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Teoria do Estado de

Solidariedade
WAM BE RT G OM ES D I L ORE NZO

Teoria do Estado de
Solidariedade
Da dignidade da pessoa humana
aos seus princípios corolários

Fechamento desta edição: 9 de outubro de 2009


© 2010, Elsevier Editora Ltda.

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D574t
Di Lorenzo, Wambert Gomes
Teoria do estado de solidariedade : da dignidade da pessoa humana aos seus
princípios corolários / Wambert Gomes Di Lorenzo. – Rio de Janeiro : Elsevier, 2010.

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-352-3763-4

1. Problemas sociais. 2. Bem-estar social. 3. Dignidade. 4. Solidariedade. I.


Título.

09-4759. CDD: 361 CDU: 364


Para Tatiana, Antonio e Helena,

Razões para viver,


Experiências de plenitude,
Amores inefáveis,
Olhares inebriantes.
O autor

Wambert Gomes Di Lorenzo é advogado, professor universitário e


presidente do Instituto Jacques Maritain. Doutor em Filosofia do Direito
e mestre em Direito do Estado e Teoria do Direito pela UFRGS. Leciona
Filosofia do Direito e Direito Administrativo na Faculdade de Direito da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, onde também já
lecionou História do Direito, Ciência Política e Teoria do Estado e Direito
Constitucional. Publicou diversos textos e tem cerca de uma centena de
conferências proferidas no Brasil e no exterior. Atua em instituições da socie-
dade civil, tanto de interesse político-econômico, intelectual ou acadêmico,
quanto de interesse humanitário.

VII
Agradecimentos

Há muito de dialética nesta obra. Seria uma ingratidão não reconhecer


aqueles que contribuíram com o debate sincero. Especialmente, agradeço a
Luis Fernando Barzotto que, além de sugerir o tema, discutiu cada pondo
em particular. Como o leitor verá, seus argumentos fundamentam boa parte
das ideias aqui contidas. Além dele, quero agradecer àqueles que diretamente
participaram das ideias que exponho, ora refutando, ora acrescentando.
São intelectuais, daqui e de fora, que – como eu – não apenas especulam
sobre, mas sofrem de amor pela pessoa humana. São eles: Alexandre Mussoi
Moreira, Andrés Ollero Tassara, Carlos Ignácio Massini Correas, Cezar
Saldanha Souza Junior, Cleber Benvegnu, Daniel Alejandro Herrera, Draiton
Gonzaga de Souza, Elton Somensi de Oliveira, Enrique Pérez Olivares,
Gonzalo Fernández, Joaquín García-Huidobro, Julio Plaza, Lafayette
Pozzoli, Percival de Oliveira Puggina, Raul Madrid Ramirez, Ricardo Libel
Waldman e Roberto Papini.

IX
Prefácio

O
livro do professor Wambert Gomes Di Lorenzo insere-se na tra-
dição cristã que tem aportado importante contribuição histórica
às diferentes áreas humanas do saber, do conhecimento e da
prática, especialmente no campo das teorias sociais, entre elas a filosofia
do direito e a filosofia política. Tem grande referência no personalismo
comunitário cristão, concepção a partir da qual faz uma vigorosa crítica ao
individualismo e ao coletivismo – com ênfase na crítica ao individualismo.
Este representa realmente uma séria deturpação das dimensões da pessoa
humana que não se manifestam e não se desenvolvem fora do contexto da
sociedade. Nesse sentido, a crítica que o autor faz ao individualismo tem
uma profunda ressonância no período histórico no qual estamos vivendo,
pois, em tempos de globalização e pós-modernidade, são escassas as grandes
realizações no campo dos valores humanos e coletivos. É um tempo mar-
cado pela exacerbação do individualismo, como se o ser humano pudesse
existir por si mesmo e como se não fôssemos profundamente dependentes
uns dos outros, até mesmo suplicantes do afeto, do olhar, da compreensão
e da solidariedade do outro.
Na outra ponta, o autor, em sintonia com o ensino social da Igreja e com
mestres do pensamento social cristão no campo da política, como Jacques
Maritain, critica também o coletivismo que não respeita o diferente e as
diferenças e, por consequência, o mistério e a dignidade da pessoa humana.
A pessoa que se dilui na comunidade perde a sua identidade. Sabemos que o
avanço social pressupõe os conflitos dentro da própria sociedade, na expec-
tativa de que sejam processados dentro dos canais éticos e democráticos.

XI
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O avanço das comunidades pressupõe diferenças, e a tendência do coleti-


vismo, muito próximo dos governos autoritários e até mesmo totalitários,
é considerar os diferentes como hereges, como aqueles que atrapalham o
progresso social.
A contribuição do personalismo comunitário cristão se dá exatamente
na busca de uma síntese superior entre esses dois extremos que, no limite, se
tocam, um inclusive possibilitando o outro. É a busca de uma sociedade na
qual o bem comum considere, na mesma perspectiva, o desenvolvimento da
pessoa humana e o desenvolvimento da comunidade. O personalismo comu-
nitário distingue o indivíduo da comunidade, uma questão fundamental de
Jacques Maritain, de Emmanuel Mourier e de outros pensadores cristãos.
A pessoa, por definição, vive em comunidade, é um ser comunicante, que
pressupõe o outro na dimensão maior da convivência e da cooperação.
Portanto, no personalismo comunitário, há uma ênfase na dignidade da
pessoa humana, ênfase esta tão forte na obra do professor Wambert. Mas o
personalismo comunitário também enfatiza os direitos da comunidade, na
perspectiva do bem comum, da justiça social, naqueles interesses e direitos
que dizem respeito a toda a comunidade, transcendendo a pessoa humana,
mas sem jamais negá-la ou reduzi-la a um ser menor.
Verdade é que o livro do professor Wambert reforça a dimensão do
personalismo e nem sempre desenvolve a dimensão comunitária. Nesse
sentido, ele fala da democracia personalista e enfatiza a dimensão da dig-
nidade humana, de cada ser humano e também valoriza muito o prin-
cípio da subsidiariedade. Este princípio, nas palavras do autor, expressa
uma autonomia própria de cada esfera, segundo a qual “o inferior não está
obrigado a obedecer a seu superior quando este lhe dá uma ordem num
assunto que não lhe está sujeito”. Ou seja, valorizam-se muito os corpos
intermediários e aquilo que pode ser feito pelos níveis mais próximos da
comunidade: a família, organizações comunitárias, organizações de bairro
e o poder local. O governo regional deverá ser executado por esses sempre
com apoio, mas jamais com ingerência dominadora, de poderes superiores
como o governo estadual, o governo federal e outras instituições de caráter
mais amplo do ponto de vista nacional e internacional. É uma questão muito
forte em Jacques Maritain, que defende o princípio pluralístico como uma

XII
Prefácio

manifestação do princípio da subsidiariedade. Para Maritain, o bem comum


e o pluralismo têm uma relação tão indissolúvel que, baseado no princípio
pluralístico, tudo aquilo que no corpo social puder ser feito por órgãos
particulares ou sociedade de grau inferior ao Estado deveria ser realizado
por esses órgãos ou sociedades particulares.
O autor defende uma tese instigante que, certamente, encontrará ques-
tionamentos e dúvidas, ao afirmar com convicção o fracasso do Estado
Social. Ele afirma isso porque o considera fundado no individualismo e com
limites claros colocados para uma antropologia que reduz a pessoa humana
à dimensão do consumo de bens e de serviços. Nesse sentido, devemos
reconhecer que faltou e falta mesmo ao Estado Social essa dimensão mais
ampla da transcendência do convite a outros horizontes e possibilidades
humanas que saem do campo material para a dimensão dos valores, mas
também incorporando outras dimensões fundamentais como a ambiental,
a cultural, as relações humanas e convivências e a transcendência mesmo do
mistério e das possibilidades indizíveis, pressentidas do ser humano.
Mas penso que é um ponto sobre o qual temos muito a debater. Eu,
particularmente, tenho defendido o Estado Social. No Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, trabalhamos com a perspec-
tiva da construção de um Estado Social, referenciado nos países nórdicos,
que assegure a todos um patamar comum de direitos e oportunidades. O
mesmo Estado ao qual Wambert é muito crítico pelas razões acima expos-
tas. O Estado acaba ganhando uma dimensão muito ampla, reduzindo os
espaços intermediários, portanto, um pouco incompatível com o princípio
da subsidiariedade e da solidariedade. Mas há questões mais complexas
envolvidas nessa discussão sobre o Estado Social. Na questão do direito à
alimentação, da segurança alimentar, por exemplo. Como não pensar na
ação do Estado para garantir acesso a direito tão elementar. Tocqueville
já questionava: “Quem é tão ousado a ponto de deixar morrer de fome o
pobre porque morre por própria culpa?”. A situação de uma pessoa com
fome não se discute, deve se cuidar dela e depois discutir se ela é ou não
responsável por isso.
O autor contrapõe ao fracasso do Estado Social o Estado de Solidariedade,
fundado na democracia personalista, nos princípios do bem comum, da

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subsidiariedade e da solidariedade. São princípios que ele trabalha ao longo


do livro sempre pautado pela guia de seu pensamento que é o princípio da
dignidade da pessoa humana, considerada na sua dimensão mais ampla, e
não apenas material e do consumo.
Eu acredito que o princípio da solidariedade deve ser pensado à luz do
papel do Estado. É importante aprofundar-se no papel do Estado, qual
seria, exatamente, a função de um Estado de Solidariedade. Nós sabemos
que, sobretudo nos Estados que ainda não alcançaram um grau de desen-
volvimento maior, mas mesmo nos já desenvolvidos, como nos EUA e na
Europa, o papel do Estado deve ser bem discutido. Se não queremos um
Estado ditatorial e opressor, é preciso definir qual o espaço dele dentro da
democracia na perspectiva de promoção do bem comum.
Está claro para todos nós que a sociedade, por si só, não se autorregula.
Por outro lado, o Estado, muitas vezes, reflete as contradições da própria
sociedade, pois frequentemente não promove a regulamentação em nome
do bem comum. Muitas vezes, se deixa levar por interesses. Mas, quanto
mais o Estado for democrático, quanto mais incorporar os diferentes seto-
res e segmentos sociais, inclusive e especialmente os pobres, os excluídos,
os trabalhadores, as mulheres, que vêm se colocando agora, dando voz e
vez também à juventude, pessoas idosas, pessoas com deficiência, mais
vulneráveis, tanto mais o Estado tem a capacidade de ser o mediador dos
conflitos das desigualdades.
Por isso, o papel do Estado é muito importante. E é importante que
se discuta qual é o seu limite, mas também qual é o seu potencial, sobre-
tudo para ajudar a promover o desenvolvimento e a formulação de projetos
nacionais. As formulações do professor Wambert apresentam ao debate
importantes questionamentos que pedem novas reflexões.
Na linha de pensar o papel do Estado, o professor Wambert tem a
referência do filósofo cristão católico, Jacques Maritain, que exerceu uma
forte influência no pensamento cristão, especialmente na segunda metade
do século XX. Chegou também com muita força ao Brasil, por meio de
pensadores como Alceu Amoroso Lima e Edgard da Mata-Machado.
Maritain influenciou também as gerações que se formaram no movimento
da Ação Católica, com uma grande influência sobre o pensamento jurídico

XIV
Prefácio

e a militância política de cristãos comprometidos com as mudanças e trans-


formações sociais em uma linha democrática e de não violência, respeitando
o pluralismo, o multiculturalismo e as diferenças. À obra de Maritain, é
verdade, falta incorporar uma visão mais conflitiva da política. Mas sua
vigorosa crítica ao capitalismo é feita em bases sólidas e seu pensamento foi
base fundamental que se desdobrou em leituras mais engajadas e amplas
de seus seguidores.
Uma das grandes contribuições da obra de Jacques Maritain, no livro “O
Homem e o Estado”, é justamente a busca de uma síntese entre os direitos
e garantias individuais, conquistados ao longo dos séculos XVII e XVIII,
com os direitos sociais, econômicos e culturais e, vale dizer também, com os
direitos do trabalho – sindical e previdenciário – e com os direitos dos pobres,
traduzidos hoje nas políticas de inclusão social e na publicização das políticas
de assistência social, de transferência de renda e da segurança alimentar e
nutricional, buscando um equilíbrio que muitos julgavam impossível.
Na verdade, os direitos individuais pressupõem uma redução do Estado,
para que as pessoas possam exercer seus direitos, principalmente os relacio-
nados ao comércio e à propriedade, que tiveram muita força neste período
histórico. Os direitos sociais, econômicos e culturais, que visam proteger
os trabalhadores e os economicamente mais fracos, pressupõem uma ação
mais vigorosa do Estado. Propõem um Estado intervencionista para esta-
belecer um equilíbrio maior no mercado e nas relações sociais de modo a
disciplinar o funcionamento das instituições no sentido de garantir o bem
comum, a justiça social e os direitos dos mais fragilizados em face do poder,
do dinheiro e do Capital.
Esse fato levou alguns autores a afirmar que havia aí uma aparente
contradição e Maritain teve um papel importante para esclarecer que esse
equilíbrio, dentro da tradição do personalismo comunitário, era mais do que
possível, era necessário. Ou seja, defende um Estado que respeite a liberdade,
o espaço das pessoas, das famílias, das organizações não governamentais e
dos movimentos sociais, que seja um Estado não opressor, mas, ao mesmo
tempo, seja democraticamente forte para promover o desenvolvimento inte-
gral de que fala o Papa Paulo VI em sua Encíclica sobre o desenvolvimento
dos povos.

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Nesse sentido, a referência do autor a Maritain leva também a um resgate


da obra de São Tomás de Aquino, grande referência na obra maritainiana, e,
nessa mesma linha, da obra de Aristóteles que foi o grande pensador comuni-
tário. Na obra do filósofo grego, certamente mais do que na tradição cristã,
há uma ênfase maior na ideia da comunidade quando Aristóteles afirmava
que uma pessoa fora da comunidade era ou um santo, ou um monstro. O
coletivo prevalece sobre o individual. São Tomás de Aquino, resgatando
essa dimensão e interpretando-a dentro da tradição cristã, disse: “Todo bem
da parte se ordena ao todo e que o bem comum se há de preferir sempre
ao bem privado”. O professor Wambert destaca essa compreensão ao fazer
referência a Maritain quando este afirma que “a pessoa deve buscar servir a
comunidade e ao bem comum aspirando sua própria plenitude”.
Por essa matriz do pensamento de Maritan, senti necessidade, ao longo
do livro do professor Wambert, de um desenvolvimento mais profundo da
questão da comunidade, de enveredar e problematizar essa dimensão. Mas
o autor fez opção pela pessoa. “Só a partir da pessoa humana o bem comum
torna-se inteligível”. Pela matriz aristotélica-tomista presente no personalismo
comunitário, penso que há dimensões não excludentes, mas complementares
entre pessoa e comunidade. Não há uma dimensão de superioridade de uma
sobre a outra. O bem comum, nessa perspectiva, deve ser pensado a partir
da pessoa humana, sim, mas também da sociedade, das relações sociais, dos
conflitos, das tradições, da cultura, dos valores.
Há importantes avanços no livro do professor Wambert e ele propõe
a criação de uma justiça social, incorporando um tema novo, da maior
relevância, que é a questão ambiental, associada à questão social. É fato
que hoje vivemos um desafio fundamental nesses dois níveis. Temos um
bilhão de pessoas excluídas e que devem ser incorporadas aos padrões
básicos de consumo de bens e serviços, hoje indispensáveis à dignidade e
à realização dos valores fundamentais da pessoa, da família e da comu-
nidade. Mas também sabemos que o planeta apresenta sinais crescentes
de vulnerabilidade com relação ao aquecimento, à escassez de recursos
naturais não renováveis, ao cansaço da terra em várias regiões, ao processo
de desertificação, ao comprometimento de recursos hídricos, à qualidade de
vida cada vez mais degradada nas grandes cidades e regiões metropolitanas,

XVI
Prefácio

inclusive convidando a um sério exercício de normatização jurídica das


relações humanas nesses espaços. Por isso, o desafio é compatibilizar essas
duas demandas essenciais para nossa sobrevivência: como incorporar um
bilhão de pessoas a bens e serviços, preservando e resgatando as condições
de vida já tão agredidas em todo o planeta, freando a tendência de consumo
exacerbado.
A integração social está também inserida na recente tradição cristã.
Especialmente o Papa João Paulo II, na sua Encíclica comemorativa dos 20
anos da Populorum Progressio, incorpora a tradição do ensino social, como
questão da maior relevância para o futuro da humanidade, e a questão do
meio ambiente, para a preservação da vida, das espécies e, sobretudo, da
espécie humana.
Dentro da concepção Humanista, fundada nos valores evangélicos e da
Tradição Cristã, o autor resgata o condicionalismo de valores que surge com
a lei fundamental de Bonn em 1944, tendo aí o seu paradigma. A questão dos
valores coloca-se como um tema fundamental para o autor e, de resto, para
toda a tradição na qual ele se fundamenta. A sociedade vai além de relações
materiais e pressupõe que as pessoas estabeleçam padrões de convivência
fundados em valores como a solidariedade, a justiça, o respeito, o compro-
misso com a vida e com as gerações futuras, e que transcendam as condições
imediatas do existir de cada pessoa e mesmo de cada família e comunidade.
Assim, as pessoas devem buscar relações cada vez mais civilizadas ou civiliza-
tórias no campo político, social, econômico, cultural e ambiental, fundadas
em uma compreensão transcendente da vida e da existência.
Outra discussão essencial é a da democracia, que é um valor funda-
mental, mas que nos remete a uma discussão mais ampla: que democracia?
Nesse campo, o professor Wambert faz uma referência sobre a democracia
participativa que é importante avaliar. Ele analisa a democracia delibera-
tiva, com base em um tratado de Luis Fernando Barzotto sobre o tema:
“A democracia deliberativa é a que está prescrita nas constituições ditas
teleológicas ou finalísticas. Naquelas que determinam não apenas quem
governa, como se governa, mas para quem se governa. Fixando, portanto,
a democracia constitucional do tipo deliberativa e entendida como exercício
coletivo da razão prática”.

XVII
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É um dado interessante, no qual eu concordo com ele. Essa percepção


de democracia deliberativa está próxima do que chamamos de democracia
participativa, que vivenciamos a partir de uma experiência concreta de orça-
mento participativo, que é um debate que deve ser retomado agora, numa
perspectiva do planejamento participativo. A discussão é importante e nos
provoca a pensar em formas de radicalizar as experiências participativas na
perspectiva de aperfeiçoar os modelos democráticos. Além do orçamento,
podemos discutir também os planos plurianuais e as leis de diretrizes orça-
mentárias com a maior participação possível da sociedade. É uma questão
que se abre agora com o desenvolvimento local regional, com a participação
dos atores locais regionais na definição das prioridades, nessa ideia de que os
recursos, sendo escassos, quanto mais as pessoas participarem para definir
as prioridades, melhor. E a participação da sociedade também implica um
combate duro à corrupção e à burocracia, pois as pessoas acompanham a
execução daquilo que decidiram: a execução das obras, a implementação das
políticas públicas. Esse é o quadro que envolve a discussão sobre democracia
participativa e democracia deliberativa, demonstrando a dimensão do tema
abordado pelo professor Wambert.
A democracia participativa ocupa um lugar importante para a construção
da cidadania. As pessoas expandem a consciência, a sua compreensão da vida
e da realidade, a dimensão da solidariedade que eu, por exemplo, vivi muito
em Belo Horizonte quando era prefeito. Vi comunidades pobres abrindo mão
de reivindicações mais do que justas, legítimas e necessárias em prol de outras
comunidades mais pobres ainda. Os delegados do orçamento participativo
visitavam todos os locais onde estavam sendo demandados os investimentos
públicos e construíam uma percepção coletiva de bem comum, percebiam
demandas para além das próprias e decidiam não a partir de seus próprios
interesses, mas numa avaliação mais ampla das necessidades das pessoas, a
partir daquelas mais urgentes.
Acredito que a democracia participativa certamente tem um papel impor-
tante e penso que a participação maior da sociedade vai, inclusive, ajudar
a melhorar a democracia, porque as pessoas vão além do voto. O cidadão
também participa, exerce os seus direitos e deveres da cidadania. E a dig-
nidade humana, de que o autor fala, manifesta-se exatamente no exercício

XVIII
Prefácio

da cidadania, numa compreensão política mais elevada, além dos direitos


fundamentais, nesse direito também de participação.
Nesse ponto, há uma discussão importante posta pelo autor: “A natu-
reza dialética da verdade política exige o pluralismo, na medida em que as
deliberações de muitos tendem a estar mais próximas da verdade do que
a decisão de um só. Como afirma Aristóteles, muitos são os indivíduos
que, separadamente, não têm qualidades, mas que, quando estão reunidos,
podem ser melhores desde que considerados em conjunto”. É um processo
de expansão de consciências. “A razão prática é a mentalidade alargada”, na
expressão de Barzotto, “pois possibilita assumir o maior número de pontos
de vista possíveis”.
A discussão da democracia participativa e da democracia deliberativa
trabalha justamente no campo de aperfeiçoamento dos valores democráti-
cos. São respostas possíveis a uma concepção mínima de democracia que
reduz a cidadania ao processo eleitoral. Passa-se a discutir a qualidade dessa
representação, em como ampliar sua legitimidade por meio de processos mais
participativos. A democracia participativa coloca a ênfase da democracia no
processo de deliberação, na qualidade desse processo – tanto melhor quanto
mais participativo e mais plural – e não só nos resultados das decisões. Com
isso, propõe um aperfeiçoamento constante do processo democrático. Mas
também faz isso baseado na crença de que as pessoas são capazes de discutir
os problemas de sua comunidade, de sua cidade e de seu país. Podemos
vê-la, ainda, como a crença na capacidade da pessoa humana que alcança
seu potencial de mudança da realidade no contexto de uma construção
coletiva e compartilhada.
As questões apresentadas pelo professor Wambert ao longo de seu livro
colocam em discussão as muitas contribuições que o Ensino Social da Igreja
pode trazer para a vida pública e para a vida política. É um livro que enseja
muitas reflexões, apresenta questionamentos, provoca debates. Mantendo a
coerência com o melhor da tradição cristã, que seja um livro a estabelecer
diálogos.

Patrus Ananias
Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

XIX
Apresentação

A solidariedade em todas as suas dimensões

F
ui apresentada com mais intimidade às teorias do primado da pessoa
humana durante minha faculdade de Economia. Desde então, acom-
panhei o realismo com que seus fundamentos se comprovaram em
todas as áreas com as quais tive contato pessoal, profissional ou político.
A história das civilizações confirmou que, quanto menos a sociedade crê
na pessoa, menos evolui. E, ao contrário, quanto mais valoriza e sublinha
o papel da pessoa humana, mais avança. E isso vale para a economia, a
política, a cultura, a educação, enfim, para todos os campos que compõem
o contexto da vida.
Entretanto, compreensões equivocadas e muitas vezes preconceituosas
acabaram por relegar as teses personalistas, durante muito tempo, a um
papel meramente coadjuvante. O postulado do indivíduo humano che-
gou a gerar – se ainda não gera, eventualmente – reações intolerantes e
de inspiração notadamente totalitária. Basta ver que grandes genocídios
palmilharam seus caminhos de horrores exatamente pela supressão das
liberdades individuais. Ora, compreender o ser humano como criatura
única, exclusiva, inigualável e inimitável – divina, para os que assim creem
– é apenas reconhecer o que demonstra a própria natureza. É perceber os
fatos tais quais eles são, conclusão que se sobrepõe a visões ideológicas de
qualquer procedência.
Enfim, seja como indivíduo isolado, seja como parte de um ente organi-
zado, não podemos melindrar e diminuir o papel da pessoa. E, ao enaltecer
esse legado da antropologia personalista, adentramos no plano dos valores.

XXI
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Essa compreensão não significa subjugar a dimensão social da nossa espécie,


mas valorizá-la dentro de um contexto de liberdade responsável e de solida-
riedade. Corresponde, isto sim, a rejeitar tanto os vícios do individualismo
pessoal quanto os do individualismo coletivista. Afastar, enfim, tantos ismos
de incidência nefasta em nossa história.
Todo esse valioso legado intelectual é resumido no princípio fundamen-
tal da dignidade da pessoa humana, donde surgiram e se fundamentaram
pressupostos corolários e fundantes da civilização democrática, tais como a
liberdade, a solidariedade, a subsidiariedade e o bem comum. Diria mais: a
ética sequer teria encontrado pilares sobre os quais sustentar-se senão através
desse caminho percorrido pelas teorias humanistas.
Se a pessoa não valesse, a barbárie estaria instalada. Política, por óbvio,
não haveria. Se a pessoa não valesse, a economia ficaria sempre refém de
soluções frias e dissociadas da realidade. O egoísmo e a falta de criatividade
deixariam a humanidade numa miséria sem fim, infinitamente superior ao
já preocupante estágio atual. A cultura, por sua vez, seria ocupada por um
vácuo. Se a pessoa não valesse, nem mesmo a condição humana poderia
ser invocada.
Veja-se, portanto, que não estamos diante de um tema cuja relevância
é apenas afeita ao ambiente acadêmico. O posicionamento frente a essa
pauta gera um bom prognóstico para saber, por exemplo, se um político
irá adotar posturas realistas, se deixará que a sociedade faça a sua parte, se
conterá os ímpetos despóticos e totalizantes tão comuns às redondezas do
poder, se tolerará a divergência, se respeitará a harmonia e a paz social. Na
economia, dirá se o Estado vai ter um olhar inclusivo, se o empresário agirá
com ética e consideração, se o sindicato tolerará as escolhas individuais, se a
regulação do mercado não fará sucumbir empreendedores e, modernamente,
se a responsabilidade fiscal tomará forma de valor estruturante, sinônimo
de boa governança.
O livro do professor Wambert Gomes Di Lorenzo, reconhecido inte-
lectual do Rio Grande do Sul, gaúcho por adoção e vocação – condição,
a propósito, que nos assemelha ainda mais –, caminha por essas estradas
instigantes. Com sólida sustentação filosófica e robusto suporte histórico, o
escritor mostra que todo sistema ético pressupõe uma visão do ser humano.

XXII
Apresentação

E, a partir de tal postulado, faz o leitor deparar-se com a dura constatação


de que a questão social ainda não foi bem resolvida, em grande medida,
porque a humanidade não compreendeu nem superou suficientemente a
chaga do individualismo.
É de Solidariedade, portanto, que o professor Wambert vai falar.
Solidariedade em todas as suas ricas e variadas dimensões. E aconselho ao
leitor não perder nenhuma delas.

Yeda Rorato Crusius


Governadora do Estado do Rio Grande do Sul,
economista, professora universitária e ex-ministra do Planejamento

XXIII
Introdução

E
ste trabalho apresenta três proposições principais: as causas
históricas e atuais da grave questão social que tem assolado
a humanidade; o paliativo a ela aplicado sob o nome de
Estado Social ou do welfare; e, a superação deste pelo Estado pós-
social, ser informe carente de fundamentos que configurem sua
existência, determinem seus fins e orientem sua ação.
O Estado de Solidariedade é, de todos os projetos para um
Estado pós-social, o que mais ecoou no cenário político, jurídico
e social desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Seus funda-
mentos inspiraram o constitucionalismo de valores que tomou
conta do ocidente e influenciou constituições do mundo inteiro
após a grande hecatombe do século XX.
A perversidade dos lúgubres acontecimentos do século passado
demonstrou que o problema do homem não se resume no seu bem-
estar material e que a ética social teria que ir mais além do homem
econômico para atingir o homem integral, isto é, a pessoa humana.
Teoria do Estado de Solidariedade: da dignidade da pessoa
humana aos seus princípios corolários pretende oferecer uma con-
tribuição na compreensão do modelo antropológico que orientou
o constitucionalismo do pós-guerra e que tem inspirado o Estado
pós-social. De forma genérica, este livro trata dos princípios gerais
que fundamentam e orientam o Estado e que regulam suas rela-
ções com a sociedade e as pessoas, mas, em particular, de que

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Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

forma alguns modelos aplicáveis a essas relações podem contribuir para a


solução da questão social.
Seu pano de fundo, portanto, será essa pobreza radical, essa exclusão
social e as escandalosas condições de vida em que jaz boa parte da popula-
ção do planeta, correntemente denominada de questão social ou do welfare.
Tentar compreender as causas mais profundas do problema e propor soluções
práticas é o que se pretenderá.
Na mesma proporção em que a existência de um problema social é uma
constatação ordinária, tentar compreendê-lo desde suas causas mais pro-
fundas não tem sido usual. Também, ainda que o senso comum constate a
crise do Estado social, não é trivial a percepção de que ela não é apenas uma
crise institucional ou fiscal, mas, sobretudo, de racionalidade ético-política.
Por ser, via de regra, tratada a partir dos seus efeitos, tornou-se corrente
abordar a questão social como um problema meramente econômico. Isso
ocorre não apenas no plano teórico, como é a práxis política nos dois últimos
séculos.
A tentativa mais conhecida de resolver a questão social dá-se pelo Estado
liberal assistencial do welfare, conhecido pela expressão genérica de Estado
Social. Essa tentativa, como é notório, vive seu momento de fracasso. É a
célebre crise do Estado Social.
Ocorre que tanto a questão social quanto o fracasso do Estado Social
têm a mesma causa fundamental: uma matriz antropológica individualista.
Percebida a questão social com toda a sua complexidade histórica e o
malogro do Estado Social, sobra para este trabalho o desafio de demonstrar
que a questão social é, antes de tudo, uma questão do homem. Um problema
que se manifesta na economia e na ética social, mas que tem no seu cerne
um problema antropológico. Em síntese, o problema da miséria no mundo
globalizado tem raízes epistemológicas e reside numa atrofiada ideia acerca
do ser humano e de sua natureza.
Entendido que toda ética pressupõe uma antropologia, o trágico erro
epistemológico que resultou na questão social, resultou em problemas de
natureza ética social e política, igualmente graves.
Para abordar as três proposições a que se pretende – a questão social, o
insucesso do Estado Social e propor o Estado de Solidariedade –, este trabalho

2
Introdução

foi dividido em duas partes. A primeira dedicada à questão social e ao


problema antropológico em si.
Essa primeira parte ficou dividida em três capítulos intitulados A questão
social, O homem e A dignidade da pessoa humana.
No capítulo 1, pretende-se demonstrar que o problema social tem raízes
antropológicas e que a antropologia de base do Estado Social representa um
desvio epistemológico grave, porquanto se funda em uma visão atrofiada
da natureza humana.
No capítulo 2, abordamos a natureza humana a partir do conceito de
pessoa: aquela substância individual de natureza racional, consciente e livre,
que tem uma natureza tanto individual quanto social e que possui uma dig-
nidade que lhe é intrínseca. Isto é, dentro do todo da comunidade política,
cada pessoa é um todo em si. Aquilo que Maritain chamou de paradoxo da
vida social: a pessoa é um todo dentro de outro todo.
No capítulo 3, tratar-se-á da dignidade da pessoa humana. O valor abso-
luto da vida humana que será apresentado enquanto conceito e expressões,
bem como o seu impacto na ética econômica, política e social.
É na segunda parte que serão tratados os impactos da antropologia per-
sonalista na solução da questão social e sua influência naquela instituição
especializada nos negócios públicos que responde pelo nome de Estado, colo-
cando-a a serviço da pessoa humana no fomento do bem de todos e de cada um.
São os princípios corolários da dignidade da pessoa humana que deli-
neiam o Estado de Solidariedade e que orientam a democracia personalista.
Modelo de Estado e tipo de regime político capazes de propiciar a realiza-
ção desta dignidade, princípio que reclama a democracia como condição
necessária para sua realização. Dignidade que implica os princípios do bem
comum, de subsidiariedade e de solidariedade, triplex instrumental da sua
concretização.
A exposição trilhará por um caminho argumentativo orientado por um
princípio consequente da dignidade da pessoa humana e conformador da
democracia personalista: o princípio de unicidade dos princípios personalistas.
O triplex principiológico refere-se à realidade social no seu conjunto e
é empregado de modo uniforme, homogêneo e orgânico, sempre norteado
pela dignidade da pessoa humana.

3
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Esta homogeneidade refletirá imediatamente na exposição do tema, visto


que a apresentação de um reclama a exposição dos demais. Nenhum deles
pode ser demonstrado ou aplicado separadamente, ainda que tenha cada qual
sua especificidade. Mesmo que se pretenda aplicar isoladamente um deles,
seu emprego demonstrará a complementaridade e os nexos que os envolvem.
Em síntese, ao expor os três princípios decorrentes da dignidade da
pessoa humana, a segunda parte tratará dos fundamentos e fins últimos
ordenadores da vida social. E, para isso, dividir-se-á em três capítulos: O
princípio do bem comum, O princípio de subsidiariedade e O princípio de
solidariedade.
O capítulo 4, como se verá, terá uma extensão desigual aos demais,
sendo maior na dimensão. Essa assimetria dar-se-á por um motivo natural:
o bem comum, fim da comunidade política e meio para a dignidade da
pessoa, é regulado pelo princípio de subsidiariedade e tem seu fundamento
no princípio de solidariedade.
Assim sendo, boa parte dos conteúdos da subsidiariedade – capítulo 5 –
e da solidariedade – capítulo 6 - encontrar-se-ão difusamente revelados no
capítulo sobre o bem comum. Em compensação, alguns esclarecimentos sobre
a aplicação do bem comum dar-se-ão nos capítulos sobre a subsidiariedade
e a solidariedade. No método, trata-se de uma manifestação do princípio de
unicidade dos princípios personalistas.

4
A questão
Capítulo
1
social

A
questão social consiste nas escandalosas condições de vida
sob as quais jaz boa parte das pessoas humanas. Se, em
sua gênese, era um fato tipicamente europeu, hoje é um
fenômeno mundial que se alastra e se intensifica na mesma medida
em que se consolida o processo de globalização.
O que na origem era um problema do proletariado ocidental,
hoje, alcança o mais ermo aborígine no mais remoto torrão do
planeta. O que era questão operária tornou-se questão do homem.
Por outro lado, a questão social é o maior desafio da civilização
desde o impacto inicial da sociedade industrial, que intensificou o
processo político que o favoreceu. Ainda que o progresso humano
tenha alcançado seu avanço em velocidade sem precedentes, ele
e a maior parte das riquezas que produz não chegam ao alcance
de grande parte da população mundial.
Já no seu tempo, Alexis de Tocqueville1 relatava a concentra-
ção de renda na Inglaterra e a total dependência da caridade estatal
de parte da população da região mais rica e desenvolvida do país,
e constatava também, que os países mais mergulhados na miséria
tinham o menor número de indigentes, enquanto nos povos de
admirável opulência uma parte da população se via obrigada a
depender da providência alheia.

1. Tocqueville, Alexis de. Democracia y pobreza: memoria sobre el pauperismo. Madrid:


Trotta, 2003, p. 49 e s.

5
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

1.1. A ORIGEM DA QUESTÃO SOCIAL


A questão social surge do conflito entre trabalho e capital que, por
sua vez, tem sua origem na revolução industrial. Esta, por seu turno, é a
experiência mais expressiva de um complexo teórico que, tanto no campo
político quanto no econômico, tem sua base na antropologia individualista.

1.1.1. A teoria política do individualismo


Enquanto teoria política do individualismo, o liberalismo pretendia limi-
tar os poderes do Estado absolutista na sua fase final, denominada Estado de
Polícia, separando Estado da sociedade a partir de um tríplice antagonismo:
sociedade versus Estado, política versus economia, moral versus direito.
O Estado de Polícia, segunda fase histórica do absolutismo, consistia na
responsabilidade do soberano pela felicidade do indivíduo, podendo, em
nome deste objetivo, intervir nas relações privadas. A fase que o precedeu é
denominada Patrimonial, na qual o Estado era considerado como patrimônio
do soberano. O Estado de Polícia logrou substituir a justificação divina pela
sua fundamentação racional. Foi nele, também, que ressurgiu a ideia romana
do fiscus, na qual o Estado assume capacidade jurídica, podendo, entre outras
coisas, contrair obrigações contratuais com os indivíduos.
Da separação entre Estado e sociedade resultou o que os franceses cha-
maram de État Constitutionnel2 e os alemães de Rechtsstaat 3, designação
de um ente político que tem como fim principal a garantia dos direitos
fundamentais do cidadão, direitos anteriores ao próprio Estado e que são
o último sentido de sua limitação, surgindo como direitos contra o Estado
e como garantia da autonomia privada contra a vontade do soberano. Tal
experiência política foi possibilitada pelas três grandes revoluções liberais: a
inglesa (1688), a americana (1776) e a francesa (1789).
A separação entre política e economia sintetiza o projeto burguês de
autonomia e autorregulação econômica que reduz as funções do Estado à

2. Estado Constitucional.
3. Estado de Direito. Tecnicamente, também podemos distinguir o Estado Liberal francês do alemão
como Estado de Direito Material e Estado de Direito Formal. O primeiro buscava concretizar-se
politicamente através de direitos fundamentais determinados pela Constituição; o segundo buscava,
nas técnicas jurídicas, garantir a efetivação destes direitos.

6
A questão social | C A P Í T U LO 1

garantia da segurança e da propriedade, devendo a vida econômica ser regida


pela dinâmica do mercado4.

1.1.2. O capitalismo industrial


Neste ambiente ocorre a revolução industrial. Fenômeno tanto econô-
mico quanto técnico que, da aplicação à produção das descobertas científicas,
transformou matérias-primas até então inexploradas ou utilizadas limitada-
mente in natura em produtos manufaturados e maximizou a produtividade
com a utilização de máquinas que possibilitaram a produção da mesma
quantidade de bens recorrendo a menos quantidade de mão de obra.
A possibilidade de a tecnologia estar a serviço do lucro atraiu a burguesia
comercial para investir o capital na estrutura industrial. Originada na época
dos grandes descobrimentos, tratava-se de comerciantes que, paulatinamente,
foram se contrapondo à nobreza feudal e que construíram sua riqueza sobre o
comércio interno e externo – depois do período das grandes navegações – e,
depois dos descobrimentos, sobre a exploração das colônias.
Dessa sucessão de acontecimentos, decorre o acúmulo de capital neces-
sário para dar partida ao processo de industrialização. Desde o início do
século XVI, acontece a transferência do interesse privado – e do próprio
capital – com o aparecimento da indústria têxtil, coureira e metalúrgica. Mas
é também aí que se evidencia o conflito que, particularmente, nos interessa.
Tal processo econômico exigiu a limitação política e resultou na limita-
ção econômica das corporações de ofício medievais, gênese de um conflito
que, além de econômico – a partir da superação do valor do trabalho pelo
capital –, é também social – a partir do surgimento de uma nova classe de
patrões, oriunda de artesãos promissores que passaram a empregar outros
artesãos, entrando em confronto direto com os limites estabelecidos pelas
corporações.

4. Inspira-se na ideia de Adam Smith (The Wealth of Nations), a qual chamou de naturalismo otimista,
fruto da escola clássica inglesa, que parte da noção de uma ordem natural para concluir que a livre-
iniciativa dos indivíduos e o funcionamento espontâneo do mercado poderão gerar vantagem para
todos. Nesse sistema de liberdade natural o soberano teria apenas três funções: proteger a sociedade
da violência externa, administrar rigorosamente a justiça e criar instituições públicas que jamais
atraiam a atividade privada. Ou seja, cabe ao Estado prestar serviços apenas naquelas áreas em que
seja impossível a obtenção de lucro por parte na iniciativa privada.

7
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

1.1.3. O conflito entre capital e trabalho


Por que o capitalismo industrial teve sua causa eficiente na burguesia e
não na nobreza? Em primeiro lugar, pelos tipos distintos de riquezas acumu-
ladas. Enquanto a nobreza acumulara patrimônio imobilizado, a burguesia
acumulara capital com a liquidez necessária. Em segundo, na identificação
do liberalismo como ideologia da burguesia, uma vez que, para a nobreza,
riqueza significava poder, e, para a burguesia, significava mais riqueza, tor-
nando o capital não apenas riqueza, mas fonte de mais riquezas, bem como
de organização social – com liberdade individual e de mercado –, utilizando
o trabalho em troca de salário. Para tal, era – ainda que contraditório com a
pretensão de liberdade – necessária a limitação das organizações de classe5.
O golpe mais contundente contra a solidariedade social, quer dizer, con-
tra a harmonia nas relações e mútua colaboração entre patrões e empregados,
ocorre, justamente, pela extinção das sociedades intermédias, fundamentais
na construção do bem comum. Como se verá mais adiante, quando tratar-
mos do princípio de subsidiariedade, a presença das sociedades intermédias
é fundamental na construção de um modelo de sociedade que distribua de
forma justa os bens fundamentais para que todos e cada um realizem sua
dignidade.

1.1.4. As condições de vida dos trabalhadores


O mesmo Laissez faire, laissez passer que fazia apologia da liberdade
absoluta causou as desigualdades desastrosas que geraram a questão social. A
mesma que ensejará o surgimento do chamado Estado Social e de sua versão
hodierna Estado Democrático de Direito6 .
Para Jacques Maritain, a efemeridade do sucesso do liberalismo reside
na queda do modelo com o qual rivalizou. Segundo afirma, o liberalismo é

5. Influenciado por tal ideia, até os Estados Pontifícios suprimiram as corporações de artes e ofício,
no pontificado de Pio VII (1800-1801), que foram restauradas por Pio XI. Os Estados Pontifícios
se estendiam por toda a cidade de Roma. Após a tomada de Roma (1870-1871), que foi declarada
capital do Reino da Itália, a soberania do Estado eclesiástico ficou restrita à Colina do Vaticano e a
alguns prédios na cidade.
6. A expressão Estado Democrático de Direito consta apenas em três constituições do mundo: na
do Brasil (art. 1o), na de Portugal (art. 2o) e na da Espanha, como “Estado Social e Democrático de
Direito” (art. 1o).

8
A questão social | C A P Í T U LO 1

uma força puramente negativa que vivia do obstáculo e por ele era sustentado.
Caído o absolutismo, esvai-se a força necessária para sua subsistência7.
Karl Marx, quando de seu exílio na Inglaterra, descreve as inumanas
condições de trabalho dos operários: com jornada de doze horas diárias e
oito horas aos sábados; pedreiros com jornada das onze da noite às seis da
manhã; modistas trinta horas seguidas; operários das minas de carvão doze
horas, mais as extraordinárias; outros trabalhadores tinham jornada de vinte
horas; crianças de sete anos com jornada das seis da manhã às nove da noite;
as fábricas tinham metade de seus funcionários menores de treze anos e o
restante não passava dos dezoito; as crianças dormindo em fábricas e não
mais que três horas por noite; além dos salários irrisórios8.
Exceto as condições de trabalho descritas por Marx, vale a imparcial e
aguda descrição das condições de vida dos trabalhadores ingleses feita por
Dostoiévski no seu ensaio Notas de inverno sobre impressões de verão.
Na sua prosa leve, Dostoiévski narra sua viagem a algumas capitais da
Europa no verão de 1862, em particular a Londres, onde visitou os bairros
populares de White Chapel e High Market. Conta que, como um mar, milhões
de operários espalham-se pela cidade no sábado à noite para exaurir o já
insuficiente resultado do trabalho semanal comendo e bebendo bestialmente
como quem busca compensar, ainda que de forma fugaz, o abandono e a
miséria, com uma espécie de baile de escravos brancos9. Conclui que aquilo
que ali se vê nem é mais povo, mas uma perda de consciência, sistemática,
dócil e estimulada, verdadeiros párias10.

1.1.5. A crítica socialista


Como se sabe, dessa terrível realidade resulta a crítica socialista que, antes
de Marx, tem sua origem na França e Inglaterra, gerando, nessa última, uma
práxis mais objetiva que fecundou o cooperativismo inglês e uma forte orga-
nização sindical liberada pela lei de 1824 e que teve como expoente Robert

7. Maritain, Jacques. Humanismo integral. São Paulo: Dominus, 1936, p. 125.


8. Marx, Karl. O capital. Livro I, c. 7.
9. Dostoiévski, Fiódor. O crocodilo e notas de inverno sobre impressões de verão. Tradução de Boris
Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 113.
10. Id., ibid., p. 116. Nas páginas seguintes, Dostoiévski demonstra a partir de cenas do cotidiano a
situação socialmente calamitosa dos operários ingleses.

9
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Owen (1771-1858) e, na França, Saint-Simon (1760-1825), Bouches (1796-


1865), Fourrier (1772-1837), Sismondi (1773-1842) e Cabet, que defendiam a
ideia da reforma social mediante a associação voluntária de patrões e operários.
Além desses, destaca-se Proudhon (1809-1865), que, mais que socialista, era
anarquista, de quem Marx herdou a ideia de que a propriedade é um roubo.
Essa primeira fase Marx denomina socialismo utópico, ao qual irá contrapor
o seu socialismo científico.
Marx propõe uma análise da história a partir da dialética do conflito
entre capital e trabalho nas obras Manifesto comunista (1848), Luta de classes na
França (1850), O 18 Brumário de Louis Bonaparte (1852), Contribuição à crítica
da Economia Política e O Capital (1867)11. Em sua crítica ao liberalismo, Marx
absolve moralmente os patrões, afirmando que a exploração que praticam não
resulta de uma maldade, mas é uma exigência própria das estruturas e relações
de produção do liberalismo. A exploração impele as classes por elas oprimidas
a se tornarem protagonistas da transformação social. Para Marx, isso acontecia
em cada momento da história. No seu tempo, aplicava-se ao proletariado.
Entretanto, a causa maior da queda do capitalismo seria uma auto-
destruição gerada por suas próprias estruturas, pois um capitalista sempre
sucumbiria perante outro no afã insaciável do lucro. Marx decretou o fim
da propriedade atribuindo a sua extinção ao próprio capitalismo: “nós não
nos preocupamos em aboli-la, o desenvolvimento da indústria se encarrega
disso e disso todos os dias”12.
Para Marx, a história da humanidade é sintetizada na história dessa luta,
na qual há apenas uma substituição de classes e de formas de opressão. A
revolução tinha a tarefa de estabelecer o coletivismo no qual o fim da pro-
priedade determinaria o fim das classes sociais e onde cada um trabalharia
conforme sua capacidade e receberia conforme sua necessidade.
Por si mesmo, depois de constatada sua aptidão para a exploração do
indivíduo, a desigualdade, a injustiça, o imobilismo social e a aguda con-
centração de riquezas, o liberalismo entrou em crise na primeira metade do
século XX.

11. De O capital, Marx só publicou um volume. Os outros dois foram publicados por Engels em
1885 e 1894.
12. In: Lefort, Claude et al. Dicionário das obras políticas, p. 785.

10
A questão social | C A P Í T U LO 1

Da tensão dialética entre liberalismo e socialismo, dá-se a síntese social-


democrata – também chamada de socialismo democrático e democracia
social: direitos e liberdades, igualdade, propriedade privada limitada pela
sua função social, democracia, controle do poder econômico.
Desse modo, tal qual o modelo que tentou corrigir, o Estado Social,
ainda que tenha o mérito de mitigar os desvios originais do liberalismo,
falhou enquanto modelo. A raiz do problema? Sua antropologia.
Ainda que a síntese política pretendida tenha buscado fundir as princi-
pais virtudes do liberalismo e do socialismo, ela – por sua natureza de síntese
– não tratou e, portanto, não solucionou o principal problema das duas
matrizes teóricas: seus modelos antropológicos deficientes e incompletos,
deformadores e redutores do homem.
A crise do Social é a crise do homem e a questão social é, na sua base e
no seu todo, a questão do homem. Este será o tema das partes que se seguem.

1.2. A ATUAL QUESTÃO SOCIAL E A CRISE DO ESTADO


A crise do Estado Social é constatação trivial na Filosofia e na Ciência
Política, na Filosofia do Direito e na Teoria do Estado. Tem sido objeto
de especulações que abordam os seus mais variados aspectos, tais como a
insuficiência da previdência pública, o desemprego, a miséria absoluta, a
distribuição de renda etc.
O Estado liberal-democrático, liberal assistencial do welfare, chegou,
como tantas outras organizações políticas da modernidade, à crise da moder-
nidade13. Tem como fatores internos a crescente sensação de frustração e
impotência para resolver os grandes problemas sociais mediante os sistemas
políticos entendidos tradicionalmente; a perda do consenso sobre objetivos
comuns; a rejeição ao sistema fiscal – que representa o sentido moderno de
cidadania. Como fatores externos, os que derivam da competência interna-
cional: redefinição de fronteiras, relações entre nações e regiões e crescimento
dos movimentos migratórios14.

13. Chalmeta, Gabriel. La justicia política en Tomás de Aquino: una interpretación del bien común
político. Pamplona: EUNSA, 2002, p. 14.
14. Donati, P. La Cittadinanza societaria. Roma-Bari: Laterza, 1993, p. 5. Apud: Chalmeta, La justicia
política…, cit., p. 14.

11
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Crawford Brough Macpherson comenta o muito que se tem escrito nos


últimos tempos sobre a dificuldade de se encontrar uma base teórica firme
para o Estado liberal-democrático15.

1.2.1. A crise do Estado Social


Mas o que vem a ser um Estado Social? Uma sociedade política que
tem como princípio o da felicidade geral ou da utilidade? Um Estado que
objetiva realizar a máxima satisfação dos seus cidadãos? Um Estado que tem
como função proteger os direitos das minorias? Uma sociedade securitária?
Um Estado Providência? Parte do corpo que tem como fim o bem comum
da sociedade?
Em que pese sua origem histórica, sobre a expressão Estado Social pesa
uma liberdade semântica tal que deixa apenas, como mínimo comum con-
ceitual, a preocupação com a questão social.
A multiplicidade de significados dados ao termo decorre da multipli-
cidade de meios que as mais diversas experiências políticas têm se servido
para tentar resolver o problema social.
Deduz-se, então, a partir desta pluralidade, que a crise do Estado Social
não é apenas fiscal, mas tem razões teóricas.
A inconsistência semântica é efeito de causa mais profunda: a crise con-
ceitual. Perde-se o significado quando um conceito se esvazia. Hannah
Arendt o demonstra ao tratar do esvaziamento do conceito de autoridade
que dá causa aos atuais e confusos usos e significados do vocábulo16.
Por conseguinte, a crise não reside nos instrumentos, mas nas matrizes
teóricas, notadamente no modelo antropológico que fundamenta todas as
experiências de Estado Social ao longo da história.
A crise do Welfare State, como dito, não apenas é uma crise institucional
ou fiscal, mas, sobretudo, de racionalidade ético-política17. A desordem desse
tipo ideal gerou as três grandes tribulações que tem enfrentado ao longo
de sua existência: o terror político, o horror social e o fascínio socialista.

15. Macpherson, C. B. A teoria da política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke (tradução
de Nelson Dantas). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 13.
16. Arendt, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 128.
17. Cf. Chalmeta, La justicia política…, cit., p. 15.

12
A questão social | C A P Í T U LO 1

Também gerou o esgotamento do modelo de justiça, apoiado em uma matriz


teórica que tem por base um modelo antropológico que é o motivo original
do seu fracasso: sua matriz individualista18.

1.2.2. Raízes epistemológicas da crise


No plano gnosiológico, o individualismo procede do racionalismo
moderno e gera um Estado Social a partir de um humanismo cujo modelo
de homem é meramente hipotético, uma natureza humana ideal.
Assim, a tese matricial do Estado Social é do homem enquanto um
indivíduo proprietário de si mesmo19 e não como parte de um todo moral
ou de um todo social mais amplo. A liberdade reside na propriedade de si
e de suas capacidades. A sociedade é vista, assim, como um conjunto de
indivíduos livres e iguais que se relacionam entre si como proprietários de
suas próprias capacidades. A vida social é reduzida à relação de trocas entre
proprietários e o Estado, instrumento para proteção dessa propriedade e para
uma pacífica relação de trocas.
Uma das consequências de tal antropologia é a construção de um ideal
de bem tipificado como máxima satisfação dos desejos individuais, isto é,
uma visão individualista fundada em categorias numéricas e matemáticas
cuja realização é um problema mais de natureza tecnológica do que ética 20.
O individualismo assume, assim, a sua vertente mais aceita e que não
só tem resistido ao longo do tempo, como tem sido o maior obstáculo da
solidariedade social: o utilitarismo.

1.2.3. O individualismo utilitarista


Há, dessa forma, uma visão de bem que depende exclusivamente de
unidades observáveis e mensuráveis de felicidade21, ou seja, uma identidade
entre valor e valia e um primado do dado empírico sobre a pessoa humana.

18. Tal matriz antropológica liberal tem sua origem no Iluminismo. Cf. Santos, Francisco de Araújo.
O liberalismo. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1991, p. 27.
19. A qualidade possessiva do individualismo liberal reside na ideia do indivíduo como sendo
essencialmente proprietário de sua própria pessoa e de suas próprias capacidades, não devendo nada
à sociedade por elas. Cf. Macpherson, C. B. op. cit., p. 13.
20. Cf. Chalmeta, La justicia política…, cit., p. 12.
21. Chalmeta. La justicia política…, cit., p. 21.

13
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Daí restar fora do debate político o questionamento sobre os meios e a defi-


nição do que vem a ser máxima satisfação dos desejos humanos. Por exemplo,
se será dado um peso maior a alguns bens humanos de natureza material e
hedonista – poder de compra, quantidade de determinados bens de consumo
– ou de natureza cultural e espiritual – índice de alfabetização, estatística
de famílias que permanecem unidas, por exemplo22.
Tal modelo leva a ignorar aspectos menos visíveis da vida boa que se
situam no plano moral; como também, pela racionalidade matemática, dá
ideia de finitude aos valores políticos, o que torna inaplicável qualquer fun-
damento axiológico para vida social.
O esgotamento do Estado Social, sobretudo na sua versão utilitarista,
teria como causa principal a lógica matemática para determinar o que é
politicamente justo. Esse tipo de racionalidade torna o Estado incapaz de
proteger os direitos das minorias. Leva a mensurar o valor dos bens de
dois cidadãos com o dobro do bem de um só, tornando lógico, legítimo e
obrigatório sacrificar o bem de um indivíduo ou de uma minoria em face
do bem da maioria 23.
Conforme Chalmeta, essa matemática individualista que libera o indi-
víduo a tomar como legítimos seus fins mais egoístas, por óbvio, torna
inexequível uma ideia de justiça política assentada no bem comum24.
Regras resultantes do querer individual e não de uma ordem ética objetiva
jamais poderão resultar de um acordo, pois esse está inviabilizado na origem,
e qualquer consensus sobre justiça procedimental só é possível a partir do
reconhecimento de uma verdade prévia sobe o bem comum25.

1.2.4. A tentativa de John Rawls


Vem do pensamento de John Rawls (A Theory of Justice, 1971) a tentativa
mais vigorosa de remir o Welfare State, apresentando, segundo ele próprio,
uma alternativa às doutrinas tradicionais do utilitarismo, do intuicionalismo
e do contratualismo.

22. Id., ibid., p. 19.


23. Id., ibid., p. 22.
24. Id., ibid.
25. Id., ibid., p. 27.

14
A questão social | C A P Í T U LO 1

A ideia fundamental de justiça para Rawls é a imparcialidade (Justice


as Fairness)26, pois tem a ver com o modo como as instituições sociais mais
importantes distribuem os direitos e deveres fundamentais e determinam a
divisão das vantagens provenientes da cooperação social.
Sugere Rawls uma posição original de igualdade como alternativa ao estado
de natureza hobbesiano, na qual, pelo hipotético véu da ignorância, seria
possível determinar os princípios básicos de justiça a partir de uma posição
original de imparcialidade.
O véu da ignorância é um método, um instrumento para atingir a impar-
cialidade. É entendido como situação hipotética a partir da qual se pode
chegar a um acordo sobre os princípios de justiça 27.
Entre as características essenciais dessa situação hipotética destaca-se
a situação de ninguém conhecer seu lugar na sociedade, a posição de sua
classe ou o status social e de ninguém conhecer sua sorte na distribuição dos
dotes e habilidades naturais, sua inteligência, força e coisas semelhantes28. É
necessário, assim, para se chegar à imparcialidade, que as partes façam um
esforço racional para decidir os princípios gerais da maneira como decidiriam
se não tivessem acesso a determinadas informações sobre as condições de
sua existência e consequentes projeções para o futuro.
Todavia, ocorre que, como demonstra Pierre Rosanvallon, no que diz
respeito às prestações do Welfare State, o véu da ignorância não era tão hipo-
tético assim. Com efeito, era um fato que sustentava a sociedade securitária
ou o chamado Estado Providência.

1.2.5. A sociedade securitária


O Estado Providência permitia uma distribuição homogênea dos princi-
pais riscos da existência. O seguro seria uma perspectiva solidária do contrato
numa perspectiva individualista de solidariedade, uma mão invisível da
solidariedade29 motivada pela ignorância do indivíduo acerca da sua própria

26. Rawls, John. Justice as Fairness: a restatement; edited by Erin Kelly. Cambridge: Harvard University
Press, 2001. Cf. também A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1999.
27. Rawls, John. A Theory of Justice. Cit., n. 3, § 3.
28. Id., ibid.
29. Cf. Rosanvallon, Pierre. A nova questão social. Brasília: Instituto Teotônio Vilela, 1998, p. 32.

15
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

condição humana e de seu futuro. De fato, tratava-se de uma solidariedade


simulada, porquanto o indivíduo buscava um bem privado absolutamente
divorciado do bem comum.
O seguro é, portanto, uma tentativa de mitigar a base individualista da
ideia liberal de justiça e uma tentativa de conciliar a solidariedade com a res-
ponsabilidade individual. Porém, como distinguir diante do crescimento das
legiões de miseráveis do século XIX, sobretudo nos países industrializados,
a desventura imerecida da privação sofrida pelo imprevidente, o calculista
ou o ocioso? Como questiona Alexis de Tocqueville: “quem é tão ousado ao
ponto de deixar morrer de fome o pobre porque morre por própria culpa?”30.
O seguro pretendia adequar um direito a uma conduta, tendo a respon-
sabilidade individual como um limitador da assistência pública. O seguro
social não era uma assistência, um socorro, mas a execução de um contrato
em que o Estado e os cidadãos estão igualmente implicados, ao tempo que
era um novo caminho para empreender políticas sociais sem questionamen-
tos de natureza jurídica ou moral, um sistema de seguro social permitiria
afugentar a ameaça socialista.
O modelo securitário é a base do Estado Providência. Nele há implícito
um princípio de justiça e solidariedade, repousado na ideia de que os riscos
eram, em grande parte, de natureza aleatória e estavam repartidos igual-
mente. Para Rosanvallon, é uma demonstração de que o hipotético véu da
ignorância de Rawls era real31.

1.2.6. O rasgo do véu


O véu da ignorância, para Rawls, é, na opinião de Rosanvallon, uma
constatação dos fundamentos da sociedade securitária. Em que pese, na
teoria de justiça de Rawls, ser uma ficção, na sociedade securitária era o que
a mantinha.
Entretanto, o véu rasgou-se.
A pseudossolidariedade da sociedade securitária subsistia em uma con-
dição de homogeneidade dos riscos individuais. A opacidade, a ignorância

30. Cf. Tocqueville, Alexis de. Democracia y pobreza, cit., p. 65.


31. Id., ibid., p. 20.

16
A questão social | C A P Í T U LO 1

era uma condição implícita do sentimento de imparcialidade32, em uma


concepção de justiça que consistia na legítima distribuição dos riscos.
O avanço tecnológico possibilita, agora, o conhecimento acerca de
fatos da condição do indivíduo, permitindo inclusive alguns prognósti-
cos sobre sua própria existência. Na ótica dessa justiça contratual, será
justo ao indivíduo consciente não ter propensão genética a determinada
doença, grave e dispendiosa, pagar as mesmas parcelas de seguro de saúde
daquele que a ela está condenado? E se o indivíduo sabe que gozará de sua
aposentadoria muito menos tempo que outros, deveria submeter-se a uma
contribuição igual?
O rasgo do véu da ignorância determina o fim de uma justiça securitária
e matemática, restando apenas um conceito político e circunstancial.
Encurralada, resta para a seguridade social a única saída viável: a
solidariedade.

1.2.7. A estatização da solidariedade


Não é nova a preocupação de atenuar os danos que o individualismo
infligiu na dignidade dos próprios indivíduos. Tocqueville, na obra
Democracia e pobreza, escrita entre 1830 e 1835, faz detalhada descrição do
sistema de leis beneficentes inglesas, denunciando que tal sistema excluía
a sociedade, restando uma relação entre Estado e indivíduo que cria uma
pseudossolidariedade, a qual, em lugar de aproximar, opõe os indivíduos
e as classes.
Há, segundo o autor, dois tipos de beneficência: a caridade, fundada em
uma virtude privada, e a responsabilidade social, baseada em uma assistência
pública legal33. Afirma ser a Inglaterra o único país da Europa, àquela época,
a aplicar em grande escala um sistema legal de assistência pública.
Percebe-se, ao ler a obra de Tocqueville, que já o sistema inglês daquele
século estava fadado ao fracasso devido à inaplicabilidade de sua visão de
homem, porquanto incompleta. Afirma o autor que o sistema de assistência
social, ao contrário do que pretendia, foi causa do agravamento da pobreza.

32. Id., ibid., p. 56.


33. Cf. Tocqueville, Democracia y pobreza, cit., p. 61.

17
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Um sistema legal que assista indistintamente qualquer indivíduo, indepen-


dentemente da causa de seu infortúnio, aniquila a dignidade daqueles que
pretende proteger34. Ou seja, a beneficência pública inglesa teria como fruto
a indignidade humana, a privação da liberdade, o estímulo ao ócio e a
recompensa à má conduta35.
Segundo Tocqueville, a beneficência pública privaria as relações sociais
da sua moralidade, estabelecendo relações nas quais a carga tributária levaria
a alguns sentirem-se estorvados e aos beneficiados uma acomodação em
sua própria condição de vida, o qual também creditaria exclusivamente ao
Estado, e não ao contribuinte, o alívio de suas dores36.
A beneficência privada, ao contrário, estabeleceria vínculos preciosos
entre ricos e pobres, porquanto os ricos a praticam por causa da sorte do
seu semelhante, e os pobres recebem uma prestação que não tinham direito
de exigir e que tampouco esperariam obter37.
De fato, a avocação pelo Estado das tarefas de solidariedade teve efeito
contrário, pois, aniquilando o princípio de subsidiariedade, representou a
própria ruína da solidariedade social.
Solidariedade é a determinação firme de se empenhar pelo bem comum,
ou seja, o bem de todos e de cada um. Solidariedade tem dois aspectos, sendo
virtude moral e princípio social. Quer dizer, é tarefa exclusiva da sociedade
da qual o Estado é mero instrumento e, não, protagonista.
Solidariedade implica uma responsabilidade de todos por todos, um
reconhecimento da dignidade do outro, possível apenas se superarmos a
hipotrofia da visão antropológica do liberalismo e se enxergarmos o homem
em sua totalidade, em sua integralidade: enquanto pessoa humana.
A verdadeira solidariedade, fundada na dignidade da pessoa, leva ao
reconhecimento do outro; ao respeito aos valores autênticos e às culturas; à
autonomia e à determinação de cada um; e a superar uma visão individualista
de bem.

34. Id., ibid., p. 64.


35. Tocqueville afirma que só há dois motivos para um homem vencer sua tendência natural à ociosidade: a
necessidade de sobreviver e o desejo de melhorar as condições de sua existência. (Id., ibid.)
36. Id., ibid., p. 68.
37. Id., ibid.

18
A questão social | C A P Í T U LO 1

1.2.8. As relações entre pessoa, Estado e sociedade


A solidariedade social resulta de um modelo antropológico próprio, ante-
rior ao individualismo que o precede em cerca de dois milênios na história:
o personalismo.
No humanismo personalista, o homem, mais que indivíduo, é pessoa.
A pessoa humana é causa final e eficiente de todo o ordenamento jurídico.
Ponto de partida para a compreensão e execução do bem comum – em
oposição ao bem limitado, setorial, corporativo ou individual –, a condição
de pessoa humana é também o único elemento comum dentro de uma
diversidade e multiplicidade de realidades humanas individuais.
A crítica de Tocqueville ao sistema público legal de assistência social da
Inglaterra e a exaltação que fez da beneficência privada levanta a questão
fundamental para a democracia social, que são as relações entre pessoa,
Estado e sociedade. A lógica é evidente: a solidariedade, em sentido próprio, é
maior na medida do protagonismo da sociedade através de pessoas e grupos.
As relações entre Estado, pessoa e sociedade devem ser organizadas pela
delimitação dos papéis, funções e competência de cada um dos entes.
As relações entre indivíduos, famílias, organizações intermediárias e
poderes públicos das respectivas comunidades políticas devem estar regula-
das e modeladas, no plano nacional, segundo o princípio da subsidiariedade.
Também, à luz do mesmo princípio, devem disciplinar-se as relações dos
poderes públicos de cada comunidade política com os poderes públicos da
comunidade internacional.
A questão social teve raiz no Ocidente e se alastrou pelo mundo. O Estado
Social, tal qual a crise que o gerou, é uma resposta tipicamente ocidental.

1.3. O PROBLEMA SOCIAL ENQUANTO PROBLEMA


ANTROPOLÓGICO
O problema do homem é anterior ao capitalismo e à questão social,
entretanto, a questão social é uma aguda crise do homem. É a relação entre
questão social e problema antropológico o tema a ser tratado a seguir.
Proposto que o problema do Estado Social reside na sua matriz indivi-
dualista, importa entender que seu erro fundamental é confundir indivíduo
com individualismo.

19
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

1.3.1. O individualismo possessivo


Macpherson o qualifica de individualismo possessivo38, afirmando ser ele
a unidade básica do pensamento político inglês dos séculos XVII e XIX.
Segundo afirma, exerceu papel tão importante, que John Locke funda-
mentou a propriedade privada naquela propriedade que é a mais privada de
todas: o próprio corpo39.
Ele operou uma rejeição aos conceitos tradicionais de sociedade, justiça
e lei natural, deduzindo os deveres políticos dos interesses e das vontades
de indivíduos dissociados. Ainda que o posterior individualismo puritano
tente dar ênfase à igualdade do valor moral de todos os seres humanos, ele
não se afasta de suas fontes lockianas e hobbesianas.
John Locke, teórico da Revolução Gloriosa, tornou-se, segundo Henrique
Cláudio de Lima Vaz, o pensador que melhor traçou com exatidão a imagem
do homem liberal, ou do burguês, que resume sua fé no otimismo natura-
lista, postulado da bondade natural e na afirmação da socialidade natural
que opunha ao estado de natureza hobbesiano40. Thomas Hobbes, por sua
vez, foi responsável pela aplicação de um modelo mecanicista de Estado ao
tempo em que sua ideologia do individualismo – que teve Locke como um
dos primeiros teóricos – foi elaborada e se tornou a doutrina antropológica
dominante dos tempos modernos41.
Mesmo a doutrina utilitarista que pretendeu superar as anteriores é ape-
nas uma reafirmação dos princípios individualistas. Jeremy Bentham supôs
que o ser humano em suas relações políticas deveria ser tratado como um
calculista de seus próprios interesses42.
O utilitarismo identifica o fim da sociedade política e suas institui-
ções com a máxima satisfação dos desejos. Propõe uma ideia de bem-estar
maximamente difuso, com uma visão individualista de bem fundado em
categorias numéricas, cuja realização prática seria um problema de natureza
meramente tecnológica. Assim, uma sociedade política seria tanto mais justa

38. Cf. nota 20.


39. Arendt, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 123.
40. Vaz, Henrique C. L. Antropologia filosófica I. São Paulo: Loyola, 2001, p. 87.
41. Id., ibid., p. 91.
42. Macpherson, Crawford. B. Op. cit., p. 14.

20
A questão social | C A P Í T U LO 1

quanto mais alto fosse o número de bens que se conseguem produzir e


garantir, e o seu princípio ético-político será o da felicidade geral ou bem-estar
coletivo: “se a felicidade de uma pessoa é um bem para essa pessoa, a felicidade
geral é um bem para a coletividade”43.
Mas o problema mais grave é a carência de sentido das filosofias uti-
litaristas, em que o fascínio pela técnica sugere pensar todas as coisas em
termos de meios e fins, em categorias cuja validade obtém seu fundamento na
experiência da produção. Com tal padrão de referência, todo fim alcançado
transforma-se, imediatamente, em meio para um novo fim, aniquilando o
sentido e colocando em xeque o próprio valor da utilidade. Problema central
de um progresso desatinado no qual a finalidade de hoje se torna meio de um
fim posterior44 e deixa sem resposta uma questão absolutamente necessária
acerca do conteúdo do útil.
O individualismo pretende a emancipação do indivíduo de qualquer
vínculo social a partir de uma negação do universal que existe no indivi-
dual45. Segundo a grave crítica de Jacques Maritain, trata-se de uma falsa
filosofia de vida que fazia da liberdade humana a regra soberana de toda a
ordem moral e social46. Trata-se, ainda, de uma filosofia da liberdade que
fez de cada indivíduo abstrato e de suas opiniões a fonte de todo direito e de
toda verdade47, de uma doutrina anárquica que nega que o homem pertença
inteiramente à sociedade política48.

1.3.2. A identidade epistemológica e material entre


individualismo e coletivismo
Denunciado o individualismo, o lugar-comum sugere que se passe a
apontar os erros e contradições do socialismo, de sua raiz totalitária e de sua
antropologia negadora da substancial individualidade do homem.

43. J. S. Mill (Utilitarianism, 1861, in Collected Works of John Stuart Mill. Toronto-Londres: Univ. of
Toronto, 1969, v. X, p. 234), apud Chalmeta, Gabriel. La justicia política…, cit., p.18.
44. Cf. Arendt, Hannah. Entre o passado e o futuro, cit., p. 115.
45. Cf. Gonella, Guido. Bases de uma nova ordem social: anotações às mensagens de Pío XII. Petrópolis:
Vozes, 1947, p. 13.
46. Maritain, Jacques. Os direitos do homem e a lei natural. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967, p. 52.
47. Maritain, Jacques. Humanismo integral, cit., p. 125.
48. Maritain, Jacques. La persona y el bien común. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967; Buenos Aires:
Club de Lectores, 1981, p. 77.

21
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Entretanto, como afirma Hannah Arendt, é o utilitarismo liberal,


e não o socialismo, que é forçado a manter uma ficção comunística
insustentável acerca da unidade da sociedade. Tal ficção estaria pre-
sente na maioria das obras sobre economia. Por trás da pretendida
harmonia de interesses está sempre a ficção comunística de um interesse
único que poderá ser chamado de welfare ou commonwealth. Observa
a autora, que não Marx, mas os próprios economistas liberais foram
levados a introduzir tal ficção que supõe a existência de um único
interesse da sociedade como um todo, enquanto uma mão invisível guia
o comportamento dos homens e produz a harmonia de seus interesses
conf litantes 49.
Nicolau Maquiavel, inspirador de boa parte da filosofia política poste-
rior – Hobbes, Rousseau, Hume, Spinoza, Montesquieu, Hegel, Gramsci,
dentre outros –, é, na opinião de Maritain, o primeiro a propor uma
doutrina política de conteúdo totalitário. Seu pessimismo invoca verda-
des empíricas incontestáveis que desesperam o homem em proveito do
Estado que o criará, o guiará, o libertará da anarquia de suas paixões e lhe
imporá uma vida reta e heroica50. Destarte, a mão invisível tem natureza
totalitária.
Entretanto, não são apenas estes os pontos que identificam individua-
lismo e socialismo, liberalismo e comunismo, como se vê a seguir.

1.3.3. O totalitarismo liberal


De ora em diante, empregar-se-á a expressão totalitarismo como substan-
tivo que designa o conteúdo material do ente totalitário e totalitário como
adjetivo que serve para indicar um ente, seja governo ou regime político,
bem como sistema, movimento, ideologia, doutrina ou teoria política
que pressuponha integralismo social, homogeneização das crenças
individuais e consequente supressão da liberdade.

49. Arendt, Hannah. A condição humana, cit., p. 53. Hannah Arendt baseia seu argumento na tese
de Gunnar Myrdal. The political element in the development of economic theory (1953).
50. Maritain, Jacques. Por una filosofía de la persona humana. Buenos Aires: Club de Lectores, 1981,
p. 178.

22
A questão social | C A P Í T U LO 1

De per si, a própria Revolução Francesa foi totalitária na sua essência e na


sua forma que, inaugurando o terror político como técnica de persuasão, fez
da harmonia de interesses e do pensamento único uma imposição de Estado.
Ademais, o individualismo burguês desemboca fatalmente no estatismo.
Pois, como o homem considerado como uma individualidade material é
parte de um todo, e como o Estado passa a substituir a verdadeira comu-
nidade, todas as responsabilidades do indivíduo são transferidas para o
Estado51. A irresponsabilidade individual gira em um ciclo vicioso, sendo,
ao mesmo tempo, causa e efeito de um Estado de tipo plutocrático52.

1.3.4. O materialismo liberal


Individualismo e coletivismo, como visto, compartilham as mesmas
fontes epistemológicas, porquanto resultam de um racionalismo radical no
qual o sujeito é o tirano do objeto e que, pretensamente antropocêntrico, faz
do próprio homem a principal vítima de sua obstinada especulação.
Entretanto, além desta base gnosiológica comum às duas doutrinas
aparentemente antípodas, individualismo e coletivismo partem do mesmo
princípio, compartilham a mesma causa primária: o materialismo.
Todo individualismo é materialista. Pois, como se verá no próximo
capítulo, a individualidade se assenta na materialidade. Sem matéria não há
indivíduo e o individualismo, na sua essência, é uma obsessão pela matéria.
Obcecado pelo indivíduo, o individualismo mata o homem reduzindo-o a
sua materialidade.
Ainda que seja tema para análise posterior, vale antecipar que, sendo o
indivíduo a atomização corporal do gênero, tanto no homem como em todos
os seres corporais – átomo, minerais, plantas e animais –, a individualidade
tem por raiz ontológica primária a matéria53, o que torna todo materialismo
individualista e todo individualismo materialista54.

51. Cf. Maritain, Jacques. La persona y el bien común, cit., p. 99.


52. Id., ibid.
53. Cf. Maritain, Jacques. La persona y el bien común, cit., p. 40.
54. Segundo Hannah Arendt, para o jovem Marx, “o homem é essencialmente um ser natural dotado
de faculdade da ação – ein taetiges Naturwesen –, e sua ação permanece ‘natural’ porque consiste no
trabalhar”. (Cf. Entre o passado e o futuro, cit., p. 67).

23
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Maritain afirma existirem três formas de filosofias materialistas da


sociedade: o individualismo burguês, o individualismo comunista e o anti-
comunismo totalitário ou ditatorial55.
Como lembra Edith Stein, ainda que a matéria seja o princípio da indi-
vidualização56, no plano antropológico, o indivíduo isolado é uma abstração,
já que sua existência é uma existência no mundo e sua vida é uma vida em
comum. O que o homem é no mundo social não é o único fator determinante
da configuração do seu ser, mas codetermina o mesmo57.
Segundo Stein, o ônus de não poder sustentar o individualismo foi a
causa do fracasso das antropologias fundadas nas ciências naturais58.
Mas, não é apenas o indivíduo uma abstração, o homem também o é.
O vocábulo homem, ainda que seja um substantivo, não pode ser tomado
como um substantivo concreto, porquanto não designa nenhum ser con-
creto, nenhum objeto real, mas substantivo abstrato visto que designa uma
qualidade, ou melhor, um estado, um conjunto de qualidades de um ser
que é humano.
O homem não existe. Não se pode dizer ei-lo aqui, ei-lo ali. Não é um
objeto real, senão uma imagem intelectiva, uma representação mental de
um ser abstrato insuscetível de delimitação.
Também Jonathan Swift, na carta a Alexandre Pope que introduz o seu
fabuloso As viagens de Gulliver, afirma odiar o homem, mas amar de todo
coração a Pedro e a João59.
O objeto do ódio de Swift não é um ser concreto, mas um conjunto de
qualidades que podem ser negativas, detestáveis e que, ainda assim, serão
próprias do humano.
Na realidade jamais encontraremos o homem, senão apenas pessoas
concretas. O homem subsiste na pessoa humana. Tema que trataremos no
próximo capítulo

55. Id., ibid., p. 98. Mantém-se aqui a proposição original por questão de fidelidade à ideia de
Maritain, ainda que se prefira a clara distinção entre totalitarismo e autoritarismo, lugar comum da
ciência política atual que Maritain parecia ignorar.
56. Stein, Edith. La estructura de la persona humana. Madrid: BAC, 2003, p. 114.
57. Id., ibid., p. 165.
58. Id., ibid., p. 28.
59. Swift, Jonathan. As viagens de Gulliver. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2005, p. 13.

24
O
Capítulo
2
homem

H
omem é também substantivo genérico que designa um ani-
mal. Pessoa é um nomen dignitatis que expressa o humano
na sua concretude, uma existência única e singular, uma
individualidade que só atinge sua plenitude ontológica em soli-
dariedade com seus semelhantes e com o mundo que o cerca.
Um ser no mundo cuja construção do ego passa pelo caminho
da alteridade.
Antecipada parte das conclusões, a partir daqui tentar-se-á
visitar uma questão que acompanha a humanidade desde a origem
da filosofia: a natureza humana.

2.1. O QUE É O HOMEM?


A palavra homem vem do latim homo, que por sua vez se
radica em humus – terra – e no ablativo humo – da terra – e se
funda na alegoria judaico-cristã do primeiro homem, Adão60, que
foi feito de argila61. Como expressam as palavras bíblicas do livro
do Gênesis: pois tu és pó e ao pó tornarás62; de Coélet: tudo vem

60. Do hebraico, o homem: adam, que vem do solo: adamah. Substantivo comum que
se tornou o nome próprio do primeiro homem (Cf. nota t de Gn 2, 27, de A Bíblia de
Jerusalém). Adão ainda ligado aos vocábulos hebraicos adamá: solo vermelho; adom:
vermelho; e, dam: sangue. Todos os textos bíblicos aqui referidos são da tradução direta
do grego, hebraico e aramaico de A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1985.
61. Cf. Gn 2, 7.
62. Gn 3, 19.

25
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

do pó e tudo volta ao pó63; de Jó: o homem voltaria a ser pó64; e do salmista:


voltando ao seu pó65.
No grego, a palavra correspondente é anthropos66 . Aristóteles identificará
anthropos com zôon – animal – em sua dupla definição do homem: zôon
politikón e zôon lógon ékhon. Afirmava um ser que atingia sua plenitude com
a vida na pólis e o uso da razão expressada pelo discurso. Tomás de Aquino,
o maior intérprete de Aristóteles, também irá afirmar que o termo animal se
aplica propriamente ao homem67. Há um consenso assentado no fenômeno
que, tradicionalmente, define animal como um ser capaz de sentir e de se
locomover livremente no espaço68.
Homem, como lembra Spaemann, é um conceito de uma espécie bio-
lógica, que fez com que a filosofia antiga e medieval o incluísse entre os
animais69. As ciências naturais adotaram o conceito e afirmaram homo como
gênero da espécie homo sapiens, pertencente à ordem primates e ao reino
animalia.

2.1.1. A antropologia animalista


Esse conceito complexo, ainda que inaugural, dá origem a uma teoria
sobre o homem que poderíamos chamar de antropologia animalista, por-
quanto, se limitou à unilateralização da dimensão animal do homem.
Esta, aqui por necessidade da exposição nomeada animalista, é descrita
por Karol Wojtyla como cosmológica. Segundo ele, tal antropologia, que teve
o mérito de separar a espécie – anthropos – do gênero mais próximo – zoon,
resta incompleta por não determinar o que é irredutível ao homem, mas tem
o mérito de analisar o homem a partir do cosmos70.
Dito que toda ética pressupõe uma antropologia, uma ética de base
animalista traz consequências para a vida política, social e econômica. A

63. Ecl 3, 20b.


64. Jó 34, 15.
65. Sl 104, 29b.
66. άνθρωπος.
67. Cf. Aquino, Tomás de. Summa Theologiae, I, q. 76, a. 3, rep.
68. Stein, Edith. La estructura de la persona humana, cit., p. 53.
69. Spaemann, Robert. Personas: acerca de la distinción entre “algo” y “alguien”. Pamplona: EUNSA,
2000, p. 30.
70. Wojtyla, Karol. El hombre y su destino. Madrid: Palabra, 2005, p. 27.

26
O homem | C A P Í T U LO 2

partir do seu determinismo materialista, influencia desde as questões atuais


de bioética aos temas mais relevantes do Estado Social, como a previdência,
por exemplo. Do ponto de vista da ética social e política, diz respeito a temas
que lhe são fundamentais como a liberdade.
Há quem aceite como suficiente uma animalização do homem e com-
preenda como completa uma teoria antropológica que o reduza ao seu
gênero biológico. Há ainda, quem deduza desta antropologia dita animalista
padrões e sistemas éticos.
Nos tempos atuais, um dos maiores expoentes de tal modelo é o filósofo
francês Jacques Derrida.

2.1.2. A descontinuidade entre o homem e o animal


Derrida afirma não haver uma ruptura, uma descontinuidade entre
o homem e o animal71. Manifesta serem irrelevantes as diferenças entre o
homem e o animal e ser possível um sentimento de alteridade com um gato,
por exemplo72.
Mas, é o homem um animal?
É na simbologia do vestuário o próprio do homem, que Derrida acaba
por reconhecer a descontinuidade que negou existir73.
Para Derrida o próprio do homem parece ser um pormenor irrelevante
que apenas distingue o homem de um conjunto de viventes cuja pluralidade

71. Lit.: “Nunca acreditei, pois, em uma continuidade homogênea qualquer entre o que se chama o
homem e o que ele chama o animal. (...) Porque não há nenhum interesse em uma discussão quanto
à existência de alguma coisa como uma descontinuidade, uma ruptura e mesmo um abismo entre
aqueles que se chamam homens e o que os ditos homens, aqueles que se nomeiam homens, chamam
animal. Todo mundo está de acordo sobre isto, a discussão está encerrada de antemão, e seria preciso
ser mais tolo que os animais para duvidar”. (Derrida, Jacques. O animal que logo sou. São Paulo:
Editora UNESP, 2002, p. 59).
72. Id., ibid., p. 15.
73. “No centro ótico de uma tal reflexão se encontraria a coisa – e aos meus olhos o foco dessa
experiência incomparável que se chama nudez. E que se acredita ser próprio do homem, quer dizer,
estranha aos animais, nus como são, pensamos então, sem a menor consciência de sê-lo.
(...) Vergonha de quê, e diante de quem? Vergonha de estar nu como um animal. Acredita-se geralmente,
mas nenhum dos filósofos que vou questionar daqui a pouco menciona isso, que o próprio dos animais,
e aquilo que os distingue em última instância do homem, é estarem nus sem o saber. Logo, o fato
de não estarem nus, de não terem o saber de sua nudez, a consciência do bem e do mal, em suma.
Assim, nus sem o saber, os animais não estariam, em verdade, nus. Eles não estariam nus porque eles
são nus. Em princípio, excetuando-se o homem, nenhum animal imaginou se vestir. O vestuário seria
o próprio do homem, um dos próprios do homem”. (Id., ibid., p. 16 e s.)

27
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

não se deixa reunir em uma figura única da animalidade simplesmente


oposta à humanidade74. Porém, a natureza que menciona, em verdade,
expressa o abismo ontológico que separa a natureza humana da natureza
dos demais seres animados.
O próprio do homem é sua consciência moral. Não há moralidade na
ação de um touro que, não reconhecendo mais a mãe, com ela é capaz de
copular. Foge da moral o comportamento de uma vaca que, por causas
hormonais, não reconhece sua cria e não a alimenta. Não se pode chamar
sadismo a zoofagia, a avidez do predador que sequer espera a presa morrer
para devorá-la.
E por que não havendo moral, não haverá tipicidade em tais ações?
Simplesmente porque não há conduta. E por que não há conduta? Porque
não há a razão e não havendo a razão não haverá consciência e liberdade.
Conduta é uma ação consciente e livre, portanto, racional, logo, exclusiva-
mente humana. Não há conduta na ação animal. Ele não sabe que está nu.
A consciência e a liberdade dão ao homem a capacidade de sentir-se nu.
Um animal jamais se sentirá nu. Mas, igualmente, ele jamais estará vestido.
Qualquer vestimenta que o homem nele coloque não passará de um adorno.
Ainda que cubra seu corpo inteiro não estará vestido.
Em As viagens de Gulliver, Jonathan Swift narra que o personagem
principal faz sua última e mais importante viagem fantástica à terra dos
houyhnhnms e lá descobre que é um yahoo. Tal descoberta é o centro da
narrativa. Ela marca para sempre a vida de Gulliver que mergulhará numa
melancolia incurável, resultado da descoberta que fez sobre si mesmo.
Os yahoos eram primatas asquerosos, não apenas pela aparência e pela
fetidez, mas por reunirem todos os vícios e defeitos que pesam sobre a
humanidade. Todos, com exceção dele próprio, reconheciam Gulliver como
um yahoo, os próprios yahoos e os houyhnhnms.
Os houyhnhnms eram seres racionais, com aparência de cavalo, que,
ao contrário dos yahoos, traziam em si todas as virtudes, uma inclinação
veemente para o bem e a prática radical de uma bondade e justiça infinitas.

74. Id., ibid., p. 87.

28
O homem | C A P Í T U LO 2

Curiosamente, mesmo que racionais, conscientes, livres e, assim, provi-


dos de moral, os houyhnhnms não estavam nus. Ainda que conscientemente
despidos, não estavam propriamente nus. Mas, além da razão, o que dife-
rencia um houyhnhnm de Swift do gato de Derrida?
Os houyhnhnms estão em um estado de pureza original idêntica à de
Adão antes da queda75. O Gênesis narra que, vencida a virtude pelo vício,
o homem, envergonhado, se escondeu de Deus porque percebeu que estava
nu76. Ainda que providos de consciência moral, os houyhnhnms não per-
cebiam a própria nudez, como Adão não percebia, antes da queda, a dele.
Por mais que se esforçasse, Gulliver não conseguia ensinar-lhes conceitos
elementares como o de mentira. Como algo pode ser e não ser ao mesmo tempo?
Dele indagavam.
Como a serpente no Éden, Gulliver passou a ser a ameaça ao estado
de pureza da ordenada sociedade dos houyhnhnms e foi expulso antes que
contagiasse a perfeita ordem social que era uma clara referência à sociedade
da Ilha da Utopia de Tomas Morus.
Porém, o que mais diferencia o gato de Derrida dos houyhnhnms de
Swift? O gato é apenas um animal, o houyhnhnm é um arquétipo pessoa. Um
houyhnhnm é um ser criado pela ficção que, enquanto protótipo ontológico,
compartilha com o homem uma essência de estrutura anímica, além de ser
dotado de personalidade. O gato que fitou e constrangeu Derrida nada mais
é do que um gato. Já houyhnhnm é um arquétipo de pessoa, pessoa equina,
que seja, mas pessoa.

2.1.3. O existir humano


A palavra ser tem um significado diferente para pessoas e animais77. O
ser para a pessoa significa plenitude, para o animal significa existência. O
animal permanece indiferente ao sentido de plenitude do homem que passa
pela sua centralidade no cosmo. Não relativiza nem absolutiza a si mesmo,

75. Cf. Swift, Jonathan. As viagens de Gulliver, cit., p. 317 e s.


76. “Iahweh Deus chamou o homem: ‘Onde estás?’, disse ele. ‘Ouvi teus passos no jardim’, respondeu
o homem; ‘tive medo porque estou nu e me escondi.’ Ele retornou: ‘e quem te fez saber que estavas
nu? Comeste, então, da árvore que te proibi de comer!’” (Cf. Gn 3, 9-11).
77. Cf. Spaemann, Robert. Personas…, cit., p. 79.

29
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pois não dispõe do conceito de absoluto que é a plenitude do ser78. Por isso,
não existe a morte para o animal. Só as pessoas morrem79. Os animais, ao
contrário, são imortais.
Para Hannah Arendt, imortalidade significa continuidade no tempo80.
As pessoas são os únicos seres verdadeiramente mortais devido a que, ao
contrário dos animais, sua existência não se dá apenas como parte de uma
espécie cuja imortalidade se dá pela procriação81.
A unicidade da pessoa faz dela o ser mortal que é. A generalidade de um
animal e sua individualidade vazia, meramente material, torna-o imortal no
tempo. João e Maria serão seres exclusivos e únicos de vida efêmera como
a de todas as pessoas.
Ainda que recebam nomes próprios e sujeitos, em particular, lhe dedi-
quem alguma estima, a existência individual de um animal ocorre apenas
enquanto parte de sua espécie. Cachorro e gato permanecem para sempre,
ou até que uma hecatombe aniquile sua espécie.
Para os gregos, a ideia era tão clara que a única forma de imortalidade
era a história. Foi em nome dela que Aquiles preferiu a prematura, porém
gloriosa, morte em Troia a uma longevidade fadada à mortalidade.
No seu Zôon lógon ékho, Aristóteles afirma que os homens têm o logos,
os animais o phoné. Logos é um vocábulo que tem vários significados: razão,
verbo, palavra. Phoné é som, simplesmente.
A antropologia animalista, com seus contributos e suas limitações, será
o fundamento para a posterior antropologia personalista. Enquanto a pri-
meira – dita cosmológica por Wojtyla – busca a compreensão do homem no
mundo, a segunda busca a compreensão do homem em si mesmo82. Não se
excluindo mutuamente, a compreensão personalista do homem não contrapõe
a animalista, mas é sua interpretação83.
O personalismo pretende uma interpretação do homem baseado na expe-
riência e demonstra que ele não é apenas um gênero, mas um eu concreto, um

78. Cf. Spaemann, Robert. Felicidade e benevolência: ensaio sobre ética. São Paulo: Loyola, 1996, p. 142.
79. Cf. Spaemann, Robert. Personas..., cit., p. 121.
80. Arendt, Hannah. A condição humana, cit., p. 26.
81. Id., ibid., p. 27.
82. Cf. Wojtyla, Karol, El hombre y su destino, cit., p. 35.
83. Id., ibid., p. 34.

30
O homem | C A P Í T U LO 2

sujeito que tem a experiência de si mesmo84. Trata-se de uma teoria prática


sobre o homem que se baseia em uma dupla visão: uma teoria que indaga e
uma prática que muda85. Seu resultado prático, enquanto teoria antropoló-
gica, é uma conclusão de fácil síntese: todo homem é pessoa86; enquanto ética,
resulta numa postura: não indiferença em face do outro; e, enquanto teoria
do Estado, num resultado final: humanismo político87.

2.2. O QUE É A PESSOA HUMANA?


Pessoa é uma palavra que deriva do latim persona, traduzida do grego
prosopón88, que significa máscara, mas que também pode ser relacionada
à natureza – Hipóstase89. Era o nome dado às mascaras que os atores do
mundo clássico utilizavam no teatro, também era utilizada desde o estoi-
cismo para designar os papéis que os homens desempenhavam na vida, isto
é, um conjunto de relações que unem um homem a uma situação qualquer
e o definem a partir dela.
No filme Augustus, o primeiro imperador, a biografia do herdeiro de César
é narrada como um grande entreato de sua agonia final, como um dramático
flash-back das memórias de um moribundo. No seu leito de morte, pede que
lhe coloquem uma persona no rosto e, antes do derradeiro suspiro, suplica
um derradeiro aplauso à última cena do grande ato que foi a sua vida90.
Não obstante isso, os filósofos latinos priorizaram o sentido de substância
em detrimento ao sentido de relação – papel. Para evitar a associação de pes-
soa com máscara, os próprios filósofos gregos passaram a utilizar hypostase, o
que fortalece a ideia de substancialidade, interpretação que terá como grandes
expoentes Agostinho de Hipona91 (354-430) e Severino Boécio (475-524).

84. Id., ibid., p. 32.


85. Cf. Del Barco, José Luis. Teoría práctica de la persona. In: Spaemann, Robert. Personas…, cit., p. 14.
86. Id., ibid., p. 16.
87. Expressão original de Maritain. Cf. Os direitos do homem e a lei natural, cit., p. 51.
88. !"#$%!&'( .
89. )!*+$,-$) : A tradução literal para o latim é substantia. Plotino a utilizou para designar as três
substâncias principais do mundo inteligível: o Uno, a inteligência (nous) e a alma. Mas, nas discus-
sões sobre a Santíssima Trindade nos primeiros séculos, o termo foi utilizado para designar pessoa
(prosopopón), que por ter o significado de máscara parecia denotar uma ficção.
90. Cf. de Eric Lerner o filme Augustus, o primeiro imperador. Dir. Roger Youg. Alemanha/Itália/
Espanha: Casablanca, 2003. DVD. 167 min. Color, legendado.
91. Agostinho afirma que pessoa significa simplesmente substância. Cf. A Trindade, VII, 6.

31
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

2.2.1. Pessoa enquanto relação


Tomás de Aquino, entretanto, afirmará que o próprio Boécio consen-
tia que tudo atinente à pessoa significasse relação92. No mesmo sentido,
Maritain afirma que mascara é a primeira acepção do vocábulo persona
em Boécio, no qual pretende designar a pluralidade humana expressa na
multiplicidade de indivíduos93.
A noção de relação é constitutiva da natureza humana que, nas palavras
de Spaemann, é triplex natura personarum. A própria gramática helênica
e, posteriormente, a latina expressam essa condição relacional da natureza
humana ao classificar o pronome pessoal em três pessoas, que nada mais
são que os três papéis da pessoa94.
Pessoa é relação. O ego é uma revelação do alter. O eu, esta individuali-
dade metafísica da pessoa, no plano do conhecimento é consequência direta
do outro. É a partir do que a pessoa não é – o outro – que lhe é revelado
o que é – uma substância individual. A personalidade resulta do conjunto
de relações do indivíduo no mundo ao tempo que expressa o papel que ele
representa neste mesmo complexo.
Daí a célebre fórmula de Tertuliano sintetizar o necessário conteúdo
relacional do conceito de pessoa: Quis loquitur? De quo loquitur? Ad quem
loquitur?95.

2.2.2. Pessoa enquanto natureza


No entanto, é de Boécio a lavra da síntese mais bem elaborada para a
definição de pessoa: Persona est rationalis naturae individua substantia96 .
Boécio distingue quatro conceitos de natureza: realidades inteligíveis,
substâncias materiais, substâncias imateriais e corpos artificiais – as essên-
cias97. É no último sentido que Boécio aplica o conceito de natureza ao de
pessoa. Ao defini-la, Boécio afirma a sua essência.

92. Cf. Summa Theologiae I, q. 29, a. 4, c.s.


93. Cf. Maritain, Jacques. Por una filosofía de la persona humana, cit., p. 160.
94. Cf. Spaemann, Robert. Personas..., cit., p. 42.
95. Trad.: quem fala? De quem se fala? A quem se fala? Ad Praxean 1,4. Apud: id., ibid., p. 45.
96. Pessoa é uma substância individual de natureza racional.
97. Cf. Spaemann, Robert. Personas…, cit., p. 47.

32
O homem | C A P Í T U LO 2

A definição de Boécio é o primeiro esboço do que vem a ser a irredutibi-


lidade da pessoa. Segundo Wojtyla, ela expressa, sobretudo, a individualidade
do homem enquanto ser substancial que possui uma natureza racional, e não
um todo específico da subjetividade do homem enquanto pessoa98. Ressalta
a importância da diferença fundamental da definição aristotélica de homem
enquanto animal racional e da definição boeciana de pessoa. Em Aristóteles,
a redução do homem ao mundo é obtida definindo-o a partir do gênero mais
próximo: animal. Tal definição está ausente em Boécio99.
Boécio afirma o que é irredutível na pessoa. A irredutibilidade, segundo
Wojtyla, expressa que a pessoa não pode ser substituída por nenhuma outra
categoria100. O irredutível é, portanto, o que é fundamentalmente humano,
o que é essencial à condição humana, a sua própria natureza.

2.2.3. A irredutibilidade da pessoa humana


Cada pessoa é irredutível mesmo compartilhando com os outros uma
mesma natureza. Ser pessoa é ser único. Ninguém é pessoa de ninguém, as
pessoas existem em íntima coerência com sua distinção101.
Edith Stein demonstra que é a partir do que lhe é irredutível que a
pessoa passa a entender e a relacionar-se com o próprio substrato animal
que há nela. A pessoa não experimenta as impressões sensíveis como puros
estímulos sensoriais, senão como revestidas de uma configuração objetiva.
Não sendo um ser meramente sensitivo, a pessoa é dotada de um conheci-
mento espiritual. E é esse conhecimento que lhe permite captar o animal
que há nela mesma102.
A essência é o que caracteriza esse ser, aquilo que especifica o tipo de
ser que nele se realiza. Um ser não pode ser nada que objete sua essência.
Assim, a essência de um triângulo não pode se atualizar num ser de quatro
lados iguais. Igualmente, a essência de um quadrado não pode se atualizar
num polígono fechado com três ângulos103.

98. Cf. Wojtyla, Karol. El hombre y su destino, cit., p. 30.


99. Id., ibid., p. 30, nota 4.
100. Id., ibid., p. 19.
101. Cf. Del Barco, José Luis. Op. cit., p. 16.
102. Stein, Edith. La estructura de la persona humana, cit., p. 89.
103. Vale o exemplo de Manoel Correia de Barros: “Veja-se o miriágono, por exemplo. Pode-se afirmar

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Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Como potência, a essência de uma coisa demarca o seu ser. Não é uma
essência real como aquela a que comumente nos referimos – essa reside na
coisa em si –, mas uma essência abstrata que a tradição filosófica consagrou
como quididade, do latim quid, aquilo que é um ser.
A essência é representada por ideia universal e incontroversa a respeito
do ser, segundo a lição de Maritain. Uma ideia mínima comum que corres-
ponderá a sua natureza104. A essência é, portanto, a natureza da coisa, sua
quididade, aquilo que ela é. Destarte, descrever a irredutibilidade de um ser
é enunciar sua quididade.
Hannah Arendt negará a quididade, aquilo que chamamos de essência
abstrata da pessoa, para afirmar apenas a essência real. Ela distingue essência
humana de natureza humana, afirmando a primeira e negando a segunda,
apesar de compreender claramente a identidade que há entre essência e
natureza na metafísica clássica. O que ela afirma ser essência humana é o
que chamamos de essência real, enquanto natureza humana corresponde à
essência abstrata. Para ela, a essência humana é a essência de quem o indi-
víduo é. Esta só passa a existir depois que a vida deste se finda, restando
apenas uma biografia. Seria esta história individual a única hipótese de uma
essência humana105. Um dos fundamentos do seu argumento está na incog-
noscibilidade da natureza humana, a qual, se existisse – segundo propõe –,
só poderia ser conhecida por Deus106.

como certo que não há nenhuma figura de 10.000 lados, realmente existente; no entanto, da sua essên-
cia, – existente só no seu espírito –, o geômetra pode concluir as propriedades que teria um miriágono
que existisse na realidade”. (Lições de Filosofia Tomista. Porto: Livraria Figueirinhas, 1945, p. 147).
104. Maritain, Jacques. Elementos de Filosofia I – Introdução Geral à Filosofia. Rio de Janeiro: Agir,
2001. “Uma essência é aquilo que em qualquer objeto de pensamento é imediatamente e antes de
tudo (per se primo) apresentado à inteligência (...) essa alguma coisa apresentada imediatamente ao
espírito é uma essência (ou uma natureza)” – p. 127. “A este dado primeiro da inteligência os filósofos
dão não somente o nome de essência, mas também de quididade e de natureza” – p. 134. “Chegamos
à noção da essência propriamente dita, ou da natureza (estes dois termos podem ser tomados como
sinônimos.)” – p. 141.
105. “Em outras palavras, a essência humana – não a natureza humana em geral (que não existe),
nem a soma total de qualidades e imperfeições do indivíduo, mas a essência de quem ele é – só passa a
existir depois que a vida se acaba, deixando atrás de si nada mais que uma história.” (Arendt, Hannah.
A condição humana, cit., p. 206).
106. “Em outras palavras, se temos uma natureza ou essência, então certamente só um deus pode
conhecê-la e defini-la; e a condição prévia é que ele possa falar de ‘quem’ como se fosse um ‘quê’”
(Id., ibid., p. 16).

34
O homem | C A P Í T U LO 2

Em que pese a autoridade de Hannah Arendt, tal afirmação, além de


equivocada, destoa do conjunto do seu pensamento, porquanto mergulha
de maneira abissal no individualismo que se esforçou por refutar. Mesmo
que retomemos o conceito de natureza no tópico dedicado à liberdade
ainda neste capítulo, é mister relevar que o conceito clássico de natureza
– phisis – diz respeito ao próprio ser, percebido a partir da experiência de
si mesmo107.
Wojtyla levanta o mesmo problema presente no pensamento de Hannah
Ardent: “Então, definindo a essência do homem – não perdemos o que é
mais tipicamente humano, desde o momento em que o humano expressa e
se realiza como algo pessoal?”108. Como Edith Stein, Wojtyla apoia-se numa
análise fenomenológica a partir da qual se pode afirmar a experiência da
pessoa como experiência do irredutível. O irredutível é o que por natureza
não pode sofrer redução, que não pode ser reduzido, senão mostrado: reve-
lado. Pela própria natureza, a experiência se opõe à redução109.
Também Spaemann afirma que a vida pessoal se distingue das demais
vidas porque não pode ser descrita como tipo de vida. Alguém é pessoa por-
que tem uma natureza humana – como um modo de ser. A relação da pessoa
com sua própria natureza forma a ideia de contingência110, que a escolástica,
a partir de Avicena, articulou como diferença entre essência e existência111.
Spaemann identifica natureza com essência e a descreve como modo de
ser. Afirma, consoante a tradição, não poder haver um ser antes de um ser,
não existindo um ser da essência anterior à existência, isto é, uma existência
antes da existência. De certa forma, a questão é respondida a partir da
moderna Teoria dos Objetos que, ainda que não faça parte da metafísica

107. Cf. Spaemann, Robert. Felicidade e benevolência…, cit., p. 253.


108. Wojtyla, Karol. El hombre y su destino, cit., p. 37.
109. Id., ibid.
110. De fato o conceito de contingente já havia sido utilizado por Boécio como possibile – possível.
Mais tarde será desenvolvido pelo filósofo persa Ibn Sina – Avicena – e confirmada por Tomás de
Aquino como o que pode ser ou não ser. Entretanto, o Aquinate dá também um sentido de necessidade:
“Podem ser consideradas as coisas contingentes de duas maneiras: primeiro, enquanto contingentes.
Segundo, enquanto encerram algo de necessário: pois nada é a tal ponto contingente que não implique
alguma necessidade”. E, exemplifica: “que Sócrates corra é um fato contingente em si mesmo. Mas
a relação da corrida ao movimento é necessária. Pois é necessário que Sócrates se mova, se ele corre”.
(Summa Theologiae, I, q. 86, a. 3, rep.).
111. Cf. Spaemann, Robert. Personas…, cit., p. 85.

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Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

clássica, pensa os objetos enquanto tal, distinguindo-os em, dentre estes,


objetos reais e objetos ideais112.
Assim, as pessoas mantêm uma distância com o que são, isto é, com sua
essência. Spaemann aplica, neste sentido, contingência enquanto contingên-
cia da existência, pois as essências, enquanto ideais, são formas necessárias,
são o que são e não é necessário que existam para o serem.
Em síntese, a natureza humana é necessária à pessoa e esta é contingente
à sua natureza. Espera-se que a ideia se torne mais clara a partir da próxima
parte deste capítulo quando tratarmos da auto-objetivação enquanto atributo
da pessoa humana.
Também seguindo o método fenomenológico, Spaemann afirma que
a essência ou natureza de alguma coisa se percebe a partir daquilo que se
demonstra com mais frequência. A natureza humana, portanto, se realiza
majoritariamente como uma vida consciente de si mesma, sendo a raciona-
lidade sua causa formal113.

2.2.4. O homem e a pessoa


Retomando o argumento, potência não é a existência. Veremos que essa
separação será fundamental para a compreensão da singularidade da pessoa
e as relações que ela pode ter com sua própria natureza.
A diferença entre essência e existência corresponde, na filosofia clássica,
à diferença entre potência e ato. A essência é uma existência possível, a
existência é o seu ato. Atualizar significa, portanto, realizar, passar a existir
como tal.
No que aqui nos interessa, o homem é uma essência, a pessoa uma exis-
tência. Nos últimos parágrafos do capítulo 1, o argumento já foi antecipado:
o homem é uma abstração, a pessoa uma realidade.
A relação entre o homem e a pessoa é uma relação entre potência e ato. A
pessoa é a atualização do humano e tudo que é humano subsiste na pessoa.
Para Maritain, somente no homem o conceito de subsistência se aplica
em plenitude. Ela ocorre na subjetividade da pessoa a qual identifica com

112. Id., ibid.


113. Spaemann, Robert. Felicidade e benevolência..., cit., p. 182.

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O homem | C A P Í T U LO 2

a personalidade. É a personalidade que faz com que o ser dotado de inte-


ligência e liberdade subsista, que mantenha sua existência como um todo
independente frente ao grande todo do universo114.
Na pessoa, entretanto, a subsistência não se dá exclusivamente na maté-
ria, nem a personalidade é um conceito material. A personalidade é a sub-
sistência de um ser dotado de liberdade, de uma natureza ontologicamente
generosa no mais alto grau115. Desse modo, a subsistência do Homem – ou
da humanidade – não reside na matéria simplesmente, mas num composto
anímico que será o tema da terceira parte deste capítulo.
A personalidade não é simplesmente um dado, mas uma ação orien-
tada por um sentido de plenitude. Ainda que recebida da natureza, ela é
gerada pela conduta, pela ação consciente e livre que guia a pessoa para sua
plenitude.
Como lembra Spaemann, a pessoa não é imediatamente sua essência. Para
ela, a expressão é não equivale a uma coordenada espacial e temporal precisa,
senão a uma localização aproximada. O homem não é da mesma forma que
as demais coisas são116. Por trás da proposição está a ideia de que a perso-
nalidade consiste também numa certa imprevisibilidade da existência em
face da essência, e de que, para cada pessoa, a existência tem um significado
diferente, isto é, para cada indivíduo ser pessoa tem uma acepção diferente.
As pessoas não têm em comum ser pessoa como os homens têm em
comum ser homem. Pessoa não é um mero aspecto da essência, mas designa
uma existência individual vaga117. Pessoa é o homem vivo, já que o ser do
homem é viver, o modo de existir dos indivíduos da espécie humana.
É a pluralidade própria à existência humana que, segundo Hannah
Arendt, consiste no fato de todos os homens serem o mesmo sem serem

114. Maritain, Jacques. Por una filosofía de la persona humana, cit., p. 156.
115. Id., ibid., p. 158.
116. Spaemann, Robert. Personas…, cit., p. 31.
117. Na expressão de Spaemann: individuum vagum. Esclarece: “As pessoas se chamam pessoas como
os membros de uma família levam o mesmo sobrenome. Para cada um deles o mesmo sobrenome
significa algo distinto: para o pai, a mãe, a filha, o filho, o irmão. Não restam incluídos num mesmo
nome com um conceito geral, que é indiferente às diferenças dos sujeitos que engloba. O sobrenome,
sendo o mesmo, assinala a cada um dos que o leva um lugar determinado dentro da estrutura familiar.
Por isso, cada pessoa tem para sempre seu próprio lugar, definido por ela, na comunidade de pessoas.
Só há pessoas justamente com o seu lugar, e o lugar existe por elas”. (Personas…, cit., p. 82).

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Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

exatamente iguais, não sendo nenhuma pessoa igual a qualquer outra que
tenha existido, exista ou venha a existir118.
Todos os homens são pessoas, pois possuem qualidades que permitem
que sejam chamados enquanto tal. Mas pessoa é um substantivo que designa
não tais qualidades, mas aqueles que as têm consigo119.
Isso faz com que o ser portador da personalidade seja distinguido pelo
vocábulo alguém não meramente como pronome indefinido, mas como um
substantivo120 que indica uma existência única e indivisível121.
Pessoa é, como já afirmado, um nomen dignitatis, não um predicado.
Chamar alguém de pessoa é reconhecer-lhe um status mais alto do que
Vênus122; é ser alguém que “é o que é de outro modo como as demais coisas
e seres vivos são o que são”123.
Tomás de Aquino aceita o conceito boeciano de substância, mas afirma
ser a pessoa uma substantia prima. A palavra “pessoa” designa um homem
titular de um nome próprio. O nome pessoa não se presta para designar um
indivíduo por sua natureza, mas uma coisa que subsiste nessa natureza. Não
é, pois, o conceito de uma classe, mas um nome próprio geral124.

2.3. A NATUREZA DA PESSOA HUMANA


Resta agora compreender a natureza da pessoa, sua quididade, aquilo
que lhe é próprio, que a distingue dos demais seres, que lhe é irredutível.
Tal quididade, já delimitada por Boécio, oferece três princípios essen-
ciais – substancialidade, individualidade e racionalidade – dos quais deriva
a liberdade. Nesses quatro termos será decomposta esta terceira parte deste
segundo capítulo.
Substancialidade é o modo de ser da substância. Do latim substan-
tia, expressa aquilo que necessariamente é o que é, a essência necessária.

118. Cf. Arendt, Hannah. A condição humana, cit., p. 16.


119. Id., ibid., p. 227.
120. Enquanto substantivo: ente, pessoa.
121. Importa o crédito ao autor original, ainda que não seja possível citar uma parte específica do texto.
A distinção entre algo e alguém é o pano de fundo da obra de Robert Spaemann aqui exaustivamente
citada e compõe, inclusive, o nome da obra. Cf. Personas…, cit.
122. Del Barco, José Luis. Op. cit., p. 17.
123. Cf. Spaemann, Robert. Personas…, cit., p. 28.
124. Cf. Summa Theologiae I, q. 30, a. 4.

38
O homem | C A P Í T U LO 2

Em outras palavras, um ser que existe em si e por si mesmo. A substancia-


lidade determina a substância de uma dada porção de matéria que confere
existência ao corpo, que o compõe, isto é, o seu composto.
A substancialidade da pessoa é o seu composto, sendo, o seu, um com-
posto de um corpo e alma. Esta composição não expressa uma singela
oposição entre espírito e matéria, mas uma unidade, não das substâncias
separadas que se associam, mas uma unidade ontológica de duas partes
que se implicam necessariamente. Na pessoa humana, não existe alma
sem corpo, tampouco corpo sem alma. A dissolução do composto, do
ponto de vista ontológico, ainda que tenha implicações religiosas, resulta
na extinção do ser125.

2.3.1. O corpo
O corpo não é a essência da alma nem o inverso126. Por isso, não é a alma
ou o corpo que pertence a uma espécie, mas o composto. A alma é a forma
do corpo, pois é por ela que ele age. É o seu primeiro princípio, porque é
por ela que ele vive. Um corpo vivo é um corpo animado127. De tal sorte
que, com a morte, o corpo permanece corpo, porém desfeito o composto, é
corpo morto e não mais pessoa, mas seus restos materiais128. Para Manuel
Correia de Barros, nem o cadáver é mais corpo humano, mas um agregado
acidental de células sem unidade essencial que sequer se decompõe sime-
tricamente, mas cada parte se corrompe individualmente sem nenhuma lei
que reja o conjunto129.

125. Dada a relevância do termo, vale ressaltar que conceito de espírito será apresentado como um
atributo da alma, em que pese a variação que tem origem nas palavras bíblicas de Paulo de Tarso, que
considera o composto da pessoa em corpo, alma e espírito: “(...) e que o vosso ser inteiro, o espírito,
a alma e corpo sejam guardados” (1 Ts. 5, 23). Henrique Cláudio de Lima Vaz afirma que a pessoa
humana é um “ser-em-relação segundo a totalidade estrutural de corpo, alma e espírito” (Vaz, Henrique
C. L. Antropologia filosófica II. São Paulo: Loyola, 1992, p. 14) que formam os três níveis estruturais
de automediação do sujeito: o corpo próprio, o psiquismo e o espírito (Id., ibid., p. 21). Também Viktor
Frankl afirma ser a pessoa uma totalidade bio-psico-espiritual (Frankl, Viktor. Em busca de sentido.
Petrópolis: Vozes, 1991, p. 21).
126. Cf. Aquino, Tomás de. Summa Theologiae I, q. 75, a. 7, rep.
127. Cf. Stein, Edith. La estructura de la persona humana, cit., p. 65.
128. Id., ibid., p. 119.
129. Cf. Barros, Manoel Correia de. Op. cit., p. 242.

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Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

O corpo, sendo parte da pessoa130, não ordena a alma, mas é ordenado


por ela, pois, sendo matéria, é ordenado por sua forma131. A alma é o ato de
um corpo enquanto este corpo é sujeito dela132. Resulta disso que a figura
externa é configurada desde dentro, quer dizer, o corpo é configurado pela
alma133. Por isso, a pessoa não pode dizer eu sou meu corpo, mas eu sou em
meu corpo, da mesma maneira que não pode dizer: eu sou minha alma134.
A alma não habita o corpo, sendo apenas o seu motor, como pretendia
Platão135, de maneira que não está apenas no todo corporal, mas está totalmente
na parte136. Isto é, em cada mínima parte de um corpo a alma estará nela total-
mente137. Daí a inteligibilidade do processo de somatização, porquanto a alma
move o coração, não apenas no sentido das metáforas poéticas, mas literalmente.
Os insucessos e os sucessos da alma são sentidos no corpo e vice-versa138. A
força natural do homem é uma só139. Força espiritual e a força corporal não são
independentes entre si. O cansaço do corpo é cansaço da alma, e o cansaço da
alma é cansaço do corpo140. A força do corpo é uma só, e é força anímica. A
comum desproporção das forças nas pessoas – há indivíduos que têm tremenda
força física e vergonhosa fraqueza moral, como também o inverso141 – apenas
demonstra a totalidade que é o indivíduo em face do mundo.
Essa composição faz com que a pessoa seja um corpo material, nas
palavras de Edith Stein, uma coisa material como qualquer outra submetida
às mesmas leis e incrustada na natureza material142. De forma que, de certa
maneira, o corpo parece obedecer a suas próprias leis, de outra, parece estar
submetido a essa legalidade externa143.

130. Cf. Aquino, Tomás de. Summa Theologiae I, q. 76, a. 1, rep.


131. Id., ibid., I, q. 76, a. 5, rep.
132. Id., ibid., I, q. 76, a. 8, rep.
133. Cf. Stein, Edith. La estructura de la persona humana, cit., p. 44.
134. Id., ibid., p. 100. Em sentido contrário, Spaemann afirma que o corpo humano é o próprio ser
humano (cf. Felicidade e benevolência…, cit., p. 262).
135. Cf. Aquino, Tomás de. Summa Theologiae I, q. 76, a. 7, rep.
136. Id., ibid., q. 76, a. 8, s.c.
137. Id., ibid., I, q. 76, a. 8, rep.
138. Cf. Stein, Edith. La estructura de la persona humana, cit., p. 127.
139. Id., ibid., p. 143.
140. Id., ibid., p. 133.
141. Id., ibid., p. 150.
142. Id., ibid., p. 34.
143. Id., ibid., p. 41.

40
O homem | C A P Í T U LO 2

Mas, afinal, o que é a alma? A alma é o motor do corpo144 e se expressa


por meio dele145. É a forma do corpo, aquilo que o move, sua energia meta-
física146 . Não habita nele simplesmente147, mas é sua forma substancial148.
Ela o configura desde dentro como forma interna149, que qualifica o todo e
dá a ele a sua espécie150.

2.3.2. A alma
Tomás de Aquino explica a alma a partir de suas faculdades, que chamou
de faculdades vegetativas, sensitivas e intelectivas. As duas primeiras operam
em total dependência da matéria, a terceira tem por sujeito exclusivamente a
alma151. Ainda que o Aquinate as classifique como almas vegetativa, sensitiva
e intelectiva, não são três, mas uma só, de tal sorte que, no homem, há uma
única forma substancial que é a alma intelectiva152.
Assim, nas plantas a alma tem exclusivamente a faculdade vegetativa,
enquanto a alma dos animais tem as faculdades vegetativa e sensitiva.
As três funções da alma fazem da pessoa uma imagem perfeita da ordem
do cosmo: coisas materiais, plantas, animais, o homem. Cada natureza se liga
à outra não por uma relação de vizinhança, mas cada nível superior conserva
o que lhe é inferior, segundo uma lei de continuidade. Por isso, ser homem
significa ser coisa, planta, animal e pessoa, mas de uma forma unitária153.
Como já afirmado antes: um universo dentro do universo.
Da mesma maneira, na natureza do animal subsume-se a natureza do
vegetal e da coisa material, enquanto na natureza da planta subsume a
natureza da coisa material.

144. Cf. Aquino, Tomás de. Summa Theologiae I, q. 75, a.1. O Aquinate ainda afirma: “Assim, por essa
força motora, a alma é parte que move, e o corpo animado é a parte que é movida” (I, q. 76, a. 4, rep 2).
145. Id., ibid., p. 56.
146. Cf. Maritain, Jacques. La persona y el bien común, cit., p. 39.
147. Cf. Stein, Edith. La estructura de la persona humana, cit., p. 129.
148. Id., ibid., p. 113.
149. Id., ibid., p. 44.
150. Id., ibid., p. 45.
151. Platão dividia a alma em racional, irascível e concupiscível (República, IV, 436a – 441c) Cf. também o
comentário de Henrique Cláudio de Lima Vaz: Antropologia filosófica I, cit., p. 37.
152. Aquino, Tomás de. Summa Theologiae I, q. 76, a. 4, rep.
153. Cf. Stein, Edith La estructura de la persona humana, cit., p. 46 e s.

41
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Tudo que há no animal há no homem, mas nem tudo que há no homem


há no animal. Assim, todo homem é totalmente animal, mas um animal,
em nada, é homem. Essa relação de subsunção é a principal objeção lógica às
antropologias meramente animalistas que confundem a natureza do animal
e a natureza do homem. Essa confusão leva Derrida à esdrúxula comparação
entre a Shoah154 e a matança de animais155.
Resta, ainda, sobre a alma, um tema de grande relevância: o espírito.
Galgado à categoria distinta da alma por antropologias personalistas, o
espírito é um atributo da alma humana, um pseudônimo da alma intelectiva,
daí esta também ser chamada de alma espiritual.

2.3.3. O espírito
Lima Vaz afirma que, entendido o espírito pela metáfora da respiração,
percebe-se que o espírito opera um duplo movimento que constitui seu ciclo,
a recepção do ser e uma doação ao ser. Pois, enquanto inteligência acolhe
o ser e enquanto liberdade a ele se entrega para plenificá-lo156. A categoria
espírito atinge o máximo de unidade do ser humano157.
Para Maritain, a personalidade é obra do espírito, porquanto significa a
interioridade própria, em si mesma158. Pode-se descrever o espírito enquanto

154. Do iídiche, catástrofe, calamidade. Palavra utilizada nos meios judaicos para designar o genocídio
dos judeus na Alemanha nazista. Prefere-se esta em face da comumente utilizada holocausto – do
grego, ὁλόκαυστον, ὁλον (todo) mais καυστον (queimado) – que tem o significado de higienizar pelo
fogo, mas que designa também as práticas religiosas de sacrificar a Deus animais, na intenção que
seu sangue purificasse os pecados dos ofertantes, ato contínuo em que eram incinerados – prática da
própria religião judaica no seu período sacerdotal. Também os cristãos têm preferido o termo iídiche
pela impropriedade do termo grego que, além de outras razões de base teológica, é desrespeitoso com as
pessoas que foram cremadas – literalmente, higienizadas. Sobre o tema, vale conferir Nós recordamos:
uma Reflexão sobre o Shoah. Vaticano: Comissão para relações religiosas com o judaísmo, 1998.
155. “Ninguém mais pode negar seriamente a negação. Ninguém mais pode negar seriamente por
muito tempo que os homens fazem de tudo o que podem para dissimular ou para se dissimular essa
crueldade, para organizar em escala mundial o esquecimento ou o desconhecimento dessa violência
que alguns poderiam comparar ao piores genocídios. (...) Como se, por exemplo, em lugar de jogar
um povo nos fornos crematórios e nas câmaras de gás, os médicos ou os geneticistas (por exemplo,
nazistas) tivessem decidido organizar por inseminação artificial a superprodução e supergeração de
judeus, de ciganos e de homossexuais que, cada vez mais numerosos e nutridos, tivessem sido destinados,
em um número sempre crescente, ao mesmo inferno, o da experimentação genética imposta, o da
exterminação pelo gás e pelo fogo” (Derrida, Jacques, op. cit., p. 52).
156. Vaz, Henrique C. L. Antropologia filosófica I, cit., p. 243.
157. Id., ibid., p. 201.
158. Maritain, Jacques. La persona y el bien común, cit., p. 44.

42
O homem | C A P Í T U LO 2

um movimento da alma. Um movimento que permite à alma dirigir-se a si


mesma, que possibilita à pessoa seguir uma inclinação natural ao seu próprio
íntimo. O espírito é a raiz da personalidade159.
Viktor Frankl, fundador da logoterapia, nos relatos de sua experiência
nos campos de concentração, demonstra que era o espírito que permitia
fugir do campo, ainda que não fosse para fora, ao menos para dentro de
si mesmo, onde está o verdadeiro sentido da vida160. Relata que, em certo
momento, lhe veio a lembrança da esposa, prisioneira no mesmo campo, e
o quanto a imagem dela trazia bem-estar e consolo. Ainda que não soubesse
se estava viva ou morta, havia ali uma presença espiritual. A partir dela,
chegou à conclusão de que o amor – o bem último e supremo que pode ser
alcançado pela existência humana – pouco tem a ver com a existência física
de uma pessoa161.
Relata, assim, uma vida interior facultada pelo espírito, no qual a pes-
soa encontra sentido para sua existência. Tal vida pode ter aspectos tanto
retrospectivos, quanto prospectivos162.
O espírito proporciona emoções além dos sentidos como a dor moral
de uma perda ou de uma decepção profunda, o gozo de uma lembrança, o
consolo de uma esperança e a ambiguidade de sentimentos, como a saudade
que dá prazer antes da chegada, mas dor após a partida.
Grande exemplo de vida interior é a do artista que, experimentando
a plenitude do belo em seu interior, tenta demonstrá-lo aos outros com a
habilidade de sua arte.

159. Maritain, Jacques. Os direitos do homem e a lei natural, cit., p. 17.


160. Frankl, Viktor. Em busca de sentido, cit., p. 42. Sobre isso, vale alguns relatos do autor que
demonstram, a partir da experiência no campo de concentração, o quanto é fundamental a existência
de uma vida interior, isto é, espiritual, que dê verdadeiro sentido à vida. Relata, por exemplo, que
tentado a acordar um companheiro que sofria com um pesadelo, desistiu, todavia, pois qualquer
pesadelo seria um mal menor em face da realidade do campo (Id., ibid., p. 36).
161. Id., ibid., p. 44.
162. O autor narra que um companheiro, após uma longa marcha, teve a sensação de estar andando
atrás do seu próprio cadáver. E, enuncia: “Tal intensidade com que ele experimentou naquela ocasião a
sua absoluta falta de futuro, o qual o obrigou a encarar toda sua vida exclusivamente sob a perspectiva,
como algo passado, como um morto. (...) Para quem entrega os pontos como essa pessoa, por não
mais conseguir apoiar-se num alvo futuro, a forma de vida interior no campo de concentração acaba
desembocando numa forma de existência retrospectiva” (Frankl, Viktor. Em busca de sentido, cit., p. 71).

43
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

O espírito gera uma liberdade interior163 que permite ao homem decidir


o que ele é: “O que é, então, o ser humano? É o ser que sempre decide o que
ele é. É o ser que inventou as câmaras de gás; mas é também o ser que entrou
nas câmaras de gás, ereto, com uma oração nos lábios”164.
Mas, enfim, o que é o espírito? Edith Stein afirma que a palavra espírito
pode ter algumas nuances, como intelecto e mente. Intelecto designa o espírito
enquanto sujeito que conhece, e mente, enquanto razão165. O espírito é a pró-
pria alma166 enquanto “um ente seguro de seu próprio ser e aberto a outro ser,
um ente que se tem a si mesmo em seu poder e pode dispor livremente de si”167.
Retomando a descrição da essencialidade da pessoa, vale mencionar, por
rigor expositivo, algumas notas sobre a individualidade, ainda que o tema
tenha sido tratado anteriormente na contraposição feita entre indivíduo e
individualismo.

2.3.4. A individualidade
A individualidade, da pessoa lhe é substancial e, segundo Edith
Stein, jamais se compreenderá o homem sem compreender a sua
individualidade168.
A individualidade, apesar de assentar-se no corpo169, pois a matéria é
princípio de individualização170, é expressão de uma unidade substancial do
próprio composto acima mencionado. De certa maneira, a individualidade
é a forma de existir da pessoa. Como explica Maritain, fora do espírito, só
há realidades individuais, apenas estas podem exercer o ato de existir. A
individualidade se opõe à universalidade171 e determina tudo aquilo que o
eu é e que o distingue do que os outros são172.

163. Id., ibid., p. 66.


164. Id., ibid., p. 84.
165. Stein, Edith. La estructura de la persona humana, cit., p. 121.
166. Vale conferir o comentário de Robert Spaemann sobre a superação da oposição entre alma e
espírito (Personas..., cit., p. 152).
167. Cf. Stein, Edith. La estructura de la persona humana, cit., p. 136.
168. Id., ibid., p. 27.
169. Id., ibid., p. 39.
170. Cf. Stein, Edith. La estructura de la persona humana, cit., p. 114. Cf. também Maritain, Jacques.
La persona y el bien común, cit., p. 39; 48.
171. Cf. Maritain, Jacques. La persona y el bien común, cit., p. 38.
172. Id., ibid., p. 41.

44
O homem | C A P Í T U LO 2

Cada indivíduo é uma pessoa de forma incomparável. Óbvio gritante,


ignorado pelos sistemas coletivistas que, na intenção de matar o indiví-
duo, matam a pessoa173. É o que expressa a experiência radical de Viktor
Frankl nos campos de concentração da Segunda Guerra, onde constata
o aniquilamento da pessoa a partir do aniquilamento de sua individu-
alidade. Narra que quanto mais se renunciasse a sua identidade mais as
chances de sobreviver eram notadas. O esforço do prisioneiro era para
parecer não ser nada, apenas um número. Ainda que seja uma abjeção de
sua dignidade, era o melhor meio de proteger-se174.
Interpretando o Aquinate, Maritain ensina que a individualização é
aquilo que faz com que uma coisa de mesma natureza se distinga de outra
ainda que da mesma espécie175.
Destarte, o indivíduo humano não deve ser compreendido como
um exemplar de uma espécie universal, mas como um todo universal
dentro do universo. Ele é a humanidade individualizada. Maritain
adverte que a individualidade é a mesquinhez do ego, pois é na pessoa
tudo aquilo que exclui o que é nos outros. A individualidade material
do homem é precária. Enquanto indivíduo, cada pessoa é fragmento
de uma espécie, uma parte do universo e um pequeno ponto numa
rede de forças. Por outro lado, enquanto pessoa, o indivíduo humano
não se submete totalmente às forças e condicionamentos naturais, pois
cada pessoa subsiste toda inteira pela subsistência mesma da alma, que
é, em cada um, um princípio de unidade criadora, de independência
e de liberdade176 .
Logo, conclui-se pela pertinência do termo pessoa humana que expressa
uma síntese antropológica personalista: a pessoa é a humanidade indivi-
dualizada, nela está presente toda a substância da humanidade. A melhor
ilustração desta evidência está no poético axioma judaico: quem salva um
homem salva a humanidade inteira.

173. Id., ibid., p. 48.


174. Cf. Frankl, Viktor. Em busca de sentido, cit., p. 16.
175. Maritain, Jacques. Por una filosofía de la persona humana, cit., p. 142.
176. Maritain, Jacques. La persona y el bien común, cit., p. 41.

45
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Por outro lado, a expressão pessoa humana significa essa individualidade


concomitantemente social do homem. No substantivo pessoa: a individuali-
dade; no adjetivo humana: a sociabilidade.

2.3.5. A racionalidade
A racionalidade é o terceiro termo da essencialidade da pessoa, o que quer
dizer que a razão compõe a sua essência. A razão é a capacidade exclusiva-
mente humana de transitar, de se mover entre uma representação intelectiva
e outra. Ela é a potência da alma que permite a ela ir de um objeto conhecido
a outro com o fim de conhecer a verdade inteligível177. Razão e intelecto não
são potências distintas da alma, mas a mesma. Essas faculdades ocorrem no
ser animado em níveis distintos, sobrevindo, de acordo com o ser, faculdades
vegetativas, sensitivas e intelectivas.
As faculdades vegetativas, Tomás de Aquino as dividiu em nutritiva
e reprodutiva. As sensitivas são responsáveis pelos apetites, que Tomás de
Aquino subdivide em concupiscível e irascível. A alma intelectiva, por sua
vez, tem como principal atributo a faculdade que a ela adjetiva.
Além disso, enquanto as faculdades vegetativa e sensitiva têm como
sujeito o corpo, a intelectiva tem como sujeito exclusivo a alma. Os sentidos
nos apresentam o individual, o concreto, enquanto a razão nos apresenta o
universal. Assim, o princípio da razão é a alma. Ela opera sem a participação
do corpo178.
Ainda que Tomás de Aquino demonstre a existência de sentidos inter-
nos – senso comum, imaginação, estimativa e memória179 – além dos cinco
sentidos externos, estes dão ao homem a experiência do particular com um
grau maior de abstração. Ainda que não haja nada na razão que não tenha
passado pelos sentidos, a razão conhece na coisa apreendida pelos sentidos
muito mais coisas que os sentidos podem perceber180. O sentido está para os

177. Cf. Aquino, Tomás de. Summa Theologiae I, q. 79, a. 8, rep.


178. Id., ibid., I, q. 75, a. 2, resp. Portanto, o princípio intelectual, que se chama mente ou intelecto,
opera por si sem participação do corpo. Ora, nada pode operar por si, a não ser que subsista por si.
(...) Conclui-se, portanto, que a alma humana, que é chamada de mente ou intelecto, é incorpórea
ou subsistente.
179. Id., ibid., I, q. 78, a. 4, rep.
180. Id., ibid., I, q. 78, a. 4, rep. 4.

46
O homem | C A P Í T U LO 2

objetos sensíveis da mesma forma que o intelecto está para os inteligíveis181. É


nesse limite entre os sentidos internos e externos que se distingue a quididade
da pessoa e a dos animais.
Em suma, da racionalidade decorre o fenômeno que mais tipicamente
distingue o homem dos demais seres animados: a consciência e a liberdade.
Só a pessoa é consciente e livre. Isso a faz responsável pelos seus atos e a
introduz no campo exclusivamente humano da moral.

2.3.6. A liberdade
A liberdade é, portanto, o principal atributo da pessoa, o traço distin-
tivo dela em face de todos os demais seres. Ela possibilita ao homem ser o
que quiser ser. Pautar-se por padrões que eleger justos. Tais padrões serão
monitorados pela consciência moral, o tribunal de última instância ao qual
o homem submete não apenas seus atos, mas sua vontade. Vontade que não
resulta do nada, mas da resistência ou submissão aos seus impulsos natu-
rais182. É um tribunal que não julga unicamente seus atos, mas também lhe
dispõe sobre seu modo de ser183.
A consciência é uma experiência com a própria dignidade na medida
em que transforma o homem em juiz de si próprio184. Ela aponta para algo
claramente objetivo e absoluto, não algo que seja aparentemente bom para
ele, mas algo para fazer aqui e agora, algo que se deve fazer ou algo que se
deve evitar185.
Isso remete para a inconsistência lógica do subjetivismo axiológico.
Valores ou são objetivos ou não são valores. Qualquer um que afirme serem
subjetivos os valores assume, ainda que inconsciente, o papel de tirano de
todo o mundo que o cerca, porquanto seu julgamento dirá sempre res-
peito às coisas objetivas que, por sua vez, se relacionam consigo e com os
demais, com a agravante de ocultar seu julgamento na nebulosidade de um
pseudorrelativismo.

181. Id., ibid., I, q. 75, a. 2, rep.


182. Cf. Spaemann, Robert. Personas..., cit., p. 107.
183. Cf. Stein, Edith. La estructura de la persona humana, cit., p. 110.
184. Id., ibid., p. 168.
185. Id., ibid., p. 174.

47
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Assim, como no início deste trabalho foi afirmado, toda ética pressupõe
uma antropologia. A responsabilidade de viver retamente leva em conta,
necessariamente, uma compreensão acerca da natureza humana186. E é
dessa relação entre a pessoa e sua natureza que se deduz o conceito de
liberdade.
A clássica fábula da rã e do escorpião de Esopo narra a história de um
escorpião que mata a si próprio ao ferroar uma rã que o conduzia no dorso
por um rio caudaloso, apesar de ter prometido não o fazer e que justifica
sua ação na clássica frase: não pude evitar, é a minha natureza.
A fábula é riquíssima para demonstrar que a fundamental diferença
entre o homem e os demais animais é o tipo da relação que eles têm com a
sua natureza. Enquanto um animal, ou mesmo um objeto qualquer, é a sua
própria natureza, a pessoa humana tem com sua natureza uma relação de
posse, isto é, a pessoa possui sua natureza187.
O ser humano é um único ser que dispõe de sua natureza. A partir desse
fato é possível construir três modelos de relação entre o homem e sua natureza.
No primeiro modelo, o homem simplesmente dispõe conscientemente de
sua natureza. Essa disponibilidade é própria da natureza humana. Pode-se
recorrer aos mais prosaicos exemplos para demonstrar atos sadios e equilibra-
dos de disposição entre a pessoa e sua natureza: o jejum por motivos de saúde
ou religioso; retardar a satisfação de uma necessidade biológica; enfrentar
voluntariamente a dor e o sofrimento nos atos de heroísmo; a superação do
medo etc. A esse tipo de relação pode-se chamar personalista.
No segundo modelo, a pessoa se submete à sua natureza. Ocorre uma
bestialização do homem que se permite ser reduzido à sua animalidade.
Percebe-se tal modelo em alguns eventos em que a individualidade é diluída
num todo coletivo, como no crime de turba, por exemplo. No descumpri-
mento de algumas das mais elementares regras de etiquetas, ou ainda, na
reiterada prática de padrões negativos de comportamento, sob a mesma
justificativa do escorpião da fábula: eu sou assim, é a minha natureza, não
vou mudar. Esse modelo pode ser chamado de naturalista.

186. Cf. Spaemann, Robert. Personas..., cit., p. 164.


187. Id., ibid., p. 49.

48
O homem | C A P Í T U LO 2

Num terceiro, ocorre uma revolta, uma oposição à natureza. O homem,


pela possibilidade de dispor, identificar-se ou distanciar-se da sua natureza
humana, pode até se opor a ela. Tal modelo tem sido a fonte dos principais
problemas que envolvem as atuais questões de bioética e ética social. Servem
de exemplo desde cirurgias plásticas deformadoras, comuns em alguns gru-
pos sociais de comportamento mórbido, às questões de moral sexual, à pos-
sibilidade de manipulação genética, ou mesmo ao aborto, que apresenta o
assassinato da pessoa inocente e indefesa, como um método anticonceptivo.
A esse pode dar-se o nome de subjetivista.
No fundo, os modelos personalista, naturalista e subjetivista expressam
conceitos e práticas acerca da liberdade. A liberdade possibilita um movi-
mento que tem origem na razão e parte em duas direções: num sentido
exterior e num sentido interior da pessoa.
Liberdade resulta da espiritualidade. Ser livre é ter uma alma espiritual,
isto é, ter a capacidade de realizar esse movimento imaterial, exclusivamente
intelectivo para dentro e para fora de si mesmo. Nas palavras de Edith Stein,
ter a aptidão de se mover entre a superfície e o profundo188. A liberdade é
essa habilidade natural de se buscar a si mesmo descendo às próprias pro-
fundidades, como quem toma posse de si próprio. Ser livre, afirma, é dizer:
eu posso189. Fundar em razões o que se pode e o que se deve é o que distingue
os homens dos animais190.
Essa capacidade espiritual, ou esse movimento da alma em direção de si
própria, que chamamos de espírito, configura outra característica exclusiva
da pessoa que é, ao mesmo tempo, uma necessidade desafiadora já concla-
mada no oráculo de Delfos: a auto-objetivação.

2.3.7. A auto-objetivação
Só o homem é capaz de conhecer-se a si mesmo, de ter, além da expe-
riência externa, uma experiência interna191. Essa auto-objetivação permite
à pessoa ter a si própria não apenas como objeto do conhecimento, mas

188. Stein, Edith. La estructura de la persona humana, cit., p. 104.


189. Id., ibid., p. 95.
190. Cf. Spaemann, Robert. Personas…, cit., p. 197.
191. Cf. Stein, Edith. La estructura de la persona humana, cit., p. 91.

49
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

também de desenvolvimento, na medida em que ela é responsável por se


formar a si mesma192.
Liberdade não se confunde com livre-arbítrio ou autonomia. O primeiro
é a capacidade de escolha possibilitada pela liberdade. A segunda é uma
capacidade de governar a si mesmo que também resulta da liberdade.
Liberdade é um conceito bipolar e antitético. Bipolar porquanto só se é
livre em relação a algo. A ideia de liberdade só se torna inteligível a partir de
outra que com ela tenciona. E é antitética, pois sua inteligibilidade pressupõe
a ideia de escravidão. Para Viktor Frankl, ela é apenas um aspecto negativo
de um fenômeno integral cujo aspecto positivo é a responsabilidade193.
Frankl se referia a possibilidades infinitas dadas ao homem pela liber-
dade, em particular para o mal como o modelo totalitário que o afligiu.
Celso Lafer comenta que o totalitarismo demonstrou que não há limites para
a perversão da natureza humana194. Terêncio intuiu tal proposição e resumiu
na sua fórmula poética: nada do que é humano me é estranho.
Dessa construção, o conceito de liberdade requer uma pergunta elemen-
tar: de que é livre, o homem? A resposta é dedutível: da sua natureza.

192. Id., ibid., p. 94.


193. Frankl, Viktor. Em busca de sentido, cit., p. 113.
194. Lafer, Celso. In: Arendt, Hannah. Entre o passado e o futuro, cit., p. 10.

50
A dignidade da
Capítulo
3
pessoa humana
Homo sacra res homini.

A
célebre sentença de Sêneca, homem é coisa sagrada para
o homem, expressa um lugar comum: o homem não é
indiferente à vida humana. O homem deu à vida humana
uma distinção tal que a colocou no ápice de uma hierarquia de
estimas. A relação do homem com a vida do homem é uma relação
essencialmente axiológica, uma relação de não indiferença195. A
vida, para ele, é um dado cheio de significado, ainda que seja um
pleonasmo falar de significado para o homem, pois que este é o
único animal capaz de dar significado aos objetos.
A assertiva objetiva demonstrar que as relações dos demais
animais entre si e as que partem deles para o homem seguem
o trilho do determinismo natural. Mesmo as relações entre o
homem e os demais seres vivos são assinaladas por certo grau de
indiferença. Ainda que seja subvertida a ordem natural dos seres
e que a estima seja dada por critérios morais e culturais, é trivial
que apenas um sociopata ou um misantropo patológico seja capaz
de colocar a vida humana abaixo de qualquer outra.
Temos, portanto, as primeiras notas conceituais acerca da
dignidade da pessoa humana. A dignidade é um valor, uma forma

195. Cf. Mendonça, Jacy. O curso de Filosofia do Direito do Professor Armando Câmara.
Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, 1999, p. 143. Para Armando Câmara, o valor é uma
relação de não indiferença do ser.

51
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

de dar significado a um objeto numa relação de apreço, como sugere o radical


grego axios196 – que significa estima, apreciação de alguma coisa197. Há um
valor intrínseco em cada ser humano. Cada pessoa é sacra, como afirmou
Sêneca, inviolável e acima de qualquer outro objeto, seja ideal ou real, como
sugere a expressão latina – sacrae.
Sêneca apresentou a primeira proposição daquilo que a filosofia política
consagrou como dignidade da pessoa humana. A dignidade no seu primeiro
conceito apresenta-se como um valor, a afirmação e o reconhecimento de
uma sacralidade intrínseca ao ser humano.
O valor como tal tem no seu conteúdo a ideia de finalidade. Todo valor
é um fim, ainda que nem todo fim seja um valor. No caso da dignidade da
pessoa humana, deparamo-nos com um conceito de elevada complexidade
estrutural.
A dignidade apresenta uma estrutura bipartida, havendo nela um aspecto
endógeno e um exógeno. O primeiro trata da relação da pessoa consigo pró-
pria e o segundo, da relação da pessoa com o seu meio. Em outra formulação,
poderíamos dizer que a cada dimensão do existir humano – individual e
social – corresponde uma dimensão de sua dignidade. Ou, ainda, que a
realização da dignidade exige duas experiências fundamentais: plenitude e
reconhecimento198.
Desse modo, a dignidade da pessoa pressupõe uma implicação entre
plenitude e reconhecimento de tal forma que uma não pode estar dada sem
que a outra também o esteja.
Para estudá-la, este capítulo está dividido em três partes. Na primeira,
haverá um ensaio sobre o princípio da dignidade da pessoa humana e o
conceito de dignidade como tal; na segunda, a estrutura da dignidade nas
suas duas dimensões; e, na terceira, as várias dimensões do existir humano
nas quais a dignidade se apresenta de forma particular.

196. ς>4≅Η.
197. Lit.: digno, merecedor, meritório; capaz, competente, apto, próprio para. Cf. Dicionário grego-
português – português-grego. Porto: Porto Editora, 1997.
198. Cf. Di Lorenzo, Wambert. Pluralismo, cultura y reconocimiento. In: Fernández, Gonzalo &
Gentile, Jorge (org.). Pluralismo y derechos humanos. Córdoba: Alveroni Ediciones, 2007, p. 152.

52
A dignidade da pessoa humana | C A P Í T U LO 3

3.1. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA


A preocupação com os fins do Estado e a proteção da pessoa foram
consequências políticas imediatas dos terríveis acontecimentos da Segunda
Guerra Mundial, resultando em padrões normativos centralizados na pessoa.
Deu-se tal acontecimento pelo ressurgimento do Direito Natural, movi-
mento que, do ponto de vista da ordem internacional, resultou na ideia de
Direitos Humanos e, no ponto de vista do Direito Constitucional, originou
o chamado Constitucionalismo de Valores, que teve na Lei Fundamental de
Bonn de 1949 seu paradigma199.
Em que pese já ter tratado abundantemente do tema, vale a nota para
demonstrar o perfil histórico em que surge a ideia política de dignidade da
pessoa humana, que assume uma condição de princípio supremo da ordem
política. No desenrolar dos eventos, trata-se da superação do Estado inerte
liberal e do modelo relativista de Estado Social da República de Weimar.
Fundamento do Estado, a dignidade da pessoa tornou-se valor absoluto
da sociedade, seu elemento axiológico essencial sem o qual o Estado perde
sua própria razão de existir200.

3.1.1. A dignidade enquanto fim


Antes de ser fundamento do Estado, a dignidade é o fim absoluto da
própria pessoa. Como todo fim, é aquilo que justifica a sua própria existência.
Pois se a existência dos objetos é o ser, a existência da pessoa é o viver. Quer
dizer que uma vida, ainda que num campo de concentração, não encontra
sentido na própria sobrevivência, mas nos seus fins. Fim e bem, na tradição
clássica, se equivalem, não havendo nada vão no cosmo, não há um ser sequer
que tenha sua existência mergulhada na vaidade e que não tenda necessaria-
mente para o seu fim. Fim que justifica a própria existência, o próprio ser 201.

199. Cf. Di Lorenzo, Wambert. Do totalitarismo ao Direito Natural, uma experiência ética na virada
do milênio. In: Pozzoli, Lafayette & Lima Filho, Alceu de Amoroso. Ética no novo milênio: em busca
do sentido. São Paulo: LTr, 2004, p. 419.
200. Cf. Di Lorenzo, Wambert Gomes. Abertura da Constituição. Direito e Justiça, v. 24, ano 23,
p. 171-200, 2001/2.
201. No conceito de Armando Câmara, valor é o dinamismo do ser, sua passagem de potência para
ato, como também a conformidade da coisa com sua finalidade. Cf. De Boni, Luis Alberto (org.).
Armando Câmara: obras escolhidas. Porto Alegre: Edipuc, 1999, p. 52-61.

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Sendo o fim da coisa o próprio bem, este bem é o que a filosofia moderna
passou a chamar de valor.
O valor, para João Camillo de Oliveira Torres, é aquilo que direciona
a ação humana e que é a própria causa final da história, a causa última na
execução e a primeira na intenção202.
Segundo Luis Fernando Barzotto, a dignidade é um valor objetivo de
uma identidade que é regulativa e que exige ser reconhecida como tal, sendo
o reconhecimento a captação do valor de uma identidade e, portanto, um
conceito correlativo de dignidade203.
Ingo Sarlet firma que a dignidade é um dado prévio ao Direito e não
existe a partir dele, mas este exerce um papel crucial na sua promoção e
proteção204. E que não há de se falar em dignidade como um direito, mas a
um direito ao reconhecimento desta 205.
A dignidade da pessoa humana é o valor basilar do Estado. O Estado
não tem outra razão de ser senão buscá-la e realizá-la. Trata-se de um valor
encontrado a partir de premissas rigorosamente lógicas e universalmente
verdadeiras, de um princípio que não pode ser objeto de escolha, porquanto,
por si mesmo, é evidente, pois decorre das coisas postas, da natureza, do
mundo real e concreto.
Por isso, nota-se a ideia de dignidade já nas sociedades arcaicas206, apesar
da proclamação inaugural de Sêneca. Não é, portanto, uma concessão do
Estado, da sociedade, ou de um indivíduo para com o outro. Não tem sua
fonte no sujeito que valora, mas este apenas a reconhece. Ela é conatural à
pessoa humana e descoberta a partir de uma experiência cognitiva em que,
por diversos aspectos, o sujeito se vê no objeto.
Afirmada em vários planos da vida social, a substancialidade da pessoa
de per si é fundamento suficiente para a firmação de sua dignidade singular.
Ela não resulta do Direito positivo ou do consenso social. Não é um axioma

202. Torres, João Camillo de Oliveira. Teoria Geral da História. Petrópolis: Vozes, 1963, p. 263 e s.
203. Barzotto, Luis Fernando. Pessoa e reconhecimento: uma análise estrutural da dignidade da pessoa
humana. No prelo.
204. Sarlet, Ingo Wofgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 41.
205. Id., ibid., p. 71.
206. Cf. Spaemann, Robert. Felicidade e benevolência…, cit., p. 235.

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intermitente que subsiste a barlavento das mudanças sociais e dos condicio-


namentos culturais e históricos.

3.1.2. A dignidade enquanto valor


Não há um direito fundamental ou um direito humano à dignidade.
Esta não é um direito, nem se assenta em qualquer direito. Antes, é sua fonte
e fundamento, sendo-lhe anterior e superior. Afirmar a dignidade da pessoa
humana é dizer que esta possui em si mesma direitos e deveres universais,
invioláveis e inalienáveis que emanam diretamente de sua natureza.
Ainda que seja tema a ser tratado posteriormente, a igualdade, que é
desde os gregos um conceito relacional, encontra no conceito de pessoa um
núcleo substancial, porquanto todos são iguais em natureza e dignidade.
Todos os homens têm a mesma natureza, a mesma origem e compartilham
um fim comum. É confrontada com os seus fins que a pessoa aprofunda a
consciência de sua própria dignidade207, e é do confronto entre o individual
e o social que a experiência desta dignidade se alarga 208.
Essa igualdade faz com que nenhuma pessoa viva para si mesma e oferece
a base que dá um significado especial para o agir humano no mundo: a
percepção de que a dignidade do outro é, de certa maneira, a sua própria.
Em cada pessoa humana mantém-se a substância comum do gênero humano.
Como dito, a pessoa é a humanidade individualizada.
Por isso, a dignidade não é um dado quantitativo, e a palavra valor,
aqui já empregada, não tem o significado econômico – que lhe é original
–, mas axiológico. Por essa razão, Spaemann sugere evitar a expressão valor
do homem em detrimento da expressão dignidade, pois, “por mais que o
valor da vida de dez homens possa ser maior que a de um só, a dignidade
de dez homens não significa mais que a de um único homem”209. Na senda
de Maritain: “uma só alma humana vale mais que todo o universo e todo o
conjunto dos bens temporais”210. A dignidade da pessoa é, pela sacralidade
desta, congênita, inviolável.

207. Cf. Gonella, Guido. Op. cit., p. 19.


208. Id., ibid., p. 20.
209. Cf. Spaemann, Robert. Personas…, cit., p. 181.
210. Maritain, Jacques. La persona y el bien común, cit., p. 67.

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Fiódor Dostoiévski discorre sobre esta inviolável dignidade da pessoa.


Vale contrapor duas personagens em particular: Rodion Românovitch
Raskólnikov – de Crime e Castigo – e Ivan Karamazov – de Os Irmãos
Karamazov. Raskólnikov justifica um crime a partir do baixo valor que atribui
à vítima, afirmando que matá-la seria um ato de heroísmo, um bem para a
humanidade, e que algumas pessoas excepcionais estariam acima da lei. Ivan
Karamazov, ao contrário, afirma, respondendo ao seu irmão Aliocha, que
jamais concordaria em torturar um único ser humano ainda que isso tornasse
as pessoas definitivamente felizes proporcionando-lhes a paz e o repouso.
Mas, como contra-arrazoar os fundamentos de Raskólnikov? Por que
não matar o malfeitor? E, em se tratando do Estado, por que não torturar
o facínora? Que fundamento há para enxergar dignidade em quem abriu
mão dela? Como tratar humanamente alguém bestializado que renunciou
à sua própria humanidade? Que impede ao Estado praticar a reciprocidade
como justiça, como pretendiam os pitagóricos?211. A substância individual
que faz subsistir em cada pessoa todo o gênero humano.

3.2. AS DIMENSÕES DA DIGNIDADE DA PESSOA


Afirmou-se haver na dignidade uma estrutura bipartida, uma dimensão
interna e externa que tem seus limites na profundidade e na superfície da
pessoa. Como já exposto, a primeira diz respeito à relação da pessoa consigo
própria, e a segunda, à relação da pessoa com o seu meio. Isto é, para cada
uma das duas dimensões da alma, existem dimensões da dignidade: pleni-
tude e reconhecimento. Dois termos que se implicam de tal forma que um
não pode estar dado sem que o outro também o esteja.

3.2.1. A dignidade enquanto plenitude


A dignidade é o pseudônimo da felicidade. Quando afirmamos que esta é
o fim do Estado, estamos dizendo que a razão de ser do Estado é a felicidade
das pessoas que a ele estão vinculadas, isto é, a eudaimonía.
A eudaimonía – felicidade, sucesso da própria vida ou, ainda, vida boa – é
a dimensão da plenitude. É aquilo que todos desejam ainda que não saibam

211. Cf. Aristóteles. Ética a Nicômaco, Livro V, 5.25.

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do que se trata 212, sendo que, conforme Spaemann, apenas a vida consciente
de si mesma pode ser considerada bem-sucedida213.
O conceito de felicidade será tratado no capítulo sobre o bem comum.
Ela é o bem absoluto da pessoa, mas que se realiza exclusivamente a partir
do seu meio, quer dizer, a partir de bens fundamentais aos quais, sozinha,
ela não tem alcance. A felicidade é o bem absoluto da pessoa. Ele é um fim
último, buscado por si mesmo e não em razão ou no interesse de outro, o
que faz dele, além de absoluto, incondicional214.
Desse modo, a felicidade é um estado de plenitude, um ideal de abso-
luto, cujo conteúdo é a ideia de autossuficiência. A felicidade, portanto, é
um estado ideal em que o homem não necessita de absolutamente nada215.
Todavia, autossuficiência não é aquilo que é suficiente para um homem só,
mas resulta da natureza social da pessoa.
Essa descrição da felicidade chamar-se-á de felicidade eudaimônica. Ainda
que a expressão pareça um pleonasmo, serve para delimitar o tipo de felici-
dade fundada no personalismo que exclui necessariamente modelos indivi-
dualistas que lhe são incompatíveis, tais como o hedonismo, o utilitarismo,
o consequencialismo etc.
Essa noção de felicidade, enquanto autossuficiência, é o elo entre a ple-
nitude e o reconhecimento.
No modelo eudaimônico, bens humanos necessários à realização do ideal
de autossuficiência passam pela vida em comunidade, não sendo possível à
pessoa atingir sua plenitude isoladamente.
Há um apetite irrefreável pela felicidade. Para o pensamento clássico,
o homem, como todo ser, tende à sua plenitude ôntica216, não estando ao
seu alcance não desejar, mas apenas, pelo livre-arbítrio, escolher os meios
necessários para atingi-la 217. Afirmar que as pessoas buscam o seu bem, para
a filosofia clássica, chega a ser uma tautologia.

212. Cf. Spaemann, Robert. Felicidade e benevolência…, cit., p. 9.


213. Id., ibid., p. 26.
214. Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1097a, 30.
215. Id., ibid., 1097b, 10-20.
216. Id., ibid., p. 42.
217. Id., ibid., p. 37.

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A realização deste fim implica meios adequados, aos quais Spaemman


atribui autonomia e Frankl afirma ter um sentido imediato e específico.
Assim, a eudaimonía diz respeito à totalidade da biografia, pois o significado
das ações individuais não está determinado, mas aberto até o final218. Nessas
ações individuais desenvolvem-se as potencialidades humanas que requerem
atualização, sob risco de atrofia da pessoa 219.
Entretanto, ainda que o sujeito seja protagonista de sua dignidade, a
plenitude exige um aspecto externo da dignidade sem o qual ela não se
realiza: o reconhecimento.

3.2.2. A dignidade enquanto reconhecimento


Luis Fernando Barzotto afirma que o “reconhecimento é uma resposta à
existência do outro como pessoa, a única resposta correta diante do fato de
sua personalidade”. Segundo ele, há três momentos na atividade do reconhe-
cimento: o primeiro é a aceitação como resposta à personalidade, resumida
na premissa: todo homem é uma pessoa; o segundo diz respeito à reciproci-
dade como resposta a igualdade, sintetizado no axioma: as pessoas são iguais.
Por último, a responsabilidade como resposta à dignidade, substanciada na
sentença: a pessoa é fim220.
Barzotto sustenta que a condição fundamental do reconhecimento
não está na comunidade política, mas na fraternidade. Parte, para isso,
do tipo ideal weberiano da ética da fraternidade. Max Weber sugere uma
ética da fraternidade, cujo critério é a simples reciprocidade resumida
na sua regra de ouro: hoje por ti, amanhã por mim. Segundo a crítica de
Barzotto, por ser uma ética da comunidade de vizinhos, é particularista
e opera um reconhecimento restrito. A partir da crítica, propõe uma ética
da fraternidade de tipo universalista que opera o reconhecimento pleno
de todo ser humano como pessoa. E, por fim, propõe a ética cristã como
modelo dessa ética a partir da parábola do bom samaritano como síntese

218. Cf. Spaemann, Robert. Personas..., cit., p. 134.


219. Cf. Stein, Edith. La estructura de la persona humana, cit., p. 94.
220. Barzotto, Luis Fernando. Pessoa, Fraternidade e Direito, p. 3. Disponível em: <http://www.
maritain.com.br>. Acesso em: 02/02/2008.

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A dignidade da pessoa humana | C A P Í T U LO 3

do modelo nas duas dimensões: da práxis – o reconhecimento, e da lei – a


regra de ouro221.
Na parábola, Jesus introduz a universalização do destinatário da regra
de ouro como quereis que os outros vos façam, fazei também a eles. Mas, para
praticar a lei evocada na parábola Amarás o teu próximo como a ti mesmo222 ,
não basta conhecer a lei, pois para o cumprimento é necessário o reconhe-
cimento do outro enquanto próximo.
O reconhecimento, portanto, não é uma especulação conceitual,
mas uma atitude concreta, uma identificação do outro como pessoa 223.
Reconhecimento é considerar outro como um ser para si, autofinalizado,
não podendo ser usado como meio para fins alheios a si mesmo224.
O reconhecimento, como já foi dito, é a dimensão externa da dignidade
que, segundo Barzotto, é uma manifestação vinculante, um valor de uma
identidade. A dignidade é inerente à identidade. A dignidade impõe uma con-
duta, uma atitude em relação ao outro, fundamental para sua realização225.
No plano epistemológico, a dignidade passa pela conformação da razão à
identidade do homem, àquilo que ele é: pessoa. O reconhecimento, então, é
uma experiência da verdade, da verdade sobre o homem. Uma verdade alcan-
çada não pela especulação, mas pela experiência. Um encontro com a iden-
tidade do homem substancial, despido de qualquer acidente ou predicativo.
As hediondas práticas no campo de concentração eram processos siste-
máticos não só de recusa do reconhecimento, mas de depreciação e negação
do outro. Tratava-se de um ciclo vicioso no qual o desprezo aos prisioneiros
era alimentado pela aparência subumana resultante dos próprios maus-
tratos, gerados não apenas para subjugar, mas para provocar a aparência
repulsiva e, assim, não despertar nenhum sentimento de identidade ou
reconhecimento226.
Viktor Frankl narra a cena em que foi advertido por um guarda com uma
pedra jogada aos seus pés e o consequente sentimento de ter sido reduzido

221. Id., ibid., p. 2.


222. Lv 19, 18.
223. Cf. Barzotto. Pessoa e reconhecimento, cit., p. 10.
224. Id., ibid., p. 11.
225. Id., ibid.
226. Cf. Manvell, Roger. SS e Gestapo – a caveira sinistra. Rio de Janeiro: Editora Renes, 1974.

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à animalidade, a um bicho com o qual um homem trava uma relação tão


superficial que sequer chega a castigá-lo227. Mas, narra também, o guarda
que lhe passou um pão às ocultas, abrindo mão de parte de seu desjejum, e
a comoção de ver a bondade no olhar humano do homem que o reconhe-
ceu como pessoa 228. Para Frankl, o reconhecimento é uma forma de amor,
pois amor é a única forma de captar outro ser humano no íntimo da sua
personalidade229.
O reconhecimento é um ato imaterial e particular230, uma ação, por-
tanto, do intelecto agente cujo sujeito passivo é o ser humano e o ativo, a
pessoa 231. É uma intensa relação interna entre os homens232. É considerá-
lo alguém, um indivíduo único que não pode ser compreendido como
consequência de um ou da totalidade dos seus predicados233, ainda que
Pascal tenha afirmado que não se ama uma pessoa, mas apenas suas
qualidades234.
O reconhecimento permite que cada um ocupe seu papel na comuni-
dade235. Todos os deveres para uma pessoa se resumem no dever de reco-
nhecê-la como pessoa e implica jamais usar a humanidade de si próprio ou
de outrem236.

3.3. AS DIMENSÕES DO EXISTIR HUMANO


Afirmado que dignidade é pseudônimo de felicidade e que esta é um
estado de autossuficiência. Faz-se necessário demonstrar que esse bem abso-
luto se dá a partir de bens intermediários que dizem respeito às esferas do
próprio existir humano.

227. Cf. Frankl, Viktor. Em busca de sentido, cit., p. 32.


228. Id., ibid., p. 83.
229. Id., ibid., p. 100.
230. “Pois o conhecer de nossa alma é um ato particular, que se realiza em tal ou qual momento (...)
esse ato de conhecer, embora particular, é, contudo, um ato imaterial particular” (Aquino, Tomás
de. Summa Theologiae I, q. 79, a. 6, rep. 2).
231. “(...) o Filósofo diz no livro III da Alma, que ‘essas diferenças devem se encontrar na alma’, a
saber, intelecto possível e intelecto agente” (Id., ibid., I, q. 79, a. 4 s.c.).
232. Cf. Stein, Edith. La estructura de la persona humana, cit., p. 36.
233. Cf. Spaemann, Robert. Personas..., cit., p. 57.
234. Cf. Maritain, Jacques. La persona y el bien común, cit., p. 42.
235. Cf. Spaemann, Robert. Personas..., cit., p. 161.
236. Id., ibid., p. 185.

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A dignidade da pessoa humana | C A P Í T U LO 3

Para que a dignidade se realize, é necessária uma coordenação entre


a ordem social e a ordem da pessoa, já que cada esfera do existir humano
corresponde a um fim, cada fim corresponde a um bem fundamental e cada
bem fundamental corresponde a um direito.
Essa felicidade de tipo eudaimônico só pode ser realizada a partir do
bem comum, isto é, o conjunto destes bens fundamentais comuns a todas
as pessoas. É o que será demonstrado no capítulo destinado ao bem comum.
Destarte, há de se falar que a cada esfera do existir humano corresponde
uma porção de dignidade da pessoa e esta dignidade – ou felicidade – requer
um equilíbrio entres as partes e o todo, entre o atuar e o viver.
Em outras palavras, para ser feliz a pessoa necessita buscar a plenitude
em várias dimensões de sua vida: a econômica, a cultural, o lazer, a moral,
a estética, a política e a religião.
São esses bens fundamentais, ou dimensões da dignidade que funda-
mentam os direitos consagrados nas declarações e nas constituições.
Essa diversidade de campos em que a pessoa deve atuar resulta de sua
substancialidade e esta, de per si, é fundamento da sua dignidade. A pessoa é
digna não porque o direito positivo assim o diz, não porque há um consenso
social em torno de um valor.
A resposta está na substância do indivíduo, que, mesmo na forma desu-
mana, teratogênica, esconde uma essência que contém a substância comum
de todo o gênero humano.
Esta abordagem ontológica remete imediatamente para o aspecto jurídico
da dignidade da pessoa: ubi societas, ibi jus; ubi jus, ibi homo. O homem é, ao
mesmo tempo, causa eficiente e causa final do Direito, sujeito e fim do orde-
namento. Há uma suprema dignidade da pessoa humana no mundo jurídico,
pois não há nenhum objeto do Direito que não seja atribuído ao homem.
Ainda neste aspecto, a sociabilidade de cada indivíduo determina a dig-
nidade social do homem como causa eficiente do Direito. A vida individual
e a vida social da pessoa são aspectos da mesma vida, pois não há valor social
que não seja, antes, um valor pessoal; a humanidade é, portanto, o lugar
comum de consolidação de tais valores237.

237. Gonella, Guido. Op. cit., p. 31.

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Nessa relação entre a pessoa e o Direito, Gonella identifica a possibilidade


tanto de um ciclo vicioso quanto de um ciclo virtuoso: o empobrecimento da
dignidade da pessoa degrada a ordem jurídica, e uma ordem jurídica degra-
dada atenta logicamente contra a dignidade da pessoa. Também, ao contrá-
rio, o respeito da dignidade da pessoa implica a dignidade da ordem jurídica,
e uma ordem jurídica digna enriquece a dignidade da pessoa humana238.
A expressão “pessoa humana” também denota simultaneamente que cada
homem traz em si uma individualidade e uma sociabilidade concordantes.
Ou seja, a pessoa não tem sua razão de ser no Estado, mas não deve existir
como adversa ao Estado, pretendendo, contra ele, ser sujeito de todos os
direitos.
O Estado existe totalmente para a pessoa e esta existe para a comunidade
política da qual o Estado é parte. Ela é sujeito de deveres e de direitos. Além
de todos os aspectos ontológicos já sinteticamente propostos, a individua-
lidade e a sociabilidade da pessoa humana se assentam também em uma
realidade prática: ela é sujeito de direitos e deveres. Sendo indissociável,
portanto, o indivíduo, da sociedade em que vive.
Já a racionalidade é que permite que a pessoa seja definida como tal,
como assevera Tomás de Aquino: id quod est perfectissimum in tota natura,
scilicet subsistens in rationali natura239. Ela é consciente e livre, e sua liberdade
de corpo e de consciência é algo inerente à sua dignidade.
A racionalidade da pessoa implica também sua dignidade moral. Ela é
o sujeito da moral. Nela encontramos uma unidade entre uma moral indi-
vidual e uma moral social que assume um caráter de tudo ou nada. Ou se
permanece na esfera da moral, ou se fica fora dela 240. Na vida social – como
sugere Aristóteles – admite-se uma busca gradual do bem, mas jamais uma
opção do indivíduo pelo mal, pois bem e mal são dois caminhos excludentes.
Tal consideração adquire relevo, se observado que a vida pública é regu-
lada por diversas normas da vida privada. Isso evidencia que há uma primazia
da moral pessoal sobre a moral social. Este fato se constata no mundo do

238. Id., ibid., p. 35.


239. Pessoa significa o que há de mais perfeito na natureza, a saber, o que subsiste em uma natureza
racional (Summa Theologiae, I, q. 29, a. 3. rep.).
240. Cf. Gonella. Op. cit., p. 23.

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A dignidade da pessoa humana | C A P Í T U LO 3

Direito, não apenas na geração do Direito como também na sua aplicação,


já que a aplicação da norma passa pela aceitação ou repulsa íntima da lei
externa.
A racionalidade da pessoa implica também sua dignidade religiosa, que
não deixa de estar ainda vinculada à dignidade moral. Ora, a reflexão sobre
consciência moral, que surge na Patrística, viria a ser a primeira ameaça
ao absolutismo greco-romano. Por meio dela, recebe-se a lei natural que,
processada racionalmente, limitou o poder do rei medieval, resultando em
uma verdadeira supremacia do Direito no medievo continental241.
Igualmente, a dignidade religiosa da pessoa manifesta-se em dois aspec-
tos: o individual e o social. O primeiro, já observado, diz respeito às convic-
ções; o segundo, à liberdade de prática e de vivência da fé, como também
ao limite dessa liberdade.
Nesta prestação negativa do Estado, observa-se um direito-liberdade que
vai conferir à lei um papel de garantia da liberdade de todos, limitando a
liberdade de indivíduos ou grupos.
A propósito, as constituições modernas consagraram como direito fun-
damental a liberdade de crer e viver a própria crença. Constatar-se-á essa
unidade entre consciência, prática e liberdade de crença, profissão ou culto
religioso, de tal maneira que, na Constituição da República Federal da
Alemanha, encontram-se no mesmo art. 4o a objeção de consciência e a
liberdade religiosa – implicando a liberdade de culto242.
A dignidade econômica da pessoa reflete-se na dignidade do trabalho
humano que não é apenas meio de sobrevivência, mas de satisfação de suas
obrigações morais. Ele é mais que um meio de sustento, é um instrumento
de afirmação da personalidade e da liberdade. A dignidade econômica

241. Cf. Di Lorenzo, Wambert Gomes. A supremacia do Direito no modelo grego e no medievo
continental. Conversas Interdisciplinares, n.1, p. 6, out./dez. 2002.
242. A objeção de consciência está consagrada no art. 143, § 1o, da Constituição Federal brasileira
– imperativo de consciência – como também nos arts. 41, 6, e 276, 4 da Constituição da República
Portuguesa e no art. 30.2 da Constituição de Espanha. Já a liberdade religiosa se afirma nos arts.
8o e 19 da Constituição da República Italiana, e no art. 16 da Constituição espanhola. Na França,
a liberdade de consciência e liberdade religiosa encontram-se nos arts. 4o e 11 da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, em vigor por força do preâmbulo da
Constituição de 1958.

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afirma a propriedade privada como direito natural243 ao mesmo tempo que


a limita 244. Significa, na ordem econômica, a justa relação entre a produção
e a distribuição das riquezas, onde não haja uma superposição valorativa do
capital sobre o trabalho, mas uma concordante conexão entre os dois, onde
o trabalho humano assume o papel central na relação entre os fatores de
produção. O capital deve estar a serviço da dignidade da pessoa humana, e
o trabalho é um meio privilegiado de realizar tal dignidade.
Afirmar a dignidade política da pessoa é afirmar a antítese do indivi-
dualismo e do totalitarismo245, dois extremos que afirmam ou a política em
função do indivíduo, ou o indivíduo em função da política.
A garantia da dignidade da pessoa requer, necessariamente, a superação
da dicotomia entre Estado e sociedade. Não se trata de mera supressão da
oposição entre indivíduo e Estado, mas da compreensão do Estado como
instrumento da comunidade política, parte da comunidade política espe-
cializada no interesse público que tem como fim o bem comum.
A cidadania é ser acidental, que realiza sua existência aderindo à pessoa
humana. A cidadania deve servir à humanidade e não a segunda à primeira.
A pessoa, não o cidadão, é o sujeito e o fim da política. A cidadania surge
da atribuição de direitos políticos à pessoa humana.
Ontologicamente há uma distinção e uma hierarquia entre pessoa e
cidadão. A primeira é anterior ao segundo, existe plenamente sem o segundo,
enquanto o cidadão tem como essência a pessoa humana e, consequen-
temente, a mesma substancialidade desta. Mesmo aquele que não goza
de direitos políticos pode ter sua dignidade respeitada, pois, antes de ser
cidadão, é pessoa humana que, além de gozar dos direitos de liberdade246
e dos direitos sociais247 – inerentes à sua dignidade –, goza, também, de
direitos políticos248.

243. O art. 17 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão já afirmava que a propriedade
“é um direito sagrado e inviolável”.
244. Cf. art. 5o, XXII e XXIII, da CF/1988. Também o mesmo art. 17 da Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão afirma que esse direito de propriedade não é absoluto.
245. Cf. Gonella. Op. cit., p. 36.
246. Cf. art. 5o da CF/1988.
247. Cf. arts. 6o a 11o da CF/1988.
248. Cf. arts. 12 a 17 da CF/1988.

64
A dignidade da pessoa humana | C A P Í T U LO 3

Os direitos da pessoa são anteriores ao direito do Estado, ou seja, surgem


como limites do arbítrio do Estado. A pessoa é, pois, elemento essencial do
ser político. Ela é condição de existência da comunidade política, pois a
mesma comunidade política tem seu ser condicionado ao reconhecimento
da sua existência.
Resta, todavia, clarear o que vem a ser dignidade, para garantir a eficácia
de tal valor. Inicialmente é importante frisar que a dignidade, no seu sentido
ontológico e jurídico, não se confunde com uma qualidade, uma estima
ou valia do ser. Dignidade é uma onomatópose de bem. É a plenitude do
existir humano, uma realização, um fim último que passa pela efetivação
de vários fins imediatos.
Dignidade da pessoa humana é um fim mediato, que passa pela realiza-
ção de vários meios igualmente garantidos nas constituições249. Tais garantias
dizem respeito, por dedução, à dignidade total, que pressupõe a dignidade
em cada dimensão do existir, que se assenta nos elementos essenciais e subs-
tanciais da pessoa. Assim, o bem-estar físico diz respeito ao corpo e à alma.
A dignidade religiosa diz respeito à razão e à alma, igualmente a dignidade
moral, e assim por diante.
Os aspectos da dignidade – religiosa, moral, jurídica, política e econô-
mica – são contemplados pelo Direito e dizem respeito a bens específicos
que devem ser buscados em função de um todo, de um bem total. A
dignidade é esse bem total. Bem total como ato do indivíduo e não como
bem comum.
Só a partir da pessoa humana o bem comum torna-se inteligível. Daí a
observação de que, se concernente ao Estado, ele é fim, em relação à pessoa
ele é meio, o que nos força a, doravante, abordar estas duas acepções distin-
tas: o bem comum enquanto fim da sociedade política e como meio para a
realização da pessoa e plenitude de sua dignidade.
Ele não é mera soma dos bens individuais, uma coleção de bens priva-
dos , nem o bem do todo face à parte, mas um bem comum ao todo e às
250

partes, na afirmação de Maritain. Ou ainda, na afirmação de Finnis, o bem

249. Importa aqui o minucioso arrolamento de Ingo Sarlet. Cf. Dignidade da pessoa humana e Direitos
Fundamentais..., cit., p. 61.
250. Cf. Maritain, Jacques. Os direitos do homem e a lei natural, cit., p. 19.

65
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comum não é totalitário, pois, para a realização do todo, exige a realização


de um bem individual e privado251.

251. Finnis, John. Ley natural y derechos naturales. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2000, p. 170.

66
O princípio do
Capítulo
4
bem comum

O
princípio do bem comum é o princípio personalista de
justiça política 252 e decorre imediatamente do princí-
pio da dignidade da pessoa humana. Numa brevíssima
composição, podemos afirmá-lo como o conjunto das condições
necessárias para que a pessoa humana realize sua dignidade.
É um princípio que reclama a democracia como condição
necessária para sua realização. Em outras palavras, a democracia
não é apenas o regime mais favorável para sua efetivação, mas o
único regime capaz de realizá-lo politicamente. Mais claramente,
ele é incompatível com qualquer outro modelo de democracia
que não seja a democracia personalista. Sua realização implica o
princípio de subsidiariedade e o de solidariedade, sendo eles o triplex
instrumental da realização da dignidade da pessoa humana.
No que tange à questão social, sua solvência exige a democracia
personalista e a aplicação de seus princípios. O primeiro a ser tra-
tado, o bem comum, é o tema deste capítulo. Numa primeira parte
tentar-se-á delimitar o conceito de bem comum; numa segunda,
será tratada a justiça política; e, numa terceira, o bem comum
enquanto princípio fundamental da democracia.

252. Ainda que Gabriel Chalmeta, autor da expressão, reduza o princípio personalista de
justiça política ao bem comum da liberdade (Cf. Chalmeta, Gabriel. Ética social: familia,
profesión y ciudadanía. Pamplona: EUNSA, 2003, p. 196).

67
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4.1. O CONCEITO DE BEM COMUM


O conceito de bem é uma categoria fundamental da filosofia prática e
da ética clássica. Segundo Aristóteles, o bem é aquilo a que todas as coisas
tendem253.
Ainda reconhecendo que o vocábulo “bem” tenha tantos sentidos quanto
o vocábulo “ser”254, o Estagirita afirma que o bem propriamente humano é
o fim255. Em suas palavras, a finalidade será o bem humano256.
Em síntese, toda pessoa tende ao seu fim, que é o seu bem, havendo,
como ainda afirma Aristóteles, certa diversidade de fins que podem estar
tanto na própria ação ou existir distintos delas257. Os últimos subordinam
os primeiros e são procurados a partir deles.
Os fins distintos das ações são desejados de per si, enquanto os demais
são desejados em razão dos outros que lhe são superiores. Àquele que é
buscado por si, e não em razão de outro, dá-se o nome de fim último, os
demais poderão ser chamados de fins intermediários.

4.1.1. O bem humano absoluto


Ao que é buscado por si mesmo, sem razão de nenhum outro, é chamado
de bem, ou antes, sumo bem258 . Adverte, entretanto, que um bem único,
universalmente predicável dos bens ou capaz de existência separada e inde-
pendente, jamais poderia ser alcançado pelo homem259. Portanto, o bem do
qual trata a ética é um bem atingível, um bem prático. Não é dado a priori,
mas descoberto pelo sujeito. Jacques Maritain diz que ele é um bem prático e
não absoluto, no sentido de objeto supremo do entendimento especulativo260.
Ainda, segundo Aristóteles, há vários fins dentre os quais a pessoa escolhe
alguns. Por isso, não são absolutos. Sendo um só o fim absoluto será ele o
fim procurado, e, se existir mais de um – com aparência de absoluto –, o

253. Ética a Nicômaco, 1094a.


254. Id., ibid., 1096a, 20-30.
255. Id., ibid., 1096a, 15-20.
256. Id., ibid., 1094b, 5-10.
257. Id., ibid., 1094a, 10-15.
258. Id., ibid., 1094a, 20-25.
259. Id., ibid., 1096b, 30-35.
260. Cf. Maritain, Jacques. La persona y el bien común, cit., p. 70.

68
O princípio do bem comum | C A P Í T U LO 4

mais absoluto de todos é que será procurado261. De tal sorte que ele jamais
é procurado em razão ou no interesse de outra coisa, sendo assim, além de
absoluto, incondicional262.
Mas qual seria esse sumo bem, esse fim absoluto da pessoa? Esse excelso
incondicional que é desejado em razão de si mesmo e jamais em razão de
outra coisa? Aristóteles propõe: “Ora, esse é o conceito que preeminente-
mente fazemos de felicidade”263. Felicidade que é, como já foi afirmado, a
onomatópose de sua dignidade. Não sendo apenas o fim último da pessoa,
felicidade é o fim absoluto da própria política264 e é o fundamento do próprio
princípio do bem comum.
Na síntese Aristotélica, a felicidade é um primeiro princípio, aquele que
orienta toda a ação humana265 e que, sendo o último na execução, é também
o primeiro na intenção.
Por se tratar de um bem absoluto, a felicidade é um estado de autossu-
ficiência visto que a autossuficiência é o atributo próprio do absoluto, sendo
ela aquilo que, em si mesmo, torna a vida desejável e carente de nada 266.
Entretanto, Aristóteles não entende por autossuficiente aquilo que é
suficiente para um homem só, para um misantropo. Para ele, o suficiente
passa pela vida comunitária resultante da natureza social da pessoa.
Essa concepção de autossuficiência é o elo entre a plenitude e o reconhe-
cimento anteriormente afirmados. É aquilo que unifica a estrutura bipartida
da dignidade da pessoa, o aspecto endógeno e exógeno nos quais o primeiro
trata da relação da pessoa consigo própria, e, o segundo, da pessoa com o
seu meio.
Consequentemente, a dignidade é um conceito eudaimônico de felici-
dade. De sorte que uma ideia de autonomia absoluta em face da comuni-
dade é irrealizável, pois que, no concernente à dignidade, entre plenitude e
reconhecimento há uma implicação necessária.

261. Ética a Nicômaco, 1097a, 25-30.


262. Id., ibid., 1097a, 30.
263. Id., ibid., 1097b.
264. Id., ibid., 1099b, 25-30. Cf., também, 1102b, 15-20.
265. Id., ibid., 1102a.
266. Id., ibid., 1097b, 10-20.

69
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Em outras palavras, os bens humanos necessários à realização do ideal


de autossuficiência passam pela vida em comunidade, não sendo possível
à pessoa atingir seu sumo bem em uma vida apartada. Há, assim, uma
indissociabilidade entre a dignidade ontológica e dignidade moral da pessoa,
ainda porque felicidade implica virtude: “felicidade é uma atividade da
alma conforme a virtude perfeita”267, sendo, também, além de fim da vida
humana, o bem viver e o bem agir268.
A infelicidade, portanto, é o antípoda da autossuficiência, podendo ser
definida como um estado de carência dos bens humanos necessários ao
bem viver. Assim sendo, a questão social, supra descrita, é o problema da
superlativa multidão de pessoas humanas hipossuficientes, isto é, da soberba
multidão de infelizes.
Não se compreenderá o bem comum se este for assimilado como bens
das pessoas consideradas individualmente. Ele não é a simples coleção de
bens individuais.
Entrementes, sendo a felicidade o sumo bem humano, também não se
pode deduzir o bem comum como um estado de beatitude coletiva, um
êxtase comunitário, uma felicidade geral, nem o bem próprio de um todo
que beneficia a si mesmo sacrificando as partes, porquanto ele “não é o bem
‘do todo’, mas ‘de todos’”269.
Além da dignidade, o bem comum resulta da unidade e da igualdade
das pessoas e relaciona todos os aspectos da vida social. Como dito, não é a
soma de bens individuais, mas é o bem de todos e de cada um. De natureza
indivisível requer um esforço comum para sua realização e manutenção. Ele
se realiza no tempo e no espaço e é o fim da vida social.

4.1.2. Noções sobre o bem comum


O bem comum não é o sumo bem em si, mas dele decorre e por ele é
exigido. Não é um fim isolado, mas se funda nos fins últimos das pessoas,
sendo um bem necessário para a realização do sumo bem. Aliás, Maritain

267. Id., ibid., 1102a, 5-10.


268. Id., ibid., 1095a, 15-20.
269. Barzotto, Luis Fernando. A democracia na Constituição. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003,
p. 34.

70
O princípio do bem comum | C A P Í T U LO 4

afirma que o bem comum deixa de ser o que é se não retorna às pessoas e se
redistribui entre elas e, ainda, que não manterá sua natureza se não respeitar
aquilo que é superior a ele270.
Gabriel Chalmeta nota que quase todas as teorias políticas reconhecem
que o bem humano tem uma natureza social e comum271. Entretanto, apenas
o bem comum é um bem humano que constitui o fim comum de todos os
membros da sociedade272 e o conjunto de condições para o bom desempenho
da atividade política 273.
John Finnis define “bem comum” como um conjunto de condições que
capacita os membros de uma comunidade para alcançar, por si mesmos,
objetivos razoáveis e que os motivam a colaborar mutuamente em uma
comunidade274.
Maritain afirma que o bem comum tem consequências maiores que o
bem-estar público, pois é, por natureza, a boa vida humana da multidão,
sendo comum tanto ao todo, quanto às partes. Não é apenas uma coleção de
haveres públicos, mas a integração sociológica de toda consciência cívica 275.
Só a partir da pessoa humana o bem comum torna-se inteligível. Se
para o Estado ele é fim, em relação à pessoa ele é o meio privilegiado de seu
aperfeiçoamento e requer a realização de direitos e deveres sem os quais a
dignidade da pessoa tornar-se-ia mera alegoria. Assim, não há de se afirmar
uma plenitude humana isolada, a despeito da sociedade ou mesmo do corpo
político. Sem o bem comum a plenitude humana tornar-se-ia uma fábula,
uma utopia.
O bem comum não exige que os membros de uma comunidade tenham
os mesmos valores e objetivos, ele é o lugar comum de bens próprios da
natureza humana, bens individuais comuns a todas as pessoas.
Ele obriga a comunidade a garantir as condições para a realização dos
valores pessoais, sem assumir como seus esse fins individuais. Tais bens
correspondem a necessidades que revelam a insuficiência do indivíduo, da

270. Cf. Maritain, Jacques. La persona y el bien común, cit., p. 68.


271. Cf. Chalmeta, Gabriel. La justicia política…, cit., p. 155.
272. Cf. Chalmeta, Gabriel. Ética social…, cit., p. 201.
273. Id., ibid., p. 203.
274. Cf. Finnis, John. Ley natural y derechos naturales, cit., p. 184.
275. Cf. Maritain, Jacques. O Homem e o Estado. Rio de Janeiro: Agir, 1956, p. 21.

71
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

família, ou mesmo de comunidades, na realização ou subsídio dos meios de


realização dos fins últimos.
Bem comum, conforme Finnis, é uma exigência da razão prática 276.
Trata-se de várias ordens de relações unificantes entre as pessoas, como a
família e a amizade, que se subsumem em grupos maiores, como comuni-
dade, Estado e, por fim, toda família humana277.

4.1.3. O bem comum e o princípio de correlação


Essa relação entre o bem individual e o bem comum é regida por um
princípio secundário que Karol Wojtyla denomina princípio de correlação
entre o bem da pessoa e o bem comum, segundo o qual se constata que a natu-
reza social da pessoa a leva não apenas a interagir com seres humanos, mas
lhe confere uma inclinação interior à criação de sociedades e comunidades,
pois, ainda que faça parte de uma espécie, o indivíduo humano é uma pessoa
e sua espécie não é uma multidão caótica, mas formada, por sua própria
natureza, por sociedades e comunidades278. A corrupção de tal princípio
gera dois extremos: a subordinação do bem comum a um bem individual
e o aniquilamento do bem pessoal em face de um bem coletivo e total279.
Tal princípio, enunciado por Wojtyla, já foi expresso por Tomás de
Aquino quando afirmou que “todo bem da parte se ordena ao todo”280 e
que “o bem comum se há de preferir sempre ao bem privado”281. E, por
Maritain, quando afirma que a pessoa deve buscar servir à comunidade e
ao bem comum livremente, aspirando a sua própria plenitude282.
A regra de ouro, expressão mais evidente da lei natural, é um patrimônio
universal das diversas tradições morais da humanidade as quais a expres-
saram em fórmulas semelhantes, tais como a tradição budista: não ferir ao
outro de um modo que poderiam ferir a ti; a tradição hindu: esta é a síntese
do dever: não fazer aos outros o que faria mal a ti; a tradição confucionista:

276. Id., ibid., p. 173.


277. Id., ibid., p. 167.
278. Cf. Wojtyla, Karol. Mi visión del hombre. Madrid: Palabra, 2005, p. 317.
279. Id., ibid., p. 318.
280. Aquino, Tomás de. Summa Theologiae II-II, q. 58, a. 6.
281. Id., ibid., II, q. 68, a. 1, rep. 3.
282. Cf. Maritain, Jacques. La persona y el bien común, cit., p. 82.

72
O princípio do bem comum | C A P Í T U LO 4

eis aqui a máxima segura do amor: não fazer aos outros o que não queres que
eles façam a ti; a tradição islâmica: nenhum de vocês será um crente se não
deseja para seu irmão o que deseja para si mesmo; e, como regra positiva, na
tradição cristã em particular: tudo quanto queiram que lhes façam os homens,
fazei também vocês a eles283.
A regra de ouro tem sua expressão mínima, elementar e sintética, na
fórmula não matarás284. Mas, afirmar a vida em si como o primeiro dos bens
fundamentais é um truísmo. Uma obviedade tão evidente que não deveria
constar no rol dos bens fundamentais, pois mesmo a felicidade, enquanto
sumo bem da pessoa, é a vida em si, a vida boa. A vida primariamente bio-
lógica – que é o objeto da regra de ouro – não é fim em si, não é um bem
no sentido teleológico, mas no sentido causal. A vida é o próprio existir da
pessoa em si, já que, como dito, o existir humano é o viver. A vida humana
em si não é objeto de um direito, mas o próprio sujeito e fundamento de
todos os direitos.

4.1.4. Os bens contingentes


Como vimos, a realização do fim último depende da realização de fins
intermediários os quais poderíamos chamar de meios, ou bens contingentes.
Bem, no sentido aqui empregado, diz respeito às coisas necessárias à satis-
fação das necessidades da pessoa, isto é, fins que, ao serem atingidos, apro-
ximam a pessoa do seu fim último, do seu estado ideal de autossuficiência.
Tais bens, assim como todos os fins intermédios da vida, além de diver-
sos, estão dispostos de forma hierárquica a partir dos fins que possibilitam
alcançar. Têm um conteúdo teleológico constituído de referibilidade e pre-
feribilidade, pois, enquanto norteiam a ação, são dignos de escolha em razão
dos fins que lhe são superiores285.
Alguns deles são básicos, fundamentais. São esses que compõem o rol
daquilo que chamaremos de bens comuns, ou seja, a listagem de fins e coisas

283. Cf. Scarponi, Carlos Alberto. La cultura en la sociedad plural. In: Fernández, Gonzalo & Gentile,
Jorge (org.). Pluralismo y derechos humanos, cit., p. 217.
284. Id., ibid., p. 218.
285. Cf. Di Lorenzo, Wambert. El colectivismo axiológico en la teoría de los valores de Miguel Reale.
Disponível em: <http://www.maritain.com.br>. Acesso em: 08/08/2008.

73
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

necessárias às exigências do bem viver de todas as pessoas humanas. São


bens universais, portanto.
No plano político, o primeiro bem universal necessário é o bem-estar.
Para Maritain, ele é parte essencial do bem comum286. Já para Chalmeta,
interpretando Tomás de Aquino, o bem comum material é o primeiro bem
a ser realizado pela sociedade política 287.
De fato, a primeira consequência prática da ideia de autossuficiência é o
impulso de satisfazer as necessidades mais elementares, aquelas que corres-
pondem à vida biológica em si, mas com um conteúdo idealístico, teleoló-
gico, inspirado no absoluto. Até no reino animal comprova-se o esforço de
determinadas espécies, sobretudo daquelas que se organizam coletivamente,
em providenciar não apenas as satisfações prementes, mas em acumular,
previdentemente, os bens necessários à subsistência futura.
Nesse sentido, o bem-estar, e os bens dele decorrentes numa ordem de
subordinação, é o primeiro bem comum a ser realizado pela ordem social
e política.
A diversidade de bens comuns exige da pessoa e dos corpos sociais o
estabelecimento de uma ordem de preferências partindo de uma ordem de
referência estabelecida pelos fins secundários que se pretende alcançar. Antes
de aprofundar o argumento, vale fazer alusão a algumas listagens fixadas
por quem já tratou do tema.
No rol estabelecido por John Finnis, seriam: vida, lazer, experiência
estética, amizade, religiosidade, liberdade e razão prática288 . A Doutrina Social
da Igreja enumera: alimentação, trabalho, educação, acesso à cultura, trans-
porte, saúde, livre circulação das informações e liberdade religiosa289. Em outra
listagem: alimento, roupa, habitação, direito de escolher livremente o estado
de vida e constituir família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao
respeito, à conveniente informação, direito de agir segundo a norma reta de sua
consciência, direito à proteção da vida particular e à justa liberdade, também

286. Cf. Maritain, Jacques. O Homem e o Estado, cit., p. 20.


287. Cf. Chalmeta, Gabriel. La justicia política…, cit., p. 177.
288. Ley natural y derechos naturales, cit., p. 184.
289. Cf. Concílio Vaticano II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, 26.

74
O princípio do bem comum | C A P Í T U LO 4

em matéria religiosa290. Ainda, em relação diversa: vida, família, amizade,


trabalho, experiência da beleza, conhecimento e harmonia interior291. Maritain,
por sua vez, identifica tais bens básicos com direitos fundamentais: direito
à existência, à busca da felicidade, à liberdade pessoal, à busca da perfeição na
vida moral, à propriedade privada, ao sufrágio292.
Entretanto, há de se distinguir bens humanos fundamentais de direitos
humanos fundamentais. Ainda que haja uma identidade no campo da her-
menêutica, há uma distinção ontológica entre eles. Os direitos têm como
objeto os bens que pretendem garantir ou efetivar. Os bens são, assim,
alicerce dos direitos fundamentais e o seu objeto293.
O rol dos bens fundamentais corresponde ao rol dos fins humanos cor-
respondentes às várias dimensões do existir humano já enumeradas. São eles:
bem-estar – decorrente da dimensão econômica da pessoa –, cultura, lazer,
moral, família, estética, política e religião. Desses bens universais decorrem
os direitos consagrados nas declarações e nas constituições.
Entretanto, na relação que há entre a dignidade da pessoa humana e os
direitos fundamentais importa mencionar a aguda observação de Ingo Sarlet
de que “a dignidade da pessoa humana não é e nem poderá ser, ela própria
um direito fundamental”294. Segundo ele, como anteriormente menciona-
mos, é um equívoco falar em um direito à dignidade porquanto o que há é
um direito “a reconhecimento, respeito, proteção e até mesmo promoção e
desenvolvimento da dignidade, podendo inclusive falar-se de um direito a
existência digna, sem prejuízo de outros sentidos que se possa atribuir aos
direitos fundamentais relativos à dignidade da pessoa”295.
Maritain adverte que, a partir da matriz antropológica elegida, a aplica-
ção dos direitos fundamentais tem resultados práticos díspares. Explica: o
individualismo fundamenta-os no poder que cada pessoa tem de apropriar-
se individualmente dos bens naturais para poder fazer livremente o que

290. Cf. Gaudium et Spes, 26.


291. Cf. Gómez-Lobo, Alfonso. Los bienes humanos: Ética de la ley natural. Santiago do Chile:
Mediterraneo, 2006, p. 25-45.
292. Cf. Maritain, Jacques. O Homem e o Estado, cit., p. 118-119.
293. Cf. Maritain, Jacques. La persona y el bien común, cit., p. 57.
294. Sarlet, Ingo. Op. cit., p. 71. Cf., também, n. 205.
295. Id., ibid.

75
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

quiser; o coletivismo fundamenta-os no poder de submeter os bens básicos


ao comando coletivo do corpo social; e o personalismo fundamenta-os no
poder de colocar esses mesmos bens “a serviço da conquista comum de bens
intrinsecamente humanos, morais e espirituais e da liberdade humana de
autonomia”296. Os defensores de cada modelo sempre acusarão os demais
de ignorar direitos essenciais do ser humano. Entretanto, salienta ainda: “é
tão pouco necessário ser discípulo de Rousseau para reconhecer os direitos
do indivíduo, como um marxista para reconhecer os direitos econômicos
e sociais”297.
Ademais, tratar o bem comum como uma questão de direitos é reduzi-lo
a um dos níveis nos quais ele se manifesta, ou seja, ao bem comum político.
O bem comum é realizado também em níveis sociais aos quais o Direito
não alcança, e, além disso, não é seu papel regular as relações humanas que
se dão em tais níveis.
Seria próprio de um movimento totalitário jurisdicizar todos os níveis
de relações humanas e todos os fenômenos normativos que regulam a vida
social, não permitindo espaço para a ética, antes disso, operando uma
jurisdicização da ética.
Tomás de Aquino já discorria sobre a questão, afirmando que a lei é dada
a uma sociedade em que há muitos desprovidos de virtude. Mas a lei não
pode impedir o que é contrário à virtude, bastando-lhe proibir o que destrói
a convivência social. Decreta ele: o resto é tido como lícito – no sentido de legal
–, não porque seja aprovado – bom –, mas porque não é punido pela lei 298.
Existe, portanto, um espaço que resta inalcançável pelo Direito, mas que
nem por isso é alheio à justiça. Tal questão, como enunciado, será tratada
na segunda parte deste capítulo.

4.1.5. Os níveis do bem comum


Em que pese este estudo fazer copiosa referência ao bem comum
político, há, entretanto, três níveis de bem comum: o político, o social
e o doméstico. Tanto quanto há uma unicidade entre os princípios da

296. Cf. Maritain, Jacques. O Homem e o Estado, cit., p. 126.


297. Id., ibid., p. 124.
298. Summa Theologiae II-II, q. 77, a. 1, res. 1.

76
O princípio do bem comum | C A P Í T U LO 4

democracia personalista, há uma unicidade interna em cada um deles, de


sorte que há um único bem comum que se realiza em níveis diferentes
da vida social, correspondendo a bens básicos que são encontrados nas
diversas esferas de relações sociais. São eles: o bem comum doméstico,
o bem comum social e o bem comum político – que compreende, tam-
bém, um bem comum universal. Ainda que os de menor extensão digam
respeito imediatamente a uma parte da vida social, todo bem da parte se
ordena ao todo299.
No que toca à demonstração prática e aos efeitos políticos dos vários
níveis de bem comum, tal objeto não pode ser feito sem recorrer ao princípio
de subsidiariedade, no qual, no capítulo a ele destinado, abordaremos os dois
aspectos do bem comum político – particular e universal –, o bem comum
social e sua importância na economia e o bem comum doméstico – primeira
ordem de bens básicos necessários à dignidade da pessoa.
De fato, a constatação da existência dos níveis de bem comum remete
para a autonomia dos planos de mediação entre a pessoa – enquanto ordem
de menor extensão – e a ordem internacional – a de maior amplitude300. Em
cada nível, encontram-se presentes bens básicos necessários à realização da
dignidade, cujo acesso será regido pelo princípio de subsidiariedade.
O princípio de subsidiariedade expressa a autonomia própria de cada
esfera, nas quais o bem comum de uma não pode ser deduzido do de outra: “o
inferior não está obrigado a obedecer a seu superior quando este lhe dá uma
ordem num assunto em que não lhe está sujeito”301. Isto é, o bem comum
distribuído em esferas de justiça distintas resulta em matérias distintas, daí,
a primeira definição de princípio de subsidiariedade a ser demonstrada no
próximo capítulo é de um princípio de competência.

299. Summa Theologiae II-II, q. 58, a. 6.


300. Passando pelo corpo político e o Estado. Adotaremos a distinção de Maritain entre corpo político
e Estado, a ser tratado no segundo capítulo desta parte: o princípio de subsidiariedade.
301. Cf. Tomás de Aquino. S. T. q. 104, a. 6. res. 2. Ainda: “Desta forma, nem os servos estão obrigados
a obedecer a seus senhores, nem os filhos aos pais, para contrair núpcias, guardar ou não virgindade,
ou em outros assuntos semelhantes. – Mas naquilo que concerne à organização das atividades e dos
negócios humanos, o súdito é obrigado a obedecer a seu superior, conforme a razão de superioridade:
assim o soldado com relação a seu comandante no que diz respeito à guerra; o servo com relação a
seu senhor na tarefa a ser cumprida; o filho com relação ao pai na disciplina da vida e organização
doméstica, e assim por diante” (Id., ibid.).

77
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Subsidiariedade é um princípio de justiça que proíbe que as associações


maiores assumam funções que podem ser realizadas eficientemente por asso-
ciações menores e que tem como função própria respeitar a associação de
indivíduos que se reúnem para realizar seus fins a partir de suas iniciativas
individuais302. Ainda, bem comum e subsidiariedade têm sua complementa-
ridade no princípio de solidariedade, que também ocorre nos mesmos níveis
em que se manifesta o bem comum e que se regulam pela subsidiariedade,
restando posto uma implicação entre subsidiariedade e solidariedade.
Solidariedade, por seu turno, é um nome novo dado a uma categoria que
lhe é anterior: a amizade. É do conceito clássico de amizade política que a
solidariedade retira seu conteúdo. Sobre isso, valem as lições de Aristóteles
ao declarar que, independente do auxílio mútuo, os homens desejam viver
em comum, reconhecendo haver uma utilidade comum nessa inclinação
natural na medida em que esta vida comum favorece o bem-estar que é o fim
da comunidade e do indivíduo em si. Mas, observa: “os homens também se
reúnem e mantêm a comunidade política, pura e simplesmente, para viver,
por isso já existe um elemento, valioso no simples viver”303. Acrescenta, ainda,
que a amizade é o maior dos bens para as cidades304 .
É por isso que, como explica John Finnis, o bem comum entre amigos
não se resume numa exitosa colaboração ou comunhão de interesses em bens
específicos, mas “é da mútua conformação de si mesmos, da mútua plenitude
e autorrealização”305. Ela é o querer o bem do amigo, o comprometer-se em
ajudá-lo em sua participação em alguns ou em todos os aspectos básicos de
sua plena realização humana306. Não sem coerência, Finnis descreve o bem
comum como “uma concepção compartilhada sobre o fim da cooperação
continuada”307.
A tríplice manifestação do bem comum corresponde, segundo Chalmeta,
a uma tríplice forma de amizade e justiça. Pois, mesmo a justiça política – que
regula as relações das pessoas em face da sociedade política – requer uma

302. Cf. Finnis, John. Ley natural y derechos naturales, cit., p. 176.
303. Aristóteles. Política III, 1278, 20-25.
304. Id., ibid., II, 1262, 5-10.
305. Cf. Finnis, John. Op. cit., p. 174.
306. Id., ibid., p. 174.
307. Id., ibid., p. 182.

78
O princípio do bem comum | C A P Í T U LO 4

justiça particular e comutativa, que regule as relações individuais frequentes


no âmbito do mercado e das relações de trabalho, e, um tipo de justiça
doméstica que ordena a pessoa ao bem comum da família308. Nas palavras
de Tomás de Aquino, “se além da justiça geral, existe uma outra justiça
particular que diz respeito à pessoa, por igual razão deve haver uma justiça
doméstica, que ordena o homem ao bem comum da família”309. Como
elucida Aristóteles, “trata-se, neste caso, de justiça doméstica, a qual, sem
embargo, difere da justiça política”310.

4.2. AS DIMENSÕES DO BEM COMUM


A tradição ocidental firmou a ideia de que justiça, antes de tudo, é uma
virtude e, como virtude, é um hábito que leva ao bem. Aristóteles definiu
como “aquela disposição de caráter que torna as pessoas propensas a fazer
o que é justo, que as faz agir justamente e desejar o que é justo”311. Virtude
política por excelência. Em sentido estrito, justiça é aquele hábito que ordena
a vida na pólis. Como toda virtude, a justiça não tem valor em si mesma,
mas no bem para a qual ela orienta. Neste sentido, Aristóteles entendia que
a justiça era uma virtude completa312.
Tomás de Aquino, concorde Aristóteles, afirma que ela é um “habitus
pelo qual, com vontade constante e perpétua, se dá a cada um o seu direito”313
e reconhece que tal definição é muito próxima da de Aristóteles314: “a justiça
é aquilo em virtude do qual se diz que o homem justo pratica, por escolha
própria, o que é justo”315.
A fórmula aplicada por Tomás de Aquino revela o objeto da justiça – o
Direito – e o seu conteúdo – a alteridade. Pois, sendo o direito dar a cada um

308. Cf. Chalmeta, Gabriel. La justicia política…, cit., p. 162.


309. Summa Theologiae II –II, q. 58, a. 7, 3.
310. Ética a Nicômaco, 1034b, 15-20.
311. Ética a Nicômaco, 1129a.
312. “(...) quem a possui pode exercer a virtude não só sobre si mesmo, mas sobre seu próximo, já
que muitos homens são capazes de exercer suas virtudes em assuntos privados, porém não em suas
relações com os outros” (Ética a Nicômaco, 1129b, 30).
313. Justitia est habitus secundum quem aliquis constanti et perpetua volutate jus suum unicuique tribuit.
(S. T. q. 58, res.)
314. Cf. Summa Theologiae II-II, q. 58, res.
315. Aristóteles. Ética a Nicômaco, 1134a, 01-05.

79
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

o que lhe é devido316 , a justiça é o bem do outro317. Como ensina o Aquinate,


é próprio da justiça ordenar a pessoa no que diz respeito a outrem318. Tal
ordenação pode se dar de duas maneiras: com outrem considerado singu-
larmente, e com outrem enquanto parte de uma comunidade319.

4.2.1. A justiça política


A partir da concisa síntese do suum cuique, resta estabelecer o que é
de cada um. Desse modo, a justiça política tem por função estabelecer os
critérios do que é devido a quem, no corpo político. Em outra formulação,
quais critérios para determinar o que é de cada um na comunidade política.
Tal esfera de justiça é o que se chama de justiça política. Ela proporciona,
como explica MacIntyre, um objetivo comum e uma visão comum, mas
que não almeja apenas bens políticos, mas alcançar todos os bens de seus
cidadãos320, como é próprio do melhor tipo de pólis.
Importa retomar a função da justiça política, isto é, dizer o que é de cada
um no plano político. Como veremos, há uma diversidade de critérios, mas
é o bem comum o seu princípio fundamental. Ou seja, o bem comum é
o princípio norteador do que pertence a todos e a cada um na comunidade
política.
Justiça política implica atribuir direitos e deveres às pessoas em tempo
que se relacionam enquanto cidadãos e não enquanto vizinhos, amigos,
parentes ou colegas de trabalho ou associações civis. Tais circunstâncias
exigem uma série de princípios éticos que se aplicam exclusivamente ao
corpo político.
Se a esfera política requer critérios de justiça próprios, o mesmo se dá com
os demais níveis da vida social. Aristóteles321 classifica a justiça em total e
particular322. A justiça total – ou geral – está ligada à lei; a justiça particular

316. Na clássica formulação romana posta no Digesto: jus est suum cuique tribuendi.
317. Cf. Aristóteles. Ética a Nicômaco, 1130a, 01-05.
318. Summa Theologiae II-II, q. 57, a. 1, res.
319. Summa Theologiae II-II, q. 58, a. 5, res.
320. Macintyre, Alasdair. Justiça de Quem? Qual a Racionalidade? Rio de Janeiro: Loyola, 1991, p. 122.
321. De forma mais geral e descritiva, cf. Di Lorenzo, Wambert. O conceito de justiça em Aristóteles.
Direito e Justiça, v. 21, ano 22, 2000/2, p. 145-162.
322. Cf. Ética a Nicômaco,1130a – 1131a 5.

80
O princípio do bem comum | C A P Í T U LO 4

é norteada pela noção de igualdade323. A justiça particular é dividida em


distributiva e corretiva, havendo ainda uma justiça doméstica distinta das
demais.
Sinteticamente, a justiça doméstica orienta a comunidade familiar em
face do bem comum doméstico. Segundo Aristóteles, embora esse tipo de
justiça se assemelhe à justiça geral e à particular, ou seja, a dos cidadãos,
não se trata da mesma coisa324. O bem comum doméstico é protegido por
um princípio de autonomia que é politicamente orientado pelo princípio de
subsidiariedade. O mesmo princípio de autonomia protegerá, na sua devida
proporção, os planos sociais intermédios e superiores em extensão, bem como
estabelecerá os limites do alcance da justiça política.
Um dos problemas práticos enfrentado pela maioria das comunidades
políticas atuais tem raízes teóricas: o uso abusivo, indiscriminado e confuso
da expressão justiça social como sinônimo de justiça política, agravado pela
retórica comum que atribui à justiça social exclusivamente as categorias de
justiça distributiva, como se entre elas imperasse a sinonímia.
A justiça política requer critérios, tanto de justiça distributiva, quanto de
justiça social, e é vedada ao juiz como tal, porquanto é tarefa exclusivamente
política.
Dito que a justiça é dividia em geral e particular, tratemos primeiramente
da justiça particular que é dividida em justiça distributiva e justiça corretiva.
A justiça distributiva é a justiça do legislador. Ela objetiva distribuir os
bens da comunidade com igualdade, mas uma igualdade proporcional ou
geométrica e não aritmética, cabendo ao legislador partilhar todos os bens
divisíveis, “o justo é uma espécie de termo proporcional”325. No exemplo
de Aristóteles, para os democratas, o critério de distribuição é a condição
de homem livre; para os oligarcas, a riqueza ou a origem nobre; e, para os
aristocratas, as qualidades de cada um326. É a partir do modelo político em
que estará inserido que o legislador empregará os critérios de distribuição

323. Cf. Despotopoulos, Constantin. Les concepts de juste et justice selon Aristote. Archives de
Philosophie du droit. Paris: n. 14, p. 304, 1969.
324. Id., ibid., 1134b, 20.
325. Aristóteles. Ética a Nicômaco, 1331a, 30.
326. Id., ibid., 1331a, 25.

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Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

e repartirá proporcionalmente o que é comum. A justiça distributiva trata


da relação do todo com a parte, da relação do que é comum a cada uma
das pessoas327.
Trata-se de uma proporção geométrica, que não é contínua, pois não
oferece um termo único que represente uma pessoa ou coisa 328. Se dois
indivíduos são iguais, a distribuição entre eles será feita igualmente, se são
desiguais, o justo é a razão, é a igualdade entre as razões de cada indivíduo
com o bem que lhe foi conferido.
Na justiça distributiva, dá-se algo a uma pessoa privada enquanto o que
é do todo é devido à parte. Por isso, o justo não é considerado como uma
igualdade de coisa a coisa, mas de acordo com uma proporção das coisas
às pessoas, considerado a partir de um tipo de proporcionalidade em que a
igualdade não é de quantidade, mas de proporção329. Assim sendo, a justiça
distributiva relaciona pessoas a coisas.
Já a justiça corretiva, segundo Aristóteles, é a justiça do juiz, que julga
casos de transações voluntárias e involuntárias, infligindo punições e solucio-
nando disputas. Também busca a igualdade, não através de uma proporção
geométrica, mas aritmética. Enquanto justiça particular, ela iguala os homens
perante a pólis, não os relacionando entre si, nem às coisas – como na distri-
butiva –, mas relacionando as coisas entre si. Sem importar se um homem
virtuoso defraudou um mau ou vice-versa, aplicando-a, o juiz tentará buscar
a igualdade diminuindo a perda e subtraindo o ganho. Aristóteles chega a
fazer um jogo de palavras, afirmando que a díxa330 é a missão do dikatis –
juiz331 –, que também pode ser considerado um dixa’stis332, ou seja, aquele
que divide no meio333. Como o justo é um meio-termo, o juiz busca um
ponto intermediário entre a perda e o ganho; o igual entre o menor e o maior.
A justiça corretiva não é reciprocidade. Discordando dos pitagóricos que
afirmam que a reciprocidade é justa, Aristóteles refuta: a reciprocidade não

327. Cf. Aquino, Tomás de. Summa Theologiae II-II, q. 61, a. 1 res.
328. Cf. Ética a Nicômaco. 1131b, 10.
329. Cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiae II-II, q. 61, a. 2, res.
330. !"#$ : divisão em duas partes iguais.
331. !%&$'()* .
332. !%#$'()* aquele que divide no meio.
333. Cf. Ética a Nicômaco, 1132a, 25-30.

82
O princípio do bem comum | C A P Í T U LO 4

se aplica à justiça corretiva. Cita o exemplo de uma autoridade que aplica


uma pena e que não deve ser penalizada em represália334. Ela efetua uma
redistribuição dos bens quando falha o legislador ou quando o justo-meio
é rompido nas relações sociais.
A transação voluntária, para que seja justa, requer que a prestação e a
contraprestação sejam iguais, sendo a prestação proporcionalmente igual à
perda e vice-versa. Ora, nem todos os bens são idênticos ou podem seguir os
mesmos critérios de valorização. Daí a moeda 335 ser instrumento da justiça
corretiva nas relações de troca, já que, agindo como medida, torna os bens
comensuráveis e os equipara entre si336.
Já a transação involuntária produz um dano à comunidade e não apenas
ao particular. São atos injustos, independentemente de quem os pratica. Eles
alteram a igualdade estabelecida pelo legislador e desequilibram as relações
sociais. É papel do juiz corrigir a desproporção da transação, subtraindo a
desigualdade e reparando o dano, devendo, nos casos penais, haver um tipo
de igualdade aritmética entre o crime e a punição.
À justiça corretiva Tomás de Aquino deu o nome de comutativa, por
entender ser uma justiça de trocas. Enquanto justiça particular ordena a
relação da parte com a parte e não do todo com a parte, como é o caso da
justiça distributiva337. Enquanto o critério de distribuição é a condição da
pessoa, o critério de comutação é a realidade do dano338.
Como observa Barzotto, Tomás de Aquino amplia a extensão do alcance
da justiça corretiva. Enquanto na justiça corretiva o sujeito da correção só
pode ser o juiz, na comutatio – troca – o sujeito pode ser qualquer pessoa
envolvida em determinado tipo de relações sociais339, sendo a justiça comu-
tativa aquela que regula a troca entre duas pessoas340. Em matéria penal, a

334. Id., ibid., 1132b, 20.


335. Nómisma: moeda. Aristóteles usa ” no lugar de (xrima): dinheiro.
336. Ética a Nicômaco, 1133b, 15.
337. Cf. Aquino, Tomás de, Summa Theologiae II-II, q. 61, a. 1, res.
338. Cf. Summa Theologiae II-II, q. 61, a. 4, res.
339. Cf. Barzotto, Luis Fernando. Justiça Social: Gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Realismo – Revista
Ibero-Americana de Filosofia Política e Filosofia do Direito, v. 1, n. 1, p. 117, 2006/2.
340. “Como já se explicou, na justiça distributiva, se dá algo a uma pessoa privada enquanto o que
é do todo é devido à parte. (...) em justiça distributiva, se dá a alguém tanto mais dos bens comuns,
quanto maior for sua preeminência na comunidade. (...) Assim, na justiça distributiva, o meio-termo

83
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

justiça comutativa se distingue da corretiva, porque Aristóteles entendia


que esse tipo de justiça particular incidia no crime apenas para quantificar
a indenização, enquanto Tomás de Aquino entende que ela incide na quan-
tificação também da pena341.
Compreendida a justiça particular, passemos a tratar da justiça geral.

4.2.2. A justiça social


Aristóteles organiza a justiça em geral e particular342. A justiça geral está
ligada à lei, assim como a injustiça geral corresponde à injustiça contrária à
lei343. A lei estabelece os deveres em relação à comunidade, ou seja, aquelas
ações devidas à comunidade para que ela realize seu bem comum. De sorte
que as ações legais são devidas à comunidade enquanto ações justas, por-
quanto dão à comunidade aquilo que lhe é devido344. É chamada de geral
porque abrange todos os atos devidos à comunidade, independentemente
da sua natureza345.
À justiça geral, Tomás de Aquino deu o nome de justiça legal. Justifica
afirmando que à lei compete ordenar o homem ao bem comum, e, por essa
modalidade de justiça é que o homem se submete à lei que orienta todos
os atos e todas as virtudes ao bem comum346. E, enquanto ordena ao bem
comum, também pode ser chamada de virtude geral347. Assim sendo, ferir
a lei denota um vício especial, um tipo de injustiça que visa a um objeto
especial a que ela despreza e ofende: o bem comum348. Desse modo, o que
distingue a justiça legal da justiça particular é o sujeito credor do ato349, pois,

não se considera por uma igualdade de coisa a coisa, porém segundo uma proporção das coisas às
pessoas. (...) esse meio-termo se considera segundo uma ‘proporcionalidade’ geométrica, em que a
igualdade não é de quantidade mas de proporção. (...) Ao contrário, nas comutações, dá-se algo a
uma pessoa particular, por causa de uma coisa que dela se recebeu, o que é da maior evidência nas
compras e vendas, nas quais primeiro se manifesta a noção de comutação. É, então, necessário igualar
uma coisa à outra”. Aquino, Tomás de. Summa Theologiae II-II, q. 61, a. 2, res.
341. Cf. Barzotto, Luis Fernando. Justiça Social…, cit., p. 117.
342. Cf. Aristóteles. Ética a Nicômaco, 1130a-1131a.
343. Cf. Despotopoulos, Constantin. Les concepts…, Archives de Philosophie du droit, n. 14, p. 304, 1969.
344. Cf. Barzotto, Luis Fernando. Justiça Social…, cit., p. 114.
345. Id., ibid.
346. Cf. Aquino, Tomás de. Summa Theologiae II-II, q. 58, a. 5, res.
347. Cf. Summa Theologiae II-II, q. 58, a. 5, res. 3.
348. Id., ibid., q. 59, a. 1, res.
349. Cf. Barzotto, Luis Fernando. Justiça Social…, cit., p. 115.

84
O princípio do bem comum | C A P Í T U LO 4

ordenando o homem em suas relações com outrem, pode considerá-lo de


duas maneiras: “com outrem, considerado singularmente; ou com outrem,
em geral, considerando que quem serve a uma comunidade, serve a todos
os indivíduos que a ela pertencem”350.
Outrem, considerado em geral, é o sujeito da justiça legal. Não se trata
de um todo social ou da comunidade em si. O credor da justiça legal são
todos os membros da comunidade, porquanto seu objeto específico é o bem
comum351, que é o bem de todos e de cada um.
A justiça social é uma atualização da justiça legal. A elaboração do seu
conceito e de sua aplicação se deve à Doutrina Social da Igreja e, para deli-
mitar seu conceito e defini-la, recorreremos a essa doutrina, bem como à de
Luis Fernando Barzotto, consolidada em texto já aqui citado352.
Como nota Barzotto, apesar de a primeira encíclica social a utilizar
o termo ter sido a Quadragesimo anno de Pio XI, em 1931, a expressão foi
cunhada pelo tomismo do século XIX e difundida politicamente pelos cató-
licos sociais franceses dos anos 1880-1890, sendo o jesuíta italiano Louis
Taparelli d’Azeglio o primeiro a utilizar a expressão, em 1840, na sua obra
Saggio teoretico di diritto naturale 353.
Essa metamorfose da justiça legal em justiça social implica de imediato
a mudança da ênfase dos critérios de igualdade. Enquanto na justiça legal
a igualdade estava fundada no meio – a lei –, na justiça social a igualdade
está fundada no sujeito – a pessoa354. Para Taparelli, a justiça social é uma
justiça entre homem e homem355.
Para Antoine, a justiça geral é “a vontade constante de dar à sociedade
o que lhe é devido, a disposição habitual de contribuir, sob a direção da
autoridade suprema, ao bem comum”; a justiça social, “a observância de todo
o direito tendo o bem social comum por objeto e a sociedade civil como

350. Aquino, Tomás de. Summa Theologiae II-II, q. 58, a. 5, res.


351. “Com efeito, como a caridade pode ser chamada virtude geral enquanto ordena os atos de todas
as virtudes ao bem divino, assim também a justiça legal, enquanto ordena os atos de todas as virtudes
ao bem comum” (Aquino, Tomás de. Summa Theologiae II-II, q. 58, a. 6, res.).
352. Cf. Barzotto, Luis Fernando. Justiça Social…, cit., p. 113-147.
353. Cf. Calvez; Perrin. Église et société économique, p. 543. Apud: Barzotto. Justiça Social…, cit., p. 119.
354. Cf. Barzotto, Luis Fernando. Justiça Social…, cit., p. 118.
355. Taparelli, Louis d’Azeglioi. Saggio teoretico di diritto naturale, p. 183. Apud: Barzotto. Justiça
Social…, cit., p. 119.

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Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

sujeito ou termo”356. Barzotto identifica, a partir da proposição de Antoine,


o sujeito e o termo da justiça social, pois todos os membros da sociedade
civil devem colaborar na obtenção do bem comum – sujeito – e todos devem
participar do bem comum – termo.
A justiça social é a justiça da sociedade de iguais, na qual os acidentes
aderentes ao ser humano são irrelevantes em matéria de justiça que determina
o que é devido à pessoa apenas a partir da sua condição humana357.
Segundo a Doutrina Social da Igreja, a justiça social é uma evolução da
justiça geral, que regula as relações sociais com base no critério da obser-
vância da lei e é uma exigência da questão social358. Ela ordena uma série de
deveres que obrigam todas as classes sociais, pois é da sua própria essência
exigir de cada indivíduo tudo o que é necessário para o bem comum359. Sua
função mais importante é permitir o desenvolvimento humano a partir do
princípio da solidariedade360, pois afirma como justo aquele que, servindo à
sociedade, aumenta-lhe os bens, mas também deles se enriquece conforme
sua condição361. As próprias relações voluntárias de justiça comutativa só
serão equitativas se submetidas às exigências da justiça social362.
Importa a síntese de Barzotto na qual descreve a estrutura do conceito
de justiça social. Propõe, portanto, a relação regulada pela justiça social: o
indivíduo e a comunidade; o bem da justiça social: o bem comum; a atividade
própria da justiça social: o reconhecimento; a alteridade da justiça social: a
pessoa humana; o dever da justiça social: a reciprocidade; e a adequação da
justiça social: a dignidade.
Enquanto a justiça distributiva regula a relação do todo para com a parte, a
comutativa, da parte para com a parte, a justiça social regula a relação da parte
para com o todo. Ao determinar o que é devido à comunidade, ela estabelece
quais são os deveres em relação a todos os seus membros. Note-se o princípio
de solidariedade como pano de fundo, e a importância do conceito que

356. Antoine. Cours d’ économie sociale, p. 127. Apud: Barzotto. Justiça Social…, cit., p. 119.
357. Cf. Barzotto, Luis Fernando. Justiça Social…, cit., p. 119.
358. Cf. João Paulo II. Carta Encíclica Laborem Exercens. 580-583.
359. Cf. Pio XI. Carta Encíclica Divini Redemptoris. 51.
360. Cf. Paulo VI. Carta Encíclica Octogesima Adveniens. 43.
361. Cf. Pio XI. Carta Encíclica Quadragesimo Anno. 135.
362. Cf. Paulo VI. Carta Encíclica Populorum Progressio. 59.

86
O princípio do bem comum | C A P Í T U LO 4

rompe com o senso comum político de que justiça social significa uma justa
distribuição dos bens estatais. A justiça social tem a pessoa como sujeito e
não a comunidade política363.
Ainda que a justiça particular não possa ser pensada à margem do bem
comum, este é o bem próprio da justiça social. Entretanto, para justiça par-
ticular, o bem comum é um bem mediato, já que seu bem imediato é o bem
particular. Já na justiça social, o bem comum é o bem imediato, enquanto
o bem mediato é o bem privado364.

4.2.3. Justiça e reconhecimento


O reconhecimento – já tratado na primeira parte deste trabalho – é para
Barzotto: “a prática de considerar o outro como sujeito de direito ou pessoa,
isto é, como um ser que é fim ‘em si mesmo’ e que possui uma ‘dignidade’
que é o fundamento de direitos e deveres”365.
Enquanto na justiça comutativa o sujeito é um sujeito abstrato e, na
justiça distributiva, ele é um sujeito concreto – pois uma determinada
característica sua o fará credor –, para justiça social o sujeito é uma pessoa
participante de uma comunidade específica e é considerado em comum e
não na sua singularidade366.
Para Barzotto, a condição de membro da comunidade depende do reco-
nhecimento de tal status pelos outros membros da mesma. Dessa condição
resulta o dever da justiça social: a reciprocidade.
Tanto a justiça particular quanto a geral buscam a igualdade. Na par-
ticular, a distributiva pretende uma igualdade geométrica; já a comutativa,
uma igualdade aritmética. Igualdade necessária para realização da justiça
social é uma igualdade absoluta, uma igualdade na dignidade.
A dignidade da pessoa humana se expressa como princípio subjacente à
justiça social, porquanto a pessoa humana é digna de todos os bens neces-
sários para atingir sua plenitude367.

363. Cf. Barzotto, Luis Fernando. Justiça Social…, cit., p. 124.


364. Id., ibid., p. 125.
365. Id., ibid., p. 126.
366. Id., ibid., p. 128.
367. Id., ibid., p. 131.

87
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Barzotto propõe uma formulação própria para a justiça social. Enquanto


a justiça comutativa tem a formulação a cada um a mesma coisa, e a justiça
distributiva a cada um segundo uma condição, a justiça social reduz-se na
fórmula a todos a mesma coisa368.
O uso trivial hodierno feito pelas forças políticas superpôs justiça dis-
tributiva e justiça social, reduzindo uma à outra, utilizando atributos de
uma para descrever a outra. Embaralhar os critérios de justiça distributiva
e justiça social aponta para resultados diversos dos pretendidos. Barzotto
o demonstra com exemplo convincente: a previdência social. A aplicação
de critérios de justiça distributiva na previdência social levaria a uma série
de distinções que afastaria a previdência do ideal de igualdade absoluta da
justiça social.
Entretanto, em que pese boa parte da questão social ser matéria da justiça
social, ela é na sua totalidade problema de justiça política que, além dos
ditames da justiça social, é regida também pela justiça distributiva.

4.2.4. Bem comum e subsidiariedade


O acesso dos bens disponíveis na comunidade política requer os dois
modelos, já que o acesso àqueles bens básicos nela disponíveis exige não
apenas regular as relações da parte com o todo, mas do todo com a parte.
Esse ciclo de regresso entre a parte e o todo e o todo e a parte é regido pelo
princípio de subsidiariedade que, na sua forma dedutiva, veta a ação da ordem
maior naquilo que está ao alcance da ordem menor realizar, mas determina
a ação da ordem maior em favor da ordem menor quando essa é incapaz de
atingir seus fins.
Matérias de justiça política, intrínsecas à justiça social, requerem cate-
gorias de justiça distributiva, como a regulação da economia, por exemplo.
Por conseguinte, há uma manifestação do princípio de subsidiariedade a
qual chamaremos de regulativa.
Tomás de Aquino afirma que a justiça distributiva regula e modera a
distribuição dos bens comuns, refutando a objeção por ele levantada de
que distribuir os bens comuns entre muitos prejudicaria o bem comum da

368. Id., ibid., p. 133.

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O princípio do bem comum | C A P Í T U LO 4

coletividade369. Ainda, quando se distribuem bens comuns aos membros da


comunidade, de certa forma, cada um já recebe o que é seu, pois de certo
modo, o todo e a parte são idênticos370. Como ainda explica, enquanto
compete à justiça legal ordenar o bem privado ao bem comum, compete à
justiça distributiva ordenar o bem comum ao bem privado371.
Vale notar que se o conceito de justiça legal, herdado de Aristóteles,
evoluiu. Não foi diferente com o conceito de igualdade que, a partir de uma
nova perspectiva, atualiza os critérios de distribuição do bem comum. Se
para Aristóteles a igualdade era um conceito relacional, com o advento do
cristianismo descobriu-se uma igualdade substancial assentada na natureza
e na dignidade da pessoa humana. As pessoas, portanto, são diferentes em
tudo – daí o princípio do pluralismo –, com exceção da natureza e dignidade
que compartilham.
Se a justiça distributiva partia de critérios de diferenciação tais como
mérito, herança, nascimento, o bem comum político passou a ser distri-
buído segundo os critérios da solidariedade, princípio no qual a pessoa é
reconhecida como tal a partir da constatação de que participa da natureza
comum das demais pessoas, tendo, portanto, a mesma dignidade das
demais.
Se assim não fosse, qual o critério de justiça a ser aplicado no socorro
do hipossuficiente impossibilitado de contribuir com a justiça social? Ainda
que a pobreza seja meritória, repete-se a observação de Tocqueville: “quem
é tão ousado ao ponto de deixar morrer de fome o pobre porque morre por
própria culpa?”372.
Ainda que, como afirma Barzotto, não seja a justiça distributiva o prin-
cípio ordenador da vida em sociedade, mas a justiça legal, baseada em uma
igualdade absoluta, não basta para a solução da questão social regular os
deveres da parte com o todo, mas também os deveres da comunidade política
como tal com os seus membros.

369. Cf. Aquino, Tomás de. Summa Theologiae II-II, q. 61, 1, res. 1.
370. Cf. Summa Theologiae II-II, q. 61, 1, res. 2.
371. Cf. Summa Theologiae II-II, q. 61, 1, res. 4.
372. Cf. Tocqueville, Alexis de. Democracia y pobreza, cit., p. 65.

89
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

4.2.5. Bem comum e tributação


Pode-se, para exemplificar, recorrer à ordem tributária. Um dos princí-
pios fundamentais do Estado de Direito moderno é a igualdade tributária
fundada na chamada capacidade contributiva. Ora, há de se negar o caráter
fundamental da tributação para a justiça política? E, que ela diga respeito ao
dever da parte de contribuir com o todo, sendo, portanto, regulada pela jus-
tiça legal? Entretanto, ela também é regida por uma igualdade proporcional
que determina um especial dever da comunidade de respeitar a capacidade
de contribuição da pessoa, limitando o direito de exigência do todo em face
da parte. Portanto, levando em conta uma igualdade proporcional que iguala
as pessoas em razão das coisas.
Observe-se, ainda, como exemplo, o art. 145 da Constituição da República
Federativa do Brasil373 que obriga o Estado a instituir impostos a partir do
caráter pessoal do contribuinte, graduando o dever de contribuir segundo
a sua capacidade econômica, determinando o tratamento desigual para os
que são desiguais, e igual para os que são iguais. Aliás, como todo direito
fundamental é – dentro da tradição que os consagrou – o último sentido
da limitação do Estado374, o direito fundamental de contribuir segundo
a capacidade é, primeiro, um dever do Estado de não tributar acima da
capacidade econômica do indivíduo.
Assim, ao cuidar daquilo que é devido à comunidade, a justiça social
determina quais são os deveres em relação a todos os membros da comuni-
dade fixando, mediatamente, os deveres do indivíduo com outros indivíduos.
Dentre esses deveres, o de contribuir segundo a própria capacidade. Assim
sendo, o dever de contribuir é regido pela justiça social, mas sua limitação
é regulada pela justiça distributiva.

373. “Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes
tributos: (...) § 1o Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo
a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para
conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o
patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”
374. Cf. Di Lorenzo, Wambert Gomes. Trabalho e Capital na Doutrina Social da Igreja. Teocomunicação
– Revista da Faculdade de Teologia da PUCRS, v. 35, p. 783-807, dez. 2005; ou ainda, Abertura da
Constituição. Direito e Justiça, v. 24, ano 23, p. 171-200, 2001/2.

90
O princípio do bem comum | C A P Í T U LO 4

Também Barzotto reconhece que os bens necessários ao pleno desenvol-


vimento da pessoa podem ser atribuídos a partir de mecanismos tanto de
justiça social, quanto de justiça distributiva. Pois alguns direitos são devidos
a todos, indistintamente – saúde, por exemplo –, e outros são devidos a
partir de critérios de distinção – como o dever de ajuda aos necessitados.
Fala assim na distinção entre direitos sociais de justiça social e direitos
sociais de justiça distributiva375.
Dos direitos sociais, trataremos ainda a partir do princípio de subsidia-
riedade. Passemos, agora, para a condição necessária à realização do bem
comum político: a democracia personalista.

4.3. BEM COMUM E DEMOCRACIA


Examinado o conteúdo do bem comum resta tratar do único meio
político que propicia sua realização: a democracia personalista. Tal deno-
minação explicita a concreção de uma teoria democrática que coloca a
pessoa humana como causa, meio e fim da comunidade política. Esta
democracia, por ser centrada na pessoa, é necessariamente plural e deli-
berativa, tendo, assim, uma dupla natureza. Ou seja, a democracia perso-
nalista resulta de um composto necessário de pluralismo e deliberação.
Nas palavras de Maritain, “essa democracia renovada, ‘personalista’ será
de tipo pluralista”376.
Ademais, a democracia em si, a própria política, nas palavras de Hannah
Arendt, baseia-se na pluralidade dos homens377. Para ela, a tarefa própria da
política é organizar as coisas em comum essenciais no meio do caos da dife-
rença, visto que a política trata da convivência entre diferentes378. Aristóteles
afirma ser esse, o bem político próprio: o bem, em política, é a justiça que
consiste no interesse comum379. Barzotto, interpretando o Estagirita, afirma

375. Cf. Barzotto, Luis Fernando. Justiça Social…, cit., p. 123.


376. Maritain, Jacques. O Homem e o Estado, cit., p. 82.
377. Arendt, Hannah. O que é política? 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 21.
378. Id., ibid. A autora chega a negar o Zoon Politikon afirmando que política não compõe a essência
do homem, mas surge no entre-os-homens, num intraespaço totalmente fora dos homens. E elogia
Hobbes por ter compreendido isso. (Cf. p. 23).
379. Aristóteles. Política, III, 1282b, 15-10.

91
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

que o homem, mais que um animal político, é, por natureza, um animal


democrático380.
Para Aristóteles, o fim da política é a felicidade. De tal sorte, exemplifica
que não se pode dizer que um animal é feliz, já que ele não pode exercer a ati-
vidade política381. Segundo ele, a felicidade é a atividade própria do político382.
Assim, o bem comum, meio necessário para realização do sumo bem
humano, requer uma democracia autêntica assentada numa correta visão
da pessoa humana.
Desde sempre, a palavra democracia designa uma forma de governo e
uma forma de exercer o poder político, em particular, uma forma de governo
em que o poder é exercido pelo povo383.
Para Maritain, ainda que ela seja desastrada, grosseira e defeituosa, ela é a
única via pela qual pode passar as energias progressistas da história humana384.
Barzotto declara que uma forma de governo é determinada tomando
por base três perguntas fundamentais: Quem governa? Como governa? Para
quem governa?385 São indagações que perscrutam o sujeito, o funcionamento
e a finalidade da democracia. Um autêntico regime democrático será aquele
que oferecer as respostas: governo do povo, governo pelo povo e governo
para o povo.
Mas quem é o povo? A resposta pressupõe também uma antropologia
fundamental. Da matriz antropológica coletivista, individualista ou perso-
nalista derivaram concepções diversas de povo, quais sejam: holista, indi-
vidualista e a comunitarista386. Estas resultarão em três visões distintas da
finalidade da democracia.
Na concepção holista, o homem é um ser inteiramente social, resultando
da sociedade e existindo em função dela. Nessa perspectiva, o Estado e a
sociedade se identificam, sendo o Estado o órgão do todo. Esse todo é dotado

380. Cf. Barzotto, Luis Fernando. A Democracia na Constituição, cit., p. 82.


381. Cf. Aristóteles. Ética a Nicômaco, 1099b, 25-30 – 1100a, 01-05.
382. Id., ibid., 1102a, 15-20.
383. Cf. Bobbio, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: Por uma Teoria Geral da Política. São Paulo:
Paz e Terra, 1999, p. 135.
384. Maritain, Jacques. O Homem e o Estado, cit., p. 74.
385. Cf. Barzotto, Luis Fernando. A democracia na Constituição, cit., p. 15.
386. Id., ibid., p. 23.

92
O princípio do bem comum | C A P Í T U LO 4

de uma consciência que se manifesta nas consciências individuais, sendo


anterior e superior a elas387.
Na compreensão liberal, o homem é um ser pré-social e sua identidade
é dada à margem de qualquer vínculo comunitário. Visto exclusivamente
como um ser de carências, toda a ação humana passa a ser entendida a partir
da satisfação das necessidades388.
O terceiro modelo, denominado por Barzotto de comunitarista389,
aqui será chamado de personalista. Na verdade, como ensina Maritain, a
verdadeira concepção de vida política não é nem exclusivamente perso-
nalista nem exclusivamente comunitária, mas personalista e comunitária
simultaneamente, já que estas duas palavras se complementam e se exigem
mutuamente390. Em que pese o conceito de comunidade ser matéria para o
próximo capítulo, aqui cabe minimamente definir como uma associação de
pessoas e grupos com o objetivo de realizar o bem comum. Ou seja, o povo, no
modelo personalista, é na verdade uma associação de pessoas, quer dizer,
de seres diversos e diferentes entre si que compartilham uma mesma natureza e
que são iguais em dignidade.

4.3.1. Bem comum e pluralismo


É a partir de uma concepção personalista de povo que Hannah Arendt
elabora seu conceito de pluralismo, negando que ele seja uma concessão do
político em face da diversidade de grupos e indivíduos, mas afirmando-o
como uma condição própria da humanidade: pertencemos ao gênero sem
sermos iguais. Em sua formulação: somos “todos os mesmos, isto é, humanos,
sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido,
exista ou venha a existir”391.
O respeito ao pluralismo por parte da comunidade e da sociedade política
é condição necessária para a dignidade da pessoa humana. É somente no
personalismo que encontramos fundamentos para um pluralismo autêntico

387. Id., ibid.


388. Id., ibid., p. 24.
389. Id., ibid.
390. Cf. Maritain, Jacques. La persona y el bien común, cit., p. 71.
391. Cf. Arendt, Hannah. A condição humana, cit., p. 16.

93
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

que permite superar os desafios da convivência dos diferentes desde a prática


do reconhecimento392.
Dito que a dignidade da pessoa pressupõe uma implicação entre pleni-
tude e reconhecimento, pode-se deduzir que uma sociedade pluralista é meio
necessário para realização dessa dignidade. Sendo a liberdade antecedente
necessário tanto da experiência de plenitude quanto da de reconhecimento,
ela orienta para plenitude fazendo a pessoa voltar-se para si e para fora. Sem
liberdade, não há dignidade. Sem pluralismo, não há liberdade393. Além do
mais, o pluralismo elabora uma síntese entre diversidade e igualdade que só
pode ser feita a partir do princípio do bem comum.
Esse conceito de pluralismo em nada coincide com o caráter ideológico
que hodiernamente se lhe pretende empregar. Por vezes, aplicado como
sinônimo de relativismo, tem-se-lhe atribuído um caráter de ideologia que
considera como um valor em si mesmo a total ausência de pontos de referên-
cias comuns e exclui, a priori, posições que admitem verdades sobre o bem
comum, negando que haja qualquer verdade moral na base da vida social.
Nessa roupagem, numa pretensa democracia pode se esconder uma força
violenta e totalitária no seio da vida social394.
Esse simulacro de pluralismo já se manifestou na democracia burguesa
e teve seu apogeu da segunda metade do século XIX ao eclipse da efêmera
República de Weimar. Ele se apresentava como uma indiferença do corpo
político a toda e qualquer concepção relativa à vida comum, impossibilitando
a realização de qualquer bem comum real395.
A indissolubilidade da relação entre bem comum e pluralismo é tamanha
que Maritain descreve o princípio pluralístico como uma manifestação do
princípio de subsidiariedade. Afirma ele que, segundo o princípio pluralístico,
tudo aquilo que no corpo social puder ser feito por órgãos particulares ou
sociedade de grau inferior ao Estado, “deveria ser realizado por esses órgãos
ou sociedades particulares”396.

392. Cf. Di Lorenzo, Wambert. Pluralismo, cultura y reconocimiento. In: Fernández, Gonzalo &
Gentile, Jorge (org.). Pluralismo y derechos humanos, cit., p. 151.
393. Id., ibid., p. 152.
394. Cf. Scarponi, Carlos Alberto. La cultura en la sociedad plural, cit., p. 219.
395. Cf. Maritain, Jacques. O Homem e o Estado, cit., p. 129.
396. Id., ibid., p. 128.

94
O princípio do bem comum | C A P Í T U LO 4

Maritain propõe como orientação do pluralismo uma fé cívica. Trata-se


de uma fé secular que não é objeto especulativo ou dogmático, mas um
objeto prático, princípios práticos que podem fazer convergir pessoas de
diferentes concepções espirituais, filosóficas ou religiosas397.
Essa fé cívica de Maritain, promotora da unidade e da concórdia política,
não venera um ente metafísico, mas real. Não busca um bem absoluto, mas
prático. O credo que pratica: o bem comum.
Assim, não é papel da comunidade política promover a diversidade,
mas conciliá-la. De sorte que o papel do Estado é exatamente promover a
unidade da sociedade plural398.
A unidade da sociedade plural pode ser compreendida a partir da síntese
agostiniana proposta por Ricardo Del Barco. Há na sociedade um mínimo
comum que a leva à unidade – que Maritain chamou de fé cívica – e que,
respeitando a singularidade de cada pessoa, é a argamassa do corpo social399.
Nas questões deliberativas – que Maritain chamou de pluralismo de meios400
–, deve haver liberdade. E, em tudo, deve haver fraternidade, ou amizade
política, na definição clássica – que Maritain chamou de amizade cívica401.
A amizade política será examinada no último capítulo dedicado ao princípio
de solidariedade.
Sintetizando, Del Barco propõe que a democracia pluralista supõe uni-
dade no credo cívico comum, liberdade no que é deliberativo e, em todas
as coisas fraternas, concórdia cívica.

4.3.2. A democracia deliberativa


Não é possível um regime ser pluralista sem ser democrático e vice-
versa. Especificamente, a democracia correspondente ao pluralismo é de
tipo deliberativa, e esta, necessariamente, é plural.

397. Id., ibid., p. 130.


398. Id., ibid., p. 142.
399. John Finnis lembra que mesmo para estar em desacordo entre nós temos que estar pensando
acerca da mesma proposição (Ley natural y derechos naturales, cit., p. 168).
400. Id., ibid.
401. Del Barco, Ricardo. La democracia pluralista. In: Fernández, Gonzalo & Gentile, Jorge (org.).
Pluralismo y derechos humanos, cit., p. 121. Sobre amizade cívica em Maritain, cf. La persona y el bien
común, cit., p. 109; Por una filosofia de la persona humana, cit., p. 187; Os direitos do homem e a lei natural,
cit., p. 40; e, Humanismo integral, cit., p. 138.

95
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Tratar-se-á agora da democracia deliberativa tendo como pano de fundo


o tratado de Luis Fernando Barzotto sobre o tema, já aqui citado402.
A democracia deliberativa é a que está prescrita nas constituições ditas
teleológicas ou finalísticas403. Naquelas que determinam não apenas quem
governa, como se governa, mas para quem se governa. Fixando, portanto,
que uma democracia constitucional deve ser de tipo deliberativa e entendida
como um exercício coletivo da razão prática404.
A democracia deliberativa, por estar fundada na razão prática, tem
vínculo com a verdade405. Não uma verdade a priori, mas resultante da
descoberta, que emerge do entrechoque de opiniões406. Uma verdade que
está no interior da opinião e não fora dela407. É uma verdade contingente
que diz respeito à ação concreta, mas que não deixa de ser verdade por não
ser universal e necessária.
Um debate político autêntico só é genuinamente político se tiver como
objeto a verdade, e essa verdade acerca das melhores respostas para os pro-
blemas da comunidade se funda no conhecimento prévio da existência de
um bem comum político.
Recorramos ao exemplo de Gabriel Chalmeta. Suponha-se a existência

402. Barzotto, Luis Fernando. A democracia na Constituição, cit. No seu conciso tratado, Luis
Fernando Barzotto discorre sobre os três usuais modelos de democracia: a deliberativa, a plebiscitária
e a procedimental. Cada uma manifesta uma base antropológica distinta. Sendo a deliberativa de
base personalista, a plebiscitária de base holística e a procedimental de base individualista. Cada uma
delas proporá finalidades distintas a partir dos seus modelos antropológicos. Denominou personalista
aquela que tinha como fim a realização da pessoa como tal; chamou de coletivista aquela que tem
como fim o bem do povo considerado como ente coletivo, à parte e acima dos seus membros; e,
liberal, aquela de concepção individualista que afirma como fim o indivíduo, sendo o povo nada mais
que um agregado de indivíduos. Tanto o modelo plebiscitário quanto o procedimental são modelos
voluntaristas. Na democracia plebiscitária, há um voluntarismo social, enquanto na procedimental
há um voluntarismo do indivíduo.
403. Cf. Bazotto, Luis Fernando. A democracia na Constituição, cit., p. 36. Segundo o autor, há outros
dois tipos de constituição: a constituição mínima e a constituição formal. A primeira, mínima, se
limita a indicar o titular do poder político. Respondendo a pergunta quem governa? ela expressa o tipo
de regime. Já a Constituição formal indica não apenas quem, mas de que forma o poder será exercido.
404. Id., ibid., p. 37.
405. Barzotto descreve que as relações entre política e verdade se dão de três formas: uma afirma a
existência de uma verdade política que exclui qualquer necessidade de diálogo; outra, que não há lugar
para a verdade na política, mas apenas os interesses esgotando o fenômeno política na persuasão e na
retórica; a terceira, será tratada no texto (Cf. p. 39).
406. Id., ibid., p. 42.
407. Id., ibid., p. 41.

96
O princípio do bem comum | C A P Í T U LO 4

de uma comunidade que sofre com a escassez de água. Quando se inicia a


discussão na qual se decidirá o modo de se distribuir a água, descobre-se que
as petições correspondem a interesses diversos: alguns a querem para beber,
outros para produzir energia elétrica, outros para encher suas piscinas. Sendo
a água insuficiente para satisfazer todos esses interesses, qual será a melhor
maneira, o modo mais racional e justo de distribuí-la?408
Supondo que todos, ou a maioria dos membros dessa comunidade,
aceitem previamente a existência do bem comum, o primeiro a ser feito é
relacionar seu interesse individual com o bem comum. E, ainda que todas
as pretensões sejam justas, não são justas na mesma intensidade, pois, para
todos, o bem mais fundamental é beber – que garante a própria existência. Só
depois de atendido esse bem comum fundamental se seguirá dedutivamente
numa hierarquia dentre os bens secundários, daquele que, dentre eles é o
mais fundamental, isto é, primeiro produzir energia e, por último, o justo
gozo de um bem-estar material no uso das piscinas.
A natureza dialética da verdade política exige o pluralismo na medida
em que a deliberação de muitos tende a estar mais próxima da verdade que a
decisão de uma só. Como afirma Aristóteles, muitos são os indivíduos que,
separadamente, não têm qualidades, mas, quando estão reunidos, podem
ser melhores desde que considerados em conjunto. Uns apreciam uma parte
do objeto; outros, outras; e todos, todas409. A razão prática é a mentalidade
alargada, na expressão de Barzotto, pois possibilita assumir o maior número
de pontos de vista possíveis410.
Uma ênfase voluntarista e não deliberativa na solução do problema acima
levaria a uma conversão dos meios em fins e numa desordem total na hie-
rarquia dos bens sociais411. Seja no modelo de um voluntarismo social fun-
dado na ideia de contrato, seja num voluntarismo individualista baseado no
procedimento, o diálogo esvai-se sem nenhum critério racional para decidir
acerca das proposições mais adequadas politicamente. Torna-se impossível

408. Cf. Chalmeta, Gabriel. Ética social…, cit.,p. 200.


409. Cf. Aristóteles. Política, 1281b, 01-05.
410. Cf. Barzotto, Luis Fernando. A democracia na Constituição, cit., p. 59.
411. Iturbe, José Rodríguez. Democracia y bien común. Notas y Documentos, v. 1, n. 63-64, 2002, p.
65-106, especialmente p. 65.

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Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

discernir entre o verdadeiro e falso, entre o justo e injusto, bem como fixar
uma ordem de urgência e oportunidade, restando apenas critérios irracionais,
tais como a razão do mais forte, do mais eloquente, ou, simplesmente, a
vontade da maioria412.
Essa aplicação da razão prática operada pela democracia deliberativa
traz para o cenário político elementos da ética teleológica de Aristóteles que
propõe evitar aquilo que não serve para alcançar o fim413. Sua função não
é fundar o bem, mas descobri-lo na realidade, determinando o que é bom
aqui e agora414. Por não ter como objeto realidades universais e necessárias
suas conclusões são tão contingentes quanto às situações a que se aplica415,
pois se trata de um conhecimento sobre coisas práticas e mutáveis conforme
suas circunstâncias416.
A razão prática é o instrumento necessário para a deliberação417. É uma
capacidade de agir com respeito às coisas que são boas ou más418. Habilita o
poder deliberar bem sobre o que é bom e conveniente, sobre aquelas coisas
que contribuem para vida boa em geral419. Conforme Aristóteles, os homens
dotados de tal capacidade são bons administradores de casas e estados420.
O sujeito da democracia deliberativa é um zôo politikon421, definido por
Aristóteles também como um zôo logikon422. Há uma implicação mútua
entre os atributos do político e do racional, sendo o homem um animal
político porque é um animal linguístico e vice-versa423. A linguagem é a
essência da política e a política é a essência da linguagem, pois a pólis é a
comunidade daqueles que comunicam sua percepção do bem comum424.

412. Cf. Chalmeta, Gabriel. Ética social…, cit., p. 199.


413. Cf. Barzotto, Luis Fernando. Prudência e Jurisprudência. Uma reflexão epistemológica sobre a
jurisprudência romana a partir de Aristóteles, v. 23, ano 23, p. 221-250 (p. 228), 2001/1.
414. Id., ibid., p. 229.
415. Id., ibid., p. 230.
416. Id., ibid., p. 233.
417. Cf. Aristóteles. Ética a Nicômaco, 1140a.
418. Id., ibid., 1140a, 5-10.
419. Id., ibid., 1139b, 25-30.
420. Id., ibid., 1140b, 05-10.
421. Animal político.
422. Animal lógico. A palavra grega Lógos ( ) significa razão, verbo e palavra.
423. Id., ibid., p. 45.
424. Id., ibid., p. 46.

98
O princípio do bem comum | C A P Í T U LO 4

A pólis foi criada pelo discurso da justiça e do bem comum e estar fora desse
discurso de caráter prático é estar fora da pólis425.
A democracia deliberativa funciona a partir dos critérios de justiça polí-
tica da democracia personalista e tem como fim o bem comum. Entretanto,
um dos princípios fundamentais da democracia deliberativa é o princípio
da participação.

4.3.3. O princípio de participação


O princípio de participação é constitutivo do próprio conceito de demo-
cracia. Basta notar a perenidade do conceito de demos que, desde a Grécia
Clássica, compõe a etimologia de democracia. Mesmo os dados empíricos
configuradores da democracia são centrados na participação, como, por
exemplo: sufrágio universal, eleições livres, pluralismo partidário e diversi-
dade de fontes de informação426.
A participação e a igualdade são um corolário da liberdade. Participar é
assumir ativamente a parcela do todo que compete a cada um. É do direito
de participar ativamente da vida política que eflui a dignidade política da
pessoa, visto que sua plenitude passa pelo depósito de sua contribuição na
despensa comum da humanidade, da sociedade política, da sua comunidade
e da sua família, onde também ela buscará os víveres materiais e morais
fundamentais à sua vida.
O princípio de participação, em que pese já ser aqui tratado por ser
manifestação da democracia deliberativa, é consequência do princípio de
subsidiariedade. Ele se manifesta quando atividades desenvolvidas por pessoas
ou grupos, diretamente ou por meio de representantes, contribuem para a
vida cultural, econômica, política e em sociedade. Ela se dá em todos os
estratos sociais, em todos os níveis de agrupamentos, do mais simples ao
mais complexo, do menor ao mais extenso.
Numa autêntica democracia social, é essencial a participação das camadas
mais populares e desfavorecidas, sendo a vida pública responsabilidade de
todos e não apenas dos governantes eleitos.

425. Id., ibid., p. 47.


426. Ropelato, Daniela. Notas sobre participación y fraternidad. In: Baggio, Antonio (org.). El principio
olvidado: la fraternidad – En la Política y el Derecho. Buenos Aires: Ciudad Nueva, 2006, p. 185.

99
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Sendo a participação consequência do princípio de subsidiariedade, ela


é ainda uma manifestação do princípio de solidariedade, como veremos no
capítulo próprio a este dedicado. Aliás, a participação é definidora da própria
solidariedade. Solidariedade e democracia deliberativa se complementam
de tal sorte que Pierre Rosanvallon descreve a combinação como a base de
uma teoria ampliada da democracia, a qual aprofundará direitos sociais e
políticos superando a oposição entre os dois427.
A participação garante a perenidade do regime democrático, pois implica
alternância no poder e mecanismos de controle por parte dos cidadãos.

427. Rosanvallon, Pierre. Op. cit., p. 61.

10 0
O princípio de
Capítulo
5
subsidiariedade

N
o capítulo anterior, já se configurou o princípio de subsidia-
riedade como um princípio de competência que expressa a
autonomia própria de cada estrato social e que determina
que o bem comum de cada um não pode ser deduzido do de outro.
Também se descreveu o princípio de subsidiariedade como
um princípio de justiça que proíbe as associações maiores de
assumirem funções que podem ser realizadas eficientemente por
associações menores, e que bem comum e subsidiariedade têm sua
complementaridade no princípio de solidariedade, que, se ocorre
nos mesmos níveis sociais em que o bem comum, se manifesta.
O conceito de subsidiariedade será tema da primeira parte
deste capítulo. Na segunda, tratar-se-á das diversas formas de
aplicação do princípio. Na terceira, examinar-se-á a orientação
do princípio de subsidiariedade na realização do bem comum nos
vários estratos sociais.
Em que pese o conceito de subsidiariedade ser tema já da
primeira parte, é forçoso apresentar algumas notas conceituais a
título de prolegômenos.
A democracia personalista utiliza como critério de distribui-
ção das tarefas empreendedoras do bem comum o princípio de
subsidiariedade. A subsidiariedade afirma a não interferência
de uma ordem superior sobre uma ordem inferior. Opõe-se aos
coletivismos, traçando os limites da intervenção da comunidade

101
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

política, mas recusa o individualismo já que a dignidade da pessoa humana


não pode ser realizada pelo indivíduo isolado.
Em sentido inverso, o princípio de subsidiariedade obriga a ordem supe-
rior a agir, subsidiando as ordens que lhe são inferiores em suas necessidades.
Na prática, já demonstrando a partir dos estratos sociais, a comunidade
internacional não deve substituir o Estado, mas auxiliá-lo quando necessário.
O mesmo se aplica nas relações entre a comunidade política, a sociedade e
a pessoa, e entre os grupos, a família e os indivíduos, nas quais uma ordem
não pode exercer o papel de outra.
As relações entre indivíduos, famílias, organizações intermédias e pode-
res públicos das respectivas comunidades políticas devem estar reguladas
e modeladas, no plano nacional, segundo o princípio da subsidiariedade.
Também, à luz do mesmo princípio, devem disciplinar-se as relações dos
poderes públicos de cada comunidade política com os organismos da comu-
nidade universal.
Observe-se que boa parte das regras acima transcende ao próprio Direito.
O que demonstra que a subsidiariedade é, sobretudo, um princípio ético da
vida social e política e que orienta a atividade da solidariedade.

5.1. O CONCEITO DE SUBSIDIARIEDADE


Como se sabe, subsidiariedade é corolário da dignidade da pessoa
humana. Ela regula a solidariedade na realização do bem comum nos diver-
sos estratos sociais e nas suas relações entre si.
À primeira vista, como constata José de Oliveira Baracho, a palavra
subsidiariedade pode ser interpretada como sendo aquilo que vem em segundo
lugar ou para substituir algo. No entanto, semelhante definição não resiste a
um estudo mais consistente do qual resultariam as ideias de suplementari-
dade e complementaridade428.
É, todavia, da etimologia do termo que se extraem as primeiras notas
conceituais acerca do seu significado, ainda que haja quem constate uma
diversidade semântica no vocábulo subsidiariedade429.

428. Cf. Baracho, José de Oliveira. O princípio de subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro:
Forense, 1996, p. 23.
429. Cf. Pontier, Jean-Marie. La subsidiarité en droit adminstratif. Revue du Droit Public et de la Science

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O princípio de subsidiariedade | C A P Í T U LO 5

Subsidiariedade vem do latim subsidium, que se traduz por ajuda, socorro.


Os romanos utilizavam o vocábulo para designar parte das legiões que luta-
vam na reserva ou na retaguarda, as quais chamavam de cortes subsidiárias430.
Fundamental na organização do Estado, da sociedade e da comunidade
doméstica, a subsidiariedade é critério de ação na economia, na política e no
Direito. Essa amplitude funcional dá-se por não ser domínio de uma ciência
em particular, mas um postulado da razão prática.
A dignidade da pessoa requer o protagonismo individual, que é limitado
pela insuficiência do indivíduo de realizá-la isoladamente. Por sua natureza
social, esse sumo bem exige a participação solidária do meio humano em
que a pessoa está inserida. Por sua vez, esse meio humano tem sua função
subsidiária limitada pela natureza concomitantemente individual da pessoa e
sua autonomia. Observa-se, daí, uma complexidade de relações entre a pessoa
e seu meio a partir de sua dignidade, ora necessitando de auxílio, ora neces-
sitando que seja salvaguardada sua esfera de autonomia e individualidade.
De forma resumida, pode-se afirmar que estando ao alcance da pessoa
atingir bens necessários a sua dignidade, não deve haver interferência das
ordens que lhe são superiores – família, sociedade, comunidade política,
Estado ou ordem internacional – na sua realização. Todavia, não sendo
possível à pessoa realizar sozinha sua dignidade, é dever da ordem que lhe
é superior subsidiá-la431.
A subsidiariedade determina uma hierarquia de esferas no dever de
prestar auxílio, que começa na pessoa e termina na ordem internacional.
Essas esferas também determinam uma precedência da ordem menor sobre
a ordem maior. Ou seja, tudo que estiver ao alcance da ordem menor deve
ser por ela executado.
A distribuição de competências segundo os estratos sociais já encontrava
sua gênese no pensamento de Aristóteles, que afirmava a família como uma

Politique en France et a L’étranger, Paris, v. 102, n. 6, p. 1515-1538, nov./dec. 1986, especialmente p. 1515-1516.
430. Cf. Höffer, Joseph. Doctrina Social Cristiana. Madrid: Rialp, 1964, p. 47.
431. Sobre o tema, cf. Di Lorenzo, Wambert Gomes. Subsidiariedad y Prudencia. Reunión: por una
democracia solidaria – Órgano de la Fundación Jacques Maritain, n. 11, p. 19-23, 2007. E, do mesmo
autor, O princípio de subsidiariedade no Direito Internacional Humanitário. In: Proner, Carol;
Guerra, Sidney. Direito Internacional Humanitário e a proteção internacional do indivíduo. Porto
Alegre: Sérgio A. Fabris, 2008, p. 145-166.

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Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

comunidade formada de acordo com a natureza para satisfazer as necessi-


dades cotidianas, a aldeia como a primeira comunidade formada por várias
famílias para satisfazer carências além das necessidades diárias, e a cidade
como uma comunidade completa que atinge o mais alto grau possível de
autossuficiência432.
A subsidiariedade diz respeito à concreção do conjunto de circunstâncias
necessárias para que a pessoa alcance seu fim último. A essa série de meios
circunstanciais deu-se o nome de bem comum, e ao fim último deu-se o
nome de dignidade.

5.1.1. Os limites do princípio de subsidiariedade


Entende-se, assim, a subsidiariedade como um ato solidário em face da
dignidade do outro. Entretanto, pode haver desvios na aplicação do princí-
pio, podendo ser ela corrompida pelo excesso. Vale afirmar, além da trivial
constatação, que a omissão de socorro compromete a dignidade de outrem,
que o excesso de ajuda também a embarga. São duas as formas de excesso
de subsidiariedade: o excesso em sentido estrito e a substituição.
Elas ocorrem quando a democracia se deteriora no clientelismo e no
totalitarismo. Na primeira hipótese, há uma atrofia das faculdades da pessoa,
como descreve Tocqueville, supracitado433. Na segunda, um aniquilamento
da dignidade pelo esmagamento da vontade e a supressão da liberdade.
Tal excesso corresponde a certo tipo de despotismo e paternalismo434, que
provoca o mesmo efeito na vida privada, tanto doméstica quanto nos planos
sociais intermédios.
Descrita a subsidiariedade, importa dizer que há uma distinção entre
esta e o princípio de subsidiariedade.

432. Aritóteles. Política, 1252b, 10-20.


433. “O homem, como todos os seres organizados, tem uma paixão natural pela ociosidade. Tem
contudo dois motivos que o levam a trabalhar: a necessidade de viver e o desejo de melhorar as condições
de sua existência. (...) Uma instituição assistencial, aberta indistintamente a todo necessitado, ou
uma lei que dá a todos os pobres, seja qual for a origem da pobreza, um direito a assistência pública,
debilita ou destrói o primeiro estimulante e não deixa intacto mais que o segundo” (Cf. Tocqueville,
Alexis de. Democracia y pobreza, cit., p. 64).
434. Maritain afirma que o paternalismo é uma perversão do Estado Social (O Homem e o Estado,
cit., p. 31) e que o Estado totalitário é um Estado propriamente paternalista (p. 86).

104
O princípio de subsidiariedade | C A P Í T U LO 5

Dessa demarcação – que delimita o espaço da ação entre os extremos de


ajuda e omissão – e do dever em face do outro – resultante de sua dignidade
– decorre o princípio de subsidiariedade.
O princípio de subsidiariedade estabelece, portanto, que tanto a inércia
em face da necessidade do outro quanto o excesso que sepulta a liberdade
são atos injustos e ações impeditivas da dignidade da pessoa humana e pode
ser definido como um princípio que determina quando, quem e como se deve
auxiliar uma pessoa humana a realizar sua dignidade. Sendo princípio que
estabelece a forma adequada de agir, a subsidiariedade encontra-se no meio-
termo entre dois vícios, um de excesso e outro de escassez.
O princípio de subsidiariedade é uma regra de razão prática que não traz
a priori a solução prévia para o caso, mas critérios para abordagem do evento
em si, dotando toda uma ordem de agentes envolvidos de instrumentos
que os permitem analisar, minuciosamente, o caso e, a partir do próprio
caso, aplicar as soluções, sejam estas de ordem jurídica, social, política ou
econômica. É, pois, “uma capacidade verdadeira e raciocinada de agir com
respeito aos bens humanos”435 e uma reta razão do que deve ser feito436.

5.2. AS DIMENSÕES DA SUBSIDIARIEDADE


Há dois gêneros de subsidiariedade nos quais se subsumem várias espé-
cies. O primeiro pode ser chamado de subsidiariedade negativa e consiste no
dever da ordem maior em se omitir quando a ação está ao alcance da ordem
menor. O segundo, obviamente, será chamado de subsidiariedade positiva
e determina o dever da ordem maior em subsidiar a ordem menor quando
esta, isoladamente, não alcança sozinha os bens que lhe são necessários.
Em espécie, há várias aplicações do princípio, o que permite classificá-lo
em subsidiariedade negativa, positiva, direta, indireta, jurídica, operativa,
regulativa, indutiva, dedutiva e subsidiariedade política. Tais espécies não
exaurem as possibilidades de classificação, tampouco se excluem mutua-
mente, podendo haver ocorrências simultâneas entre elas437.

435. Aristóteles. Ética a Nicômaco, 1140b.


436. Cf. Aquino, Tomás de. Summa Theologiae II-II, q. 47, a. 6, sol. 3.
437. Di Lorenzo, Wambert. O princípio de subsidiariedade no Direito Internacional Humanitário.
In: Proner, Carol; Guerra, Sidney. Direito Internacional Humanitário e a proteção internacional do

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Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

5.2.1. A subsidiariedade negativa


A subsidiariedade negativa, como dito, é uma obrigação de não fazer,
uma prestação negativa devida pela ordem maior à ordem menor. Fixa, assim,
uma limitação na faculdade de atuar sobre a ordem menor, impedindo,
por exemplo, que haja intervenção internacional nas comunidades políti-
cas, excetuando os imperativos do bem comum universal e a solidariedade.
O mesmo é devido pelas comunidades políticas à sociedade e, por esta, à
comunidade doméstica, e, pela família, à pessoa. Veda, assim, a intervenção
na autonomia da ordem menor ou a substituição desta nas ações que lhe
competem exclusivamente. Pode ser resumida pela fórmula: não pode a ordem
maior fazer aquilo que está ao alcance da ordem menor.

5.2.2. A subsidiariedade positiva


Evidentemente, a subsidiariedade positiva é a uma obrigação de fazer,
uma prestação positiva, o dever da ordem maior a subsidiar a ordem menor
quando a realidade assim o exigir. Desse modo, é dever da família subsidiar
a pessoa na realização de sua dignidade. Na impossibilidade da família, cabe
à comunidade subsidiar a família para que esta subsidie o indivíduo. Na
impossibilidade da comunidade, esse papel deve ser exercido pela sociedade,
que, se impossibilitada, deve ser exercido pela comunidade política através do
Estado, o qual, por sua vez, deve se socorrer da ordem Internacional, se assim
necessário. Pode ser resumida pela fórmula: cabe à ordem maior subsidiar a
ordem menor a realizar aquilo que não está ao seu alcance.

5.2.3. A subsidiariedade direta


Há a subsidiariedade direta quando a relação entre o ente subsidiado e
o ente subsidiário ocorre sem planos de mediação, quando há uma relação
imediata entre eles. Para que aconteça, não requer a ausência de entes inter-
mediários, antes, a ocorrência de tal espécie de subsidiariedade se evidencia
a partir da existência de tais estratos intermédios que, não obstante, são
desconsiderados, restando uma relação direta entre o auxiliador e o auxiliado,
uma conexão direta entre a fonte do subsídio e seu destinatário. Diversas

indivíduo, cit., p. 154.

106
O princípio de subsidiariedade | C A P Í T U LO 5

hipóteses podem servir de exemplo: um auxílio da comunidade internacio-


nal ou do Estado a uma pessoa em particular, como uma bolsa de estudos
ou pesquisa; doação de alimentos a famílias em risco alimentar, efetuada
diretamente por organismos internacionais sem a mediação do Estado ou
de qualquer outro grupo intermédio.

5.2.4. A subsidiariedade indireta


Contrariamente, a subsidiariedade indireta dá-se quando o subsídio é
dado através de um grupo intermédio. Quando o fato requer um plano de
mediação, a presença ativa de um ente intermediário entre o subsidiado e
o subsidiário, não importa se entre estes estejam ordenados outros entes e
não se exige que a relação ocorra entre entes imediatamente próximos. Por
exemplo, há subsidiariedade indireta quando uma ordem superior subsidia
a família ou um organismo não governamental.
Mesmo quando a ordem internacional subsidia diretamente um
Estado, em face da pessoa, há uma subsidiariedade indireta na qual a
pessoa é o ente subsidiado, o órgão internacional o subsidiário e o Estado
o mediador do subsídio. Da mesma forma quando a comunidade política
fornece bens à sociedade organizada para que esta os distribua entre as
ordens menores, ou mesmo quando se dá à família para que esta distribua
entre seus membros, tendo, sempre, como referência última, a pessoa
humana.
Ela ocorre quando a ação é efetuada por um mediador entre a fonte e
o destinatário do auxílio. Ela é uma exigência da realidade, pois a notória
multiplicidade de circunstâncias e a imprevisibilidade destas produzem uma
infinidade de casos em que há de se recorrer a necessários planos de mediação
para que a subsidiariedade seja eficaz e o bem comum se realize.
Pode-se tomar, também, como exemplo, as organizações humanitárias
que têm o fim de prestar auxílio e o fazem subsidiariamente, isto é, dele-
gando, servindo-se de entes intermediários, ou sendo elas próprias planos
de mediação de potências ou de outros organismos internacionais.
Outro exemplo ocorre nas situações de conflitos armados em que as
Convenções de Genebra propõem a caridade e a solidariedade das populações
como plano de mediação da subsidiariedade. Quando faculta à autoridade

107
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

militar apelar para a caridade dos habitantes a fim de cuidar de enfermos e


feridos438, ou, ainda, quando permite às partes em conflito recorrer à caridade
de comandantes de embarcações mercantes, de passeio ou neutras, para que
tratem dos feridos, enfermos e náufragos, ou recolham os mortos439.

5.2.5. A subsidiariedade jurídica


A subsidiariedade jurídica é lugar-comum na ordem jurídica interna e
internacional, bem como na ciência do Direito. Há dois aspectos da subsi-
diariedade jurídica, a saber, um hermenêutico e outro normativo.
No aspecto hermenêutico, ela ocorre quando o vazio ou a omissão de
uma norma concreta requer a aplicação de uma norma superior ou mais
abstrata. Assim, por exemplo, se um aplicador se depara com uma lacuna no
Direito processual do trabalho, poderá recorrer, subsidiariamente, ao Direito
processual civil, ou, se a lacuna é no direito material ou processual penal
militar, o aplicador poderá recorrer ao Direito material e processual penal
comum. Da mesma maneira, omisso o Direito Internacional Humanitário,
o aplicador poderá recorrer ao Direito Internacional Público ou, mesmo, ao
novíssimo Direito Penal Internacional.
O aspecto normativo é do gênero subsidiariedade negativa e afirma
a reserva de competência dos agentes de revelação normativa que Cezar
Saldanha Souza Júnior distribui em Guarda da Constituição, legislação e
jurisdição, havendo uma precedência da atividade jurisdicional, na qual,
tanto a legislação ordinária quanto a norma constitucional exercem um
papel subsidiário440. Afrontar tal princípio gera efeitos perversos no Estado
de Direito tanto quanto a Constituição e a legislação invadem a competência

438. Art. 18 da I Convenção: “A autoridade militar poderá apelar para o zelo caritativo dos habitantes
para recolher e cuidar benevolamente, sob sua fiscalização, feridos e doentes, concedendo às pessoas que
tenham respondido a este apelo a proteção e facilidades necessárias (...)”. (grifei).
439. Art. 21 da II Convenção: “As Partes no conflito poderão apelar para a caridade dos comandantes
de navios mercantes neutros, embarcações de recreio ou outras embarcações igualmente neutras, para rece-
berem a bordo e tratarem feridos, doentes ou náufragos, e bem assim para recolherem mortos (...)”. (grifei).
440. “Não é tanto o juiz, enquanto juiz, que existe para servir os legisladores; antes, as legislações é que
existem para ajudarem o juiz a fazer justiça no caso concreto. Também não é tanto a legislação que existe
para fazer a grandeza ou preservar eficácia das constituições; antes, as constituições é que foram inventadas
para defender, proteger e amparar as boas legislações, aprimorando, corrigindo e suprindo as defeituosas.”
(Souza Júnior, Cezar Saldanha. Direito Constitucional, Direito Ordinário e Direito Judiciário.
Cadernos do PPGDir/UFRGS, n. 2, p. 16, mar./2005).

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O princípio de subsidiariedade | C A P Í T U LO 5

do juiz, quanto o juiz se intromete no espaço próprio do legislador ou do


intérprete da Constituição441.

5.2.6. A subsidiariedade operativa


Ocorre subsidiariedade operativa quando o evento exige ação direta do
ente subsidiário. Ela não se confunde com subsidiariedade direta, mas se
opõe conceitualmente a subsidiariedade regulativa. Ambas dizem respeito,
em particular, aos entes políticos que podem atuar diretamente ou exer-
cendo função regulamentar. Há uma superlativa abundância de exemplos nas
ordens econômicas de Estados que não resvalam no liberalismo econômico
ou no coletivismo e que, mesmo respeitando a economia de mercado, não
admitem o antagonismo clássico entre economia e política.
Nesse caso, a subsidiariedade operativa determina a ação direta do Estado
no mercado, exercendo atividade econômica quando o bem comum assim
o exige. É o caso do art. 173, da Constituição da República Federativa do
Brasil, no qual o princípio de subsidiariedade surge na sua forma negativa,
vetando ao Estado a exploração da atividade econômica, mas, também, na
sua forma positiva e regulativa, o autorizando, nos casos previstos em lei,
a realizar as atividades econômicas exigidas pela segurança nacional e pelo
interesse coletivo442.

5.2.7. A subsidiariedade regulativa


A subsidiariedade regulativa ocorre difusamente no título da ordem
econômica e financeira, em particular no capítulo destinado à atividade
econômica da mesma Constituição. Sua manifestação mais literal ocorre
no art. 174443, que afirma o Estado como regulador e agente normativo da
atividade econômica competindo a ele fiscalizar, incentivar e planejar.

441. Cf. Horbach, Carlos Batiste. Guarda da Constituição, legislação e a jurisdição: Uma confusão
hermenêutica. Realismo – Revista Ibero-Americana de Filosofia Política e Filosofia do Direito, v. 1, n.
2, p. 8, 2006/1.
442. Art. 173, caput: “Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade
econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a
relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”.
443. Art. 174, caput: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá,
na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor
público e indicativo para o setor privado”.

109
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

5.2.8. A subsidiariedade indutiva e a dedutiva


A distinção entre subsidiariedade indutiva e subsidiariedade dedutiva dá-se
a partir do sujeito. A relação do sujeito enquanto subsidiário é dedutiva, pois
acontece a partir dele para uma ordem menor e menos autossuficiente. Uma
organização não governamental, por exemplo, que tem como fim subsidiar
alguma atividade econômica em particular, realiza subsidiariedade dedutiva
com seus entes subsidiados. Entretanto, se a mesma organização não tem
recursos suficientes e sua atividade-fim depende da ajuda de recursos exte-
riores, seja da própria sociedade ou do Estado, ela realiza subsidiariedade
indutiva com os que a auxiliam. Passa a ser, portanto, ordem subsidiada
em razão das subsidiárias que a socorrem. Podem também ser chamadas de
subsidiariedade ativa e passiva.
A classificação também pode ser utilizada no plano da iniciativa e pode
decorrer, inclusive, de falhas na cognoscibilidade da necessidade, pois diz
respeito à iniciativa da ação a partir do sujeito perceptivo da necessidade.
Ainda que, em primeiro plano, pareça elementar que aquele que necessita do
subsídio apreenda a necessidade antes daquele que tem o dever de satisfazê-la,
uma análise mais atenta revela-nos a precariedade dos instrumentos gnosio-
lógicos de diversas categorias de pessoas protegidas. Tais deficiências podem
decorrer de um estado, tais como, crianças, doentes mentais, analfabetos,
famélicos, aborígines isolados etc., como também pode resultar de calami-
dades naturais ou humanas, como pestes, catástrofes, guerras etc.
A iniciativa pode se dar, então, por ação do subsidiado – indutiva – ou do
subsidiário – dedutiva –, desencadeando o processo e revelando um direito
ou um dever, qual seja, o de reivindicar o auxílio ou de prestá-lo.

5.2.9. A subsidiariedade política


Por último, a subsidiariedade política diz respeito à distribuição de
competências entre os vários entes estatais. Não se refere aos poderes de
Estado, como parece sugerir, mas às unidades políticas tanto internas quanto
externas. Numa sequência indutiva, a distribuição de competências vai desde
o município, passando pelo ente federado ou confederado – no caso de
Estados descentralizados –, pelo Estado e pela comunidade de Estados e
pela ordem internacional como um todo. O melhor exemplo na história é

11 0
O princípio de subsidiariedade | C A P Í T U LO 5

a comunidade política medieval na qual o poder político estava dissolvido


na sociedade e atingia um altíssimo grau de descentralização444. Tamanha
era a independência do senhor feudal que alguns chegam a negar a natureza
estatal do Regnum, pois cada feudo seria em si uma unidade estatal 445.
No Estado moderno, a subsidiariedade política se manifesta especial-
mente nas formas federativas e confederadas, mas encontra lugar ainda no
Estado unitário a exemplo da República Portuguesa. O artigo 6o de sua
Constituição, que trata particularmente em afirmar Portugal como um
Estado unitário, estabelece que sua organização e funcionamento são orien-
tados pelo princípio de subsidiariedade446.
Passemos, portanto, a observar mais concretamente a ocorrência do
princípio de subsidiariedade nas relações entre a pessoa e os diversos estratos
sociais e estes entre si.

5.3. OS NÍVEIS DO PRINCÍPIO DE SUBSIDIARIEDADE


A pessoa é a unidade social447. Não é apenas uma parte do todo, mas
um todo em si, e afirmar a sociedade como um todo composto de pessoas
é afirmá-la como um todo composto de muitos todos. Nisso consiste aquilo
que Maritain chama de paradoxo da vida social: o ser humano é totalmente
indivíduo e totalmente pessoa448.
Essa relação entre a pessoa e a comunidade, mediada pelo bem comum,
é a relação mais plena que há, pois a pessoa está ligada por inteiro ao bem
comum da sociedade civil. Já o bem comum realizado a partir das relações
mediadas pelos estratos sociais e grupos intermédios diz respeito apenas à
parte do interesse das pessoas. Assim, os bens comuns disponibilizados por
um clube de lazer atendem apenas a uma dimensão do existir da pessoa. Um
sindicato se encarrega da sua dimensão econômica, uma associação cultural

444. Cf. Souza Júnior, Cezar Saldanha. O Tribunal Constitucional como poder. São Paulo: Memória
Jurídica Editora, 2002, p. 27.
445. Id., ibid., p. 21.
446. Art. 6o, 1: “O Estado é unitário e respeita na sua organização e funcionamento o regime autonômico
insular e os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização
democrática da administração pública”.
447. Cf. Maritain, Jacques. La persona y el bien común, cit., p. 55.
448. Id., ibid., p. 62.

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Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

é constituída para que solidariamente as pessoas realizem outro aspecto de


sua dignidade e assim por diante.
O bem comum liga à unidade social, liga a pessoa totalmente ao todo
social e realiza o fim último da própria sociedade civil: a dignidade da pessoa.
Tal implicação se assenta na própria natureza humana do bem comum. A
ideia de autossuficiência, quer dizer, de felicidade, exige a vida social. O
sumo bem da pessoa determina sua vida social.

5.3.1. A subsidiariedade doméstica


Essa vida social, necessária para a realização da dignidade, da felicidade ou
do estado de autossuficiência – reafirmada a sinonímia entre os termos –, per-
passa por uma ordem de estratos sociais, de níveis de relações ou grupos sociais
que iniciam na família, perpassam pela comunidade na qual está inserida,
pela sociedade a que pertence, pelo Estado que é parte dessa sociedade e pela
própria ordem social, entendendo haver, no final de tudo, uma grande família
humana da qual decorre um bem comum universal, necessariamente político.
Como explica Aristóteles, a família é uma exigência da natureza para
satisfazer as necessidades cotidianas, a aldeia é a primeira comunidade for-
mada por várias famílias com o mesmo fim e a cidade é a comunidade
completa cujo fim é atingir o mais elevado grau de autossuficiência449.
A família é uma comunidade natural que resiste à comunidade política.
É o lugar onde a pessoa encontra os primeiros bens fundamentais para sua
formação e os meios necessários para a sua dignidade. Não deve ocupar um
papel subordinado à sociedade e ao Estado, porquanto contribui de forma
única para o bem da sociedade, devendo gozar de um status de prioridade
em face das ordens que lhe são superiores.
Esse primado da família na ordem social se funda na natureza humana e
não no reconhecimento do Estado, estando, tanto este quanto a sociedade, a
serviço dela. Mas, também ela é sujeito de direitos e deveres. Protegida pelo
princípio de subsidiariedade da interferência dos estratos sociais que lhe são
superiores, deles é credora da ajuda para realizar seus fins e devedora de sua
contribuição peculiar ao bem de todos.

449. Política, I, 2, 1252b, 10 ss.

112
O princípio de subsidiariedade | C A P Í T U LO 5

Desde a experiência constitucional do pós-guerra, do supra mencionado


Constitucionalismo de Valores450, a família passou a ter uma proteção especial
nos textos constitucionais. Em particular, na Constituição da República
Federativa do Brasil, ela aparece no título dos Direitos e garantias funda-
mentais, onde a norma constitucional imuniza sua propriedade produtiva
da penhora451, e estabelece suas necessidades como critério de fixação do
salário-mínimo452. A mesma Constituição firma sua proteção como um dos
fins da seguridade social453 e determina que deve a programação de rádio
e TV respeitar seus valores éticos e morais454. Ela é merecedora de capítulo
próprio na Constituição – Capítulo VII – que a afirma como base da vida
social, como instituição protegida do Estado455, e a coloca como correspon-
sável do cuidado ao idoso456. Admite, por exemplo, sua função insubstituível
na tarefa de oferecer formação integral aos seus membros457. A objetividade
da Constituição não atribui à família o seu papel, mas o reconhece.
A família é o primeiro grupo com o qual se relaciona e é a primeira ordem
que é superior à pessoa em extensão. Como lembra Hannah Arendt, do ponto
de vista prático-político, a família tem uma importância inquestionável. Ela é
o único abrigo do indivíduo num mundo inóspito e estranho, que determina
o parentesco como a primeira e mais estável ordem de proteção da pessoa458.

450. Sobre o Constitucionalismo de Valores, ver, já citado, Di Lorenzo, Wambert. Do totalitarismo


ao Direito Natural, uma experiência ética na virada do milênio. In: Pozzoli, Lafayette & Lima Filho,
Alceu de Amoroso. Ética no novo milênio, cit., p. 419.
451. “Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...) XXVI – a pequena
propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora
para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar
o seu desenvolvimento.”
452. “Art. 7o São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais (...) IV – salário-mínimo, fixado em lei,
nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família (...).”
453. Cf. Art. 203, I.
454. “Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes
princípios: (…) IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.”
455. “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
456. “Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando
sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.”
457. “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício
da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”
458. Arendt, Hannah. O que é política?, cit., p. 22.

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Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Não é sem razão que a família é o alvo preferencial dos regimes


totalitários. Ainda que a hegemonia social de um todo coletivo como
indivíduo único e total seja um devaneio – uma quimera cuja persecução
exigiu um preço atroz para a humanidade –, a hegemonia intestina da
família rivaliza com qualquer força totalitária que se projete contra ela
ou contra a pessoa.
Ela é o último baluarte da liberdade, o refúgio privado da dignidade,
quando o espaço público contra ela atenta. A ruptura dessa última fronteira
serve, inclusive, para distinguir entre os regimes autoritários e totalitários,
pois, se no primeiro não há liberdade pública, no segundo não há liberdade
em nenhuma esfera, já que inexiste o espaço privado.
A família resiste à política, não apenas ao seu corrompido modelo totali-
tário, mas ao também viciado modelo que lhe é oposto, pois estabelece uma
tensão constante entre as relações de parentesco e o pluralismo social. O
alcance do seu controle na vida de seus membros e a influência que exerce
sobre eles a faz tender a uma autossuficiência absoluta e à autocompreensão
de um grupo social completo em si mesmo. Mas não é bem assim.
Como observa John Finnis, ela é incompleta e insuficiente. Sequer pode
prover adequadamente a transmissão de seu patrimônio genético, pois aquela
que se reproduz no interior de si mesma tende à autodestruição. Assim como
é patente sua insuficiência enquanto unidade econômica e sua incapacidade
de manter a cultura e a saúde de seus membros459.
Além disso, não é a família a unidade social, mas a pessoa. Ainda que
sua unidade interna seja o último amparo da liberdade da pessoa, a absor-
ção da pessoa pela família aniquila igualmente a liberdade e embarga, por
conseguinte, a realização de sua plenitude460.

5.3.2. Subsidiariedade e economia


Essa insuficiência da família remete a pessoa não apenas à própria famí-
lia, mas também aos estratos sociais que lhe são superiores. Dito que o pri-
meiro bem comum é o bem-estar, esse, por sua natureza econômica, só pode

459. Finnis, John. Lei natural y derechos naturales, cit., p. 177.


460. Id., ibid., p. 175.

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O princípio de subsidiariedade | C A P Í T U LO 5

ser realizado no âmbito comunitário e social, ainda que seus fundamentos


possam estar excepcionalmente na família, como veremos.
Dos modelos antropológicos aqui discutidos resultam as mais relevantes
experiências econômicas. Algumas delas, ainda que mais bem-sucedidas na
tarefa de produzir riquezas, fracassaram na tarefa de distribuí-las e redun-
daram numa atrofia da dignidade da pessoa humana quando a reduziram
ao mero bem-estar. Outras violentaram a própria pessoa, sua liberdade e sua
natureza individual, além de protagonizar o mais retumbante fracasso na
tarefa de produzir os bens mínimos necessários para o bem-estar humano.
Uma dando as costas ao bem comum exaltava o indivíduo como ator da eco-
nomia, outra o aniquilava em nome de um todo coletivo, um único imaginário
total e sem partes. Ambas, lugares-comuns na filosofia política, soçobraram.
Outras experiências, de base personalista, demonstram ser eficazes tra-
tamentos do problema social e da realização da dignidade econômica da
pessoa. Elas operam relações subsidiárias entre os estratos sociais, respeitadas
as autonomias dos níveis de bem comum.

5.3.3. Os kibutzim e o coletivismo


Um dos modelos mais significativos foi a experiência judaica dos kibut-
zim . A relevância do kibutz para a sociedade israelense diz respeito mais
461

ao bem comum político que ao bem comum doméstico, como será visto a
seguir462.
Do ponto de vista geopolítico, os kibutzim foram e são essenciais na
configuração e na manutenção do território do Estado de Israel. Do ponto
de vista militar, foram estrategicamente fundamentais nos conflitos árabe-
israelenses, pois seus membros, bem treinados e armados, combatiam os
inimigos até a intervenção do exército regular. Na dimensão econômica,
geraram bens e tecnologias de grave importância para a sociedade israelense.
Entretanto, ainda que o sucesso em áreas específicas possa ser constatado,
a experiência dos kibutzim é marcada por graves desvios na sua finalidade
primeira, qual seja, de trazer e distribuir bem-estar moral para seus membros.

461. Plural de kibutz. Do hebraico, reunião ou juntos.


462. Sobre a formação dos kibutzim, cf. Johnson, Paul. História dos judeus. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

11 5
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

O primeiro kibutz, Degania, foi fundado em 1909, por onze pessoas


oriundas do movimento sionista. A experiência inicial do kibutz, ainda que
não houvesse qualquer referência no campo especulativo, era baseada num
personalismo empírico.
A ideia de um ser humano chamado a sua plenitude individual a partir
da vida social foi o fundamento do movimento dos kibutzim que, por sua
vez, é a expressão mais viva do movimento sionista. O sionismo via no tra-
balho da terra a redenção dos judeus da diáspora cuja decadência atribuía à
aversão destes ao trabalho físico. Propunha, assim, uma espécie de religião
do trabalho.
Daí, os kibutzim surgem como espécies de colônias agrícolas baseadas
no cooperativismo social, inspiradas no sionismo que afirmava o cultivo da
terra como redentor físico e espiritual do povo judeu. A vida em comum,
associação para produção e a destinação comum dos bens ia ao encontro
da insuficiência da família em prover o bem-estar fundamental dos seus
membros, bem como assegurar a própria sobrevivência das pessoas no
ambiente hostil da Palestina.
Os kibutzim jamais foram autossuficientes, exigindo sua existência uma
manifestação perene do princípio de subsidiariedade, pois sempre depen-
diam, desde a criação, do subsídio privado e estatal, da generosidade dos
judeus espalhados pelo mundo e dos subsídios do Estado de Israel a partir
de sua fundação.
Entretanto, havia uma tendência coletivista no movimento dos
kibutzim, isto é, uma tentativa de socializar não apenas os meios de
produção e os bens de consumo, mas a própria vida privada e o espaço
mais íntimo da vida pessoal. Isso ocorreu, de fato, a partir de 1920,
quando a ideologia marxista – que teve como maior expoente Hashomer
Hatzair – passou a orientar sua vida econômica e social. Desde então,
os kibutzim tornaram-se experiências totalitárias de sucesso econômico
e militar, mas de fracasso humano, da ruína da pessoa na realização de
seus fins mais profundos.
Assim, o kibutz passou a violar o princípio de subsidiariedade e investiu
contra a única instância de defesa das estruturas psicológicas e espirituais
da pessoa: a família.

116
O princípio de subsidiariedade | C A P Í T U LO 5

Família e vida privada passaram a ser conceitos antagônicos ao modelo


coletivista. A vida privada foi substituída por uma vida social que, no cotidiano,
se restringia ao espaço do refeitório simbolicamente mobiliado com bancos para
expressar a vida coletiva. Maridos e mulheres eram dissuadidos a sentar juntos,
pois o casamento era uma espécie de exclusividade estranha à vida comum
do kibutz. Na década de 1950, o Kibutz Har chegou a proibir a compra de
chaleiras interpretando que, com a posse das mesmas, as pessoas iriam passar
mais tempo nos seus apartamentos privados a despeito do refeitório comum463.
Mas, o fato mais representativo é o surgimento das Sociedades das
Crianças, comunidades que tinham o objetivo de criar as crianças sem a
participação ou influência dos pais. Havia o entendimento de que enfer-
meiras e profissionais treinados cuidariam das crianças melhor, além de
libertar as mães de sua tragédia biológica, isto é, do vínculo com o filho que
a privaria do trabalho e do lazer.
Essa desditosa experiência foi abandonada apenas em 1998, após estudos
comprovarem que as crianças que viviam nestas condições sofriam de mui-
tas desordens psicológicas, como traumas de privação de afeto, depressão,
esquizofrenia, baixa autoestima, alcoolismo e toxicomania. Ainda em 1994,
mais da metade delas tinham sintomas de psicopatologia decorrentes de
insegurança na afeição e falta de afeto464.
Seria tautológico repetir aqui as várias dimensões do existir humano nas
quais se realiza a dignidade da pessoa, mas vale reafirmar que a dimensão
econômica é apenas uma delas e que, se realizada sozinha, ainda que garanta
a subsistência física do indivíduo, o desfigura e mutila enquanto pessoa.

5.3.4. O cooperativismo
O modelo do kibutz é remotamente influenciado pelo cooperativismo
que tem sua origem na Inglaterra, na primeira metade do século XVIII. Este,
por sua vez, é uma das mais eficientes expressões de economia personalista
da história.

463. Cf. Rayman, Paula. The kibbutz Community and Nation Building. Princeton: Princeton
University Press, 1981.
464. Cf. Kelemen, Lawrence. Viver para amar. Disponível em: <http://www.aishbrasil.com.br/new/
artigo_ viver.asp>. Acesso em: 17/07/2008.

117
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Baseadas nos princípios da solidariedade, igualdade, empreendedo-


rismo, as cooperativas são empresas constituídas pela associação de pessoas
com o fim de realizar atividade econômica. Mas, semelhante definição serve
para evidenciar qualquer empresa que não seja individual, seja sociedade
anônima ou por cotas limitadas. Então, quais os traços essenciais que
diferenciam esse tipo especial de sociedade empresarial? A ausência do
interesse pelo lucro.
Como enunciamos na primeira parte ao tratar da dignidade econômica
da pessoa, o fim de uma cooperativa é a pessoa e não o lucro.
Em resumo, as cooperativas são associações que estão a serviço dos
seus membros e se prestam, especificamente, para que o seu desempenho
econômico seja, no mínimo, igual àquele que teria individualmente. Quer
dizer, os associados têm lucro, a cooperativa não.
Significa, além disso, que, ainda que a atividade empresarial exija reservas
para investimento e avanço tecnológico e estas provenham do resultado
positivo da atividade, resta na cooperativa o princípio norteador do primado
da pessoa sobre o lucro.
O cooperativismo é uma das mais expressivas manifestações do princípio
de subsidiariedade.
Entretanto, tratando-se, ainda, da sociedade e da atividade econômica
privada – porquanto não chegamos ao papel do Estado, ainda –, a realização
do bem comum a partir de uma economia personalista não é monopólio de
empreendimentos associativos, mas papel de toda e qualquer empresa, até
mesmo de constituição individual.

5.3.5. O caso do Grameen Bank


Toda vida econômica norteada pelo princípio de subsidiariedade impõe
uma relação de subsidiariedade dedutiva da empresa para com os estratos
que lhe são inferiores e indutiva com os que lhe são superiores. Quer
dizer, a empresa deve e pode, a partir do caso concreto, exercer o papel
de subsidiária ou subsidiada. A primeira se dá na relação desta com seus
cooperadores e a comunidade na qual está inserida; a segunda ocorre
na relação com a comunidade política e com o Estado e suas políticas
públicas de fomento.

11 8
O princípio de subsidiariedade | C A P Í T U LO 5

Um grande modelo deste último exemplo é o Banco Bengalês Grameen


Bank, cuja atividade rendeu para o seu fundador, o professor de economia
Muhammad Yunus, o Prêmio Nobel da Paz de 2006.
O Grameen Bank é uma manifestação expressiva do princípio de
subsidiariedade.
O referido professor cunhou a expressão microcrédito para designar o
tipo de operação que realiza o Grameen Bank – Banco Rural em Bengali.
O microcrédito não é destinado a pequenos produtores ou ao consumo,
mas a pessoas miseráveis que não têm acesso a qualquer tipo de crédito.
Curiosamente, o crédito é concedido a juros baixos e sem nenhuma garantia.
O Grameen Bank é um negócio muito bem-sucedido que possui mais de
duas mil agências e que emprestou, desde a sua fundação, quase seis bilhões
de dólares com uma taxa de adimplência de 98,85.
A constituição societária do banco demonstra sua relação subsidiária
dedutiva – para com a sociedade na qual atua – e indutiva – para com o
Estado –, pois 90 das ações do banco pertencem às populações pobres por
ele assistidas e 10 pertence ao Estado bengalês.
Em que pese ser uma empresa com resultados exemplares, que superam
os bancos comerciais mais bem administrados do mundo, o Grameen Bank
tem como fim último a pessoa e não o lucro.
Nas suas práticas, o banco segue um método próprio465 e afirma princí-
pios éticos que resultam de uma visão muito particular acerca do ser humano
e das instituições sociais nas quais está inserido. Nas palavras do próprio
Muhammad Yunus, os pobres têm habilidades profissionais não utilizadas
ou subutilizadas, não resultando a pobreza da falta de habilidades, mas das

465. Segundo afirma, o Grameencredit: promove o microcrédito como um dos direitos humanos;
não se baseia em qualquer garantia real ou contratos juridicamente válidos, mas exclusivamente na
confiança; destina-se a subsidiar o autoemprego; o serviço é oferecido de porta em porta – claro
exemplo de subsidiariedade dedutiva; para obtenção do crédito o tomador deve fazer parte de um
grupo de tomadores que moralmente se obrigam ao pagamento; os empréstimos pode ser oferecidos
em uma sequência infinita, basta que o tomador não esteja inadimplente; o pagamento é em pequenas
prestações semanais ou bissemanais; os empréstimos são vinculados a planos de poupança; e, o banco
se serve de instituições sem fins lucrativos ou controladas pelos tomadores – manifestação clara
do princípio de subsidiariedade indireta. Cf. Yunus, Muhammad. What is microcredit. Grameen:
Banking of the Poor, 2003. Disponível em <http://www.grameen-info.org/mcredit/index.
html>. Acesso em: 16/07/2008.

119
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

instituições políticas que a cercam, sendo necessário, para eliminar a pobreza,


modificar as instituições políticas ou recriá-las466.
Em síntese, os fundamentos são de economia personalista, e o fim da
atividade financeira é a dignidade da pessoa humana como tal.

5.3.6. A usura
Ainda, o caso bengalês demonstra que uma atividade financeira de
fundamento personalista tem como fim a dignidade da pessoa como tal,
não podendo ter como fundamento a usura, prática trivial nas relações de
crédito atuais.
A usura tem sido causa de empobrecimento de pessoas, grupos e socie-
dades. Ainda que a pobreza possa ter causa volitiva, a experiência humana
atual demonstra ser ela um fato natural. Bilhões de pessoas simplesmente
nascem pobres. E o ambiente de miséria que os acolhe, via de regra, é retrato
da má distribuição dos bens humanos, do desvio na destinação universal
destes bens da exploração das comunidades fornecedoras de matérias-
primas e pouco industrializadas e, dentre outros fatores, da usura. Neste
contexto, a usura torna-se ato da mais desproporcional violência para com
os pobres, pois que aniquila e escraviza a pessoa. Ela em nada contribui
para o desenvolvimento humano, para o bem comum e para a dignidade
da pessoa humana.
Podemos definir a usura como o uso do dinheiro para obter lucros sobre
o trabalho alheio. Esse uso ocorre por meio de juros. Entretanto, juros pagos
podem configurar tanto uma ação subsidiária quanto uma exploração injusta
e eticamente reprovável da atividade de outrem.
Os juros abusivos escravizam por gerarem situação de dependência na
qual o resultado do trabalho da pessoa, de grupos ou de comunidades escoa,
fatalmente, para o patrimônio de quem não trabalhou efetivamente para
construí-lo. Assim, indisposição do resultado do próprio trabalho é uma
das formas mais comuns de definir o que vem a ser escravidão. O que é o
trabalho escravo senão aquele no qual quem nele trabalhou está privado
dos seus frutos?

466. Id., ibid.

12 0
O princípio de subsidiariedade | C A P Í T U LO 5

Tal tipo moderno de escravidão não acontece apenas nos efeitos, mas
está, também, na raiz da atividade usurária, pois a submissão a um usurário
não se dá por uso livre da vontade, como adverte Tomás de Aquino: “quem
paga juros não o faz de maneira inteiramente livre, mas constrangido por
certa necessidade”467.
Também Aristóteles não deixou de condenar a usura, acusando-a de ser
a forma mais odiosa de obter riqueza. De todas, a mais contrária à natureza,
pois com ela se lucra a partir do dinheiro e não do próprio objeto: “Pois
o dinheiro foi criado para ser usado em permuta, mas não para aumentar
com usura”468.
Tomás de Aquino também afirma que ela viola a justiça comutativa, pois
o dinheiro foi criado para facilitar e ser gasto nas comutações. “Por isso, é,
em si mesmo, ilícito perceber um preço pelo uso do dinheiro emprestado,
o que se chama usura”469.

5.3.7. A função social do crédito


A usura não é configurada pelo juro em si, mas pelo caráter extorsivo
e apropriador. Pelo uso do dinheiro como fim e não como meio em si470.
Pode-se então acusar Muhammad Yunus de usurário? Ainda que o
Grameen Bank seja um dos bancos mais eficientes do mundo, evidente-
mente que não. Homens como Yunus, dotados de um aguçado senso de
solidariedade, são, antes de tudo, sócios das pessoas a quem subsidiaram.
O investidor, ao subsidiar uma atividade, a ela se associa e, como
ensina Tomás de Aquino, “pode licitamente reclamar uma parte do lucro,
como procedendo de coisa sua”471. Em outras palavras, uma relação de
crédito orientada pelo personalismo envolve relações de solidariedade,
uma vez que transfere uso do dinheiro para o tomador, não sendo usu-
rária a atividade do concessor do crédito. É lícito, portanto, ao cedente
receber pelo uso que foi feito do dinheiro pelo cedido, considerando a

467. Summa Theologiae II-II, q. 78, a. 1, res. 7.


468. Política, I, 8-10.
469. Summa Theologiae II-II, q. 78, a. 1, res.
470. Vale ler o comentário de Hannah Arendt que afirma que a ideia de dinheiro gerar dinheiro é a
mais grosseira superstição da era moderna. Cf. A condição humana, cit., p. 117.
471. Summa Theologiae II-II, q. 78, a. 3, res. 5.

12 1
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

privação que sofreu daquele bem que se privou e que estava à disposição
de outrem472 .
Há, assim, uma função social no crédito que pode ser, no lugar de
instrumento de dominação e expropriação, ferramenta do bem comum e
da solidariedade, gerador de riquezas e bens.

5.3.8. Subsidiariedade e comunidade


Em que pese a argumentação ter escoado naturalmente para as questões
de mercado, valem algumas notas sobre as relações em rede ou cadeia que
ocorrem entre a pessoa e os grupos sociais intermédios, entre estes em si,
entre todos e a comunidade política e entre esta e o Estado e, por último,
entre este e a ordem internacional. Tal tarefa requer alguns apontamentos.
O primeiro conceito que demanda reflexão é o conceito de comunidade.
Para John Finnis, deve-se pensar a comunidade não como um ente, um ser que
atua, mas um estado de coisas, um compartilhar a vida, a ação ou os interes-
ses473. Ela é uma forma de relação unificante entre os seres humanos. Segundo
explica, tais relações são e não o são, em parte, resultado da inteligência474.
Um segundo conceito já é objeto das ciências naturais. Diz respeito a
uma unidade física e biológica da comunidade. Na segunda, a unidade entre
pessoas resulta de atos da inteligência propriamente.
Podemos tomar como exemplo um concerto musical. Os sons que che-
gam aos ouvidos resultam da vibração dos instrumentos no ar. Há uma
relação unificante entre o músico e o ouvinte que não resulta da inteligência
propriamente, mas de fenômenos físicos. Todavia, se o ouvinte compara,
acompanha as notas e realiza uma atividade anímica, esse ato é totalmente
guiado pela inteligência.

5.3.9. Subsidiariedade e sociedade


Maritain distingue comunidade de sociedade, ainda que reconheça haver
uma sinonímia entre os termos. Ambas, segundo explica, são realidades

472. “Em contrato com quem toma emprestado, aquele que empresta pode sem pecado estipular uma indenização do
prejuízo que lhe advém por se privar de um bem que lhe pertence.” (S. T. II-II, q. 78, a. 2, res. 1).
473. Cf. Finnis, John. Ley natural y derechos naturales, cit., p. 166.
474. Id., ibid., p. 167.

12 2
O princípio de subsidiariedade | C A P Í T U LO 5

ético-sociais, sendo a comunidade uma obra mais da natureza, e a sociedade,


mais da razão. A primeira está vinculada ao plano biológico; a segunda, às
faculdades intelectuais e espirituais da pessoa475.
Uma e outra se diferenciam, portanto, a partir de seus objetos, já que
todas as relações sociais pressupõem um objeto comum. O objeto da comu-
nidade é um fato que precede a inteligência e a vontade, que atua inde-
pendentemente delas, criando uma psique inconsciente comum, estruturas
psicológicas, sentimentos e costumes comuns. Já o objeto da sociedade é
uma tarefa a ser feita, um fim a ser atingido que depende da inteligência e
da vontade.
Todavia, todas as sociedades, mesmo as naturais como a família e a
sociedade política, derivam da liberdade476.
Mais acima das sociedades está a sociedade política, como paradigma
aristotélico da sociedade completa. Configura-se como uma associação
que contém em si todas as que lhe são inferiores em extensão e que coor-
dena as atividades e as iniciativas das pessoas, das famílias e das inúmeras
sociedades intermédias. O seu papel também é assegurar o conjunto de
condições necessárias para que todas as partes desse complexo social rea-
lizem seus fins privados e que esses estejam dispostos em razão do bem
comum. Como afirma Finnis, de “maneira que não há nenhum aspecto
dos assuntos humanos que enquanto tal esteja fora do âmbito de tal comu-
nidade completa”477.

5.3.10. Subsidiariedade e Estado


A sociedade política não é o Estado. Estes entes não se opõem, mas
diferem entre si como a parte se difere do todo. A sociedade política é o
todo, o Estado uma parte, ainda que seja a parte principal deste todo478.
“A sociedade política, exigida pela natureza e realizada pela razão, é a mais
perfeita das sociedades temporais”479.

475. Cf. Maritain, Jacques. O Homem e o Estado, cit., p. 11.


476. Id., ibid., p. 13.
477. Finnis, John. Ley natural y derechos naturales, cit., p. 177.
478. Cf. Maritain, Jacques. O Homem e o Estado, cit., p. 19.
479. Id., ibid., Maritain também sugere que as palavras pólis e civitas devem ser traduzidas por comunidade ou
corpo político e não como Estado. (Cf. p. 41).

12 3
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

O bem comum do corpo político exige uma rede de autoridade e poder,


uma instituição que realize a justiça e efetive a lei. Esta instituição é o
Estado. Mas o Estado “não é nem um todo, nem um sujeito de direito,
nem uma pessoa”480. É parte e, como tal, é inferior à sociedade política. O
fim último do Estado é o bem comum da comunidade política, ainda que
seu fim imediato seja a manutenção da ordem pública. Se para a sociedade
política o bem comum é fim, em razão deste o Estado é apenas meio e não
fim em si mesmo.
O Estado não é um homem, um grupo de homens ou um super-homem
coletivo. Mas uma instituição voltada para o interesse do todo, autorizada a
utilizar a coerção, dotada de um corpo funcional especializado no interesse
público. O Estado é um instrumento a serviço da pessoa. A pessoa existe para
a sociedade política e esta existe para a pessoa. Mas, jamais a pessoa existe
para o Estado, o Estado é que existe para a pessoa481. Admitir o contrário e
pretender colocar a pessoa a serviço de um instrumento criado para lhe servir
é um tipo de perversão que custou milhões de vidas humanas no século XX.
O Estado Social surge como ferramenta da sociedade política para cor-
rigir seus desvios em face da justiça e da solidariedade desde a revolução
industrial.
Mas há um tipo de degeneração no Estado Social. Quando este, pre-
tendendo ser o todo social e descartando o princípio de subsidiariedade,
assume tarefas próprias da sociedade política, das sociedades intermédias,
das comunidades e das pessoas. O Estado é eficiente nas tarefas que lhe são
próprias, mas inábil nos demais terrenos, portanto, quando assume tarefas
que não são de sua competência natural, se torna necessariamente opressor482.

5.3.11. Subsidiariedade e ordem internacional


Das considerações acima sobra a interrogação: qual o papel do Estado em
face da questão social? A resposta é evidente: a atuação subsidiária em face
da dignidade da pessoa humana, disponibilizando todos os bens necessários

480. Id., ibid., p. 35.


481. Maritain define sua Teoria do Estado de instrumentalista. E a opõe à teoria substancialista ou absolutista
que pretende o Estado um sujeito de direitos, uma pessoa moral, um todo em si mesmo. (Id., ibid., p. 23).
482. Id., ibid., p. 32.

124
O princípio de subsidiariedade | C A P Í T U LO 5

para que a pessoa, os grupos intermédios e a comunidade política realizem


seus fins. Em outras palavras, o fim imediato do Estado é o bem comum
político.
Mas isso não esgota o problema do princípio de subsidiariedade. Pois, se
o limite da atuação do Estado está no bem comum político – restando daí o
bem comum das sociedades intermédias –, resta, portanto, um bem comum
que lhe é superior, tanto quanto é superior a própria sociedade política: o
bem comum universal.
O bem comum universal resulta da natureza comum de todo o gênero
humano que iguala os seres humanos em sua dignidade. A complexidade
das relações, das necessidades e das dependências humanas ultrapassou
as fronteiras dos estados e colocou a pessoa como unidade social de uma
comunidade global.
Isso requer a organização do mundo em entes cuja competência seja
socorrer as pessoas humanas em bens fundamentais, em situações perenes de
necessidade, bem como em momentos críticos e eventuais, tais como guerras
e calamidades. Como o bem comum político, o bem comum universal está
centrado na pessoa humana e no seu sumo bem.
Por isso, o princípio de subsidiariedade é o instrumento político de
relativização da ideia de soberania, pois, não que o Estado seja sujeito de
direitos, mas as pessoas humanas que compõem a comunidade política a
que ele pertence são.

5.3.12. Subsidiariedade e bens comuns universais


A ação subsidiária da comunidade internacional pode ser de tipo direta e
indireta, como já mencionamos anteriormente, e gira basicamente em torno
dos mesmos bens comuns necessários que devem ser subsidiados pela socie-
dade global, se escassos na família, na comunidade e na sociedade política.
Entretanto, há dois bens comuns objetivos, não no sentido teleológico,
mas no sentido real. Há duas coisas fundamentais para existência humana,
dois bens comuns universais: o meio ambiente e a paz483.

483. Roberto Papini extrai do pensamento de Maritain dois bens comuns universais: a democracia
internacional e a paz. Cf. Papini, Roberto. La democrazia internazionale e la pace come bene comune
universale secondo Jacques Maritain. Disponível em: <http://www.maritain.com.br>. Acesso em: 04/07/2008.

12 5
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

5.3.13. Subsidiariedade e meio ambiente


Já na Roma Clássica, havia a noção de que alguns bens tinham desti-
nação universal, ainda que se situassem no espaço que uma comunidade
em particular. Eram patrimônio do bem comum político e insuscetíveis de
qualquer apropriação, seja por um indivíduo ou estrato social. A tradição
jurídica romana as consagrou como res extra patrimonium e res extra com-
mercium. Estas últimas não faziam parte das relações jurídicas patrimoniais
privadas, sobretudo da comutação, eram absolutamente excluídas484. As
primeiras não podiam ser objeto de apropriação privada, configuram-se, na
definição clássica, as res nullius ou, mais propriamente, as nullius in bonis485.
Demonstrado que a civilização romana tinha claramente que o fim
da cidade era prover bens comuns necessários à felicidade de todos, vê-se,
também, que esta não passava ao largo da questão ambiental.
As res humani juri ou as res nullius humani juris eram coisas pertencentes
à comunidade política como tal486, bens que eles chamariam de coisas uni-
versais487. Foram essas que Gaio dividiu em comunes, universitates e publicae.
As res comunes, como sugere, são de uso comum e incluem aquelas
indispensáveis à própria existência humana, como o ar e a água. Tais bens,
ainda que possam ser adquiridos pela sua inerência aos bens de natureza
484. Digesto. 18. 1. 34. 1.
485. O jurisconsulto Gaio divide as res extra patrimonium em duas categorias: as de direito humano e
as de direito divino. Observa-se que as res classificadas como não suscetíveis de relações comerciais ou
patrimoniais se tornam tutela da comunidade política por exclusão, já que não podem ser reguladas
por regras exclusivamente privadas. Entretanto dentre estes bens, alguns podem ser explorados pelo
particular que exercerá sobre ele uma relação de domínio. Os romanos dividiram as res divini juris em
res sacrae, res religiosae e as res sanctae: “Sacrae res et religiosae et sanctae in nullius bonis sunt” (Digesto.
1. 8. 6. 2). As primeiras eram coisas consagradas aos deuses superiores, como os templos e os objetos de
culto. A consagração era um ato religioso e público, era determinado por uma lei, um senatoconsulto
ou um plebiscito. Mais tarde, apenas com a autorização imperial. As res religiosae eram consagradas
aos deuses inferiores, ligadas ao defunto ou ao lugar do sepultamento, como cemitérios, o sepulcro,
os artefatos a ele inerentes e objetivava proteger os restos mortais sepultados sem deter o jus sepulchri
sobre o terreno; as res sanctae eram, ainda no direito justinianeu, as coisas não consagradas aos deuses
mas que detinham um caráter religioso como as muralhas e as portas das cidades que estavam sob a
proteção divina. (Cf. Di Lorenzo, Wambert. A tutela ambiental moderna e as res humani juris: um
estudo comparado. In: VI Colóquio Ítalo-Brasileiro de Direito Romano, 1999, Pelotas. Anais. Pelotas:
UFPEL, 1999. 1 CD-ROM ou Di Lorenzo, Wambert. A tutela ambiental moderna e as res humani
juris: um estudo comparado. Revista do Curso de Direito da Universidade Federal do Maranhão, v. 4,
n. 2, p. 113-123, dez. 1999).
486. Digesto. 50. 16. 15.
487. res universitates: “universitates sunt (...) civitatium” (D. 1. 8. 6. 1).

126
O princípio de subsidiariedade | C A P Í T U LO 5

patrimonial – como a águas fluviais ou pluviais –, são imunes à apropria-


ção individual, isto é, proprietas eorum potest intelligi nullius esse – que não
são propriedade de ninguém ou natura omnibus patet – que se estendem a
todos488. Marciano afirmou que elas eram res comunes omnium – destinadas,
segundo o Direito Natural, a todos os homens489.
Os romanos aplicavam o princípio de subsidiariedade regulativa na pro-
teção do meio ambiente, enquanto, a partir do conceito de res nullius, regu-
lavam as atividades de pesca, de construção de áreas de proteção ambiental,
como sobre o mar ou praias490.
Conforme Bonfante, o mar seria res publicae, ao menos nos seus limites
territoriais, sendo suas praias puramente coisas públicas491. Afirma, ainda,
que as res comunes omnium – classificação de Marciano – têm um conceito
filosófico e retórico, o que proporcionou um alcance popular também pelo
seu enfoque naturalista492. Com ele concorda Sanfilippo que afirma serem
estas coisas mais que extra commercium, serem extrajurídicas, resultando
essa classificação, provavelmente, de alguma concepção filosófica grega a
qual Marciano representaria493.
As res universitates pertenciam às comunidades políticas, tais como o
teatro, o fórum, o circo, o estádio e qualquer bem que estivesse sob o domínio
do poder público. A aplicação do conceito remete-nos para o patrimônio
cultural da humanidade, que se subsume no conceito de meio ambiente
e que é preocupação de várias disciplinas políticas e jurídicas, tais como
Direitos Humanos, Direito Ambiental, Direito Internacional Humanitário,
Direito Internacional Público etc., demonstrando a prematura preocupação
da civilização romana com o bem-estar comum de todos os homens.
Os romanos, ainda, consagraram as res publicae como sendo todas as

488. Cf. Di Lorenzo, Wambert. A tutela ambiental moderna e as res humani juris: um estudo
comparado. Revista, cit., p. 119.
489. Digesto. 1. 8. 2. 1.; I. 1.2.1; I. 2. 1. 5.
490. Digesto. 41. 1. 50; D. 1. 8. 6. Segundo Pompônio (Digesto. 50. L.), o pretor deveria fazer
uma análise prévia, se a construção não oferecia risco à navegação. Marciano, segundo a citação
acima, afirmava que, se destruída, o terreno pertenceria a todos, voltando à situação anterior como
postliminium (Digesto. 1. 8. 6. L).
491. Cf. Bonfante, Pietro. Istituzioni di Diritto Romano. Torino: Giappichelli, 1957, p. 239.
492. Id., ibid., p. 238.
493. Sanfilippo, Cesare. Istituzioni di Diritto Romano. 3. ed. Napoli: Jovene, 1955, p. 62.

12 7
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

coisas de domínio público – publica, quae non in pecunia populi, sed in publico
usu habentur494 –, incluindo aí coisas da natureza, como os bosques, mas
também tudo aquilo que pertencia a todos e que todos podiam gozar sem
restrições. Bens materiais de posse do povo e da população, como logradou-
ros, praças, vias públicas, passeios etc.495. Bens reservados pelo direito para o
uso geral dos cidadãos496, que pertenciam ao povo, assim considerado como
pessoa moral, ou seja, o ager publicus e o servi publici497.
A questão social e a questão ambiental estão associadas. Como se vê,
uma das relações de justiça fundamentais para o bem comum universal é a
justiça ambiental. Esta consiste na distribuição das atividades perigosas ao
meio ambiente. Tais atividades, via de regra, aspergem seus danos sobre os
mais pobres que, por ignorância de seus direitos ou pela própria hipossufi-
ciência, tornando-os vulneráveis ao poder, comumente, corroboram com a
própria desventura498.
O dever fundamental de justiça, no que diz respeito à questão ambiental,
é o reconhecimento de todas as pessoas como credoras de um meio ambiente
saudável. Sendo cada ato de preservação, de proteção ou de destruição do
ambiente devido ao outro499.
A sustentabilidade da atividade humana é uma exigência do bem comum
universal e decorre do desafio de não haver atividade produtiva que não seja
destrutiva. Como percebe Hannah Arendt, o caráter destrutivo da atividade
humana é um dos fatores que distingue o homo faber – que trabalha sobre – do
animal laborans – que se mistura com500. A destruição é um efeito inevitável
do artifício humano. O homem necessariamente destrói para produzir, para
usar e para consumir, sendo a destruição em relação ao uso, inevitável – como
sugere Arendt –, mas essencial em relação ao consumo501.

494. Digesto. 18. 1. 6.


495. quae publicis usibus destinata sunt (D. 50. 16. 17.pr).
496. Cf. Bonfante, op. cit., p. 239.
497. Cf. Girard, Paul Frédéric. Manuel Élémentaire de Droit Romain. Paris: Arthur Rousseau, 1901,
p. 237.
498. Cf. Waldman, Ricardo Libel. Ética clássica, ética ambiental e direitos humanos. Disponível em:
<www.mariatain.com.br>. Acesso em: 26/08/2008.
499. Id., ibid.
500. Cf. Arendt, Hannah. A condição humana, cit., p. 149.
501. Id., ibid., p. 151.

12 8
O princípio de subsidiariedade | C A P Í T U LO 5

A diminuição do impacto destrutivo da atividade humana e a busca


de atividades que permitam a reposição dos bens naturais utilizados é uma
exigência do bem comum universal e um imperativo da solidariedade para
com outrem, tanto considerado como contemporâneo quanto em relação
às gerações futuras.
As relações de subsidiariedade na questão ambiental ocorrem, particular-
mente, na regulação da atividade econômica de risco ambiental. Do ponto
de vista da subsidiariedade regulativa, esse é um dos maiores contributos
que as sociedades políticas podem dar ao bem comum universal.

5.3.14. Subsidiariedade e paz


A paz é uma obra de justiça e não meramente a ausência do conflito ou
o equilíbrio de forças. Tampouco é a pax romana, que descansava sobre a
sombra opressora da espada. Como afirma Agostinho de Hipona, a paz é a
tranquilidade da ordem502 .
A paz resulta da justiça. É a justiça nas relações entre pessoas e grupos
que dão estabilidade à paz. Não é possível mantê-la sem a realização do
bem comum, sem o acesso a bens fundamentais que garantam o bem-estar
de cada um.
A paz se sustenta, sobretudo, no respeito à dignidade de outrem e nas
relações de amizade, na efetivação do pretendido princípio da fraternidade
e na superação da desigualdade, da injustiça, da discriminação e da miséria.
A paz é um dos resultados mais importantes da amizade ou, como
veremos no próximo capítulo, do princípio de solidariedade.

502. Cidade de Deus, IX, 12, 1.

12 9
O princípio de
Capítulo
6
solidariedade

E
nquanto princípio personalista que rege a ordem social, soli-
dariedade não se confunde com compaixão, com piedade,
comiseração com os males alheios. Não é um enternecimento
pela dor do semelhante ainda que o reconheça como tal, estando
ele próximo ou mesmo distante. Solidariedade não é um mero
sentimento.
A solidariedade refere-se ao papel do meio social na realização
da dignidade da pessoa, àquele aspecto extrínseco que diz respeito
ao reconhecimento. É uma síntese que compreende os demais
princípios personalistas e é a mais clara manifestação do princípio
de unicidade dos princípios personalistas, supra mencionado.
Num mínimo conceitual, podemos definir solidariedade como
aquela ação concreta em favor do bem do outro. Em que pese o
enunciado remeter de imediato para as raízes cristãs do conceito,
aproximando-o da ideia de benevolência, mais do que um ato de
vontade, como veremos, a solidariedade é uma categoria essencial
da vida social. Sem ela sequer há vida social em sentido próprio e
tampouco há política em sentido estrito. Nas palavras de Cícero, ela
é o mais forte vínculo de união permanente em qualquer república503.
Consistindo não num sentimento, mas numa atitude concreta em
favor do bem do outro, a solidariedade é uma manifestação de justiça,
que tem como objeto o outro, tanto considerado individualmente

503. Cícero. República II, 42, 69.

131
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

como enquanto parte de um todo. Quer dizer, ocorre tanto solidariedade na


ação em favor do bem individual quanto do bem comum, sendo a segunda a
solidariedade política por excelência, devendo ser a base do ordenamento que
rege a vida política, econômica e social da comunidade.
Solidariedade pressupõe desigualdade. Ela age no espaço da diferença,
sendo a desigualdade o pressuposto necessário para sua ação. A solidariedade
e a igualdade não podem coexistir. Antes, a igualdade é o fim da solidarie-
dade, e a desigualdade, o seu objeto. Como forma de amizade e manifes-
tação da justiça, o fim da solidariedade é igualar os homens. Portanto, age
exatamente no espaço da desigualdade e das diferenças próprias da condição
humana enquanto pessoas humanas e do autêntico pluralismo.
A solidariedade tem, portanto, uma dupla natureza, sendo tanto uma
virtude moral quanto um princípio social504.
Enquanto virtude, a solidariedade é um hábito pessoal, uma atitude da
pessoa em face do seu semelhante considerado tanto individualmente como
parte de um grupo social maior. É o empenho na realização da felicidade
do outro, o socorro às suas necessidades fundamentais.
Enquanto princípio social, a solidariedade implica a ação de todos em
favor do bem comum, isto é, o empenho de todos para que todos e cada um
realizem sua dignidade. Só um desenvolvimento solidário da humanidade
gera ou proporciona o desenvolvimento integral da pessoa, de todas as pes-
soas e de cada uma delas em particular.
Ela é o aglutinante da vida social que une as pessoas e os grupos em
torno do bem comum partindo das relações baseadas no reconhecimento,
tendo como resultado a igualdade.
Como afirmou Edith Stein, a solidariedade demonstra que o indivíduo é
uma abstração, e que o ser humano é um devedor constante do seu meio505.
Cada pessoa deve à sociedade o conjunto das condições necessárias para a
sua realização individual, não só no aspecto moral como também no material
propriamente dito, porquanto depende do patrimônio cultural e tecnológico
que não construiu, mas que simplesmente herdou.

504. Cf. João Paulo II, Sollicitudo rei socialis. 38.


505. Cf. Stein, Edith. La estructura de la persona humana, cit., p. 163.

132
O princípio de solidariedade | C A P Í T U LO 6

6.1. O CONCEITO DE SOLIDARIEDADE


Etimologicamente, solidariedade vem de solidus, adjetivo que denota a
ideia de algo compacto, internamente integrado, coeso e não fluido nem
gasoso, bem como aquilo que é sólido, estável e seguro506. Ideia complemen-
tada pelo substantivo abstrato in solidus que exprime o sentido de participa-
ção507 ou a totalidade, o todo, na expressão de Cícero508.
Imediatamente, solidariedade significa uma atitude de interesse no
sofrimento alheio. Também um tipo de relação em que a pessoa só se
realiza à medida que se empenha na realização do outro. É um tipo de
postura social que parte da consciência que do empenho de cada um
depende o bem-estar de todos509. Relação que é conteúdo da chamada
responsabilidade social na qual todos são responsáveis por todos e por cada
um. Não é, portanto, um tipo de altruísmo puro, mas condição da própria
existência humana.

6.1.1. A amizade enquanto gênese


O conceito de solidariedade tem sua gênese na ideia clássica de amizade,
tratando-se em particular de um tipo próprio de amizade, a amizade política,
ou amizade cívica.
Para Aristóteles a amizade – philia – é uma forma de amor e o maior
dos bens para as cidades, pois resulta na unidade510. Ainda que a pessoa não
careça de auxílio mútuo os homens desejam viver em conjunto, unidos por
uma utilidade comum511, na qual a cada um corresponde uma parcela de
empenho no bem-estar, que é o fim principal tanto da comunidade quanto
do indivíduo. Porém, as pessoas se reúnem “pura e simplesmente, para viver,

506. Cf. Ávila, Fernando Bastos de. Pequena Enciclopédia de Doutrina Social da Igreja. 2. ed. Rio de
Janeiro: Loyola, 1993, p. 427.
507. Id., ibid.
508. Cf. Arnaud, André-Jean et al. Dicionário Enciclopédico de Teoria e Sociologia do Direito. Rio
de Janeiro: Renovar, 1999, p. 766. Cf. também, Torrinha, Francisco. Dicionário Latino Português.
Porto: Gráficos Reunidos, 1998.
509. Cf. Ávila. Op. cit., p. 428.
510. Aristóteles. Política I, 1262, 5-10.
511. Cícero tem posição divergente: “Pois, não é tanto os serviços prestados por um amigo, mas a
afeição desse amigo, em si, que dá prazer: o que um amigo nos oferece só nos faz felizes na medida
em que é oferecido com afeição. (...) Assim, a amizade não decorreu da utilidade, mas a utilidade que
decorreu da amizade”. (Cícero, Marco Túlio. Lélio, ou Amizade. XIV, 51).

13 3
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

por isso já existe um elemento, valioso no simples viver, pelo menos se as


amarguras da existência não forem excessivas”512.
A amizade serve justamente para ajudar a superar as amarguras da vida
e é dever do amigo fazer da existência uma experiência prazerosa. Como
comenta Tomás de Aquino, “é preciso que as relações entre homens se orde-
nem harmoniosamente num convívio comum, tanto em ações quanto em
palavras, ou seja, é necessário que cada um se comporte com relação aos
outros de maneira conveniente”513.
Cícero514 descreve a amizade como a mais nobre cumplicidade no plano
das escolhas, dos interesses e das ideias.
A amizade, portanto, é um vínculo objetivo presente nos mais diversos
estratos sociais515. E, como percebe Barzotto, não corresponde ao conceito
atual de amizade, que diz respeito a uma experiência de caráter emotivo
sem nenhuma relevância pública ou política. Nota, ainda, que a amizade
é anterior à justiça e que tem o papel de fundar a comunidade e, como a
justiça, funda seu conteúdo na igualdade516.
Na síntese de Barzotto, o conteúdo da amizade é uma relação de reci-
procidade derivada do reconhecimento do outro como outro eu517.
Na síntese de Cícero, observar um verdadeiro amigo equivale a observar
uma visão exemplar de si mesmo518.

6.1.2. Solidariedade enquanto philia


Philia – que Aristóteles chama de amizade – é uma das três dimensões
do amor, sendo eros e ágape as outras duas. Não se trata de três amores

512. Id., ibid., III, 1278, 20-25.


513. Summa Theologiae II-II, q. 114, a. 1. res.
514. Cícero, Marco Túlio. Lélio, ou Amizade. IV, 15.
515. Aristóteles. Ética a Nicômaco, 1159b. “Em toda comunidade parece haver algum tipo de justiça e
também de amizade. Assim se chamam entre si amigos os companheiros de navegação ou campanhas
militares, e também os membros de outras comunidades”.
516. Cf. Barzotto, Luis Fernando. A democracia na Constituição, cit., p. 72. Cf., também, Aristóteles.
Ética a Nicômaco, 1157b.
517. Barzotto, Luis Fernando. Amizade e Justiça. Disponível em: <http://www.maritain.com.br/
index2.php?p=windowPrintProduct&iProduct=77>. Acesso em: 04/07/2008.
518. Cícero, Marco Túlio. Lélio, ou Amizade. V, 23.

13 4
O princípio de solidariedade | C A P Í T U LO 6

diferentes, mas de uma unidade que corresponde à unidade do composto


da própria pessoa humana519.
O eros é o amor entre um homem e uma mulher, que pela libido atua
pela alma sensitiva. O ágape, noção advinda com o cristianismo, é o amor
que move a vontade na busca do bem de outrem de forma altruísta e desin-
teressada, fundada num ideal de amor perfeito.
Aparentemente, a distinção entre eros e ágape é a distinção entre um amor
corpóreo e um amor espiritual. Porém, são ambos expressão de amor da pes-
soa, porquanto nem o espírito nem o corpo amam separadamente. Qualquer
tipo de amor é êxtase que faz o indivíduo sair de si e descobrir o outro.
Eros, amor ascendente – que deseja –, e ágape, amor descendente –
que se entrega –, jamais se separam completamente um do outro. Nas três
dimensões de amor, corpo e alma amam conjuntamente.
O mesmo se dá na philia, ainda que nela haja graus de intensidade
distintos, correspondentes à natureza das relações em que ela opera, de
modo que a philia que um homem sente por um filho e que é expressa por
reações e desejos corpóreos não é o mesmo que se sente por um camarada
de armas, ou mesmo por um desconhecido, companheiro de um mesmo
infortúnio.
Mas, importa refletir na natureza da philia, portanto, da amizade e,
assim, de sua manifestação hodierna: a solidariedade. Esta, inequivocamente,
será uma forma de amor, tão concreto e tão abstrato quanto o sujeito a quem
é dirigida.
A solidariedade, como dito, não é um sentimento, mas uma atitude e
corresponde a um grau mais abstrato de philia que é a amizade política. Ela
garante o bem comum, porquanto pela prática do reconhecimento faz ver
o outro como um outro eu.

6.1.3. Amizade e bem comum


Como afirma Finnis, o bem comum entre amigos não é simplesmente
uma bem-sucedida coordenação conjunta de projetos comuns e objetivos

519. Sobre as três dimensões do amor, cf. Bento VXI. Deus caritas est. 3-8.

13 5
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

coincidentes, mas, antes de tudo, o bem comum da mútua conformação


de si mesmos, da mútua plenitude e autorrealização520.
Também para Platão, como nota Felix Lamas, a amizade tinha o
papel de configurar a unidade da comunidade em torno do bem comum.
Distintos os vários graus de amor e amizade, restam distintos os fins de
cada grupo social sobrando para o político a tarefa de conduzir estes bens
privados a um fim último comum. Assim a tarefa propriamente política
é a unidade e a concórdia da cidade. Sem um bem comum a cidade se
dissolve na discórdia, pois prevalece a luta dos interesses particulares entre
si. Essa unidade política resulta da amizade política, que está na própria
base da vida social521.

6.1.4. Amizade e justiça


A amizade e a justiça são as virtudes sociais por antonomásia522. A jus-
tiça, que de forma geral tem como objeto o bem comum, está diretamente
relacionada à amizade, em particular, à amizade política.
Destarte, amizade é justiça por analogia. O próprio Aristóteles compara
amizade e justiça e afirma: “a mais alta forma da justiça parece ser uma
forma de amizade”523. E, tal qual a justiça distributiva, a amizade se funda
sobre uma igualdade proporcional524.
Para Tomás de Aquino, a amizade é uma virtude que faz parte da justiça
e a ela se liga como a uma virtude principal, tendo em comum com a justiça
o fato de ser relativa ao outro525. Ademais, segundo Aristóteles, a justiça
cresce ao lado da amizade, pois ambas existem no mesmo sujeito e têm a
mesma extensão526. E, em todas as formas de governo, a amizade aparece
na medida da justiça527.

520. Finnis, John. Ley natural y derechos naturales, cit., p. 171.


521. Cf. Lamas, Felix. La Concordia Política (Vinculo unitivo del Estado y parte de la justicia concreta).
Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1975, p. 86.
522. Id., ibid., p. 97.
523. Aristóteles. Ética a Nicômaco, VIII, 1155b.
524. No exemplo de Barzotto: Assim, em uma família, cada membro é destinatário da distribuição de bens
comuns que seja proporcional às suas necessidades. (A democracia na Constituição, cit., p. 72).
525. Summa Theologiae II-II, q. 114, a. 2. res.
526. Cf. Aristóteles. Ética a Nicômaco, VIII, 1160a.
527. Id., ibid., VIII, 1155a.

13 6
O princípio de solidariedade | C A P Í T U LO 6

Amizade cívica está na base da vida social, já que amizade é uma


associação. Nesse sentido, a amizade é uma condição para que exista jus-
tiça e uma forma elementar de realização desta. Está na base da própria
justiça como sua condição e realização primeira e enquanto sua forma
mais perfeita528.

6.2. A AMIZADE CÍVICA


Aristóteles constata vários níveis e tipos de amizade. No que diz respeito
aos tipos, há a amizade fundada na utilidade, outra no prazer e uma terceira
fundada na benevolência, sendo essa última amizade em sentido próprio.
Na benevolência, coexistem as demais, mas nas demais, sem a presença da
benevolência, não subsiste a amizade.
Por sua vez, no que respeita aos níveis em que se dá a amizade, há a
amizade da cidade, ou amizade cívica, que se aplica aos interesses comuns e
às coisas pertinentes à vida529, que Maritain afirmou ser fundamental para
que a pessoa atinja a sua plenitude530.
Essa amizade cívica, que excede ao privado e que tem relevância pública
e política, Aristóteles denominou de homonoia, termo que a tradição traduziu
por concórdia.

6.2.1. Concórdia política


A homonoia diz respeito ao prático e ao que é importante531. Constitui
um vínculo entre os cidadãos e pressupõe uma adesão ao bem comum que
transforme os desejos dos membros da comunidade a partir de sua confor-
mação ao bem comum532.
Daí, para que haja concórdia, não basta a concordância a respeito dos
fins e dos meios, mas é necessária uma retificação da razão e da vontade para
que as condutas estejam efetivamente dirigidas à sua execução533.

528. Cf. Lamas. Op. cit., p. 98.


529. Cf. Aristóteles. Ética a Nicômaco, IX, 1167b.
530. Cf. Maritain, Jacques. Humanismo integral, cit., p. 138.
531. Id., ibid.
532. Cf. Barzotto. A democracia na Constituição, cit., p. 73.
533. Cf. Lamas. Op. cit., p. 52.

13 7
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

A concórdia exige crenças sociais comuns, ou seja, ideias e noções sobre


o fim do Estado, a dignidade da pessoa, as estruturas sociais e todas as
realidades fundamentais para a convivência política534.
A essas crenças sociais comuns Maritain deu o nome de fé cívica. Como
afirmado, uma fé secular fundada em um objeto prático e em princípios
práticos que podem fazer convergir pessoas de diferentes concepções espi-
rituais, filosóficas ou religiosas535.
Essa fé cívica, fundamento da concórdia política, nada mais é que um
acordo prático em torno dos fins e dos interesses comuns.
A concórdia política, na definição de Felix Lamas, “é o acordo, tácito ou
expresso, mais ou menos confuso ou preciso, consciente ou não, não nascido
da deliberação, mas sim da necessidade para a realização do interesse comum
ou bem comum”536.
Lamas propõe, ainda, mesmo que Aristóteles não tenha sido explícito,
que há de se fazer a partir do pensamento do Estagirita a distinção entre a
concórdia política em sentido estrito e a amizade política em geral.
A concórdia política é apenas a amizade política fundada no interesse geral
ou na utilidade comum. Talvez seja por isso que Aristóteles a identifica com
a amizade política, mesmo sem fazê-lo de maneira categórica537.
A amizade política em geral, por outro lado, abarca uma série de pos-
sibilidades, em especial aquela fundada no amor, philia em sentido muito
mais próprio538.
Assim, a concórdia é uma forma de amizade fundada no interesse ou
utilidade comum e que, devido a sua maior extensão numérica, tem uma
intensidade menor539, como afirma Aristóteles, “não é possível ser amigo
de muitos segundo a amizade perfeita como tampouco amar a muitos ao
mesmo tempo”540.

534. Id., ibid., p. 53.


535. Cf. Maritain, Jacques. O Homem e o Estado, cit., p. 130.
536. Cf. Lamas. Op. cit., p. 105.
537. Id., ibid., p. 101.
538. Id., ibid.
539. Id., ibid., p. 103.
540. Cf. Ética a Nicômaco, VIII, 1158a.

13 8
O princípio de solidariedade | C A P Í T U LO 6

6.2.2. Concórdia e consenso


A sociologia moderna, desde Auguste Comte, definiu solidariedade como
um “consenso entre semelhantes que somente pode ser assegurado através
de um sentimento de cooperação”541.
Na definição de Cezar Saldanha, o consenso é “um acordo entre os
membros da comunidade, quanto às bases que devem presidir uma ordem
política justa e sobre as quais ela há de operar adequadamente”542.
Em que pese a tentativa moderna, a ideia de consenso restou incompleta
e insuficiente para descrever o conteúdo da solidariedade. No comentário
do mesmo autor ao pensamento de Stuart Mill, fica claro que a noção de
consenso não se estende à concordância sobre crenças, atitudes, valores,
normas e objetivos543.
Diferentemente da concórdia que não resulta da deliberação, o consenso
é um “acordo de vontades entre os membros da comunidade sobre as bases
da ordem desejável”544.
Enquanto ato de vontade, o consenso, longe de descrever a solidariedade,
aproxima-se mais da noção de contrato545. Como assinala Lamas, o pactismo
tem o mérito de demonstrar que é impossível a vida social sem alguma forma
de acordo coletivo. Entretanto, erra por exagerar a natureza desse mesmo
acordo, concebendo-o como um projeto geral voluntarista546.
Na sua crítica, Lamas adverte que, no pactismo, o contrato parece ser
mais importante que os contratantes, já que o seu conteúdo é mínimo: a
associação para a vida política547.
Maritain afirma ser um disparate o núcleo do Contrato Social de Jean-
Jacques Rousseau, pois a vontade geral não significa uma simples vontade da

541. Cf. Arnaud, André-Jean et al. Dicionário…, cit., p. 766.


542. Souza Júnior, Cezar Saldanha. Consenso e democracia constitucional. Porto Alegre: Sagra Luzatto,
2002, p. 63; id., ibid., p. 61.
543. Id., ibid., p. 61.
544. Id., ibid., p. 65.
545. O comentário diz respeito à tentativa de Comte de definir a solidariedade enquanto consenso.
Exclui-se da crítica a teoria do consenso de Cezar Saldanha Souza Júnior por estar mais próxima do
modelo de Democracia Deliberativa – que oferece um conteúdo personalista para a solidariedade – que
dos modelos voluntaristas de democracia.
546. Cf. Lamas. Op. cit., p. 191.
547. Id., ibid.

139
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

maioria, mas uma vontade superior e indivisível, um poder absoluto e trans-


cendente atuando sobre si e sobre a multidão548. Maritain acusa Rousseau
de preconizar o Estado totalitário infundindo nas democracias modernas
uma ideia que lhes era antitética549.
Segundo o comentário de Barzotto às ideias de Rousseau, o contra-
tualismo falha por sua natureza voluntarista, pois, “por ser absoluta-
mente idiossincrática, a vontade é incapaz de formar o espaço comum
da esfera pública”550. Ela, a vontade, tem um caráter impositivo não se
dirigindo a outrem requerendo apoio ou consentimento, ao contrário, exigindo
submissão551.
De fato, fora o núcleo mínimo do contrato, não há nenhum outro objeto
que seja determinado pelas necessidades concretas e reais do grupo, com
exceção a algumas referências gerais e abstratas sobre liberdade, igualdade,
paz etc.
O contratualismo afirma a necessidade de um contrato que dê origem
à vida comunitária, ou que a justifique, sem um conteúdo concretamente
determinado, o qual permite que se dê eventualmente qualquer conteúdo,
contanto que este venha do soberano, a imposição da vontade geral absoluta
que por ele se manifesta.
Ainda que haja um acordo de vontades na concórdia, para o pensamento
clássico, a concórdia é constitutiva da vida social; para o contratualismo, é
o contrato552.

6.2.3. A discórdia política


Carl Schmitt compreendeu a relevância da categoria amizade para a con-
formação do político. Pretendeu, assim, descrever o fato político a partir das
categorias amigo e inimigo, distinção especificamente política que, segundo
afirma, serve para esclarecer as ações e os motivos políticos553.

548. Cf. Maritain. O Homem e o Estado, cit., p. 57.


549. Id., ibid., p. 58.
550. Cf. Barzotto. A democracia na Constituição, cit., p. 122.
551. Id., ibid.
552. Cf. Lamas. Op. cit., p. 208.
553. Cf. Schmitt, Carl. O Conceito de Político. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 51.

14 0
O princípio de solidariedade | C A P Í T U LO 6

Schmitt afirma que a distinção se presta a designar o grau de intensi-


dade de uma associação ou dissociação, sem a necessidade de empregos de
distinções morais, estéticas, religiosas etc.554.
Portanto, a distinção segue critérios diferentes do econômico (rentável
e o não rentável, o produtivo e o não produtivo), do estético e do moral555.
O inimigo não é um criminoso556, não é feio ou bonito, bom ou mau,
tampouco um concorrente econômico. A distinção entre amigo e inimigo
tem a intenção de designar um grau extremo de ligação ou separação557. A
definição busca um sentido concreto, sem símbolos ou metáforas. As noções
que escapam para outros campos contaminam e enfraquecem o conceito
especificamente político558. Assim, “no domínio do econômico, de fato,
não existem inimigos, mas apenas concorrentes, e num mundo totalmente
moralizado e eticizado talvez apenas restem adversários de discussão”559.
Schmitt recorre ainda ao Evangelho560 para definir o inimigo político. Ele
não precisa ser pessoalmente odiado. Tampouco se trata de uma inimizade

554. “A natureza objetiva e a autonomia intrínseca do político já se mostram nesta possibilidade


de separar uma tal contraposição específica com a de amigo-inimigo de outras diferenciações e de
compreendê-la como algo independente” (O Conceito de Político, cit., p. 52).
555. Id., ibid., p. 54.
556. Id., ibid., p. 33.
557. Id., ibid., p. 52.
558. Id., ibid., p. 53.
559. Id., ibid., p. 54.
560. Literalmente: “Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem,
a fim de serdes verdadeiramente filhos do vosso Pai que está nos céus, pois ele faz nascer o sol sobre
os maus e os bons, e cair a chuva sobre os justos e os injustos” (Mt 5 43-45). “Mas eu vos digo, a vós
que me ouvis: Amai os vosso inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos maldizem
e orai pelos que vos caluniam. A quem te bate numa face, apresenta ainda a outra. A quem te toma o
manto, não recuses também a tua túnica. Dá a quem quer que te peça, e a quem te toma o teu bem
não o reclames e assim como quereis que os homens façam a vós, fazei do mesmo modo a eles. Se
amais os que vos amam, que gratidão mereceis? Os próprios pecadores fazem o mesmo. E se emprestais
àqueles dos quais esperais que vos restituam, que gratidão mereceis? Até os pecadores emprestam
aos pecadores para que lhes restituam o equivalente. Mas amai os vossos inimigos, fazei o bem e
emprestai sem nada esperar em compensação. Então vossa recompensa será grande, e vós sereis filhos
do altíssimo, pois ele é bom para os ingratos e para os maus” (Lc 6, 27-35). (Bíblia TEB. São Paulo:
Loyola, 1994). Nas palavras do Divino Mestre, percebe-se a forte carga adjetiva que acompanha a
expressão inimigo: mau, injusto, maledicente, caluniador, ladrão, cobiçador, caloteiro e ingrato. Isso
expressa a correta compreensão de Schmitt de que o inimigo tratado pelo evangelho é o desafeto
pessoal, aquele que faz um mal a um indivíduo. Não se trata necessariamente do inimigo público,
ou seja, do conceito político de inimigo o qual subsiste sem uma necessária adjetivação ou definição
oriundas de categorias apolíticas.

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Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

pessoal, como retratam as passagens bíblicas. Para tanto, relembra que,


no combate com os muçulmanos, nenhum europeu se propôs a entregar a
Europa aos turcos ou sarracenos por amor aos inimigos561.
A distinção elucida que a inclusão ou a exclusão de alguém na comu-
nidade política corresponde à amizade ou à inimizade política. Ela serve
para delimitar os resultados da ausência das práticas do reconhecimento
e da solidariedade, bem como para demonstrar que a categoria amizade é
constitutiva do político.
No que diz respeito a corpos políticos distintos, as relações podem fluir
para a inimizade, na medida em que é próprio do corpo político a defesa
de seus interesses e necessidades fundamentais. Ainda que a solidariedade
universal seja o antídoto para a guerra, ela se demonstra categoria trivial nas
relações internacionais.
A guerra é, portanto, definidora do político, para Carl Schmitt. Ela é a
inimizade extrema ou o máximo grau de separação. É a negação ontológica
do outro ser562. Ela é a luta armada entre duas unidades políticas organizadas
que podem subsistir no interior de um Estado – guerra interna ou civil – ou
no antagonismo beligerante entre dois ou mais Estados – guerra interestatal.
Tanto a guerra externa quanto a revolução não serão fatos meramente
sociais ou ideais563. Daí, não há de se falar em guerra política, moral, eco-
nômica ou religiosa, pois “a oposição determinante deixa de ser puramente
religiosa, moral ou econômica e passa a ser política”564.
Se a inimizade é um dado comum nas relações internacionais, na
ordem interna, por sua vez, a inimizade é um conceito antitético ao polí-
tico, uma categoria radicalmente antagônica à ideia de comunidade. Na

561. Cf. Di Lorenzo, Wambert Gomes. O pensamento político de Carl Schmitt: uma breve introdução.
Direito e Justiça, v. 23, p. 335-357, 2001.
562. Cf. Schmitt, Carl. O Conceito de Político, cit., p. 59.
563. Id., ibid.
564. Id., ibid., p. 62: O conceito, como ensina Schmitt, não reside na luta em si, mas na possibilidade
de aglutinar indivíduos que, além de serem uma comunidade religiosa, tornam-se uma unidade
política ou, nas palavras do autor, um agrupamento ontológico forte. Mesmo o conceito marxista
de classe deixa de ser puramente econômico a partir da identificação do inimigo a ser combatido.
É a partir desta identificação do opositor e do real combate a este inimigo que grupos se tornam
grandezas políticas. (Cf. Di Lorenzo, Wambert Gomes. O pensamento político de Carl Schmitt,
Direito e Justiça – Revista, cit.).

14 2
O princípio de solidariedade | C A P Í T U LO 6

mesma medida que a concórdia é constitutiva da comunidade, a discórdia


é sua destruição.
Aristóteles afirma que a principal causa das revoltas é a desigualdade565.
Ora, a amizade é uma relação de igualdade. Logo, a desigualdade é uma ideia
antitética à de amizade e requer a solidariedade como atitude concreta que
lhe vá de encontro. Também enumera a ausência de uma unidade espiritual
como causa da discórdia566.
De fato, a crise que desintegrou a sociedade grega foi uma crise da
concórdia fundamental, que convertia em amigos os cidadãos e que gerava
a unidade da pólis e deveres de solidariedade567.
Hodiernamente, a principal causa da discórdia social são as ideologias.
Como afirma Lamas, pretender fundar a unidade de um povo sobre uma
ideologia comum não é apenas um erro, mas leva a uma discórdia quase
irredutível. Um acordo prático sobre elas é impossível568.
Lamas define ideologia como a “polarização ou redução da realidade
a algum de seus aspectos, os quais são enfatizados separados da realidade
plena”569. O que pesa contra a concórdia é que a maioria dos ataques às
ideologias em geral advêm de ideologias que não se reconhecem como tal570.
As ideologias estão em luta porque se fundam em uma decisão da vontade
não submetida à crítica da razão.

6.3. A SOLIDARIEDADE E A QUESTÃO SOCIAL


De todos os campos que exigem a atuação do princípio de solidariedade,
a questão social é, historicamente, o mais relevante. As condições subumanas
em que vivem mais de um bilhão de pessoas em nosso tempo são um desafio
à solidariedade tanto política, quanto universal.
A pobreza, portanto, envolve questões de justiça nas relações entre
indivíduos entre si e entre povos. Ela forma um ciclo vicioso no qual gera
– e resulta – um crescimento desigual entre as pessoas e comunidades.

565. Em suma: as revoltas ocorrem sempre devido a desigualdade. (Política, V, 1301b, 25).
566. Id., ibid., 1303a, 25.
567. Cf. Lamas. Op. cit., p. 76.
568. Id., ibid., p. 206.
569. Id., ibid., p. 56.
570. Id., ibid., p. 57.

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6.3.1. Solidariedade e subsidiariedade


A solidariedade política resulta de uma série de concórdias sociais. Ela
está integrada a uma rede de solidariedade que reúne grupos e comunidades
de estratos distintos que vai da família à ordem internacional. O corpo polí-
tico, mais que uma união de indivíduos, é uma união de grupos e famílias.
Esse bojo de relações concordes na família, na economia ou nos grupos é o
que constitui a concórdia política.
No que tange à questão social, trata-se da relação entre fortes e fracos,
entre ricos e pobres em que o dever de solidariedade dos grandes não deve
esbarrar na passividade dos pequenos ou em uma atitude destrutiva da
concórdia. Nessa relação, o papel dos grupos intermédios é fundamental,
e o apego a interesses exclusivamente particulares, que se opõem ao bem
comum, perverte o papel desses grupos na construção da concórdia política.
Para uma solução da questão social, o sistema econômico e social não
pode estar à mercê do mercado simplesmente. A solução requer uma par-
ceria solidária entre a esfera pública e privada, incluindo atividade privada
motivada na solicitude social desprovida do interesse pelo lucro em si.
Muitos bens comuns fundamentais não podem ter seu acesso regido por
regras de mercado ou mesmo pela competência exclusiva do Estado. Nesse
particular, cabe ao Estado promover e incentivar o protagonismo social e
econômico das sociedades intermédias. A sociedade civil pode e deve exercer
um papel na execução do bem comum, tanto agindo complementarmente
ao Estado quanto ao mercado. Ainda que a realidade exija a intervenção do
Estado, essa deve ser exercida de forma solidária, quer dizer, sem romper o
princípio de subsidiariedade.
Em que pesem a concórdia política e a solidariedade social terem como
ator principal a sociedade civil como tal, parte desta sociedade tem, desde
tempos remotos, se especializado em dar sua contribuição naquelas tarefas
próprias que o corpo político não consegue executar. Essa parte tem sido
constituída de organizações privadas sem fins lucrativos que, hodiernamente,
têm sido denominada terceiro setor, mas que se tornou lugar-comum na
experiência política do ocidente a partir do advento do cristianismo.
Ainda que, na sua gênese, tenham surgido com o objetivo de praticar a
solicitude cristã, essas organizações foram ocupando um espaço específico na

14 4
O princípio de solidariedade | C A P Í T U LO 6

construção do tecido social, atuando nas áreas da saúde, cultura, educação.


Via de regra, tais associações intermédias uniram eficiência e solidariedade
de tal forma que não apenas realizam suas tarefas melhor que o Estado, como
exercem uma atividade que é impossível ao Estado enquanto instrumento
estéril do corpo social: a philia, o amor ou a amizade cívica.
As ações do Estado, nesse particular, devem ser regidas pelo princípio
de subsidiariedade negativa, isto é, não intervir, mas respeitar a autonomia
responsável de cada grupo ou pessoa.
Um dos modelos de grupos intermédios mais emblemáticos são os sindi-
cados. Espaço próprio para a prática da amizade entre camaradas de profis-
são, tais associações tiveram um papel fundamental na luta dos trabalhadores
por condições dignas de vida e de trabalho. Elas exercem um papel próprio
na execução do bem comum, bem como na construção da ordem social e
na prática da solidariedade.
A instrumentalização do sindicado pela luta política partidária é uma
perversão de sua natureza e um desvio de seu fim último, que é o bem
comum de uma classe de trabalhadores em particular. No plano da digni-
dade, é uma ofensa frontal à pessoa, porquanto passa a ser instrumento, coisa
utilizada em vista de fins que lhe são alheios. Tal mecanismo dá-se, sobre-
tudo, nos movimentos totalitários em que a partidarização e a consequente
estatização das associações intermédias resultam numa identidade absoluta
entre sociedade civil, sociedade política e Estado, isto é, no Estado total.
Se por um lado as experiências totalitárias pretendem o abarcamento dos
sindicatos e dos demais planos de mediação, por outro, o consenso liberal
pretende sua extinção, conforme já tratado no capítulo primeiro da primeira
parte deste trabalho571.
Outra perversão do princípio de subsidiariedade e, por efeito, impedi-
mento do princípio de solidariedade, é a proposição dos sindicatos como
instrumento da luta de classes e da discórdia social e política.

571. Segundo Cezar Saldanha, a proibição de grupos intermédios, em particular dos partidos políticos,
foi um mecanismo poderosíssimo do consenso liberal: “Sem partidos, as camadas sociais – especial-
mente as menos poderosas e articuladas – ficam privadas de canais para exprimir a diversidade dos
interesses existentes na sociedade e para propor alternativas governamentais tendentes a alterar o curso
considerado ‘normal e adequado’ das atividades do Estado segundo o catecismo liberal”. (Souza Júnior,
Cezar Saldanha. Consenso e tipos de estado no ocidente. Porto Alegre: Sagra Luzatto, 2002, p. 51).

14 5
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A luta do sindicato não deve ser contra alguém, mas a favor de seus
membros. Eles são potencialmente instrumentos privilegiados de justiça
social, da solidariedade e da concórdia.
Outro desvio de finalidade dos sindicados é o corporativismo egoísta,
uma defesa intransigente de interesses privados flagrantemente contrários
ao bem comum.

6.3.2. Solidariedade e desenvolvimento humano


Na atual geopolítica global, a maior parte dos Estados são entes recentes.
Destes, grande número advém de um passado de colonização. Na maioria
das vezes, as potências colonizadoras, que buscavam exclusivamente seus
interesses, na ruptura, deixaram tais Estados em situação econômica frágil
e vulnerável. A bem da verdade, boa parte desses países está entregue à
própria sorte.
Tal agudo desequilíbrio tem sido fonte de discórdia política, tanto interna
quanto externa, e tem gerado, além das situações de insegurança alimentar,
conflitos armados perversos, deixando um saldo hediondo de vítimas.
A solidariedade universal, aquela que corresponde à atitude concreta de
um povo em favor da dignidade e do bem universal ou de outro povo em
particular, tem como objeto próprio o desenvolvimento humano que não
ocorre isoladamente, mas de maneira solidária.
Na perspectiva personalista, tal desenvolvimento não é apenas um direito
ou uma faculdade, mas um dever. O desenvolvimento é um dever, ou melhor,
um resumo de todos os deveres da pessoa consigo própria.
Isso exige que a economia assuma sua dimensão ética, tomando como
fim o bem comum da humanidade e realizando seu desenvolvimento. Sendo
a questão social questão econômica, a economia deve buscar uma eficiência
social, ou seja, não apenas produzir riquezas, mas fazê-las chegar a todas
as pessoas.
Passam, então, pela política interna e internacional – e não apenas pelo
mercado – ações que permitam a troca de tecnologia, bens e serviços, a
quebra de barreiras comerciais e, assim, o incremento das condições de vida
dos povos.

14 6
O princípio de solidariedade | C A P Í T U LO 6

6.3.3. Solidariedade entre gerações


De forma incomum, os laços de solidariedade vinculam pessoas de gera-
ções diferentes. O primeiro modelo, o mais completo, é o modelo familiar.
Na comunidade doméstica pratica-se a forma mais elementar de soli-
dariedade. Esta solidariedade familiar tem seu fundamento primeiro num
dado biológico: a procriação.
A procriação é um dado constitutivo da natureza como tal. Mas, na pes-
soa humana, esse dado biológico assume dimensões morais. Diferentemente
de qualquer espécie, na natureza humana, a tarefa procriante é acompa-
nhada de vínculos indissolúveis entre procriadores e procriados e entre os
primeiros e os procriados a partir dos segundos, numa escala sucessiva e
ilimitada.
São laços que ligam pessoas que existem de fato a seres potenciais, cuja
capacidade de existir reside na congênita inclinação que todo ser animado
tem para procriar. As futuras gerações, que existem apenas enquanto essência,
são potências que se atualizam ao longo da história. Os laços naturais que
as unem excedem o biológico e assumem uma natureza moral.
São vínculos de responsabilidade que obrigam as pessoas precedentes
às ulteriores, nos quais os primeiros têm deveres objetivos em face dos
posteriores.
Tais deveres estão fundados na solidariedade, porquanto exigem um
esforço concreto para que as pessoas das futuras gerações realizem sua dig-
nidade. É uma contribuição objetiva com um bem comum futuro.
Essa solidariedade foi, ao longo da história, tarefa própria da família.
Manifestava-se pelo esforço na educação e na formação, pelo acúmulo de
bens a serem transmitidos, pelo nome e pela honra que passavam a ser
patrimônio comum entre gerações.
A comunidade doméstica presta sua solidariedade às gerações futuras
não apenas olhando para o seu interior, tendo como fim a autopreservação,
mas também aponta para fora de si mesma na medida em que é o primeiro
laboratório das virtudes sociais.
Ao longo da história, a família foi o principal elo entre gerações e o depó-
sito dos valores culturais, religiosos, morais, sociais e espirituais necessários
à realização do bem comum da comunidade como um todo.

147
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Hodiernamente, tal dever de solidariedade obriga não apenas a família,


mas a comunidade como um todo, seja enquanto parte da sociedade civil,
da sociedade política ou da comunidade internacional.
Portanto, apesar de a solidariedade entre gerações ter ultrapassado a da
comunidade doméstica, passando a ser dever das comunidades políticas
nacionais, hoje o problema se põe também para a comunidade política glo-
bal. A solidariedade entre as gerações exige a aplicação de um princípio de
destinação universal dos bens que obriga a não descarregar o custo da vida
presente nas gerações futuras e a assumir responsabilidade por seu bem-estar.
Essa responsabilidade em face das futuras gerações diz respeito à pro-
dução a partir de recursos esgotáveis e à questão ambiental em particular,
perpassando, também, por todas as esferas de atividades humanas, a começar
pela economia. Assim, a política econômica deve ter em vista não apenas
o bem comum material das pessoas presentes, mas possibilitar e facilitar a
sua realização no tempo futuro.

6.3.4. Solidariedade e globalização


O processo irreversível de globalização, na medida em que globalizou a
questão social, requer formas hodiernas de solidariedade que correspondam
aos desafios que lhe são peculiares.
A globalização causa impacto direto na economia e gera novas relações
de trabalho que exigem formas novas de solidariedade que atendam aos
desafios das coisas novas e das antigas que perseveram existindo.
Como resultado da globalização, o emprego tradicional cede ao traba-
lho sazonal, a contratos atípicos por tempo determinado; as relações entre
empregados e trabalhadores separados por continentes se tornam geografi-
camente distantes; o mercado, cada vez mais global, coloca em risco bilhões
de postos de trabalho pela facilidade das fusões e deslocamentos de empre-
sas; imigrantes e trabalhadores sem treinamento profissional são excluídos
e impossibilitados de retornar por falta de mecanismos de nivelamento e
qualificação profissional.
Nesse contexto, o princípio de solidariedade lança luz, também, sobre
a questão da imigração. Continentes que, no final do século XIX, foram
fontes de emigração, exportando para os novos continentes sua mão de obra

14 8
O princípio de solidariedade | C A P Í T U LO 6

famélica e excedente, agora, são pontos imigratórios. Alguns desses países,


não correspondendo a uma desejável gratidão histórica, fecham suas fron-
teiras e excluem de seus mercados internos pessoas em condições análogas
aos seus antepassados acolhidos pelo mundo.
São desafios postos à solidariedade, que propõem o resgate da dignidade
do trabalho em face do mercado, do primado da pessoa sobre o lucro, da
primazia do trabalho sobre o capital.
A dignidade do trabalho é decorrente da dignidade do sujeito que a
realiza. Esses novos modelos de solidariedade passam não só pela solicitude
dos empregadores, mas pela solidariedade própria dos trabalhadores entre
si, por um novo modelo de associação sindical que atenda aos desafios dos
novos tempos. Modelos que resgatem o aspecto relacional da própria natureza
humana e a sua universalidade.
Tais modelos levam a uma precedência do sujeito sobre os objetos, a
uma submissão da técnica, aos fins últimos da pessoa humana, para que,
com seu indiscutível valor, a técnica seja instrumento da aproximação das
pessoas e de distribuição dos bens humanos fundamentais.
Os aspectos positivos da globalização – processo de integração de uma
comunidade global, estabelecimento de comunidades de Estados, aproxima-
ção dos povos e das pessoas, fim do nacionalismo genocida, possibilidade
de universalização das riquezas produzidas no mundo – são caminhos para
a globalização da própria solidariedade.
Essa solidariedade globalizada é o instrumento privilegiado de distri-
buição de riquezas até então inacessíveis, de realização do bem comum e da
dignidade de todas as pessoas e de cada uma delas.

14 9
Conclusão

A
solução da questão social passa necessariamente pelas rela-
ções entre a pessoa humana e o Estado a partir dos planos
de mediação da ordem social. Quer dizer, das relações da
pessoa com o Estado, desta com as sociedades intermédias, destas
entre si, e de todos com o Estado.
Ainda que o Estado seja o instrumento singular de atuação
da comunidade política na solução da questão, esta requer
também a atuação do próprio corpo político bem como da
família, da comunidade, da sociedade e da ordem internacio-
nal. Para que tais ações realmente influenciem na solução,
elas devem ser obrigatoriamente pautadas pelo princípio de
subsidiariedade.
Sendo o princípio de subsidiariedade um princípio de com-
petência, ele determina quem, quando e como essa ação, em face
da dignidade da pessoa humana, deve ser empreendida.
O princípio de subsidiariedade é corolário do princípio da
dignidade da pessoa humana. Ele é uma manifestação da razão
prática que determina a ação ou a omissão necessária em face da
dignidade de outrem.
Dignidade é pseudônimo da felicidade. Implica plenitude e
reconhecimento. Ela concerne ao valor, isto é, aos fins intrínsecos
de cada pessoa tanto na relação dela consigo própria quanto da
relação dela com o seu meio.

1 51
Teoria do Estado de Solidariedade | W A M B E R T G O M E S D I L O R E N ZO ELSEVIER

Essa dignidade enquanto eudaimonia significa um estado ideal de autossa-


tisfação que envolve todos os bens fundamentais para uma vida boa, isto é, feliz.
O primeiro e mais fundamental de todos é o bem-estar, ou seja, o con-
junto das condições necessárias à subsistência. Esses bens fundamentais
são a base da questão social, ou melhor, a inacessibilidade de boa parte das
pessoas humanas a esses bens é o cerne na questão social.
Mas o problema da vida boa, da dignidade da pessoa humana, não se
reduz à subsistência. A pessoa não é um animal apenas, sua realização passa
por processos anímicos que residem na sua capacidade de se relacionar com a
sua própria natureza. Ou seja, a pessoa humana é ser espiritual e, por poder
se relacionar com sua própria natureza, é livre.
Essa liberdade da pessoa em relação aos seus meios e seus fins implica a
necessidade de outros bens fundamentais que não são de natureza material.
Ao conjunto de todos esses bens materiais e imateriais necessários à realização
da felicidade da pessoa dá-se o nome de “bem comum”. Em síntese, bem
comum é o conjunto de todas as condições necessárias para que a pessoa
realize a sua dignidade.
Numa outra síntese, a questão social é a questão do bem comum. Não
sendo possível à pessoa realizar isoladamente seus fins, ela se serve do bem
comum enquanto meio necessário para realização de sua dignidade. O bem
comum só é de fato bem comum se sua realização segue os ditames da sub-
sidiariedade, pois tanto a omissão da ordem política e social na realização
dos fins da pessoa quanto sua intromissão desproporcional e inoportuna o
desordenam e impedem a realização da dignidade.
O bem comum, então, por ser o bem de todos e de cada um, decorre
da própria natureza social da pessoa humana e requer o esforço de todos
para que todos e cada um realizem sua dignidade de pessoa humana. Essa
responsabilidade social de todos e de cada um por todos e por cada um
atende pelo nome de “solidariedade”.
A solidariedade tem duas naturezas. É ao mesmo tempo virtude moral e
princípio social. Enquanto virtude, é aquele hábito de agir em favor do bem
do outro. Enquanto princípio social, deve nortear todas as relações sociais
desde a economia à política já que a vida social não tem outra razão de ser
senão o bem comum das pessoas.

1 52
Conclusão

A solidariedade resume em si todos os corolários da dignidade da pes-


soa humana e é a manifestação mais cabal do princípio de unicidade dos
princípios personalistas.
No plano político, esse bloco de princípios dá origem à democracia per-
sonalista. Essa democracia que é plural, como a própria condição humana,
e deliberativa, como determina a racionalidade constitutiva do próprio
humano, propõe, a partir de suas bases antropológicas, um novo modelo
de Estado.
O fracasso do Estado Social no enfrentamento da questão social dá-se
exatamente por suas bases antropológicas. A democracia personalista é
impelida a solucionar a questão social propondo uma antropologia de base
para um Estado que, muito mais que do welfare, deve ser um Estado de
Solidariedade.
É, portanto, a resposta para a questão social. Uma família solidária,
uma comunidade ou sociedade solidária e, ainda, uma ordem internacional
solidária é a única resposta que atende à demanda de milhões de pessoas
excluídas dos processos mais elementares da vida propriamente humana.

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