Você está na página 1de 20

BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética – A Teoria do Romance.

São Paulo: Hucitec, 1975.

II – O Problema do Conteúdo

“(...) o caráter isolado e único do ato cognoscível e da sua expressão numa obra
científica, isolada e individual não é significativo do ponto de vista do próprio
conhecimento: no mundo do conhecimento não há, em princípio, atos e obras
separadas” (32).

“O ato ético refere-se de forma um pouco diferente à realidade preexistente do


conhecimento e da visão estética. Esta relação é habitualmente expressa como relação
do dever para com a realidade; não é nossa intenção aqui entrar na análise desse
problema, assinalaremos somente que também aqui essa relação assume um caráter
negativo, embora diferente do encontrado no domínio do conhecimento” (Nota: “A
relação do dever para com a existência contem um caráter conflitante. No interior do
próprio mundo do conhecimento nenhum conflito é possível, porque nele não se pode
encontrar nada com valor heterogêneo. Não é a ciência que pode entrar no conflito, mas
o sábio, sendo que não ex-cathedra, mas como sujeito estético, para quem o
conhecimento é um ato de cognoscibilidade. A brecha entre o dever e a existência só
tem significado no interior do dever, ou seja, para a consciência ética atuante, e existe
somente para ela”). (33)

“A particularidade principal do estético, que o diferencia nitidamente do


conhecimento e do ato, é o seu caráter receptivo e positivamente acolhedor: a
realidade, preexistente ao ato, identificada e avaliada pelo comportamento, entra na
obra (mais precisamente, no objeto estético) e torna-se então um elemento constitutivo
indispensável. Neste sentido, podemos dizer: de fato, a vida não se encontra só fora da
arte, mas também nela, no seu interior, em toda plenitude do seu peso axiológico:
social, político, cognitivo ou outro que seja” (33).

“A atividade estética não cria uma realidade inteiramente nova. Diferentemente do


conhecimento e do ato, que criam a natureza e a humanidade social, a arte celebra, orna,
evoca essa realidade preexistente do conhecimento e do ato – a natureza e a humanidade
– enriquece-as e completa-as, e sobretudo ela cria a unidade concreta e intuitiva desses
dois mundos, coloca o homem na natureza, compreendida como seu ambiente estético,
humaniza a natureza e naturaliza o homem” (33)

“É nessa interação do domínio ético e do domínio cognitivo no interior do seu


objeto que se encontra a bondade singular da estética, sua benevolência: a estética
como que nada seleciona, divide, abole, nada repele, de nada se desvia. (...) mas o
homem interior num caso, e o homem corpóreo em outro, revelam-se somente
enriquecidos: o homem ético enriqueceu-se através de uma natureza positivamente
afirmada, o homem natural através de um conceito ético” (34).
“Quase todas as categorias do pensamento humano acerca do mundo ou do
homem, categorias boas, receptivas e enriquecedoras, otimistas (não religiosas, é claro,
mas puramente leigas) têm um caráter estético; estética também é a eterna tendência
desse pensamento em imaginar o que é dever e obrigação como já dado e presente em
algum lugar, tendência que criou o pensamento mitológico e, em grau significativo,
também metafísico” (34).

“(...) na arte o elemento da novidade, a originalidade, do imprevisto, da liberdade


tem tal significado, pois nela há um fundo sobre o qual pode ser percebida a novidade, a
originalidade, a liberdade – o mundo a ser conhecido e provado, do conhecimento e do
ato, e é ele que na arte se apresenta como novo, é pela relação com ele que se percebe a
atividade do artista como sendo livre” (34).

“Nós, de pleno acordo com o uso tradicional da palavra, chamamos de conteúdo


da obra de arte (mais precisamente, do objeto estético) à realidade do conhecimento e
do ato estético, que entra com sua identificação e avaliação no objeto estético e é
submetida a uma unificação concreta, intuitiva, a uma individualização, a uma
concretização, a um isolamento e a um acabamento, ou seja, a uma formalização
multiforme com a ajuda de um material determinado” (35).

“(...) esta relação, porém, não é cognitiva nem ética: o artista não se envolve com
o acontecimento como um seu participante direto – pois ele seria então seu conhecedor
e seu fautor ético –, ele ocupa uma posição essencial fora do acontecimento enquanto
assistente desinteressado, mas que compreende o sentido axiológico daquilo que se
realiza; não se submete ao acontecimento, mas participa do seu suceder: pois, sem ter
uma participação axiológica em certo grau, não se pode contemplar o acontecimento
enquanto acontecimento” (36) – exterioridade, lado de fora (mas não indiferentismo).

Conteúdo debilitado a um elemento puramente formal: “Tal debilitação do


conteúdo rebaixa sobretudo o significado artístico da forma: a forma perde uma das suas
funções mais importantes – a unificação intuitiva do campo cognitivo com o ético, o
que em importância, particularmente na arte verbal (...)” (37).

“(...) na base de todo esse movimento e conflito nos limites de um contexto


puramente literário, ocorre uma luta mais importante, determinante e primária com a
realidade do conhecimento e do ato: todo artista, em sua obra, se ela é significativa e
séria, aparece como o artista primeiro e tem que ocupar imediatamente uma posição
estética em relação à realidade extra-estética do conhecimento e do ato, ainda que nos
limites de sua experiência puramente pessoal e ético-biográfico” (38).

“3. A obra de arte e a contemplação apoderam-se do elemento ético do conteúdo


imediatamente, através da empatia ou da simpatia e da co-apreciação, e não por meio
da compreensão e da exegese teóricas, que só podem ser um instrumento de simpatia.
Só é diretamente ético o próprio acontecimento do ato (ato-pensamento, ato-ação, ato-
sentimento, ato-desejo, etc.) na sua realização viva vinda de dentro do próprio
conhecimento agente; é precisamente este acontecimento que se realiza do lado de fora
da forma artística, mas não é de modo algum sua transcrição teórica sob a forma de
julgamento ético, normas morais, sentenças, apreciações jurídicas, etc.” (39) –
transcrição teórica de uma fórmula ética já a converte para o plano do conhecimento,
enquanto a forma artística mantém esta ética na estética da arte.

“É necessário ressaltar que o artista e o contemplador não „simpatizam‟ com a


consciência psicológica (pois em sentido estrito eles não podem simpatizar com ela),
mas com a consciência atuante e eticamente orientada” (Nota: “A empatia e a co-
avaliação simpática ainda não têm por si só um caráter estético. O conteúdo do ato de
empatia é ético: é um a diretriz axiológica, pragmática ou moral (emocional e volitiva)
de uma outra consciência”) (39).

“Se este reconhecimento que penetra tudo não existisse, o objeto estético, ou seja,
o que é artisticamente criado e percebido, fugiria a todas as ligações da experiência,
quer seja teórica, que seja prática (...)” (40).

“A transcrição teórica pura nunca pode possuir toda plenitude do elemento ético
do conteúdo, plenitude que domina apenas a empatia, mas ela pode e deve aspirar a isso
como a um seu limite jamais alcançável. O próprio elemento da realização ética ou é
realizado, ou é artisticamente contemplado, mas nunca pode ser formulado de um modo
teoricamente adequado” (43).

III – O Problema do Material

“Dotando a palavra de tudo o que é próprio à cultura, isto é, de todas as


significações culturais (cognitivas, éticas e estéticas) chega-se bem facilmente à
conclusão de que não existe absolutamente nada na cultura além da palavra, que toda
cultura não é nada mais que um fenômeno da língua, que o sábio e o poeta, em igual
medida, se relacionam somente com a palavra” (45).

“Nenhum domínio da cultura, exceto a poesia, precisa da língua na sua totalidade:


o conhecimento não tem nenhuma necessidade da complexa originalidade da face
sonora da palavra no seu aspecto qualitativo e quantitativo, da multiplicidade das
intonações possíveis, do sentido do movimento dos órgãos de articulação, etc.; pode-se
dizer o mesmo dos outros domínios da criação cultural: todos eles não vivem sem a
língua, mas tiram dela muito pouco. É só na poesia que a língua revela todas as suas
possibilidades, pois ali as exigências que lhe são feitas são maiores: todos os seus
aspectos são intensificados ao extremo, alcançam seus limites; é como se a poesia
espremesse todos os sucos da língua que aqui se supera a si mesma” (48).

“(...) arbitrário subjetivo de cada um, a obra não no oferece nenhuma das
indicações necessárias para construir uma representação visual, concreta e uma da
cidade. Mas se é assim, é porque o artista nunca lida com objetos, e sim com palavras,
no caso em questão com a palavra „cidade‟, nada mais. O artista só lida com palavras,
pois apenas elas são algo definido e indiscutivelmente presente na obra” (52).
“(...) não há palavras definidas linguisticamente no psiquismo do artista e do sábio,
e além disso, no psiquismo não há nada além das formações psíquicas, que, como tais,
são subjetivas e, do ponto de vista de qualquer domínio semântico – do conhecimento,
da ética, da estética –, são igualmente fortuitas e inadequadas” (52) – significação
axiológica, emocional, volitiva da palavra.

“Portanto, o componente estético, que por ora chamaremos de imagem, não é


nem um conceito nem uma palavra, nem uma representação visual, mas uma formação
estético-singular realizada na poesia com a ajuda da palavra, nas artes figurativas com
a ajuda de um material visualmente perceptível, mas que não coincide em nenhum
lugar nem com o material nem com uma combinação material qualquer” (53).

“(...) essa tentativas de empirização total do objeto estético sempre malogram e,


como mostramos, são completamente ilegítimas do ponto de vista metodológico: é
importante compreender justamente a originalidade do objeto estético, como tal, e a
originalidade da ligação puramente estética dos seus elementos, ou seja, de sua
arquitetônica; nem a estética psicológica nem a estética material são capazes de chegar a
isso” (54).

IV – O Problema da Forma

Estética da forma enquanto forma arquitetônica. “(...) como a forma


composicional – a organização do material – realiza uma forma arquitetônica – a
organização dos valores cognitivos e éticos?” (57).

“Na forma eu encontro a mim mesmo, minha atividade produtiva de formalização


axiológica, eu sinto vivamente meu movimento criador do objeto, sendo que não só na
primeira criação, não só na execução pessoal, mas também na contemplação da obra de
arte: eu devo experimentar-me, numa certa medida, como criador da forma, para
realizar inteiramente uma forma artisticamente significante enquanto tal” (58). “(...) a
ciência enquanto unidade objetiva do objeto não tem autor-criador”. “(...) é na forma e
pela forma que eu canto, narro, represento, por meio da forma eu expresso meu amor,
minha certeza, minha adesão”.

“(...) durante a leitura ou a audição de uma obra poética, eu não permaneço no


exterior de mim, como o enunciado de outrem, (...) mas, numa certa medida, eu faço
dele o meu próprio enunciado acerca de outrem, (...) como a expressão adequada da
minha própria relação axiológica com o conteúdo, ou seja, na percepção não viso as
palavras, os fonemas, o ritmo, mas com as palavras, com os fonemas e com o ritmo viso
ativamente um conteúdo. (...) Eu me torno ativo na forma (enquanto orientação
cognitiva e ética), e isto torna possível pela primeira vez o acabamento e em geral a
realização de todas as funções estéticas da forma no que tange ao conteúdo. Assim, a
forma é a expressão da relação axiológica ativa do autor-criador e do indivíduo que
percebe (co-criador da forma) com o conteúdo (...)” (59).
Elementos da palavra enquanto material: 1- aspecto sonoro; 2- significado
material da palavra; 3- momento da ligação vocabular; 4- momento intonacional da
palavra, orientação axiológica e variedade de relações axiológicas; 5- sentimento da
atividade vocabular do engendramento ativo do som significante. No último estão todos
os outros, lado pelo qual está voltada a personalidade do falante. “(...) o momento
regente, o foco das energias formadoras é o quinto elemento; em seguida, na devida
ordem de importância, vem o quarto momento, isto é, a avaliação, depois o terceiro – as
ligações, o segundo – o significado, e, enfim, o primeiro – o som, que parece absorver
para si todos os momentos restantes e que se torna o produtor da unidade da palavra na
poesia” (62).

“O que se repete, retorna conclui laços, não são os momentos semânticos na sua
objetividade, ou seja, na total separação da personalidade do sujeito falante, mas o
momento que se relaciona com a atividade, com a sensação viva de sua própria
atividade; a atividade não se perde no objeto, sente sempre de forma nova sua própria
unidade subjetiva em si mesma, na tensão da sua posição física e moral: a unidade não
é do objeto nem do acontecimento, mas é a unidade de um envolvimento, de um
englobamento do objeto e do acontecimento” (63).

“Todavia, esta atividade geradora do som-palavra significante, que, no sentimento


que tem de si própria, domina a sua unidade, não basta a si mesma, não se satisfaz
consigo, mas ultrapassa os limites de um organismo e de um psiquismo ativos, dirigi-se
para fora de si própria, pois ela é uma atividade que ama, exalta, denigre, celebra,
deplora, etc., ou seja, é uma relação axiologicamente determinada (no plano psicológico,
possui uma tonalidade emocional-volitiva determinada)” (64).

“A unidade da forma é a unidade da posição axiológica ativa do autor-criador,


realizada por meio da palavra (tomada de posição pela palavra), mas que se refere ao
conteúdo. Esta posição ocupada pela palavra e apenas pela palavra, torna-se produtiva e
conclui o conteúdo de maneira inteiramente criativa, graças ao seu isolamento, à sua
não realidade (mais precisamente e de modo estritamente filosófico, graças a uma
realidade de caráter particular e puramente estético). O isolamento é o primeiro passo da
consciência formadora, a primeira dádiva da forma ao conteúdo, o que pela primeira vez
torna possível as dádivas seguintes da forma, já puramente positivas e enriquecedoras”
(68).

“Na obra de arte vocabular, o caráter eventual do objeto estético é particularmente


claro; a inter-relação da forma e do conteúdo tem aqui um caráter quase dramático, é
muito clara a penetração do autor, um homem corporal, sensível e espiritual, no objeto;
é clara não só a indivisibilidade, mas também a impossibilidade da fusão da forma e do
conteúdo, enquanto que em outras artes a forma penetra mais no conteúdo, parece se
reificar nele e parece ser mais difícil de ser separada dele e de ser expressa no seu
isolamento abstrato. Isto encontra sua explicação no caráter do material da poesia – a
palavra, com a ajuda da qual o autor – o homem falante – pode ocupar diretamente sua
posição criativa; enquanto que, em outras artes, entram no processo da criação corpos
heterogêneos como mediadores técnicos: os instrumentos musicais, o cinzel, etc.; além
disso, o material não envolve tal multilateralmente toda a atividade do homem.
Passando através desses mediadores heterogêneos, a atividade do autor-criador
especializa-se, torna-se unilateral e, conseqüentemente, menos separável do conteúdo ao
qual ela deu forma” (70)

O Discurso no Romance

Eliminar a ruptura entre formalismo e ideologismo no discurso literário, pois


ambos estão presentes no discurso enquanto fenômeno social (71).

I – A Estilística Contemporânea e o Romance

“Igualmente importante é o significado específico das formas retóricas para a


compreensão do romance. Toda a prosa literária e o romance encontram-se na mais
estreita semelhança genética com as formas retóricas. E no curso de toda a evolução
ulterior do romance, a sua profunda interação (tanto pacífica, quanto hostil) com os
gêneros retóricos vivos (jornalísticos, morais, filosóficos e outros), não se interrompeu e
não foi, talvez, tão interrompida quando a sua interação com os gêneros literários
(épicos, dramáticos e líricos). Porem, nesta constante inter-relação mútua o discurso
romanesco conservou sua originalidade qualitativa irredutível à palavra retórica” (80).

“Estes destinos e problemas determinaram tanto algumas variedades de gênero do


discurso ideológico, quanto certas correntes verbais e ideológicas, enfim, uma
concepção filosófica precisa do discurso e, em particular, da palavra poética que está na
base de todas as correntes estilísticas” (80).

“Tomamos a língua não como um sistema de categorias gramaticais abstratas, mas


como uma língua ideologicamente saturada, como uma concepção de mundo, e até
como uma opinião concreta que garante um maximum de compreensão mútua, em todas
as esferas da vida ideológica. Eis porque a língua única expressa as forças de união e de
centralização concretas, ideológicas e verbais, que decorrem da relação indissolúvel
com os processos de centralização sócio-política cultural” (81) – expressas forças
centrípetas da vida social, lingüística e ideológica.

“E esta estratificação e contradição reais não são apenas a estática da vida da


língua, mas também a sua dinâmica: a estratificação e o plurilinguismo ampliam-se e
aprofundam-se na medida em que a língua está viva e desenvolve-se; ao lado das forças
centrípedas caminha o trabalho contínuo das forças centrífugas da língua, ao lado da
centralização verbo-ideológica e da união caminham ininterruptos os processos de
descentralização e desunião” (82).
“(...) o romance e os gêneros literários e prosaicos que ele atrai para si
constituíram-se historicamente na corrente das forças descentralizadoras e centrífugas. E
enquanto a poesia, nas altas camadas sócio-ideológicas oficiais, resolvia o problema da
centralização cultural, nacional e política do mundo verbo-ideológico, por baixo, nos
palcos das barracas de feira, soava um discurso jogralesco, que arremedava todas as
“línguas” e dialetos, desenvolvia a literatura das fábulas e das soties, das canções de rua,
dos provérbios, das anedotas. Nesses palcos não havia nenhum daqueles centros
lingüísticos onde o jogo vivo se realizava nas “línguas” dos poetas, dos sábios, dos
monges, dos cavaleiros, etc., e nenhum aspecto seu era verdadeiro e indiscutível” (83) –
prurilinguismo dialogizado, lingüística buscava a unidade na diversidade, e por isso
fixou o pensamentos nos aspectos mais resistentes e menos ambíguos dos discursos,

“(...) enfim, os aspectos mais distanciados das esferas sócio-semânticas mutáveis


do discurso. Do ponto de vista ideológico, participante de um plurilinguismo e de uma
plurivocidade autêntica, permanecia fora do campo de visão dos estudiosos” (84).

II – O Discurso na Poesia e o Discurso no Romance

Discursos de outrem: “E é particularmente no processo de mútua-interação


existente com este meio específico que o discurso pode individualizar-se e elaborar-se
estilisticamente. Pois todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o
qual está voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado, avaliado,
envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem
que já falaram sobre ele. (...) Orientado para o seu objeto, o discurso penetra neste meio
dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de
entonações” (86) – tocar os “fios dialógicos existentes”.

“A representação literária, a “imagem” do objeto, pode penetrar neste jogo


dialógico de intenções verbais que se encontram e se encadeiam nele; ela pode não
abafá-las, mas, ao contrario, ativá-las e organizá-las. Se representarmos a intenção, isto
é, a orientação sobre o objeto de tal discurso pela forma de um raio, então nós
explicaremos o jogo vivo e inimitável de cores e luzes nas facetas da imagem que é
construída não por elas, devido à refração do “discurso-raio” não no próprio objeto (...),
mas pela sua refração naquele meio de discursos alheios, de apreciações e de entonações
através do qual passa o raio, dirigindo-se para o objeto. A atmosfera social do discurso
que envolve o objeto faz brilhar as facetas de sua imagem” (87) – esta é a imagem
artisticamente prosaica da imagem romanesca. Discurso na esfera do romance é ingênuo,
porém, devido a esta ingenuidade adquire um caráter polemico e interno, dialogizado.

“Na imagem poética, em sentido restrito (na imagem-tropo), toda a ação, a


dinâmica da imagem-palavra, desencadeia-se entre o discurso (em todos os seus
aspectos) e o objeto (em todos os seus momentos). A palavra imerge-se na riqueza
inesgotável e na multiformidade contraditória do próprio objeto com sua natureza „ativa‟
e ainda „indizível‟ (...)” (87) – arte mostra esta multiformidade. Discurso se orienta
sempre sobre o “já dito”.

“O discurso nasce no diálogo como sua réplica viva, forma-se na mútua-


orientação dialógica do discurso de outrem no interior do objeto. A concepção que o
discurso tem de seu objeto é dialógica” (89) – Todo discurso é orientado para um
discurso-resposta – construções ajustadas no ouvinte e na sua resposta.

“A compreensão passiva do significado linguístico de um modo geral não é uma


compreensão; é apenas seu momento abstrato, mas é também uma compreensão passiva
mais concreta do sentido da enunciação, da idéia do falante. Permanecendo puramente
passiva, receptiva, não trazendo nada de novo para a compreensão do discurso, elas
apenas o dubla, visando, no máximo, a reprodução completa daquilo que foi dado de
antemão num discurso já compreendido: ela não vai além do limite do seu contexto e
não enriquece aquilo que foi compreendido” (90).

“Na vida real do discurso falado, toda compreensão concreta á ativa: ela liga o que
deve ser compreendido ao seu próprio círculo, expressivo e objetal e está
indissoluvelmente fundido a uma resposta, a uma objeção motivada – a uma
aquiescência. Em certo sentido, o primado pertence justamente à resposta, como
princípio ativo: ela cria o terreno favorável à compreensão de maneira dinâmica e
interessada. A compreensão amadurece apenas na resposta. A compreensão e a resposta
estão fundidas dialeticamente e reciprocamente condicionadas, sendo impossível uma
sem a outra” (90) – falante dirige seu discurso ao território alheio de outrem.

“Na obra poética a linguagem realiza-se como algo indubitável, indiscutível,


englobante. Tudo o que vê, compreende e imagina o poeta, ele vê, compreende e
imagina com os olhos da sua linguagem, nas suas formas internas, e não há nada que
faça sua enunciação sentir a necessidade de utilizar uma linguagem alheia, de outrem. A
idéia da pluralidade de mundos lingüísticos, igualmente inteligíveis e significativos, é
organicamente inacessível para o estilo poético. O mundo da poesia que o poeta
descobre, porquanto mundo de contradições e de conflitos desesperados, sempre é
interpretado por um discurso único e incontestável. As contradições, conflitos e dúvidas
permanecem no objeto, nos pensamentos, nas emoções, em uma palavra, no material,
porém sem passar para a linguagem” (94) – espaço limitado para o plurilinguismo ou
multilinguismo.

Língua nunca é única. “As correntes literárias e outras, os meios, as revistas,


certos jornais, e mesmo certas obras importantes e certos indivíduos, todos eles são
capazes, ma medida da sua importância social, de estratificar a linguagem,
sobrecarregando sua palavras e formas com sua própria intenções e acentos típicos e,
com isto, torná-las em certa medida alheias às outras correntes, partidos, obras e pessoas”
(97) – linguagens não se excluem, se interceptam.

Intencionalidade do discurso é o principal: “A discurso vive fora de si mesmo, na


sua orientação viva sobre seu objeto: se nos desviarmos completamente desta orientação,
então, sobrará em nossos braços seu cadáver nu a partir do qual nada saberemos, nem de
sua posição social, nem de seu destino. Estudar o discurso em si mesmo, ignorar a sua
orientação externa, é algo tão absurdo como estudar o sofrimento psíquico fora da
realidade a que está dirigido e pela qual ele é determinado” (99).

“A palavra da língua é uma palavra semi-alheia. Ela só se torna „própria‟ quando


o falante a povoa com sua intenção, com seu acento, quando a domina através do
discurso, torna-a familiar com a sua orientação semântica e expressiva. Até o momento
em que foi apropriado, o discurso não se encontra em uma língua neutra e impessoal
(...), ele está nos lábios de outrem, nos contextos de outrem e a serviço das intenções de
outrem: e é lá que é preciso que ele seja isolado e feito próprio” (100).

Literatura e linguagens: diálogo, sempre, escolhas de linguagens. “O caráter de


descoberta do plurilinguismo e os métodos para nele se orientar determinam esta vida
estilística concreta do discurso” (103).

“(...) o poeta desembaraça as palavras das intenções de outrem, utiliza somente


certas palavras e formas e emprega-as de tal modo que elas perdem sua ligação com
determinados extratos intencionais de dados contextos da linguagem” (103).

“(...) O prosador-romancista (e em geral quase todo prosador) segue por um


caminho completamente diferente. Ele acolhe em sua obra as diferentes falas e as
diferentes linguagens da língua literária e extraliterária (...). Nesta estratificação da
linguagem, na sua diversidade de línguas e mesmo na sua diversidade de vozes, ele
também constrói o seu estilo, mantendo a unidade de sua personalidade de criador e a
unidade do seu estilo (de uma outra ordem, é verdade)” (104) – orquestram tema
intencional do autor.

“O prosador-romancista não elimina as intenções alheias da língua feita de


diferentes linguagens de suas obras, não destrói as perspectivas sócio-ideológicas
(mundo e micromundos sócio-ideológicos) que se desenvolve alem das linguagens do
plurilinguismo, ele as introduz em sua obra. O prosador utiliza-se de discursos já
povoados pelas intenções sociais de outrem, obrigando-os a servir às suas novas
intenções, a servir ao seu segundo senhor. Por conseguinte, as intenções do prosador
refratam-se e o fazem sob diversos ângulos, segundo o caráter sócio-ideológico de
outrem, segundo o reforçamento e a objetivação das linguagens que refratam o
plurilinguismo” (105).

“O desenvolvimento do romance consiste em um aprofundamento do diálogo, do


seu alargamento e refinamento; cada vez menos vale-se de elementos neutros e duros
(...)” (106). “O discurso poético é naturalmente social, porém as formas poéticas
refletem processos sociais mais duráveis, „tendências seculares‟ por assim dizer, da vida
social. O discurso romanesco reage de maneira muito sensível ao menor deslocamento e
flutuação da atmosfera social ou, como foi dito, reage por completo em todos os seus
momentos” (106).
III – O Plurilinguismo no Romance

“Todas as formas que introduzem um narrador ou um suposto autor assinalam de


alguma maneira que o autor está livre de uma linguagem uma e única, liberdade essa
ligada à relativização dos sistemas lingüísticos literários, ou seja, assinalam a
possibilidade de, no plano lingüístico, ele não se autodefinir, de transferir as suas
intenções de um sistema lingüístico para outro, de misturar a „linguagem comum‟, de
falar por si na linguagem de outrem, e por outrem na sua própria linguagem” (118).

“(...) um personagem de romance sempre tem sua área, sua esfera de influência
sobre o contexto abrangente do autor, ultrapassando (às vezes muito) os limites do
discurso direto reservado ao personagem. Em todo caso, o campo em que age a voz de
um personagem importante deve ser mais amplo que o seu discurso direto autêntico.
Essa área ao redor dos personagens importantes do romance é profundamente original
do ponto de vista estilístico: predominam nela as mais variadas formas de construções
híbridas, e ela sempre é dialogizada de alguma maneira; nela irrompe o diálogo entre o
autor e seus personagens, não um diálogo dramático, desmembrado em réplicas, mas
um diálogo romanesco específico, realizado nos limites das estruturas monológicas
aparentes” (124) – Gêneros intercalados: grupo especial de gêneros que detém papel
importante para os romances; confissão, diário, relatos de viagens, biografia e cartas.

Discurso bivocal: serve a dois locutores e exprime duas intenções diferentes,


intenção direta do personagem e a intenção refrangida do autor (127).

“Se o problema central da teoria da poesia é o problema do símbolo poético, então


o problema central da teoria da prosa literária é o problema do discurso bivocal,
internamente dialogizado em todos os seus tipos e variantes multiformes” (132).

“Para o romancista-prosador, o objeto está no enredado pelo discurso alheio a seu


respeito, ele é ressalvado, discutido, diversamente interpretado e avaliado, ele é
inseparável da sua conscientização social plurívoca. (...) Desta forma, a linguagem e o
objeto se revelam para ele no seu aspecto histórico, na sua transformação social
plurilíngüe, e não há linguagem além das intenções plurilíngües que o estratificam”
(132).

“Se a idéia de uma linguagem poética pura, fora do uso comum, fora da História,
uma linguagem dos deuses, nasce no terreno da poesia como uma filosofia utópica dos
seus gêneros, então está próxima da prosa literária a idéia de uma existência viva e
historicamente concreta das linguagens. A prosa literária pressupõe a percepção da
concretude e da relatividade históricas e sociais da palavra viva, de sua participação na
transformação histórica e na luta social; e ela toma a palavra ainda quente dessa luta e
desta hostilidade, ainda não resolvida e dilacerada pelas entonações e acentos hostis e a
submete à unidade dinâmica de seu estilo” (133).
IV – A Pessoa que Fala no Romance

Personagem e herói numa mesma acepção. Principal objeto do gênero romance: o


homem que fala e sua palavra (135). Sujeito que fala no romance é essencialmente
social, historicamente concreto; sujeito que fala é sempre, em certo grau, um ideólogo e
suas palavras criam ideologemas.

“A ação do herói do romance é sempre sublinhada pela sua ideologia: ele vive e
age em seu próprio mundo ideológico (não apenas num mundo épico), ele tem sua
própria concepção do mundo, personificada em sua ação e em sua palavra” (137).

“Se o objeto específico do gênero romanesco é a pessoa que fala e seu discurso, o
qual aspira a uma significação social e a uma difusão, como uma linguagem especial do
plurilinguismo – então o problema central da estilística do romance pode ser formulado
como o problema da representação literária da linguagem, o problema da imagem da
linguagem” (138). “O distanciamento da realidade empírica da linguagem representada
pode ser, por isso, muito importante, não apenas no sentido de uma seleção parcial e de
um exagero dos elementos disponíveis desta linguagem, mas também no sentido de uma
criação livre, no espírito da linguagem, de elementos que são absolutamente estranhos
ao seu empirismo” (138).

Antes de discutir a imagem da linguagem, discutir-se-á o significado do tema do


sujeito que fala e sua palavra na esfera extraliterária e ideológica. “A maioria das
informações e opiniões não são transmitidas geralmente, em forma direta, originária do
próprio falante, mas referem-se a uma fonte geral indeterminada: „ouvi dizer‟,
„consideram‟, „pensam‟, etc.” (140). Não menos que a metade das palavras
pronunciadas no cotidiano vem de outrem.

“No discurso cotidiano, conforme já dissemos, o sujeito que fala e sua palavra
servem como objeto de transmissão interessada de caráter prático, e não de
representação” (141). “Aquilo que foi dito dos sujeitos falantes e das palavras de outrem
no cotidiano não sai dos limites superficiais da palavra, seu peso em uma situação dada,
por assim dizer; camadas semânticas e expressivas profundas da palavra não entram em
jogo” (142).

Assimilação da palavra no processo de formação ideológica do homem – palavra


autoritária (ligada a um passado hierárquico, se impõe independente do grau de
persuasão interior, exige reconhecimento incondicional, não se representa, é somente
transmitida, noa pode ser bivocal) e palavra interiormente persuasiva (metade nossa,
metade dos outros; organização da palavra autônoma; inter-relacionamento tenso com
as outras palavras interiormente persuasivas; nasce na contemporaneidade, no presente
inacabado, e para um descendente)
(...) um texto autoritário sempre permanece uma citação morta que escapa do
contexto literário (por exemplo, os textos evangélicos em Tolstói, no final de
Ressurreição)1” (145).

“(...) não se trata mais apenas de transmissão da palavra do outro: sempre


aparecem também nestas formas embriões de sua representação literária. Mudando-se
um pouco o enfoque, a palavra internamente persuasiva se torna facilmente objeto de
representação literária. Então a figura do sujeito falante se funde substancial e
organicamente em algumas variantes desta palavra persuasiva: a palavra ética (a figura
do justo), filosófica (a figura do sábio), sócio-política (a figura do chefe). Havendo um
desenvolvimento criativo estilístico e colocando-se à prova a palavra do outro,
consegue-se adivinhar e imaginar como vai se comportar um homem autoritário diante
das circunstâncias dadas e como ele as esclarecerá pela sua palavra. Neste raciocínio
experimental, a figura do homem que fala e sua palavra tornam-se objeto da imaginação
literária criativa” (147) – com o tempo, as palavras de outrem em nós vão se libertando
do domínio da palavra de outrem.

“As declarações dos personagens de Dostoiévski são a arena de uma luta


desesperada com a palavra do outro em todas as esferas da vida e da criação ideológica”
(148) – palavras permanecem internamente inacabadas.

“Todos os sistemas religiosos, mesmo os primitivos, possuem à sua disposição um


imenso aparato especial e metodológico que transmite e interpreta os diferentes aspectos
da palavra divina (hermenêutica). As coisas são um pouco diferentes para o pensamento
científico. Aqui o peso do tema palavra é relativamente pequeno. As ciências
matemáticas e naturais não conhecem absolutamente a palavra como objeto de uma
orientação” (150).

“Na retórica, a significação da palavra de outrem como objeto é tão grande que
frequentemente acontece a palavra tentar dissimular ou substituir a realidade e com isso
ela se estreita e perde sua profundidade” (152).

“(...) pode-se falar da palavra do outro somente com a ajuda da própria palavra do
outro, é verdade que trazendo a ela nossas próprias intenções e esclarecendo-a à nossa
maneira, pelo contexto” (153).

“O papel do contexto que enquadra o discurso representado tem uma significação


primordial para a criação de uma imagem da linguagem. O contexto que enquadra,
lapida os contornos do discurso de outrem como o cinzel do escultor, e entalha uma
imagem de língua no empirismo frusto da vida do discurso; ele confunde e alia a

Na análise concreta da palavra autoritária no romance é indispensável ter em mente que a


palavra puramente autoritária, em outra época, pode tornar-se uma palavra interiormente persuasiva; isto
se refere particularmente à moral.
aspiração interior da linguagem de outrem às suas definições exteriores objetivadas”
(156).

Modelo de linguagem no romance: hibridização, inter-relação dialogizada das


linguagens, diálogos puros.

“A imagem da linguagem, como hibrido intencional é, antes de tudo, um hibrido


inconsciente (diferente do hibrido histórico orgânico e linguisticamente obscuro); é
precisamente esta tomada de consciência de uma linguagem por uma outra, é a luz
projetada sobre ela por outra consciência lingüística. Pode-se construir uma imagem da
linguagem, unicamente do ponto de vista de uma outra linguagem, aceita como norma”
(157) – aspecto individual indispensável para atualizar a linguagem e subordiná-la ao
conjunto artístico do romance.

“Em resumo, podemos dizer que a característica do hibrido romanesco é a


seguinte: em contraposição à fusão obscura das linguagem nos enunciados vivos, numa
língua que evolui historicamente (em essência todo enunciado vivo numa língua viva
tem um grau mais ou menos grande de hibridização), o hibrido romanesco é um sistema
que tem por objetivo esclarecer uma linguagem com a ajuda de uma outra, plasmar uma
imagem viva de uma outra linguagem. A hibridização intencional orientada para a arte
literária é um dos procedimentos essenciais da construção da imagem da língua. É
necessário observar que, no caso da hibridização, a linguagem que aclara (...) em certa
medida se objetiva até a imagem” (159) – Estilização e variação < paródia (representa
o mundo real objetivo sem o auxílio da língua representada, mas por meio de sua
destruição).

“O argumento do romance deve organizar o desmascaramento das linguagens


sociais e das ideologias, mostrá-las e experimentá-las: a experimentação da palavra, da
visão de mundo e do fundamento comportamental ideológico da ação, a demonstração
dos hábitos, dos mundos e dos micromundos sociais, históricos e nacionais (...). Em
resumo: o argumento do romance serve para a representação dos sujeitos falantes e de
seus universos ideológicos. No romance, realiza-se o reconhecimento de sua própria
linguagem numa linguagem do outro, o reconhecimento de sua própria visão na visão
de mundo do outro” (162).

“A criação da representação das linguagens é o problema estilístico primordial do


gênero romanesco. Qualquer romance, na sua totalidade, do ponto de vista da
linguagem e da consciência lingüística investida nele é um híbrido. Mas precisamos
sublinhar uma vez mais: um híbrido intencional e consciente, literariamente organizado
e não uma amálgama obscura e automática de linguagens (mais precisamente dos
elementos das linguagens). O objeto da hibridização intencional do romance é uma
representação literária da linguagem. É por isso que o romancista não visa
absolutamente uma reprodução lingüística (dialetológica) exata e completa do
empirismo das linguagens estrangeiras que ele introduz – ele visa apenas o domínio
literário das representações destas linguagens” (162).
V – Duas Linhas Estilísticas do Romance Europeu

“O pensamento mitológico, em poder da sua linguagem que engendra por si só a


realidade mitológica, dá suas próprias relações e inter-relações lingüísticas como
relações e inter-relações dos momentos da própria realidade (passagem das categorias e
dependências lingüísticas para as categorias teogônicas e cosmogônicas); mas também a
linguagem está em poder das imagens do pensamento mitológico, que paralisam o seu
movimento intencional, dificultando às categorias lingüísticas se tornarem comuns
(acessíveis) e flexíveis, formalmente mais puras (em conseqüência da sua soldagem
com as relações concretamente reificadas), e que limitam as possibilidades expressivas
da palavra” (166).

“A idéia da provação do herói e da sua palavra é, talvez, a principal idéia


organizadora do romance, que cria sua distinção radical do relato épico: o herói épico se
coloca desde o inicio livre de qualquer provação; é inconcebível uma atmosfera de
dúvida quanto ao heroísmo do herói do mundo épico” (182).

“A idéia cristã do martírio (a provação pelo sofrimento e pela morte), de um lado,


e a idéia da tentação (provação pelas seduções), de outro, dão um conteúdo específico à
idéia de provação organizadora do material na enorme literatura hagiográfica do
cristianismo primitivo e, depois, da Idade Média. Uma outra variante da mesma idéia de
provação organiza o material do romance de cavalaria clássico, em versos, variante que
une em si tanto a provação particular do romance grego (provação da coragem e da
fidelidade amorosa), como as singularidades da lenda cristã (provação por sofrimentos e
seduções)” (183). Romance de aventuras também.

Formas de Tempo e de Cronotopo no Romance

“À interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente


assimiladas em literatura, chamaremos cronotopo (que significa „tempo-espaço‟). Esse
termo é empregado nas ciências matemáticas e foi introduzido e fundamentado com
base na teoria da relatividade (Einstein). Não é importante para nós esse sentido
específico que ele tem na teoria da relatividade, assim o transportaremos daqui para a
crítica literária quase como uma metáfora (quase, mas não totalmente); nele é
importante a expressão de indissolubilidade de espaço e de tempo (tempo como a quarta
dimensão do espaço)” (211).

“No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais


num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se
artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo,
do enredo e da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço
reveste-se de sentido e é metido com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de
sinais caracterizam o cronotopo artístico” (211).

“Como já dissemos, a assimilação do cronotopo real e histórico na literatura flui


complexa e intermitentemente: assimilam-se alguns aspectos determinados do
cronotopo acessíveis em dadas condições históricas, elaboram-se apenas formas
determinadas de reflexão do cronotopo real. Essas formas de gênero, produtivos de
início, fortaleceram-se com a tradição e, no desenvolvimento subseqüente, continuaram
a subsistir tenazmente mesmo quando elas já tinham perdido completamente sua
significação realisticamente produtiva e adequada. Daí a existência em literatura de
fenômenos de tempo profundamente variados, o que dificulta ao extremo o processo
histórico-literário” (212).

I – O Romance Grego

Quanto à imagem cronotópica, em Nota: “Na sua „Estética Transcendental‟ (uma


das partes básicas da Crítica da Razã Pura) Kant define o espaço e o tempo como
formas indispensáveis de qualquer conhecimento, partindo de percepções e
representações elementares. Tomamos a apreciação de Kant do significado destas
formas no processo de conhecimento, mas nós as compreendemos, diferentemente de
Kant, não como „transcendentais‟, mas como formas da própria realidade efetiva.
Tentaremos revelar o papel destas formas no processo do conhecimento artístico
concreto (visão artística) nas condições do gênero romance” (212).

Primeiro tipo de romance clássico: “romance de aventuras e provações” (213).


Noção de tempo bastante profunda, cheia de particularidades e especificidades. Acaso;
poder da transferência; “ligação técnica e abstrata do espaço e do tempo, pela
reversibilidade dos momentos da série temporal e pela sua possibilidade de
transferência no espaço” (225). Iniciativa e poder pertencem somente ao acaso.
Determinação e concretude nesse cronotopo , por isso, é extremamente limitado; mundo
do romance grego é abstratamente estrangeiro, não se divisa nele (226). Tempo
histórico e mitológico entrelaçados. “Essa singular identidade consigo mesmo é o centro
organizador da imagem do homem no romance grego” (229). Homem vivo nas palavras.

II – Apuleio e Petrônio

“Romance de aventuras e costumes” (234). Metamorfose e identidade: “momentos


essenciais de ruptura e de crise: como um homem se transforma em outro” (237). Não
se desenvolve num tempo biográfico, mas em momentos excepcionais da vida humana.
Poder do acaso é limitado. Aventuras purificam e constroem sua nova identidade.
Responsabilidade do homem na metamorfose; mundo permanece inalterado. “O espaço
torna-se concreto e satura-se de um tempo mais substancial. O espaço é preenchido pelo
sentido real da vida e entra numa relação essencial com o herói e com o seu destino.
Esse cronotopo é tão saturado que, nele, elementos como o encontro, a separação, o
conflito e outros, adquire, um sentido cronotópico novo e muito mais concreto” (242).

“Nós já vimos como o romance grego resolveu o problema da representação da


vida particular e do homem privado. Ele aplicou formas público-retóricas exteriores e
não adequadas (já necrosadas àquela época) ao conteúdo da vida privada, o que foi
possível apenas nas condições do tempo de aventuras grego e da extrema abstração de
toda a representação. Além disso, sobre essa base retórica, o romance grego introduziu
também o processo criminal que exerceu nele um papel muito importante. O romance
grego utilizou-se também, parcialmente, de formas de vida cotidiana, por exemplo, a
carta” (245).

Tempo não é cíclico, repetição não se destaca. Tempo da vida cotidiana se destaca
desse tempo cíclico (248). Mundo cotidiano, tempo da vida privada, é fragmentado em
pedaços independentes.

III – Biografia e Autobiografia Antigas

Tempo biográfico quase inteiramente dissolvido no tempo ideal e abstrato da


metamorfose (251). Atos verbais cívicos-políticos; autoglorificação. “A unidade do
homem e a sua autoconsciência era puramente públicas. Ele estava todo do lado de fora
no sentido literal da palavra” (252).

“Quando nós falamos da extroversão total do homem grego, aplicamos,


naturalmente, nosso ponto de vista. O grego não conhecia exatamente a nossa divisão
em exterior e interior (mundo e invisível). O nosso „interior, na imagem que o grego
fazia do homem, encontrava-se no mesmo plano no nosso „exterior‟, isto é, tão visível e
audível e existindo do lado de fora, tanto para os outros como para si. Nesse sentido,
todos os aspectos da imagem do homem eram homogêneos” (254). Viver exteriormente
é viver na coletividade, para o povo, unidade da coesão de caráter público. Invocação de
imagens ideais em momentos culminantes da existência.

“As autobriografias e as memórias romanas se elaboram de acordo com outro


cronotopo real. Foi a família romana que lhes deu o fundamento de vida. A
autobiografia, aqui, é um documento da consciência familiar e ancestral. Porém, nesse
ambiente, a conscientização não se torna privada, íntima e pessoal. Ela mantém um
caráter profundamente público” (256). Autobriografia dos gregos se orientavam para os
contemporâneos, já a dos romanos se dirige aos descendentes e antepassados.

IV – O Problema da Inversão Histórica e do Cronotopo Folclórico

Romances na antiguidade: inversão histórica: mitos, idade do ouro, época heróica,


antiga verdade, etc., “(...) são expressões dessa inversão histórica. Simplificando, pode-
se dizer que se representa como já tendo sido no passado aquilo que na realidade poderá
ou deverá se realizar no futuro, aquilo que, em substância, apresenta-se como um objeto,
um imperativo, mas de modo algum como uma realidade do passado” (264). “O
presente, e sobretudo o passado, enriquecem-se às custas do futuro. A força e a
evidência da realidade, da atualidade, pertencem somente ao presente e ao passado – „é‟
e „foi‟” (264). “Para dotar de realidade este ou aquele ideal, ele é imaginado como já
tendo ocorrido outrora na idade do ouro, no „estado natural‟, ou é concebido no presente,
em algum lugar nos confins do mundo (...)” (264). Imagens do futuro localizam-se no
passado.

“O homem do folclore exige espaço e tempo para a sua realização, insere-se


totalmente neles e é aí que se sente à vontade. Toda oposição premeditada da grandeza
ideal em relação às proporções físicas (no sentido amplo da palavra) é totalmente
estranha ao folclore, como também o é a redução dessa grandeza ideal a formas espaço-
temporal. (...) o homem, nele, é grande por si mesmo e não às custas de outrem (...). Ele
subjuga somente a natureza, e ele mesmo é servido apenas por feras (e também elas não
são suas escravas)” (266).

“Por isso, o fantástico do folclore é um fantástico realista: jamais ele sai dos
limites do nosso mundo material e real, ele não preenche suas lacunas com nenhum
elemento ideal do além, ele opera nas vastidões do espaço e do tempo, sabe sentir esses
espaços e utilizá-los ampla e profundamente. O fantástico se apóia nas possibilidades
reais de desenvolvimento do homem, possibilidades não no sentido do programa de uma
ação prática imediata, mas no sentido das possibilidades-necessidades do homem, no
sentido das exigências eternas, nunca iludidas, da real natureza humana. Tais exigências
permanecerão sempre enquanto existir o homem, não se pode reprimi-las, elas são reais
como a natureza humana, por isso elas, cedo ou tarde, não poderão deixar de abrir um
caminho até sua completa realização” (267) – realismo folclórico: significado especial
na Idade Média e no Renascimento.

V – O Romance de Cavalaria

Próximo do mundo grego: mundo variado, estrangeiro e um tanto abstrato.


Identidade: “(...) todo tipo de maravilhas que arrancam provisoriamente o homem dos
acontecimentos, transportando-o para um outro mundo” (268). “O mundo inteiro se
torna maravilhoso e o próprio maravilhoso se torna habitual (sem deixar de ser
maravilhoso). O próprio eterno „imprevisto‟ deixa de ser algo imprevisto” (269) –
categoria do “de repente”. Maravilhoso e misterioso. Glorificação dos personagens (e
autoglorificação); diferente dos gregos, heróis de cavalaria são individuais e ao mesmo
tempo representativos; heróis de ciclos (270). Cronotopo repleto de magia e simbolismo.

O herói e o mundo formam um único bloco, o herói sente-se em casa neste mundo,
pois é tão maravilhoso quanto ele, mundo maravilhoso num tempo de aventuras (270).
“(...) o próprio tempo tornou-se, em certa medida, maravilhoso. Surge um hiperbolismo
fabuloso do tempo, as horas se prolongam, os dias se reduzem a instantes, o próprio
tempo pode ser encantado (...). Geralmente, surge no romance de cavalaria um jogo
subjetivo com o tempo (...)” (271) – visões e sonhos tornam-se cada vez mais comuns.

Final da Idade Média: visões: Romance da Rosa (Guillaume de Lorris), A Visão


de Pedro o Lavrador (Jean de Meung), A Divina Comédia (Dante): “Todo o mundo
espaço-temporal está submetido a uma interpretação simbólica. Pode-se dizer que o
tempo está totalmente excluído da própria ação da obra. Ora, em Dante, o tempo real da
visão e a sua coincidência com um momento determinado do tempo biográfico (tempo
da vida humana) e histórico, assume um caráter puramente simbólico. Tudo o que é
espaço-temporal, tanto as imagens das pessoas e das coisas, como também das ações,
tem ou caráter alegórico (sobretudo no Romance da Rosa), ou simbólico (parcialmente
em Langland e em grande medida em Dante)” (272).

“Tudo o que na terra é separado pelo tempo, reúne-se na eternidade na pura


simultaneidade da coexistência. Essas divisões, esse „antes‟ e „depois‟, introduzidos
pelo tempo, não são importantes, é preciso ver o mundo inteiro como simultâneo. É
apenas na pura simultaneidade ou, o que é o mesmo, na atemporalidade que se pode
descobrir o verdadeiro sentido daquilo que foi, que é e que será, pois aquilo que os
separava – o tempo – é privado de realidade autêntica e de força interpretativa” (273) –
construção vertical de imagem do mundo; imagens das pessoas são profundamente
históricas. Tensão do mundo de Dante: luta do tempo histórico vivo com o ideal
atemporal do além.

VI – Funções do Trapaceiro, do Bufão e do Bobo no Romance

Cronotopos especial: significados destes personagens é figurado, reflexo indireto


por sinal (276). “O trapaceiro ainda tem uns fios que o ligam à realidade; o bufão e o
bobo „não são deste mundo‟ e por isso têm direitos e privilégios especiais” (276) –
exteriorização do homem por meio do riso paródico.

“O romancista precisa de alguma espécie de máscara consistente na forma e no


gênero que determine tanto a sua posição para ver a vida, como também a posição para
tornar pública essa vida. E assim é que as máscaras do bufão e do bobo, é evidente
transformadas de vários modos, vêm em socorro do romancista. Estas máscaras não são
inventadas, elas têm raízes populares muito profundas, são ligadas ao povo por
privilégios consagrados e não participação do bufão na vida, e da intangibilidade de
seu discurso, estão ligadas ao cronotopo da praça pública e aos palcos do teatros” (277).
Estado alegórico. Cronotopo intermediário do teatro e das apresentações públicas destas
personagens.

VII – O Cronotopo de Rabelais


Ampliações espaço-temporais. Ligação das ações dos homens com todo o
mundo espaço-temporal. “O problema de Rabelais é reunir o mundo que se desagrega
(como resultado da decomposição da visão do mundo medieval) sobre uma nova base
material. A entidade e o caráter acabado do mundo medieval (como ele ainda estavam
vivos na obra sintética de Dante) estão destruídos. Também está destruída a concepção
histórica da Idade Média (a criação do mundo, o pecado original, o primeiro advento de
Cristo, a redenção, o segundo advento, o juízo final), concepção onde o tempo real era
desvalorizado e dissolvido em categorias atemporais. Nesta visão do mundo, o tempo
era um princípio que apenas destruía, aniquilava e nada criava. O novo mundo não tinha
nada que ver com essa percepção de tempo. (...) Precisava-se de um novo cronotopo que
permitisse ligar a vida real (a História) com a terra real. Era preciso contrapor ao
escatologismo um tempo produtivamente fértil, um tempo medido pela construção, pelo
crescimento, e não pela destruição. Os fundamentos deste tempo construtivo apareciam
delineados nas imagens e nos temas do folclore” (316).

VIII – Fundamentos Folclóricos do Cronotopo de Rabelais

Tempo é coletivo; tempo do crescimento produtivo; profundamente espacial e


concreto, não se separa da natureza e da terra; tempo uno, caráter cíclico.

IX – O Cronotopo Idílico no Romance

X – Observações Finais

“O cronotopo determina a unidade artística de uma obra literária no que ela diz
respeito à realidade efetiva. Por isso, numa obra, o cronotopo sempre contém um
elemento valioso que só pode ser isolado do conjunto do cronotopo literário apenas
numa análise abstrata. Em arte e literatura, todas as definições espaço-temporais são
inseparáveis umas das outras e são sempre tingidas de um matiz emocional. É evidente
que uma reflexão abstrata pode interpretar o tempo e o espaço separadamente e afastar-
se do seu momento de valor emocional. Mas a contemplação artística viva (ela é,
naturalmente, também interpretada por completo, mas não abstrata) não divida nada e
não se afasta de nada. Ela abarca o cronotopo em toda a sua integridade e plenitude. A
arte e a literatura estão impregnadas por valores cronotópicos de diversos graus e
dimensões. Cada momento, cada elemento destacado de uma obra de arte são estes
valores” (349).

“(...) é evidente seu significado temático. Eles são os centros organizadores dos
principais acontecimentos temáticos do romance. É no cronotopo que os nós do enredo
são feitos e desfeitos. Pode-se dizer francamente que a eles pertence o significado
principal gerador do enredo. Ao mesmo tempo salta aos olhos o significado figurativo
dos cronotopos. Neles o tempo adquire um caráter sensivelmente concreto; no
cronotopo, os acontecimentos do enredo se concretizam (...). Mas o acontecimento ano
se torna uma imagem. O próprio cronotopo fornece um terreno substancial à imagem-
demonstração dos acontecimentos” (355).

“(...) o cronotopo, como materialização privilegiada do tempo no espaço, é o


centro da concretização figurativa, da encarnação do romance inteiro” (356).
Linguagem como tesouro de imagens, toda imagem literária é cronotópica.

“Apesar de toda inseparabilidade dos mundos representado e representante, apesar


da irrevogável presença da fronteira rigorosa que os separa, eles estão indissoluvelmente
ligados um ao outro e se encontram em constante interação: entre eles ocorre uma
constante troca, semelhante ao metabolismo que ocorre entre um organismo vivo e o seu
meio ambiente: enquanto o organismo é vivo, ele não se funde com esse meio, mas se
for arrancado, morrerá. A obra e o mundo nela representado penetram no mundo real
enriquecendo-o, e o mundo real penetra na obra e no mundo representado, tanto no
processo da sua criação como no processo subseqüente da vida, numa constante
renovação da obra e numa percepção criativa dos ouvintes-leitores. Esse processo de
troca é sem dúvida cronotópico por si só: ele se realiza principalmente num mundo
social que se desenvolve historicamente, mas também sem se separar do espaço
histórico em mutação” (358).

“Pois nos importa o seguinte: para entrar na nossa experiência (experiência social,
inclusive), esses significados, quaisquer que eles sejam, devem receber uma expressão
espaço-temporal qualquer, ou seja, uma forma sígnica audível e visível por nós (um
hieróglifo, uma fórmula matemática, uma expressão verbal e lingüística, um desenho,
etc.). Sem esta expressão temporal é impossível até mesmo a reflexão mais abstrata.
Conseqüentemente, qualquer intervenção na esfera dos significados só se realiza através
da porta dos cronotopos” (362).

Você também pode gostar