos não são contratados

27 MEF, págs. 140-142.


28 MEF, pág. 111.
29 MEF, pág. 144.
ALIENAÇÃO 61

apenas por sua períci~, mas . t~mbém por tôdas as qualidades pes-
soais que os tornam acondioonamen tos de personalidades atraen-
tes" de fácil trato e manuseio. Eles são os verdadeiros "homens
da ~rganização" - mais ainda que o trabalhador - · cujo ídolo
é a emprêsa. Porém, no. que toca ao consumo, não há diferença
entre trabalhadores manuais e membros da burocracia. Todos an-
seiam por_ coisas, coisas ~ovas, para ter e ·us~ .. Eles são os recep-
tores passivos, os consumidores, presos e debilitados pelas próprias
coisas que satisfazem suas necessidades sintéticas. Eles não se
relacionam com o mundo produtivamente, apreendendo-o em
tôda sua realidade e, com isso, unindo-se a êle; êles adoram coisas,
as máquinas que produzem as coisas - . e nesse mundo alienado
sentem-se estranhos e bastante sozinhos. A despeito de ter Marx
subestimado o papel da burocracia, sua descrição geral poderia
perfeitamente ser escrita hoje em dia: "A produção não produz
simplesmente o homem como mercadoria, o homem-mercadoria,
o homem no papel de utilidade; ela o produz em harmonia com
êste papel como um ser espiritual e fisicamente desumanizado -
[a] imoralidade, defarmação e embrutecimento dos trabalhadores
e dos capitalistas. Seu produto é a mercadoria com consciência
e atividade próprias. . . a mercadoria humana." 30
Até onde as coisas e circunstâncias por nós mesmos criadas
se tornaram nossos senhores, Marx dificilmente poderia prever;
contudo, nada poderia provar mais dràsticamente sua profecia do
que o fato de tôda a raça humana estar hoje prisioneira das armas
nucleares por ela criadas, e das instituições políticas também por
ela elaboradas. Uma humanidade aterrorizada aguarda angustiada
para ver se será salva do poderio das coisas que criou, da ação cega
das burocracias por ela designadas.

3º MEF, pág. 111.


CAPIT ULO VI

Conceito Marxist a do Socialismo

Ü marxista do socialismo deflui de seu conceito


CONCEITO
do homem. A esta altura já deve estar claro que, de acôrdo com
êsse conceito, o socialismo não é uma sociedade de indivíduos ar-
regimentados e automatizados, independente de haver ou não
igualdade de renda e de estarem bem alimentados e bem vestidos.
Não é uma socieade onde os indivíduos sejam subordinados ao
Estado, à máquina, à burocracia. Ainda que o Estado fôsse, co-
mo "capitalista abstrato", o empregador, ainda que "a totalidade
do capital social estivesse nas mãos de um único capitalista ou
de uma única emprêsa capitalista", 1 isso não seria socialismo.
Com efeito, conforme Marx diz assaz claramente nos Manuscritos
Econômicos e Filosóficos, "o comunismo não é em si a meta da
evolução humana". Qual, então, é essa meta?
Bem evidentemente, a meta do socialismo é o homem. :e
criar uma forma de produção e uma organização da sociedade
onde o homem possa superar a alienação de seu produto, de seu
trabalho, de seu semelhante, de si mesmo e da natureza; na qual
êle possa regressar a si mesmo e apreender o mundo com suas
próprias fôrças, tornando-se, dessarte, unido ao mundo. O so-
cialismo, para Marx, era, nas palavras de Paul Tillich, "um mo-
vimento de desistência contra a destruição do amor na realidade
social". 2
Marx exprimiu o alvo do socialismo com grande nitidez no
fim do terceiro volume de O Capital: "De fato, e reino da li-

1 O Capital, I, .op. cit., pág. 689.


2 Protestant ische Vision, pág. 6.
CONCEITO MARXISTA DO SOCIALISMO
63

berdade não começa até ser ultrapassado o ponto em que é exi-


gido o trabalho , so? a premência da_ necessidade e da utilidade
externa. Na propria natureza das coisas, êle fica além da esfera
da produção material em sentido res_trito. Tal como O selvagem
tem de lutar co~ a natureza pa~a sahsfaz~r suas necessidades, para
conservar sua vida e reproduzi-Ia, tambem o homem civilizado
tem de fazê-lo, e tem de fazê-lo em tôdas as formas de sociedade
e sob todos os possíveis sistemas de produção. Com sua evolução,
o reino da necessidade natural expande-se, porque suas precisões
crescem; ao mesmo tempo, porém, aumentam as fôrças de pro-
dução, por meio das quais aquelas são atendidas. A liberdade
neste campo não pode consistir senão no fato de o homem socia-
lizado, os produtores associltdos reguiarem seu intercâmbio com
a natureza racionalmente, submeterem-se ao contrôie comum dê-
ies em vez de serem governados por eia como por uma fôrça ce- ·
ga; êles realizam sua tarefa com o mínimo dispêndio de energia
e nas condições mais compatíveis com sua natureza humana e
mais dignas dela. Mas .continua sendo sempre um reino de ca-
rencra. Para além, inicia-se o desenvolvimento da fôrça hwna-
na, que é seu próprio fim, o verdadeiro reino da liberdade, que,
no entanto, só pode florescer tomando como base aquêle mundo
de carência." a
Marx manifesta, nesta passagem, todos os elementos essenciais
do socialismo. Primeiro, o homem produz de forma associativa, e
não competitiva; êle produz racionalmente e de maneira não-alie-
nada, equivalendo a dizer que mantém a produção sob seu con-
trôle, em vez de ser dirigido por ela como por uma fôrça cega.
Isso claramente exclui um conceito de socialismo onde o homem
seja manobrado por uma burocracia, mesmo que esta governe
tôda a economia do Estado, em vez de apenas a de uma grande
emprêsa. Quer dizer que o indivíduo participa ativamente do
planejamento e da execução dos planos; significa, em síntese, a
concretização da democtacia política e industrial. Marx esperava
que, por esta nova forma de uma sociedade não-alienada, o ho-
n:iem se tornaria independente, dependeria exclusivamente de
si próprio e não mais seria invalidado pelo sistema alienado de
produção e consumo; que êle seria deveras o senhor e o cri~dor
de su~ ~rópria vida, e em conseqüência poderia tornar a ~•ver
sua prmc1pal ocupação em vez de produzir os meios para viver.

3
O Capital, III, pág. 954.
64 CONCEITO MARXISTA DO HOME M

O socialismo, para Marx, nunca foi por si mesmo a consecução da


vida, porém a condição para essa consecução. Quan do o ho-
mem tiver construído uma forma racional e não-alienada de so-
ciedade, terá a . oportunidade para iniciar com o que é a meta
da vida: "o desenvolvimento das fôrças humanas, que é seu
próprio fim, o verdadeiro reino da liberdade". Marx, o homem
que todos os anos lia as obras de :Ssquilo e Shakespeare, que em
si próprio deu vida às maiores obras do pensamento humano,
nunca teria sonhado que sua idéia de socialismo pudesse ser in-
terpretada como tendo por meta o Estado de "bem-estar" ou
"obreiro", com todo mundo bem alimentado e bem -vestido. O
homem, segundo Marx, criou no decurso da História uma cul-
tura que êle terá liberdade de tornar sua quando se livrar dos gri-
lhões não só da pobreza econômica, mas a pobreza em sua fé
no homem, nas potencialidades intrínsecas e reais da essência do
homem que se formaram ao longo da História. Ele encarou o
-
socialismo como a condição para a liberdade e criatividade huma
nas, não como constituindo em si o objetivo da vida do homem.
Para Marx, o socialismo ( ou comunismo) não é uma fuga,
abstração ou perda do mundo objetivo que os homens criaram
pela objetividade de suas faculdades. Não é um regresso em-
pobrecido à simplicidade antinatural e primitiva. :E, antes, o pri-
meiro real aparecimento, a genuína efetivação da natureza do ho-
mem como algo real. O socialismo, para Marx, é uma sociedade
que permite a efetivação da essência do homem superando sua
alienação. ~ nada mais nada menos que a criação das condições
para o homem verdadeiramente livre, racional, ativo e indepen-
dente; é a consecução do objetivo profético: a destruição dos
ídolos.
Ter podido Marx ser encarado como um inimigo da liberdade
só foi possibilitado pela fantástica fraude de Stalin ao presumir
falar em nome de Marx, associada à fantástica ignorância exis-
tente no mundo ocidental a respeito de Marx. Para êle, o alvo do
socialismo era a liberdade, mas liberdade em um sentido muito
mais radical que o concebido pela democracia existente - li-
berdade no sentido de independência, apoiada no fato de o ho-
mem valer-se a si próprio, utilizando suas próprias fôrças e re-
lacionando-se produtivamente com o mundo. "A liberdade", dis-
~e. ~arx , "é em tão_alto grau a essência do homem que até seus
1ruffilgos percebem isso. .. Nenh um homem combateu a liber-
dade: no máximo, combate a liberdade dos outros. Tôda espé-
IALISMO
CO NC EIT O MARXISTA Dó · SOC 65

existiu, às vêzes como um pri-


cie de liberdade, portanto, sempre
um direito universal." 4
vilégio especial, outras vêzes como
iedade que atende às ne-
O socialismo, par a Marx, é uma soc
ém, indagarão: não é isso exa-
cessidades do homem. Muitos, por
italismo? Nã o estão as nos-
tamente o que faz o moderno cap
ansiosas po r atender às ne-
sas grandes emprêsas mais do que
s companhias de publicidade
cessidades do hom em ? E as grande
que, po r meio de enormes
são as patrulhas de reconhecimento
"análises de motivações", pro-
esforços, desde o levantamento até
idades do homem? Em ver-
curam descobrir quais são as necess
to de socialismo uma vez en-
dade, só se pod e entender o concei
rx entre as necessidades verda-
tendida a distinção feita po r Ma
des sintéticas, artificialmente
deiras do homem e as suas necessida
produzidas.
conceito do homem, suas
Segundo se conclui do conjunto do
ureza dêle: esta distinção en-
necessidades reais têm raízes na nat
ess ida des rea is e fals as só é pos sível partindo de uma ima-
tre nec
da nat ure za do hom em e das verdadeiras necessidades hu-
gem
As verdadeiras necessidades
manas implantadas nessa natureza.
é indispensável à efetivação
do homem são aquelas cuja satisfação
Conforme Marx diz: "A exis-
de sua essência como ser humano.
nte amo é sentida po r mim
tência daquilo que eu verdadeirame
um a nec ess ida de, com o um a exi gência, sem a qual mi -
como 5 Só-
ess ênc ia não pod e ser rea liza da, satisfeita, completa."
nha
específico da natureza do ho-
mente baseando-se em um conceito
erença entre necessidades ver-
mem pode Marx · estabelecer a dif
neira puramente subjetiva, as
dadeiras e falsas do homem. De ma o sendo urgentes e reais
ida des falsas são exp erie nci ada s com
necess
e qua l as ver dad eira s, e sob um ponto de vista puramente sub-
~al.
ério para fazer a distinção.
Jettvo não poderia haver um . crit
se-ia diferençar entre necessi-
[N a terminologia moderna, poder-
s). J 6 Freqüentemente, o ho-
dades neuróticas e racionais (sa dia
essidades falsas e inconsciente
mem só é consciente de suas nec
reais. A mis são do ana list a da sociedade é exatamente des-
das
imento das ilusórias necessi-
pertar o homem para tomar conhec

4 e· com
kay a, Ma ,xis m and Fre edo m,
pre fá . itad o por R. Du nay evs w Yo rk, 195 8,
okm an Associates, Ne
pág. ~•~. por H. Ma rcu se, Bo

; ME GA , I, la, pág . 184 .


lise do i~mrr;~uM_an for Him self . (N. do T. - Em por tug uês ,
, Rio , Zah ar Edi tôre s, 5. • edi ção
, 196 6.)
Aná -

5
66 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

dades falsas e da realidade de suas necessidades verdadeiras. O


principal objetivo do socialismo, para Marx, é a identificação de
efetivação das necessidades verdadeiras do homem que só serão
possíveis quando a produção servir ao homem e o capital cessar
de criar e explorar as falsas necessidades do homem.
O conceito que Marx fazia do socialismo era de um protes-
to, como ocorre com tôda a filosofia existencialista, contra a alie-
nação do homem. Se, conforme assevera Aldous Huxley, "nos-
sas medidas econômicas, sociais e internacionais do presen te são
7
baseadas, em grande proporção, no desamor organizado", então
o socialismo de Marx é um protesto contra exatamente êsse · de-
samor, contra a exploração do homem pelo homem, e contra sua
atitude exploradora face à natureza, o esbanjamento de nossos re-
cursos naturais a expensas da maioria dos homens de hoje, e
mais ainda das gerações vindouras. O homem não-alienado, que
é o objetivo do socialismo segundo demonstramos antes, é o ho-
mem que não "domina" a natureza, porém se une a ela, que é
sensível e suscetível aos objetos, de modo que êstes se tornam vi-
vos para êle.
Não quer tudo isso dizer que o socialismo de Marx é a con-
cretização dos mais profundos impulsos religiosos comuns às
grandes religiões humanistas do passado? De fato, é o que su-
cede, se entendemos que Marx, à semelhança de Hegel e de
muitos outros, exprime sua preocupação com a alma do homem,
não em linguagem teísta, mas filosófica.
Marx combateu a religião exatamente por ela estar alienada
e não atender às necessidades verdadeiras do homem. A luta de
Marx contra Deus é, na realidade, uma luta contra o ídolo a que
chamam de Deus. Já na juventude êle escreveu, como lema de
uma dissertação: "Não são ateus os que desprezam os deuses das
massas, porém aquêles que atribuem as opiniões das massas aos
deuses." O ateísmo de Marx é a forma mais adiantada de mis-
ticismo racional, mais próximo de· Meister _Eckhart ou do budis-
mo Zen do que o estão muitos dos defensores de Deus e da re-
ligião que o acusam de "impiedade".
~ão é possível falar da atitude de Marx ante a religião sem
mencionar a conexão entre sua filosofia da história e do socialis-
mo com a esperança messiânica dos profetas do Antigo Testa-

1
A. Huxley, The Perennial Philosophy, Harpe r, 1944, pág. 93.
CON CEIT O MARXISTA DO SOCIALISMO 67

o e romano. A
mento e as raízes espirituais do pensamento greg
ímp ar no pen-
esperança messiânica é, deveras, um característico
amento não são
samento ocidental. Os prof etas do Ant igo Test
is; eram igual-
apenas, como La~ . Tsé ou Buda, líde res espiritua
em uma visão da-
mente chefes polttJc,os. .Eles mos tram ao hom
alternativas entre
quilo que deveria ser, con fron tand o com as
do Ant igo Tes-
as quais deve escolher. A mor part e dos profetas
· !em um sentido,
tamento compartilha da idéia de que à história
da História, e que
de que o hom em se aperfeiçoa com o correr
ça. Mas, para os
acabará criando uma orde m social de paz e justi
de gue rra e de in-
profetas, paz e justiça não significam a ausência
no conj unto do
justiça. Paz e justiça são conceitos entranhados
homem, antes de
conceito do hom em do Ant igo Testamento. O
hum ano , vive em
ter consciência de si próprio, isto é, antes de ser
. O primeiro ato
união com a natureza ( Adão e Eva no Para íso)
"não ", abre-lhe os
de Liberdade, que é a capacidade de dizer
acossado por con-
olhos, e êle se vê como um estranho no mundo,
elhante, entr e o
flitos com a natureza, entre o hom em e seu sem
é_aquêle graças ao
homem e a mulher. O processo da Hist ória
cificamente hum a-
qual o homem desenvolve suas qualidades espe
uma vez haja atin-
nas, suas faculdades de amor e compreensão; e
r à perd ida união
gido a plen itud e da humanidade, pod e regressa
rent e da anterior,
com o mundo. Esta nova união, entretanto, é dife
principiar. Ela
da pré-consciente, que existia antes de a Hist ória
com a natu reza e
é a reconciliação do hom em consigo mesmo,
em ter gera do a si
com seu semelhante, baseada no fato de o hom
do Ant igo Tes-
próp rio no decurso da História. No pensamento
s de Abraão, o
tamento, Deu s é revelado na história ("O Deu
ria, não em uma
Deus de !saque, o Deu s de Jacó "), e ná histó
ação do hom em.
situação que tran scen da a história, se acha a salv
hom em inseparà-
Significa isso estarem as metas espirituais do
a política fun·da-
velmente ligadas à transformação da sociedade;
divorciado dos va-
mentalmente não é um dom ínio capaz de ser
lôres morais e da auto-realização do homem.
( e hele nist a)
Idéias correlatas surgiram no pensamento grego
estóica, até Sê-
e romano. Des de Zenão, o fund ado r da filosofia
e de igua ldad e do
neca e Cícero, os conceitos de direito natu ral
dos hom ens e,
hom em exerceram poderoso infl uxo nas mentes
rces do pensamen-
juntamente com a tradição profética, são os alice
to cristão.
de Paulo, te-
Embora a cristandade, especialmente a part ir
de salvação em um
nha tendido a tran sfor mar o conceito histórico
68 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

conceito "sobrenatural", puramente espiritual, e embora a Igre-


já se tornasse o sucedâneo da "boa sociedade", essa transforma-
ção não foi absolutamente completa. Os primeiros padres da
Igreja manifestaram uma crítica radical ao Estado de então; o pen-
samento cristão do fim da Idade Média critica a autoridade se-
cular e o Estado sob o ponto de vista do direito divino e o na-
tural. Esse modo de ver salienta que sociedade e Estado não de-
vem divorciar-se dos valôres espirituais arraigados na revelação
e na razão ("intelecto", na acepção escolástica do têrmo). Além
disso, a idéia messiânica foi expressa em formas ainda mais ra-
dicais nas seitas cristãs anteriores à Reforma, e no pensamento de
muitos grupos cristãos depois desta, até a Sociedade dos Amigos
de nossos dias.
S~m embargo, o curso principal do pensamento messiânico
após a Reforma não mais se exprimiu em idéias religiosas, porém
em idéias filosóficas, históricas e sociais. Exprimiu-se, de ma-
neira um tanto oblíqua, nas grandes utopias do Renascimento,
em que o mundo nôvo não está em um futuro distante, mas em
lugar remoto. Foi manifestado no pensamento dos filósofos do
iluminismo e das revoluções francesa e inglêsa. Encontrou sua
última e mais completa expressão na conceituação do socialismo
feita por Marx. Qualquer que tenha sido nêle a influência direta
do pensamento do Antigo Testamento, por intermédio de so-
cialistas como Moses Hess, sem dúvida a tradição messiânica in-
fluenciou-o indiretamente graças ao pensamento dos filósofos ilu-
ministas e especialmente às idéias brotadas de Spinoza, Goethe e
Hegel. O que é comum ao pensamento profético, às idéias cristãs
do século XIII, ilumipismo do século XVIII 8 e socialismo do
XIX é a noção de que o Estado (sociedade) e os valôres espiri-
tuais não podem divorciar-se uns dos outros; que a política e os
valôres morais são indivisíveis. Essa idéia foi atacada pelos con-
ceitos seculares do Renascimento (Maquiavel) e novamente pelo
secularismo do Estado moderno. Parece que o homem ocidental,
sempre que ficou sob a influência de gigantescas conquistas ma-
teriais, entregou-se sem restrições às novas fôrças adquiridas, em-

8 Cf. Carl L. Becker, The H eavenly City o/ the Eighteenth-


-Century Phil,osophers, Yale Univ. Press, New Haven, 1932 e 1959;
A. P. d'Entreves, The Medieval Contribution to Political Thought,
Oxford Univ. Press, 1939; Hans Baron, Fifteenth-Century Civilization
and the. Renaif~ance, in The _Cambridge Modem History, vol. 8; Harold
J. Lask1, Political Theory m the Later Miádle Ages in The New
Cambridge Modem History, vol. 1. '
CONCEITO MARXISTA DO SOCIALISMO 69

briagado com estas, esquecendo-se de si mesmo. A elite dessas


sociedades ficou obcecada com o desejo de poder, luxo e direção
de homens, e as massas acompanharam-na. Isso aconteceu no Re-
nascimento com sua nova ciência, o descobrimento do globo, as
prósperas Cidades-Estados da Itália setentrional: aconteceu, uma
vez mais, na expansão expositiva da primeira revolução industrial,
assim como na segunda, atualmente em curso.
Esta última expansão, todavia, foi complicada pela presença
de outro fator. Se o Estado ou a sociedade se destina a atender à
concretização de certos valôres espirituais, existe o perigo de uma
autoridade suprema dizer ao homem - e obrigá-lo - a pensar
e a · conduzir-se de certa maneira. A incorporação de determi-
nados valôres ojetivamente válidos na vida social tende a pro-
duzir autoritarismo. A autoridade espiritual da Idade Média
era a Igreja Católica. O Protestantismo combateu essa autoridade,
a princípio prometendo maior independência para o indivíduo,
somente para fazer do Estado opulento o governante indisputado
e arbitrário do corpo e alma do homem. A rebeldia contra a
autoridade do príncipe ocorreu em nome da nação, e, por certo
tempo, o Estado nacional prometeu ser o representante da li-
berdade. Em breve, porém, o Estado nacional dedicou-se à pro-
teção material dos que possuíam o capital, podendo assim explo-
rar o trabalho da maioria da população. Certas classes da socie-
dade protestaram contra êsse nôvo autoritarismo e insistiram na
libertação do indivíduo da interferência da autoridade secular.
Esse postulado de liberalismo, propenso a proteger a "liberdade",
levou, por outro lado, à insistência de que Estado e sociedade não
devem procurar concretizar a "liberdade para", ou seja, o libera-
lismo teve que iasistir não apenas na separação da Igreja do Es-
tado, mas também de negar fôsse função do Estado auxiliar e
efetivar certos valôres morais e espirituais; êsses valôres, por hipó-
tese, eram exclusivamente da alçada do indivíduo.
. . .

O socialismo ( em sua forma marxista e nas outras) retor-


nou à noção da "boa sociedade" como condição para realização
das necessidades espirituais do homem. Ele era antiautoritário,
tanto face à Igreja quanto ao Estado, de modo que visava ao
eventual desaparecimento do Estado e ao estabelecimento de uma
sociedade composta de indivíduos cooperando voluntàriamente.
Sua meta era uma reconstrução da sociedade de tal maneira que
fizesse dela a base para um verdadeiro regress? , d_o homem_ ª. si
mesmo, sem a presença daquelas fôrças autontanas que hm1ta-
vam e empobreciam a inteligência do homem. .
CONCEITO MARXISTA DO HOMEM
70

Assim, a forma marxista e as outras formas de socialismo


são herdeiras do messianismo profético, do sectarismo quiliasta
cristão do tomismo do século XIII, das idéias utópicas renascen-
tistas ~ do iluminismo do século XVIII. 9 Elas constituem a sín-
tese da idéia profético-cristã da sociedade co~o. ~ plano de rea-
lização espiritual e da idéia de liberdade 1nd1v1ual. Por essa
razão, opõem-se à Igreja devido à restrição e~ercida por e-sta ~ô-
bre a mente, e ao liberalismo por causa de seu isolamento da sooe-
dade e dos valôres morais. Opõem-se ao estalinismo e ao
kruschevismo por fôrça de seu autoritarismo, bem como de seu
desprêzo aos valôres humanistas.
O socialismo é o repúdio da auto-alienação do homem, a
volta do homem como ser humano real. "Ele é a solução defini-
tiva do antagonismo entre homem e natureza e entre homem e
homem. :e a verdadeira solução do conflito entre existência e
essência, entre objetificação e auto-afirmação, entre liberdade e
determinismo, entre indivíduo e espécie. Ele é a resposta ao enig-
ma da História e tem consciência disso." to, 11 Para Marx, o socia-
lismo significa a ordem social que permite o regresso do homem
a si_ mesmo, a identidad~ entre existência e essência, a superação
do isolamento ~ ~n~agomsmo entre sujeito ·e objeto, humanização
da natureza; s1gmf1Ca um mundo onde o homem não mais é
um estranho entre estranhos, mas está no mundo dêle, onde se
sente em casa.

9 Tratarei em minúcia dessa evol -


"World Pcrspective Religious Series" uçao. n~m próximo livro da
Ashen, para Harper & Brothers, New Yo~~~amza a por Ruth Nanda
1
º MEF, pág. 127.

11
eia d a relação entre o
A Iºd,. f .
hsmo de Marx tem sido de t d pro etismo messiânico e o socia-
me . . s aca a por dive
?c1onar aqw os seguintes· Ka l L ·· . rsos autores. Podemos
Ch1cag<? University Press, 1940· pr l o~1~h, Meaning in . History,
neste livro. Lukacs em e h'. h au Tilhch em trabalhos citados
Marx , . esc ,e te und Klru b
Alf d como um pensador escatológico Cf sen ~wustsein, fala de
re ~eber, J. A. Schum eter . . ., tambem, afirmações de
em Marxumusstudien. p ' e diversos outros autores, citados
CA PI TU LO V II

de Llfar x
A Co nt in ui da de do Pe ns am en to

da natureza hwna-
N ossA
na, alienaç
apresentação do conceito marxista
ão, ati vid ade ~te., ser ia bas tan te unilateral e, com efeito,
ias
ent ado ra, se est ive sse m cer tos os que alegam terem as idé
desori -
Manuscritos Econômicos e Filosó
do "jovem Ma rx" , contidas nos ,
f icos, sido abandonadas pelo
Ma rx mais velho e amadurecido
-
sado idealista ligado aos ensina
como reminiscências de wn pas ia
ivessem com a razão, poder-se-
mentos de Hegel. Se êles est rx mais velho, e desejar vin -
pre fer ir o jov em Ma rx ao Ma
ainda
o soc iali sm o ao pri me iro em vez de ao segundo. Contudo,
cular
entação de Ma rx em dois. O
felizmente, não é mister tal fragm
o homem, como l\{arx as expri-
fato é que as idéias básicas sôbre osó ficos, e a~ manifestadas
nu. rcr itos Eco nôm ic.o s e Fil
miu nos Ma
rx ma is vel ho em O Ca pita l, não sofreram nenhuma mo-
pelo Ma
çã_o fun dam ent al; Ma rx não repudiou suas opiniões pri-
difica
tivas, com o pre ten dem os rep resentantes da tese acima men-
mi
cionada.
iro qu e tud o, qu em são os qu e sustentam haver con-
Pri me
ão nas opi niõ es do "jo vem Ma rx" e do "M arx velho" acêr-
tradiç
do ho me m? Na ma ior ia, são comunistas russos; nem podem
ca
dei xar de faz er isso , isto com o o ideário dêles, tanto qu ant o
êle s -
sob todos os aspectos, uma con
seu sistema social e político é,
No sistema dêles. o homem é o
testação do hwnanismo de Marx.
, antes que a meta suprema de
s~rvo do Estado e da produção i-
A meta de Marx, o desenvolv
todas as providências sociais .
personalidade· hwnana, é negada
men~o da individualidade da
a sov iéti co com ma ior am pli tude ainda qu e no capitalis-
no sistem
tem por âne o. O ma ter fal ism o dos comunistas está muito
mo con
pró xim o do ma ter ial ism o mecanicista da burguesia do
mais
72 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

século XIX, combatido por Marx, do que do materialismo his-


tórico dêste.
O Partido Comunista da União Soviética expressou êste mo-
do de ver ao obrigar G. Lukacs, o primeiro a reviver o __huma:
nismo de Marx a uma "confissão" de seus erros, quando ele fo1
à Rússia em 1934 depois de se ver forçado a fugir dos nazis-
tas. Anàlogamente: Ernst Bloch, que apresent~ a mesma ~nf~se
no humanismo marxista em seu brilhante livro Das Prtnz,ps
Hoffnung ( "O Princípio Esperança"), 1 sofreu ataq~es severos
de escritores do Partido Comunista, malgrado seu livro conter
diversas referências elogiosas ao comunismo soviético. À parte
dos escritores comunistas, recentemente Daniel Bell adotou a
mesma posição ao afirmar que a concepção do humanismo de
Marx baseada nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos "não
é a do Marx histórico". "Conquanto se possa apreciar tal ma-
neira de encarar", diz Bell, "é só colaborar para aumentar os
mitos ler êsse conceito de nôvo como o bem central de Marx." 2
:S verdade que os intérpretes clássicos de Marx, quer fôssem
reformistas como Bernstein, ou marxistas ortodoxos como Kauts-
ky, Plekhanov, Lênin ou Bukharin, não explicaram a obra de
Marx cm função de seu existencialismo humanista. Dois fatos,
sobretudo, esclarecem o assunto. Primeiro, o de os Manusc,-itos
Econômicos e Filosóficos não terem sido publicados antes de
1932, e até então serem desconhecidos mesmo em manuscritos; e
outro, o de Ideologia Alemã nunca ter sido publicàda integral-
mente até aquêle mesmo ano, sendo que em parte só foi em
1926. 3 Naturálmente, tais fatos contribuíram bastante para a
inte~pretação_ detu_rpada e unilateral das idéias de Marx pelos
escritores acima citados. Contudo, o fato de êsses trabalhos de
Marx terem sido mais ou menos desconhecidos até o princípio
das déc~~as de 1920 e ~930, respectivamente, não é de forma algu-
ma suf1c1ente para explicar a desconsideração do humanismo mar-
xista pela int~rpretação "clássica", pôsto que O Capital e outros
tr~balhos publicados ~e Marx, como a Crítica à Filosofia do Di-
rerto de Hegel (publicada em 1844), poderiam ter dado base su-

1
Erns~ Bloch, Das Prinzips Hoffnung, Suhrkamp Verlag, Frank-
furt am Mam, 1959, 2 volumes.
2
" Est3: e tôdas _as seguintes citações de D . Bell são de seu artigo
The Meanmg of Ahenation", em Thought, 1959.
3
Em Marx-Engels A.rchiv, I , org. por Riazanov.
A CONTINUID ADE DO PENSAMEN TO DE MARX 73

ficiente para torn~r visível o humanismo de Marx. A explicação


mais relevante esta no fato de o pensamento filosófico da época
desde a morte de Marx até a década de 1920, ter estado do~na~
do por idéias positivista-mecanicistas que influenciaram pensa-
dores como Lênin e Bukharin. Tampouco deve ser esquecido
que, como o próprio Marx, os marxistas clássicos eram alérgicos
a têrmos que cheirassem a idealismo e religião, pois se davam
bem conta de êsses têrmos muito comumente serem empregados
para ocultar realidades econômicas e sociais básicas.
Para Marx, essa alergia à tenninologia idealista era muito
mais compreensível por estar êle profundamente enraizado na
tradição espiritual, conquanto não-teísta, que se estende não só
de Spinoza e Goethe a Hegel, como também remonta ao mes-
sianismo profético. Estas últimas idéias atuaram bem consciente-
mente em socialistas como Saint-Simon e Moses Hess, e certa-
mente f armaram grande parte do pensamento socialista do século
XIX e mesmo do ideário de destacados socialistas até a 1. ª Guerra
Mundial ( como Jean J aures) .
A tradição espiritual-humanista, em que Marx ainda vivia
e quase foi afogada , pelo espírito mecanicista-materialista do in-
dustrialismo vitorioso~ experimentou um ressurgimento, embora
sómente uma pequena escala, em alguns pensadores individual-
mente, no fim da 1. ª Guerra Mundial, e em escala maior duran-
te e após a 2.ª Guerra Mundial. A desumanização do homem,
evidenciada nas crueldades dos regimes de Stalin e Hitler, na
brutalidade do morticínio indiscriminado durante a guerra, e
também no crescente embrutecimento acarretado pelo nôvo ho-
mem consumidor e membro de organização, maníaco por en-
genhocas, levou a esta nova manifestação · de idéias humanistas.
Por outras palavras, o protesto contra a alienação, enunciado por
Marx, Kierkegaard e Nietzsche, depois emudecido pelo aparente
sucesso do industrialismo capitalista, ergueu novamente sua voz
ante o fracasso humano do sistema vigente e conduziu a uma
reinterpretação de Marx, baseada no Marx integral e em sua fi-
losofia humanista. Já mencionei os autores comunistas mais no-
táveis nesta revisão humanista. Acrescentarei agora os comunis-
tas iugoslavos que, malgrado ainda não tenham, tanto quanto es-
tou a par, suscitado o ponto filosófico da alienação, ressaltaram
como principal objeção ao comunismo russo a sua preocupação
com o indivíduo face à maquinaria estatal, e elaboraram um sis-
tema de descentralização e de iniciativa individual contrastando ra-
74 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

dicalmente com o ideal russo de centralização e de burocratização


completas.
Na Polônia, Alemanha Oriental e Hungria , a oposição política
aos russos estêve lntimamente aliada aos representantes do socia-
lismo humanista. Na França, Alemanha e, em menor proporção,
na Inglaterra, há uma discussão acesa em curso sôbre Marx, ba-
seada em um conhecimento e uma compreensão completos de suas
idéias. Da bibliografia em alemão, só cito os documentos con-
tidos nos Marxism11sst11dien, 4 escritos sobretudo por teólogos pro-
testantes; a francesa é ainda maior, e escrita por filósofos católi-
6
cos, 5 bem como por marxistas e não-marxi_stas.
O reflorescimento do humanismo marxista em países de lín-
gua inglêsa sofreu devido aos Manuscritos Econôm1cos e Filosó-
f ic.os não terem sido traduzidos para o inglês senão recentemente.
Não obstante, homens como T. B. Bottomore e outros' compar-
tilham das idéias acêrca do humanismo marxista expostas pe-
los autores atrás mencionados. Nos Estados Unidos, a obra mais
importante que inaugurou uma compreensão do humanismo de
Marx é Reason and Revolution 7 de Herbert Marcuse . O livro
de Raya Dunayevskaya, Marxism and Freedom, com um prefácio
por H. Marcuse, 8 também é significativo refôrço ao pensa-
mento humanista marxista.
Chamar a atenção para o fato de os comunistas russos terem
sido obrigados a apregoar o cisma entre o jovem Marx e o Marx
velho e aduzir os nomes de diversos escritores profund os e sérios
que contestam essa posição ·russa não constitui, entretanto, prova
de ~s ~ussos,. ( e D. Bell) estarem errados. Apesar de transcender
os lir1:11tes deste volume tentar refutar totalmente, . como desejável,
a posição russa, procurarei, não obstante, demonstrar para o leitor
que acho insustentável a atitude russa.

4
J. C. B. Mohr, Tübingen, vols. I e II, 1954, 1957.
5
A obra principal ~ôbre êste tema é de um padre jesuíta,
{;~~-.Yves Calvez, La_ Pensee de Karl Marx, Editions Du Seuil, Paris,
6 M . .
enc1onare1 apenas as obras de H. Lefebvre Naville Gold-
mann, e .de _A. Kojeve, Jean-Pau l Sartre? M. Merl;a~- Ponty • ' Cf. o
·
"D er M arx.ismus ·
h. ,, a r tIgo
excelente 1m Sp1egel der Fnmzosischen Phi-
1osop ie , por I. Fetzcher, em Marxismusstudien t>p. cit. vol. I
págs. 137 e segs. ' ' '
7
Harvard U niversity Press, Cambridge Massachusetts 1941.
8 ' '
Book.man Associates, New York, 1958.
A CONTINUIDA DE DO PENSAMENT O DE MARX 75

Há al_guns fato~ _que, sup~rficialmente apreciados, talvez pa-


reçam apo1:r a p_os1çao comurnsta. Em Ideologia Alemã, Marx
e Engels nao mais empregaram os têrmos "espécie" e "essência
humana" ( Gattung e menschliches Wessen), usados nos Manus-
critos Econômicos e Filosóficos. Outrossim, Marx disse mais tar-
de ( no prefácio à Crítica da Economia Política, 1859) que, em
Ideologia Alemã, êle · e Engels resolveram "arquitetar juntos a
cpos1çao que fazíamos ao ponto de vista ideológico da filosofia
alemã; de fato, livrar-nos de nossa antiga consciência filosófica". 9
Foi alegado que êsse "livramento de sua consciência filosófica an-
tiga" queria dizer que Marx e Engels haviam abandonado as
idéias fundamentais expressas nos lvl.anuscritos Econômicos e Fi-
losóficos. No entanto, um mero estudo superficial de Ideologia
Alemã revela não ser isso verdade. Se bem que Jde.ologia Alemã
não contenha certos têrmos como "essência humana" etc., sem
embargo prossegue na mesma linha principal de idéias dos Ma-
nuscritos, especialmente o conceito de alienação.
A alienação, em Ideologia Alemã, é explicada como o re-
sultado da divisão do trabalho humano que "subentende a con-
tradição entre o interêsse do indivíduo isolado ou da família
individual e o interêsse comunitário de todos os indivíduos com
relações entre si". 1º No mesmo parágrafo, o conceito de aliena-
ção é definido, como nos Manuscritos, por estas palavras: "Os
atos do próprio homem convertem-se em uma fôrça estranha e a
11
êle oposta, que o escraviza ao invés de ser por êle controlada."
Nisto, também, vemos a definição de alienação referida a cir-
cunstâncias já atrás citadas: "Esta cristalização da atividade so-
cial, esta consolidação do que produzimos em uma fôrça obje-
tiva acima de nós, escapando a nosso contrôJe, frustrando nossas
expectativas, reduzindo a nada nossas previsões, é um dos prin-
cipais fatôres da evolução histórica até hoje." 12, 13

9 Quando circunstâncias exteriores tornaram impossível a publi-


cação dêste livro (/deologia Alemã), "abandonamos o manuscrito às
críticas roedoras dos ratos com tanto maior boa-vontade por têrmos
alcançado nossa principal Íinalidade - a de auto-esclarecimento".
1º Ideologia Alemã, op. cit., pág. 22.
11 German I deology, op. cit., pág. 22.
12 German I deolcgy, op. cit., págs. 22-23.
13 É significativo que Marx corrigisse a expressão de Engels
"auto-ativida de'' para "atividade", quando Engels a empregou com
76 CONCEITO MARXISTA DO HOM EM

com Adam
. Quatorze anos mais tarde, em sua polêmica
argumentos su-
Smi th (em 185 7-58 ), Mar x empregou os mesmos
itos Econômicos e
postamente "idealistas" utilizados nos Manuscr
alhar não cons-
Filosóficos, sustentando que a necessidade de trab
e que não seja
titui por si mesma uma restrição à liberdade ( desd
trab alho alie nad o). Mar x fala da "auto-realização" da pessoa,
14 Subseqüentemente,
"em conseqüência, da verdadeira liberdade".
é a expansão do
a mesma idéi a de que a meta da evolução humana
eu a contradição
homem, a criação do homem "rico" que vend
adeira liberdade,
entr e êle próp rio e a natureza e alcançou a verd
ito pelo Marx
aparece em muitas passagens de O Capital, escr
Marx escreveu no
velho e amadurecido. Como foi antes citado,
[ do reino da
terceiro volume de O Capital: "Par a além dêle
humana, que é
necessidade], inicia-se o desenvolvimento da fôrça
, que, no entan-
seu próprio fim, o verdadeiro reino da liberdade
le mundo de ca-
to, só pode flo.rescer tomando como base aquê
premissa funda-
rência. A redução do dia de trabalho é sua
mental." 15
rtância de
Em outras partes de O Capital, êle fala da impo
nvolvidos", 16 do "de-
prod uzir "sêres hwnanos plenamente dese
senvolvimento total da raça humana" , 17 da "necessidade de o
18 e do "fragmento de Ho-
homem desenvolver-se a si mesmo" 19
mem, como resultado do processo de alienação".
-americanos
Visto ser D. Bell um dos poucos autores norte
desejo demons-
interessados no conceito marxista de alienação,
mesma assumida
trar por que sua posição, que é, de ' fato, a
te opostos, é
pelos comunistas russos, por motivos diametralmen
de Bell é que
também indispensável. A principal alegação

o Mar x . c~msiderav~ ~m-


relaç ão à histó ria anterior. _ I~so mos!r~ co1!!
e (ou ativi dade prop na)
port ante reser var a expressao auto-at1V1dad
A, I , vol. ~' pág. 61.
para uma socie dade não- alien ada. Ver MEG
14 Cf. o brilh ante artig o de Th.
Ram m, "Die Kün ftige Ge-
x und Engels", em Mar-
sells chaf tsord nung nach der Theo rie von Mar
·
xismusstudien, II, op. cit., págs. 77 e segs.
15 Cf. O Capital, III, op. cit., págs
. 945-46. (Os grifos são meus
- E. F.)
30.
16 Cf. O Capital, I, pp. cit., págs. 529-
17 o Capital, I, págs. 554-55.
18 o Capital, I , pág. 563.
19 o Capital, I , pág. 708.
A CONTINU IDADE DO PENSAME NTO DE MARX 77

interpreta r Marx sob o ponto de vista dos autores humanistas


~cima citados . aument~rá, . a criaçã~ de_ mito~. ~le sustenta que
Marx repudiara a 1de1a de alienaçao, d1vorc1ada do sistema
ecçmômico, e, ao fazê-lo, fechou um caminho que nos teria
dado uma análise mais ampla da sociedade e da personalida-
de do que o dogmatis mo marxista que tem vigorado".
Essa declaração é, a um só tempo, ambígua e errônea. Dá
a impressão de que Marx, em suas últimas obras, haja repudia-
do a idéia de alienação em seu significado humano, transforman-
do-a em uma "categori a puramen te econômica", como diz Bell
adiante. Marx nunca rejeitou a idéia de alienação em seu sen-
tido humano, mas sustentou que ela não pode ser divorciada d.o
processo da vida concreta e real do indivíduo al,ienado. Isso é ·
algo assaz diferente de agarrar-se ao testa-de-ferro do "velho Marx"
que repudia o conceito de alienação humana do "jovem Marx".
Bell deve ter assim errado por aceitar na totalidade a chapa ba-
tida da interpretação convencional de Marx. "Para Marx, a úni-
ca realidade social não é o homem, nem o indivíduo , mas claJ-
ses de homens, econômicas. Indivíduos e seus . motivos não
contam para nada. A única forma de consciência suscetível de
ser transform ada em ação - e de explicar a História, o passado,
o presente e o futuro - é a consciência de classe." Ao procurar
demonstr ar que Marx não se achava interessado no indivíduo ,
porém tão-somente na massa, assim como por hipótese êle não
mais se interessava por fatôres humanos mas unicamente por
econômicos, Bell não vê - ou não menciona - que Marx cri-
ticou o capitalismo exatamente por destruir a personalidade in-
dividual ( tal como criticou o "comunismo vulgar" pela mesma
razão), e que a afirmação segundo a qual a História só pode
ser explicada pela consciência de classe é uma afirmação de
fato, na medida em que se considera a história anterior, e não
uma expressão do desprêzo de Marx pelo indivíduo.
Infelizmente, Bell cita erradamente um texto de Marx que
é de decisiva importân cia para provar essa tese. .Ele diz de
Marx: "Mas, ao dizer que não existe natureza humana inerente
a cada indivíduo separado " ( como Marx o faz em sua sexta tese
sôbre Feuerbac h), e "sim apenas classes, introduz-se uma nova
pessoa, uma nova abstração ."
O que diz Marx deveras na sexta tese sôbre Feuerbach?
"Feuerbach reduz a essência da religião à essência do homem.
Mas a essência do homem não é uma abstrafão inerente a cada
78 CONC EITO MARXISTA DO HOM EM

indiv íduo de per si. Na realidade, ela é o conjt tnto (agregado)


na
de relações sociais. Feuerbach, que não se aprof unda mais
ir
crítica da essência verdadeira, é por isso obrigado: 1) A abstra
do processo da História e a estabelecer o temperamento religioso
como algo independente e conceber um indivíduo huma no abs-
trato - isolado. 2) A essência do homem, portanto, pode ser en-
tendi da somente como "genus", e generalidade íntima, muda, que
une natu1·almente os indiv íduos ."
20 Marx não afirma, como cita
Bell, que "não existe natureza humana inerente a cada indivíduo
separado", mas algo assaz diferente, ou seja, que "a essência do
homem não é uma abstração inerente a cada indivíduo". Isso
ao
é o ponto essencial do "materialismo" de Marx em oposição
idealismo de Hegel. Marx nunca abandonou seu conceito de na-
tureza huma na ( como demonstramos ao citar a declaração feita
em O Capit al), mas essa natureza não é exclusivamente biológica,
nem tampouco uma abstração; ela só pode ser interpretada his-
toricamente, porque se revela na História. A natureza (essência)
e
do homem pode ser inferida de suas múltiplas manifestações (
deturpações) na História; não pode ser vista como tal, como uma
entidade de existência estatística "por trás" ou "acima" de cada
homem de per si, mas como a existente em cada homem como
uma potencialidade, revelando-se e modificando-se através do pro-
cesso histórico.
Além de tudo isto, BelI não entendeu adequadamente o con-
ceito de alienação. l!le o define como "a dissociação radical de um
sujeit o que anseia por controlar seu próprio destino e um objeto
a
que é manipulado por outros". Como se depreende de minh
exposição, bem como das apreciações dos mais sérios estudiosos
do conceito de alienação, essa é uma definição completamente
a
imprópria e enganadora . Com efeito é tão imprópria quanto
asserção de Bell segundo a qual o budismo Zen ( como outras
"modernas filosofias tribais e comunais" de "reintegração") visa
"à perda pela pessoa do sentimento do próprio eu" e, assim, em
última análise é anti-humana porque êles [ os filósofos da rein-
tegração, inclusive o ZenJ são antiindividualistas. Não há es-
ir
paço disponível para refut at êsse chavão, e limito-me a suger
de
uma leitura mais atenta e menos preconcebida dos textos
Marx e do budismo Zen.

20 Marx e Engels, Germ an 1 deology, Zoe. cit., págs. 198-99.


[Os grifos são parcia lment e meus - E. F.J
A CONTINUIDADE DO PENSAMENTO DE MARX 79

Sintetizando êste tópic? da ,suposta diferença entre O jovem


Marx e o Marx amadurecido: e verdade que Marx ( como En-
gels), no decurso da vi~a, alterou algumas de suas idéias e con-
cepções. , ~ornou-se ~ais . adverso ao_ emprêgo d~ têrmos dema-
siado proximos do idealismo hegeliano; sua lmguagem ficou
menos entusiástica e escatológica; provàvelmente, também, fi-
cou mais desencorajado nos últimos anos da vida do que o es-
tava em 1844. Todavia, a despeito de certas mudanças nos con-
ceitos, no estado de ânimo, na linguagem, o cerne da filosofia
expost~ ·pelo jovem ~arx jama~s .se modificou,, .e é impo~sí~el
compreender seu conceito de socialismo e sua cntICa do cap1tal1s-
mo como formulada ulteriormente, salvo se se tomar como ba-
se 'o conceito do homem por êle apresentado em seus primeiros
estudos.
CAPITU LO VIII

Marx, o Homem

A INCOMPREE NSÃO e a interpretação errônea das obras de


Marx só encontram paralelo na interpretação desvirtuada de sua
personalidade. Exatamente como no caso de suas teorias, a dis-
torção de sua personalidade também segue uma chapa repetida
por jornalistas, políticos, e até mesmo cientistas sociais que tinham
obrigação de estar bem informados. Ele é descrito como um
homem "solitário", isol?,do dos semelhantes, agressivo, arrogante
e autoritário. Quem quer que tenha o mais ligeiro conhecimen-
to da vida de Marx terá grande dificuldade para aceitar isso, pois
achará difícil reconciliar essa afirmação com a imagem de Marx
como espôso, como pai e como amigo.
Quiçá tenha havido poucos matrimônios conhecidos pelo mun-
do que f ôssem tão plenos de realização humana com o foi o de
Karl Marx e Jenny Marx. Ele, filho de um advogado judeu,
apaixonou-se, ainda adolescente, por Jenny von Westphalen, filha
de uma família feudal prussiana e descendente de uma das mais
antigas famílias escocesas. Casaram-se, quando êle estava com
24 anos de idade, e sobreviveu a ela pouco mais de um ano. Foi
um casal em que, malgrado as diferenças de antecedente~, mal-
grado uma vida de contínua pobreza e doenças físicas, houve amor
constante e felicidade mútua, somente possíveis no caso de duas
pessoas com extraordinária capacidade de amar, e profundamente
enamoradas uma da outra.
A filha mais môça dêles, Eleanor, descreveu a relação entre os
pais em uma carta, referindo-se a um dia pouco antes da morte
da mãe e mais de um ano antes da morte do pai. "Moor" [ apelido
de Marx], escreve ela, ºmelhorou novamente de sua enfermidade.
Jamais esquecerei a manhã em que se sentiu bastante forte para
M.ARX, O HOMEM 81

entrar no quarto da mamãe. Quando êles se reuniam, ficavam


jovens de nôvo - ela, a mocinha, e êle o rapaz apaixonado, am-
bos no limiar da vida, não uni velho cheio de doenças e uma
velha moribunda, despedindo-se um do outro definitivamente." 1
As relações entre Marx e os filhos eram tão destituídas de
qualquer tonalidade de dominação, e cheias de amor produtivó,
quanto as com sua espôsa. Basta ler-se as descrições feitas
por sua filha Eleanor dos passeios dêle com os filhos, quando lhes
narrava contos, medidos em quilômetros e não em capítulos. "Con-
te-nos um quilômetro", gritavam as meninas. "Ele lia, na ínte-
gra, Homero, os Niebelungenlied, Gudrum, Dom Quixote, as Mil
e Uma Noites etc. Quanto a Shakespeare, era a Bíblia de nossa
casa, e raras vêzes não estava em nossas mãos ou em nossos lá-
bios. Aos seis anos, eu já sabia de cor muitas cenas inteiras de
Shakespeare." 2
A amizade dêle e Friedrich Engels talvez seja ainda mais
rara do que sua vida conjugal e suas relações com os filhos. O
próprio Engels era um homem de extraordinárias qualidades hu-
manas e intelectuais. Sempre reconheceu e admirou o talento
superior de Marx. Dedicou a vida à obra de Marx, e sem em-
bargo jamais relutou em dar sua própria contribuição, nem tam-
pouco a subestimou. Nunca houve qualquer atrito na relação
entre êsses dois homens, nem competição, mas só um sentimento
de camaradagem enraizado em uma estima tão grande entre os
dois como não será possível encontrar maior entre dois homens.
Marx era o homem produtivo, não-alienado e independente
que suas obras espelhavam como o homem de 1.1ma nova socie-
dade. Ligado produtivamente ao mundo inteiro, às pessoas e às
idéias, êle era o que pensava. Um homem que lia todos os anos
11squilo e Shakespeare na língua original, e que durante a época
mais triste de sua vida, a da doença da espôsa, mergulhou na
Matemática e estudou Cálculo, Marx era um humanista de ponta
a _po~ta. Nada o maravilhava mais do que o homem, e expri-
miu esse sentimento em uma citação freqüentemente repetida de
He~el: "Ainda o pensamento criminoso de um malfeitor possui
mais grandeza e nobreza do que os prodígios dos céus." Suas res-

bli h~ Reminiscences of Marx and Engels, Foreign Languages Pu-


s Ing House, Moscou, pág. 127.
2
8
Reminiscences of Marx and Engels, op. cit., pág. 252.
82 CONCEITO MARXISTA DO HOME M

postas ao questionário preparad_o _para êle por sua filha ~a~~ re-
velam muito do home m: sua 1de1a de desgraça era a suJetçao; o
vício que mais detestava er_a o servilismo,, e suas n_1;áxi~~s favo-
ritas eram "Nad a do que e huma no me e estran ho e Deve-se
duvidar de tudo" .
Por que supõem ter sido êsse home m arroga nte, solitário,
autoritário? À parte a intenção de difam ar, houve diversas ra-
zões para êsse êrro de interpretação. Antes de mais nada, Marx
( como Engel s) tinha um estilo sarcástico, especialmente ao es-
crever, e era um lutador dotado de grand e agressividade. Mas, o
que é mais importante, era um home m totalmente incapaz de
tolerar a tapeação e a impostura, e absolutamente sério acêrca
dos problemas da existência humana. Era incapaz de aceitar,
polidamente e com um sorriso nos lábios, racionalizações deso-
nestas ou afirmações fictícias sôbre assuntos importantes. Era
incapaz de qualquer espécie de insinceridade, quer no tocante
a relações pessoais, quer a idéias. Como a maioria das pessoas
prefere pensar em ficções a pensar em realidades, e engan ar a
si mesma e as outras sôbre os fatos subjacentes à vida indivi-
dual e social, tinha, com efeito, de encarar Marx como uma
pessoa arrogante ou fria, mas êsse juízo depõe mais contra elas
do que contra Marx.
Só e quando o mundo retornar à tradição do humanismo
e superar a deterioração da cultura ocidental, tanto em sua
forma soviética quanto na· capitalista, êle verá, deveras, que Marx
não foi nem um fanático nem um oportunista - mas representou
o florescimento da humanidade ocidental, foi um home m com
um sentimento intransigente da verdade, que penetrava na pró-
pria essência da realidade, e nunca embaído pela superfície ilu-
sória; foi um homem de coragem e integridade inextinguível,
profun damen te preocupado com o homem e o futuro dêste; al-
truísta, pouco vaidoso e sem ambição de poder ; sempre animado
e estimulante, instilando vida em tudo quanto tocava, êle repre-
sentou a tradição ocidental em seus melhores aspectos: sua fé na
razão e no progresso do homem. :8le representou, de fato, o
próprio conceito do homem que se achava no centro de seu pen-
samento. O home m que é muito e tem pouco; o home m que
é rico por precisar de seus semelhantes.
MANUSCRITOS
ECONÔMICOS E FILOSÓFICOS

KARL MARX

Traduzidos [para o inglês] por


T. B. BOTTOMORE
NOTA DO TRADUTOR

Üs Manuscritos Econômicos e Filosóficos compreendem qua-


tro manuscritos que Marx escreveu no período de abril a agôsto
de 1844. Os manuscritos estão atualmente sob a guarda do Ins-
tituto Internacional de História Social, em .Amesterdã. Foram
pela primeira vez publicados, numa versão integral e cuidadosa,
preparada por D. Riazanov, pelo Instituto Marx-Engels ( agora
Instituto de Marxismo-Leninismo) de Moscou em Karl Marx,
Friedrich Engels: Historische-Kritische Gesamtausgabe, Marx-En-
gels, Verlag, Berlim, 1932, Abt. I, Band III. Essa edição, na
qual se buscou a presente tradução, será doravante referida como
MEGA.
O primeiro manuscrito compreende 18 fôlhas (36 páginas).
Cada página está dividida por duas linhas verticais em três co-
lunas, respectivamente, "Salários", "Lucros do Capital" e "Arren-
damento da Terra". O texto sob êsses três títulos constitui as
três primeiras seções do manuscrito publicado. Da página XXII
do manuscrito em diante, contudo, Marx começa a escrever sô-
bre assunto diferente, ignorando a divisão das páginas em três
colunas: a esta seção foi dado o título "Trabalho Alienado" pelos
organizadores da MEGA. O manuscrito interrompe-se na pági-
na XXVII.
O segundo manuscrito compreende duas f ôlhas ( 4 páginas).
O texto principia no meio de uma frase, e trata-se, evidentemente,
da parte final de um manuscrito extraviado.
. O ~erceiro manuscrito compreende 34 f ôlhas ( 68 páginas). A
P~gmaçao de Marx é defeituosa; a página XI é seguida pela pá-
g~na XXIII, e a XXIV pela XXVI. As últimas vinte e três pá-
ginas estão em branco. O manuscrito inicia-se com duas seções
curtas referentes a um manuscrito perdido, e que os editôres da
~GA den~minaram "Propriedade Privada e Trabalho" e "Pro-
prtedade Prtvada e Comunismo", respectivamente. Vem, a se-
86 CONCEITO MARXISTA DO HOME
M

guir, um a crítica da filosofia de


Hegel, que os organizadores
colocaram no fim da versão publica
da, seguindo as indicações da-
das no "Pr efá cio "; e o próprio "Pr
efácio" ( começando na página
XX XI X) , destinado claramente a ser
vir de introdução a todo o
trabalho. Na s páginas XL I-X LII
, encontra-se out ra seção inde-
pendente, a que os organizadores
intitularam "D inh eir o".
O quarto manuscrito, compreendend
o duas f ôlhas ( 4 pági-
nas ), foi encontrado costurado ao
terceiro. O texto é um resumo
do capítulo final, "Conhecimento
Absoluto", da Fenomenologia
do Espírito, de Hegel, e foi publica
do pelos organizadores da
MEGA, no Apêndice ao Abt. I, Ban
d III. Gra nde par te do texto
é dedicada à crítica da filosofia de
Hegel do terceiro manuscrito.
Cada manuscrito é paginado separa
damente em números ro-
manos por Marx, números êsses ind
icados na tradução.
Minhas notas de pé de página à
tradução são indicadas por
Nota do T.; em muitos casos elas util
izam as referências e notas
críticas apensas à edição MEGA.
Esses manuscritos, como outros trab
alhos primitivos de Marx,
empregam muitos têrmos tomados de
empréstimo a Hegel e Feuer-
bach. Em particular, a seção do
terceiro manuscrito dedicada à
crítica da filosofia de Hegel empre
ga muitos têrmos a que He gel
deu um sentido técnico. Ao rea
lizar minha tradução, consultei
as traduções clássicas das obras de
Hegel, e consegui muito auxílio
de um estudo recente de Hegel feit
o por J. N. Findlay, Hegel: A
Re-Examinati.on (Londres: Allen & Un
win, 195 8). Basta men-
cionar aqui que traduzi Wesen por
vários têrmos - "se r", "essên-
cia", "vida" - conforme o contex
to; que traduzi aufheben, seja
como "revogar", "abolir" (no sentido
negativo), ou como "su per ar"
( sentido pos itiv o), ou "transcender"
; e que traduzi tan to Entaeus-
serung quanto Entfremdung por "ali
enação" ( ou, às vêzes, por
"al hea me nto "), visto como Marx
( como He gel ) não indica um a
distinção sistemática entre ambos.
Ma rx distingue ain da entre
Entausserung, Entfremdung (aliena
ção) e Verge genstandliche
( objetificação).
Um a not a final: o destaque dad
o por Ma rx a certas pas-
sagens em seus próprios manuscrit
os é aqui ressaltado pelo em-
prêgo do itálico.
PREFACIO AOS "MANUSCRITOS ECONôMICOS
E FILOSÓFICOS"

Deutsch-Franzõsischet·, Jahrbiicher, uma crí-


1
] Á ANUNCIEI, no
crítica à fi-
tica do Direito e da Ciência Política sob a forma de
o trabalho
losofia hegeliana do Direito. Entretanto, ao preparar
iente uma
a ser publicado, ficou evidente que seria assaz inconven
culativa com
combinação da crítica dirigida somente à teoria espe
vimento da
a crítica de vários assuntos; isso tolheria o desenvol
panhada.
argumentação e tornaria esta mais difícil de ser acom
sidade de
Ademais, eu só poderia comprimir tal riqueza e diver
aforismático,
assuntos em um único livro se escrevesse em estilo
de sistemati-
e uma apresentação aforismática daria a impressão
a do Di-
zação arbitrária. Por conseguinte, publicarei minha crític
rados, e, por
reito, Moral, Política etc., em diversos opúsculos sepa
unto inter-re-
fim, tentarei, em uma obra à parte, apresentar o conj
s e apresen-
lacionado, mostrando as relações entre as várias parte
material. ~
tando uma crítica do tratamento especulativo dêsse
omia Polí-
por isso que, no presente trabalho, as relações da Econ
são apenas
tica com o Estado, o Direito, a Moral, a vida civil etc.,
Política trata
abordadas na medida em que a própria Economia
dêsses assuntos.
a Eco-
Não é necessário assegurar ao leitor familiarizado com
uma análise
nomia Política que minhas conclusões são o fruto de
estudo crítico
inteiramente empírica, baseadas em um meticuloso
da Economia Política.
~ claro que além de aos socialistas franceses
e inglêses tam-
as obras ale-
bém recorri a trabalhos de socialistas alemães. Mas

K. Marx. e
1 Deut sch-F ranzo sisch er Jahrb üche r, organizado por fevereiro
1844) . Só foi publi cado um núme ro, em
A. Rudg e ( Paris
k der Hegelschen
de 1844. Mar ; refere-se a seu ensaio "Zur Kriti
T.
Rechtsphilosophie", às págs. 71 e seg. - Nota do
88. CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

mãs orrgmais e importantes a êste respeito - fora as de Weitling


- limitam-se aos ensaios publicados por Hess no Einundzwanzig
Bogen, 2 e ao de Engels, "Umrisse zur Kritik der Nationalõko-
nomie" no Deutsch-Franzosischer /ahrbücher. Nesta última pu-
blicação, eu mesmo indiquei, de forma bastante genérica, os ele-
mentos básicos do presente trabalho.
A crítica positiva, humanista e naturalista tem início com
Feuerbach. Os trabalhos menos espetaculares de Feuerbach são
os mais certos, profundos, extensos e duradouros em sua influên-
cia; êles são os únicos, desde a Fenomenologia e a Lógica de
Hegel, que contêm uma verdadeira revolução teórica.
Ao contrário dos teólogos cdticos de nossa época, considerei
o capítulo final do presente trabalho, uma exposição crítica da dia-
lética hegeliana e de sua filosofia geral, como absolutamente es-
sencial, pois isso ainda não foi feito. Esta falta de meticulosidade
não é acidental, pois o teólogo crítico continua a ser um teólogo.
:ele tem de partir, seja de certos pressupostos da filosofia aceita
como oficial ou, então, se, no decurso da crítica e como resul-
tado de descobertas de outras pessoas, surgirem-lhe na men-
te . dúvidas acêrca dos pressupostos filosóficos, abandona-os de
forma covarde e sem justificativa, abstrai a partir dêles, e demons-
tra ao mesmo tempo dependência servil face a elas e seu ressenti-
mento a essa dependência de maneira negativa, inconsciente e so-
fística.
Olhada mais de perto, a crítica teológica, que foi no co-
mêço do movimento um fator genu1namente progressista, é vista
como sendo, em última análise, nada mais que a culminação e
ccnseqüência do antigo transcendentalismo filosófico, e espe-
cialmente hegeliano, deformado numa caricatura teológica. Des-
creverei alhures, com maior minúcia, êsse ato interessante de jus-
tiça histórica, essa nêmese que agora destina a teologia, sempre
o setor infectado da filosofia, a espelhar em si mesma dissolu-
ção negativa da filosofia, isto é, o processo de sua decadência.

2Einundzwanzig Bogen aus der Echweiz, organizado por Georg


Herwegh. Primeira parte, Zurique e Winterthur, 1843. Marx refe-
re-se aos artigos de Hess, "Sozialismus und Kommunismus", às págs.
74 e seg.; "Die Eine und ganze Freiheit", às págs. 92 e seg.; e
"Philosophie der Tat", às págs. 309 e seg. - Nota do T.
PRIMEIRO MANUSCRITO

Trabalho Alienado

(XXII) Partimos dos pressupostos da Economia Política.


Aceitamos sua terminologia e suas leis. Aceitamos como pre-
missas a propriedade privada, a separação do trabalho, capital
e terra, assim como também de salários, lucro e arrendamento,
a divisão do trabalho, a competição, o conceito de valor de tro-
ca etc. Com a própria Economia Política, usando suas próprias
palavras, demonstramos que o trabalhador afunda até um nível
de mercadoria, e uma mercadoria das mais deploráveis; que a
miséria do trabalhador aumenta com o poder e D volume de sua
produção; que o resultado forçoso da competição é o acúmulo
de capital em poucas mãos, e assim uma restauração do mono-
pólio da forma mais terrível; e, por fim, que a distinção entre
capitalista e proprietário de terras, e entre trabalhador agrícola
e operário, tem de desaparecer, dividindo-se o conjunto da so-
ciedade em duas classes de possuidores de propriedades e traba-
lhadores sem propriedades.
A Economia Política parte do fato da propriedade privada;
não o explica. Ela concebe o processo material da propriedade
privada, como ocorre na realidade, por meio de fórmulas abstra-
tas e gerais que, então, servem como leis. Ela não compreende
essas leis; isto é, ela não mostra como surgem da natureza da
propriedade privada. A Economia Política não dá nenhuma ex-
plicação da base para a distinção entre trabalho e capital, entre
capital e terra. Quando, por exemplo, a relação entre saJários
e lucros é definida, isso é explicado em função dos interêsses dos
capi~~istas; por outras palavras, o que devia ~er explicado é
admitido. Anàlogamente, a competição é refenda a todos os
pont?s e explicada em função das condições externas. A Eco•
nomia Política nada nos diz a respeito da medida em que essas
90 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

condições externas, e aparentemente acidentais, são simplesmente


a expressão de um desenvolvimento necessário. Vimos como a
própria troca se afigura um fato acidental. As únicas fôrças pro-
pu.lsoras reconhecidas pela Economia Política são a avareza e a
guerra entre os gananciosos, a competição.
Justamente por deixar a Economia Política àe entender as
interconexões dentro dêsse movimento, foi possível opor a dou-
trina de competição à das guildas, a doutrina de divisão da pro-
priedade territorial à dos latifúndios; pois a competição, liber-
dade de ocupação e divisão da propried ade territorial foram
concebidas tão-somente como conseqüências fortuitas produzidas
pela vontade e pela fôrça, em vez de conseqüências necessárias,
inevitáveis e naturais do monopólio do sistema de guildas e da
propried ade feudal.
Por isso, temos agora de aprender a ligação real entre todo
êsse sistema de alienação - propriedade privada, ganância, se-
paração entre trabalho, capital e terra, troca e competição, valor e
desvaloração do homem, monopólio e competição - e o sistema
do dinheir.o.
Não iniciemos nossa exposição, como o faz o economista, por
uma legendária situação primitiva. Uma tal situação arcaica
nada explica; simplesmente afasta a pergunta para uma distân-
cia turva e enevoada. Ela afirma como fato ou acontecimento
o que deveria deduzir, ou seja, a relação necessária entre duas
coisas; por exemplo, entre a divisão do trabalho e a troca. Da
mesma maneira, a teologia explica a origem do mal pela queda
do homeµi: isto é, ela assegura como fato histórico aquilo que
deveria e1ucidar.
Partiremos de um fato econômico contemporâneo. O tra-
balhador fica mais pobre à medida que produz mais riqueza e
sua produção cresce em fôrça e extensão . O trabalhador torna-se
uma mercadoria ainda mais barata à medida que cria mais bens.
A desvalorização do mundo humano aumenta na razão direta do
aumento de valor do mundo das coisas. O trabalho não cria
apenas bens; êle também produz a si mesmo . e o trabalhador
como uma mercadoria, e, deveras, na mesma proporção em que
produz bens.
Esse fato simplesmente subentende que O objeto produzido
p~lo trabalho, o seu produto , agora se lhe opõe como um ser
a/renado, como uma fôrça independente do produtor. O produ-
TRABALHO ALIENADO 91

to do trabalho é trabalho incorporado em um objeto e convertido


em coisa física; êsse produto é uma objetificação do trabalho. A
execução é simultâneamente sua objetificação. A execução do tra-
balho aparece na esfera da Economia Política como uma per-
versão do trabalhador, a objetificação como uma perda e uma
servidão ante o objeto, e a apropriação como alienafão.
A execução do trabalho aparece tanto como uma perversão
que o trabalhador se perverte até o ponto de passar f orne. A
objetificação aparece tanto como uma perda do objeto que o tra-
balhador é despojado das coisas mais essenciais não só da vida,
mas também do trabalho. O próprio trabalho transforma-se em
um objeto que êle só pode adquirir com tremendo esfôrço e com
interrupções imprevisíveis. A apropriação do objeto aparece co-
mo alienação a tal ponto que quanto mais objetos o trabalhador
produz tanto menos pode possuir e tanto mais fica dominado
pelo seu produto, o capital.
Tôdas essas conseqüências decorrem do fato de o trabalha-
dor ser relacionado com o produto de seu trabalho como com
um objeto alienado. Pois está claro que, baseado nesta premissa,
quanto mais o trabalhador se desgasta no trabalho tanto mais
poderoso se torna o mundo de objetos por êle criado em face
dêle mesmo, tanto mais pobre se torna a sua vida interior, e
tanto menor êle se pertence a si próprio. Quanto mais de si
mesmo o homem -atribui a Deus, tanto menos lhe resta. O tra-
balhador põe a sua vida no objeto, e sua vida, então, não mais
lhe pertence, porém ao objeto. Quanto maior fôr sua atividade,
portanto, tanto menos êle possuirá. O que está incorporado ao
produto de seu trabalho não mais é dêle mesmo. Quanto maior
fôr o produto de seu trabalho, por conseguinte, tanto mais êle
minguará. A alienação do trabalhador em seu produto não sig-
nifica apenas que o trabalho dêle se converte em objeto, assu-
mindo uma existência externa, mas ainda que existe indepen-
dentemente, fora dêle mesmo, e a êle estranho, e que se lhe
opõe como uma fôrça autônoma. A vida que êle deu ao objeto
volta-se contra êle como uma fôrça estranha e hostil.
(XXIII) Examinemos agora, mais de perto, o fenômeno da
objetificação, a produção do trabalhador e a alienação e perda
do objeto por êle produzido, nisso implícitas. O trabalha~or
nada pode criar sem a natu.reza, sem o mundo exterior sensorial..
~ste último é o material em que se concretiza o trabal~o, em que
este atua, com o qual e por meio do qual êle produz c01sas.
92 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

Todavia, assim como a natureza proporciona os meios de


existência do trabalho, na acepção de êste não poder vrver sem
objetivos aos quais possa aplicar-se, igualmente proporciona os
meios de existência em sentido mais restrito, ou seja, os meios de
subsistência física para o próprio trabalhador. Assim, quanto
mais o trabalhador se apropria do mundo externo da natureza
sensorial por seu trabalho, tanto mais se despoja de meios de
existência, sob dois aspectos: primeiro, o mundo exterior sensorial
se torna cada vez menos um objeto pertencente ao trabalho dêle
ou um meio de existência de seu trabalho; segundo, êle se to-
na cada vez menos um meio de existência na acepção direta, um
meio para a subsistência física do trabalhador.
Sob dois aspectos, portanto, o trabalhador se converte
em escravo do objeto: primeiro, por receber um objeto de traba-
lho, isto é, receber trabalho, e em segundo lugar por receber meios
de subsistência. Assim, o objeto o habilita a existir primeiro co-
mo trabalhador e depois como sujeito físico. O apogeu dessa es-
cravização é êle só poder manter-se como sujeito física na me-
dida em que um é trabalhador, e de êle só como sujeito físico
poder ser um trabalhador.
( A alienação do ·trabalhador em seu objeto é expressa da
maneira seguinte, nas leis da Economia Política: quanto mais o
trabalhador produz, tanto menos tem para consumir; quanto
mais valor êle cria, tanto menos valioso se torna; quanto mais
aperfeiçoado o seu produto, tanto mais grosseiro e informe o tra-
balhador; quanto mais civilizado o produto, tão menos · bárbaro
o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho, tão mais frá-
gil o trabalhador; quanto mais inteligência revela o trabalho, tan-
to mais o trabalhador decai em inteligência e se torna um escra-
vo da natureza.)
A Economia Política oculta a alienação na natureza do tra-
balho por não examinar a relação direta entre o trabalhador (tra-
balho) e a produção. Por certo, o trabalho humano produz
maravilhas para os ricos, mas produz privação para o traba-
lhador. .Ele produz palácios, porém choupanas é o que toca
ao trabalhador. .Ele produz beleza, porém para o trabalhador
só fealdade. .Ele substitui o trabalho humano por máquinas,
mas atira alguns dos trabalhadores a um gênero bárbaro de tra-
balho e converte outros em máquinas. .Ele produz inteligência,
porém também estupidez e cretinice para os trabalhadores.
TRABALHO ALIENADO 93

A relação direta do trabalho com seus produtos é a entre o


trabalhador e os objetos de sua produção; A relação dos possui-
dores de propriedade com os objetos da produção e com a pró-
pria produção é meramente uma conseqüência da primeira refa-
ção e a confirma. Apreciaremos adiante êsse segundo aspecto.
Portanto, quando perguntamos qual é a relação importan-
te do trabalho, estamos interessados na relação do trabalhador
com a produção.
Até aqui consideramos a alienação do trabalhador somente
sob um aspecto, qual seja o de sua relafáo com os produtos de
seu trabalho. Não obstante, a alienação aparece não só como
resultado, mas também como processo de produção, dentro da
própria atividade produtiva. Como poderia o trabalhador fi-
car numa relação alienada com o produto de sua atividade se
não se alienasse a si mesmo no próprio ato da produção? O
produto é, de fato, apenas o résumé da atividade, da produção.
Conseqüentemente, se o produto do trabalho é alienação, a pró-
pria produção deve ser alienação ativa - a alienação da ativi-
dade da alienação. A alienação do objeto do trabalho simples-
mente resume a alienação da própria atividade do trabalho.
O que constitui a alienação do trabalho? Primeiramente,
ser o trabalho externo ao trabalhador, não fazer parte de sua na-
tureza, e, por conseguinte, êle não se realizar em seu trabalho
mas negar a si mesmo, ter um sentimento de sofrimento em
vez de bem-estar, não desenvolver livremente suas energias men-
tais e físicas mas ficar fisicamente exausto e mentalmente de-
primido. O trabalhador, portanto, só se sente à vontade em seu
tempo de folga, enquanto no trabalho se sente contrafeito. Seu
trabalho não é voluntário, porém impôsto, é trabalho forfado .
.Ele não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio
para satisfazer outras necessidades. Seu caráter alienado é cla-
ramente atestado pelo fato de, logo que não haja compulsão
física ou outra qualquer, ser evitado como uma praga. O tra-
balho exteriorizado, trabalho em que o homem se aliena a si
mesmo, é um trabalho de sacrifício próprio, de mortificação. Por
fim, o caráter exteriorizado do trabalho para o trabalhador é de-
monstrado por não ser o trabalho dêle mesmo mas trabalho pa-
r~ outrem, por no trabalho êle não se pertencer a si mesmo mas
sun a outra pessoa.
Tal como, na religião, a atividade espontânea da fantasia
do cérebro e do coração humanos reage independentemente co-
94 CONCEI TO MARXISTA DO HOMEM

mo uma atividad e alheia de deuses ou demôni os sôbre o indi-


víduo, assim também a atividade do trabalha dor não é sua pró-
pria atividade espontânea. :S atividad e de outrem e uma perda
de sua própria esponta neidade .
Chegamos à conclusão de que o homem ( o trabalha dor) só
se sente livreme nte ativo em suas funções animais - comer,
beber e procriar, ou no máximo também em sua residência e
no seu próprio embelezamento - , enquant o em suas funções hu-
manas se reduz a um animal. O animal se torna humano e o
homem se torna animal.
Comer, beber e procriar são, evidentemente, também fun-
ções genuina mente humanas. Mas, consideradas abstratamente,
à parte do ambiente de outras atividades humana s, e convertidas
em fins definitivos e exclusivos, são funções animais.
Consideremos, agora, o ato de alienação da atividade hu-
mana prática, o trabalho, sob dois aspectos: 1) a relação do
trabalhador com o prod11to do trabalho como um objeto estra-
nho que o domina. Essa relação é, ao mesmo tempo, a relação
com o mundo exterior sensorial, com os objetos naturais como
um mundo estranho e hostil; 2) a relação do trabalho como
o ato de produção dentro do trabalho . Essa é a relação do tra-
balhador com sua própria atividade humana como algo estranho
e não pertencente a êle mesmo, atividade como sofrime nto (pas-
sividade ), vigor como impotência, criação como emasculação, a
energia física e mental pessoal do trabalhador, sua vida pessoal
(pois o que é a vida senão atividad e?) como uma atividade vol-
tada contra êle mesmo, indepen dente dêle e não pertence nte a
êJe. Isso é auto-alienação, ao contrário da acima mencion ada alie-
nação do objeto.
(X.XIV ) Temos, agora, de inferir uma terceira característica
do trabalho alienado, partindo das duas já vistas.
O homem é um ente-espécie 1 não apenas no ~entido de que
êle faz da comunidade ( sua própria, assim como as de outras
coisas) seu objeto, tanto prática quanto teoricamente, mas tam-

1
A expressão ente-espécie é tomada de Das Wesen des Chris-
tentums ( "A ~ss~nci~ do Cristian ismo"), de Feuerba ch. tste O em-
pregou Pª!ª ~1stmgu1! a consciên cia do homem da tlos animais. O
homem nao, .e conscien
" te apenas de si mesmo como um 1·no·lVl'd uo
mas d a espec1e ou essenc1a humana ". - Nota dp T.
A •
'
TRABALHO ALIENADO 95

bém ( e isso é simplesmente outra expressão da mesma coisa)


00
sentido de tratar-se a si mesmo como a espécie vivente, atual,
como um ser univenal conseqüentemente livre.
A vida da espécie, para o homem assim como para os ani-
mais, encontra sua base física no fato de o homem ( como os
animais) viver da natureza inorgânica, e como o homem é mais
universal que um animal, assim também o âmbito d-a natureza
inorgânica de que êle vive é mais universal. Vegetais, animais,
minerais, ar, luz etc., constituem, sob o ponto de vista teórico,
uma parte da consciência humana como objetos da ciência na-
tural e da arte; êles são a natureza inorgânica espiritual do ho-
mem, seu meio intelectual de vida, que êle deve primeirame nte
preparar para seu prazer e perpetuação. Assim também, sob o pon-
to de vista prático, formam parte da vida e atividade humanas.
Na prática, o homem vive apenas dêsses produtos naturais, sob a
forma de alimento, aquecimento, roupa, abrigo etc. A univer-
salidade do homem aparece, na prática, na universalidade que
faz da natureza inteira o seu corpo orgânico: 1) como meio
direto de vida, e, igualmente, 2) como o objeto material e o
instrumento de sua atividade vital. A natureza é o corpo inor-
gânico do homem; quer isso dizer a natureza excluindo o pró-
prio corpo humano. Dizer que o homem vive da natureza signi-
fica que a natureza é o corpo dêle, com o qual deve man-
ter-se em contínuo intercâmbio a fim de não morrer. A afirma-
ção de que a vida físicà e mental do homem e a natureza são
interdependentes simplesmente significa ser a natureza interde-
pendente consigo mesma, pois o homem é parte dela.
Tal como o trabalho alienado: 1) aliena a natureza do ho-
mem e 2) aliena o homem de si mesmo, de sua própria fun-
ção ativa, de sua atividade vital, assim também o aliena da es-
pécie. .Ele transforma a vida da espécie em uma forma de
vida individual. Em primeiro lugar, êle aliena a vida da espé-
cie e a vida individual, e posteriormente transforma a segunda,
como uma abstração, em finalidade da primeira, também em
sua forma abstrata e alienada.
Pois, trabalho, atividade vital, vida produtiva agora apare-
cem ao homem apenas como meios para a satisfação de uma
necessidade, a de manter sua existência. A vida produtiva,
contudo, é vida da espécie. 11 vida criando vida. No tipo de
atividade vital reside todo o caráter de uma espécie, seu caráter
como espécie; e a atividade livre, consciente, é o caráter como
HO ME M
CO NC EIT O MARXISTA DO
96
pró pri a vida assemelha-se somen-
espécie dos sêres humanos. A
te a um meio de vida.
sua atividade vital. :Ble não
O animal identifica-se com
a ati vid ad e de si me smo. Ele é sua atividade. O
dis tin gu e sua
atividade vital um objeto de
homem, porém, faz de sua
uma atividade vital consciente.
vontade e consciência. Ele tem al êle esteja pJenamente iden-
a qu
Ela não é uma prescrição com ent e distingue o homem da
A ati vid ad e vit al con sci
tificado.
e vit al do s ani ma is: só po r esta razão êle é um ente-
atividad ser autoconsciente, isto é, sua
ie. Ou ant es, é ape nas um
-espéc é-
pri a vid a é um ob jet o pa ra êle, porque êle é um ~nte-esp
pró lho
ade é atividade livre. O traba
cie. Só po r isso, a sua ativid ho me m, sendo um ser auto-
ert e a relaçã o, po is o
alienado inv al, de seu .rer, unicamente
e, faz de sua ati vid ade vit
conscient
um meio pa ra sua existência.
con str uçã o prá tic a de um mu ndo objetivo, a manipulação
A
firmação do homem como um
da natureza inorgânica, é a con ser que trata a espécie como
um
ente-espécie, consciente, isto é, o um ser-espécie. Sem dú-
ser ou a si me sm o com
seu próprio . .Eles constroem ninhos e
os ani ma is tam bém pro du zem
vida, -
ita çõe s, com o no cas o das abe lhas, castores, formigas etc. Po
hab ou
, só pro du zem o est rita me nte indispensável a si mesmos -
rém ho
uma única direção, enquanto o
aos filhotes. Só produzem em de
Só produzem sob a compulsão
mem produz universalmente. do
so que o homem produz quan
necessidade física direta, ao pas z, na verdade, qu an do li-
ess ida de físi ca e só pro du
livre de nec os,
mais só produzem a si mesm
vre dessa necessidade. Os ani Os frutos da
tôda a natureza.
enquanto o homem reproduz s,
etamente a seus corpos físico
produção animal pertencem dir só
pa sso qu e o ho me m é liv re ante seu produto. Os animais
ao écie
nst roe m de acô rdo com os padrões e necessidades da esp
co r-
e pe rte nc em , en qu an to o ho me m sabe pro du zir de acô
a qu
os pa drõ es de tôd as as esp écies e como aplicar o padrão
do com
ao ob jet o. As sim , o ho me m constrói também em con-
adequado
.
formidade com as leis do belo
ido no mu nd o objetivo
.e justamente em seu trabalho a excoerc mo um ente-espécie. Essa
ho me m rea lm en te se co mp rov
que o
é sua vid a ati va co mo esp écie; graças a ela, a natureza
produção O objetivo do trabalho,
tra ba lho e rea lid ad e dê /e.
aparece como do ho me m, po is êle não
jet ific ~ç ão da vid a-e spé cie
po~tanto, é a ob na
apenas intelectualmente, como
ma1s se reproduz a s1 mesmo
TRABAL HO .ALIENADO 97

consciência, mas ativamente e em sentido real, e vê seu próprio re-


flexo em um mundo por êle construído. Por conseguinte, en-
quanto o trabalho alienado afasta o objeto da produção do ho-
mem, também afasta sua vida-espécie, sua objetividade real como
ente-espécie, e muda a superioridade sôbre os animais em uma
inferioridade, na medida em que seu corpo inorgânico, a natureza,
é afastado dêle.
Assim como o trabalho alienado transforma a atividade li-
vre e dirigida pelo próprio indivíduo em um meio, também
transforma a vida do homem como membro da espécie em um
meio de existência física.
A consciência que o homem tem de sua espécie é trans-
f armada por meio da alienação, de sorte que a vida-espécie tor-
na-~e apenas um meio para êle.
(3) Então, o trabalho alienado converte a vida-espécie do
homem, e também como propriedade mental da espécie dêle,
em um ente estranho e em um meio para sua existência indi-
vidual. :Ele aliena o homem de seu próprio corpo, a natureza
extrínseca, de sua vida mental e de sua vida humana.
( 4) Uma conseqüência direta da alienação do homem com
relação ao produto de seu trabalho, à sua atividade vital e à sua
vida-espécie é que o homem é alienado por outros homens.
Quando o homem se defront a consigo mesmo, também se está
defrontando com outros homens . O que é verdadeiro quanto à
relação do homem com seu trabalho, com o produto dêsse tra-
balho e consigo mesmo também o é quanto à sua relação com ou-
tros homens, com o trabalho dêles e com os objetos dêsse tra-
balho.
De maneira geral, a declaração de que o homem é alienado
em sua vida-espécie significa que cada homem é alienado por
outros, e cada um dos outros é igualmente alienado da vida hu-
mana.
A alienação humana, e acima de tudo a relação do homem
consigo próprio, é pela primeir a vez concretizada e manifestada
na relação entre cada homem e os demais homens. Assim, na
relação do trabalho alienado cada homem encara os demais de
acôrdo com os padrões e relações em que se encontra situado co-
mo trabalhador.
(XXV) Principiamos por um fato econômico, a alienação
do trabalhador e de sua produção. Exprimimos êsse fato em têr-
.,
98 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

mos conceptuais como trabalho alienado e, ao analisar o con-


ceito, limitamo-nos a analisar um fato econômico.
Examinemos, agora, mais além, como êsse conceito de tra-
balho alienado deve expressar-se e revelar-se na realidade. Se
o produto do trabalho me é estranho e enfrenta-me como uma
fôrça estranha, a quem pertence êle? Se minha própria atividade
não me pertence, mas é uma atividade alienada, forçada, a quem
ela pertence? A um ser outt"o que não eu. E que é êsse ser?
Os deuses? É evidente, nas mais primitivas etapas de produção
adiantada, por exemplo, construção de templos etc., no Egito,
India, México, e nos serviços prestados aos deuses, que o pro-
duto pertencia a êstes. Mas os deuses nunca eram por si sós os
donos do trabalho; tampouco o era a natureza. Que contradição
haveria se, quanto mais o homem subjugasse a natureza com seu
trabalho, e quanto mais as maravilhas dos deuses fôssem tornadas
supérfluas pelas da indústria, êle se abstivesse da sua ale-
gria em produzir e de sua fruição dos produtos por amor a
êsses podêres !
O ser estranho a quem pertencem o trabalho e o produto
dêste, a quem o trabalho é devotado, e para cuja fruição se des-
tina o produto do trabalho, só pode ser o próprio homem. Se
o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, mas o en-
frenta como uma fôrça estranha, isso só pode acontecer porque
pertence a um outt·o homem que não o trabalhador. Se sua
atividade é para êle um tormento, ela deve ser uma fonte de
satisfação e prazer para outro. Não os deuses nem a natureza,
mas só o próprio homem pode ser essa fôrça estranha acima dos
homens.
Considere-se a afirmação anterior segundo a qual a relação
do homem consigo mesmo se concretiza e objetiva primàriamente
através de sua relação com outros homens. Se, portanto, êle está
relacionado com o produto de seu trabalho, seu trabalho objeti-
ficado, como um objeto estra11ho hostil, poderoso e independente,
1

êle está relacionado de tal maneira que um outro homem, estra-


nho, hostil, poderoso e independente, é o dono de seu objeto. Se
êle está relacionado com sua atividade como com uma atividade
não-livre, então está relacionado com ela como uma atividade a
serviço e sob jugo, coerção e domínio de outro homem.
Tôda auto-alienação do homem, de si mesmo e da natureza,
aparece na relação que êle postula entre os outros homens, êle
próprio e a natureza. Assim, a auto-alienação religiosa é necessà-
TRABALHO ALIENADO 99
riamente exemplificada na relação entre leigos e sacerdotes, ou,
já que aqui se trata de uma questão do mundo espiritual, entre
leigos e um mediador. No mundo real da prática, essa auto-alie-
nação só pode ser expressa na relação real, prática, do homem
com seus semelhantes. O meio através do qual a alienação ocorre
é, por si mesmo, um meio prático. Graças ao trabalho alienado,
por conseguinte, o homem não só produz sua relação com o obje-
to e o processo da produção como com homens estranhos e hos-
tis; também produz a relação de outros homens com a produção
e o produto dêle, e a relação entre êle próprio e os demais ho-
mens. Tal como êle cria sua própria produção como uma per-
versão, uma punição, e seu próprio produto como uma perda,
como um produto que não lhe pertence, assim também cria a do-
minação do não-produtor sôbre a produção e os produtos desta. Ao
alienar sua própria atividade, êle outorga ao estranho uma ati-
vidade que não é dêle.
Apreciamos até aqui essa relação somente do lado do traba-
lhador, e posteriormente a apreciaremos também do lado do não-
-trabalhador.
Assim, graças ao trabalho alienado o trabalhador cria a re-
lação de outro homem que não trabalha e está de fora do pro-
cesso do trabalho, com o seu próprio trabalho. A relação do
trabalhador com o trabalho também provoca a relação do capita-
lista ( ou como quer que se denomine ao dono do trabalho) com
o trabalho. A propriedade privada é, portanto, o produto, o re-
sultado necessário, do trabalho aüenado, da relação externa do
trabalhador com a natureza e consigo mesmo.
A propriedade privada, pois, deriva-se da análise do conceito
de trabalho alienado: isto é, homem alienado, trabalho alienado,
vida alienada e homem tornado estranho.
Está claro que extraímos o conceito de trabalho alienado
( vida alienada) da Economia Política, partindo de uma análise
do movimento da propriedade privada. A análise dêste conceito,
porém, mostra que, embora a propriedade privada pareça ser a
base e causa do trabalho alienado, é antes uma conseqüência
dêle, tal e qual os deuses não são fundamentalmente a causa
mas o produto de confusões da razão humana. Numa etapa pos-
terior, entretanto, há uma influência reáproca.
, Só na etapa final do desenvolvimento da propriedade privada
e revelado o seu segrêdo, ou seja, que é, de um lado, o produto
100 CONCEI TO MARXISTA DO HOMEM

do trabalho alienado, e, do outro, o meio pelo qual o trabalho


é alienado, a realização dessa alienação.
Esta elucidação lança luz sôbre diversas controvérsias não so-
lucionadas:
( 1) A Economia Política inicia tomand o o trabalho como
a verdadeira alma da produção e, a seguir, nada lhe atribuí,
concedendo tudo à propried ade privada. Proudho n, defronta n-
do-se com essa contradição, decidiu em favor do trabalho con-
tra a propriedade privada. Percebemos, contudo, que essa apa-
rente contradição é a contradição do trabalho alienado consigo
mesmo e que a Economia Política meramente formulo u as leis
do trabalho alienado .
Observamos, também, por conseguinte, que salários e pro-
priedade privada são idênticos, porquan to os salários, como o
produto ou objeto do trabalho, o próprio trabalho remunerado,
são apenas conseqüência necessária da alienação do trabalho. No
sistema de salários, o trabalho aparece não como um fim por si,
mas como o servo dos salários. Mais tarde nos entenderemos
sôbre isso, limitando-nos, aqui, a desvendar algumas das conse-
qüências (XXVI ) .
Um aumento de salários impôsto ( desprezanào outras difi-
culdades, e especialmente a de que uma anomalia dessas só po-
deria ser mantida pela fôrça) não passaria de uma remrmeração
m elh.or de escravos, e não restauraria, seja para o trabalhador, seja
para o trabalho, seu significado e seu valor humanos.
Mesmo a igualdade das rendas que Proudho n exige só mo-
dificaria a relação do trabalhador de hoje em dia com seu tra-
balho em uma relação de todos os homens com o trabalho . A
sociedade seria concebida, então, como um capitalista abstrato.
( 2) Da relação do trabalho alienado com a propried ade
privada também decorre que a emancipação da sociedade da pro-
priedade privada, da servidão, assume a . forma política de eman-
cipação dos trabalhadores; não no sentido de só estar em jôgo
a emancipação dêstes, mas por essa emancipação abranger a de
tôda a humani dade. Pois tôda servidão humana está enredad a
na relação do trabalhador com a produção e todos os tipos de
servidão são somente modificações ou conseqüência dessa relação.
Cor:1~ descobrim?s o conceito de propriedade privada por
uma analtse do conceito de h'aba/ho alienad o, com o auxílio dês-
ses dois fatôres também podemos deduzir tôdas as categorias
TRABALH O ALIENADO
101

da Economia Política, e em cada uma, isto é, comércio, competi-


ção, capital, dinheiro, descobriremos s~ uma expressão particular
e ampliada dêsses elementos fundamentais.
Sem embargo, antes de considerar essa estrutura tentemos so-
lucionar dois problemas.
(1) Determinar a natureza geral da propriedade privada
como resultou do trabalho alienado, em sua relação com a pro-
priedade humana e social genuína.
(2) Tomamos como fato e analisamos a alienação do tra-
balho. Como sucede, podemos indagar, que o homem aliene
seu trabalho? Como essa alienação se alicerça na natureza do
desenvolvimento humano? Já fizemos muito para resolver o pro-
blema, visto têrmos transformado a questão refere·nte à origem
da propriedade pt'ivada em uma questão acêrca da relação entre
trabalho aüenado e o processo de desenvolvimento da humani-
dade. Pois, ao falar de propriedade privada, acredita-se estar li-
dando com algo externo à humanidade. Mas, ao falar de tra-
balho, lida-se diretamente com a própria humanidade. Esta no-
va formulação do problema já encerra sua solução.

ad (1) A naturez.,-1 geral da propriedade privada e sua re-


lação com a propriedade humana genuína.

Decompusemos o trabalho alienado em duas partes, que se


determinam mutuamente, ou melhor, constituem duas expressões
distintas de uma única relação. Apropriação aparece como alie-
nação e alienação como apropriação; alienação como aceitação
genuína na comunidade.
Consideramos um aspecto, o trabalho alienado, em seus re-
flexos no próprio trabalhador, isto é, a relação do trabalho alie-
nado consigo meJmo. E constatamos ser conseqüência necessá-
ria dessa relação a relação de propriedade do não-tt'abalhador com
o trabalhador e com o trabalho. A propriedade privada, como
expressão material sinótica do trabalho alienado, inclui ambas
a~ relações: a relação do trabalhador com o trabalho, e a relação
do não-trabalhador com o trabalhador e com o produto do tra-
baJho dês/e.
Já vimos que em relação ao trabalho, que se apropria da
natureza por intermédio de seu trabalho, a apropriação aparece
como alienação, a atividade própria como atividade para outrem
e de outrem, a vida como sacrifício da vida, e a produção do
102 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

objeto como perda dêste para uma fôrça estranha, um homem


estranho. Consideremos, agora, a relação dêsse homem estranho
com o trabalhador, com o trabalho e com o objeto do trabalho.
Deve ser observado, de início, que tudo que aparece ao
trabalhador como uma atividade de alienação aparece ao não-
-trabalhador como uma condição de alienação. Em segundo lu-
gar, a atitude prática real do trabalhador na produção e face ao
produto ( como estado de espírito) afigura-se ao não-trabalhador,
que com êle se defronta, como uma atitude teórica.
(XXVII) Em terceiro lugar, o não-trabalha.dor faz contra
o trabalhador tudo que êste faz contra si mesmo, mas não faz
contra si próprio o que faz contra o trabalhador.
Examinemos mais de perto essas três relações. 2

2 Neste ponto, o manuscrito interrompe-se assim, inacabado. -


Nota do T .
SEGUNDO MANUSCRITO

A Relação de Propriedade Privada

(XL) . . . f arma os juros de seu capital. O trabalhador é


a manifestação subjetiva do fato de o capital ser o homem in-
teiramente perdido para si mesmo, assim como o capital é a ma-
nifestação objetiva do fato de o trabalhador ser o homem perdido
para si mesmo. Contudo, o trabalhador tem o infortúnio de ser
um capital vivo, um capital com necessidades, que se deixa privar
de seus interêsses, e, conseqüentemente, de seu ganha-pão, a todo
momento em que não se acha trabalhando. Como capital, o
valor do trabalhador . varia conforme a oferta e a procura, e sua
existência física, sua vida, foi e é considerada a oferta de mer-
cadoria, similar a qualquer outra. O trabalhador produz ca-
pital e o capital produz o trabalhador. Assim, êle se produz a
si mesmo, e o homem como trabalhador, como mercadoria, é o
produto de todo êsse processo. O homem é simplesmel)te um
t1"abalhador, e como tal suas qualidades humanas só existem
em proveito do capital que lhe é estranho. Como trabalho e
capital são estranhos um ao outro, e por isso relacionados uni-
camente de maneira acidental e externa, êsse caráter de alienação
tem de aparecer na realidade. Logo que ocorre ao capital -
seja forçada, seja voluntàriamente - não existir mais para o
trabalhador, êle não mais existe para si mesmo: êle não tem
trabalho, nem salários, e, como existe exclusivamente como tra-
balhador e não como ser humano, pode perfeitamente deixar-se
enterrar, morrer à míngua etc. O trabalhador só é traba-
lhador quando existe como capital para si próprio, e só existe co-
mo capital quando há capital para êle. A existência do capital
é a existência dê/e J sua vida ' visto determinar o conteúdo • de sua
-
vida independentemente dêle. A Economia Política, p01s, nao
reconhece o trabalhador desocupado, o homem capaz de traba-
104 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

lhar, uma vez colocado fora dessa relação de trabalho. Vigaristas,


ladrões, mendigos, os desempregados, o trabalhador faminto, in-
di_gente e criminoso, são figuras não existentes para a Economia
Política, mas apenas para os olhos de outros: médicos, juízes,
coveiros, burocratas etc. Eles são figuras fantasmagóricas fora do
domínio da Economia. As necessidades do trabalhador, portanto,
reduzem-se à necessidade de mantê-lo durante o trabalho, -de mol-
de a não se extinguir a raça de trabalhadores. Conseqüente-
mente, os salários têm exatamente o mesmo significado da manu-
tenção de qualquer outro instrumento de produção e do consumo
de capital em geral, de modo que êsse possa reproduzir-se a si
mes~o com juros. E como o óleo aplicado a uma roda para
conservá-la rodando. Os salários, portanto, formam parte dos
custos do capital necessário e do capitalista, e não devem exceder
ao montante assim necessário. Por isso, era assaz lógico para os
donos de fábricas inglêsas, antes da Emenda de 1834, deduzir
dos salários as esmolas públicas recebidas pelos trabalhadores
através das taxas estabelecidas pela lei de assistência aos pobres,
tratando-a como parte integrante dos respectivos salários.
A produção não apenas produz o homem como uma mer-
cadoria, a mercadoria humana, o homem sob a forma de mer-
cadoria; de acôrdo com essa situação, produz o homem como um
ser mental e fisicamente desumanizado. - Imoralidade, abôrto,
escravidão de trabalhadores e capitalistas. - Seu produto é a
mercadoria autoconsciente e auto-atraente. . . a mercadoria huma-
na . . . Foi um grande passo dado à frente por Ricardo, Mill, e
outros, em contraposição a Smith e Say, declarar a existência de
sêres humanos - a maior ou menor produtividade humana da
mercadoria - como indiferente, ou deveras nociva. O verdadeiro
fim da produção não é o número de trabalhadores sustentados
por determinado capital, porém o volume de juros que êle adqui-
re, a pujança total anual. Foi, anàlogamente, um grande avanço
lógico da recente economia política inglêsa (XLI) que, embora
estabelecendo o trabalho como seu princípio exclusivo, distinguisse
claramente a relação inversa entre salários e juro~ do capital e
observasse que, via de regra, o capitalista só poderia aumentar
os ganhos pelo rebaixamento dos salários e vice-versa. A rela-
ção normal é considerada como sendo não a burla do consumidor,
mas a trapaça mútua de capitalista e trabalhador. A relação de
propriedade privada inclui em seu íntimo, em estado latente, a
relação de propriedade privada como trabalho, a relação de pro-
priedade privada como capital, e a influência recíproca de ambos.
A RELAÇÃO DE PROPRIEDADE PRIVADA 105

Por outro lado, há a produção da atividade humana como trabalho,


isto é, uma atividade estranha a si mesma, ao homem e à na-
tureza, e portanto estranha à consciência e à realização da vida
humana; existência abstrata do homem como um mero ho-
mem traba/,hador que, por conseguinte, diàriamente salta de
sua nulidade realizada para a nulidade absoluta, para a não-
-existência social, e por isso real. Por outro lado, há a
produção de objetos de trabalho humano sob a forma de
capital, onde tôda característica natural e social do obje-
to é dissolvida, onde a propriedade privada perdeu sua qua-
lidade natural e social ( e, portanto, perdeu totalmente seu dis-
farce político e social e não mais apat·ece vinculada às relações
humanas), e onde o mesmo capital permanece o mésmo nas mais
diversas circunstâncias naturais e sociais, sem relevância para o
conteúdo real dêle. Esta contradição, em seu auge, é forçosamen-
te o apogeu e o declínio da relação inteira.
:S, por conseguinte, outra grande conquista da recente Eco-
nomia Política inglêsa ter definido o arrendamento da terra como a
diferença entre os rendimentos da terra pior cultivada e da me-
lhor, ter pôsto abaixo as ilusões românticas do proprietário de
terras - sua suposta importância social e a identidade de seus
interêsses com os da sociedade geral ( uma opinião sustentada
por Adam Smith ainda após os fisiocratas) - e ter antecipado
e preparado o desenvolvimento da realidade que transformará o
proprietário de terras em um capitalista comum e prosaico e,
portanto, simplificará a contradição, levando-a a seu mais alto
ponto e preparando sua solução. A terra como terra, a renda da
terra como renda da terra perderam sua diferenciação de status,
convertendo-se em meros capital e juros, ou melhor, capital e ju-
ros que só entendem a linguagem do dinheiro.
A distinção entre capital e terra, lucro e renda de terra, e a
distinção entre salários, indústt-ia, agricultura, propriedade pri-
vada imóvel e móvel, é uma distinção histórica, nunca uma dis-
tinção inscrita na natureza das coisas. :a uma etapa fixa na for-
mação e desenvolvimento da antítese entre capital e trabalho.
Na indústria etc., ao contrário da propriedade territorial imó-
vel, só o modo de origem e a antítese face à agricultura graças à
qual a indústria se desenvolveu são manifestados. Como uma espé-
cie particular de trabalho, como uma distinçã0 mais significativC!,
importante e global, ela existe apenas na medida em que a in-
dústria ( vida urbana) se estabelece em oposição à propriedade
106 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

( vida feudal aristocrática) e traz ainda as características dessa


contradição em si mesmo sob a forma de monopólios, ofícios,
guildas, corporações etc. Em uma situação assim, o trabalho
ainda 'parece ter um significado s.ocial, ainda tem a significação
de genuína vida comunal, e ainda não progrediu para a neutra-
lidade face a seu conteúdo, para uma auto-suficiência completa,
isto é, para um estado de abstração de tôdas as outras existências
e, pois, para o capital liberado.
(XLII) Mas o de1envolvimento necessário do trabalho é a
indú1tria liberada, constituída somente para si mesma, e o capi-
tal liberado. O poder da indústria sôbre seu opositor é atestado
pelo surto da agricultura como uma indústria verdadeira, enquan-
to outrora a maior parte do trabalho era deixada ao próprio solo e
·ao e1cravo do solo, graças ao qual a terra se cultivava a si mes-
ma. Com a transformação do escravo em trabalhador livre, isto
é, em 411a/ariado, o próprio dono da terra é transformado em
um senhor da indústria, em um capitalista.
Essa transformação tem lugar a princípio por intermédio
do rendeiro. :este, porém, é o representante, o segrêdo revelado,
do dono da terra. Só por meio dêle o dono da terra tem exis-
tência econômica, como possuidor de propriedades; para o arren-
damento da terra só existe como resultado da competição en-
tre rendeiros. Assim, o dono da terra já Je converteu, na pes-
soa do rendeiro, em um capitalista comum. E isso tem de ser
realizado na realidade; o capitalista que dirige a agricultura ( o
rendeiro) tem de transformar-se em dono da terra, ou vice-versa.
O negócio indu1trial do rendeiro é o do proprietário, pois a exis-
tência daquele estabelece a dêste.
Recordando suas origens e ascendências contrastantes, o pro-
prietário de terras identifica no capital seu insubordinado, libe-
rado e enriquecido escravo de ontem, e vê-se como um capi-
taliJta ameaçado por êle. O capitalista vê o proprietário de
terras como o ocioso, cruel e egoísta senhor de ontem; êle sabe
que o prejudica como capitalista, e, sem embargo, que a indústria
é responsável por sua atual significação social, por suas posses e
prazeres. Ele encara o proprietário de terras como a antítese
da livre iniciativa e do capital livre, que independe de tôda li-
mitação natural. Esta oposição é exatamente acerba de ambos
os lados e cada um exprime a verdade acêrca do outro. Basta
ler os ataques contra a propriedade imobiliária feitos pelos repre-
sentantes da propriedade imóvel, e vice-versa, a fim de se obter
A RELAÇÃO DE PROPRIEDADE PRIVADA 107

quadro nítido de sua respectiva indignidade. O proprietário


~: terras ressalta a nobre linhagem de sua propriedade, reminis-
cências feudais, a poesia das recordações, seu caráter generoso,
sua importância pol~tica etc., e _quando fala em. têrmos econô-
micos afirma que somente a agricultura e produtiva. Ao mes-
mo tempo, descreve seu oponente como um indivíduo sonso, re-
gateador, impostor, mercenário, rebelde, impiedoso e desalmado,
um bandido extorsionista, mesquinho, servil, adulador, lisonjei-
ro e ressequido, sem honra, princípios, poesia ou qualquer outra
coisa, alienado da comunidade que êle vende livremente, e que
alimenta, nutre e acalenta a competição e, com esta, a pobreza, o
crime e a dissolução de todos os laços sociais. (Ver, entre outros,
0 fisiocrata Bergasse, que Camille Desmoulins fustiga em seu
diário Révolution de France et de Brabant; ver, também, Von _
Vincke, Lancizolle, Halle, Leo, Kosegarten 1 e Sismondi.)
A propriedade móvel, por sua parte, indica o milagre do de-
senvolvimento da indústria moderna. :e o filho, o filho nati-
vo e legítimo da era moderna. Apieda-se de seu oponente
como um simplório, ignorante de sua própria natureza ( e isso
é inteiramente verdade) , que quer substituir capital moralizado
e o trabalho livre pela coação brutal e imortal e pela servidão.
Representa-o como um Dom Quixote que, sob a aparência de
fraqueza, decência, o interêsse ge1·al e estabilidade, oculta sua
incapacidade para desenvolver-se, cobiça, egoísmo, interêsse par-
cial e má intenção. Expõe-no como hábil monopolista,- despeja
água fria sôbre suas reminiscências, poesia e romantismo, por
uma récita histórico-satírica da baixeza, crueldade, degradação,
prostituição, infâmia, anarquia e revolta que pululavam nos ro-
mânticos castelos.
Ela ( a propriedade móvel) alega ter conquistado a liber-
dade política para o povo, retirado os grilhões que tolhiam a
sociedade civil, unido entre si mundos diferentes, estabelecido o

1 Ver o pomposo teólogo hegeliano à moda antiga, Funke, que,


segundo Herr L eo, contou com lágrimas nos olhos como um escravo
recusara, quando foi abolida a servidão, cessar de ser uma proprie-
dade nobre. Ver, também, o livro Patriotische Phantasien, de Jus-
tus Moser, que se destaca pelo fato de nunca abandonar, por ne-
nhum momento, o horizonte ingênuo, pequeno-burguê s "feito em casa",
comum e limitado do filisteu e no entanto permanece sendo pura
fan~a.sia. · Essa contradição t~rnou essas fantasias tão aceitáveis ao
esp1rito alemão.
108 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

comércio que promove a amizade entre os povos, criado uma


moralidade pura e cultura agradável. Deu ao povo, em lugar
de suas necessidades cruéis, outras mais civilizadas, assim como
os modos de satisfazê-las. Mas o proprietário de terras - êsse
ocioso especulador de cereais - aumenta o preço das necessidades
básicas da vida do povo e, por isso, obriga o capitalista a ele-
var os salários sem ser capaz de aumentar a produtividade, to-
lhendo assim e finalmente impedindo o crescimento da renda
nacional e a acumulação de capital da qual depende a criação
de trabalho para o povo e de riqueza para o país. Ele dá lu-
gar a um declínio generalizado, e parasitàriamente explora tôdas
as vantagens da civilização moderna sem fazer a mínima con-
tribuição para esta, e sem abandonar qualquer de seus precon-
ceitos feudais. Finalmente, faz com que êle - para quem o
amanho do solo e a própria terra só existem como uma fonte
de dinheiro mandada pelo céu - encare o rendeiro e diga se
êle próprio não é um canalha ingrato, fantástico e ladino que, no
fundo do coração e realmente, de há muito foi conquistado pela
livre indústria e pelas delícias do comércio, por mais que possa
resistir-lhes e murmurar acêrca de recordações históricas ou de
objetivos morais e políticos. Tudo que êle de fato pode apresen-
tar em justificativa só é verdade nô tocante ao cultivador da terra
( o capitalista e seus empregados) de quem o dono da terra é
antes o inimigo,· assim, êle depõe contra si mesmo. Sem capital,
a propriedade territorial é coisa sem vida e sem valor. :8, com
efeito, a vitória civilizada da propriedade móvel ter descoberto
e criado o trabalho humano como fonte de riqueza, em vez de
coisas sem vida. (Ver Paul-Louis Courier, Saint-Simon, Ganilh,
Ricardo, Mill, MacCulloch, Destutt de Tracy e Michel Chevalier.)
Da verdadeira marcha do desenvolvimento ( a ser inserida
aqui) decorre a vitória necessária do capitalismo, isto é, da pro-
priedade privada desenvolvida sôbre a _propriedade privada não-
-desenvolvida e imatura representada pelo proprietário imobiliá-
rio. Em geral, o movimento deve triunfar da imobilidade, a
baixeza franca e autoconsciente sôbre a baixeza disfarçada e in-
consciente, a avareza sôbre a auto-indulgência, o interêsse pró-
prio capaz de ilustração sôbre o interêsse próprio da superstição
local, prudente, simples, inativo e fantástico, e o dinheiro sôbre
outras formas de propriedade privada.
Os Estados que pressentem o perigo representado pela li-
vre indústria plenamente desenvolvida, pela moralidade pura e
A RELAÇÃO DE PROPRIEDADE PRIVADA
109
pelo comércio fomentador da a~iza_de _entre os povos tentam)
mas assaz em vão, obstar a capitahzaçao da propriedade terri-
torial.
A fropdriedade_ t erri~ordial, afo_ :ontrário do capital, é proprie-
dade pnva a, ~apita 1 a1~ a a 11g1do por preconceitos locais e
políticos; é capital que amda não emergiu de seu envolvimento
com o capital mundial não-desenvolvido. No decurso de sua
formação nu7:1a e!cala mundial ela tem de alcançar sua expres-
são abstrata, isto e, pura.
As relações da propriedade privada são capital, trabalho e
suas interconexões.
Os estágios por que êsses elementos têm de passar são:

Primeiramente, união mediata e não-mediata dos dois.


O capital e o trabalho a princípio ainda estão unidos; de-
pois, com efeito, separam-se e alienam-se um do outro,
mas desenvolvendo-se e fomentando-se reciprocamente
como condições positivas.
Oposição entre os dois - êles excluem-se mutuamente;
o trabalhador identifica o capitalista como sua pró-
pria não-existência e vice-versa; cada um procura privar
o outro de sua existência.
Oposição de cada um a si mesmo - . Capital = trabalho
acumulado = trabalho. Como tal, divide-se em capital
propriamente dito e juros,· êstes se dividem em juros e
lucr.o. Sacrifício completo do capitalista. lHe afunda na
classe trabalhadora, tal como o trabalhador - mas só ex-
cepcionalmente - torna-se um capitalista. Trabalho
como um momento do capital, seu custo. Por isso,
os salários são um sacrifício de capital.
O trabalho divide-se em trabalho propriamente dito e sa-
lários do trabalhador. O próprio trabalhador como um
capital, uma mercadoria.
Choque das contradições reciprocas. 2

2 o segun do manuscrito
• termina aqui - Nota do T.
TE RC EIR O MA NU SC RIT O

Propriedade Pri vad a e Tra bal ho

(1) ad página XXXVI. A essência subjettv~


da proprie:
dade privada, a propriedade privada como
at1vid~de em si
mesma, como sujeito, como pessoa, é trabalho.
É evidente, por-
tanto, que só a Economia Política que ~eco?heceu
o tr~balho p~r
princípio (Adam Smith) e que não mais v1u na
propriedade pn-
Yada uunicamente uma condição externa ao hom
em pod e ser
considerada tanto um produto do dinamismo real
e desenvolvi-
mento da propriedade privada, 1 um prod uto da
indú stria mo-
derna, quanto uma fôrça que acelerou e exaltou
o dinamismo e
o desenvolvimento da indústria e tornou-a uma
potência no do-
mínio da consciência.
Assim, em vista dessa economia política esclarec
ida que des-
cobriu a essência subjetiva da riqueza dentro do
quadro de refe-
rência da propriedade privada, os partidários do siste
ma monetário
e do sistema mercantilista, para quem a propriedade
priv ada é uma
entidade puramente objetiva para o homem, são
fetichistas e ca-
tólicos. Engels está certo, por isso, de cham
ar Ada m Smith o
Lutero da Economia Política. Assim como Lutero reconheceu
a_ religião ~ a fé como. a essência do mun do real,
e por essa ra-
zao assumiu uma posição contra o paganismo
católico; assim
co~ o êle a~~Io1:1 a religio~idade externa ao mes
mo passo que
fazia da religiosidade a essencia inte,-ior do hom
em· assim como
êle ne?~u a distinção <:_ntre sac~rdote e leigo porq
u~ transferiu o
sacerdoc10 p~ra ? coraçao do leigo; também a riqu
eza exterior ao
homem e dele independente ( só podendo, pois,
ser adquirida e

1 t . .
moviment_o m d epen dent e da prop ried ade priv
º.
do-se consciente de s1 mesm a; é a indú stria ada torn an-
mod erna com o Pessoa.
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO 111

conservada de fora) é anulada. Isso quer dizer, sua objetividade


externa e. indiferente é an~la~a pelo fato de a propriedade pri-
vada ser incorporada ao propr10 homem e de ser o próprio ho-
mem reconhecido como sua essência. Mas, como resultado, o
próprio homem é levado para a esfera da propriedade privada
exatamente como, com Lutero, é levado para a da religião. Sob
o disfarce de reconhecer o homem, a economia política, cujo
princípio é o trabalho, leva à sua lógica conclusão a negação do
homem. O próprio homem não mais é uma condição da tensão
externa com a substância externa da propriedade privada; êle
próprio se converteu na entidade oprimida por tensões, que é a
da propriedade privada. O que era anteriormente um fenômeno
de ser externo a si mesmo, uma manifestação externa real do ho-
m~m, transformou-se agora no ato de objetificação da alienação.
Esta economia política parece, por conseguinte, a princípio, re-
conhecer o homem com sua independência, sua atividade pessoal etc.
Ela incorpora a propriedade privada à essência mesma do
homem, e não é mais, portanto, condicionada pelas características
locais ou nacionais da propriedade privada considerada como
existente fora dela mesma. Ela manifesta uma atividade cosmo-
polita, universal, que destrói todos os limites e todos os vínculos,
substitui-se a si mesma como a única orientação, a única uni-
versalidade, o único limite e o único vínculo. Em seu desenvol-
vimento ulterior, contudo, vê-se obrigada a rejeitar essa hipo-
crisia e a mostrar-se em todo o seu cinismo. Faz isso sem qual-
quer consideração pelas contradições aparentes a que sua dou-
trina conduz, revelando por uma outra maneira unilateral, e por
isso com maior lógica e clareza, que o trabalho é a única essên-
cia da riqueza, e demonstrando que essa doutrina, ao contrário da
concepção original, tem conseqüências daninhas ao homem. Fi-
nalmente, ela aplica o golpe de morte à renda da terra, aquela
última forma individual e natural da propriedade privada e fonte
de riqueza existente independentemente do movimento do tra-
balho que foi a expressão da propriedade feudal, mas tornou-se
inteiramente sua expressão econômica e uão mais consegue ofe-
recer qualquer resistência à economia política. ( A Escola de
Ricardo.) Não só o cinismo da Economia Política aumenta a
partir de Smith, passando por Say, Ricardo, Mill, e outros, uma
vez que para êste último as conseqüências da indústria se afi-
guraram cada vez mais desenvolvidas e contraditórias; sob um
ponto de vista positivo elas tornaram-se mais alienadas, e mais
conscientemente alienadas, do homem, em comparação com suas
112 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

predecessoras. Isso é somen te porqu e sua ,.ciência se desenvol_ve


com maior lógica e verdade, Pôsto que eles fazem a proprie-
dade privada em sua forma ativa formar o tema, e pôsto que ao
mesmo tempo fazem o homem como nã~-ser_ tornar-se ,um s:r, .ª
contradição na realidade. correspond~ !n~e1ramente ~ esse~o_a
contraditória por êles aceita como prmop10. A realtd ~e d1v1-
dida (II) da indústria está lon~e d~ refutar, a~tes :onf1r ~a, , s~u
princípio autodividido. Seu princípio, com efeito, e o prmop 10
des,a divisão.
A doutrina fisiocrática de Quesnay constitui a transição do
sistema mercantilista para Adam Smith. A Fisiocracia é, em
sentido direto, a recomposição econômica da propri edade feudal,
mas, por essa razão, é da mesma forma direta a transformação
econômica, o restabelecimento dessa mesma propri edade feudal,
com a diferença de sua linguagem não ser mais feudal porém
economica. Tôda a riqueza se reduz a ter1'a e cultivo (agricul-
tura). A terra ainda não é capital, mas sim u,m modo particular
de existência de capital, cujo valor se diz residir em sua particula-
ridade natural, da qual provém; a terra, não obstante, é elemento
menos natural e universal, ao passo que o sistema mercantilista só
encarava os metais preciosos como riquezas. O objeto da riqueza,
sua matéria, por êsse motivo recebeu sua máxima universalidade
dentro dos limites naturais - uma vez que é também, como natu-
reza, riqueza diretamente objetiva. E é só pelo trabalho, pela
agricultura, que a terra existe para o homem. Conseqüente-
mente, a essência subjetiva da riqueza já está transferida para o
trabalho. Mas, simultâneamente, a agricultura é o único traba-
lho produtivo. O trabalho, pois, ainda não assumiu sua uni-
versalidade e sua forma abstrata; êle ainda se acha unido a
um elemento particular da natureza como sendo a sua ma-
t~ria~ e só ~ reconhecido em um modo particular de exis-
tt'nc,a determinado pela natureza. O trabalho é ainda, ape-
nas, uma dienação determinada e particular do homem, e seu
pro?u to ta~b~m é concebido como parte determinada da riqueza
devida ma_is a ;1at~reza do que ao trabalho propriamente dito.
A terra ainda e vista como algo existente naturalmente e sem
levar em conta o homem, e não ainda como capital, isto é, como
fator do trabalh?. Pelo contrário, a terra parece ser um fator da
natureza. . Porem, , desde que o fetichismo da antiga riqueza
externa, existente somente como objeto, foi reduzido a um ele-
mento natural bastante simples, e desde que sua essência foi em
parte, e de certa maneira, reconhecida em sua existência subjetiva,
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO
113
realizou-se o _necessário progresso ao identificar-se a natureza
universal da nqueza e ao elevar o trabalho à sua forma ab _
. b ~ so
luta, ou seJa, em a straçao, ao princípio. Demonstra-se contra
~!, • fisiocratas que .sob ~ _ponto de v~sta econômico ( i. e., sob
0
umco ponto_ d~ v1_sta v_ahdo), a agricultura não difere de qual-
que; . outra mdustna, ~ao tendo, por conseguinte, um gênero es-
pec1f1co de trabalho, ligado a um elemento partia1lar, ou a uma
1;1anifes..taç~o par~icular do trabalho, mas o trabalho em geral que
e a essencra da nqueza.
. ~ Fisiocracia nega a riqueza específica, externa, puramente
ob1et1va, ao declarar que o trabalho é essência dela. Para os fi-
siocra!as,_ entre_ta~to, o trabalho é, antes de mais nada, apenas
a essencra sub1etrva da propriedade territorial. (Eles partem da-
quele tipo de propriedade que aparece historicamente como o
predominantemente reconhecido.) Simplesmente convertem a pro-
priedade imobiliária em homem alienado. Anulam seu ca-
ráter feudal ao declarar ser a indústria (agricultura) a essência,
mas rejeitam o mundo industrial e aceitam o sistema feudal ao
declarar que a agricultura é a única indústria.
~ evidente que, quando a essência subjetiva - indústria em
oposição a propriedade territorial, indústria formando-se a si
mesma como tal - é percebida, ela inclui a oposição den~ro de
si mesma. Pois, assim como a indústria incorpora a propnedade
territorial por ela desbancada, sua essência subjetiva abarca a
desta.
A propriedade territorial é a pri°:1eir~ forma de ?r~p~ied~de
privada, e a indústria aparece pela pnme1ra vez na_ histona sim-
plesmente em oposição a ela, como uma forma p_articular de pro-
priedade privada ( ou melhor, como o escravo libertado _da ,P~o-
priedade territorial) ; essa seqüência se repete no estudo Cientifico
da essência subjetiva da propriedade priva1a, e o trabalh_o apa-
rece, a princípio, apenas como trabalho agncola, mas depois esta-
belece-se como trabalho em geral.
(III) Tôda riqueza transformou-se em riqueza industr!al, a
riqueza do trabalho e a indrístria são trab_alho con~etizado;
exatamente como o sistema fabril é a ess~nc1a c?ncr;tizada da
• d , . (.
rn us1rra 1. e., do trabalho) e O capital. d
md11str1al e a forma
A .· s ue
ob1· etiva concretizada da propriedade pnva ª· ssim, ve~o q
, •
e só nesta etapa que a propnedade Privada pode f
consohdar seu
. ,
domínio sôbre o homem e tornar-se, em sua orma mais gene-
rica, uma potência na história mundial.
8
114 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

PROPRIEDADE PRIVADA E COMUNISMO

ad página XXXIX. Todavia, ~ antítese :ntre .ª não-p?sse


de propriedade e propriedade ainda e uma antitese mdetermma-
da, não concebida em sua referência ativa às relações intrínse-
cas não concebidas ainda como uma contradição, desde que não
é ~ompreendida como uma antítese entre trabalho ~ capital. . Mes-
mo sem o desenvolvimento avançado da propnedade pnvada,
p. ex., na Roma antiga, na Turquia etc., esta antítese pode ser
expressa em uma forma primitiva. ~es~a forma? ela não_ apa-
rece ainda como estabelecida pela propna propnedade pnvada.
O trabalho, porém, a essência subjetiva da propriedade privada
como exclusão de propriedade, e o capital, trabalho objetivo como
exclusão de trabalho, constituem propriedade privada como a re-
lação desenvolvida da contradição e, pois, uma relação dinâmica
que tende a resolver-se.
ad ibidem. A substituição do auto-alheamento segue a mesma
marcha do auto-alheamento. A propriedade privada é primeiro
considerada somente em seu aspecto objetivo, mas considerado
o trabalho como sua essência. Sua maneira de existir, portanto,
é o capital, que é necessário abolir, "como tal". (Proudhon.) Ou,
então, a forma específica de trabalho ( trabalho que é levado a
um nível comum, subdividido e, por isso, não-livre) é vista co-
mo a fonte da nocividade da propriedade privada e de sua exis-
tência alienada em relação ao homem. Fourier, de acôrdo com os
fisiocratas, encara o trabalho agrícola como sendo, no mínimo,
o tipo exemplar de trabalho. Saint-Simon assevera, pelo con-
trário, ser o trabalho industrial, como tal, a essência do trabalho,
e em conseqüência pleiteia o papel exclusivo dos industriais e um
melhoramento na situação dos operários. Finalmente, o comu-
nismo é a expressão p.ositiva da abolição da propriedade privada
e, em primeiro lugar, da propriedade privada universal. Enten-
dendo essa relação em seu aspecto universal, o comunismo é
(1) em sua primeira forma apenas a generalização e concreti-
zação dessa relação. Como tal, aparece numa forma dupla;
a dominação da propriedade material avulta de tal maneira
que visa a dest~ir tudo 9ue f ôr incapaz de ser possuído por
todos como propnedade privada. ~le quer abolir o talento etc.,
pela fôrça. A posse física imediata parece-lhe a única meta da
vida e da existência. O papel do trabalhador não é abolido,
mas ampliado a todos os homens. A relação de propriedade pri-
PR OP RIE DA DE PRIVADA E
TR AB AL HO 115

tin ua a ser a da com un ida de com o mu nd o das coisas.


vad a con al
or a pro pri eda de pri vad a em ger
:º r fi~ , essa te_ndênci~ a op
ed ad e pn va da e exp res sa de ma nei ra animal; o casam o ent
a pro pn
é inc on tes tàv elm ent e a for ma de propriedade privada exclu-
( qu e
é pô sto em con tra ste com a com un ida de das mulheres, em
siv a)
as se tor nam com una is e pro pri eda de comum. Pode-se di-
qu e est
e ess a idé ia de com uni dad e das mu lhe res é o segrêdo de
zer qu
elo dês se com uni sm o int eir am ent e vulgar e irrefletido .
Po lic hin
com o as mu lhe res ter ão de passar do matrimônio par a a
As sim
uiç ão uni ver sal , igu alm ent e tod o o mu nd o das riquezas
prostit
o ser ob jeti vo do ho me m) terá de passar da relação de
(i. e.,
ent o exc lus ivo com o pro pri etá rio particular par a a de pros-
casam
dade. Esse comunismo, qu e ne-
tituição universal com a comuni a
em todos os setores, é sómente
ga a personalidade do ho me m
privada, qu e é essa negação. A
expressão lógica da propriedade
e como uma potência é apenas
inv eja universal estabelecendo-s
z qu e se reinstaura e satisfaz de
um a for ma camuflada de cupide
ra dif ere nte . Os pen sam ent os de tôd a propriedade pri -
ma nei
ind ivi dua l são , pel o me nos , dirigidos contra qu alq uer pro -
vad a
sob a for ma de inveja e do desejo
pri eda de pri vad a mais abastada,
um; destarte, essa inv eja e êsse
de red uzi r tud o a um nível com O
a essência da competição.
nivelamente constituem, de fato, niv e-
culminância de tal inveja e
com un ism o vu lga r é apenas a
um mínimo preconcebido. Qu ão
lamento po r baixo, baseado em
de privada representa um a apro-
pouco essa abolição da proprieda o
pela negação abstrata de tod o
priação gen uín a é demonstrado cid ade
o, e pelo retôrno à simpli
mu nd o da cultura e da civilizaçã da
i11atural (IV ) do indivíduo po
bre e indigente qu e não só ain
vada, mas nem ain da a atingiu.
não ultrapassou a propriedade pri
dade de trabalho e de igu al-
A comunidade é só um a comuni
ital comunal, pel a com uni da de
da de de salários pagos pelo cap
cap ital ista un ive rsa l. Os doi s aspectos da relação são ele-
como si-
idade; o trabalho como um a
vados a um a Sffposta universal sa-
dos, e o capita l como a umver
tuação em qu e todos são coloca
unidade.
lidade e o po der admitidos na com
o prêsa e serva da lux úri a
Na relação com a mu lher, com
l, ma nif est a-s e a inf ini ta deg radação em qu e o ho me m
comuna
po r si me sm o; poi s o seg rêd o dessa relação encon tra sua
exi ste
franca e pat ent e na relação do
expressão inequ ívoca, inconteste, a
ma nei ra pel a qu al se concebe
ho mem com a mu lhe r e na A relação im edi ata nat ura l
eta e nat ura l da esp éci e.
ma no é tam bém ~ relação
relação dir
ária de ser hu ma no a ser hu
e necess
116 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

do homem com a mulher. Nessa relação natural da espécie, a


relação do homem com a natureza é diretamente sua relação
com o homem, e sua relação com o homem é diretamente sua re-
lação com a natureza, com sua própria função natural. Portan-
to, nessa relação se revela sensorialmente, reduzida a um fato
observável, até que ponto a natureza humana se tornou natureza
para o homem e a natureza se tornou natureza humana para êle.
Dessa relação, pode-se estimar todo o nível de desenvolvimento
do homem. Conclui-se, do caráter dessa relação, até que ponto
o homem se tornou, e se entende assim, um ser-espécie, um ser
humano. A relação do homem com a mulher é a mais natural
de ser humano a ser humano. Ela indica, por conseguinte, até
que ponto o comportamento natural do homem se tornou hu-
mano, e até que ponto sua essência humana se tornou uma essên-
cia natural para êle, até que ponto sua natureza humana se tor-
nou natureza para êle. Também mostra até que ponto as ne-
cessidades do homem se tornaram necessidades humanas e, con-
seqüentemente, até que ponto a outra pessoa, como pessoa, se
tornou uma de suas necessidades, e até que ponto_ êle é, em sua
existência individual, ao mesmo tempo um ser social. A pri-
meira anulação positiva da propriedade privada, o comunismo
vulgar, é, portanto, apenas uma forma fenomenal da infâmia
da propriedade privada representando-se como comunidade po-
sitiva.

( 2) O comunismo (a) ainda político em sua natureza, de-


mocrático ou despótico; (b) com a abolição do Estado, mas ain-
da incompleto e influenciado pela propriedade privada, isto é,
pela alienação do homem. Em ambas as formas, o comunismo já
se dá conta de ser a reintegração do homem, seu retôrno a si
mesmo, o repúdio da auto-alienação do homem. Porém, co-
mo ainda não apreendeu a natureza positiva da propriedade pri-
vada, ou a natureza humana das necessidades, ainda se acha
cativo e contaminado pela propriedade privada. · Compreendeu
bem o conceito, mas não a essência.

(3) O comunismo é a abolição positiva da propriedade


privada, da auto-alienação humana e, pois, a verdadeira apro-
priação da natureza humana através do e para o homem. ~le é,
portanto, o retôrno do homem a si mesmo como um ser social,
i. e., realmente humano, um retôrno completo e consciente que
assimila tôda a riqueza do desenvolvimento anterior. O comu-
msmo . como um naturalismo plenamente desenvolvido é huma-
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO 117

nismo e como humanismo plenamente desenvolvido é naturalis-


mo. :e resolução de/initiva do antagonismo entre o homem
e a natureza, e entre o homem e seu semelhante. É a verda-
deir~ solução do conflito entre existência e essência, entre objeti-
ficação e auto-afirmação, entre liberdade e necessidade, entre in-
divíduo e espécie. :e a solução do enigma da História e tem co-
nhecimento disso.
(V) Assim, todo o desenvolvimento histórico, tanto a gê-
nese real do comunismo ( o nascimento de sua existência empí-
rica) quanto sua consciência pensante, é seu processo entendido
e consciente de vir-a-ser; ao passo que o outro, o comunismo
ainda não desenvolvido, procura, em certas formas históricas
contrárias à propriedade privada, uma justificação baseada no
que já existe e, com êsse fito, arranca de seu contexto · elementos
isolados dêsse desenvolvimento ( Cabet e Villeg.udelle destacam-
-se entre os que se dedicam a êsse passatempo), apresentando-os
como provas de seu pedigree histórico. Ao fazê-lo êle deixa claro
que de longe a mor parte dêsse desenvolvimento contradiz suas
próprias afirmações e que, se jamais existiu, sua existência preté-
rita refuta sua pretensão a ser essencial.
~ fácil entender a necesidade que leva todo movimento re-
volucionário a encontrar sua base empírica, assim como a teórica,
no desenvolvimento da propriedade privada e, mais precisamente,
do sistema econômico.
Essa propriedade privada material, diretamente perceptível,
é a expressão material e sensorial da vida humana alienada. Seu
movimento - produção e consumo - é a manifestação sensorial
do movimento de tôda a produção anterior, i. e., a realização
ou realidade do homem. A religião, a família, o Estado, o Di-
reito, a moral, a ciência, a arte etc., são apenas formas de pro-
dução pa,-ticulares e enquadram-se em sua lei geral. A substi-
tuição positiva da propriedade privada como apropriação da vida
humana, portanto, é a substituição positiva de tôda alienação,
e o retôrno do homem, da religião, do Estado, da família etc.,
para sua vida humana, i. e., social. A alienação religiosa como
tal ocorre somente na esfera da consciência, na vida interior do
homem, mas a alienação econômica é a da vida l'eal, e por isso
sua substituição afeta ambos os aspectos. Está claro, o desenvol-
vimento em diferentes nações tem início diferente, conforme
a vida efetiva e estabelecida das pessoas esteja mais vinculada ao
reino da mente ou ao mundo exterior onde começa o ateísmo
118 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

(Owen), mas O ateísmo de início está ~em longe de se3 comu-


nismo; de fato, êle é, na maior parte, amda uma abstraçao. As-
sim, a filantropia do ateísmo é, a princípio, unic~ente uma fi-
lantropia filosófica abstrata, enquanto a do comumsmo é desde
logo real e orientada para a ação.
Vimos como, na suposição da propriedade privada .ter sido
po~itivamente superada, o homem produz o hom~m, a s1 mesmo
e a outros homens; como o objeto que é a atividade direta de
sua personalidade, ao mesmo tempo é a existência dêle p~ra
outros homens e a dêstes para êle. Anàlogamente, o material
do trabalho e o próprio homem como sujeito são o ponto de par-
tida, bem como o resultado, dêsse movimento ( e, porque deve
haver êsse ponto de partida, a propriedade privada é uma ne-
cessidade histórica). Por conseguinte, o caráter social é o caráter
universal de todo movimento; da mesma forma que a socie-
dade produz o homem como homem, também ela é produzida por
êle: A atividade e o espírito são sociais em seu conteúdo, assim
como em sua origem; êles são atividade social e espírito social.
A significação humana da natureza só existe para o homem
social, porque só neste caso a natureza é um laço com outros ·
homens, a base de sua existência para outros e da existência
dêstes para êle. . Só, então, a natureza é a base da própria expe-
riência humana dêle e um elemento vital da realidade humana.
A existência natural do homem tornou-se, com isso, sua existên-
cia humana, e a própria natureza tornou-se humana para êle.
Logo, a sociedade é a união efetiva do homem com a natureza,
a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo realizado do
homem e o humanismo realizado da natureza.

(VIJ A atividade social e o espírito social nao existem


apenas, de modo, sob a forma de atividade ou espírito que se-
ja diretamente comunal. Sem embargo, a atividade e o es-
pírit? comun~is, i. e., atividade . e espírito que se exprimem e
conf1~mam diretamente em associação real com outros homens,
ocorrem sempre onde essa expressão direta de sociabilidade brote
do conteúdo da atividade ou corresponda à natureza do espírito.
Ainda quando realizo trabalho científico etc., uma atividade
que raramente posso conduzir em associação direta com outros
homens, efetuo um ato social, porque humano. Não é só O ma-
terial de_ _minha atividade, - como a própria língua que O pen-
sad?r _utthz_a ..- .qu: me e ~a~o como um produto social. Minha
propna ex1stenc1a e uma atividade social. Por essa razão, 0 que
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO 119

eu próprio produzo o faço para a sociedade, e com a consciência


de agir como um ser social.
Minha consciência é apenas a forma teórica daquela cuja
forma viva é a comunidade real, a entidade social, embora no
presente essa consciência universal, seja uma abstração da vida
real e oposta a esta como uma inimiga. Por isso é que a ati-
vidade de minha consciência universal como tal é minha exis-
tência teórica como um ser social.
Acima de tudo, é mister evitar conceber a "sociedade" uma
vez mais como uma abstração com que se defronta o indivíduo.
O indivíduo é o ser social. A manifestação da vida dêle -
ainda quando não apareça diretamente sob a forma de manifes-
tação comunal, realizada em associação com outros homens -
é, por conseguinte, uma manifestação e afirmação de vida social.
A vida humana individual e a vida-espécie não são coisas dife-
rentes, conquanto o modo de existência da vida individual seja
um modo necessàriamente mais específico ou mais geral da vida-
-espécie, ou o modo de existência da vida-espécie seja um modo
mais especifico ou mais geral da vida individual.
Em sua consciência-espécie, o homem confirma sua verda-
deira vida social, e reproduz sua existência real em pensamento;
redprocamente, a vida-espécie confirma-se na consciência-espé-
cie e existe por si mesma em sua universalidade como ser pen-
sante. Embora o homem seja um indivíduo único - e é justa-
mente esta particularidade que o torna um indivíduo, um ser
comunal realmente individual. - êle é igualmente o todo, o todo
ideal, a existência subjetiva da sociedade como é pensada e vi-
venciada. :Ele existe na realidade como a representação e o ver-
dadeiro espírito da existência social, e como a soma da manifes-
tação humana da vida.
Pensamento e ser são deveras distintos, mas também formam
uma unidade. A morte parece ser uma impiedosa vitória da es-
pécie sôbre o indivíduo a contradizer sua unidade; porém, o indi-
víduo particular é apenas um determinado ente-espécie, e, como
tal, mortal.
( 4) Tal e qual a propriedade privada é a mera expressão
sensorial do fato de o homem ser ao mesmo tempo um fato
objetivo para si mesmo e tornar-se um objeto estranho e não-
-humano para si mesmo; tal e qual sua manifestação de vida é
também sua alienação da vida e sua auto-realização uma perda da
realidade, a emergência de uma realidade estranha, assim também
120 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

a superação positiva da propriedade privada, i. e., a apropriação


sensorial da essência humana e da vida humana do homem
objetivo e das criações humanas, pelo e para o homem, não deve
ser considerada exclusivamente na acepção de fruição imediata
e exclusiva, ou na de possuir ou ter. O homem apropria seu
ser multiforme de maneira global, e portanto como homem in-
tegral. Tôdas as suas rela~ões humanas com o mundo - ver,
ouvir, cheirar, saborear, pensar, observar, sentir, desejar, agir,
amar - , em suma, todos os órgãos de sua individualidade, como
órgãos que são• de forma diretamente comunal (VII), são, em
sua ação objetiva ( sua ação com relação ao objeto), a apropria-
ção dêsse objeto, a apropriação da realidade humana. A maneira
pela qual êles reagem ao objeto é a confirmação da realidade
humana. 1 :e efetividade humana e sofrimento humano, pois o
sofrimento, considerado humanamente, é uma fruição do eu
pelo homem.
A propriedade privada tornou-nos tão néscios e parciais que
um objeto só é nosso quando o temos, quando e.xiste para nós
como capital ou quando é diretamente comido, bebido, vestido,
habitado etc., em síntese, utilizado de . alguma forma; apesar de
a propriedade privada propriamente dita só conceber essas várias
formas de posse como meios de vida e a vida para a qual êles
servem como meios ser a vida da propriedade p1·ivada - tra-
balho e criação de capital.
Assim, todos os sentidos físicos e intelectuais foram substi-
tuídos pela simples alienação de todos êles, pelo sentido de ter.
O ser humano tinha de ser reduzido a essa pobreza absoluta a fim
de poder dar à luz tôda sua riqueza interior. (Sôbre a categoria
de ter ver Hess em Einundzwanzig Bogen.)
A substituição da propriedade privada é, pois, a emancipação
completa de tôdas as qualidades e sentidos humanos. Ela é essa
emancipação porque essas qualidades e sentidos tornaram-se hu-
manos, tanto sob o ponto de vista subjetivo quanto sob o obje-
tivo. O ôlho tornou-se ôlho humano quando seu objeto passou
a ser um objeto humano, social, criado pelo homem e a êste des-
tinado. Os sentidos, portanto, tornaram-se diretamente teóricos
na prática. .Eles se relacionam com a coisa em atenção a esta, mas
a própria coisa é uma relação humana objetiva consigo mesma

1Por conseguinte, ela varia tanto quanto as determínaçóes da


natureza e das atividades humanas são 01versas.
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO 121

e com o homem, e vice-versa. 2 A necessidacle e a fruição, por-


tanto, perderam seu caráter egoísta, e a natureza perdeu sua
mera utilidade pelo fato de sua utilização ter-se tornado utiliza-
ção humana.
Semelhantemente, os sentidos e os espíritos dos outros homens
tornaram-se sua própria apropriação. Logo, além dêsses órgãos
diretos, são constituídos órgãos sociais sob a forma de sociedade;
por exemplo, a atividade em associação direta com outros tor-
nou-se um órgão para a manifestação da vida e um modo de
apropriação da vida humana. ·
'8 evidente que o ôlho humano aprecia as coisas de maneira
diferente do ôlho bruto, não-humano, assim como o ouvido
humano diferentemente do ouvido bruto. Conforme vimos, é
só quando o objeto se torna um objeto humano, ou humanidade
objetiva, que o homem não fica perdido nêle. Isso somente é
possível quando o objeto se torna um objeto social, e quando êle
próprio se torna um ser social e a sociedade se torna para êle, nes-
se objeto, um ser.
Por um lado, é só quando a realidade objetiva em tôda par-
k se torna para o homem-em-sociedade a realidade das facul-
dades humanas, a realidade humana, e portanto a realidade de suas
próprias faculdades, que todos os objetos se tornam para êle a
objetificação dêle próprio. Os objetos, então, confirmam e rea-
lizam a individualidade dêle, êles são os objetos dêle próprio, i. e.,
o próprio homem torna-se o objeto. A maneira pela qual êsses
objetos passam a ser dêle depende da natttreza do objeto e da
natureza da faculdade correspondente, pois é exatamente o caráter
determinado dessa relação que constitui o modo real específico de
afirmação. O objeto não é o mesmo para o ôlho que para o ou-
vido, para o ouvido que para o ôlho. O caráter de cada facul-
dade é precisamente sua essência característica e, pois, também,
o modo característico de sua objetificação, de seu ser objetiva-
mente real, vivo. Portanto, não é apenas em pensamento (VIII),
mas por intermédio de todos os sentidos que o homem se afirma
no mundo objetivo.
Consideremos, a seguir, o aspecto subjetivo. O sentido mu-
sical do homem só é despertado pela música. A mais bela

2 Na prática, só posso relacionar-me de maneira humana com


uma coisa quando esta se relaciona de maneira humana com o ho-
mem.
122 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

música não tem significado para o ouvido não-musical, não é um


objeto para êle, porque meu objeto só pode ser confirmação de
uma de minhas próprias ·faculdades. :Ele só pode existir para
mim na medida em que minha faculdade existe por si mesma co-
mo capacidade subjetiva, porquanto o significado de um objeto
para mim só se estende ( só faz sentido) para um sentido apropria-
do. Por essa razão, os sentidos do homem social são diferentes
dos do homem não-social. ~ só por intermédio da riqueza
objetivamente desdobrada do ser humano que a riqueza da sen-
sibilidade humana subjetiva (um ouvido musical, um ôlho sensí-
vel à beleza das formas, em suma, sentidos capazes de satisfação
humana e que se confirmam como faculdades humanas) é cul-
tivada ou criada. . Pois não são apenas os cinco sentidos, mas
igualmente os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos
( desejar, amar etc.), em suma, a sensibilidade humana e o caráter
humano dos sentidos, que só podem vingar através da existência
de seu objeto, através da natureza humanizada. O cultivo dos
cinco sentidos é a obra de tôda a história anterior. O sentido
subserviente às necessidades grosseiras só tem um significado res-
trito. Para um homem faminto, a forma humana de alimento
não existe, mas apenas seu caráter abstrato como alimento. Po-
deria muito bem existir na mais tôsca forma, e é impossível afir-
mar de que modo essa atividade de alimentar-se diferia da dos
animais. O homem necessitado, assoberbado de cuidados, não é
capaz de apreciar o mais belo espetáculo. O vendedor de mine-
rais só vê seu valor comercial, não sua beleza ou suas caracterís-
ticas particulares; êle não possui senso mineralógico. Assim, a
objetificação da essência humana, tanto teórica quanto pràtica-
mente, é necessária para harmonizar os sentido.r humanos, e
também para criar os sentidos humanos correspondentes a tôda
a riqueza do ser humano e natural.
Exatamente como no início a sociedade encontra, graças ao
desenvolvimento da propriedade privada com sua riqueza e po-
breza (tanto intelectual quanto material), os materiais necessá-
rios para êsse desenvolvimento cult11ral, assim também a so-
ciedade plenamente constituída produz o homem em tô?a a ple-
nitude de seu ser, o homem rico dotado de todos os sentidos,
como uma realidade permanente. ~ só em um contexto social
que subjetivismo e objetivismo, espiritualismo e materialismo,
atividade e passividade deixam de ser antinomias e, assim, dei-
xam de existir como tais antinomias. A resolução das contradi-
ções teóricas somente é possível através de meios práticos, so-
PROPRIEDADE PRIVADA E TRA BAL HO
123
mente através da energia prática do homem.
Sua resolução não
é de forma alguma, portanto, apenas um prob
lema de conhe-
cimento, mas um problema real, da vida, que
a filosofia foi in-
capaz de sol,U<~ionar exatamente porque viu nêle
um problema
puramente teonco.
Pode ser notado que a história da indústria,
e a indústria
como existe objetivamente, é um livro aberto
das faculdades
humanas, e uma psicologia hum ana que pode
ser apreendida
sensorialmente. Essa história não foi até aqui
concebida com ·
relação à natureza hum ana, mas só sob um pon
to de vista uti-
litário superficial, desde que na situação de alien
ação só era viá-
vel conceber faculdades humanas reais e ação
-espécie huma-
nas sob a forma de existência humana em gera
l, como religião,
ou como história em seu aspecto geral, . abstrato
, como política,
arte e literatura etc. A indústria material quot
idiana ( que pode
ser concebida como parte daquele desenvolvim
ento geral; ou,
igualmente, o desenvolvimento geral pode ser
concebido como
parte específica da indústria, visto que tôda a
atividade humana
até agora tem sido trabalho, i. e., indústria, ativi
dade auto-alie-
nad a) revela-nos, sob a forma de objetos ríteis
sensoriais, de for-
ma alienada, as f acuidades humanas essencia
is transformadas
em objetos. Nen hum a psicologia para qual
êsse livro, i. e.,
parte mais senslveln1ente presente e acessível
da História, per-
maneça fechado pode tornar-se uma ciência real
com um cont~ú-
do genuíno. Que se deve pensar de uma ciência
que se mantém
apartada de todo êsse enorme campo do trabalho
humano e que
não sente sua próp ria inadequação, mesmo que
essa riqueza de
atividade hum ana nada mais signifique para
ela senão, quiçá,
o que pod e ser expresso na simples expressão
- "necessidade" ,
"necessidade comum" ?
As ciências naturais desenvolveram uma ativi
dade tremen-
da e reuniram uma sempre crescente massa
de dados. Mas
a filosofia tem-se mantido alheia a essas ciên
cias, exatamente
como elas o têm feito em relação à filosofia.
Seu momentâneo
rapprochement foi somente uma ilusão f antás_ti:
ª· Hav ia, ur_n
desejo de união, mas faltou o poder para efetiva-l
o. A prop na
historiografia só leva a ciência natural em cont
a fortuitamente,
encarando-a como um fator de esclarecimento,
de utilidade prá-
tica e de determinados grandes descobrimentos.
A ciência natu-
ral, contudo , penetrou mais pràticamente na
vid~ humana por
intermédio da indústria. Ela transformou a vida humana e
prep arou a emancipação da humanidade, conq
uanto seu efeito
124 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

imediato fôsse acentuar a desumanização do homem. A indús-


t,-ia é a relação histórica concreta da natureza, e portanto da
ciência natural, com o homem. Se a indústria é concebida co-
mo a manifestação exotérica das f acuidades humanas essenciais,
a essência humana da natureza e a essência natural do homem
também podem ser entendidas. A ciência natural, então, aban-
donará sua orientação materialista abstrata, ou melhor, idealista,
e se tornará a base de uma ciência humana, tal como já se con-
verteu - malgrado de forma alienada - em base da vida hu-
mana prática. Uma base para a vida e outra para a ciência é,
a priori, uma falsidade. A natureza, como se desenvolve atra-
vés da história humana, no ato de gênese da sociedade humana,
é a natureza concreta do homem; assim, a natureza, como se de-
senvolve por intermédio da indústria, embora de forma alienada,
é verdadeiramente natureza antropológica.
A experiência dos sentidos (ver Feuerbach) tem de ser a base
de tôda ciência. A ciência só. é ciência genuína quando procede
da experiência dos sentidos, nas duas formas de percepção dos
sentidos e necessidade memorial, i. e., só quando procede da na-
tureza. O conjunto da História é uma preparação para o "ho-
mem" tornar-se um objeto da percepção sensorial, e para o de-
senvolvimento das necessidades humanas ( as necessidades do ho-
mem como tal). A própria História é uma parte real da História
Natut·al, do desenvolvimento da natureza até chegar ao homem.
A ciência natural algum dia incorporará a ciência do homem,
exatamente como a ciência do homem incorporará a ciência na-
tural; haverá uma única ciência.
O homem é o objeto direto da ciência natural, porque a na-
tureza .diretamente pet·ceptível é para o homem diretamente ex-
periência sensorial humana. Sua . própria experiência sensorial só
existe como a outra pessoa que lhe é diretamente apresentada
de maneira sensorial. Sua própria experiência sensorial só exis-
te como experiência sensorial humana para si mesmo através da
outra pessoa. Mas a nat11reza é o objeto direto da ciência do
homem. O primeiro objeto para o homem - o próprio ho-
mem - é a natureza, a experiência sensorial; e as faculdades
humanas sensoriais em particular, que só podem encontrar rea-
lização objetiva em objetos naturais, só podem alcançar o conhe-
cimento próprio na ciência do ser natural. O próprio elemen-
to do pensamento, o elemento da manifestação viva do pen~a-
mento, a linguagem , é de natureza sensorial. A realidade social
da natureza e a ciência natural humana ou ciência natural do
homem são expressões idênticas.
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO 125
A partir daqui, ver-se-á como, em lugar da riqueza e po-
breza da Economia Política, teremos o homem rico e a plenitude
da necessidade humana. O homem rico é, ao mesmo tempo,
aquêle que precisa de um complexo de manifestações humanas da
vida, e cuja própria auto-realização existe como uma necessidade
interior, como uma necessidade. Não só a riqueza, como também
a pobreza do homem, adquire, em uma perspectiva socialista, o
significado humano, e portanto social. A pobreza é o vínculo
passivo que leva o homem a experimentar uma necessida-
de da máxima riqueza, a outra pessoa. O ímpeto da entidade obje-
tiva dentro de mim, a erupção sensorial de minha atividade vital,
é a paixão que aqui se torna a atividade de meu ser.
( 5) Um ser não se encara a si mesmo como independente
a menos que seja seu próprio senhor, e êle só é seu próprio se-
nhor quando deve sua existência a si mesmo. Um homem que vive
pelo favor de outro considera-se um dependente. Mas eu vivo com-
pletamente por favor de outro indivíduo quando lhe devo não ape-
nas a continuação de minha vida, como igualmente sua criação;
quando êle é a origem dela. Minha vida tem necessàriamente
. uma causa assim extrínseca quando não é de minha própri a
criação, pois é difícil de eliminar da consciência popular. Essa
consciência é incapaz de conceber a natureza e o homem existindo
por sua própria conta, pois tal existência contraria todos os fatos
tangíveis da vida prática.
A idéia da criação da Terra recebeu sério golpe da ciência da
geogenia, i. e., da ciência que descreve a formação e o desenvol-
vimento da Terra como um processo de geração espontânea. Ge-
neratio aequivoca (geração espontânea) é a única refutação prá-
tica da teoria da criação.
:e fácil, todavia, deveras, dizer a um indivíduo em particular
o que Aristóteles disse: você foi gerado por seu pai e sua
mãe, e conseqüentemente foi o coito de dois sêres humanos,
um ato da espécie humana, que produziu o ser humano. Vê-se,
pois, que mesmo em um sentido físico o homem deve sua exis-
tência ao homem . Por conseguinte, não basta ter em mente ape-
nas um dos dois aspectos, a progressão infinita e perguntar a
seguir: quem gerou meu pai e meu avô? Também se tem de ter
em vista o movimento circular, perceptível nessa progressão, se-
gundo o qual o homem, no ato da geração, reproduz-se a si mes-
mo: destarte, o homem sempre permanece como sujeito. Mas
responder-se-á: admito êsse movimento circular, mas em troca você
deve aceitar a progressão, que leva ainda mais adiante ao ponto
CONCEITO MARXISTA DO HOMEM
126

onde eu pergunto: quem criou o primeiro homem ,e a n~tureza


como um todo? Só posso i:esponder: sua p~rgunta e, em s1 mes-
ma um produto da abstração. Pergunte a s1 mesmo como chegou
a ;ssa pergunta. Pergunte-se se sua pergunta não nasce de um
ponto de vista a que eu não posso responder porque êle é detur-
pado. Pergunte-se se essa progressão existe como tal para o pen-
samento racional. Se você indaga acêrca da criação da natureza
e do homem, você está abstraindo êstes. Você os supõe não-
-existentes e quer que eu demonstre que êles existem. Replico:
desista de sua abstração e ao mesmo tempo você abandonará sua
pergunta. Ou, então, se você quer manter sua abstração, seja coe-
rente, e se pensa no homem e na natureza como não-existentes
(XI), pense também em você como não-existente, pois você tam-
bém é homem e natureza. Não pense nem formule quaisquer per-
guntas, pois logo que você o faz sua abstração da existência da na-
tureza e do homem se torna sem sentido. Ou será você tão egoís-
ta que concebe tudo como não-existente, mas quer que você
exista?
Você pode retrucar: não quero conceber a inexistência da na-
tureza etc.; só lhe pergunto acêrca do ato de criação dela, tal
como indago do anatomista sôbre a formação dos ossos etc.
Como, no entanto, para o socialismo, o todo da chamada his-
tória mundial, nada mais é que a criação do homem pelo tra-
balho humano, e a emergência da natureza para o homem, êle,
portanto, tem a prova evidente e irrefutável de sua autocriação, de
suas próprias origens. Uma vez que a essência do homem e da
natureza, .o homem como um ser natural e a natureza como uma
realidade humana, se tenha tornado evidente na vida prática, na
experiência sensorial, a busca de um ser estranho, um ser acima
d0 homem e da natureza (busca essa que é uma confissão da ir-
realidade do homem e da natureza), torna-se pràticamente impos-
sível. O ateísmo, como negação dêsse irrealismo, não mais faz
sentido, pois êle é uma negação de Deus e procura afirmar, por
essa negação, a existência do homem. O socialismo dispensa êsse
método assim tão circundante; êle parte da percepção teórica e
prática sensorial do homem e da natureza como sêres essenciais. É
autoconsciência positiva humana, não mais uma autoconsciência
alcançada graças à negação da religião; exatamente como a vida
real do homem é positiva e não mais alcançada graças à negação
da propriedade privada, por meio do comunismo. O comunismo
é a fase da negação da negação e é, por conseguinte, para a pró-
xima etapa do desenvolvimento histórico, um fator real e necessá-
PROPRIED ADE PRIVADA E TRABALH O 127

rio na emancipação e reabilitação do homem. O comunism o é a


forma necessária e o princípio dinâmico do futuro imediato, mas
o comunism o não é em si mesmo a meta do desenvolv imento -
a forma da sociedade humana.

NECESS IDADES , PRODUÇ ÃO E DIVISÃO


DO TRABAL HO

(XIV) (7) Vimos que importân cia deve ser atribuída , em


uma perspecti va socialista, à riqueza das necessidades humanas, e
conseqüe ntemente também a um nôvo modo de produção e a um
nôvo objeto de produção. Uma nova manifestação das fôrças
humanas e um nôvo enriqueci mento do ser humano. Dentro do
sistema da proprieda de privada, ela tem o significado oposto.
Cada homem especula sôbre a criação de uma nova necessidade
no outro a fim de obrigá-lo a um nôvo sacrifício, colocá-lo sob
nova dependên cia, e induzi-lo a um nôvo tipo de prazer e, em
conseqüência, à ruína econômica. Todos procuram estabelecer um
poder estranho sôbre os outros, para com isso encontrar a sa-
tisfação de suas próprias necessidades egoístas. Com a massa de
objetos, por conseguinte, cresce também o reino de entidades
estranhas a que o homem se vê submetido. Cada' nôvo produto
é uma nova potencialidade de mútua fraude e roubo. O ho-
mem torna-se cada vez mais pobre como homem; êle tem ne-
cessidade crescente de dinheiro para poder apossar-se do ser
hostil. O poder de seu dinheiro diminui na razão direta do
aumento do volume da produção, i. e., sua necessidade cresce
com o poder crescente do dinheiro. A necessidade de dinhei-
ro é, pois, a necessidade real criada pela economia moderna, e
a única necessidade por esta criada. A quantidade de dinheiro
torna-se cada vez mais sua única qualidade importan te. . Assim
como êle reduz tôda entidade à sua abstração, também se reduz
a s1 mesmo, em seu próprio desenvolvimento, a uma entidade
quantitativa. Excesso e imoderação passam a ser seu verdadei-
ro padrão. Isso é demonstr ado subjetivamente em parte pelo
fato de a expansão da produção e das necessidades tornar-se uma
subserviência engenhosa e sempre calculista a apetites desu-
manos, depravad os, antinatur ais e imaginários. A proprieda de
privada não sabe como transform ar a necessidade bruta em
necessida de humana/ seu idealismo é fantasia, capricho e ilusão·.
Nenhum eunuco lisonjeia a seu tirano de forma mais desaver-
12& CONCEITO 'MARXISTA DO
HO ME M

gonhada nem procura por meios


mais infames estimular seu ape
tite embotado, a fim de granje -
ar alg um favor, do qu e o eun
da indústria, o homem de em uco
prêsa, a fim de adquirir algum
moedas de prata ou de atrair as
o ou ro da bôlsa de seu amado
próximo. (T od o produto é um
a isca po r meio da qual o ind
víduo tenta engodar a essência i-
da ou tra pessoa, o dinheiro des
Tô da necessidade real ou poten ta.
cial é um a fraqueza qu e atrair
o passarinho para o visgo. A á
exploração universal da vid a com
nal humana. Como tôd a imper u-
feição do homem é um víncul
com o céu, um ponto em qu o
e seu coração é acessível ao
dote, assim também tôd a nec sac er-
essidade material é um a opo
tunidade par a a gente achega r-
r-se ao próximo, com um a
zade simulada, e dizer: "C am i-
aro amigo, dar-lhe-ei aquilo
qu e você precisa, mas você de
conhece a conditio sine qua
non. Você sabe qual tinta
tem de usar par a se entreg
a mim. Eu o trapacearei ar ·
ao proporcionar-lhe satisfaçã
O homem de emprêsa con o.")
corda com os mais deprav
caprichos de seu próximo, des ado s
empenha o papel de alcoviteir
entre êle e suas necessidades o
, desperta apetites mórbidos
e presta atenção a cada fraqueza nêle,
a fim de, posteriormente, reivin
dicar a remuneração por êsse -
serviço de amor.
Essa alienação é em parte mo
strada pelo fato de o requinte
das necessidades e dos meios
de satisfazê-las produzir, como
respondentes , u,;_na selvajaria bes cor-
tial, um a simplicidade comple
primitiva e abstrata das necess ta,
idades; ou melhor, simplesment
reproduzir-se no sentido oposto e
. Pa ra o trabalhador, até a nec
dade de · ar deixa de ser um a ess i-
necessidade. O homem vo lta 'no
mente a morar em cavernas, va-
mas agora é envenenado pelo
pestilento da civilização. O tra ar
balhador só tem um direito pre
cário a habitá-las, pois elas se -
transformaram em residências
tranhas qu e de repente podem es-
não estar mais disponíveis, ou
qu e êle pode ser despejado se de
não pagar o aluguel. l!le tem
pagar po r êsse sepulcro. A res de
idência cheia de luz qu e o Pro
teu de ~squilo indica como um me -
a das grandes dád ivas po r me
das quais converteu selvagens io
em homens deixa de existir
o trabalhador. Luz, ar e a ma para
is singela lim peza animal deixam
de ser necessidades humanas .
A im un dície, essa corrupção e
trefação qu e corre pelos esgoto pu-
s da civ ilização (is so deve ser
mado lite ral me nte ), tor na- se o to-
eleme nto em que o ho me m viv
Negligência total e inatural, e.
a natureza pu tre fat a passa a
elemento em que êle vive. ser o
Ne nh um de seus sentidos sob
vive, seja sob forma hu ma na, re-
seja mesmo em for ma não-huma
animal. Os métodos ( e ins tru na,
me nto s) mais grosseiros de tra
balho
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO 129

humano reaparecem; assim, o moinho acionado pelos pés dos es-


cravos romanos tornou-se o modo de produção e o modo de exis-
tência de muitos operários inglêses. Não basta que o homem per-
ca suas necessidades humanas; até as necessidades animais de-
saparecem. Os irlandeses não mais têm nenhuma necessidade
senão a de comer - comer batatas, e ainda assim da pior espé-
cie, batatas bolorentas. Mas a França e a Inglaterra já possuem
em tôda cidade industrial uma p.equena Irlanda. Selvagens e
animais podem, ao menos, satisfazer suas necessidades de caçar,
fazer exercícios e ter companheiros. A simplificação da maqui-
naria e do trabalho, porém, é utilizada para fazer operários dos
que ainda estão crescendo, que ainda estão imaturo~, crianras,
enquanto o próprio operário converteu-se em uma criança desa-
tendida de qualquer cuidado. A maquinaria é adaptada à fra-
queza do ser humano, de modo a transformar o fraco ser hu-
mano em máquina.
O fato de o aumento das necessidades e dos meios de sa-
tisfazê-las resultar em uma falta de atendimento das necessidades
e meios de satisfazê-las é demonstrado de várias maneiras pelo
economista ( e pelo capitalista; com efeito, é sempre a homens
de negócios empíricos que nos referimos quando falamos de eco-
nomistas, que são sua auto-revelação e existência científica). Pri-
meiramente, reduzindo as necessidades do trabalhador às míse-
ras exigências ditadas pela manutenção de sua existência física, e
reduzindo a atividade dêle aos movimentos mecânicos mais abs-
tratos, o economista assevera que o homem não tem necessi-
dade de atividade ou prazer além daquelas; e no entanto de-
clara ser êsse gênero de vida um gênero humano de vida. Em
segundo lugar, aceitando como padrão geral de vida (geral por
ser aplicado à massa dos homens) a vida mais pobre que se possa
conceber, êle transforma o trabalhador em um ser destituído de
sentidos e necessidades, assim como transforma a atividade dêle
em uma abstração pura de tôda atividade. Assim, todo o luxo
da classe trabalhadora parece-lhe condenável, e tudo que ultra-
passe a mais abstrata · necessidade ( quer se trate de uma satisfação
passiva ou uma manifestação de atividade pessoal) é encarado
como luxo. A Economia Política, a ciência da riqueza, é, por-
tanto, ao mesmo tempo, a ciência da renúncia, da privação e da
p~upança, que de fato consegue privar o homem de ar fresco e de
atrvrdade física. A ciência de uma indústria maravilhosa é, con-
comitantemente, a ciência do ascetismo. Seu verdadeiro ideal é
o sovina, ascético porém usurário, e o escravo ascético porém pro-
9
130 CONCEITO MARXISTA DO HOM EM

e do
duti vo. Seu ideal moral é o trabalhador que leva uma part
a achar uma arte
salário para a caixa econômica. Chegou mesmo
foi apresentada
servil para corporificar essa idéia favorita, que
eito de sua apa-
de forma sentimental no palco. Assim, a desp
ciência verda-
·rência mundana e sequiosa de prazeres, ela é uma
as ciências. Sua
deiramente moralista, a mais moralista de tôdas
des humanas.
tese principal é a renúncia à vida e às necessida
ao teatro ou a
Qua nto menos se comer, beber, comprar livros, fôr
amar, doutrinar,
bailes, ou ao botequim, e quanto menos se pensar,
economizar e
cantar, pintar, esgrimir etc., tanto mais se poderá
e às traças -
mai or se tornará o tesouro imune à ferrugem
se exprimir nossa
o capital. Quanto menos se f ôr, quanto menos
vida alienada e
vida, tanto mais se terá, tanto maior será nossa
Tud o o que o
maior será a economia de nosso ser alienado.
humanidade de-
economista tira da gente sob a forma de vida e
se pode fazer,
volve sob a de dinheiro e riqueza. E tudo que não
er, beber, ir ao
o dinheiro pode fazer para a gente; pode-se com
tesouros históri-
baile e ao teatro. :Ele pode adquirir arte, saber,
apropriar tôdas
cos, poder político; e pode-se viajar. :Ele pod e
; êle é a ver-
essas coisas para a gente, pode comprar tudo
tudo isso, êle só
dadeira opulência. Mas, apesar de poder fazer
quer criar a si mesmo, e comprar a si mesmo,
pois tudo mais se
ém se possui o
lhe submete. Quando se possui o dono, tamb
Dessa maneira,
servo, e ninguém precisa do servo do dono.
ersas na avareza.
tôdas as paixões e atividades têm de ser subm
o para desejar
O trabalhador deve ter apenas o que lhe é necessári
viver, e deve desejar viver para ter isso.
J;; verdade que apareceu certa controvérsia
no campo da
Economia Política. Alguns economistas (Lauderdale, Malthus,
et ai.) advogam o luxo e condenam a poup
ança, enquanto ou-
a e condenam o
tros (Ricardo, Say, et ai.) advogam a poupanç
luxo a fim de
luxo. Mas os primeiros admitem que desejam
o que os últimos
criar trabalho, i. e., poupança absoluta, ao pass
riqueza, i. e.,
admitem que ad-vogam a poupança a fim de criar
J11xo . Os primeiros têm a idéia romântica
de que a avareza não
, e contradizem
deve determinar por si só o consumo dos ricos
e como sendo um
suas próprias leis ao representar a prodigalidad
demonstram com
direito de enriquecer; seus opositores, então,
diminui ao invés
gran de minúcia e convicção que a prodigalidade
o é hipócrita, ao
de aumentar minhas p.osses. O segundo grup
que determinam a
não admitir que são o capricho e a fantasia que
produção. Esquecem-se das "necessidades requintadas", e
-se de que, atra-
sem consumo não haveria produção. Esquecem
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO 131

, da competição, a produção tem de tornar-se sempre mais


ves , d . l d .
universal e luxuosa, que e o uso que etermma o va or as cot-
sas e que O uso é determinado .. . pela, moda.
. ,, Eles querem que a
rodução seja limitada a c01sa~ ute1s , 1?ªs ~sq:uecem que a
produção de um número excessivo de c01sas utets resulta em
~uitas pessoas inúteis. · Ambos o~ }a~os e~quecem que prodig_a-
lidade e parcimônia, luxo e abstmenoa, riqueza e pobreza sao
equivalentes. '
Não se tem de ser abstinente apenas na satisfação de nossos
sentidos diretos, como comer etc., mas também em nossa par-
ticipação em inte:ês_ses ger~is, nos~a simpati~, con~ian_ça etc., se
se deseja ser econom1co e evitar arrumar-se devido a 1lusoes.
Tudo o que se possui deve ser tornado venal, i. e., útil. Su-
ponhamos que eu pergunte ao economista: estou agindo de
acôrdo com as leis econômicas se ganhar dinheiro com a venda
de meu corpo, prostituindo-o à concupiscência de outra pessoa
(na França os operários chamam à prostituição de suas espô-
sas e filhas a enegésima hora de trabalho, o que é literalmente
verdadeiro) ; ou se eu vender meu amigo aos marroquinos ( e a
venda direta de homens ocorre em todos os países civilizados
sob a forma de alistamento nas fôrças armadas) ? Ele respon-
derá : você não está agindo contra as minhas leis, mas tem de
levar em conta o que a Prima Moral e a Prima Religião têm
a dizer. Minhas moralidade e religião econômicas nada têm
a objetar, porém. . . Mas a quem se deve dar crédito, ao eco-
nomista ou ao moralista? A moral da economia política é
ganho, trabalho, parcimônia e sobriedade - no entanto, a eco-
nomia política promete satisfazer minhas necessidades. A eco-
n?mia política da moral é a riqueza de uma boa consciência,
vutude etc., mas como posso ser virtuoso se não estiver vivo
e como posso ter uma boa consciência se não me der conta de
na~a? A natureza da alienação subentende que cada esfera
ap~ca uma norma diferente e contraditória, que a Moral não
aplica a mesma norma que a Economia Política . etc., porque
cada uma delas é uma alienação particular do Homem; (XVII)
ca_da uma está concentrada em uma área específica da atividade
alienada e, por sua vez, acha-se alienada da outra.
E assim que M. Michel Chevalier censura Ricardo por não
levar em conta a Moral. Mas Ricardo deixa a Economia Polí-
tica falar sua língua própria; não se deve condená-lo se essa
1~?~ª não é a da Moral. M. Chevalier ignora a Economia Po-
lutica, ao preocupar-se unicamente com a Moral, mas ignora de
132 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

fato e necessàriamente a Moral quando se preocupa com a Eco-


nomia Política; pois o reflexo desta naquela é ar?itrári? e, ~ci-
dental, carecendo, assim, de qualquer base ou carater c1ent1fico,
uma mera impostura, ou então é essencial e só pode ser
uma relação entre as leis econômicas e a Moral. Se não existe
uma relação assim, pode Ricardo ser chamado à re_sponsa?i_li-
dade? Outrossim, a antítese entre Moral e Economia Pohtica
é em si mesma apenas aparente; há uma antítese e igualmente
não há antítese. A Economia Política exprime à sua própria
manéifa as leis morais.
A ausência de necessidades, como princípio da economia
política, é atestada da forma mais chocante em sua teoria da po-
pulação. Há homens em demasia. A própria existência do ho-
mem é puro luxo, e se o trabalhador fôr rt moralizado" , êle será
econômico ao procria,·. (Mill sugere louvor público aos que se
mostrarem abstêmios nas relações sexuais, e condenação pública
aos que pequem contra a esterilidade do matrimônio. Não é
essa a doutrina moral do ascetismo ?) A produção de homens afi-
gura-se uma desgraça pública.
O significado da produção com relação aos ricos é revelado
no que tem para os pobres. No alto, sua manifestação é sem-
pre requintada, disfarçada, ambígua, uma aparência; nas cama-
das inferiores, ela é crua, franca, sem rodeios, uma realidade.
A necessidade áspera do trabalhador é fonte de muito maior lu-
cro do que a necessidade requintada do abastado. As moradias
em porões de Londres dão mais aos landlords do que os palá-
cios, i. e., elas constituem maior riqueza no que toca aos /and-
lords e, assim, em têrmos econômicos, maior riqueza social.
Assim como a indústria se reflete no refinamento das ne-
cessidades, também o faz em sua rudeza, e na rudeza delas pro-
duzida artificialmente, cuja verdadeira alma é a auto-estupefação,
a satisfação ilusória das necessidades, uma civilização dentro da
barbárie grosseira da necessidade. As tavernas inglêsas são, por-
tanto, representações simbólicas da propriedade privada. Seu
luxo desmascara a relação real do luxo industrial e da riqueza
com o homem. Elas são, pois, justamente, o único divertimento
dominical do povo, pelo menos tratado com brandura pela po-
lícia inglêsa.
Já vimos como o economista estabelece a unidade do trabalho
e do capital de várias maneiras: ( 1) o capital é trabalho acumu-
lado/ ( 2) a finalidade do capital dentro da produção - em par-
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO
133
te a reprodução do capital_ com um lucro, em parte o capital
omo matéria-prima ( material do trabalho), em parte o capital
~omo êle mesmo um instrumento de trabalho ( a máquina é
capital fixo, que é idêntico ao trabalho) - é trabalho produtivo;
(3) 0 trabalhador é capital; ( 4) os salários fazem parte dos
custos do capital; ( 5) para o trabalhador, o trabalho é a reprodu-
ção de seu capital-vida; ( 6) para o capitalista, o trabalho é um
fator na atividade de seu capital.
Por fim, (7) o economista postula a união original do ca-
pital e trabalho como união de capitalista e trabalhador. Essa é
a situação paradisíaca original. Como êsses dois fatôres (XIX),
tal como se f ôssem duas pessoas, avançam para a garganta do
outro é, para o economista, um acontecimento fortuito que por
isso pode ser explicado apenas pelas circunstâncias exteriores ( ver
Mill).
As nações ·ainda estonteadas pelo fulgor físico de metais pre-
ciosos e, por isso, ainda fetichistas do dinheiro metálico não são
ainda nações financeiras plenamente desenvolvidas. Compare-se
a França com a Inglaterra. A medida em que a solução de um
problema teórico é uma tarefa da prática, e é realizada pela prá-
tica, e a medida em que a prática correta é a condição para uma
teoria verídica e positiva, é demonstrada, por exemplo, no caso do
fetichismo. A percepção sensorial de um fetichista difere da de
um grego porque sua existência sensorial é diferente. A hosti-
lidade abstrata entre sentidos e espírito é inevitável enquanto o
sentido humano para a natureza, ou o significado humano da
natureza e conseqüentemente o sentido natural do homem, não
tiver sido produzido por meio do trabalho do próprio homem.
. A igualdade nada mais é que o alemão "lch = Ich", tradu-
zido para a forma francesa, i. e., política. A igualdade como
base do comunismo é uma fundação política e é a mesma de
quando os alemães apóiam sôbre ela o fato de conceberem o ho-
mem como autoconsciência universal. Está claro, a transcendên-
c~a da alienação sempre provém da forma de alienação que é a
força dominante; na Alemanha aut.oconsciência; na França,
.
igualdade, por causa da política;' na Inglaterra, a necessidade
r~al, material, auto-suficiente, prática. Proudhon deve ser apre-
oado e criticado sob êsse ponto de vista.
S_e agora caracterizarmos o próprio comunis":o .. (~ois, como
negaçao da negação, como a apropriação da existencia humana
que medeia entre uma e outra por meio da negação da propne-
134 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

dade privada não é a posição verdadeira, originada por si mesma,


mas, antes, uma que parte da propriedade privada) ... 1 • • • a
alienação da vida humana continua e uma alienação bem maior
continua quanto mais a gente tem consciência disso) só pode ser
realizada pelo estabelecimento do comunismo. A fim de superar
a idéia de propriedade privada bastam as idéias comunistas, mas
é necessário atividade comunista genuína no sentido de superar
a propriedade privada real. A História produzirá, e o desenvol-
vimento que já em pensamento reconhecemos como autotranscen-
dente na realidade implicará um processo severo e prolongado.
Temos, entretanto, de considerá-lo um avanço, pois obtivemos
previamente uma consciência da natureza limitada e ..do alvo da
evolução histórica e podemos ver para além dela.
Quando artesãos comunistas formam associações, o ensino
e a propaganda são seus primeiros objetivos. Mas sua própria
associação cria uma necessidade riova - a necessidade da so-
ciedade -, o que parecia ser um meio torna-se um fim. Os re-
sultados mais notáveis dêsse desenvolvimento prático podem ser
vistos quando operários socialistas franceses se reúnem. Fu-
mar, comer e beber não mais são meios de congregar pessoas.
A sociedade, a associação, o divertimento tendo também como
fito a sociedade, é suficiente para êles; a fraternidade do homem
não é a frase vazia, mas rima realidade, e a pobreza do homem
resplandece sôbre nós vinda de seus corpos fatigados.

(XX) Quando a Economia Política afirma que a oferta


e a procura sempre se equilibram, esquece imediatamente seu
próprio argumento ( a teoria da população) de que a oferta de
homens sempre excede a procura, e, conseqüentemente, que a des-
proporção entre oferta e procura é mais chocantemente expressa
no fim essencial da produção - a existência do homem.
O grau até o qual o dinheiro, que tem a aparência de um
meio, é o poder real e o único fim, e em geral o alcance até
que o meio que me assegura a existência e posse do ser objetivo
estranho é um fim em si mesmo podem ser vistos no fato da
propriedade territorial onde a terra é a fonte da vida, e cavalo e
espada _onde êstes são os verdadeiros meios de vida, são também

1 Uma parte da página está


rasgada neste ponto, e segue~-se
fragmentos de S6is linhas que são insuficientes para reconstruir a
passagem. - Nota do T.
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO
135
reconhecidos como os verdadeiros podêres políticos. Na Idade
Média, um estado torna-se emancipado quando tem O direito de
levar espada. Entre povos nômades, é o cavalo que torna livre
0 homem, fazendo-o membro da comunidade. .
Dissemos, acima, que o homem está regredindo à habitação
das cavernas, mas numa forma alienada e maligna. O selvagem
em sua caverna ( um elemento natural que lhe é livremente ofe-
recido para uso e proteção) não se sente um estranho; pelo con-
trário, sente-se tão em casa quanto um peixe na água. Mas a
habitação do pobre num porão é uma habitação hostil, "um
poder estranho, constrangedor, que só se entrega em troca de
suor e sangue". Ele não pode considerá-la como seu lar, como
. um lugar onde afinal possa dizer "aqui estou em casa". Pelo
contrário, êle se encontra na casa de outra pessoa, a casa de
um estranho que está à sua espera diàriamente e o despeja se
não pagar o aluguel. Ele também percebe o contraste entre sua
própria morada e uma residência humana, como as que existem
naquele outro mundo, o paraíso dos ricos.
A alienação é evidente não só no fato de meu meio de vida
pertencer a outrem, de meus desejos serem a posse inatingível de
outrem, mas de tudo ser dgo dife1·ente de si mesmo, de minha
atividade ser outra coisa qualquer, e, por fim ( e isso também
ocorre com o capitalista), de um poder desumano mandar em
tudo. Há uma espécie de riqueza que é inativa, pródiga e de-
votada ao prazer, cujo beneficiário se comporta como um indiví-
duo efêmero de atividade sem propósito, que encara o trabalho
escravo dos outros, sangue e suor humanos, como a prêsa de sua
cupidez e vê a humanidade, e a si mesmo, como um ser supérfluo
e votado ao sacrifício. Assim, êle adquire um desprêzo pela hu-
manidade, expresso na forma de arrogância e de malbaratamento
de recursos que poderiam sustentar cem vidas humanas, e também
na forma da ilusão infame de que sua extravagância irrefreada
e interminável consumo improdutivo é condição indispensável
ao trabalho e à subsistência de outros. Ele vê a realização dos
podêres essenciais do homem apenas como a realização de sua
própria vida desordenada, de seus caprichos e de suas idéias in-
c?nstantes e bizarras. Tal riqueza, contudo, que .vê a riquez_a
somente como um meio, como algo a ser consurrudo, e q~e e,
port~nto, tanto senhora como escrava, generosa como mesqw~a,
ca_Prichosa, presunçosa, vaidosa, refinada, culta e espirituosa, amhda
nao descobriu a riqueza como uma fôrça inteiramente estran a,
136 CONCEITO. MAP.XISTA DO HOMEM

mas vê nela seu próprio poder e fruição antes que riqueza ...
meta final. 2
(XXI) . . . e a fulgente ilusão acêrca da natureza da ri-
queza, produzida por sua estonteante aparência sensorial, é de-
frontada pelo industrial trabalhad,or, sóbrio, econômico e pro-
saico, que está esclarecido a respeito da natureza da riqueza e
que, embora incrementando a amplitude da vida regalada do
outro e lisonjeando-o com seus produtos (pois seus produtos são
outros tantos ignóbeis .mimos para os apetites do perdulári o), sabe
como apropriar para si mesmo, da única maneira útil, os po-
dêres decadentes do outro. Malgrado, portanto, a riqueza in-
dustrial pareça à primeira vista ser o produto de riqueza pródiga
e fantástica, não obstante despoja o último de maneira ativa
por seu próprio desenvolvimento. A queda da taxa de juro é
uma conseqüência necessária do desenvolvimento industrial. As-
sim, os recursos do rentier esbanjador minguam proporciona/-
mente ao aumento dos meios e oportunidades de divertimento.
:Ele se vê obrigado seja a consumir seu capital e arruinar-se, seja a
tornar-se êle próprio um industrial. . . Por outro lado, há um au-
mento constante da renda da ter1'a no decorrer do desenvolvi-
mento industrial, mas consoante já vimos deve chegar uma hora
em que a propriedade territorial, como qualquer outra forma de
propriedade, recai na categoria de capital que se reproduz
por meio do lucro - e isso é resultado do mesmo desenvolvi-
mento industrial. Assim, o perdulário proprietário de terras tem
de entregar seu capital e arruinar-se, ou então tornar-se um ren-
deiro de sua própria propriedade - um industrial agrícola.
O declínio da taxa de juro ( que Proudhon considera co-
mo abolição do capital e uma tendência para a socialização do
capital) é, pois, antes um sintoma direto da vitória completa
do capital _ativo sôbre a riqueza pródiga, i. e., a transformação
de tôda propriedade privada em capital industrial. :e a vitória
completa da propriedade privada sôbre suas qualidades aparente-
m ente humanas e a submissão total do dono da propriedade à
essência da propriedade privada - o trabalho. :e evidente que
o capitalista industrial também tem seus prazeres. :Ble não re-
torna absolutamente a uma simplicidade antinatural em suas

2 O fim da página está rasgado e faltam várias linhas do


texto. - N.ota do T.
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO
137

necessidades, mas sua fruição é somente questão secundária. é


recreação subordinada à produção, e assim um divertimento ~al-
culado, econômico, pois êle anota seus prazeres como um de-
sembôlso de capital e o que esbanja não deve ser mais do que
pode ser s?bst~túído co~ lucros p~la reproduçã~ do capital. Des-
tarte, o divertimento ÍICa subordinado ao capital e o indivíduo
amante de prazeres é sujeito ao acumulador de capital, enquanto
outrora ocorria o contrário. A queda da taxa de juro é, por
conseguinte, um mero sintoma de abolição do capital, na me-
dida em que é um sintoma de seu crescente domínio e aliena-
ção que acelera sua própria abolição. De maneira geral, essa é
a única maneira pela qual o que existe afirma seu contrário.
A disputa entre economistas a respeito de luxo e poupança,
portanto, é apenas uma disputa entre a economia política que tor-
nou-se claramente consciente da natureza da riqueza e a que
ainda está sobrecarregada com recordações românticas, antiin-
dustriais. Nenhum dos lados, entretanto, sabe como expressar o
assunto da disputa em têrmos, ou é capaz, por conseguinte, de
resolver a pendenga.
Além disso, a renda da terra, qua renda da terra, foi pos-
ta abaixo, pois contra a argumentação dos fisibcratas de ser o
dono da terra o único produtor legítimo, a economia moderna
demonstra, antes, que o dono da terra como tal é o único rentier
completamente improdutivo. A agricultura é um negócio do
capitalista, que emprega seu capital nela quando pode contar
com uma taxa de lucro normal. A afirmação dos fisiocratas de
que a propriedade territorial, como única propriedade produtiva,
devia ser a única a pagar impostos e, em conseqüência, ser a
única a aprová-los e a participar dos negócios públicos é transfor-
mada na convicção oposta de que os impostos sôbre o . arren-
~amento da terra são os únicos impostos sôbre um rend11:1ento
improdutivo e, assim, os únicos não nocivos ao produto nacwnal.
~stá claro que, sob êste ponto de vista, nenhum pr~vilé~io polí-
tic? para os proprietários de terras decorre de sua situaçao como
prmopais contribuintes de impostos.
Tudo o que Proudhon concebe como um movimen · °
t do
trabalho contra o capital é somente o movimento do tra~alh~ sob
ª forma de capital de capital industrial contra o que nao _e con-
'
sunu"dO como capital "
i. e. industrialmente. E esse mov_1mento
.
segue seu caminho t;iunfante o caminho da vitória do capital m-
·
dUSt nal. '
Ver-se-á que só quando o trabalho e, conceb1·d0 como a
138 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

essência da proprieda de privada é que podem ser analisadas as


características reais do movimen to econômico propriam ente dito.
A sociedade, como é vista pelo economista, é a sociedade
civil, em que cada indivíduo é uma totalidade de necessidades
e apenas existe para outra pessoa, como esta existe para êle, na
medida em que cada um é um meio para o outro. O economis-
ta ( como a política em seus direitos do homem) reduz tudo ao
homem, i. e., ao indivíduo , a quem êle despoja de tôdas as ca-
racterísticas com o fito de classificá-lo como capitalista ou como
trabalhad or.
A divisão do trabalho é a expressão econômica do caráter
social do trabalho dentro da alienação. Ou, visto ser o trabalho
apenas uma expressão da atividade humana dentro da aliena-
ção, de atividade vital como alienação da vida, a divisão do
ttabalho nada mais é que o estabelecimento alienado da atividade
humana como uma real atividade-espécie ou a atividade do ho-
mem como um ente-espécie.
Os economistas mostram-se muito confusos e contradizem-se
a si mesmos acêrca da natureza da divisão do trabalho ( que, na-
turalment e, tem de ser olhada como uma fôrça motivadora prin-
cipal na produção da riqueza desde que o trabalho é reconhecido
como a essência da p.ropriedade privada), i. e., acêrca da forma
alienada da atividade humana como atividade-espécie.
Adam Smith: 3 "A divisão do trabalho. . . não é originària-
mente o efeito de qualquer sabedoria humana. . . :e a conse-
qüência necessária, se bem que muito lenta e gradativa, da pro-
pensão a barganha r, trocar e cambiar uma coisa por outra.
[Quer essa propensão seja um daqueles princípios originais da
riatureza humana ... ] ou quer, como parece mais provável, seja a
conseqüência necessária das faculdades da razão e da fala [ não
cabe aqui investiga r]. :e comum a todos os ·homens e não pode
ser encontrad a em nenhuma outra raça de animais . . . [Em quase
tôdas as outras raças de animais, o indivíduo ] quando atinge

3 As passagens seguintes são de A Riqueza das Nações, Livro 1,


Caps. II, III e IV. Marx refere-se à tradução francesa: Recherches
sur la na,ture et les causes de la richesse des natio~s, por Adam
Smith. Traductio n nouvell~, avec les notes . et observa~10~; par
main Garnier T. I-V, Paris, 1802. Marx cita com oxrussoes e, .e~
G:~:
'
guns casos parafrasei - · d 1que1
· · as omissoes
a o texto. Nesta traduçao, m d e
restaurei ~ texto original, usando a edição Everyman , colocandoT en-
tro de colchêtes as parte que foralJ} parafrasea das. - Nota do ·
PROPRIEDADE PRIVADA E
TRABALHO 139

m
ind ep en de nte . . . Mas o home
a maturidade está int eir am en te au-
ntemente pa ra necessitar do
tem oportunidade quase consta
qu e êle esperará obtê-lo unica-
xílio de seus irmãos e é em vão a bem
~ mais provável qu e sej
mente da benevolência dêles. or,
amor-próprio dêles em seu fav
sucedido se pu de r interessar o lhes
oso pa ra êles fazer-lhe o qu e
mostrando-lhes qu e será vantaj ís-
solicita . . . Nã o nos dirigimos
à clemência dêles, mas a seu ego
e nu nca fal am os de nos sas necessidades, porém das vanta-
mo ,
gens dêles (págs. 12-13 ).
o é po r me io de tra tad o, de troca e de compra que
"C om -
os de ou tro s a ma ior pa rte dos bons ofícios de qu e mutua
obt em
carece mo s, ass im tam bém é essa mesma disposição pa ra
me nte
oci ar qu e ori gin àri am ent e ens eja a divisão do trabalho. Em
neg faz
a tribo de caç ado res ou pas tôres, uma determinada pessoa
um qu e
os e fle cha s, po r exe mp lo, com maior rapidez e perícia
arc de
e as troca po r gado ou carne
qualquer outra. Freqüentement sa
e acaba verificando qu e des
veado com seus companheiros
de con seg uir ma is gad o ou carne de veado do qu e
maneira po pegá-los. Te nd o em vista
pes soa lm ent e ao cam po pa ra
se fôsse
erê sse pró pri o, ent ão, a con fecção de arcos e flechas pas-
seu int
. (págs. 13 -14 ).
sa a ser seu principal negócio. .
is de homens diferentes .. .
"A diferença de talentos natura .. .
o efeito da divisão do trabalho
não é . . . tanto a causa quanto
trocar e cambiar, cada homem
Sem a disposição pa ra negociar, ne-
mesmo tudo qu e desejasse de
teria que providenciar po r si ba-
teriam de ter . . . o mesmo tra
cessário e conveniente. Todos ão,
havido essa diferença de ocupaç
lho a fazer e não poderia ter de
a qualquer diferença gra nd e
a única capaz de da r margem
talentos (pág. 14 ) .
qu e forma aquela diferença
"Assim como é essa distribuição
também é ela que tor na úti l tal
d~ talentos . . . entre os homens, m
mais . . . da mesma espécie recebe
diferença. Muitas tribos de ani do
de índole muito mais notável
da natureza uma diferenciação entre
a educação, parece ter lugar
que, precedendo o costume e
. Po r nat ure za, um filó sof o não é no temperamento e
os h?m~ns
ma ção nem a me tad e dif erente de um carregador do
na md galgo de um spaniel,
O é um mastim de um galgo, ou um
que ani-
r. Estas diferentes tribos de
ou _êste último de um cão-pasto uca
da mesma espécie, são de po
m~_s, contudo, apesar de tôdas não
O vigor do mastim (X XV I)
~ti idade uma para a outra . Os
a agilidade do galope, seja. . .
e, pelo menos, assistido seja pel
140 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

efeitos dês ses diferentes temperamentos e talentos, à falta de


capacidade ou inclinação para trocar e cambiar, não podem ser
congregados em um cabedal comum, e em nada contribuem
para melhor acomodação e utilidade da espécie. Cada animal
continua obrigado a sustentar-se e a defender-se, separada e inde-
pendentemente, e não obtém qualquer gênero de superioridade
dessa variedade de talentos com que a natureza distinguiu seus
stmelhantes. Entre os homens, pelo contrário, os mais diversos
pendores são de utilidade mútua; os diferentes produtos de seus
respectivos talentos, graças à inclinação geral para trocar, nego-
ciar e cambiar, são reunidos, por assim dizer, em um cabedal
comum, onde cada homem pode adquirir qualquer parte da
produção dos talentos de outros homens para que tenha aplica-
ção (págs. 14-15).
"Como é a capacidade de trocar que dá oportunidade à di-
visão do trabalho, a extensão dessa divisão tem sempre de ser
limitada pela extensão daquela capacidade, ou por outras. pala-
vras, pela extensão do mercado. Quando o mercado é muito
pequeno, ninguém pode encontrar qualquer estímulo para dedi-
car-se inteiramente a um emprêgo, por falta de capacidade para
cambiar a parte excedente de seu próprio trabalho, acima e além
de seu próprio consumo, por partes análogas da produção do
trabalho de outros homens para que tiver aplicação" (pág. 15).
Num estágio adiantado da sociedade: "Todo homem, pois,
vive por meio da troca, ou torna-se, em certa medida, um merca-
dor, e a própria sociedade alcança o que é propriamente uma
sociedade comercial" (pág. 20). (Ver Destutt de Tracy: 4 "A
sociedade é uma série de trocas recíprocas; o comércio é tôda a
essência da sociedade.") A acumulação de capital aumenta com
a divisão do trabalho e vice-versa. - Até aqui falou Adam Smith.
"Se tôda família produzisse tudo o que consome, a sociedade
poderia prosseguir sem que tivesse lugar qualquer espécie de
intercâmbio. Em nosso estado adiantado de sociedade, a troca,
apesar de não ser fundamental, é indispensável." 5 "A divisão do
trabalho é um hábil desdobramento das capacidades do homem;
ela aumenta a produção da sociedade - seu poder e seus praze-
res - , mas diminui a capacidade de cada pessoa considerada

4 Destutt de Tracy, Eléments d'idéologie. Traité de la volonté


et ses effets, Paris, 1826, págs. 68, 78.
5 Jean-Baptiste Say, Traité d'économie p,o litique. 3éme. édition,
Paris, 1817, T. I, pág. 300.
PROPRIEDADE PRNADA -E TRABALHO 141

a." e
individualmente. A produção não pod e ter lugar sem a troc
_ Assim falou J. B. Say.
sua inteligência e
. "As faculdades intrínsecas do homem são
ndas da situação da
sua capacidade física para trabalhar. As oriu
rtir o trabalho e dis-
sociedade consistem na capacidade para repa
pod er trocar os ser-
tribuir tarefas entr e diferentes pessoas e no
subsistência. O mo-
viços e produtos que constituem os meios de
a outro é o interêsse
tivo que impele o hom em a dar seus serviços
iços prestados. O
próprio; êle exige uma retribuição pelos serv
spensável ao esta-
direito à propriedade privada exclusiva é indi
belecimento das trocas entre os hom ens. . . Troca e divisão do
7 Assim falou Skarbek.
trabalho são mutuamente dependentes." -
Mill apresenta a troca aperfeiçoada - o com
ercio - como
atuação do homem
uma conseqüência da divisão do trabalho: "A
pode ser reconstituída por elementos mui
to · simples. :Ele não
prod uzir movimento.
pode, com efeito, fazer mais nada se não
XV II) e pod e se-
Pode aproximar as coisas uma da outra, (XX
éria desincumbem-
pará-las uma da outra: as propriedades da mat
maquinaria, consta-
-se do resto. . . No emprêgo do trabalho e da
entados pela distri-
ta-se, amiúde, que os efeitos pod em ser aum
têm qualquer ten-
buição hábil, pela separação das operações que
ugação · de tôdas as
dência a se obstarem mutuamente e pela conj
auxiliarem-se umas às
operações que podem ser feitas de modo a
em executar muitas
outras·. Como os homens em geral não pod
e destreza com que
operações diferentes com a mesma rapidez
sempre vantajoso li-
pela prática aprendem a executar algumas, é
operações impostas a
mitar tanto quanto possível o número de
os esforços dos ho-
cada um. Para dividir o trabalho e repartir
, em muitos casos é
mens e máquinas, com a máxima vantagem
as palavras, produ-
n_ecessário operar em gran de escala; por outr
Ê essa vantagem que
zir as utilidades em grandes quantidades.
umas poucas, ins-
dá existência às grandes manufaturas, de que
üentemente abastecem
t~adas nos locais mais convenientes, freq
ade desejada da uti-
~ao um país, porém muitos, com a qua ntid
lidade produzida." a - Assim falou Mil!.

6
lbid ., pág. 76.
7
• F. Skarbek, Théo rie des richesses
sociales, sui.-Jie d'un e biblio-
, T. I, págs. 25-27.
graphie de l'écon.omie poli tiqu e, Paris, 1829
8 y, Londres, 1821.
M James Mill, Elem ents o/ Poli tical Eco nom ( Paris, 1823) • -
atrx cita da trad ução francesa por J. T. Pari
sot
N 0 a do T.
142 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

Tôda a moderna Economia Política, entretanto, está acorde


em que a divisão do trabalho e riqueza da produção, a divisão do
trabalho e acumulação de capital determinam-se mutuamente; e
também que só a propriedade privada livre e autônoma pode pro-
duzir a mais eficaz e extensiva divisão do trabalho.
O argumento de Adam Smith pode ser sintetizado da se-
guinte forma: a divisão do trabalho confere a êste uma capa-
cidade de produção ilimitada. Ela se origina da propensão a
trocar e barganhar, uma propensão especificamente humana
que provàvelmente não é acidental, porém determinada pelo
uso da razão e da fala. O motivo dos que se empenham nas
trocas não é a bondade, mas o egoísmo. A diversidade dos ta-
lentos humanos é mais o efeito que a causa da divisão do tra-
balho, i. e., do intercâmbio. Ademais, é só a última que torna
útil essa diversidade. As qualidades particulares das diferentes
tribos dentro de uma espécie animal são naturalmente mais pro-
nunciadas que as diferenças de aptidões e atividades dos sêres
humanos. Mas como os animais não são capazes de estabelecer
troca, a diversidade de atributos dos animais da mesma espécie,
porém de tribos diferentes, não beneficia qualquer animal indivi-
dualmente. Os animais são incapazes de combinar as várias
qualidades de sua espécie, ou de contribuir para a superioridade
e confôrto comum da espécie. Dá-se o contrário com os homens,
cujos mais diversos talentos e formas de atividade são úteis uns
aos outros, porque êles podem reunir seus diferentes produtos em
um cabedal comwn, de que cada homem pode comprar. Como
a divisão do trabalho surge da propensão a trocar, ela se desen-
volve e é limitada pela extensão da troca, pela extensão do mer-
cado. Em condições desenvolvidas todo homem é um mercador
e a sociedade é uma associação comercial. Say encara a troca
como acidental e não fundamental. A sociedade poderia existir
sem ela. Torna-se indispensável em um estágio adiantado da
sociedade. Todavia, a produção não pode ocorrer sem ela. A
divisão do trabalho é um meio cômodo e útil, um hábil desdobra-
mento das faculdades humanas para a riqueza social, mas di-
minui a capacidade de cada pessoa considerada individualmente.
O último comentário é um progresso da parte de Say.
Skarbek distingue as faculdades inatas individuais do ho-
mem, inteligência e capacidade física para trabalhar, das oriundas
da sociedade - troca e divisão do trabalho, que se determinam
mutuamente. A condição prévia indispensável da troca, porém,
é a propriedade privada. Skarbek exprime aqui objetivamente
PROPRIEDADE PRNADA E TRABALHO 143

0 que dizem Smith, Say, Ricardo, et al., ao designar O egoísmo


e O interêsse próprio como base da troca e o regateio comercial
como a forma de troca essencial e adequada.
Mill representa o comércio como conseqüência da divisão
do trabalho. Para êle, a atividade humana reduz-se a m.ovimento
mecânico. A divisão do trabalho e o uso de maquinaria pro-
movem a abundância da produção. A cada indivíduo deve ser
dada a menor amplitude possível de operações. A divisão do
trabalho e o uso de maquinaria, por sua vez, exigem a produção
em massa da riqueza, i. e., de produtos. Essa é a razão para a
manufatura em larga escala.
(XXXVIII) A consideração da divisão do trabalho e da troca
é do máximo interêsse, pôsto que são a expressão perceptível, alie- .,
nada, da atividade e capacidades humanas como a atividade e as
capacidades próprias de 11ma espécie.
Declarar que a propriedade privada é a base da divisão do
trabalho e da troca é simplesmente afirmar que o traba/,ho é a
essência da propriedade privada; uma afirmação que o economista
não pode provar e que desejamos provar para êle. ~ precisa-
mente no fato de a divisão do traba/,ho e da troca serem mani-
festações da propriedade privada que encontramos a prova,
primeiro de que a vida humana necessitava da propriedade pri-
vada para sua realização, e segundo que ela agora exige a su-
peração da mesma.
A divisão do trabalho e a troca são os dois fenômenos que
levam o economista a gabar o caráter social de sua ciência, en-
quanto, ao mesmo tempo, inconscientemente exprime a natureza
contraditória dessa ciência - o esclarecimento da sociedade gra-
ças a interêsses não-sociais, particulares.
Os fatôres que temos de considerar agora são os seguintes:
a propensão a trocar - cuja base é o egoísmo - é encarada
com~ a causa ou o efeito recíproco da divisão do trabalho. Say
cons1d~ra a troca como não sendo fundamental para a natureza
da soCiedade. A riqueza e a produção são explicadas pela divisão
do tr~b'.11ho e pela troca. O empobrecimento e o desnaturament?
da atividade individual devido à divisão do trabalho são admi-
tidos. A troca e a divisão do trabalho são reconhecidas como
as fontes da grande diversidade dos talentos humanos, que por
sua vez se torna útil em decorrência da troca. Skarbek distingue
duas ,P~es nas faculdades produtivas dos homens: 1) as ap~d~s
especificas ou habilidades, as individuais e inatas, e a sua mteli-
144 CONCE ITO MARXISTA DO HOME M

gência ; 2) as provin das não do indiví duo real, mas da sociedade


- a divisão do trabal ho e a troca. Além disso, a divisão do
trabal ho é limita da pelo mercado. O trabal ho human o é sim.
ples movi?n~1~to mecâ~ico; a maior parte é feita pelas proprie.
d:des matena1s dos obJetos. O menor númer o possível de opera.
çoes deve ser atribu ído a cada indiví duo. Fissão do trabalho e
concentração do capital; a nulida de da produção do indivíduo e
a _produção em massa de nquez a. Significado da propriedade
pnvad a livre na divisão do trabalho.

DINHEIRO

(XLI) Se os sentimentos, pa1xoes etc., do homem não são


meras características antropológicas no sentid0 mais restri_to, mas
sim afirmações verdadeiramente ontoló gicas do ser (natur eza), e
se só são realmente afirmadas na medid a em que seu objeto existe
cerno um objeto do sentido, então é evidente:
( 1) que seu modo de afirmação não é um só e imutável, mas,
·antes, que os diversos modos de afirmação constituem o caráter
distint ivo de sua existência, de sua vida. A maneira pela qual
o objeto existe para êles é o modo distintivo de sua gratificação;
(2) onde a afirmação sensorial é uma anulação direta do obje-
to em sua forma indepe ndente ( como ao beber, comer, trabalhar
um objeto etc.), esta é a afirmação do objeto;
( 3) na medid a em que o homem, e daí também seus sentimen-
tos etc., são human os, a afirmação do objeto por outra pessoa tam-
bém é sua própri a gratificação;
( 4) só por meio da indúst ria desenvolvida, i. e., através da me-
diação da propri edade privada, concretiza-se a essência ontológi~a
das paixões humanas, em sua totalidade e human idade; a própria
ciência do home m é um produ to da autofarmação do homem
através da atividade prática;
( 5) o significado da propri edade privada - liberta de sua alie-
nação - é a existência de objetos essenc1a1S ao homem, como
objeto s de divertimento e atividade.
O dinheiro, já que possui a propriedade de comprar tu~o,
de aprop riar objetos para si _mesmo, é, por co?seguinte, o ob1et
par excellence. O caráter umversal dessa propn edade corresponde
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO 145

à onipotência do dinheiro, que é encarado como um ser onipo-


tente ... o dinheiro é o proxeneta entre a necessidade e o objeto,
entre a vida humana e os meios de subsistência. Mas o que me-
deia a minha vida também medeia a existência de outros homens
para mim. Ele é para mim outra pessoa.

"Com a breca! pernas, braços, peito,


Cabeça, sexo, aquilo é teu;
Mas, tudo que, fresco, aproveito,
5erá por isso menos meu?
Se podes pagar seis cavalos,
As suas fôrças não governas?
Corres por morros, clivos, valos
Qual possuidor de vinte e quatro pernas.
(GOETHE, Fausto - Mefistófeles) 1

Shakespeare em Timon de Atenas:

"Que é isso? Ouro? Ouro amarelo, brilhante, precio-


so? Não, deuses: eu não faço protestos vãos. Raízes quero,
ó céus azuis! Um pouco disso tornaria o prêto branco; o
feio, belo; o injusto, justo; o vil, nobre; o velho, nôvo; o
covarde, valente. Mas, oh, ó deuses! por que é isso? isso
que é, deuses? Isso fará com que os vossos sacerdotes e os
vossos servos se afastem de vós; isso fará arrancar o traves-
seiro de debaixo das cabeças dos homens fortes. :E.ste es-
cravo amarelo fará e desfará religiões; abençoará os réprobos;
fará prestar culto à alvacenta lepra; assentará ladrões, dan-
do-lhes títulos, genuflexões e aplauso, no mesmo banco em
que se assentam os senadores; isso é que faz que a in-
consolável viúva contraia novas núpcias; e que aquela que
as úlceras purulentas e os hospitais tornavam repugnan-
te, fique outra vez perfumada e apetecível como um dia de
abril. Anda cá, terra maldita, meretriz, comum a tôda a
espécie humana, que semeia a desigualdade na turbamulta
das nações, vou devolver-te à tua verdadeira natureza."

1
d Goethe, Fausto, Parte I, Cena 4. Elita pasagem foi tirada
ª trad. por Bayard Taylor The Modem Library, Nova York, 1950
- N. do T. '
S (N. do T. - Em português recorremos à trad. de Jenny Klabin
e~all, S.. Paulo, Instituto Prog;esso Editorial, 1949, pág. 106.)
1
146 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

E mais adiante:

"ô tu, amado regicida; caro divorciador da mútua


afeição do filho e do pai; brilhante corruptor dos mais
puros leitos do Himeneu ! valente Marte! tu, sempre nôvo,
viçoso, amado galanteador, cujo brilho faz derreter a vir-
ginal neve do colo de Diana! tu, deus visível, que tornas os
impossíveis fáceis, e fazes com que se beijem! que em tô-
das as línguas te explicas para todos os fins! ô tu, pedra
de toque dos corações ! trata os homens, teus escravos, co-
mo rebeldes, e, pela tua virtude, arremessa-os a todos em
discórdias devoradoras, a fim de que as feras possam ter o
mundo por império !" 2

Shakespeare retrata admiràvelmente a natureza do dinheiro.


Para entendê-lo, comecemos interpretando o trecho de Goethe.
O que existe para mim através da mediação do dinheiro,
aquilo por que eu posso pagar ( i. e., que o dinheiro pode com-
prar), tudo isso sou eu, o possuidor do dinheiro. Meu próprio
poder é tão grande quanto o poder do dinheiro dêle. As pro-
priedades do dinheiro são as minhas próprias ( do possuidor) pro-
priedades e faculdades. O que eu sou e posso f aze1·, portanto, não
é de todo determinado pela minha individualidade. S.ou feio, mas
posso comprar a mais bela mulher para mim. Conseqüentemente,
não sou feio, pois o efeito da feiúra, seu poder de repulsa, é anu-
lado pelo dinheiro. Como indivíduo sou coxo, mas o dinheiro
proporciona-me vinte e quatro· pernas; logo, não sou coxo. Sou
um homem detestável, sem princípios, sem escrúpulos e estúpido,
mas o dinheiro é acatado e assim também o seu possuidor. O
dinheiro é o bem supremo, e por isso seu possuidor é bom. Além
do mais, o dinheiro poupa-me do trabalho de ser desonesto;
por conseguinte, sou presumivelmente honesto. Sou estúpido, mas
como o dinheiro é o verdadeiro cé,-ebro de tôdas as coisas, como
poderá seu posstúdor ser estúpido? Outrossim, êle pode com-
prar pessoas talentosas para seu serviço e não é êle que tem poder
sôbre os talentosos mais do que êles? Eu, que posso ter, através do

2 Shakespeare, Timon of Athens, Act IV, Scene 3. Marx citou


a tradução (alemã) de Schlegel-Tieck. - Nota do T.
(N. do T. - Recorremos à tradução portuguêsa de Henrique
Braga, Pôrto, Livraria Chardron, de Lello & Irmão, 1913, págs. 119
e 145.)
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO 147

pos-
poder do di~heiro, tudo. 9ue o coração huma n~ deseja, não
suo então todas as habili dades huma nas? Nao pode meu di-
em
nheiro transf ormar , então , tôdas as minh as incapacidades
seus opostos ?
Se o dinheiro é o laço que me prend e à vida humana, e a
êle
sociedade a mim, e me liga à nature za e ao home m, não é
e
o laço de todos os laços? Não é êle també m, portan to, o agent
universal da separação? Ele é o meio real tanto de separa
ção
quanto de união, a fôrça galva noquí mica da sociedade.
Shakespeare ressalta partic ularm ente duas propriedades de
dinheiro:
( 1) êle é a divind ade visível, a transformação de tôdas as qua-
lidades humanas e naturais em seus opostos, a confusão e inver-
em
são universal das coisas; êle conveête a incompatibilidade
fraternidade;
(2) êle é a meretriz universal, o alcoviteiro universal entre
homens e nações.
O poder de inverter e confu ndir todos os atributos humanos
e naturais, de levar os incompatíveis a confraternizarem, o po-
der divino do dinheiro reside em seu caráter como a vida-espé-
da
cie alienada e auto-alienada do homem. .Ele é a fôrça aliena
da humanidade.
O que sou incapaz de fazer como homem, e pois, o que
tôdas as minhas faculdades individuais são incapazes de fazer,
,
me é possibilitado pelo dinhe iro. O dinheiro, por conseguinte
transforma cada uma dessas faculdades em algo que ela não
é, em seu oposto.
Se estou com vontade de comer, ou desejo viajar na di-
di-
ligência da posta por não ser bastante forte para ir a pé, o
nheiro proporciona-me a refeição e a diligência, i. e., êle trans-
~orm~ meus desejos de representações em realidades, de sêres
imaginários em sêres reais. Atuan do assim como mediador, o di-
nheiro é uma fôrça genu111amente criadora.
A procura também existe para o indivíduo sem dinheiro,
mas sua procura é mera criatura da imaginação, que não tem3
.
efeito nem existência para mim, para um terceiro, par_a . .
(XLIII) e que, assim, permanecerá irreal e sem objeto. A d1feren-

3
Aqui Marx omitiu uma palavr a no manus crito. - Nota do T.
148 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

ça entre a procura efetiva, apoiada pelo dinheiro, e a inefetiva, ba-


seada em minhas necessidades, minha paixão, meu desejo etc., é
a diferença entre ser e pensar, entre a representação meramente
interior e a representação existente fora de mim mesmo como
objeto real.
Se não disponho de dinheiro para viajar, não tenho necessi-
dade - nenhuma necessidade real e auto-realizável - de viajar.
Se tenho vocação para estudar, mas não disponho do dinheiro
para isso, então não tenho vocação, i. e., não tenho vocação
efetiva, genuína. Inversamente, se eu realmente não tenho vo-
cação para estudar, mas tenho dinheiro e sou instado a estudar,
então tenho uma vocação efetiva. O dinheiro é o mei.o e poder,
externo e universal ( não oriundo do homem como homem ou
da sociedade humana como _sodedade), para mudar a representa-
ção em realidade e a realidade em mera representação. :Ele trans-
forma faculdades humanas e naturais reais em meras represen-
tações abstratas, i. e., imperfeições e torturantes quimeras; e, por
outro lado, transforma imperfeições e f antasiaj' reais, faculdades
deveras importantes e só existentes na imaginação do indivíduo,
em faculdades e podêres reair. A êsse respeito, portanto, o dinheiro
é a inversão geral das individualidades convertendo-as em seus
opostos e associando qualidades contraditórias às qualidades delas.
O dinheiro, então, aparece como uma fôrça desagregadora
para o indivíduo e para os laços sociais, que alegam ser entida-
des auto-subsistentes. :Ele converte a fidelidade em infidelidade,
amor em ódio, ódio em amor, virtude em vício, vício em virtude,
servo em senhor, estupidez em inteligência e inteligência em
estupidez.
Pôsto que o dinheiro, como conceito existente e ativo do
valor, confunde e troca tudo, êle é a confusão e transposição uni-
versais de tôdas as coisas, o mundo invertido, a confusão e trans-
posição de tôdas as qualidades naturais e humanas.
Aquêle que pode comprar a bravura é bravo, malgrado seja
covarde. O dinheiro não é trocado por uma qualidade particular,
uma coisa particular ou uma faculdade humana específica,
porém por todo o mundo objetivo do homem e da natureza.
Assim, sob o ponto de vista de seu possuidor, êle troca tôda qua-
lidade e objeto por qualquer outro, ainda que sejam contraditó-
rios. Ele é a confraternização dos incompatíveis; força os con-
trários a abraçarem-se.
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO 149

Suponhamos que o homem s:ja h.omem e, que s~a relação


mundo seJ· a humana. Entao, o amor so podera ser tro-
cam o or amor confiança por con f'iança etc. se se dese1ar · apre-
d
ca o p arte será' , ·
te e
ducada;
· preciso ser uma pessoa artisticamen
, .
e1ar a ,
e quiser influenciar outras pessoas, sera mister se ser . uma d
s que realmente exerça ef eito
se soa . . 1
esbmu ante e encoraJa or
pes 1 - h
"bre as outras. Tôdas as nossas re açoes com o ornem e com
so tureza terão de ser uma expressao - espec1'f1ca, . correspon dente
ªao naobjeto de nosso desejo, de n~ssa v1"da m,.
· d"IV'._'dfl(IJ,-'... r~aI . Se voce"
amar sem atrair amor em troca, 1. e., se voce nao for incapaz, pela
manifestação de você mesmo como uma pessoa amável, fazer-se
amado, então seu amor será impotente e um infortúnio.

CRITICA DA FILOSOFIA DIAL~TIC A


E GERAL DE HEGEL

(6) Este talvez seja um ponto apropriado a explicar e subs-


tanciar o que foi dito, e a tecer certos comentários gerais a res-
peito da dialética de Hegel, especialmente como se acha exposta
na Fenomenologia e na Lógica, e a respeito de sua relação com
o moderno movimento crítico.
A crítica alemã moderna tem estado tão preocupada com o
passado, e tão tolhida por seu enredamento com o tema, que
tinha uma atitude totalmente acrítica face aos métodos de crí-
tica e ignorava completamente a pergunta, em parte formal, mas
de fato essencial - qual nossa posição relativamente à dialética
hegeliana? Essa ignorância da relação da crítica moderna com a
filosofia geral de Hegel, e em particular com a dialética, era tão
grande que críticos como Strauss e Bruno Bauer ( o primeiro em
todo~ os seus trabalhos; o último em seu Synoptiker, onde, em
oposição a Strauss, êle substitui a "autoconsciência" do homem abs-
trato pela substância da "natureza abstrata", e mesmo em Das
entdeckte Christentum ) viram-se, pelo menos implkitame nte,
presos na armadilha da lógica hegeliana. Assim, por exemplo,
em f!~ ~ntdeckte Christentum, argumenta-se: "Como se a auto-
con~cienc1a ao postular o mundo, o que é diferente, não se pro-
~uzi~se a si mesma ao produzir seu objeto; pois então ela anula
ª _d1:er~nça entre si mesma e o que produziu, já que só tem
existencia nessa criação e movimento só tem sua finalidade
nesse movimento etc." Ou então· "Êles ( os materialistas fran-
ceses) não podiam ver que o mo~imento do universo só se tor-
150 CONCE ITO MARXISTA DO HOME M

nou real e unifica do em si mesmo na medid a em que é o movi-


mento da autoconsciência." Essas expressões não só não diferem
da concepção hegelia na com<? a reprod uzem textual mente.
(XII) Quão pouco êsses autores ao empre endere m sua crí-
tica (Bauer em seu Synopt iker) se davam conta de sua relação
com a dialética de Hegel, e quão pouco essa percepção. brotou
de sua crítica, é demon strado por Bauer em seu Gute Sache
der Freiheit, quando , em vez de respon der à pergun ta indis-
creta feita por Grupp e, "E agora, o que fazer com a lógica? ", êle
a transfere a futuros críticos .
Agora que Feuerbach, em sua "These n" em Andoti s, e com
maior minúcia em sua Philosophie der Zukun ft, demoli u o prin-
cípio interior da dialética e da filosof ia antigas, a "Escola Críti-
ca", que foi incapaz de fazer isso por si mesma, mas viu-o rea-
lizado, proclamou-se a crítica pura, decisiva, absoluta e finalmente
esclarecida, e em sua soberba espiritual reduzi u todo o movi-
mento histórico à relação existente entre ela mesma e o resto
do mundo , enquadrado na categoria de "a massa" . Ela reduziu
tôdas as antíteses dogmáticas à tínica antítes e dogmática entre
sua própria sagacid ade e a estupidez do mundo , entre o Cristo
crítico e a human idade - "a ralé". Em todos os instantes do
dia demonstrou sua própria excelência vis-à-vis, a estultícia da
massa, e anunciou, finalmente, o juízo final crítico, proclamando
estar iminente o dia em que tôda a human idade decaída se reu-
nirá diante dela e será dividid a em grupos , a cada um dos quais
será entregue o respectivo testimo nium paupertatis ( certificado
de pobreza) . A Escola Crítica tornou pública sua superioridade
sôbre todos os sentimentos humanos e o mundo , acima do qual
ela está sentada num trono em sublime solidão, contente de
ocasionalmente deixar escapar dos seus lábios sarcásticos o riso
dos deuses do Olimpo. Após tôdas essas mornices divertidas do
idealismo ( do Jovem Hegeli anismo ), que está expiran do sob a
forma da crítica, a Escola Crítica ainda nem insinuou até agora
s~r necessário examinar crlticamente sua própria fonte, a dialé-
tica de Hegel, nem deu qualqu er indicação de su~. relação com
a dialética de Feuerbach. Esse é um proced imento completamen-
te desprovido de senso crítico.
Feuerbach é a única pessoa que tem uma relação séria e
crítica com a dialética de Hegel, efetuo u descobrimentos ver-
dadeiros nesse campo e, acima de tudo, levou de vencida a velha
filosofia. A grandeza do feito de Feuerbach e a modesta sim-
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO 151

plicidade com que apresenta sua obra ao mundo contrastam in-


cdvelmente com a conduta de outros.
A grande realização de Feuerbach é:
( 1) ter mostrado a filosofia nada mais ser do que a religião
trazida para o pensamento e desenvolvida por êste, devendo ser
igualmente condenada como outra forma e modo de existência da
alienação humana;
(2) ter lançado os fundamentos do materialismo genuíno e
da ciência positiva, ao fazer da relação social de uhomem para
homem" o princípio básico de sua teoria;
(3) ter-se oposto à negação que alega ser o positivo abso-
luto um princípio auto-subsistente, positivamente baseado em si
mesmo.
Feuerbach explica a dialética de Hegel e, ao mesmo tempo,
justifica a adoção do fenômeno positivo, aquêle que é perceptí-
vel e indubitável, como ponto de partida, da seguinte maneira:
Hegel principia pela alienação da substância (logicamente,
pelo infinito, pelo universal abstrato), pela abstração absoluta
e fixa; i. e., em linguagem comum, pela religião e pela teologia.
Em segundo lugar, supera o infinito e postula o real, o perceptí-
vel, o finito e o particular. (Filosofia, superação da religião e
da teologia.) Em terceiro lugar, a seguir supera o positivo e
restabelece a abstração, o infinito. (Restabelecimento da religião
e da teologia.)
Assim; Feuerbach concebe a negação como sendo apenas uma
contradição dentro da própria filosofia, que afirma a teologia
(transcendência etc.) após tê-la, e assim afirma em oposição à
filosofia.
Pois o postulado ou auto-afirmação e autoconfirmação im-
plíc~to na negação da negação é encarado como um postulado ain-
da incerto, oprim(do pelo seu contrário, duvidando de si mesmo e
po~ isso . incompleto, não demonstrado por sua própria existência,
e _unplíato. (XIII) O postulado perceptualmente indubitável e
alicerçado em si mesmo opõe-se-lhe diretamente.
_ Ao . ~onceber a negação da negação, sob o aspecto da rela-
ç~o positiva a ela inerente, como a única verdadeiramente posi-
~1v'.1, e sob o aspecto da relação negativa a ela inerente, como o
~ruco ato verdadeiro, e que se confirma a si próprio, de todo o ser,
egel descobriu simplesmente uma expressão abstrata, lógica e
152 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

especulativa do processo histórico, que ainda não é a verdadeira


história do homem como um dado sujeito, mas apenas a histó-
ria do at_
o de criação, da gênese do homem.
Explicaremos tanto a forma abstrata dêsse processo quanto a
diferença entre o processo como foi ideado por Hegel e pela crí-
tica moderna, por Feuerbach em Das Wesen des Christentums;
ou. melhor, a forma crítica dêsse processo, ainda tão acrítico em
Hegel.
Examinemos o sistema de Hegel. É necessário começar pe-
la Fenomenologia, porque aí nasceu a filosofia de Hegel e aí seu
segrêdo tem de ser descoberto.

Fenomenologia
A. Autoconsciência
I. Consciência. (a) Certeza da experiência sensível, ou o "isto"
e o que significa. (b) Percepção, ou a coisa com suas pro-
priedades, e ilusão. ( c) Poder e compreensão, fenômenos
e o mundo supra-sensível.
II. Autoconsciência. A verdade da certeza de si mesmo. (a)
Independência e dependência da autoconsciência, domi-
nação e servidão. (b) Liberdade da autoconsciência. Estoi-
cismo, ceticismo, a consciência infeliz.
III. Razão. Certeza e verdade da razão. (a) Razão observante:
observação da natureza e da autoconsciência. (b) Auto-
-realização da autoconsciência racional. Prazer e necessi-
dade. A lei do coração e o frenesi da vaidade. A virtude
e a trajetória do mundo. ( c) A individualidade que é real
em si e para si mesma. O reino animal do espírito e o en- '
gano, ou a própria coisa. Razão legisladora. Razão que
examina as leis.

B. Espírito
I. Espírito verdadeiro; moral consuetudinária.
II . Espírito auto-alienado; cultura.
III. O espírito certo de si mesmo; moral.

C. Religião
Religião natural, a religião da arte, religião revetaua.
E TRABALHO 153
PROPRIEDADE PRIVADA

D.
Conhecimento absoluto.
m o
cyclopaed ia de He gel começa co m a lógica, co
A En mento
ento esp eculat ivo puro, e ter mi na co m o conheci
pensam absoluta, autoconsciente e
osó fic a ou
absoluto a inteligência fil re- hu ma na
az d~ co nc eb er a si me sm a, i. e., a int eli gê nc ia sôb
cap qu e o ser
abstrata. O co nju nto da
Encyclopaedia na da ma is é
ão;_ ~ a
osófica, su a auto-objetificaç
prolongado da intelig~ncia fil an do _dentro do s l1m1~es
do ali en ad a - pe ns
inteligência-mun
lie naç ão, i. e., co nh ece nd o-se a s1 me sm a de ma ne ira
de sua auto-a nto
A lóg ica é o din he iro da me nte , o valor-pensame
abstrata. ife ren -
vo do ho me m e da na tur eza cu ja essência é ind
especulati , irr eal ; o
a qu alq ue r car áte r rea l de ter mi na do e, po rta nto
te e a
abstrato e ignora o ho me m
pensamento, que é alienado e dê s se pensamento abstrato . ..
O car áte r ext ern o
. natureza reais. A na-
com o ex ist e pa ra êss e pe ns am en to abstrato .
a natureza concebida
é ex ter na a êle , um a pe rda dêle mesmo, e só
tureza pe nsa me nto
o alg o ext ern o, co mo pe ns am en to abstrato, mas
com
Finalmente, o esp íri to, êss
e pe nsa me nto re-
abstrato alienado. , fe-
à pró pri a ori ge m e qu e, como esp íri to antropológico
tornando ioso, nã o
no lóg ico , psi col óg ico , co nsuetudinário, artístico-relig
nome m co-
é válido para si mesmo até
se descobrir e relacionar-se co an -
), qu
íri to ab sol uto ( i.e ., ab str ato
nhecimento absoluto no esp verda-
sua exi stê nci a co nsc ien te e adequada. Pois seu
do_recebe
a abstração.
deiro modo de existência é
is cla-
ge l com ete um du plo êrr o. O pri me iro aparece ma
Jie an do He -
o berço de sua filosofia. Qu
ramente na Fenomenologia, tad o etc., como en tid ad es
riq uez a, o po de r do Es
g~l concebe a for -
do ser hu ma no , êle as concebe som en te em sua
alienadas assim,
pen sam ent o. Ela s são entidades do pe nsa me nto e,
~a do ro ( i. e.,
do pe nsa me nto filosófico pu
simplesmente uma alienação r conseguinte, acaba no co-
O mo vim en to glo ba l, po
abstr_ato) .
sol uto . E ex ata me nte o pe ns am en to abstrato de
nhec1?1ento ~b sua pre -
esses ob1 eto s se ach am alienados e en fre nta m com
que strata de
sunçosa re_alidade. O filósof
o, êle pró pri o um a for ma ab o
do , col oca -se a si me sm o como a medida do mu nd
h~mem aliena e do retraimento da alie-
Hi stó ria tot al da ali ena ção
alie_?ado.
rtan to, é ap en as a his tór ia da produção do pensamento
~ç ao , po_ . O
o, e., do pe nsa me nto absoluto, lógico, especulativo
:tr at 1. alie-
ve rda de iro interêsse dessa
e__amento, que assim for ma o o, é a oposição de em si e
sup era ção de ssa ali en açã
naçao .e da o, i. e.,
con sci ênc ia e au toc on sci ênc ia, de objeto e sujeit b
para s~, _de ato e
ª pos1çao n 0 pro, pn·o pensamento, en tre pensamento a str
,
154 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

realidade sensível ou existência sensorial real. Tôdas as outras


contradições e movimentos são a mera aparência, a máscara, a
forma esotérica dêsses dois opostos, os únicos importantes e que
constituem a significação do outro, contradições profanas. Não
é o fato de o ser humano objetificar-se inumanam ente, em opo-
sição a si mesmo, mas o de êle objetificar-se distinguindo-se e
opondo-se ao pensamento abstrato, que constitui alienação como
existe e como tem de ser transcendida.
(XVIII) A apropriação das faculdades objetificadas e alie-
nadas do homem é, pois, em primeiro lugar, apenas uma apro-
priação que ocorre na consciência, no pensamento puro, i. e., em
abstt·ação. ~ a apropriação dêsses objetos como pensamentos e
como movimen tos do pensamento. Por essa razão, a despeito de
sua aparência perfeitamente negativa e crítica, e a despeito da
crítica genuína nela encerrada freqüentemente antecipar desen-
volvimentos ulteriores, já estão implícitos na Fenomenologia,
como germe, potencialidade e segrêdo, o positivismo e idealismo
acríticos de obras posteriores de Hegel - a dissolução filosófica
e restauração do mundo empírico existente. Em segundo lugar,
a defesa do mundo objetivo para o homem (por exemplo, o re-
conhecimento de que a percepção dos sentidos não é a percepção
dos sentidos abstratos, mas percepção humana dos sentidos que
religião, riqueza etc. dos sentidos são apenas a realidade alienada
dR objetificação humana, de faculdades humanas postas em
ação e, portanto, um caminho para a realidade humana genuí-
na), essa apropriação, ou o discernimento dêsse processo, aparece
em Hegel como o reconhecimento da sensorialidade, religião, po-
der estatal etc. como fenômenos mentais, pois só a mente é a ver-
dadeira essência do homem, e a verdadeira forma da mente é a
mente pensante, a mente lógica e especulativa. O caráter huma-
no da natureza, da natureza produzida historicamente, dos pro-
dutos do homem, é demonstrado por êles serem produtoJ da
mente abstrata e, pois, fases da mente, entidades de pensamento.
A Fenomenologia é uma crítica velada, obscura e mistificadora,
mas na medida em que concebe a alienação do homem ( con-
quanto o homem apareça exclusivamente como mente), todos os
elementos da crítica acham-se nela contidos e são amiúde
apresentados e trabalhados de forma que ultrapassa de longe o
ponto de vista do próprio Hegel. As seções dedicadas à "cons-
ciência infeliz", à "consciência honesta", à luta entre a consciên-
cia "nobre'' e a "vil" etc., encerram os elementos críticos ( se
bem que ainda sob forma alienada) de áreas inteiras, como a
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO 155

religião, o Estado; a vida civil etc. Assim como a entidade, 0


objeto aparece como um_~ ~ntidade de pe~:a~ento, também 0
sujeito é sempre a c.onsaencra ou_ ... au~oconscrencra; ou melhor, 0
objeto aparece apenas como consc1encia abstrata e o homem co-
mo autoconsciência. Assim, as formas distintas da alienação ma-
nifestadas são meras formas diferentes de consciência e auto-
consciência. Como a consciência abstrata ( a forma em que o
objeto é concebido) é em si mesma unicamente um momento
distintivo da autoconsciência, o resultado do movimento é a
identidade de autoconsciência e consciência - conhecimento
absoluto - , o movimento do pensamento abstrato não se voltando
para fora, mas para dentro de si mesmo; i. e., daí resulta a dialé-
tica do pensamento puro.

(XXIII) A conquista extraordinária da Fenomenologia de He-


gel - a dialética da negatividade como princípio motor e criador
- é, primeiramente, Hegel perceber a autocriação do homem
como um processo, a objetificação como perda do objeto, como
alienação e transcendência dessa alienação, e, por isso, perceber a
natureza do trabalho, e conceber o homem objetivo ( verdadeiro,
porque real) como o resultado de seu próprio trabalho. A orienta-
ção real, ativa, do homem para si mesmo como ente-espécie, ou
a afirmação de si mesmo como verdadeiro ente-espécie (i. e., co-
mo ser humano) só é possível na medida em que êle <le fato põe
em ação tôdas as fôrças-espécies ( o que sàmente é possível gra-
ças ao esfôrço cooperativo da humanidade e como produto da
História) e trata essas fôrças como objetos, o que de início só pode
ser feito sob a forma de alienação.
1_{o~traremos, a seguir, pormenorizadamente, o unilateralismo
e as limitações de Hegel, como são reveladas no capítulo final de
sua Fenomenologia sôbre o conhecimento absoluto, capítulo êsse
que contém o espírito concentrado de todo o livro, sua relação
com a dialética e também a consciência do próprio Hegel quanto
a ambas e à sua inter-relação.
No momento, façamos estas observações preliminares: o pon-
to de vista de Hegel é o da moderna Economia Política. Ele
concebe o trabalho como a essência, a essência autoconfirmadora
do homem; observa somente o aspecto positivo do trabalho, nãd. 0
seu aspecto negativo. O trabalho é a marcha tk homem Pª:ª
s~ tornar êle próprio dentro da alienação, ou como homem, a/re-
nado. O trabalho, tal como Hegel entende e reconhece, ~ ~ra-
balho menta/, abstrato. Assim, o que acima de tudo constitm ª
156 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

essência da filosofia, a alienação do homem conhecendo-se a si


mesm·o, ou a ciência alienada pensando-se a si mesma, Hegel per-
cebe como essência dela. Conseqüentemente, êle fica em con-
dições de reunir os elementos separados da filosofia anterior e apre-
sentar a sua própria como sendo a Filosofia. O que outros filó-
sofos fizeram, isto é, conceber elementos isolados da natureza e
da vida humana como fases da autoconsciência e, deveras, da au-
toconsciência abstrata, Hegel sabe por fazer filosofia; por conse-
guinte, sua ciência é absoluta.

Passemos agora ao nosso tema:

Conhecimento absoluto

O capítulo finai da Fenomenologia

O ponto capital é o objeto da consciência nada mais ser do


que autoconsciência, o objeto ser apenas autoconsciência objeti-
ficada, autoconsciência como um objeto. (Homem que postula =
autoconsciência.)
E necessário, pois, superar o objeto da consciência. A obje-
tividade como tal é considerada apenas uma relação humana
alienada não correspondente à essência do homem, à autocons-
ciência. A reapropriação da essência objetiva do homem, produ-
zida como algo alheio ao homem e determinada pela alienação,
significa a superação não só da alienação, mas também da objeti-
vidade; isto é, o homem é visto como um ser não-objetivo, es-
piritual.
O processo de superação do ·objeto da consciência é descrito
por Hegel da seguinte maneira: o objeto não se revela apenas
como retornando ao Eu ( segundo Hegel, essa é uma concepção
unilateral, do movimento, considerando somente um aspecto). O
homem é igualado ao eu. O Eu, no entanto, é apenas o homem
concebido abstratamente e produzido por abstração. O homem
é auto-referível. Seu ôlho, ouvido etc. são auto-referíveis. Tôdas
as suas faculdades possuem essa qualidade de auto-referência. :e
inteiramente falso, todavia, dizer, por isso, "A autoconsciência
tem olhos, ouvidos, faculdades". A autoconsciência é antes uma
qualidade da natureza humana, do ôlho humano etc.; a natu-
reza humana não é uma qualidade da (XXIV) autoconsciência.
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO 157

o Eu, abstraído e determinado por si mesmo, é o homem


como um egoísta abstrato, egoísmo puramente abstrato elevado
ao plano do pensamento. (Voltaremos a êsse ponto mais adiante.)
Para Hegel, a vida humana, o homem, é equivalente à auto-
comciê11cia. Tôda a alienação da vida humana é, assim, nada
mais que alienação da autoconsciência. A alienação da autocons-
ciência não é vista como a expressão refletida no conhecimento
e no pensamento, da verdadeira alienação da vida humana. Ao
invés, a alienação efetiva, que parece real, em sua mais íntima na-
tureza oculta ( que é pela primeira vez desvendada pela filosofia)
é apenas a existência fenomenal da alienação da vida humana
real, da autoconsciência. A ciência que ·abrange is~o é, por con-
seguinte, denominada Fenomenologia. Tôda reapropriação da
vida objetiva alienada aparece, assim, como uma incorporação da
autoconsciência. A pessoa que se apodera do ser humano é apenas
a autoconsciência que se apodera do ser objetivo; a volta do
objeto para dentro do Eu, portanto, é a reapropriação do objeto.
Expressa de maneira mais compreensiva, a superação do objeto
da consciência significa: ( 1) que o objeto como tal se apresenta
à consciência como algo que desaparece; (2) que é a alienação
da autoconsciência que estabelece a "coisidade" *; ( 3) que essa
alienação tem significação positiva assim como negativa; ( 4) que
ela tem essa significação não apenas para nós ou em si, mas
também para a própria autoconsciência; ( 5) que para a auto-
consciência a negação do objeto, sua auto-superação, tem signi-
ficação positiva, ou a autoconsciência conhece a nulidade do
objeto porquanto ela se aliena a si mesma, pois nessa alienação
ela se estabelece como objeto ou, em prol da união indivisível
de existir por si mesma, estabelece o objeto como ela própria;
( 6) que, por outro lado, êsse outro "momento" está igualmente
pr~se~t~, a autoconsciência superou e reabsorveu essa alienação e
0 bJetrv1dade, e está, assim, em casa em seu outro ser como tal;

~7 ) que êsse é o movimento da consciência, e esta é, então, a tota-


lidade de seus "momentos"; (8) que, anàlogamente, a consciência
dev: ter-se relacionado com o objeto em tôdas as suas determi-
naçoes e tê-lo concebido em têrmos de cada uma delas. Essa to-
tali~~de de determinações faz o objeto intrinsecamente um ser
esprrrtual, e êle se torna assim, deveras, para a consciência, pela
apreensão de cada uma dessas determinações como o Eu, ou pelo

* N. do T. - Em inglês, thinghood.
158. CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

que foi anteriormente chamado de atitude espiritual para com


elas.
ad ( 1) Que o objeto como tal se apresenta à consciência
como algo que desaparece, é a acima mencionada volta do obje-
to para o Eu.
ad (2) A alienação da autoconsciência estabelece "coisidade".
Porque o homem se iguala à autoconsciência, seu ser objetivo
alienado ou "coisidade" é equivalente a a11toconrciência alienada,
e essa alienação estabelece a "coisidade". ("Coisidade" é o
que é um objeto para êle, e um objeto para êle só é real-
mente aquilo que é um objeto essencial, conseqüentemente es-
sência objetiva dê/e mesmo. E como ela não é o homem verda-
deiro, nem sua natureza - o homem sendo natureza humana - ,
que se torna como tal um sujeito, mas apenas uma abstração do
homem, a autoconsciência, a "coisidade" só pode ser autoconsciên-
cia alienada.) E bem compreensível um ser natural, vivo, dotado
de faculdades objetivas ( i. e., materiais) ter objetos naturais reais
de seu ser, e igualmente sua auto-alienação ser o estabelecimento
de um mundo objetivo, real, mas sob a forma de exte.rioridade,
como um mundo que não pertence a, e domina, o seu ser. Nada
há de ininteligível ou de misterioso acêrca disso. O inverso, sim,
seria misterioso. Mas é igualmente claro que uma autoconsciên-
cia, i. e., sua alienação, só pode estabelecer a "coisidade", i. e., so-
mente uma coisa abstrata, uma coisa criada pela abstração e não
uma coisa real. Ê claro (XXVI), ademais, que a "coisidade" ca-
rece totalmente de independência, em ser, vis-à-vis, a autoconsciên-
cia; é um mero constnúr estabelecido pela autoconsciência. E o
que é estabelecido não é confirmável por si mesmo; é a confir-
mação do ato de estabelecimento que, por um instante, e só por
um instante, fixa sua energia como produto e, aparentemente,
confere-lhe o papel de ser independente e real.
Quando o homem real, corpóreo, com os pés firmemente
plantados no chão, aspirando e expirando tôdas as fôrças da na-
tureza, postula suas faculdades objetivas reais como resultado
de sua alienação, como objetos alienados, o postulador não é o
sujeito dêsse ato, mas a subjetividade da faculdade objetiva, ruja
ação, pois, também deve ser objetiva. Um ser objetivo age obje-
tivamente, e não agiria objetivamente se a objetividade não fi-
zesse parte de seu ser essencial. Ele cria e estabelece apenas obje-
tos porque é estabelecido por objetos e porque é fundamental-
mente natural. No ato de estabelecer não desce de sua "ativi-
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO
159

dade pura" para a criação de objetos; seu produto objetivo sim-


plesmente confirma sua atividade objetiva, sua atividade como
ser natural, objetivo.
Vemos aqui como o naturalismo ou humanismo consistente
se distingue tanto do idealismo como do materialismo e, ao mes-
mo tempo, constitui a sua verdade unificadora. Vemos, também,
como só o naturalismo está em condições de compreender o pro-
cesso da história mundial.
O homem é diretamente um se.t' natural. Como tal, e como
ser natural vivo, êle é, de um lado, dotado de Podêres e f ô,-ças
naturais, nêle existentes como tendências e habilidades, como
impulsos. Por outro lado, como ser natural, dotado de corpo,
sensível e objetivo, êle é um ser sofredor, condicionado e limitado,
como os animais e vegetais. Os objetos _de seus impulsos exis-
tem fora dêle como objetos dêle independentes; sem embargo,
são objetos das necessidades dêle, objetos essenciais indispensáveis
ao exercício e à confirmação de suas faculdades. O fato de o
homem ser dotado de corpo, vivo, real, sensh'.el e objetivo, com
podêres naturais, significa ter objetos reais e sensíveis como objetos
de seu ser, ou só poder expressar seu ser em objetos reais e sen-
síveis. Ser objetivo, natural, sensível e, ao mesmo tempo, ter obje-
to, natureza e sentidos fora de si mesmo, ou ser êle mesmo objeto,
natureza e sentidos para um terceiro, é a mesma coisa. A fome
é uma necessidade natural; ela exige, portanto, uma natureza a
ela exterior, um objeto a ela exterior, a fim de ser satisfeita e
aplacada. A fome é a necessidade objetiva que um corpo tem
de um ·objeto existente fora dêle e essencial para sua integração
e a expressão de sua natureza. O sol é um objeto, um objeto
necessário e assegurador de vida para a planta, tal como a planta
é um objeto para o sol, uma expressão do poder vivificador e dos
podêres essenciais objetivos do sol.
, Um ser que não tenha sua natureza fora de si mesmo não
e um ser natural, e não compartilha da existência d_a .natureza.
Um ser sem objeto fora de si mesmo não é um ser obJetivo. Um
ser que não seja, êle próprio, para um terceiro ser, não possui ser
p~ra seu objeto, i. e., não é relacionado objetivamente e seu ser
nao é objetivo.

(XX.VII) Um ser não-objetivo é um não-ser. Suponhamos


u~ se_r que não seja objeto por si mesmo nem tenha objeto. Em
primeiro lugar, um ser assim seria o único ser; nenhum outro
160 CONCEITO MARXJSTA DO HOMEM

existiria fora dêle, e êle estaria sozinho e solitário. Pois, desde


que existam objetos fora de mim, logo q~e eu não_ esteja só~ sou
um outro, uma outra realidade com relaçao ao obJeto exterior a
mim. Para êsse terceiro objeto, . portanto, sou uma outra realidade,
que não êle, i. e., o objeto dêle . . Supor u~ _ser que não é objeto
de outro seria supor não existir ser obJet1vo ~enhum. L?go
que tenho um objeto, êsse objeto tem a . rrum p_ara O~Jeto
dêle. Um ser não-objetivo, porém, é um ser irreal, nao sens1vel,
meramente concebido; i. e., um ser simplesmente imaginado, uma
abstração. Ser sensorial, i. e., real, é ser um objeto dos sentidos
ou objeto sensorial e, pois, ter objetos sensoriais fora de si mesmo,
objetos de suas próprias sensações. Ser sensível é sofrer ( expe-
rienciar).
O homem, como ser sensível objetivo, é um ser sofredor, e,
como sente seu sofrimento, um ser apaixonado. A paixão é o
esfôrço das faculdades do homem para atingirem seu objetivo.
Contudo, o homem não é apenas um ser natural; êle é um
ser natural humano. .Ele é um ser por si mesmo e, portanto,
um ente-espécie; como tal, tem de expressar-se e autenticar-se
ao ser assim como ao pensar. Conseqüentemente, os objetos hu-
manos não são objetos naturais como se apresentam diretamente,
nem é o sentido humano, como é dado imediata e objetivamente,
sensibilidade e objetividade humanas. Nem a natureza objetiva
nem a subjetiva são apresentadas diretamente de forma adequada
ao ser humano. E como tudo o que é natural tem de ter uma
origem, o homem tem então seu processo de gênese, a História,
que é para êle, entretanto, um processo consciente e, portanto,
conscientemente autotranscendente. (Voltaremos a isso mais
tarde.)
Em terceiro lugar, como êsse estabelecimento da "coisidade" é
em si mesmo somente uma aparência, um ato que contradiz a
natureza da atividade pura, tem de ser novamente anulado e a
"coisidade" tem de ser negada.
ad 3, 4, 5, 6. (3) Essa alienação da consciência não tem só
si~~fi:_ação º:<?ativa,_ mas também positiva, e ( 4) tem essa sig-
mfICaçao positiva nao apenas para nós ou em si mesma, mas
pa~a a própria consciê~cia. (_5) Para a consciência a negação do
obJeto, ou sua anulaçao de s1 mesmo por êsse meio, tem signi-
fi7ação positiv~; ela sabe da nulidade do objeto pelo fato de
alienar-se a s1 mesma, porque nesta alienação ela se conhece
como o objeto ou, em benefício da união indivisível do ser-para-
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO 161

-si-mesmo, conhece o objeto como êle próprio. ( 6) Por outro


lado, êsse outro "momento" está igualme~te presente, em que
a consciência superou e reabsorveu essa alienação e objetividade
e está, assim, em casa em seu outro ser como tal.
Já vimos q~e .ª. apropriação do ser _obje~ivo alienado, ou a
revl,gação da obJet1v1?ade ~a ~orma da ahenaçao ( que_ tem de de-
senvolver-se da altendade md1ferente para a verdadeira alienação
antagônica) , significa para Hegel, também, ou primordialmente,
a significação da objetividade, uma vez que não é o caráter obje-
tivo que é o opróbrio da alienação para a autoconsciência. O
objeto, portanto, é negativo, auto-anulador, uma nulidade. Essa
nulidade do objeto tem uma significação positiva, assim como
negativa, para a consciência, pois êle é a autoconfirmação da
não-objetividade (XXVIII), o caráter abstrato dêle mesmo. Para
a própria consciência, por conseguinte, a nulidade do objeto tem
significação positiva por ela conhecer essa nulidade, ser objetivo,
como sua auto-alienação, e saber que essa nulidade só existe atra-
vés de sua auto-alienação.
O modo em que a co.q.sciência é, e em que algo é para ela,
é o conhecimento. * Conhecer é sua única ação. Assim, algo
chega a existir para a consciência na medida em que ela conhece
êsse algo. Conhecer é sua única relação objetiva. Ela conhece,
então, a nulidade do objeto (i. e., conhece a não-existência da
distinção entre si mesma e o objeto, a não-existência do objeto
para ela) por ela conhecer o objeto como sua auto-alienação. Isso
quer dizer, ela conhece a si mesma ( conhece, conhecendo co-
m~ um objeto) porque o objeto é apenas uma imagem de um
0 bJeto, um engano, que intrinsecamente nada é senão o conhe-

c~r-se que se defrontou consigo mesmo, estabeleceu em face de


s~ mesmo uma nulidade, um "algo" que não tem existência obje-
tiva fora do próprio conhecimento. O conhecimento sabe que
ª~ se relacionar com um objeto está apenas fora de si mesmo,
aliena-se, e que êle só lhe aparece como um objeto; ou, por
outras palavras, que aquilo que lhe aparece como objeto é ape-
nas êle próprio.
Por outro lado, Hegel diz, êsse "momento" está presente ao
mesmo tempo; ou seja, que a consciência igualmente superou e

do' *. N_._ do T. - t particularmente difícil distinguir exatamente os


is sigruftcados de to know ( saber, conhecer) e seus derivados.
11
162 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

reabsorveu essa alienação e objetividade e, conseqüentemente, está


em casa, em seu outro ser como tal.
Neste exame, tôdas as ilusões da especulação acham-se con-
gregadas.
Primeiro, a consciência - autoconsciência - está em casa
em seu outro ser como tal. Ela está, portanto - se nos abstrair-
mos da abstração de Hegel e substituirmos a autoconsciência por
autoconsciência do homem - , em casa em seu outro ser como
tal.. Isso implica, primeiramente, que a consciência ( conhe-
cimento como conhecimento, pensamento como pensamento) ale-
ga ser diretamente o outto de si mesma, o mundo sensorial, a rea-
lidade, a vida; é o pensamento ultrapassando-se ª· si mesmo em
pensamento ( Feuerbach). .Este aspecto é nela contido, na medida
em que a consciência como mera consciência não é ofendida pela
objetividade alienada, mas pela objetividade como tal.
Em segundo lugar, isso implica o homem autoconsciente, na
medida em que tenha reconhecido e superado o mundo espiritual
( ou o modo espiritual universal de existência de seu mundo), a
confirmar, a seguir, novamente, nessa. forma alienada e apresen-
tá-lo como sua existência verdadeira: êle o restabelece e alega
estar em casa em seu ·outro ser. Assim, por exemplo, após su-
perar a religião, quando a reconheceu como produto da ,auto-
-alienação, em seguida êle encontra uma confirmação de si mesmo
na religião como religião. Essa é a raiz do falso positivismo de
Hegel ou de sua meramente aparente crítica; o que Feuerbach de-
nomina de pressuposto, negação e restabelecimento da religião ou
teologia, mas que tem de ser concebido de maneira mais genera-
lizada. Assim a razão está em casa na sem-razão como tal. O
homem, que reconheceu estar levando uma vida alienada no di-
reito, política etc., vive sua vida verdadeiramente humana nes-
sa vida alienada como tal. A auto-afirmação, em contradição
consigo mesma, e com o conhecimento e a natureza do objeto,
é, pois, o verdadeiro conhecimento e vida.
Não pode haver mais dúvida acêrca da transigência de Hegel
com a religião, o Estado etc., pois essa falsidade é a falsidade de
tôda sua argumentação.
(XXIX) Se conheço a religião como autoconsciência humana
alienada, o que conheço nela como religião não é minha autocons-
ciência alienada nela confirmada. Assim, meu próprio eu, e a
autoconsciência que é a essência dêle, não são confirmados na
religião, mas na abolição e superação da religião.
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALHO 163

Em Hegel, portanto, a negação da negação não é a confir-


mação do verdadeir o ser pela negação do ser ilusório. 11 a confir-
mação do ser ilusório, ou do ser auto-alien ado em sua negação;
ou a negação dêsse ser ilusório como ser objetivo existente fora do
homem e independ entement e dêle, e sua transform ação em su-
jeito.
O ato de superação desempen ha parte estranha, onde negação
e preservação, negação e afirmação, se acham entrelaçadas. Assim,
por exemplo, na Filosofia do Direito, de Hegel, o direito privado
superado é igual à moralidade, a moralidad e superada igual à
fainília, a família superada igual à sociedade civil, a sociedade
civil superada igual ao Estado, e o Estado igual à História mun-
dial. Mas, concretamente, direito privado, moraliàad e, a f amí-
lia, a sociedade civil, o Estado etc., permanec em; só se trans-
formaram em "moment os", modos de existência do homem,
sem validade , quando isolados, mas que mutuame nte se dis-
solvem e geram um ao outro. Eles . são momentos do movi-
mento.
Em sua existência efetiva, essa natureza móvel é escondida. E
pela primeira vez revelada no pensamen to, na filosofia; em con-
seqüência, minha verdadeir a existência religiosa é minha existên-
cia na filosofia da religião, minha verdadeir a existência política é
minha existência na filosofia do Direito, minha verdadeir a exis-
tência natural é minha existência na filosofia da natureza, minha
verdadeira existência artística é minha existência na filosofia da
arte, e minha verdadeir a existência humana é minha existência
na filosofia. Da mesma maneira, . a verdadeir a existência da reli-
gião, do Estado, da natureza e da arte é filosofia da religião do
Estado, da natureza e da arte. Mas, se a filosofia de religião é a
única existência verdadeir a da religião, só sou verdadeir amente
religioso como filósofo da religião, e nego o sentiment o religioso
efetivo e o homem religioso efetivo. Ao mesmo tempo, entre-
t~nto, eu os confirmo , em parte por minha própria existên-
cia ou na existência alienada com que os enfrento (pois essa é
apenas a expressão filosófica dêles), e em parte em sua própria
forma original, desde que são para mim o meramen te aparente
outro ser, alegorias, os contornos de sua verdadeir a existência
~rópria ( i. e., de minha existência filosófica ) disfarçad a por cor-
tinas sensoriais.
. Da mesma maneira, a qualidade superada é igual à quan-
trdade, a quantidad e superada igual à medida, a medida supe-
CONCEITO MARXISTA DO HOMEM
164
. al ao ser O ser superado igual ao ser f enomenat
rada 1gu ' 11.dade, a real'd , o ser
uperado igual à rea , .i . ade
f enomena 1 S d . . . superada 1gua

nceito O conceito supera o igua1 a ob1etrv1dade, a obJ. t·1
ao co ' 'd' ' b l .d,. ei.
vidade superada igual à t eta a so uta, ad1 e~a absoluta supe-
a igual à natureza, a natureza supera a igual ao espírit
rad . . d . o
subjetivo, 0 espírito s~b!etlv?. supera o i~a1 a~ espírito objeti-
vo ético, 0 espírito obJetivo et1Co . s~yerado igual .ª arte, a arte su-
perada igual à religião, e a rehgiao superada igual ao conheci-
mento absoluto.
Por outro lado, essa superação é a superação de uma enti-
dade de pensamento; assim, a propriedade privada como pensa.
mento é superada pelo pensamento da moralidade. E mesmo
que O pensamento imagine s:r êle roes.mo, sem m~diação, o outro
aspecto de si mesmo, ou seJa, a realidade sensorial, e considere
sua própria ação como sendo ação real, sensorial, essa superação
em pensamento, · que deixa seu objeto existindo no mundo real,
acredita tê-la realmente superado. Por outro lado, como o objeto
agora se tornou para êle um "momento" do pensamento, êle
é encarado em sua existência real como confirmação do pensa-
mento, da autoconsciência, da abstração.
(XXX) Sob um aspecto, portanto, o existente que Hegel
supera em filosofia não é a religião, Estado ou natureza real,
mas a própria religião como objeto do conhecimento, i. e., a
dogmática; e anàlogamente com a jurisprudência, a ciência po-
lítica e a ciência natural. Sob êste aspecto, pois, êle se coloca
em oposição tanto · ao ser real quanto à ciência direta, não-filosó-
fica ( ou os conceitos não-filosóficos) dêsse ser. Logo, êle con-
tradiz os conceitos convencionais.
Sob o outro aspecto, o homem religioso etc., pode encontrar
em Hegel sua confirmação definitiva.
Consideremos agora os momentos positivos da dialética de
Hegel dentro da condição de alienação.

. (ª) A sureração como movimento objetivo que reabsorve a


ahena~ao em si mesma. Esse é o discernimento, expresso dentro
da alienação, na apropriação do ser objetivo através da supressão
da sua alienação. E o discernimento alienado da objetificação
rea[ jo homem, da apropriação real de seu ser objetivo pela des-
truiçao do caráter alienado do mundo objetivo pela anulação de
seu modo alienado de existência. Da ·mesma ~aneira, o ateísmo
como anulação de Deus é o suprimento do humanismo teórico,
PROPRIEDADE PRIVADA E TRABALIIO 165

é a defe sa
e O
comunismo como anul ação da prop rieda de priva da
O últim o é,
da vida hum ana real como prop rieda de do hom em.
o ateísmo é o
também, a emer gênc ia do hum anism o práti co, pois.
da religião,
humanismo medi ado para si mesm o pela anulação
iado para si
ao passo que o comu nism o é o hum anism o med
Só pela supe-
mesmo pela anulação da prop rieda de priva da.
pré-condição
ração dessa mediação ( que, no entan to, é uma
autogerador.
indispensável) pode aparecer o hum anism o positivo
fuga ou
O ateísmo e o comunismo, entre tanto , não são uma
os hom ens
abstração, ou aind a perd a, do mun do objetivo, que
não são um
criaram pela objetificação de suas faculdades. :Eles
ral. São, an-
retrocesso· empobrecido à prim itiva simplicidade natu
ção, da na-
tes, a primeira emergência real, a legít ima concretiza
tureza do homem como algo real.
da nega-
Hegel, pois, pelo fato de ver a significação positiva
, concebe o
ção auto-referível ( apesar de sob um mod o alien ado)
a de obje-
auto-alheamento do homem, sua alienação do ser, perd
de natureza,
tividade e realidade como autodescoberta, mud ança
ebe o traba-
objetificação e realização. Em resumo, Hege l conc
ra em têrmos
lho como o ato de autocriação do homem ( embo
igo mesmo
abstratos) ; êle percebe a relação do hom em cons
a-espécie e
como um ser alienado e a emergência da consciênci
ado.
da vida-espécie como a demonstração de seu ser alien
eqüên-
(b) Em Hegel, porém, à parte da, ou antes, como cons
surge, antes
cia da inversão já descrita por nós, êsse ato de gênese
abstrato e por
de mais nada, como ato meramente formal, por ser
ser a própria natureza hum ana tratada como natur
eza abstrata,
pensante, como autoconsciência.
epção, a
E:11 segundo lugar, por ser formal e abstrata a conc
ação. Para
anulaçao da alienação torna-se confirmação da alien
ão, sob a
Hegel, êsse movimento de autocriação e auto-objetificaç
isso final,
form~ de auto-alheamento, é a expressão absoluta, e por
paz con-
d_a vrda humana, que tem fim em si mesma, está em
sigo mesma e unid a à sua próp ria natureza.
como dia-
, . Este movimento, em sua forma abstrata (XX XI)
mas como
létJCa, é então visto como vida humana verdadeira
s~m embargo, é uma abstração, uma alienação da vida
humana, é
o da hu-
vi sto como processo divino e' porta nto' o processo divin
m .dªde; é um processo por que passa o ser abstrato, puro e
an~
ª6so uto do homem, e não êle próprio.
166 CONCEITO MARXISTA DO HOM EM

Em terceiro luga r, êsse processo tem de ter


um por tado r-, um
sujeito, mas êste eme rge inic ialm ente com
o um resultado. :este
resu ltad o, o suje ito conhecer-se a si mes mo
como autoconsciência
absoluta, é por tant o Deu s, o espírito absoluto
-, a idéi a que se co-
nhece e se man ifes ta por si mes ma. O . hom
em real e a natureza
real convertem-se em meros predicados,
sím bolo s dêsse homem
e dessa natu reza irreais ocultos. Sujeito
e predicado, por conse-
guin te, têm uma relação inve rsa entr e si;
um sujeito-objeto mís-
tico, ou uma sub jetiv idad e que ultrapassa
o objeto absoluto co-
mo processo de auto-alienação e de retô
rno da alienação para
si mes mo, e, ao mes mo tem po, de reabsorç
ão dessa alienação, o
suje ito com o êsse processo; pur o, incessan
te mov ime nto de re-
petição den tro de si mesmo.
Primeiramente, a concepção formal, e abstrata
do ato de au-
tocriação ou auto-objetificação do hom em.
Vim os Heg el igua lar hom em e autocon
sciência, o objeto
alie nad o, o ser real alienado do homem,
é simplesmente cons-
ciência, a mer a idéi a de alienação, sua exp
ressão abstrata, e por
isso vazia e irreal, a negação. (A anulaçã
o da alienação é, por-
tant o, ape nas uma anulação abstrata e ôca
dessa abstração vazia, a
negação da negação.) A atividade repleta,
viva, sen son a e con-
cret a da auto-objetificação reduz-se, destarte
, a mer a abstração, ne-
gatividade absoluta, uma abstração que
é a seguir cristalizada
como tal e concebida como uma atividad
e inde pen den te, como
a pró pria atividade. Já que essa assim chamada negatividade
é mer ame nte a form a abst-rata e ôca daq
uele ato real vivo, seu
con teúd o só pod e ser um conteúdo f ot'm
al pro duz ido pela abs-
tração de todo conteúdo. Essas são, pois
, formas de abstração
gerais, abstratas, que se refe rem a qua
lque r conteúdo e são,
por tant o, neu tras face a, e válidas para, qua
lque r conteúdo; for-
mas de pen sam ento , form as lógicas destacad
_as do espírito e da
natu reza reais. (Ex por emo s adia nte o con
teúd o lógico da ne-
gati vida de abs olut a.)
A realização pos itiv a de Heg el em sua lógi
ca especulativa é
mos trar que os conceitos determinados, as
formas de pensamento
fixas, em sua inde pen dên cia da natu reza e
do espírito, são resul-
tado necessário da alienação gera l da natu
reza hum ana e também
do pen sam ento hum ano , e descrevê-lo em
con junt o como momen-
tos do processo de abstração. Por exe mpl o,
o ser sup erad o é essên-
cia, a essência sup erad a é conceito, o conceit
o sup erad o. . . a idéia
absoluta. Mas o que é a idéi a absoluta?
Ela tem que se superar
AB AL HO 167
PROPRIEDADE PRIVADA E TR

am ent e po r tod o o proces so


• esma se não qui ser . . pas sar nov lºd
a si mtração, des de o começo, e _contentar-se em ser um a tot a 1 a-
de abs
capaz de se com.J?reender a s1
de de abstrações ou um a abstraçao
Ma s a abstração capaz de se com pre end er . sm a sabe
a s1 me
m~ma . de aba ndo nar -se a s1 me sm a e
ue ela mesma nad a é; ela tem
é exa tam ent e ·o seu opo sto , a
;ssim chegar a um a ent ida de que
é um a dem ons tra ção de que
natureza. Tôd a a Lógica, por tan to, a idé ia abs olu ta
pen sam ent o abstrato nad a é po r si me sm o,
0
é alg um a coisa.
é nada por si mesma, e só a natureza
ia abstrata que , "encarada
(X XX II) A idé ia absoluta, a idé
asp ecto de sua uni dad e con sig o mesma, é intuição" (H ege l,
sob o
dia , 3.\1 ed. , pág . 222 ) e "em sua pró pri a ver dad e abso-
Encyclo pae
de sua par ticu lar ida de ou de
luta 1·esolve per mit ir o mo me nto
, a idéia imediata, como seu
determinação inicial e a ser-outro
me sm a como natureza" (ib id. ).
reflexo, eme.rgir livremente de si
de ma nei ra assim tão est ran ha e
Tôda esta idéia, que se com por ta
tão terríveis dor es de cabeça,
caprichosa e tem dad o aos hegelianos
ma is é do que abs traç ão, i. e., o pensador abstrato. .e a abs-
nada
a e~periência e esclarecida a
tração que, tor nad a pru den te pel
olve em condições várias ( fal-
respeito de sua pró pri a verdade, res
e ain da abs trat as) aba ndo nar -se e estabelecer seu out ro ser, o
sas
ar de sua auto-absorção, não-ser,
particular, o determinado, em lug
resolve dei xar a nat ure za ' es-
universalidade e indeterminação·' e
o um a abstração, como ent ida de
condida dentro dêle somente com
de si mesma. Isto é, ela decide
de pensamento, emergir livremente
a natureza livre da abstração.
renunciar à abstração e a observar
converte em intuição,
A_ idéia abstrata, sem a qua l mediaçãose se aba ndo na e opt a pel a in-
que
na?_passa de pensamento abstrato
ica à filo sof ia da nat ure za
:urç~o. Tô da essa transição da lóg
trair par a o intuir, extrema-
e simplesmente a transição do abs
trato efe tua r e, por isso, des-
m~nte difícil par a o pen sad or abs · ento mu' trc· o que
crita por êle em t"ermos tao - estranhos. o sen tim
.
abstrato par a a intuição é o
:mpe~e *o filósofo do pen sam ent o
nnur, ª aspiração de um conteúdo.
mesmo é tam bém o pen sad or
al. ( O homem alienado de si
vid a nat ura l e hum ana . Seus
ienado de seu ser, i. e., de sua s for a da
pentursamentos são, em con seqüência, espíritos 1existe.nte . . tos
eza e do h E Log . , He ge apns1onou Jun
, rca
na ornem . m sua

* N. do T. - Téd io, aborrecimento, fastio.


168 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

todos êsses espíritos, concebendo-os, um por um,


primeiro como
negação, i. e., al.ienação do pensamento humano,
e depois como
negação da negação, i. e., como superação dess
a alienação e ex-
pressão real do pensamento humano. Visto com
o, todavia, essa
negação da negação é em si mesma restrita à alien
ação, ela é em
parte uma restauração daquelas formas espiritua
is fixas . em sua
alienação e em parte uma mobilização no ato
final, o ato de
auto-referência, como o verdadeiro ser dessas form
as espirituais. 1
Além disso, na medida em que essa abstraçã
o conc~be a si
mesma, e a experiência uma crescente fartura
de si mesma,
aparece em Hegel um abandono · do pensame
nto abstrato que
se movimenta unicamente na esfera do pensame
nto e é des-
tituído de olhos, ouvidos, dentes, tudo, enfi
m, e uma reso-
lução de reconhecer a natureza como um ser
e apelar para a
intuição.)
(XX XII I) A natureza também, contudo, tomada abstratamen-
te, por si e rigidamente separada do homem, nada
é para o ho-
mem. Não é mister dizer que o pensador abst
rato entregue à
intuição intui a natureza abstratamente. Como a
natureza acha-se
encerrada no pensador de forma obscura e mist
eriosa até para
êle mesmo, como idéia absoluta, como uma entid
ade de pensa-
mento, quando a deixou surgir dêle mesmo ela
era ainda apenas
natureza abstrata, a natureza como uma entidade
de pensamento,
mas agora com a significação de ser o ser-outro
do pensamento, é
a natureza real, intuída, distinta do pensamento
abstrato. Ou,
usando linguagem humana, o pensador abstrato
descobre, ao in-
tuir a natureza, que as entidades que êle julga
va estar criando
do nada, da abstração pura, criando na dialética
divina como pro-
dutos puros do pensamento interminàvelr11ente
em vaivém den-
tro de si mesmo e sem nunca levar em conta
a realidade exte-

1 Isto é, Heg el substitui essas abstr


ações fixadas pelo ato de
abst raçã o giran do dent ro de si mesmo.
Ao fazê-lo, antes de mais
nada êle tem o méri to de have r indicado
a fonte de todos aquêles
conceitos inad equa dos que originàriamente
perte ncia m a diferentes
filosofias e havê-los reun ido e estabelecido
a amp litud e global das
abst raçõ :s, em vez de uma dete rmin ada
abstração, como o objeto
da críti ca. Veremos mais tard e por que
Hegel sepa ra o pensamento
do sujeito. Já está claro, toda via, que se o
homem não fôr humano a
expressão de sua natu reza não pode rá ser
hum ana e, conseqüente-
men te, o próp rio pensamento não pode rá
expressão da natu reza hum ana, como uma ser concebido como ~a
expressão de um su1e1to
hum ano e natu ral, com olhos, ouvidos etc.,
vivendo na sociedade, no
mun do e na natu reza .
PROPRIEDADE PRIYADA E TRABALHO 169

·or são simplesmente abstrações de características naturais. A


n , . . AI
natureza inteira, por consegumte, reitera para e e as abstrações
lógicas, mas de uma forma sensorial, externa. ~le analisa a
natureza e essas abstrações, uma vez mais. Sua intuição da na-
tureza é simplesmente, pois, o ato de confümação de sua abstra-
ção da intuição da natureza; sua representação consciente do
processo de geração de sua abstração. Assim, por exemplo, o
Tempo iguala-se à Negatividade auto-referível (loc. cit., pág. 238).
Na forma natural, o Movimento superado como Matéria, corres-
ponde ao vir-a-ser superado. Na forma natural, a Luz é Refle-
xo-em-si. Corpos como Lua e Cometas são a forma natural da antí-
tese que, segundo a Lógica, é de um lado o positivo fundado em
si mesmo, e, de outro, o negativo fundado em si mesmo. A Terra
é a forma natu.ral da fundação lógica, como a unidade negativa
da antítese etc.
A natureza como natureza, i. e., na medida em que é dis-
tinguida sensorialmente daquele sentido secreto oculto dentro
dela, a natureza superada e distinguida dessas abstrações, é nada
(uma nulidade demonstrando sua nulidade), é desprovida de
sentido, ou tem apenas o sentido de uma coisa externa que foi
superada.
"No ponto de vista finito-teleológico encontra-se a premissa
correta de a natureza não encerrar em si a finalidade absoluta"
(/oc. cit., pág. 225). Sua .finalidade é a confirmação da abstra-
ção. "A natureza mostrou-se ser a idéia sob a forma de ser-outro.
Co1:10 idéia é, sob esta forma, a negação de si mesma, ou exterior
ª !1 mesma, a natureza não é apenas relativamente exterior vis-à-
·vrs e~sa idéia, porém a exterioridade constitui a forma em que
ela existe como natureza" (loc. cit., pág. 227).
A ex!erforidade não deve ser aqui entendida como o mundo
auto-exterrorrzador dos sentidos, aberto à luz e aos sentidos do
homem. . Deve ser considerada na acepção de alienação, um êrro,
~- defeito, que não devia existir. Pois o verdadeiro é ainda a
1
eia. A natureza é meramente a forma de seu ser-outro. E co-
m~ p_ensamento abstrato é ser, o que é exterior a êle por sua
fropria natureza é meramente coisa exterior. O pensador abs-
rato reconhece ao mesmo tempo que sensorialidade, exterioridade,
em• contraste com o pensamento que f ica · · '
em vaivem d entro d e
St mesmo é a
êl .' .. . da natureza. s·unu1taneamente, contudo,
essenc1a A

naetureza
exprime essa antítese de tal maneira que essa txterioridade da
' e seu contraste com o pensamento, aparece como uma
170 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

deficiência, e a natureza se distinguindo da abstração se afigura


um ser deficiente. (XXXIV) Um ser deficiente, não simples-
mente para mim ou para meus olhos, mas em-si, tem algo fora
dêle que lhe falta. Isso equivale a dizer, seu ser é outra coisa
que não êle mesmo. Para o pensador abstrato, a natureza tem,
pois, de superar-se a si mesma, porque já está pressuposta por
êle como um ser potencialmente superado.
"Para nós, o espírito tem a natureza como sua premissa, sen-
do a verdade da natureza e, por conseguinte, seu primus abso-
luto. Nessa verdade, a natureza desapt1receu e o espírito capi-
tulou como a idéia que alcançou ser para si mesma, como obieto,
assim como o sujeito é o conceito. Essa identidade é negatividade
absoluta, pois enquanto na natureza o conceito encontra sua per-
feita objetividade exterior, aqui sua alienação foi superada e o
conceito tornou-se idêntico a si mesmo. Ele é essa identidade so-
mente na medida em que é um retôrno da natureza" (Joc. cit.,
pág. 392).
"A revelação, como a idéia abstrata, é uma transição sem
mediação para o vir-a-ser da natureza; como a revelação do espí-
rito que é livre é o estabelecimento da natureza como seu pró-
prio mundo, estabelecimento êsse que, como reflexo, é simultâ-
neamente a pressuposição do mundo como natureza existente in-
dependentemente. A revelação em conceito é a criação da natu-
reza como o próprio ser do espírito, no qual êle adquire a afi,:-
mação e verdade de sua liberdade." "O absoluto é espírito,· esta
é mais alta definição do absoluto."
EXCERTOS DE "IDEOLOGIA ALEMÃ"

Karl Marx

O fato é. . . que indivíduos definidos e produtivamente ati-


vos de maneira definida entraram em. . . relações sociais e po-
líticas definidas. · A observação empírica tem de apurar empirica-
mente, em cada caso isolado, sem qualquer mistificação ou espe-
culação, a ligação da estrutura social e política com a produção.
A estrutura social e o Estado estão continuamente evoluindo
do processo vital de indivíduos definidos, mas indivíduos, não
como talvez apareçam à sua imaginação ou à de outros, porém
como realmente são; i. e., como são efetivos, produzem material-
mente, e são ativos dentro de determinados limites materiais, pres-
suposições e condições independentes de suas vontades.
A produção de idéias, d~ concepções, de consciência, é a
princípio diretamente entrelaçada com a atividade material, e as
relações materiais dos homens, com a linguagem da vida real.
Conceber, pensar o intercâmbio mental dos homens afigura-se,
nessa primeira etapa, como o eflúvio direto de seu comporta-
mento material. O mesmo aplica-se à produção mental expressa
na linguagem da política, do direito, da moral, da religião, da
metafísica de um povo. Os homens são os produtores de suas
concepções, idéias etc. - homens reais, ativos, conforme são
condicionados por um desenvolvimento definido de suas fôrças
produtiv~s e das relações a estas correspondentes, até suas for-
~ Am~is adiantadas. A consciência nunca pode ser senão a
st
e~ encia consciente, e a existência dos homens é seu processo
vital concreto. Se em tôdas as ideologias os homens e suas cir-
cunstA ·
ancias aparecem de cabeça para baixo como em uma ca-
:ar~ .obscura, êsse fenômeno resulta tanto de seu processo vital
e/tone? quanto a inversão de objetos na retina de seu pro-
sso vital físico.
172 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

Em contraste direto com a filosofia alemã, descendo do céu


à terra, aqui nos elevamos da terra ao céu. Quer isso dizer, não
partimos do .que os homens dizem, imaginam, concebem, nem
dos homens como são descritos, pensados, imaginados, concebidos
a fim de chegar aos homens de carne e osso. Principiamos co~
homens reais, ativos, e baseados em seu verdadeiro processo vi-
tal demonstramos a evolução dos reflexos e ecos ideológicos dêsse
processo vital. Os fantasmas formados no cérebro humano são
também forçosamente sublimados de seu processo vital, emplrica-
mente verificável e ligado a premissas materiais. Moral, reli-
gião, metafísica, todo o restante da ideologia e suas formas cor-
respondentes de consciência, pois, não mais conservam o aspecto de
sua independência. Elas não têm história nem evolução; mas os
homens, desenvolvendo sua produção material e seu intercâmbio
material, alteram, a par disso, sua existência real, seu pensamento
e os produtos dêste. A vida não é determinada pela consciência,
mas esta pela vida. No primeiro método de abordagem, o ponto
de partida é a consciência tomada como o indivíduo vivo; no se-
gundo, são os próprios indivíduos vivos reais, tal como são na
vida concreta, e a consciência é considerada unicamente como
consciência dêles.
Este método de abordagem não é desprovido de premissas.
:Ele começa pelas premissas reais e não as abandona por nenhum
momento. Suas premissas são homens não em um isolamento
fantástico ou definição abstrata, mas em seu processo real, em-
piricamente perceptível, de desenvolvimento em dadas condições.
Uma vez descrito êsse processo vital ativo, a história cessa de
ser uma coletânea de fatos mortos, como o é com os empíricos
( êles próprios ainda abstratos), ou uma atividade imaginada de
sujeitos imaginados, como o é com os idealistas.
Onde termina a especulação - na vida real - aí começa a
ciência real e positiva: a representação da atividade prática, do
processo prático de desenvolvimento dos homens. Pára a con-
versa frívola sôbre a consciência, sendo substituída pelo verda-
deiro conhecimento. Quando se retrata a realidade, a filosofia
como ramo independente de atividade perde seu meio de existên-
cia. Na melhor hipótese, sua função só pode ser totalizar os
resultados mais gerais, abstrações brotando da observação d? ,d~-
senvolvimento histórico dos homens. Vistas à parte da h1stona
verdadeira, essas abstrações não têm por si mesmas qualq~er v~lo~.
Elas só podem servir para facilitar a disposição do material hi sto-
EXCERTOS DE "IDEOLOGIA ALEMÃ" 173

rico, indicar a seqüência de suas diversas camadas. Mas elas ab-


solutamente não fornecem uma fórmula ou esquema, como o faz
a filosofia, para delimitar nitidamen te as épocas históricas. Pelo
contrário, nossas dificuldad es só começam quando encetamos a
observação e a disposição - a descrição real - de nosso material
histórico, quer de uma época pretérita ou da presente. O afasta-
mento dessas dificuldad es é governad o por premissas assaz im-
possíveis de definir aqui, mas que só o estudo do processo vital
concreto e da atividade dos indivíduo s de cada época evidenciará.
Selecionaremo·s aqui algumas dessas abstrações, utilizadas para
refutar os ideólogos, e as elucidaremos por meio de exemplos
históricos.

(a) História

Desde que estamos lidando com os alemães, que não postu-


lam coisa alguma, devemos principiar enunciand o a primeira
premissa de tôda a existência humana, e portanto de tôda a His-
tória, qual seja a dos homens terem de estar em condições de vi-
ver para poderem '"fazer História" . A vida, contudo, implica
antes de mais nada comer e beber, uma habitação, vestuário
e muitas outras coisas. O primeiro ato histórico, pois, é a pro-
dução dos meios de atender a essas necessidades, à produção da
própria vida material. E êsse é, deveras, um ato histórico, uma
condição fundamen tal de tôda a história, que hoje, como há mi-
lhares de anos, tem de ser executado todos os dias e tôdas as
horas simplesmente a fim de sustentar a vida humana. Ainda
quando o mundo sensorial se reduz a um mínimo, a um bastão
como . co~ São Bruno, êle pressupõe a ação de produzir o bastão.
~ primeira necessidade, portanto, em qualquer teoria da história,
e. . observar êsse ato fundamen tal em todo o seu significad o e em
todas ~s suas implicações, atribuindo -lhe a devida importância.
Como e notório, os alemães nunca fizeram isso, e nunca dispuse-
r:m, f 0 r conseguinte, de uma base terrena para a história; logo,
nao tiveram nunca um historiado r. Os franceses e inglêses, mal-
g:a_do tenham concebido a relação dêsse fato com a chamada His-
tona, somente de maneira bem unilateral , particular mente en-
(uanto . permaneceram na arapuca da ideologia política, não obs-
t:n_te fizeram as primeiras tentativas para dar à redação da his-
h~rt~ ?-111ª base materialista, por terem sido os primeiros a escrever
st0
nas da sociedade civil, do comércio e da indústria.
174 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

O segundo ponto fundamental é o de assim que uma ne-


cessidade é satisfeita ( e isso subentende a ação de satisfazer e
a aquisição de um instrumento) são criadas novas necessidades;
e essa produção de necessidades novas é o primeiro ato histórico.
Aqui reconhecemos imediatamente a ascendência espidtual da
grande sabedoria histórica dos alemães, que, quando esgotam 0
material positivo e não podem proporcionar baboseira teológica,
política ou literária, não escrevem história alguma, mas inventam
a "era pré-histórica". No entanto, êles não nos esclarecem sôbre
como passar dessa ridícula "pré-história" para a história pro-
priamente dita; conquanto, por outro lado, em sua especulação
histórica apeguem-se a essa "pré-história" com particular avidez
por ali se imaginarem seguros contra a interferência de parte
dos "fatos crus" e, ao mesmo tempo, por ali poderem dar rédea
sôlta a seu impulso especulativo, estabelecendo e derrubando hi-
póteses mil.
A terceira circunstância, que, desde logo, penetra no desen.
volvimento histórico, é os homens, que diàriamente refazem
sua própria vida, começarem a fazer outros homens, a propagar
sua espécie: a relação entre marido e espôsa, pai:; e filhos, a
família. A família, que de início é a única relação social, torna-se
mais tarde, quando as necessidades ampliadas criam novas· relações
sociais e a população aumentada novas necessidades, uma relação
secundária ( exceto na Alemanha) , e tem então' de ser tratada e
analisada de acôrdo com os dados empíricos existentes, 1 não de
acôrdo com "o conceito de família", como é habito na Alemanha.
:Esses três aspectos da atividade social evidentemente não devem
ser tomados como três etapas diferentes, mas sim, como eu disse,

1 A construção de casas. Entre os selvagens, está claro, cada


família tem sua caverna ou choupana, como a barraca familiar dos
nômades. Essa economia doméstica separada é ainda mais necessária
com o desenvolvimento ulterior da propriedade privada. Nos po·
vos agricultores, urna economia doméstica comunal é tão impossível
quanto um cultivo comunal do solo. Grande progresso foi a constru-
ção de povoados. Em todos os períodQs anteriores, contudo, a aboliçã_o
da economia individual, inseparável da eliminação da propriedade J:>r!·
vada, foi impossível devido à simples razão das condições mater1a1s
que ditam isso não se acharem presentes. A instauração de uma ec~-
nomia doméstica comunal pressupõe a criação de maquinaria, a utl·
lização das fôrças naturais e de muitas outras fôrças produtivas -
e. g., de suprimento de água, iluminação a gás, aquecimento a vapo~,
etc., a extirpação do antagonismo entre cidade e campo. Sem tais
EXCERTOS DE "IDEOLOGIA ALEMÃ" 175

como três aspectos ou, para deixar isso mais claro para os alemães,
como três "momentos", existindo simultâneamente desde a aurora
da História e dos primeiros homens, e ainda se afirmando nos
dias de hoje.
A produção da vida, tanto da sua própria pelo trabalho como
da vida pela procriação, aparece agora como uma dupla rela-
ção: por um lado, como natural; pelo outro, como social. Por
social, entendemos a cooperação de diversos indivíduos, não impor-
ta em que condições, de que maneira e com que fim. Decorre
daí um certo modo de produção, ou estágio industrial, sempre a se
combinar a certo modo de cooperação, ou estágio social, e êsse
modo de cooperação ser em si mesmo uma "fôrça produtiva".
Ainda mais, a multidão de fôrças produtivas acessíveis ao homem
determina a natureza da sociedade, e por isso a "história da hu-
manidade" tem sempre de ser estudada e tratada em relação à
história da indústria e das trocas. Todavia, também fica claro
como na Alemanha é impossível escrever êsse gênero de história,
pois aos alemães falecem não só a indispensável capacidade de
compreensão e o material como ainda a "prova dos sentidos", pois
além-Reno não se pode vivenciar estas coisas já que a História
parou de acontecer. Assim, é bastante óbvio, de saída, existir
uma conexão materialista dos homens entre si, determinadas
por suas necessidades e seu sistema de produção e tão antiga
q~anto os próprios homens. Essa conexão está sempre assu-
mmdo formas novas, e por isso apresenta uma "história" inde-
pendente da existência de qualquer tolice política ou religiosa ca-
paz de por si só manter unidos os homens.
Só agora, após ter considerado quatro momentos, quatro
aspectos das relações históricas fundamentais, concluímos deve-
r~s qu: o homem também possui "consciência"; mas, ainda as-
s~m!, n_ao consciência inerente, "pura". Desde o início, o "espí-
r~t~ e atormentado pela maldição de estar "oprimido" pela ma-
tena, .que aí faz seu aparecimento sob a forma de camadas de
ar agitadas, sons, em suma, de linguagem. A linguagem é tão

condiÇÕes .
nova b ' uma economia comunal não formaria por si mesma uma
baria dased puramente teórica, seria uma simples curiosidade e aca-
que er/º .? em nada mais do que uma economia monástica. O
prédios viavel _Pode· ser visto na formação de vilas e na ereção de
por isso :muna.is ~ara determinados fins ( prisões, quartéis etc.). t
parável da esmlio . evi~ente ser a abolição da economia individual inse-
e mmaçao da familia.
176 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

velha quanto a consciência; ela é consciência prática, tal


como
existe para outros homens, e por essa razão está começando
real-
mente a existir para mim também pessoalmente, pois a lingu
agem,
assim como a consciência, só brota da necessidade, da exigê
ncia,
do intercâmbio com outros homens. Onde há um relacionam
ento
ela existe para mim: o animal não tem "relações" com coisa )

al-
guma, nem as pode ter. Para o animal, sua relação com os
ou-
tros não existe como relação. A consciência, por conseguint
e, é
desde o comêço um produto social, e assim permanece enqua
nto
houver homens. A princípio, é claro, a consciência só se
refere
ao meio sensível imediato e ao conhecimento da ligação restrit
a
com outras pessoas e coisas exteriores ao indivíduo que se vai
tor-
nando autoconsciente. Ao mesmo tempo, ela é percepção da.
na-
tureza, que aparece primeiro ao homem como uma fôrça comp
le-
tamente estranha, onipotente e invulnerável, com a qual as
rela-
ções do homem são exclusivamente animais e pela qual êles
são
excessivamente aterrorizados como se fôssem feras; é, pois,
uma
consciência puramente animal da natureza ( religião natur
al).
Vemos imediatamente aqui : essa religião natural ou com-
portamento animal face à natureza é determinado pela forma
da sociedade e vice-versa. Aqui, como em tôda parte, a identidade
do homem e da natureza aparece de maneira à relação restrit
a
dos homens com a natureza determinar a restrita relação dêles
entre si, e sua relação restrita entre si determinar a relação
res-
trita dêles com a natureza, exatamente porque a natureza ainda
não foi historicamente modificada; e, por outro lado, a consc
iên-
cia do homem da necessidade de associar-se com os indivíduos
a seu redor é o início da tomada de conhecimento de que
de
qualquer modo está vivendo em sociedade. .Esses primórdios
são
tão animais quanto o é a própria vida social nessa fase. n mera
consciência insensível, e a essa altura o homem só se distingue
dos
carneiros pelo fato de nêle a consciência tomar o lugar do
ins-
tinto ou de êste ser consciente.
Essa consciência tipo carneiro ou tribal recebe seu ulterior
desenvolvimento e ampliação graças ao aumento da produ
ti-
vidade, das necessidades, e o que é fundamental para ambas,
da
população. Com essas três desenvolve-se a divisão do traba-
lho, originàriamente não passando de divisão do trabalho no
ato
sexual, e a seguir a divisão do trabalho manifestada espont~nea
ou "naturalmente" por fôrça de predisposição natural (e. g., v1go~
físico), necessidades, acidentes etc. etc. A divisão do trabalho
so
EXCERTOS DE "IDEOLOG IA . ALEMÃ" 177

se concretiza, deveras, quando aparece uma repartição do trabalho


mental e material. A partir dêsse momento , a consciência pode
realmente gabar-se de ser algo mais que conhecimento da prática
existente e de estar realmente concebendo algo sem conceber algo
conct'eto; daí em diante, a consciência acha-se em condições de
emancipar-se do mundo e prossegui r para formar a teoria, teo-
logia, filosofia, ética etc. •·puras". Porém, mesmo se essas teo-
ria, teologia, filosofia, ética etc. entrarem em contradição com as
relações existentes, isso só pode ocorrer como resultado do fato
das relações sociais existentes terem entrado em contradição com
fôrças ou a produção existente; isso, além do mais, também pode
ocorrer em uma determinada esfera nacional de relações pelo
aparecimento da contradição, não dentro da órbita nacional, mas
entre essa consciência natural e a prática de outras nações, i. e.,
entre a consciência nacional e a geral de uma nação.
Outrossim, pouco importa o que a consciência faz primeiro
por conta própria: de tôda essa tagarelice só retiramos a inferên-
cia de êsses três momentos, as fôrças da produção, o estado de so-
ciedade e a consciência, poderem e terem de entrar em contra-
. dição entre si, porquanto a divisão do trabalho subentende a possi-
bilidade, mais ainda o fato, de • a atividade intelectual e material -
prazer e trabalho, produção e consumo - ser transferida a di-
ferentes indivíduos, e de a única possibilidade de não estarem
em contradição residir na negação, por sua vez, da divisão do
trabalho. É evidente por si mesmo, além disso, que "espectros",
"laços", "o ser superior", "conceito" , "escrúpulo" são simplesmen-
te a expressão idealista, espiritual, a concepção aparentemente do
indivíduo isolado, a imagem dos entraves e limitações empíricos
dentro dos quais avança o sistema de produção da vida, assim
como a forma de intercâmbio a êle associada.
Com a divisão do trabalho, na qual se acham implícitas tôdas
essas contradições, e baseada por seu turno na divisão natural do
tr_a~alho na família e na repartição da sociedade em famílias_ i~-
di~1~uais opostas umas às outras, surge simultâneamente a d~str~-
bwçao, e de fato a distribuição desigual ( quantitativa e qualitati-
vamente), do trabalho e de seus produtos, portanto da proprieda-
de:.. cujo núcleo, ou primeira forma , acha-se na família, onde a es-
posa e os filhos são escravos do marido. Essa escravidão latente
na família, embora ainda muito rudimentar, é a primeira proprie-
da~e, mas mesmo nessa etapa primitiva corresponde perfeitamen-
~ee ª defi~ição dos economistas modernos que a deno~~~ m de _po-
r de dispor da fôrça de trabalho dos outros. A d1v1sao do tra-
12
·]78 CONC EITO MARXISTA DO HOM EM

balho e a propr iedad e priva da são, ademais, expressões idênti


cas:
numa , a mesma coisa é afirm ada com referê ncia a atividade
que,
na outra, o é com referência ao produ to da atividade.
Aind a mais, a divisão do traba lho suben tende a contradição
entre o interêsse do indiv íduo de per si ou da famíl ia individual
e o interêsse comu nal de todos os indiv íduos em intercâmbio
uns
com os outros. E, deveras, êsse interêsse comu nal não existe
mera ment e na imaginação, como o "bem geral ", mas acima
de
tudo na realidade, como a interd epend ência mútu a dos indiví
-
duos entre os quais o traba lho é dividido. Finalmente, a divi-
são do trabalho apresenta-nos o prime iro exemplo de como,
enqua nto o home m permanece em sociedade natural, isto
é,
enqua nto existe uma cisão entre o interêsse particular e o
co-
mum , enqua nto, por conseguinte, como atividade não é dividi
da
volun tária mas naturalmente, as ações do home m tornam-se uma
fôrça estran ha oposta a êle, escravizando-o em vez de ser
por
êle controlada . Pois, uma vez seja o traba lho distribuído, cada
home m tem uma esfera particular, exclusiva, de atividade, a
êle
impo sta e da qual não pode fugir. ~le é caçador, pescador, pastor
ou crítico, e assim tem de permanecer se não quiser perde r seus
meios de subsistência; enqua nto na sociedade comunista, onde
ningu ém tem uma esfera exclusiva de atividade mas cada um pode
realizar-se em qualq uer ramo se o desejar, a sociedade regul
a a
produção geral e torna assim possível para mim fazer uma
coi-
sa num dia e outra amanhã, caçar de manh ã, pescar de tarde.
criar gado de noite, criticar, depois do jantar, como eu quiser
,
sem jamais me torna r caçador, pescador, pasto r ou crítico.
Essa cristalização da atividade social, essa consolidação do
que nós mesmos produzimos em uma fôrça objetiva super
ior
a nós, escapando a nosso contrôle, frustr ando nossas expectativa
s,
reduz indo a nada as nossas provisões é um dos principais fatôre
s
de evolução histórica até agora. E, dessa mesm a contradição
entre o interêsse do indiv íduo e da comunidade, o últim o assum
e
uma forma indep enden te como o Estad o , divorciado dos reais
interêsses do indiv íduo e da comunidade, e ao mesmo temPo
como uma ilusória via comunal, sempre baseada, entre tanto ,
nos
vínculos reais existentes em tôda famíl ia e aglomeração tribal
( como carne e sangue, língu a, divisão do traba lho em maior
es-
cala, e outros interêsses) e especialmente, confo rme ampliaremo
s
adiante, nas classes, já deter mina das pela divisão do trabal
ho,
que em t_?da m~ssa de home ns assim se destacam e das quais
uma deseJa domi nar as outra s tôdas. Deco rrem daí tôdas as
EXCERTOS DE "IDEOLOGIA ALEMÃ" 179

lutas dentro do Estado, a luta entre democracia. aristocracia e


monarquia, luta pelas franquias etc. etc. serem apenas as for-
mas ilusórias em que são travadas as lutas reais das diferentes
classes umas com as outras ( disso, os teóricos alemães não têm
a mínima suspeita, apesar de terem sido suficientemente familia-
rizados com o . assunto em ·Os Anais Teuto-Franceses e A Santa
Família).
Continuando, conclui-se que tôda classe em busca da su-
premacia, ainda quando seu domínio, como é o caso do prole-
tariado, postula a abolição da antiga forma de sociedade em sua
totalidade e da própria supremacia, tem primeiro de conquis-
tar poder político para si a fim de representar seu interêsse, por
sua vez, como o interêsse geral, um passo a que é obrigada no
primeiro momento. Só porque os indivíduos visam unicamente
seu interêsse particular, i. e., não coincide com o interêsse co-
munal (pois o "bem geral" é a forma falaz de vida comunal),
o último ser-lhe-á impôsto como um interêsse "alheio" e "inde-
pendente" dêles, como, a seu turno, um "interêsse geral" pe-
culiar, particular; ou, então, têm de enfrentar êsse antagonismo,
como na democracia. Por outro lado, ainda, a luta 'prática dês-
ses interêsses particulares, constantemente, torna necessários o con-
trôle e a intervenção práticos através do ilusório "interêsse geral"
sob a forma de Estado. O poder social, i. e., a fôrça produtiva
multiplicada, nascida da cooperação de diferentes indivíduos co-
mo é determinada na divisão do trabalho, aparece a êsses indi-
víduos, já que sua cooperação não é voluntária mas natural, não
como sua própria fôrça unificada mas como uma fôrça estranha
existente fora dêles, de cuja origem e fim nada sabem, que assim
nã~ podem controlar, que pelo contrário passa por uma série .pe-
culiar de fases e etapas independentemente da vontade e da ação
do homem, e mais ainda sendo o principal dirigente destas.
Esse "alheamento" (para empregar um têrmo compreensível
pe_los filósofos) só pode, naturalmente, ser abolido uma vez satis-
feitas duas premissas práticas. Para êle tornar-se uma fôrça "into-
lerável", i. e., uma fôrça contra a qual os homens façam uma
revolução, necessário se torna haver deixado uma grande massa
da humanidade "destituída de propriedade", e produzido, ao
mesmo tempo, a contradição de um mundo existente de riqueza
~ cultura, essas duas condições pressupõem um grande aumento
0
poder produtivo, um alto grau de seu desenvolvimento. E,
por outro lado, êsse desenvolvimento das fôrças produtivas ( que
180 CONCEITO MARXIST.A DO HOMEM

em si implica a existência empírica real de homens em seu ser


histórico-mundial,, em vez de local) é absolutamente necessário
como premissa prática: primeiro, porque sem ela só a privação é
generalizada, e com a privação a luta pelas necessidades e tôda a
velha sujeira seriam necessàriamente recomeçadas; em segundo lu-
gar, porque só com êsse desenvolvimento universal das fôrças pro-
dutivas estabelece-se um intercâmbio universal dos homens, pro-
duzindo em tôdas as nações simultâneamente o fenômeno da mas-
sa "sem propriedades" (competição universal), torna cada nação
dependente das revoluções das outras, . e por fim coloca indivíduos
histórico-mundiais, empiricamente universais, em lugar dos lo-
cais. Sem isso, 1) o comunismo só poderia existir como fato
local; 2) as próprias fôrças das trocas não se poderiam ter trans-
formado em fôrças universais, e por isso intoleráveis; teriam con-
tinuado sendo condições supersticiosas feitas em casa; 3) cada
ampliação do intercâmbio aboliria o comunismo local. Empiri-
camente, o comunismo só é possível como · um ato dos povos do-
minantes "todos de uma vez" ou simultâneamente, o que pressu-
põe o desenvolvimento universal das fôrças produtivas e o in-
tercâmbio mundial a elas associado. Como, de outra forma,
poderia a propriedade ter qualquer história, ter assumido diferen-
tes formas, e a propriedade agrária, por exemplo, segundo as di-
ferentes premissas dadas, ter passado na França do partilhamento
para a centralização nas mãos de uns poucos, na Inglaterra da
centralização nas mãos de uns poucos para o partilhamento, co-
co é o caso de hoje realmente? Ou como acontece ter o comér-
cio, afinal de contas nada mais do que a troca de produtos de vá-
rios indivíduos e países, dominado o mundo inteiro graças à re-
lação de oferta e procura - uma relação que, conforme diz um
economista inglês, paira sôbre a terra corno o Destino dos Anti-
gos, e com mãos invisíveis distribui fortuna e infortúnio pelos
homens, instala impérios e derruba impérios, faz surgir e desapare-
cer - enquanto com a eliminação da base da propriedade priva-
da, com a regulamentação comunista da produção ( e, implícita
nesta, a destruição da relação alienada entre os homens e o que
êles mesmos produzem), a fôrça da relação de oferta e procura
dissolver-se no nada, e os homens conseguem ter sob seu con-
trôle novamente a troca, a produção, o sistema de suas relações
mútuas?
O comunismo não é, para nós, um estado estável a ser es-
tabelecido, um ideal. ao qual a realidade deverá ajustar-se. De-
nominamos comunismo ao movimento real para abolir o pre-
EXCERTOS DE "IDEOLOG IA ALEMÃ" 181

1:nte estado de coisas. As condições dêsse movimento decorrem


d:S premissas ora existentes. Além disso, o mercado mundial é
pressuposto pela massa de trabalhadores desprovidos de proprie-
dades - fôrça de trabalho separada em massa do capital e até
mesmo de uma satisfação limitada - e, portanto, não mais pela
mera precariedade do trabalho, que, não dando uma subsistência
garantida, muit:s vêzes é. p~rdido devi~<: à co!11~e~ição. O_J?roleta-
riado, assim, so pode extstlr em cond1çoes hrstorrco-mundrars, exa-
tamente como o comunismo; seu movimento só pode ter uma
existência "histórico-mundial". A existência histórico-mundial
de indivíduos é a existência de indivíduos diretamente vincula-
da à história do mundo.
A forma de intercâmbio determina da pelas fôrças produti-
vas existentes em tôdas as etapas históricas anteriores, e por
sua vez determinando estas, é a sociedade civil. Esta, conforme
se evidencia do que dissemos acima, tem como premissa e
como base a família simples e a múltipla, a chamada tribo,
cujos determinantes principais acham-se enumerados em nossas
observações de há pouco. Aqui já vemos como essa sociedade
civil é a verdadeira fonte e teatro de tôda a história, e quão in-
sensata é a concepção da história até aqui sustentada, despre-
zando as verdadeiras relações e restringindo-se a altissonantes dra-
mas de príncipes e Estados. A sociedade civil abarca a totalidade
do intercâmbio dos indivíduos em uma determinada etapa do
desenvolvimento das fôrças produtivas. Ela abrange tôda a vida
comercial e industrial dessa etapa e, a ponto de transcender o Es-
tado e a nação, malgrado, ainda, por outro lado, deva afirmar-se
face aos povos estrangeiros como uma nacionalidade, e interina-
~e.?te tenha de organizar-se como Estado. O nome "sociedade ci-
~~l ap_areceu no século XVIII, quando as relações de proprieda de
Ja se tinham desvencilhado da sociedade comunal antiga e medie-
v~l. A sociedade civil, como tal, só se materializa com a burgue-
s1ª; a organização social provinda diretamen te da produção e
do comerc10,
' · que
em tôdas as eras forma a base do Estado e do
resto da superestrutura idealista, contudo, foi sempre designada
pe1o mesmo nome . ..
lad A História nada mais é além da sucessão das gerações iso-
ca ~~ cada ..uma das quais explora os materiais, as formas de
1
rJ' as_ forças produtivas a ela passadas por tôdas as antecesso-
~s~ ~sun por um lado continua a atividade tradicional em eir-
as an:~:s ~omple~am_ente modificadas, enquanto por outro altera
g circunstannas como uma atividade completamente mo-
182 CONC EITO MARXISTA DO HOME M

difica da. Isso pode ser deturp ado especulativamente de modo


que a histór ia ulterio r seja convertida em meta da história an-
terior, e. g., o objetivo atribu ído ao descobrimento da América
foi fomen tar a irrupção da Revolução Francesa. Por essa razão,
a histór ia recebe suas própri as metas e torna-se "uma pessoa da
mesma hierar quia que outras " ( a saber: autoconsciência, crítica,
o único etc.), ao passo que o antes designado pelos nomes "des-
tino", "objetivo", "germ e" ou "idéia " da história anterior nada
mais é do que uma abstração forma da da história ulterior, da
influê ncia ativa exercida pela história primit iva na história sub-
seqüente. Quant o mais as esferas separadas, interagindo umas nas
outras, se estendem no decurso de seu desenvolvimento, quan-
to mais o isolamento original das naciémalidades separadas é
destru ído pelo sistema aperfeiçoado da produção e troca e pela
divisão do trabalho naturalmente fomentada por êste, tanto
mais a história se torna história mundial. Assim, por exem-
plo, se é inventada na Inglat erra uma máquina que na lndia
ou na China · priva inúmeros trabalhadores de seu pão, e trans-
torna tôda a forma de existência dêsses impérios, essa invenção
torna-se um fato da história mundial. Ou, então, tome-se
o caso do açúcar e do café, que provaram sua importância para
a história mund ial do século XIX pelo fato de a falta dêsses
produtos, provocada pelo sistema continental napoleônico, ter
levado os alemães a insurgirem-se contra Napoleão e, assim,
converteu--se na verdadeira base das gloriosas Guerras de Liber-
. tação de 1813. Segue-se disso não ser essa transformação da
histór ia em história mundial, com efeito, um mero ato abstrato
por parte da "autoconsciência", do espírito mundial ou outro qual-
quer espectro metafísico, porém um ato assaz material e emplrica-
mente verificável, um ato cuja prova é dada por todo indivíduo
ao ir e vir, comer, beber e vestir-se.
As idéias da classe dominante são, em tôdas as épocas, as
idéias dominantes : i. e., a classe, que é a fôrça material gover-
nante da sociedade, é ao mesmo tempo sua fôrça governan-
te intelectual. A classe que tem à sua disposição os meios da
produção material controla concomitantemente os meios de. ~~o-
dução intelectual, de sorte que, por essa razão, geralmente as 1de1as
daqueles que carecem dêsses meios ficam subordinadas a ela. f s
idéias dominantes não passam de expressão ideal das relaçoes
materiais dominantes, consideradas estas como idéias; daí, as re-
lações que fazem de uma classe a dominante, portan to as idéias
de sua supremacia. Os indivíduos componentes da classe do-
EXCERTOS DE "IDEOLOG IA ALEMÃ" 183

minante possuem, entre outras coisas, consciência, e por conse-


guinte pensam. Na medida, pois, em que êles dominam como
classe e determinam a amplitude e o ritmo de uma época, é evi-
dente fazerem isso em todos os setores, donde dominarem tam-
bém, entre outras coisas, como pensadores, como produtores de
idéias e regularem a produção e a distribuição de idéias de seu tem-
pa: destarte, suas idéias são as dominantes da época. Por exemplo,
em wn período e em um país onde o poder real, a aristocracia e
a burguesia contendem pela supremacia e onde, portanto, esta é
compartilhada, a doutrina da separação dos podêres mostra-se a
idéia dominante e se expressa como uma "idéia eterna" . A di-
visão do trabalho, vista acima como sendo uma das principais
fôrças da história até agora, manifesta-se na classe dominante pe-
la divisão do trabalho mental e material, de modo que dentro
dessa classe uma parte aparece como os pensadores da classe ( seus
ideólogos ativos e conceptivos, que fazem do aperfeiçoamento da
ilusão da classe a seu próprio respeito seu principal ganha-pão),
enquanto a atitude de outros para com essas idéias e ilusões é
mais passiva e receptiva, porque na realidade são os membros
ativos da classe e têm menos para inventar ilusões e idéias sôbre
si próprios. Dentro dessa classe, essa segmentação pode evoluir
para uma certa oposição e hostilidade entre as duas partes, que,
entretanto, no caso de uma colisão prática, na ·qual a própria
classe esteja ameaçada, automàticamente reduz-se a nada quando
também se desvanece a impressão das idéias dominantes não se-
rem as da classe dominante e terem poder distinto do poder des-
sa classe. A existência de idéias revolucionárias em determinado
per~odo pressupõe a existência de uma classe revolucionária; quan-
to as premissas disso, já foi dito atrás o suficiente.
Se agora, ao apreciar o curso da história, destacarmos as idéias
da classe da própria classe e atribuirmo-lhes existência indepen-
d_ente, se nos limitarmos a dizer terem estas ou aquelas idéias
sido d~minantes, sem nos preocuparmos com as condições de
pro~uçao e os produtores dessas idéias, se a seguir ignorarmos
os mdivíduos e as condições mundiais de onde nascem as idéias,
~deremos dizer, por exemplo que durante o tempo em que a
anst · d · '
d ~craaa ommava os conceitos de honra, lealdade etc. eram
..~;antes;_ durante o predomínio da burguesia, os conceitos de
~J 0
ade, 1~lda_de etc. A própria classe dominante de wn
geral imagina assim. Essa concepção da história, comum
a todos o5 h. . dores, particularmente desde o século XVIII,
fo istona
rçosamente topará com o fenômeno das idéias cada vez mais
184 CONCEI TO MARXISTA DO HOMEM

abstratas de terem a ascendência, i. e., idéias cada vez mais re-


vestidas do aspecto de universa lidade. Pois cada nova classe
que se coloca no lugar da anterior mente domina nte é compelida,
merame nte para prosseg uir em direção de sua meta, a representar
seu interêsse como sendo o interêss e comum de todos os membros
da sociedade, pôsto sob forma ideal; ela dará a suas idéias o as-
pecto de universa lidade e represen tá-las-á como as únicas ra-
cionais e universa lmente válidas. A classe empenh ada em fazer
uma revolução surge, desde o comêço, somente por se opor a uma
classe, não como classe mas como represen tante do conjunto da
sociedade; ela aparece como todo o bloco da sociedade enfren-
tando a única classe dominan te. Ela pode fazer isso porque, an-
tes de mais nada, seu interêss e realmen te está mais ligado ao in-
terêsse comum de tôdas as classes não-dom inantes, porquan to sob
a pressão das condições seu interêss e ainda não pode tornar-se o
interêsse particul ar de uma classe em particul ar. Sua vitória, por-
tanto, beneficia também muitos indivídu os das outras classes que
não estão conquis tando uma posição dominan te, mas somente
na medida em que agora coloque êsses indivídu os em condições
de elevarem-se à classe dominan te. Quando a burguesia francesa
derrubo u o poderio da aristocracia, tornou com isso possível a
muitos proletários erguerem-se acima do proletar iado, mas somen-
te na medida em que êles se tornaram burgueses. Logo, tôda
classe nova só alcança sua hegemo nia sôbre uma base mais am-
pla que a classe anterior mente domina nte em trôco do que a
oposição da classe não-dom inante contra a nova classe domi-
nante posterio rmente se revela tão mais aguda e profundamente.
Ambas as coisas determi nam o fato de a luta a ser travada contra
essa nova classe dominan te, por sua vez, visar à negação mais
decidida e radical das condições anterior es da sociedade do que o
puderam fazer tôdas as classes que antes tentaram mandar.
Tôda essa aparência, do domínio de uma certa classe ser
apenas o de certas idéias, chega a um fim natural, está claro, logo
que a sociedade deixa de ser organiz ada sob a forma de domí-
nio de classe, isto é, logo que não mais é necessário representar
um determi nado interêsse como geral ou "o interêsse geral" como
predom inando.

Uma vez as idéias dominan tes tenham sido separadas dos


indivídu os dominan tes e, acima de tudo, das relações resultantes
de determi nado estágio do sistema de produçã o e . desta forma
se tenha chegado à conclusão de a história estar sempre sob a
EXCERTOS DE "IDEOLOGIA ALEMÃ"

cilação das idéias, é muito fácil abstrair dessas várias idéias "a
?1éia" ªdie Idee" etc. como a fôrça dominante da história, e
~iro 'entender tôdas essas idéias e conceitos separados como "for-
mas de autodeterminação" por parte do conceito em evolução na
história. Segue-se, então, naturalmente, também, poderem tôdas
as relações dos homens ser derivadas _do conceito do homem, o
homem como foi concebido, a essência do homem, o homem. Isso
foi feito pelos filósofos especulativos. O próprio Hegel confessa,
00 fim de A Filosofia da História, que êle "considerou o progres-
so do conceito apenas" e representou na História "a verdadeira
Teodicéia". Agora, pode-se voltar aos "produtores do conceito",
aos teóricos, ideólogos e filósofos, e chega-se então à conclusão de
os filósofos, os pensadores, terem dominado em tôdas as época5
da história: uma conclusão, como vemos, já expressa por Hegel.
Tôda a trama para provar a hegemonia do espírito na história
(hierarquia, como Stirner a chama) confina-se, pois, aos três ardis
seguintes:
1. Devem-se separar as idéias dos que mandam por razões
empíricas, sob condições empíricas e como indivíduos empíricos,
das pessoas reais dêsses mandamentos, e assim conhecer o domínio
das ilusões na história.
2. Deve-se imprimir ordem a êsse domínio das idéias, provar
uma ligação mística entre as sucessivas idéias dominantes, o que
~e consegue interpretando-as como .. atos de autodeterminação por
parte do conceito" (isso é possível porquanto, em virtude de sua
base empírica, essas idéias são realmente interligadas, e porquan-
to, concebidas como met'as idéias, tornam-se autodistinções, distin-
ções feitas pelo pensamento) .

. 3 . Para retirar a aparência mística dêsse .. conceito autodeter-


mmador" êle é transformado em uma pessoa - "autoconsciência"
- ou, para aparecer completamente materialista, em uma série
de pessoas, representando o "conceito" na História: os "pensa-
dores", os "filósofos", os "ideólogos", por sua vez interpretados
como ~s . fabricantes da história, "o conselho de protetores", os
~~d~ios. Assim tôda a coleção de elementos materialistas
01
d retirada da história e agora pode ser dada rédea sôlta ao corcel
a especulação.

de tquan_to na vida comum todo comerciante é bem capaz


_nguir entre o que alguém proclama ser e o que real-
mente e' nossos hi ston·ac1ores ainda
. não aprenderam esse
.. discer-
186 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

nimento trivial. Eles aceitam cada época pelas próprias pala-


vras e acreditam em tudo que ela diz e imagina ser a verdade a
seu próprio respeito.
l!sse método histórico reinante na Alemanha ( e especialmen-
te a razão de assim ter ocorrido) tem de ser interpretado por
sua ligação com a ilusão dos ideólogos em geral, as ilusões dos
juristas, políticos ( dos estadistas práticos entre êles, igualmente) ,
dos sonhos e distorções dogmáticas dêsses sujeitos; essa ilusão é
fácil e perfeitamente explicável pela posição dêles na vida, por
seus empregos, e pela divisão do trabalho.
PREFACIO A "UMA CONTRIBUIÇÃO À CRITICA
DA ECONOMIA POLITICA"

Karl Marx-

... Minhas investigações conduziram-me à conclusão de que


as relações legais, bem como as formas de Estado, não podem
ser entendidas por si, nem pela chamada evolução geral do espíri-
to humano, mas, pelo contrário, estão arraigadas nas condições ma-
teriais da vida, cujo conjunto Hegel, acompanhando o precedente
dos inglêses e franceses do século XVIII, denominou "sociedade ci-
vil"; a anatomia da sociedade civil, contudo, é encontrada na Eco-
nomia Política. Meu estudo desta última, iniciado em Paris,
prosseguiu em Bruxelas, para onde emigrei em face de uma or-
dem de expulsão expedida por M. Guizot. A conclusão geral a
que cheguei - e, uma vez alcançada, serviu de guia a meus estu-
dos - pode ser resumida da seguinte maneira: na produção so-
cial de seus meios de existência, os homens ingressam em relações
definidas, indispensáveis e alheias a suas vontades, relações de pro-
dução correspondentes a uma determinada etapa do desenvolvi-
me~to de suas fôrças produtivas materiais. O agregado dessas re-
laçoes de produção constitui a estrutura econômica da sociedade,
? ~e~dadeiro alicerce sôbre o qual se ergue uma superestrutura
Jund1ca e política e ao qual correspondem determinadas formas
de co~sciên~ia social. O sistema de produção dos meios materiais
de . existenc1a condiciona todo o progreso da vida social, política
e mte~~- Não é a consciência dos homens que determina
~a existenc_ia, porém, pelo contrário, é a sua existência social que
f ..es deterrruna a consciência. Em certo estágio de sua evolução, as
orças produtivas materiais da sociedade entram em choque com
~r1~ções de produção existentes, ou, o que é mera expressão le-
~l i:~ me~mo, com as relações de propriedade dentro das quais
fo·as viam mgressado anteriormente. De formas de evolução das
- passam a ser entraves delas. !nau-
rças produf1vas essas relaçoes
188 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

gura-se, então, uma época de revolução social. Com a mudança


das fundações econômicas, tôda a imensa superestrutura transfor-
ma-se mais ou menos ràpidamente. Ao apreciar essas revoluções,
necessário se torna sempre distinguir entre a revolução material
das condições econômicas da produção, suscetíveis àe serem deter-
minadas com a exatidão científica, e as formas jurídicas, políticas,
religiosas, estéticas ou filosóficas - em uma palavra, ideológicas
- pelas quais os homens tomam conhecimento dêsse conflito e
lutam para resolvê-lo. Assim como não podemos julgar um in-
divíduo baseados na opinião que êle tem de si mesmo, tampouco
podemos julgar uma dessas épocas revolucionárias pela sua pró-
pria consciência; pelo contrário, porém, essa consciência tem de
ser explicada a partir das contradições da vida material, do conflito
existente entre as fôrças produtivas sociais e as relações de pro-
dução. Um sistem.a social nunca perece antes de se terem expan-
dido tôdas as fôrças produtivas que nêle cabem; e novas relações
de produção, mais elevadas, nunca aparecem antes de as condições
materiais para sua existência terem amadurecido no ventre da
própria sociedade antiga. Logo, a humanidade sempre se propõe
apenas os problemas que é capaz de resolver; e mais, · quando
olhamos o assunto mais de perto, sempre constatamos que o pró-
prio problema só desponta quando as condições materiais para sua
solução já se acham presentes ou, pelo menos, em vias de concreti-
zar-se. Nos modernos sistemas de produção burguesa, podem ser
indicadas épocas progressivas do sistema econômico da sociedade.
As relações de produção burguesa são a última forma antagônica,
não na acepção de antagonismo individual, mas de um antago-
nismo oriundo das condições de vida social dos indivíduos; ao
mesmo tempo, contudo, as fôrças produtivas em gestação no ven-
tre da sociedade burguesa criam as condições materiais para a
solução dêsse antagonismo. Com êsse sistema social, portanto, a
pré-história da sociedade humana chega a um fecho .. .
DA INTRO DUÇÃO À CRITIC A DA "FILOS OFIA DO
DIREITO", DE HEGEL . CRITIC A DA RELIG IÃO

Karl Marx

A crítica colheu as flôres imaginárias da cadeia não para que


o homem use a prosaica e triste cadeia, mas para que jogue
fora esta e apanhe a flor viva. A crítica da religião desaponta
o homem com o fito de fazê-lo pensar, agir, criar sua realidade
como um homem desapontado que recobrou a razão a fim de gi-
rar em tôrno de si mesmo e, portanto , de seu verdadeiro sol. A
religião é apenas um sol fictício que se desloca em tôrno do ho-
mem enquanto êste não se move em tôrno de si mesmo ...
As armas da crítica não podem, de fato, substituir a crítica
das armas; a fôrça material tem de ser deposta por fôrça material,
mas a teoria também se converte em fôrça material uma vez que
se aposse dos homens. A teoria é capaz de prender os homens
desde que demonstre sua verdade face ao homem, desde que se
torne radical. Ser radica/, é aprende r algo em suas raízes. Para
º. ~~mem, porém, a raiz é o próprio homem . . . A crítica da re-
ligiao termina com a idéia do homem como ser supremo para
s~ próprio. Por isso, com o imperativo categórico mudam tôdas as
cucunstâncias em que O homem é um ser humilha do, escravi-
zado, abondonado, desdenhoso. . . A teoria é realizada em uma
naçã~ somente até o ponto em que ela é uma realização das ver-
dadeiras necessidades desta.
REMINISO!NCIAS DE MARX

Paui Lafargue

He was a man, take him for all in all,


I shall not look upon his like again.
(Hamle t, Act I, Se. 2) *

Encontrei Karl 1iarx pela primei ra vez em fevereiro de 1865.


A Primeira Internacional fôra fundad a a 28 de setembro de 1864,
numa reunião do Saguão Saint Martin , em Londres, e fui a essa
cidade para dar a Marx notícias sôbre a expansão da novel or-
ganização eqi Paris. M. Tolain , hoje senador da república bur-
guesa, deu-me uma carta de apresentação.
Tinha eu, então, 24 anos. Enqua nto viver, lembrarei a im-
pressão causada por aquela primei ra visita. Marx não estava
bem na época. :Ele estava trabalh ando no primeiro livro de O
Capital., que não foi publicado senão dois anos depois, em 1867.
Receava não poder acabar sua obra e, por isso, ficava contente com
visitas de pessoas jovens . Dizia: "Preciso preparar gente para
prosseguir a propag anda comunista depois de mim."
Karl Marx foi um dos homens capazes de serem líderes ao
mesmo tempo na ciência e na vida pública : êsses dois aspectos
eram tão intima mente ligados nêle que só é possível entendê-lo
levando em conta tanto o estudioso quanto o lutador socialista.
Marx era de opinião que a dedicação à ciência deve ser
em atenção a ela própria, indepe ndente dos eventuais resultados ~a
pesquisa, mas, ao mesmo tempo que um cientista só pode avil-
tar-se ao desistir de participar ativamente da vida pública ou en-

* N. do T. - Ver a tl"adução dêste verso no final das notas de


Eleano r Marx-A veling ( pág. 219) .
REMI NISC ÊNCI AS DE MAR X
191

clausurar-se em seu gabin ete ou laboratório como um gusa


no no
queijo, mantendo-se apartado da vida e do embate polít
ico dos
contt.mporâneos.
"A ciência não deve ser um praze r egoís ta", afirm
ava êle.
"Os que têm a boa sorte de pode rem dedicar-se a pesquisas
cien-
tíficas devem ser os primeiros a colocar seu saber a serviço
da hu-
manidade." Um de seus ditados favoritos era: "Tra balho
pela
humanidade. "
Conquanto Marx tivesse profu nda compaixão pelos sofrimen-
tos das classes ti:,abalhadoras, não foram considerações senti
men-
tais mas o estudo da Histó ria e da Economia Política
que o
conduziram às concepções comunistas. ~le asseverava que
qual-
quer homem imparcial, isento da influência de interêsses
priva-
dos e não cegado por preconceitos de classe. tinha forço
samente
de chegar às mesmas conclusões.
No entanto, ao estudar a evolução econômica e política da
so-
ciedade humana, sem qualq uer opm1ao preconcebida,
Marx
escreveu sem outra intenção além de divulgar os resultados
de
sua investigação e com vontade deliberada de proporcionar
uma
base científica para o movimento socialista que, até então
, andara
desorientado pelas · nuvens da utop ia. ~le publicou suas idéia
s so-
mente para promover o triun fo da classe trabalhadora cuja
mis-
são histórica é estabelecer o comunismo assim que ela
houver
alcançado a direção política e econômica da sociedade .
Marx não confinou sua atividade ao país em que nasce
ra.
"Sou um cidadão do mund o", afirmava. "Sou atuante onde
quer
que esteja." E, de fato, não impo rta o país a que os acont
ecimen-
tos e perseguição política o levaram - França, Bélgica,
Ingla-
ter~a ~' desempenhou parte proeminente nos movimentos
revo-
luoonanos ali formados. ·
Sem embargo, não foi o incansável e incompatível agita
dor
s~ialista, mas antes o cientista, que vi pela primeira vez
no ga-
binete ~e Maitland Park Road . Aquêle gabinete era o centr
o para
onde vinham camaradas do Parti do de tôdas as partes do
mun-
do civilizado para averiguar o modo de ver do mestre do
pensa-
mento socialista. l! mister conhecer aquela sala histórica
antes de
poder-se penetrar na intimidade da vida espiritual de Marx
.
1 .Era no primeiro anda r inun dada pela luz vinda de uma am-
P ª Janela que dava para 'O parque. Defr ontan do-se com .
a Ja-
nela e de ambos os lados da lareira, as paredes estavam ocup
adas
192 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

por estantes cheias de livros e atopetadas até o teto com jornais e


manuscritos. Do lado oposto à lareira, de um lado da janela ha-
via duas mesas com livros, papéis e jornais empilhados; no meio
da sala, bem na luz, ficavam uma mesa pequena e simples (90
por 60 centímetros) e uma cadeira de braços, de madeira; entre
a cadeira e a estante, de frente para a janela, havia um sofá de
couro onde Marx costumava descansar, deitado, de vez em quan-
do. Sôbre o consolo da lareira, havia mais livros, charutos, caixas
de fumo, pesos para papéis e fotografias das filhas e da espôsa de
Marx, de Wilhelm Wolf e Friedrich Engels.
Marx fumava muito. "O Capita/,", disse-me êle certa vez, "não
dará nem para pagar os charutos que fumei enquanto o escrevia."
Mas êle ainda gastava mais fósforos. Era tão comum esquecer-se
do cachimbo ou do charuto que esvaziava um número incrível de
caixas de fósforos em pouco tempo para reacendê-los.
:Ele nunca deixava ninguém pôr seus livros ou papéis em or-
dem - ou antes, em desordem. . A desordem em que ficavam era
apenas aparente, tudo estava realmente no lugar desejado, de
modo que lhe era fácil apanhar o livro ou caderno de que preci-
sasse. Mesmo durante as conversas, freqüentemente interrom-
pia-as para mostrar no livro uma citação ou dado numérico que
acabara de mencionar. :Ele e seu gabinete eram uma única pes-
soa: os livros e papéis ali existentes estavam tão sob seu contrôle
como seus braços e pernas.
Mas não queria saber de simetria formal na arrumação dos li-
vros: volumes de tamanhos diferentes e panfletos ficavam juntos.
Dispunha-os segundo o conteúdo, não o tamanho. Os livros eram
ferramentas para sua mente, não artigos de luxo. "Eles são meus
escravos e têm de servir-me conforme eu desejo", costumava di-
zer. Não ligava para o tamanho ou encadernação, qualidade do
papel ou tipo: dobrava os cantos das páginas, fazia anotações
a lápis na margem e sublinhava linhas inteiras. Nunca escrevia
nos livros, mas às vêzes não podia abster-se de um ponto de ex-
clamação ou de interrogação quando o autor exagerava. Seu
sistema de grifar facilitava-lhe encontrar qualquer trecho de que
precisasse em qualquer livro. Tinha o hábito de examinar deti-
damente seus cadernos de notas e de ler as passagens sublinhadas
nos livros após intervalos de muitos anos, a fim de refrescar a
memória. Possuía uma memória extraordinàriamente digna de
confiança e que cultivava desde a mocidade, segundo o conselho
REMINISCÊNCIAS DE MARX 193

-
de Hegel, decorando versos em língu a estrangeira dêle desco
nheçida.
Sabia Heine e Goeth e de cor e amiúd e citava-os em conver-
sa; era um leitor assíduo de poetas em . tôdas as língu as européias.
a
Todos os anos, lia f'.squilo no origin al grego ; considerava-o e
Shakespeare os maiores gênios teatrais jamais nascidos. Seu res-
peito por Shakespeare era ilimitado; fêz um estudo minucioso
das obras dêle e conhecia até os menos importantes de seus per-
sonagens. Tôda sua família tinha um verdadeiro culto pelo gran-
de dramaturgo inglês; suas três filhas conheciam de memó ria
muitas das obras dêle. Quando, depois de 1848, quis aperfeiçoar
seu conhecimento de inglês, que já sabia ler, esqua drinh ou e classi-
ficou tôdas as expressões originais polêmicas de Shakespeare. Fêz
tt,
a mesma coisa com parte das obras polêmicas de Willi am Corbe
a quem tinha em alta conta. Dante e Robert Burns estavam
entre seus poetas favoritos, e êle escutava com grand e praze r suas
filhas recitar ou cantar as sátiras e baladas do poeta escocês.
Cuvier, trabalhador infatigável e mestre consumado das ciên-
al
cias, tinha um conjunto de salas arrumadas para seu uso pesso
a
no Museu de Paris, de que era diretor. Cada sala destinava-se
determinado assunto e continha os livros, instrumentos, subsídios
anatômicos etc. exigidos pela sua finalidade. Quan do êle se
s:ntia cansado de um gênero de trabalho, passava para a sala vi-
zinha e mudava para outro: diz-se que essa simples muda nça de
ocupação era um descanso para êle.
~arx era um trabalhador tão incansável quanto Cuvier, mas
n-
não dispunha de meios para equipar diversos gabinetes. · Desca
sava andando de um lado para .outro da sala. Havia um trecho
m~rcado no soalho, da porta até a janela, tão nítido como um ca-
minho no campo.
De vez em quando deitava-se no sofá e lia uma novela; às
vêzes'. lia duas ou três em rodízio. Como Darw in, era um gran-
de leitor de novelas, prefe rindo as do século XVII I, particularmen-
te O _Tom Jones de Fielding. Os romancistas mode rnos que lhe
pareciam mais interessantes eram Paul de Kock, Charles Le-
~er, Al~xandre Dumas pai e Walte r Scott, cujo Old Mortality
el;, c?nsiderava uma obra-prima. Tinha preferência acentuada por
es onas de aventuras e _humorismo.
ele classificava Cervantes e Balzac acima de todos os ou-
· , via· a epope'·ia d a cava1ana·
tros novelistas · Em D om Qu1xote
13
194 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

moribunda cujas virtudes eram ridicularizadas e escarnecidas pe-


lo nascente mundo burguês. Admirava tanto a Balzac que de-
sejava escrever uma recapitulação de sua grande obra La Co-
médie Humaine assim que terminasse seu livro sôbre Economia.
Considerava Balzac não apenas o historiador de sua época, mas
o criador profético de caracteres ainda embrionários nos dias
de Luís Filipe que desabrocharam completamente antes de sua
morte, no govêrno de Napoleão III.
Marx sabia ler tôdas as línguas européias e escrever em três:
alemão, francês e inglês, para admiração dos lingüistas. Gostava
de repetir o ditado: "Uma língua estrangeira é uma arma na lu-
ta pela vida."
Possuía grande talento para línguas, que foi herdado por suas
filhas. Pôs-se a estudar russo quando já tinha 50 anos e, malgrado
essa língua não ter afinidade alguma com qualquer das línguas
antigas ou modernas que conhecia, em seis meses sabia o sufi-
ciente para se regalar lendo poetas e pensadores russos, dando pre-
ferência a Pushkin, Gogol e Schedrin. Estudou russo a fim
de poder ler os documentos de inquéritos oficiais que eram aba-
fados pelo Govêrno russo devido às revelações políticas nêles
contidas. Amigos dedicados obtinham os documentos para Marx e
êle estava certo de ser o único economista político da Europa
ocidental a conhecê-los.
Além dos poetas e novelistas, Marx tinha outro meio extraor-
dinário de descansar intelectualmente - a Matemática, por que
tinha especial estima. A Álgebra chegava a consolá-lo mo-
ralmente e abrigou-se nela durante os momentos mais infelizes
de sua vida acidentada. Durante a última doença da espôsa,
ficou incapacitado para dedicar-se a seu habitual trabalho cientí-
fico e o único meio que encontrou para desembaraçar-se do aca-
brunhamento provocado pelos sofrimentos dela foi mergulhar na
Matemática. Nessa ocasião de aflição moral, escreveu uma obra
sôbre cálculo infinitesimal que, na opinião de especialistas, é de
enorme valor científico e será publicada em suas obras completas.
Ele via na Matemática Superior a mais lógica e concomitantemen-
te a mais simples forma de movimento dietético. Era de parecer
que uma ciência não está de fato desabrochada enquanto não apren-
deu a utilizar a Matemática.
Apesar de a biblioteca de Marx conter mais de mil volumes
cuidadosamente colecionados durante o trabalho de pesquisa de
REMINISCtNCIAS DE MARX 195

uma vida inteira, não lhe era suficiente, e durante anos freqüen-
tou regularmente o Museu Britânico, cujo catálogo apreciava
muito.
Mesmo os adversários de Marx eram obrigados a admitir sua
extensa e profunda eru~ição, não só em sua própria especialidade
- a Economia Política - como em história, em filosofia e na
literatura de todos os países.
A despeito da hora tardia em que Marx se deitava, estava
sempre de pé entre oito e nove da manhã, tomava um pouco de
café sem leite, lia os jornais e ia para a sala de trabalho, onde fi-
cava até duas ou três da madrugada. Só interrompia o trabalho pa-
ra as refeições e, quando o tempo permitia, para um passeio à
notinha pela charneca de Hampstead. De dia, às vêzes, dormia
uma ou duas horas no sofá. Na mocidade, muitas vêzes passou
a noite inteira trabalhando.
Marx tinha paixão pelo trabalho. Absorvia-se tanto nêl~
que freqüentemente esquecia-se de comer. Era comum ter de ser
chamado diversas vêzes para vir para a sala de jantar e mal aca-
bava de mastigar já estava de volta ao gabinete.
Comia muito pouco e sofria de inapetência. Tentava supe-
rar isso por meio de alimentos muito condimentados - presunto,
peixe defumado, caviar, conservas. Seu estômago tinha que so-
frer com a enorme atividade do cérebro. Sacrificava todo o cor-
po ao cérebro; pensar era o seu máximo prazer. Muitas vêzes
ouvi-o repetir as palavras de Hegel, o mestre de filosofia de sua
juventude: "Até o pensamento criminoso de um malfeitor tem
mais grandeza e nobreza do que os prodígios dos céus."
Sua constituição física tinha de ser boa para agüentar aquêle
estilo de vida incomum e o exaustivo trabalho mental. l!le era,
de fato, de pujante compleição, altura acima da mediana, ombros
largos, peito amplo e tinha membros bem proporcionados, embora
ª coluna vertebral f ôsse um tanto longa em comparação com as
p_ernas, como ocorre amiúde com os judeus. Tivesse feito ginás-
tica na mocidade e teria sido um homem muito forte. O único
exercício físico que jamais seguiu regularmente foi andar: podia
perambular ou galgar morros durante horas, falando e fumando,
~ sent~ qualquer cansaço. Pode-se mesmo dizer que traba-
va caminhando em sua sala, só sentando ocasionalmente para
escrever o que refletia andando. Gostava de andar dum lado para
196 CONCEITO MARXISTA DO HOME M

outro enquan to falava, parand o de vez ·em quand o, se a explicação


ficava mais viva ou a conver sa mais séria.
Por muitos anos, acomp anhei- o em seus passeios vespertinos
pela Hamps tead Heath e foi assim que conseg ui ~inha cultura
econômica. Sem repara r, êle me expôs todo o conteú do do pri-
meiro livro de O Capital enquan to o escrevia.
Ao regressar a minha casa, sempre anotav a o melho r que
podia, tudo que ouvira. A princíp io, foi-me difícil acompanhar o
raciocínio profun do e complicado de Marx. Infeliz mente, perdi
aquelas preciosas anotações, pois após a Comun a a polícia pilhou
e queim ou meus papéis em Paris e Bordéus.
O que lament o mais é a perda das notas que tomei na noite
em que Marx, com a abundância de provas e considerações tão
típicas dêle, explan ou sua brilhan te teoria da evolução da socie-
dade human a. Foi como se caíssem escamas de meus olhos. Pela
primei ra vez, vi claramente a lógica da históri a do mundo e pude
rastrear os fenômenos aparentemente tão contrad itórios da evolu-
ção da sociedade e das idéias até suas origens materiais. Senti-me
aturdido, e a impressão perdur ou anos.
Os socialistas de Madri 1 tiveram a mesma impressão quan-
do lhes expus, tão bem quanto minhas fracas- fôrças permitiram,
aquela mais magnífica das teorias de Marx, que é, fora de qual-
quer dúvida, uma das maiores jamais elaboradas pelo cérebro
humano.
O cérebro de Marx estava armado com ·um inacreditável ca-
bedal de fatos da história, da ciência natural e de teorias filosófi-
cas. :I!le era notàvelmente hábil na utilização dos conhecimentos e
observações acumulados durant e ·anos de labuta intelectual. Po-
dia-se interrogá-lo a qualquer momento sôbre qualqu er assunto e
obter a mais pormenorizada resposta possível, sempre acompa-
nhada de reflexões filosóficas de aplicação geral. O cérebro dê-
le era como um navio de guerra no pôrto pronto para zarpar
para qualqu er setor do pensamento, a todo o vapor.
Não há dúvida de que o Capita l nos revela uma inteligência
de vigor espantoso e superior saber. Para mim, porém, como

1Ap6s a derrota da Comun a de Paris, Lafargu e emigro u para


a Espanh a, encarre gado por Marx e pelo Conselh o-Geral da Pri-
meira Interna cional de lutar contra os bakunin istas anarqui stas:
Nota do Ed.
REMINISC:~NCIAS DE MARX 197

para todos os que conheceram Marx intimament e, nem O Ca-


pital nem qualquer uma de suas obras patenteia tôda a magni-
tude de seu gênio ou a extensão de seu conhecimen to. :Ele foi
muitíssimo superior a seus próprios livros.

Trabalhei com Marx; fui apenas o escriba a quem êle ditava,


mas isso deti-me oportunidad e de observar sua maneira de pen-
sar e de escrever. Trabalhar era fácil para êle, e ao mesmo
tempo difícil. Fácil porque sua mente não encontrava óbices
para abarcar os fatos e considerações relevantes na íntegra. Mas
essa mesma preocupação em ser "completo" tornava a exposição
de suas idéias objeto de labuta longa e estrênua.
Vico disse: "A coisa é um corpo apenas para Deus, que tudo
sabe; para o homem, que só conhece o exterior, ela é apenas a
superfície." Marx apreendia as coisas à maneira do deus de Vico.
Não via apenas a superfície, mas o que estava por baixo. Exa-
minava tôdas as partes componentes em sua mútua ação e rea-
ção; isolava cada uma dessas partes e descobria a história que
a rodeava e observava a reação dum sôbre o outro. Pesquisava
a origem do objeto, as mudanças, evoluções e revoluções por que
passara, e dirigia-se, afinal, a seus efeitos mais remotos.. :ele não
via uma coisa singularmente, em si e para si, separada do meio:
via um mundo altamente complexo em contínuo movimento.
A intenção dêle era. desvendar a totalidade dêsse mundo em
ação e reação múltipla e continuamente variável. Homens de
letras da escola de Flaubert e dos Goncourt . queixam-se de ser
tão difícil transmitir exatamente o que se vê; todavia, tudo que
êles querem é relatar a superfície, a impressão que êles têm. Seu
trabalho literário é brinquedo infantil erri comparação com o de
Marx: era mister extraordinário vigor mental para entender a
realidade e contar aquilo que êle via e queria fazer os outros
verem. Marx nunca se satisfazia com seu trabalho - estava sem-
pre fazendo alguns melhoramentos e sempre achava a descrição
mferior à idéia que queria transmitir . ..
. Marx possuía duas qualidades de gênio: tinha um talento
mcontrolável para dissecar uma coisa em seus componentes, e era
mestre consumado em reconstruir o objeto dissecado partindo
das partes, com tôdas as suas diversas formas de desenvolvimento,
e_ descobrir suas inter-relações interiores. Suas demonstrações
n~o eram abstrações -. que foi a censura a êle feita por econo-
mistas pessoalmente incapazes de raciocinar; seu método não
198 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

era O de geômet ra que toma suas definições do mundo que


cerca, mas despreza completamente a realidade ao tirar suas0
conclusões. O Capital não dá definições ou fórmulas isoladas·
êle dá uma série das mais penetrantes análises que fazem ressai:
tar os mais evasivos matizes e as mais impalpáveis gradações.

Marx princip ia enunciando o fato simples da riqueza de


uma sociedade domina da pelo sistema capitalista de produção
apresentar-se como uma enorme acumulação de utilidades; a uti-
lidade, que é um objeto concreto, não uma abstração matemá-
tica, é portant o o elemento, a célula, da riqueza capitalista.
Marx, então, agarra a utilidade, revolve-a repetidas vêzes e põe-na
do avêsso, e extrai dela segrêdo após segrêdo de que os econo-
mistas nem ao menos se davam conta, conquanto f ôssem mais
numerosos e profund os que todos os mistérios da religião cató-
lica. Tendo examinado a utilidade em todos os seus aspectos,
Marx aprecia-a em sua relação com suas semelhantes, na troca.
Depois, passa à sua produção e aos pré-requisitos históricos dessa
produção. Considera as formas assumidas pelas utilidades e mos-
tra como elas passam duma para outra, como urna delas é obriga-
toriamente gerada pela outra. Expõe o curso lógico da evolução
dos fenômenos com tal perfeição que se pode até imaginar que
êle o concebeu. No entanto, é um produto da· realidade, uma re-
produção da dialética concreta da utilidade.
Marx foi sempre extremamente consciencioso quanto a seu
trabalho : nunca apresentou um fato ou dado que não proviesse
das melhores fontes autorizadas. Nunca se satisfazia com infor-
mações de segunda mão; sempre ia à própria fonte, não im-
porta quão enfadonho fôsse o processo. Para certificar-se de um
fato secundário, ia ao Museu Britânico consultar livros. Seus
críticos jamais conseguiram provar f ôsse negligente ou baseasse seus
argumentos em fatos não rigorosamente controlados.
Seu hábito de ir sempre à fonte levou-o a ler autores muito
pouco conhecidos e que êle era o único a citar. O Capital con-
tém tantas citações de autores pouco conhecidos que se pode pen-
sar ter Marx desejado exibir quão bem lido era. .Ele não teve
a menor intenção disso. "Faço justiça histórica", dizia êle. "Dou
a cada um o que lhe cabe." .Ele se considerava na obrigaçã~ ~e
indicar o autor que havia pela primeira vez expressado uma ideia
ou formulara melhor, não importando quão insignificante e pau-
co conhecido fôsse.
REMINISCÊNCIAS DE MARX 199

Marx era tão consciencioso do ponto de vista literário quanto


do científico. Não só não se baseava em um fato de que não
estivesse absolutamente certo, como nunca se abalançava a falar
de algo antes de havê-lo estudado completamente. Não publi-
cava um único trabalho sem revisões sucessivas até encontrar a
forma mais apropriada. Não suportava aparecer em público sem
meticulosa preparação. Seria uma tortura para êle mostrar seus
manuscritos antes de ter-lhes dado os retoques finais. Era tão
sensível a isso que um dia me disse preferir queimar os manus-
critos a deixá-los inacabados.
Seu método de trabalho muitas vêzes impunha-lhe tarefas
cujo vulto dificilmente pode ser imaginado pelo leitor. Assim,
para escrever as vinte páginas, se tanto, sôbre a legislação fabril
da Inglaterra em O Capital, consultou tôda uma biblioteca de
Livros Azuis * contendo relatórios de comissões e inspetores de
fábricas da Inglaterra e Escócia. Leu-os da primeira à última
página, conforme pode ser visto das marcas a lápis feitas nêles.
Ele julgava êsses relatórios os documentos mais importantes e
de maior pêso para o estudo do sistema capitalista de produção.
Tinha em tão alta conta os· encarregados da preparação dêles
que duvidava da possibilidade de encontrar em outro país da
Europa "homens tão competentes, tão livres de partidarismo e
respeito pelas pessoas como são os inspetores de fábricas inglêses".
Ele lhes prestou êste esplêndido tributo no Prefácio de O Capital.
Dêsses Livros Azuis, Marx tirou rica messe de informações.
Muitos membros do Parlamento, a quem êles são distribuídos,
usam-nos apenas como alvos para o tiro, avaliando a fôrça da
arma pelo número de fôlhas atravessadas pela bala. Outros ven-
de~-nos a pêso, o que é o que de mais razoável podem fazer,
pois permitiu a Marx comprá-los barato de vendedores de papéis
v_elhos em Long Acre, que êle costumava visitar para folhear
hv_ros e papéis antigos. O Professor Beasley disse que Marx
foi O homem que mais utilizou os inquéritos oficiais ingMses e
~eu-os a conh~cer ao mundo. :ele não sabia que,. antes de !845,
ngels aproveitou numerosos documentos dos Livros Azuis ao
escrever seu livro sôbre a situação da classe operária da Inglaterra.

blica •- N. cf,o_ !, - Os Blues Books são relatórios parlamentares e pu-


Cas ÇOesd oficws da Inglaterra apresentados pela Coroa e ambas as
as o Par 1amento, em encadernaçao - azul.
200 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

Para chegar a conhecer e amar o coração que batia dentro


do peito do sábio Marx, era preciso vê-lo quando fechava os li-
vros e cadernos e ficava rodeado pela família, ou então nas noi-
tes de domingo palestrando com amigos. Aí, êle se mostrava a
mais agradável das companhias, cheio de espírito e humor, com
uma gargalhada que vinha diretamente do coração. Seus olhos
negros, sob os aros das crêspas sobrancelhas, brilhavam de pra-
zer e malícia sempre que ouvia um dito espirituoso ou uma res-
posta propositada .
.Ele era um pai amoroso, meigo e indulgente. "Os filhos
deviam educar os pais", costumava dizer. Nunca houve um tra-
ço de pai mandão em suas relações com as filhas, cujo amor por
êle era extraordinário. Nunca lhes dava ordens, mas pedia-lhes
que fizessem o que desejava, como um favor, ou fazia-as sentir
não deverem fazer aquilo que queria proibir-lhes de fazer. No
entanto, dificilmente algum pai poderia ter filhos mais dóceis
do que êle. Suas filhas consideravam-no um amigo e trata-
vam-no como companheiro; não o chamavam "pai", mas "Moor"
- . um apelido * que êle devia à sua tez morena e aos cabelos e
barba prêtos como azeviche. Os membros da Liga Comunista,
pelo contrário, chamavam-no "Pai Marx", antes de 1848, quando
ainda não tinha sequer 30 anos . . .
Marx costumava passar horas brincando com as filhas. Es-
tas ainda se lembram das batalhas navais em uma grande bacia
cheia de água e da queima de esquadras de barcos de papel que
êle fazia para elas e depois incendiava para grande alegria de
tôdas.
Aos domingos, as filhas não o deixavam trabalhar: êle lhes
pertencia o dia inteiro. Se o tempo estava bom, a f~ília in-
teira saía para dar um passeio pelo campo. No cammho,.. pa·
ravam em uma modesta estalagem para comer pão com que1Jo _e
tomar um refrêsco. Quando as filhas eram pequenas, êle . fazia
a longa caminhada parecer menor contando-lhes intermináveis es-
tórias fantásticas que ia inventando, criando e aumentando as
complicações de acôrdo com a distância a percorrer, de modo
que os pequeninos esqueciam o cansaço enquanto o escutavam.

* N . do T. - Mouro.
REMINIS CÊNCIA S DE MARX 201

:ele tinha uma imaginação de fertilida de incomp arável: seus


primeiros trabalhos literários foram poemas. A Sr.:ª Marx con-
servou com cuidado as poesias escritas pelo espôso na mocidade,
mas nunca as mostrou a ninguém . A família dêle sonhara em
vê-lo homem de letras ou professo r e achava que se estava de-
gradando por empenhar-se em agitação socialista e em economia
política, então menosprezada na Aleman ha.
Marx prometera às filhas escrever para elas um drama sôbre
os Gracos. Infelizmente, não pôde cumprir a palavra. Teria
sido interessante ver como, êle que era chamado "o cavaleiro da
luta de classes", abordaria aquêle terrível e gracioso episódio
da luta de classes do mundo antigo. Marx acalentou muitos
planos que nunca puderam ser levados avante. Entre outras
obras que tencionava escrever, havia uma Lógica e uma His-
tória da Filosofia, tendo esta última sido uma favorita em seus
primeiros anos. :Ele teria precisado viver cem anos para efetiv_ar
todos os seus planos literários e presentear o mundo com uma
parte do tesouro oculto em seu cérebro.
A espôsa de Marx foi a ajudant e de sua vida inteira, na
~ais per~eita e plena acepção do têrmo. :Eles se haviam conhecido
ainda crianças e crescido juntos. Marx tinha apenas 11 anos
quando ficaram noivos. Sete longos anos teve de esperar o ca-
sal_ antes de se casarem em 1843. Depois daí nunca mais se se-
~
pararam.
. A Sr.,ª Marx morreu pouco antes do marido. Ningué m Jª·
mais teve um sentimento de igualdade mais profund o que o
dela, apesar de ter nascido e se criado em uma família aristo-
crática alemã. Para ela não existiam diferenças ou classificações
sociais. Recebia trabalhadores em suas roupas de trabalho em
casa ..e à mesa, com a mesma polidez e consideração que teria
se fo~sem duques ou príncipes. Trabalhadores de quase todos
~ paises.. apr~ciaram sua hospital idade e estou certo de '!ue ne-
0

nh~ _deles Jamais sonhou que a mulher que os recebia com


cocd1 alidade tão despretensiosa e sincera descendia, pelo lado
mater~o,_ da família dos Duques de Argyl e que o irmão dela
era mtrustro do Rei da Prússia. Isso não preocupava a Sr.ª
Marx; ela renunciara a tudo para acompanhar o seu Karl e
nunca, . nem mesmo em épocas de calamidade, arrependeu-se de
ter assim agido.
Ela possuía inteligência lúcida e brilhant e. Suas cartas pa-
ra os amigos, escritas sem constrangimento nem esfôrço, são
202 CONCEITO MARXISTA DO flOMEM

trabalhos primorosos de um pensamento vigoroso e original. Era


um deleit~ receb:r uma carta da Sr.ª Mar~. Joh~n_n P~ilipp Be.
cker publicou diversas cartas dela. Heme, sahnco impiedoso
que era, temia a ironia de Marx, mas tinha enorme admiração
pela penetrante e sensível inteligência da espôsa dêste; quando
os Marx estavam em Paris, êle era uma de suas visitas habituais.
Marx tinha tal respeito pela inteligência e senso crítico da
espôsa que lhe mostrava todos os manuscritos e dava grande
valor à opinião dela, conforme me contou pessoalmente em 1866.
A Sr ..a Marx copiava os manuscritos do marido antes de serem
mandados para a tipografia.
A Sr.ª Marx teve vários filhos. Três dêles morreram em
tenra idade, durante o período de dificuldades que a família
atravessou após a Revolução de 1848. Naquele tempo, êles vi-
viam como imigrantes em Londres, em dois pequenos cômodos
na Rua Dean, Praça Soho. Eu só conheci as três filhas. Quando
fui apresentado a Marx, em 1865, sua filha mais môça, atual-
mente Sr.ª Aveling, era uma menina adorável de gênio jovial.
Marx dizia que a espôsa se enganara no sexo ao trazê-Ia para
êste mundo. As outras filhas formavam um contraste extraordi-
nàriamente surpreendente e harmonioso. A mais velha, a Sr.ª Lon-
guet, tinha a tez morena, compleição robusta, olhos escuros e
cabelos negros do pai. A segunda, Sr.ª Lafargue, era lour~ e
rosada, ~eus fartos cabelos anelados tinham um bruxuleio dou-
rado como se tivessem apanhado os raios do sol poente: parecia-se
à mãe.
Outro membro importante da casa dos Marx era Hélene
Demuth. Nascida em uma família campônia, ingressou no ser-
viço da Sr.ª Marx muito antes do casamento dela, quando mal
passava de uma criança. Quando a patroa se casou, ela ficou
junto e dedicou-se, com desprendimento total, à família Mane.
Acompanhou a patroa e o marido em tôdas as suas viagens pela
Europa e compartilhou o exílio dêles. Ela era o gênio bom da
casa e sempre conseguia uma saída para as situações mais difí-
ceis. Graças a seu sentimento de ordem, sua economia e ha-
bilidades, a família Marx nunca se privou das necessidades mí-
nimas. Não havia nada que não soubesse fazer: cozinhava, arru-
mava a casa, vestia as crianças, cortava as roupas para estas e c~s-
turava-as junto com a Sr.ª Marx. Ela era governanta e ma1or
domo ao mesmo tempo: dirigia tôda a casa. As crianças ama-
vam-na como se fôsse a própria mãe e seus sentimentos mater-
nais para com elas davam-lhe uma autoridade materna. .A Sr;ª
REMINISC~NCIAS DE MARX 203

Marx considerava-a uma amiga querida e Marx nutria parti-


cular amizade por ela; jogava xadrez e inúmeras vêzes perdia
para ela.
Hélêne amava cegamente a família Marx: qualquer coisa
que fizessem era bom a seus olhos e não poderia ser de outra
forma; quem quer que criticasse Marx tinha de haver-se com
ela. Ela estendia sua proteção maternal a todos os admitidos na
intimidade dos Marx. Era como se houvesse adotado tôda a
família Marx. Ela sobreviveu a Marx e à espôsa e transferiu
seus cuidados para a casa de Engels; conhecera-o desde menina
e concedeu a êle o afeto que tinha pela família Marx.
Engels era, por assim dizer, um membro da família Marx.
As filhas de Marx chamavam-no de segundo pai. :Ele era o
alter ego de Marx. Por longo tempo os dois nomes nunca fo-
ram separados na Alemanha e ficarão unidos para sempre na
história. ·
. Marx e Engels foram a personificação, em nosso tempo, do
ideal de amizade retratado pelos poetas da antiguidade. Des-
de a mocidade desenvolveram-se juntos e paralelamente, vive-
ram em íntimo companheirismo de idéias e sentimentos e
compartilharam a mesma agitação revolucionária, enquanto pu-
deram viver juntos, trabalharam em comum. Não tivessem os
acontecimentos apartado um do outro por cêrca de vinte anos e
provàvelmente teriam trabalhado juntos a vida inteira. Mas,
após a derrota da Revolução de 1848, Engels teve de ir para
Manchester, enquanto Marx foi obrigado a continuar em Lon-
dres. Ainda assim, prosseguiram sua vida intelectual comum
escrevendo-se quase diàriamente, trocando opiniões sôbre os fa-
t?s políticos e científicos e seu trabalho. Logo que Engels pôde
livrar-se de seu trabalho saiu correndo de Manchester para Lon-
dres, onde montou cas; a apenas dez minutos da de se~ caro
Marx. De 1870 até a morte do amigo, não se passou um dia sem
que os dois se vissem às vêzes na casa dum, outras na do
outro. '
Era um dia de júbilo para os Marx quand?. Engels infor-
mava que vinha de Manchester. Sua iminente v1S1ta era comen-
}:da co~ wande antecedência, e no dia de sua cheg~da ~arx
cava tao impaciente que não podia trabalhar. <?s dois amigos
passavam a noite inteira fumando e bebendo Juntos, conver-
saoclo sôbre tudo que ocorrera desde seu último encontro.
Marx apreciava a opinião de Engels mais que ª de qual-
quer ourra pessoa, pois . Engels era o hornem que e"le reputava ca-
204 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

paz de ser seu colaborador. Para êle, Engels era um auditóri


inteiro. Nenhum esfôrço seria demasiado para Marx convence:
Engels e . co~quistá-lo. para ..suas idéias. Por exemplo, vi-o ler
volumes mtetros segmdas vezes para encontrar o fato necessário
para mudar a opinião de Engels sôbre um ponto de menor im-
portância, de · que não me recordo, atinente às guerras político-
-religiosas dos albigenses. Era um triunfo para Marx converter
Engels à sua opinião.
Marx orgulhava-se de Engels. Agradava-lhe enumerar, pa-
ra mim, tôdas as qualidades morais e intelectuais dêle. Certa
feita, fêz uma viagem a Manchester especialmente para apre-
sentar-me a Engels. :Ele admirava a versatilidade do conheci-
mento do amigo e ficava assustado ante a menor coisa que lhe
pudesse suceder. "Sempre tremo", falou-me, "receando que êle
possa acidentar-se na caçada. É tão impetuoso; vai galopando
pelos campos com a rédea sôlta, sem se desviar dos obstáculos."
Marx era um amigo tão bom quanto um espôso e pai amo-
roso. Em sua espôsa e filhas, Helene e Engels êle encontrou
objetos dignos de amor de um homem como era.

Tendo principiado como líder da burguesia radical, Marx


viu-se abandonado assim que a oposição tornou-se muito decidida
e olhado como inimigo logo que se tornou socialista. Foi acos-
sado e expulso da Alemanha após ter sido vilipendiado e caluni.ado .
.e a seguir houve uma conspiração de silêncio ·contra ~le e . sua
obra. O 18 Brumário, que prova ter sido Marx o úmco histo-
riador e político de 1848 que compreendeu e desvendou a verda-
deira natureza das causas e resultados do coup d' état de 2 de de-
.zembro de 1851, foi completamente ignorado. A despei~o da
atualidade do livro, nenhum jornal burguês sequer o mencionou.
A Pobreza da Filosofia, uma resposta à Fil?sofia , 1ª
Po-
breza e Uma Contribuição à Crítica da Economia Po/tttca fo-
ram 'anàlogamente desprezadas. A Primeira Internacional e ?
primeiro livro de O Capital romperam essa conspi~ação ?e si:
lêncio depois de ter durado quinze anos. Marx nao mais Po
dia ser ignorado: a Internacional expandiu-se e encheu O mun·
do com a glória de suas proezas. Malgrado Marx ficasse. em
. segundo pl;mo e deixasse outros agir, em breve descobrm-se
quem era o nomem por trás dos cenários.
A
REMIN ISCEN CIAS DE MARX 205

o Partido Social-Democrático ·foi funda do na Alem anha e


tornou-se uma potência que Bisma rck cortej ou antes de atacar.
Schweitzer, um seguidor de Lassalle, public ou uma série de ar-
tigos, fartamente el?gi~dos por Marx , para trazer O Capital ao
conhecimento do publ1Co trabal hador . Por propo sta de Johann
Philipp Becker, o Congresso da Intern acion al adoto u uma reso-
lução chamando a atenção dos socialistas de todos os países para
2
O Capital como "a Bíblia da classe trabal hador a"
· Após a sublevação de 18 de março de 1871, em que se tentou
ver obra da Internacional, e após a derro ta da Comu na, que o
Conselho-Geral da Prime ira Intern acion al tomou a seu cargo
defender contra a ira da impre nsa burgu esa de todos os países,
o nome de Marx tornou-se conhecido no mund o inteiro . Ele
foi proclamado o maior teórico do socialismo cientí fico e organ i-
zador do primeiro movimento intern aciona l da classe trabal hador a.
O Capital passou a ser o manu al dos socialistas de todos os
país~s. Todos os jornais socialistas e operários disseminaram suas
teorias científicas. Duran te uma grand e greve que irrom peu
em Nova Iorque, foram publicados extratos de O Capital sob a
forma de folhetos para inspir ar os operários a resistir e mostrar-
-lhes quão justificadas eram suas reivindicações.
O Capital foi traduz ido para as principais língua s européias
-:-- _russo, francês e inglês, e fora publicados resumos em alemão,
1~ahano, francês, espan hol e holan dês. Tôda vez que adversá-
r~os na Europa ou nos Estados Unido s tentar am refuta r suas teo-
r~as'. os economistas imedi atame nte receberam uma réplica so-
n~hsta que lhes tapou as bôcas. O Capital, é hoje, deveras, o que
foi denominado pelo Congresso da Intern aciona l - a Bíblia da
classe trabalhadora.
. O quinhão que Marx teve de aceitar no movimento socia-
hstª internacional tirou tempo de sua ativid ade científica. A
morte. da espôsa e a de sua filha mais velha, a Sr.ª Longu et, tam-
b, f
em m luíram desfavoràvelmente nêle.
O amor de Marx pela espôsa era profu ndo e intrín s:co. A
s
bel~za . dela havia sido motiv o de alegria e orgulh o para ele, ua
meigwce e devotamento lhe tinham aliviado os contratempos

da
p . • Essa resolu ção foi adotad a pelo Congr esso de Bruxel as
2

runeira Intern aciona l, em setemb ro de 1868. - Nota do Ed.


1890-9 1.
T Pu~lic ado pela prime ira vez em Die Neue Zeit, vol. I,
raduzid o do alemão .
206 CONC EITO MARXISTA DO HOME M

forçosamente resultantes da vida acidentada cotno . .


· 'ano.
· A enfermi·dad e que 1
vo1uc10n evou à tnorte J 11sta re-
socia
també m encurtou a vida de seu marido. Duran te a tnny Marx
lorosa doença dela, Marx , exaurido pelas noites de vi;~~ a e do.
falta de exercício e de ar fresco, além de moralmente1ª be }?<!la
contrai· a pneumorua · que devena
· arrebatá-lo. a atido,
A 2 de dezembro de 1881, a Sr.ª Marx morreu como ·
.
uma comunista e maten.a1ista.
. A
morte não a atemovivera · '
. f. .
Quando sentiu o im aproximar-se, exc1amou: "Karl, minhasnzou f .. ~
ças estão fugin do!" Estas foram suas últimas palavras inteligív~r
s.
Ela foi enterrada no Cemitério Highgate, em solo não-con-
sagrado, a 5 de dezembro. Consoante os hábitos de tôda a sua vida
e de Marx, tomaram-se tôdas as precauções para evitar que
funer al f ôsse público e só uns poucos amigos íntimos a acom-0
panha ram até sua última morada. O velho amigo de Marx,
Engels, pronunciou . uma oração fúnebre.
Depo is da morte da espôsa, a vida de Marx foi uma série de
penações físicas e morais, suportadas com grande fortaleza de
ânimo. Foram agravadas pela morte súbita de sua filha mais
velha, a Sr.ª Longuet, um ano depois. Ele ficou alquebrado,
para não mais recuperar-se.
Morre u à sua mesa de trabalho a 14 de março de 1883, aos
64 anos de idade.
YDEMEYER
DE JEN NY MA RX A JOS EPH WE

Londres, 20 de maio de 185 0

Caro Her r Weydemeyer:

pitalidade tão amistosa


Em breve fará um ano que recebi hos
pois me senti tão confor-
e cordial de si e de sua querida espôsa,
o êsse tempo nem dei
tàvelmente à vontade em sua casa . Tod
sua espôsa escreveu-me
sinal de vida: fiquei em silêncio qua ndo
silêncio qua ndo recebemos
uma carta tão amiga e nem rompi o
Me u silêncio tem-me afli-
a notícia do nascimento de seu filho.
do tempo eu não podia
gido muitas vêzes, mas a maior par te
bem difícil.
escrever e mesmo hoje acho isso difícil,
a pegar da pena.
As circunstâncias, contudo, obrigam-me
a possível qualquer di-
Peço-lhe que nos mande o ma is depress
que tenh a sido ou ven ha a ser rece bido da Revue. 1 Cer-
nheiro
jamais têrmos feito mui-
tamente ninguém pode censurar-nos por
e suportando há anos,
to caso dos sacrifícios que vimos fazendo
rmado de nossa situação;
o público nunca ou quase nunca foi info
stões e preferiria sacri-
n:ieu marido é muito sensível nessas que
a a mendicância democrá-
f!car seu último recurso a apelar par
reconhecidos oficialmente.
tica como fazem os "grandes homens"
apoio ativo e enérgico dos
To1avia, êle poderia ter contado com
dos de Colônia. Poderia
anugos à Revue dêle, particularmente
mais nada por parte dos
ter con~ado com êsse apoio antes de
inische. Zeit11ng. Em vez
q~e sabiam de seus sacrifícios pela Rhe
nte arruinado por adminis:
d1s5?, poréi:ri, o negócio foi completame
é possível dizer o que f 01
tr_açao negligente e desorganizada, e não
entes da emprêsa, dos co-
pior,_se os atrasos dos livreiros, dos ger
democratas em geral.
nhecidos de Colônia ou a atitude dos

1
Nei u Rhe inische Zeit ung . Politisch-ôkonomische Rev ue. -
Nota do Org .
208 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

Aqui, meu marido está quase esmagado pelas pr _


mesquinhas da vida de forma tão revoltante que tem eocup~çoes
· 1 · , preC1sado
d e to"da sua energia, cama, sentimento nitido e calmo d d' .
e 1gn1
dade para conservar-se nessa pugna de cada dia e de cada h -
ora.
V oce,. conhece, caro H err W eyd emeyer, os sacnf1cios feitos
. ,
meu marido pelo jornal. Inverteu milhares em dinheiro por
miu os encargos de proprietário, induzido por valiosos d~mocra- assu-
, . . d
t~ que d o c~ntrano teriam e responder pessoalmente pelas dí-
vidas, nwna epoca em que eram escassas as perspectivas de su-
cesso. Para salvar a honra política do jornal e a honra cívica de
seus conhecidos de Colônia, êle ficou com tôda a responsabili-
dade; sacrificou a tipografia, sacrificou todos os seus rendimen-
tos, e antes de sair chegou até a tomar emprestados 300 táleres
para pagar o aluguel das instalações recém-alugadas e os notáveis
salários dos redatores etc. E êle teve que ser enxotado à fôrça.
Você sabe que não guardamos nada para nós. Fui a Francoforte
para empenhar minha prataria - a última coisa que me restava -
e mandei vender minha mobília em Colônia porque estava em
risco de ter minha roupa de cama e mesa e tudo o mais seqües-
trados. Ao começar o infeliz período da contra-revolução, meu
marido foi para Paris e segui-o com minhas três filhas. Mal
havíamo-nos instalado em Paris quando êle foi expulso, e até eu
e minhas filhas tivemos negada permissão para continuarm~s
residindo ali. Acompanhei-o para além-mar. Um mês depois
nasceu nosso quarto filho. É preciso conhecer Londres e ~
situação daqui para entender o que é ter três crianças e ~ar ª
luz uma . quarta. Só de aluguel tínhamos de p~gar. 42 táleres
por mês. Conseguimos fazer face a isso com dmhe1ro que re-
nd
cebíamos, mas nossos parcos recursos estavam esgotados qua º
a Revue foi publicada. Contrariando o acôrdo, não fomos pagos,
d que nossa
e mais tarde somente em pequenas somas d e mo 0
situação aqui era quase alarmante.
. d 1 vida exata·
Descreverei para você apenas um d 1a . aque
.
ªi'
tes ta vez,
te-
1 1
mente como se passou, e verá que poucos m ~ra~ ~uito caras,
nham sofrido coisa assim. Como as amas aqui sao t' uas do·
· • ,. r de ..con in
nh mamava
reso1v1 alimentar meu bebe pessoa1mente, apesa
res terríveis no seio e nas costas. Mas o pobre anp \e mal e
tanta preocupação e ansiedade recalcada que es~ava semJndo ainda
0
sofria hordvelmente dia e noite. Desde que veio ª ~ês horas e
não dormiu uma única noite, no máximo duas ou
DE JEN NY MARX A JOS EPH WE
YDEMEYER 209
isso raramente. Recentemente tem tido
violentas convulsões . tam-
bém, e tem estado sempre ent re a vid
a e a morte. De vid o ao so-
frimento, êle mamava com tan ta fôrça
que me u seio ficou esfola-
do e a pele rachou, e muitas vêzes
o sangue entrava por sua
boquinha trêmula. Eu estava um dia sentada assim
quando a zeladora de nossa casa aparec com êle
eu. Tínhamos pago 250 tá-
leres a ela durante o inverno e com
binado de dar o dinheiro no
futuro. não a ela · mas ao senhorio,
que tinha ' um mandado judi-
cial contra ela. Ela negou o acôrdo
e exigiu cinco libras que
ainda lhe devíamos. Como não tínhamos o dinheiro no
mento (a carta de Na ut só chegou mo-
mais tar de) , vieram dois
meirinhos e seqüestraram tôdas as min
has escassas posses - rou-
pas de linho, camas, roupas - , tudo,
até o berço de meu pobre
filhinho e os melhores brinquedos
das minhas filhas, que fica-
ram chorando amargamente. :Eles ameaçaram de levar tudo
dentro de duas horas. Eu teria então que ficar no chão nu
com minhas filhas enregeladas e meu
peito doente. Nosso amigo
Schramm foi correndo à cidade para
buscar ajuda para nós. En-
trou em um a carruagem, de aluguel,
mas os cavalos dispararam e
êle pulou for a e foi trazido sangrando
de volta ~ara a c~a, on-
de eu estava chorando com minhas
pobres crianças britando.
Tivemos que deixar a casa no dia seg
uinte. Est:va frio, ch~-
voso e nublado. Me u marido pro
curou acomodaçoes para no~.
Quando mencionava as quatro cna · nças, nm · gue' m nos quena
. .
ace1tar. Finalmente, um amigo .
· aux1·1·iou-nos, Pªgamos nosso,. alu- .
, ,. d
guel e vendi as pressas to as as cam
as Pªra pagar o farmaceduttco,
o padeiro o açougueiro e o le1t . .
e1ro que , ·sta da penhora,d,. e re-
pente ass~diaram-me com suas contas. , ª vi
As camas que ven eramos
foram tiradas e colocadas em um car
rinho. O que eStªva da~odn-
tecendo? Já passava bem do por ,. dO 1· estávamos tran sgre m o
. so , ,
.
a lei inglêsa. O senhorio veio c~rren do par a nos com dois .
po
li-
ciais sustentando que bem podena al de seus perten-
' hav er gun s . · Em
ces entre as coisas e que quen:11 , • para O estrangeiro .
11os ir trezentas pessoas
menos de cinco minutos, havia du
:~t as ~~a de Chelsea. As
paradas em tôr no de nossa porta -
camas for am trazidas de volta nov
to ª t_ não poderiam ser
amen ed sol no dia seguinte.
entregues ao comprad or antes do nascer o
bens, ficamos em con-
De poi s de ~êrmos ven did o todos ?.5
:~ss~t~ 0 último ceitil. Fui
dições de pagar tud o o que dev ~~
com minhas queridinhas para os ois uenos quartos que ago-
peq
1'\
210 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

rn. ocupamos no Hotel Alemão, _n. 9 1, Rua Leicester, ,Praça Lei-


cester. Ali, por i 5 semanais, receberam-nos benevolamente.
Perdoe-me, caro amigo, por ter sido tão extensa e verbosa
para descrever um único dia de nossa vida aqui. :S irrefl~tido,
sei disso, mas meu coração está querendo estourar esta noite, e
preciso pelo menos uma vez desabafá-lo com meu ma_is, ~ntigo,
melhor e mais sincero amigo. Não pense que essas misenas me
abateram: sei muito bem que nossa luta não é isolada e que eu,
em particular, sou um dos escolhidos, felizes, favoritos, pois meu
querido marido, o esteio de minha vida, ainda está a meu lado.
O que realmente tortura minha própri a alma e faz meu coração
sangrar é ter êle de sofrer tanto por ninharias assim, que tão pou-
co pudesse ter sido feito para auxiliá-lo, e que êle que tão espon-
tânea e alegremente ajudou a tantos outros, ficasse assim desam-
parado. Mas não creia, caro Herr Weydemeyer, que façamos
exigências a quem quer que seja. A única coisa que meu ma-
rido poderia ter pedido daqueles a quem deu suas idéias, seu
estímulo e seu apoio seria mostrar mais entusiasmo no negócio
e mais ajuda para a Revue. Orgulho-me e ouso fazer tal afir-
mação. ~sse pouco lhe era devido. Não creio que fôsse injusto
para ninguém. E isso que me entristece. Mas meu marido é de
opinião diferente. Nunca, nem mesmo nos momentos mais me-
donhos, êle perdeu a confiança no futuro nem mesmo seu humor
jovial, e ficou satisfeito ao ver-me animada e nossas quatro ama-
das crianças aninhando-se junto da mãe querida. :8le não sabe,
caro Herr Weydemeyer, que eu lhe escrevi com tanta minúcia sô-
bre nossa situação; por isso, peço-lhe que não mencione estas li-
nhas. Tudo que êle sabe é que lhe pedi, em nome dêle, que
apresse o mais possível o recolhimento e remessa de nosso di-
nheiro.
Adeus, caro amigo. Dê a sua espôsa minhas lembranças mais
carinhosas e beije seu anjinho por esta mãe que derramou mui-
tas lágrimas pelo próprio bebê. Nossas três filhas mais velhas
estão bonitas, sadias, bem dispostas e boas, e nosso rechonchudo
garotinho cheio de bom-humor e das idéias mais gozadas. O
pequeno diabrete c~nta o dia inteiro com um sentimento espanto-
so numa voz troveJante. A casa sacode quand o êlt anuncia nu-
ma voz temível as palavras da Marseillaise de Freiligrath:

Vem, junho, e traze-nos nobres façanhas!


A feitos de fama nosso coração aspira.
DE JENNY MARX A JOSEPH WF.YDEMEYER 211

Talvez seja o destino histórico daquele mês, como de seus


predecessores, 2 de inaugur~r a l~t1 gi~antesca em que todos no-
vamente apertaremos as maos. eus .

2 A referência é a junho de 1848 - a derrota do proleta riado


de Paris, e a junho de 1849 - o insucesso da Campa nha por uma
Constituição do Reich no sudoeste da Aleman ha. - Nota do Org.
Impressa no Die Neue Zeit, vol. 2, 1906-7. Traduz ida do alemão ,
se~undo o texto do jornal compar ado com uma fotocópia do manus-
crito.
KARL MARX

E/eanor Marx -Ave ling

( Algumas Notas Casuais)


as
Meus amigos austríacos pedem-me que lhes envie algum
mais
recordações de meu pai. Não poderiam ter-me pedido nada
ntan-
difícil. Porém, os homens e mulheres austríacos estão suste
e tra-
do uma luta tão bela pela causa por que Karl Marx viveu
mesmo
balhou que não se pode dizer-lhes não. Por isso, tentarei
pai.
mandar-lhes algumas notas casuais, esparsas, acêrca de meu
de
Muitas estórias estranhas têm sido contadas a respeito
, evi-
Karl Marx, desde a de seus "milhões" ( em libras esterlinas
a de
dentemente, pois nenhuma moeda inferior serviria), até
ese
êle ter sido subvencionado por Bismarck, a quem por hipót
o da In-
teria visitado constantemente em Berlim durante o temp
eceram
ternacional ( !) . Mas, afinal de contas, para os que conh
que o
Karl Marx nenhuma lenda é mais engraçada do que a
in-
descreve comumente como um homem casmurro, virulento,
e apar-
flexível, trovejando, nunca visto sorrindo, sentado sozinho
alma que
tado no Olimpo. Essa imagem da mais jovial e alegre
hu-
jamais respirou, de um homem fervilhante de hum or e bom
mais
mor, ruja gargalhada cordial era contagiosa e irresistível, do
perma-
delicado, meigo e compadecido dos companheiros, é um
eceram.
nente portento - e divertimento - para os que o conh
Em Sl;}a vida doméstica, assim çomo em colóquios com ami-
que as
gos, e até com meros conhecidos, creio poder-se dizer
bom-
principais características de Karl Marx eram seu ilimitado
..paciê náa
-humor e sua irrestrita compaixão. Sua delicadeza e
menos
eram réalmente · sublimes. ·· Um homem de temperamento
upções
brando tería · muitas vêzes ficado frenético com as interr
àe de
constantes, as exigências contínuas a êle feitas por tôda espé
maça-
pessoas. . Ter um r~fugiado da Comuna: - um . rematado
horas
dor antigo, por sinal - que retivera Marx durante três
KAR L MAR X
-213
mortíferas, ao afin al lhe ser dito que o tem
po estava correndo -e
ainda havia muito trab alho a fazer, resp ond
ido "M on cher Ma rx
je vous excuse" é característico da cortesia e
delicadeza de Marx:
Como com êsse ve1!1o _paulificante, tam bém
com qua lque r
homem ou mul her que ele Julgava _hon esto
( e êle dedicou seu
·tempo precioso a não poucos que melanc
olicamente abusaram
de sua gen eros idad e), Ma rx era sem pre o mai
s amigável e gen til
dos homens. Seu pod er para "pu xar " pela
s pessoas, fazendo-as
crer que estava interessado naq uilo que lhes
interessava·, era ma-
ravilhoso. Ten ho ouv ido homens das mais
· diversas profissões e
posições falar da capacidade _especial dêle par
a compreendê-los e
aos seus assuntos. Qua ndo êle acreditava
na sinceridade de al-
guém, sua paciência era irrestrita. Nen hum
a pergunta era por
demais trivial para êle responder; nen hum
argumento demasiada-
mente infantil para merecer discussão séria.
Seu tempo e sua
vasta cultura estavam sempre a serviço de
qualquer homem ou
mulher que aparecesse ansioso por aprender.

*
* *
Era em suas relações com os filhos, porém,
vez fôsse mais fascinante . Por certo, nunca que Mar x tal-
crianças tiveram um
companheiro de brincadeiras mais encantador.
Min ha mais re-
mota lembrança dêle é de quando eu tinha
cêrca de três anos,
e "Mo or" ( o velho apelido de casa escapou
-me) me levava nos
ombros em volta do nosso pequeno jardim
em Gra fton Terrace,
pondo flôres "campainha" nos meus cachos
castanhos. "Mo or"
era reconhecidamente um cavalo esplêndido.
Antes disso - não
me lembro mas ouvi contar - minhas ·irmãs
e o irmãozinho -
cuja morte logo após meu nascimento foi
uma dor que afligiu
meus pais a vida inteira - "atrelavam" "~o
or" a cadeiras, e~
que êles montavam e êle tinh a de pux ar. . .
Pess
vez por não ter irmãs de min ha idade - -eu prcf oalmente - tal-
eria "Mo or" como
cavalo de sela. Sentada em seus ombros, aga
rrando-me a sua vas-
ta cabeleira então negra, mas com salpico gris
alho, dei mag~íficos
passeios em nosso jardinzinho e pelos campos
- agora cheios de
prédios - que rodeavam nossa casa em Gra
fton Terrace.
Um a palavra quanto ao apelido "Mo_o r".
E~ casa, _todos
tínhamos apelidos. (Os leitores de O Caprtal.
· saberao como Marx
era bom para pôr apelidos.) "Mo or" era o
nome c_omum, quase
oficial, pelo qual Mar x era chamado não só
por nos, como por
214 CONCEITO MARXISTA DO HOME M

todos os amigos mais íntimos. Mas êle era também nosso "Cha
l-
ley" ( originalmente, creio eu, uma corruptela de Charles) e "Old
Nick ". Minha mãe era sempre nossa "Moh me". Nossa velha
e
querida amiga Hélene Dem uth - a amiga de uma vida inteir
a
de meus pais - , após uma série de nomes, tornou-se a nossa
"Nym ". Engels, depois de 1870 , tornou-se nosso "Gen eral" . Uma
amiga muito íntima - Lina Schoeler - nossa "Velh a Toupeira".
Minh a irmã Jenny era "Qui Qui, Imperador da China" e "Di".
Minh a irmã Laura (Madame Lafar gue), "a Hotentote" e "Ka-
kadou". Eu era "Tussy" - um nome que ficou - e "Quo , Quo,
Sucessor do Imperador da China", e por muito tempo o "Get-
werg Alberich" ( dos Niebelungen Lied) .
Contudo, embora "Moor" fôsse excelente cavalo, êle possuía
· uma outra qualidade ainda mais alta. Era um contador de
es-
tórias ímpar, sem rival. Ouvi minhas tias dizerem que em pe-
queno êle era um terrível tirano para as irmãs, a quem "guiara" ao
longo do Markusberg em Trier, a tôda velocidade, como cava-
los dêle, e, o que é pior, insistia em que comessem os "bolinhos"
que êle fazia com massa suja e mãos ainda mais sujas. Elas,
porém, agüentavam tudo sem murmurar, para poderem ouvir as
estórias que Karl lhes contaria depois como recompensa por sua
virtude. E assim, muitos anos depois, Marx contava estórias
para os filhos. A minhas irmãs - eu era então muito pequena
- contava estórias quando saíam caminhando, e elas eram me-
didas em quilômetros e não em capítulos. "Conta mais um quilô
-
metro", era o grito das duas meninas. De minha parte, dos muito
s
contos maravilhosos que "Moor" me contou, o mais notável,
o
mais delicioso, foi "Han s Roeckle" : Duro u meses e meses; era
uma série completa de estórias. Que pena ninguém estar ali es-
crevendo aquêles contos tão cheios de poesia, de espírito, de hu-
mor! Hans Roeckle era um mágico à moda de Hoffmann, que
possuía uma loja de brinquedos e vivia sempre "pron to". A
loja dêle estava cheia de coisas mais extraordinárias - homens
e mulheres de madeira, gigantes e anões, reis e rainhas, trabalha-
dores e patrões, animais e pássaros tão numerosos como os que
Noé colocou em sua Arca, mesas e cadeiras, carruagens, caixas de
tôda espécie e tamanho. E embora fôsse mágico, Hans nunca con-
seguia satisfazer suas obrigações para com o diabo ou o açouguei-
ro, e portanto - muito a contragosto - era obrigado constante-
-?1en~e a vender seus brinquedos - sempre acabando de volta
a loJa de Hans Roeckle. Algumas dessas aventuras eram tão hor-
rendas, tão horríveis, quanto qualquer uma de Hoffm ann; algu-
KARL MARX
215
mas eram cômicas; tôdas eram narradas com inesgotável verve,
espírit<;> e humor.
E "Moor" também lia para os filhos. Foi assim que para
mim, como antes para minhas irmãs, leu na íntegra Homero, os
Niebelungen Lied, Gudrun, Dom Quixote, as Mil e Uma Noites
etc. Quanto a Shakespeare, era a Bíblia de nossa casa, raramente
fora de nossas mãos ou de nossos lábios. Aos seis anos, eu já
conhecia de cor cenas inteiras de Shakespeare.
Em meu sexto aniversário, "Moor" presenteou-me com mi-
nha primeira novela - o imortal Pedro Simplório. Essa foi
acompanhada por um curso inteiro de Marryat e Cooper. E
meu pai de fato lia cada um dos contos à medida que eu os lia,
e discutia-os seriamente com sua garotinha. E quando essa ga-
rotinha, inflamada pelos contos marítimos de Marryat, declarou
que iria ser um "Capitão do Pôsto" ( sei lá o que isso seria) e
consultou o pai se não lhe seria possível "vestir-se como menino"
e "fugir para alistar-se em um navio de guerra", êle lhe garantiu
que a idéia poderia muito bem ser seguida, mas só que não
deviam contar a ninguém até os planos estarem bem amadureci-
dos. Antes dos planos poderem amadurecer, contudo, pegara a
mania de Scott, e a menina ouviu, para seu horror, que ela mesma
em parte pertencia ao detestado clã dos Campbell. Em seguida,
houve planos para sublevar os Highlands e para reviver "os qua-
renta e cinco". Devo acrescentar que Scott era um autor a que
Marx repetidamente voltava, que admirava e conhecia tão bem
quanto a Balzac e Fielding. E enquanto conversávamos sôbre
êsses e muitos outros livros, êle ia indicando a essa menina, que se
mostrava completamente inconsciente ao fato, onde procurar o que
havia de melhor nos livros, ensinando-a - embora ela nunca
imaginasse que estava sendo ensinada, ao que se teria oposto -
a tentar e a pensar, a tentar e a entender por si mesma.
E da mesma forma, êsse "amargo" e "exasperado" homem
falava de "política" e "religião" com a meninazinha. Quão bem
me recordo, quando tinha talvez cinco ou seis anos, de ter _sen-
tido certos escrúpulos religiosos e ( tínhamos estado em uma 1gre-
já católica romana para escutar a linda música). confiando-~s, na-
turalmente a "Moor" como êle calmamente deixou tudo tao ela-
' ,
ro e certo para mim que dêsse momento até hoje nenhuma d,u-
vida jamais voltou a passar por meu pensamento. Lemb~o-me,
agora, de êle me contar a estória - não acho que poderia ter
sido contada assim antes ou depois - do carpinteiro a quem os
216 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

ricos mataram, e de dizer inúmeras vêzes: "Afinal de contas


podemos perdoar muita coisa ao cristianismo por nos ter ensi-
nado o culto da criança."
E o próprio Marx poderia ter dito •"deixem as criancinhas
vir a mim", porque aonde quer que êle · f ôsse também surgiam
crianças. Se se sentava na charneca em Hampstead - um vas-
to espaço aberto no norte de Londres, perto de nossa antiga casa -,
se descansava em um banco num dos parques, dentro em
pouco um bando de crianças estava reunido em volta dêle nos
têrmos mais íntimos e amigáveis com o homem grand.e de cabe-
los e barba longos e os bondosos olhos castanhos. Crianças com-
pletamente estranhas vinham assim a êle, paravam-no na rua ...
Uma vez, recordo-me, um pequeno escolar de uns dez anos, bem
sem-cerimônia, deteve o temível "chefe da Internacional" no Par-
que Maitland e pediu-lhe para "barganhar canivetes". Após uma
pequena explicação indispensável de que "barganhar" era o têrmo
escolar para "trocar", os dois canivetes apareceram e foram com-
prados. O do menino tinha só uma lâmina e o do homem duas,
mas estas estavam inegàvelmente cegas. Após muito debate, foi
feita a barganha: o terrível "chefe da Internacional" acrescentou
uma moeda, levando em conta que suas lâminas estavam ~egas.
Como me lembro bem da paciência e doçura infinitas com
que, tendo a guerra norte-americana e os Livros Azuis substituído
temporàriamente Marryat e Scott, êle respondia a tôdas as per-
guntas e nunca se queixava de uma interrupção. No entanto,
não deve ter sido pouco transtôrno crianças pequenas tagarelando
enquanto êle trabalhava em seu grande livro. À criança, porém,
jamais era dado ensejo de perceber que podia estar atrapalhando.
Nessa época, também, lembro, tive a absoluta convicção de que
Abraão Lincoln precisava urgentemente de ·meus conselhos sôbre
a guerra, e escrevia cartas extensas dirigidas a êle, tôdas as quais,
está claro, "Moor" tinha de ler e pôr no correio. Muitos, muitos
anos depois, êle mostrou-me aquelas cartas infantis que guardara
porque o tinham divertido muito.
E assim, através dos anos da infância e da juventude, "Moor"
foi um amigo ideal. Em casa, todos éramos bons camaradas e
êle sempre o mais dedicado e mais bem humorado. Mesmo
durante os anos de sofrimento, quando padecia contlnuamente
de dores, devido aos carbúnculos, mesmo até o fim . ..

*
* *
KARL MARX ·217

Escrevinhei estas poucas reminiscências descosidas, mas mes-


mo assim ficariam incompletas se não acrescentasse uma pala-
vra sôbre minha mãe. Não é exagêro afirmar que Karl Marx
nunca poderia ter sido o que foi sem Jenny von Westph alen.
Nunca houve dias de duas pessoas - ambas notáveis - tão uni-
das, tão completamente uma da outra. De beleza extraordiná-
ria - uma beleza de que êle se orgulhava e alegrava até o fim,
e que merecera a admiração de homens como Heine, Herweg h e
Lassalle - , de intelecto e espírito tão brilhantes quanto sua ·be-
leza, Jenny von Westph alen foi uma mulher entre milhões. Co-
mo rapaz e mocinha - êle mal fizera dezessete, ela vinte e um
·_ ficaram noivos, e como ocorreu com Jac6 em relação a Ra-
quel, êle serviu sete anos antes de se casarem. Depois, através dos
anos seguintes de tempestades e tensão, de exílio, pobreza áspera,
calúnia, luta intrépida e batalha porfiada, êsses dois, com sua fiel
e leal amiga Hélene Demuth , enfrentaram o mundo, nunca titu-
beando, nunca recuando, sempre no pôsto do dever e d·o perigo.
Em verdade, poderia êle dizer dela nas palavras de Browning:

· Portanto, ela é minha noiva imortal.


A sorte não pode mudar meu amor, nem
o tempo debilitá-lo . . .

E eu, às vêzes, penso que quase tão forte entre êles como
foi o vínculo de seu devotamento à causa dos trabalhadores foi
também o seu imenso senso de humor. Garanto que nunca
duas pessoas apreciaram melhor uma brincadeira do que aquêles
dois. Repetidas vêzes - especialmente se a ocasião exigia com-
postura e seriedade - vi-os rir até as lágrimas correrem pelas faces
abaixo, e mesmo as pessoas dispostas a ficar chocadas ante ta-
manha jovialidade intempestiva não podiam deixar de rir com
êles. E quão amiúde vi-os sem se atreverem a olhar um para o
outro, cada um sabendo que um mero vislumbre trocado resul-
taria em risadas incontroláveis! Ver os dois com os olhos fixos
em qualquer coisa que não fôsse o outro, parecendo, a todos, d?is
escolares, sufocando com o riso reprimido que acabava, a despeito
de todos os esforços, arrebentando, é uma recordação que eu não
trocaria por todos os milhões que às vêzes atribuem à minha he-
rança. Sim, malgrado todo o sentimento, as lutas, os desapon-
tamentos, êles eram uma dupla alegre e o acirrado Júpiter Toni-
truante uma ficção da imaginação burguesa. E se nos anos de luta
houve muitas desilusões, se depararam com a ingratidão de estra-
218 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

nhos, tiveram o que a poucos é dado - amigos sinceros. Onde


é conhecido o nome de Marx, também o é o de Friedrich Engels.
E aquêles que conheceram Marx em seu lar também se lembram
do nome da mais nobre das mulheres que jamais viveu, o no-
me honrado de Hélene Demuth.
Aos estudiosos da natureza humana, não parecerá estranho
que êsse homem, que foi um tal lutador, fôsse ao mesmo tempo
o mais dedicado e meigo dos homens. Entenderão que êle pôde
odiar tão ferozmente só porque soube amar tão profundamente;
que se sua caneta cortante podia certamente prender uma alma
no inferno como o próprio Dante, foi por êle ser tão sincero e
terno; que se seu humor sarcástico podia morder como ácido cor-
rosivo, êsse mesmo humor podia ser igualmente um lenitivo para
os aflitos e os em dificuldade.
Minha mãe morreu em dezembro de 1881. Quinze meses
depois, êle, que nunca estivera separado dela em vida, reuniu-se-
-lhe na morte. Após a febre espasmódica da vida, êles dormem
bem. Se ela foi uma mulher ideal, êle - bem, êle "foi um ho-
mem, considere-o no todo, não veremos igual jamais".

Reproduzido do manuscrito. Escrito em ingiês.


CONFISSÃO

Sua virtude favorita: Simplicidade.


Sua virtude favorita no homem: Fôrça.
Sua virtude favorita na mulher: Fraqueza.
Sua principal característica: Coerência de propósitos.
Sua idéia de felicidade: Lutar.
Sua idéia de desgraça: Submissão.
O vício que você mais perdoa: Credulidade.
O vício que você mais detesta: Servilismo.
Sua aversão: Martin Tupper.
Ocupação favorita: Ler
Poeta favorito: Shakespeare, Esquilo, Goethe.
Prosador favorito: Diderot.
Herói favorito: Espártaco, Kleper.
Heroína favorita: Gretchen.
Flor favorita: Dafne (loureiro).
Côr favorita: Vermelho.
Nome favorito: Laura, f enny.
Prato favorito: Peixe.
Máxima favorita: Nihil humani a me alienum puto. *
Lema favorito: De omnibus dubitandum. **
KARL MARX

De um manuscrito da filha de Marx, Laura.


Escrito em inglês.

• N. do T . - "Nada do que é humano me é estranho."


•• N· do T . - "Deve-se duvidar de tudo."
O FUNERAL DE KARL MARX

Friedrich Engels

No sábado, 17 de março, Marx foi sepultado no Cemitério


de Highgate, no memo túmulo ém que sua · espôsa o f ôra quin-
ze meses antes.
À beira da sepultura, G. Lemke depositou duas coroas de
flôres com fitas vermelhas sôbre o esquife, em nome da redação
e do serviço de expedição do Sozialdemokrat e da Sociedade Edu-
cacional, dos Trabalhadores de Londres. ·
Engels, a seguir, f êz o seguinte discurso em inglês:
"A 14 de março, a um quarto pará as três da tarde, o maior
pensador vivo cessou de existir. .me havia sido deixado a sós
por dois minutos se tanto, e quando voltamos o encontramos em
sua poltrona, quietamente adormecido - ·mas para sempre.
"Uma perda incomensurável foi · experimentada tanto pelo
proletariado militante da Europa e da América, quanto pela ciên-
cia histórica, com a morte dêste homem. O vácuo deixado pela
partida dêsse espí.rito poderoso em breve far-se-á sentir.
"Tal como Darwin descobriu a lei da . evolução da natureza
orgânica, assim também Marx descobriu a lei da evolução histó-
rica humana: o simples . fato, até então camuflado por uma excres-
cência da ideologia, de que a humanidade tem antes de mais
nada de comer, beber, abrigar-se, ;vestir-se, antes de poder de-
dicar-se à:·política, ciência, arte, religião etc.; que, por conseguinte,
a produção dos meios materiais imediatos de subsistência e, con-
seqüentemente, o grau de desenvolvimento econômico alcançado
por uma dada época, forma a fundação sôbre a qual as instituições
estatais, as concepções legais, a arte, e mesmo as idéias sôbre re-
ligião foram desdobradas, e à luz das quais elas têm, por isso, de
ser explicadas, em vez do contrário, como tinha sido até
então o caso.
"Mas, isso não é tudo. Marx também descobriu a lei especial
de movimento que rege o sistema de produção capitalista atual
O FUNERAL· DE KARL MARX 221

sociedade burguesa criada por êsse sistema de produção. A


~e~oberta da mais-valia subitamente lançou luz no problema, ao
tentar resolver o que tôdas as investigações -precedentes, tanto de
economistas burgueses quanto de críticos socialistas, haviam es-
tado tateando no escuro.
"Dois descobrimentos dêsses bastariam para uma vida. Feliz
0 homem a que é dado realizar mesmo
um só assim. Porém,
em todo campo de investigação perquirido por Marx - e êle o
fêz em muitos campos, nenhuJ:I?. dos quais superficialmente - ,
em todo campo, até no da Matemática, êle f êz descobertas inde-
pendentes.·
"Era assim o homem de ciência. Mas isso não era nem meta-
de .do homem. . A ciência era, para Marx, uma fôrça revolucioná-
ria, histàricamente dinâmica. Por maior que fôsse a alegria com
que saudava um nôvo descobrimento em uma ciência teórica,
cuja aplicação prática quiçá fôsse ainda impossível visualizar,
experimentava uma outra espécie de alegria, bem diferente, quan-
do a descoberta acarretava mudanças revolucionárias imediatas na
indústria e na evolução histórica em geral. Por exemplo, êle
acompanhou de perto as descobertas feitas no campo da eletri-
cidade e, recentemente, as de Marcel Duprez.
"Pois Marx era, antes de mais nada, um revolucionário. Sua
verdadeira missão na vida era contribuir, de um modo ou de
outro, para a derrubada da sociedade capitalista e das instituições
est~tais por esta suscitadas, contribuir para a libertação do prole-
tariado moderno, que êle foi o primeiro a tornar consciente de
sua própria posição e de suas necessidades, consciente das con-
dições de sua emancipação. A luta era seu elemento. E êle lutou
co~ uma tenacidade e um sucesso com que poucos puderam ri-
valizar. Sua obra no primeiro Rheinische Zeitung (1842), no
Vorwãts de Paris (1844), 1 no Deustsche-Brüsseler Zeitung
(1847), no Neue Rheinische Zeitung (1848-49), no Tribune de
N?~ª York (1852-61), e, além dêsses, uma legião de panfletos
rruht_antes, trabalho em organizações de Paris, Bruxelas e Londres,
e, fmal~ente, coroando tudo, a formação da grande Associação
Internaaonal de Trabalhadores - esta foi de fato um feito de
~ue seu fundador poderia muito bem orgulhar-se, ainda que não
tivesse feito mais nada.

jornal alemão que surgiu em P~ris em ~ 84d0·


1 4
Sob . V º"!'ãt! -
_ a influencia de Marx, que participou de sua redaçao a partir
verao de 1844, começou a revelar tendência comunista.
222 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM

"E, em conseqüência, Marx foi o homem mais odiado e mais


caluniado de seu tempo. Governos, tanto absolutos como repu-
blicanos, deportaram-no de seus territórios. Burgueses, quer con-
servadores ou ultrademocráticos, porfiavam entre si ao lançar di-
famações contra êle. Tudo isso êle punha de lado como se fôssem
teias de aranha, não tomando conhecimento, só respondendo quan-
do necessidade extrema o compelia a tal. E morreu amado, re-
verenciado e pranteado por milhões de colegas trabalhadores re-
volucionários - das minas da Sibéria até a Califórnia, de tôdas
as partes da Europa e da América - e atrevo-me a dizer que,
muito embora possa ter tido muitos adversários, não teve nenhum
inimigo pessoal.
"Seu nome perdurará através das eras, e assim também a
sua obra!"

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