Você está na página 1de 152

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Diretor Consultoria Técnica


Hélio Ricardo do Couto Alves Claudia Fonseca (UFRGS – Academia Brasileira
de Ciências)
Vice-Diretor Esther Jean Langdon (INCT Brasil Plural –
Alex Niche Teixeira UFSC)
Nísia Trindade Lima (Fiocruz)
Gerente Administrativo Ruben George Oliven (UFRGS – Academia Bra-
Fabiano Porto Rosa sileira de Ciências)
Sergio Tavares de Almeida Rego (Fiocruz)
Programa de Pós-Graduação em Theophilos Rifiotis (UFSC)
Antropologia Social
Coordenação: Jean Segata Website: www.ufrgs.br/redecovid19humani-
Vice-Coordenação: Patrice Schuch dades

Rede Covid-19 Humanidades MCTI Associação de Vítima e Familiares de


Coordenação: Jean Segata Vítimas da Covid-19 – AVICO
Vice-Coordenação: Arlei Sander Damo
Presidente e Fundadora: Paola Falceta
Comitê Científico e Editorial Vice-Presidente de Saúde: Rosângela Silva
Jean Segata (UFRGS) Vice-Presidente Jurídica: Pâmela Copetti
Arlei Sander Damo (UFRGS) Ghisleni
Ceres Víctora (UFRGS) Vice-Presidente de Assistência Social e
Denise Nacif Pimenta (Fiocruz) Previdência: Vera Lúcia de Melo Aragão
Eliana Diehl (INCT Brasil Plural – UFSC) Vice-Presidente Administrativo Financeiro:
Gustavo Matta (Fiocruz) Acir José Pereira de Bastos
Handerson Joseph (UFRGS) Secretária Geral: Patrícia Teixeira
Maria Paula Prates Machado (University Colle- Conselho Fiscal: Bruno da Rosa Lumertz,
ge London) Gabriela Moraes dos Santos, Nicolas Alcântara
Monalisa Dias de Siqueira (Unipampa) Rocha (titulares) e Carolina Tavares Oliveira
Patrice Schuch (UFRGS) Borges, Luiz Fernando Valadares Flores, Núria
Rozeli Maria Porto (UFRN) Debertolis de Motta (suplentes)

Website: www.avicobrasil.com.br

2
Histórias e(m) Movimento

Organização: Jean Segata, Paola Falceta, Ceres Víctora, Patrice Schuch, Juliara Borges Segata,
Monalisa Dias de Siqueira

Revisão de Língua Portuguesa e Tradução para Língua Inglesa: Ana Karina Borges Braun,
Ananyr Porto Fajardo, Cleci Bevilacqua, Patrícia Chittoni Ramos Reuillard

Revisão Técnica e Editorial: Cristiane Miglioranza

Diagramação: Osmair José Pereira

Imagem da Capa: Nirce Barbosa Castro Ferreira, familiar de vítima da Covid-19, em manifestação
organizada pela AVICO em frente ao Congresso Nacional, em Brasília, no dia 18 de outubro de
2021, em homenagem aos 600 mil mortos por Covid-19 no Brasil e por ocasião de Audiência Pú-
blica na CPI da Covid-19, no Senado Federal. Foto: Scarlett Rocha. Reproduzido com autorização.

Editora: Editora: IFCH-UFRGS

Porto Alegre, 2023.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

H673 Histórias e(m) movimento / Jean Segata ... [et.al.] (Orgs.) –


Porto Alegre : IFCH, UFRGS, 2023.

152 p. il.
ISBN 978-65-5973-253-1 (Impresso)
ISBN 978-65-5973-254-8 (.pdf)

1. COVID-19. 2. Antropologia social. I. Segata, Jean. II. Falceta,


Paola. III. Víctora, Ceres. IV. Schuch, Patrice. V. Segata, Juliara
Borges. VI. Siqueira, Monalisa Dias de.

CDU 39
CDD 306

Bibliotecária responsável
Catherine da Silva Cunha
CRB 10/1961

4
Histórias e(m) Movimento
Histories in Movement

Sumário
Summary

1. Apresentação 9
Introduction
Jean Segata

2. Cronologia da dor (e da resiliência) 13


A Chronology of pain (and Resilience)
Pâmela Copetti Ghisleni

3. Como falar dessa “faca cravada no peito”? 25


How to talk about this knife stuck on my chest
Monalisa Dias de Siqueira

4. A dona Italira que habita em mim 33


Dona Italira who lives in me
Paola Falceta

5. A força do sublime e puro amor 41


The power of sublime and pure love
Dione Michels Sá de Souza

5
6. Estrada nova 47
A new road
Adalberto Oliveira

7. Sobre uma e tantas mortes 55


About one and so many other deaths
Patrice Schuch

8. Guerreira Intransigente 63
An Intransigent Warrior
Carla Mariela Carriconde Tomasi

9. Réquiem por meu filho Daniel Tiago Omena Melo 69


Requiem for my son Daniel Tiago Omena Melo
Lucynier Omena

10. “Mãe, quem me levará ao altar?” 77


“Mom, who’s going to walk me down the aisle?”
Maria Izabel Collar

11. Sinto e Muito 85


I’m so sorry
Juliara Borges Segata

12. O que é um pai (e como despedir-se dele) 93


What being a father means (and how to say goodbye)
Pâmela Copetti Ghisleni e Rafaella Copetti Ghisleni

13. O que fazer? 101


What to do
Nelson Fernando Carvalho e Tamires Carvalho

6
14. Sonho interrompido 109
A broken dream
Cláudia Dantas Pinto de Sousa

15. Obrigada, mãe! 113


Thank you, mom!
Gilmara Bueno

16. Meu último adeus 119


My last goodbye
Vitória Passos Bender

17. Ser de luz 125


A being of light
Tatiane Silva da Silva

18. A mensagem não lida 131


The unread message
Thalita da Silva, Roberto da Silva e Thaís da Silva

19. Para uma super cunhada (Parte 1) 137


For a super sister-in-law (Part 1)
O dia em que o mundo parou (Parte 2) 141
The day the world stopped (Part 2)
Ivarlete de França

20. Minha mãe, minha eterna saudade 147


My mom, my eternal longing
Mônica Miranda da Silva Azevedo

7
Foto de Saad Chaudhry na Unsplash

“Histórias e(m) Movimento é um projeto coletivo, um espaço de partilhas,


de solidariedade, de força somada e de luta. Porque a história de uma
pandemia se escreve com muitas histórias, em movimento.”

8
Histórias e(m) Movimento – Apresentação
por Jean Segata, coordenador da Rede Covid-19 Humanidades MCTI

E ste livro resulta de um projeto co-


letivo intitulado Histórias e(m) Mo-
vimento, organizado pela Rede Covid-19
mica de transformações sociais resultan-
tes da pandemia evidenciam implicações
éticas e de Direitos Humanos. Portanto, é
Humanidades MCTI e a Associação de preciso que sejam consideradas a singu-
Vítimas e Familiares de Vítimas da Co- laridade das populações implicadas, seus
vid-19 – AVICO. Ele é parte do projeto “A níveis de vulnerabilidade e exposição, ba-
Covid-19 no Brasil 2: análise e resposta seados em sua diversidade e desigualda-
aos impactos sociais da imunização, tra- de. Mais do que isso, é preciso compreen-
tamento, práticas e ambientes de cuida- der que a história de uma pandemia não
do e recuperação de afetados” (Convênio se escreve apenas com números e reper-
UFRGS-FINEP 1212/21). cussões epidemiológicas. São presenças
e ausências, rupturas e transformações;
Pesquisas antropológicas sobre cri-
são vidas que se foram, memórias que se
ses sanitárias e humanitárias como a pan-
vive. São pessoas e coletivos que perma-
demia de Covid-19 não têm o seu enfoque
necem e que sofrem, mas que também se
dirigido exatamente sobre os mecanis-
fortalecem e resistem.
mos técnico-biológicos que constituem
estes eventos, mas para as relações e Histórias e(m) Movimento reúne ex-
transformações que provocam nas pesso- periências de quem viveu a pandemia de
as e nas sociedades. Os impactos de uma Covid-19 de diferentes de maneiras e in-
pandemia sobre diferentes grupos sociais tensidades. As pessoas têm voz mesmo
precisa ser investigado considerando as nas mais duras e sufocantes situações em
formas de violência estrutural que inten- que a violência estrutural tenta silencia-
sificam os seus efeitos, como a interação -las. O que fazemos neste projeto é criar
sinérgica adversa entre duas ou mais do- um espaço de escuta, de acolhimento e
enças ou condições debilitantes promovi- de parceria de luta para a produção de
da ou facilitada por condições sociais e políticas mais orgânicas, desenvolvidas
ambientais e as formas frequentemente com a participação efetiva de quem vive
ocultas de estruturas de desigualdade, a catástrofe no seu corpo, na sua sub-
como a pobreza, o racismo e a discrimina- jetividade, na sua vida. Este livro é um
ção, que impactam negativamente a vida espaço de partilhas, de solidariedade, de
e o bem-estar das populações afetadas. força somada e de luta. Porque a história
de uma pandemia se escreve com muitas
Uma compreensão apurada da dinâ-
histórias, em movimento.

9
Histories in Movement - Introduction
by Jean Segata, coordinator of the Covid-19 Humanities MCTI Network [1]

T his book is the outcome of a collec-


tive project titled Histories in Mo-
vement, organized by the Covid-19 Huma-
namics of social transformations resulting
from the pandemic highlights ethical and
human rights implications. Therefore, it
nities MCTI Network and the Association of is essential to consider the uniqueness of
Covid-19 Victims and Their Families - AVI- the populations involved, their levels of
CO. It is part of the project “Covid-19 in vulnerability and exposure, based on their
Brazil 2: Analysis and Response to the So- diversity and inequality. Furthermore, it is
cial Impacts of Immunization, Treatment, crucial to grasp that the story of a pande-
Practices, and Environments of Care and mic is not solely written in numbers and
Recovery for Affected Individuals” (UFRGS- epidemiological impacts. It’s about presen-
-FINEP Agreement 1212/21). ces and absences, ruptures, and transfor-
mations; it is about lives lost, and memo-
Anthropological research on health
ries lived. It encompasses individuals and
and humanitarian crises, such as the Co-
collectives that endure and suffer but also
vid-19 pandemic, does not focus precisely
grow stronger and resist.
on the technical-biological mechanisms
that constitute these events, but rather Histories in Movement gathers the ex-
on the relationships and transformations, periences of those who lived through the
they provoke in individuals and societies. Covid-19 pandemic in various ways and in-
The impacts of a pandemic on different tensities. Even in the harshest and most su-
social groups need to be investigated, con- ffocating circumstances where structural
sidering the forms of structural violence violence attempts to silence them, people
that intensify their effects, such as the ad- have a voice. What we do in this project is
verse synergistic interaction between two create a space for listening, support, and a
or more diseases or debilitating conditions collaborative fight to generate more orga-
promoted or facilitated by social and envi- nic policies, developed with the active par-
ronmental factors, as well as the often-hid- ticipation of those who experience the ca-
den forms of inequality structures, such as tastrophe in their bodies, subjectivity, and
poverty, racism, and discrimination, that lives. This book is a space for sharing, so-
negatively impact the lives and well-being lidarity, collective strength, and struggle.
of affected populations. Because the story of a pandemic is written
with many stories, all in motion.
A nuanced understanding of the dy-
[1]
Translated by Ana Karina Borges Braun and proofread by Ananyr Porto Fajardo.

10
11
“Leitura da carta aos enlutados e homenagem às e aos falecidos em decorrência da
Covid-19 no Anfiteatro da Praça da República de Ijuí (RS), no entardecer de 10
de julho de 2021. A leitura deu início às articulações para viabilizar o Bosque da
Memória de Ijuí.

12
Cronologia da Dor (e da Resiliência)
Por Pâmela Copetti Ghisleni

N enhum de nós gostaria de estar


aqui hoje, na condição de enluta-
do. O que nos une, agora, é possivelmente
meira lembrança enuviada que nos vem à
mente é a da ausência daqueles que não
estão mais conosco.
o fato mais trágico das nossas vidas.
Mas a morte é uma ausência presen-
E que tarefa inglória é esta de colocar te, especialmente em tempos de covid.
em palavras a tragédia, o sofrimento, a dor. Impossível não se emocionar e lamentar
O que dizer da dor do luto? Que consegue profundamente cada centena de milhar
numa tacada só misturar amor e dor, cul- que o Brasil furiosamente alcança em
minando numa saudade ora sofrida, ora números de mortos pela covid. Impossí-
mansa, ora com revolta, com verdadeira vel não se identificar com a dor. Empatia
fúria, ora com gratidão e aceitação? nunca fez tanto sentido.
Nós, enlutados que estamos pela Quando começamos a compartilhar o
partida precoce daqueles que amamos, luto, identificamos narrativas muito pa-
fomos esquecidos. Fomos e somos esque- recidas umas com as outras. Os primeiros
cidos. Mas, felizmente ou não, nós não es- sintomas parecem o prenúncio de tempos
tamos sozinhos. São 4 milhões de óbitos difíceis. Não tão difíceis quanto éramos
no mundo. Mais de 530 mil destes ocor- capazes de imaginar.
ridos no Brasil. Na América do Sul, o Bra-
O resultado positivo do exame da Co-
sil concentra mais da metade dos óbitos.
Escaneie o QR code vid, ao primeiro impacto, assusta. E de-
Definitivamente, não estamos sozinhos.
abaixo e ouça a nuncia a jornada dolorosa que está por
Somos e sempre seremos, infelizmente,
narração desse texto vir. “Mas parece ser um quadro leve”,
ao lado de países como Estados Unidos
pensamos e, no fundo, estamos torcendo
e Índia, o maior contingente enlutado de
para isso, para que seja um quadro leve.
pessoas no mundo em razão da Covid-19.
Jamais conceberíamos, nem mesmo em
Só em Ijuí, cidade de 80 mil habitantes,
nossos piores pesadelos, perder nosso
é como se tivessem sido arremessados
ente querido nessas circunstâncias. En-
ao solo cerca de 10 voos comerciais, cau-
tão, ainda com muita firmeza e coragem,
sando a morte de absolutamente todos os
providenciamos, dentro do possível, o
passageiros.
isolamento, para que nosso doente fique
Nossos mortos morrem todos os dias num ambiente acolhedor e sinta-se ama-
quando, ao acordar pela manhã, a pri- do, ainda que à distância.

13
Encaminhamos a medicação que es- ne?”, lembramos aflitos. “Coloquei um
peramos ansiosamente seja capaz de bilhetinho na sua frasqueira”, tentamos
conter o avanço da doença e fazer dela, trazer mansidão em meio ao caos. Então,
de fato, uma “gripezinha”. Às pressas, segurando o choro e disfarçando o medo
compramos ou conseguimos empresta- (ou tentando disfarçá-lo), pronunciamos,
do um oxímetro, nosso aliado para en- talvez pela última vez, um embargado e
tender quando vai ser a hora de correr verdadeiro “eu te amo”. O telefone celu-
para o hospital. Monitoramos a febre. lar era fundamental porque precisávamos
Alguns dias são melhores, outros piores acompanhar, dia após dia, o progresso do
e, de repente, é ladeira abaixo. Interna- paciente. Não havia outra possibilidade.
ção, fisioterapia pulmonar, fluxo leve, Todos os caminhos conduziam para a
fluxo médio, máscara Hudson, VNI, UTI, cura, por mais improvável que ela fosse.
pronação, intubação, traqueostomia etc. E então, sem mais nem menos, como
Nosso vocabulário foi inflado por termos se a vida nos pregasse uma peça de mui-
clínicos, porque tínhamos de ser capazes to mau gosto, aquele ou aquela que tanto
de compreender ou mesmo recorrer ao amamos não está mais conosco. Partiram
Google quando os valorosos (e também sem que pudéssemos vê-los, tocá-los,
humanos, é bom lembrar) profissionais acariciá-los uma vez mais.
da saúde nos diziam, nas ligações diárias
que ansiosamente esperávamos da UTI, E aí começam os trâmites rumo à des-
que a FiO2 do paciente está boa ou que pedida que não era pra ser. Procedimen-
foi preciso dialisar. tos burocráticos, desagradáveis, no míni-
mo deselegantes, tudo isso para ter em
Para muitos, porém, infelizmen- mãos uma “certidão de óbito” que num
te, não deu tempo de compreender esse piscar de olhos vamos dobrar ao meio
complexo linguajar da terapia intensiva. para evitar que expressões como “óbito”
Não havia leito disponível ou, se havia, e “causa da morte” nos confrontem ao
era distante de casa e o transporte era lado do nome do nosso ente querido.
arriscado àquelas alturas. A vontade era
gritar por socorro para o que ou quem Somos forçados, neste momento, a
quer que fosse. “Que desgraça é essa?”, tomar decisões que não queríamos tomar.
bradávamos afogados em nossa própria E fazemos tudo isso sozinhos, em nosso
impotência. pequeno núcleo familiar, contando com
a ajuda de poucos amigos porque, em
Para os que tiveram a sorte de ter meio à pandemia, é o luto possível. “Va-
acesso aos serviços de saúde, é difícil mos cremar, enterrar? Faremos velório?”.
lembrar do momento em que deixamos As normas sanitárias sobre atos fúnebres
nosso ente querido na porta do hospital, somente permitem o velório com caixão
com sua mochila nas costas ou com sua fechado. Àquela altura, estranhamente
bolsa a tiracolo e, claro, o telefone celu- agradecemos por não poder fazer veló-
lar. “Você pegou o carregador do telefo- rio. Não queremos ser confrontados com

14
o olhar piedoso do outro que denuncia a Passado um tempo, tempo este que
morte que acabou de acontecer. Além dis- varia muito de uma pessoa para a outra,
so, o medo da contaminação nos enche de uma família para a outra, as fotos co-
de pânico. “Não temos condições emocio- meçam a tomar conta da casa, dos bidês,
nais de passar por tudo isso de novo”, di- das paredes. Passamos a olhar fixamente
zemos. E ficamos assim, enclausurados, para as fotografias do nosso ente queri-
em nossa despedida de cinco pessoas, do com medo de que esqueçamos de cada
um pouco mais, um pouco menos, para a detalhe, cada traço que lhe afeiçoava o
qual sequer pudemos escolher uma roupa rosto. Ouvimos e assistimos com carinho
bonita para os nossos mortos vestirem. todos os vídeos que as novas tecnologias
nos proporcionam para que não nos es-
Passados os primeiros dias, que são
queçamos também dos trejeitos e, final-
arrebatadores, cruéis, dias impossíveis,
mente, da voz, que tantas e tantas vezes
ficamos confusos, assustados. Perdemos
repetiu nossos nomes e apelidos de for-
a noção do tempo, das horas, das coisas.
ma carinhosa (às vezes nem tanto).
Somos consumidos por um medo de
Quando, enfim, conseguimos nos
olhar as fotos porque elas nos fazem sen-
postar em pé, ainda que cambaleando e
tir ainda mais saudade. Na TV, somente
confusos, após os singelos, mas muito
programas que não remetam à catástrofe
singelos mesmo, atos de despedida em
política e sanitária do país. Não queremos
tempos pandêmicos, a vida denuncia
ler os jornais, não queremos olhar os si-
que, no primeiro dia útil seguinte, pre-
tes de notícias porque nós, enlutados,
cisamos trocar a titularidade de contas,
e os nossos mortos, estamos lá. Somos,
encaminhar requerimentos de benefícios
também, a pauta.
previdenciários (mais uma vez, se tiver-
“Fique com as boas lembranças”, eles mos sorte), providenciar inventários e
dirão, tentando amenizar nosso sofri- encerrar contas bancárias. E, não bastas-
mento. Acenamos, concordando. Estamos se isso, volta e meia ainda somos surpre-
cansados demais para argumentar que as endidos com uma ligação inconveniente
lembranças são boas, sim, mas são lem- do telemarketing pedindo para falar com
branças que não experienciaremos mais, aquele que já partiu. Ficamos, obviamen-
pelo menos não no mundo da vida. Se ti- te, indignados: “Como é possível eles não
vermos sorte, podemos sonhar com nos- saberem que ele ou ela morreu?”.
sos mortos e acordar com um sorriso.
Um frio nos percorre a espinha quan-
Mas, ao mesmo tempo, são, de fato, do entramos no estabelecimento comer-
as boas lembranças que nos assaltam o cial na cidade e somos confrontados com
pensamento dia após dia, noite após noi- pessoas sem máscara, rindo. “Devo pedir
te, e nos colocam no rosto um riso frouxo, que coloquem a máscara?”, nos questio-
ainda tímido. Frouxo e tímido, mas genu- namos, “ou vão politizar até mesmo meu
íno, porque o que passou foi muito bom. luto e meu medo?”. “E como podem ain-

15
da rir das coisas em meio ao caos?”. Sim, Sim, a morte é ausência presente.
nós, enlutados, pessoalizamos tudo neste Ausência que fala, que grita, que berra.
momento e fazer isso é demasiadamente Quando a vida, em seus caminhos tortu-
humano, a ponto de nos enojarmos com osos e nada óbvios, nos oferece uma tra-
o riso alheio daqueles que sequer sabem gédia desta envergadura, nos furtando,
quem somos, que sequer sabem quem são geralmente num curtíssimo espaço de
os nossos mortos. tempo, a presença física solar daqueles
que tanto amamos, o que fazer? Como
Quando a vacina (superfaturada ou
continuar nossa vida? Falta um pedaço.
não) finalmente está disponível para nos-
Sempre faltará.
sa faixa etária e para os que amamos,
sentimos um misto de alegria e revolta. Não há dor fora da vida. A morte se
Para a imensa maioria dos que partiram, impõe e com ela a ausência de quem par-
ela não foi comprada. Para outros, embo- tiu. A morte de quem amamos denuncia
ra tenha sido disponibilizada, não foi o a transitoriedade da vida e o fato de que,
suficiente para evitar o trágico desfecho. um dia, morrerá a última pessoa da face
da Terra que pode, enfim, falar sobre nós
Os teus sapatos, que ainda estão na que estamos aqui hoje, agora, neste exato
sapateira, carregam nas solas os cami- momento.
nhos de uma vida inteira que foi precoce-
mente interrompida. Ora e outra “caímos A impressão que temos é a de que es-
em tentação” e, num gesto irrefletido (ou taremos enlutados para sempre. E talvez
não), cheiramos teu perfume, que ainda estaremos, de fato.
está na prateleira do banheiro, mesmo sa- O saudoso escritor mineiro Guima-
bendo que diante do teu cheiro a única rães Rosa, em “Grande Sertão: Veredas”,
possibilidade é o choro. diz que “o correr da vida embrulha tudo.
Nos grupos de WhatsApp a ausência A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e
também parece gritar. “Fulano/fulana daí afrouxa, sossega e depois desinquie-
saiu”. Quanta violência! A troco de quê o ta. O que ela quer da gente é coragem.”
WhatsApp arbitrariamente remove aque- Então, que tenhamos coragem. Que pos-
le ou aquela que amamos dos grupos da samos, por mais difícil, penoso e árduo
família e de amigos? Enxugadas as lágri- que seja o luto, ressignificar nossa exis-
mas, e recolhida a fúria, nos damos conta tência e nossas relações.
de que talvez será melhor assim. Era difí- A propósito, será que não sofrería-
cil ver que as mensagens não eram rece- mos tudo de novo em troca de viver mais
bidas por quem nos deixou. Além disso, um ou dois dias com os nossos mortos?
não podemos nem pensar em removê-lo Parece-me que todos nós experimentarí-
ou removê-la do grupo por conta própria, amos quantas vezes mais fossem neces-
a não ser que seja para levá-los conosco sárias o sabor amargo do luto para ter a
para outro lugar, talvez num sonho. oportunidade de dar mais um abraço, de

16
fazer mais um cafuné, de brigar uma vez pai, na tentativa (impossível) de narrar a dor dos en-
mais. E isso basta. A vida ainda pode ser lutados brasileiros em meio à pandemia de Covid-19.
boa e, se tudo der certo, vamos acumular ** Carta aberta em homenagem às vítimas da Co-
saudades de pessoas que amamos e dei- vid-19 e em apoio aos enlutados, esta carta foi lida
xar nestas mesmas pessoas saudades de no dia 10 de julho de 2021 em ato realizado em
quem nós fomos, somos e ainda seremos. homenagem às vítimas do coronavírus no Anfiteatro
da Praça da República de Ijuí/RS, cidade de 83 mil
habitantes que, até esta data, já perdeu 234 pessoas
para a Covid-19.
* Pâmela Copetti Ghisleni, associada assessora jurí-
dica da AVICO-BRASIL, enlutada pela perda de seu

17
18
A Chronology of pain (and Resilience)
By Pâmela Copetti Ghisleni[1],

N one of us would like to be here


today in mourning. Possibly, the
most tragic fact of our lives is what ga-
possible not to be moved and feel deeply
sorry for the hundreds of thousands of
deaths caused by Covid in Brazil. It is im-
thers us now. possible not to feel the pain. Empathy has
never made so much sense.
The most inglorious task of our lives is
expressing our suffering and pain in words. In sharing the grief, we could identi-
What can we say about grief? Is it some- fy very similar narratives.
thing able to mix love and pain, culmina-
The first symptoms seem the forward
ting in a longing that is sometimes painful,
of hard times.
gentle, angry, grateful, and resigned?
The first impact of the positive result
Some have forgotten our mourning
of the Covid test is scary and announces
for the early death of our loved ones.
the painful experience one will face. We
But fortunately, or not, we are not alone.
hope it is going to be a light Covid. Deep
Four billion people have died around the
inside, this is what we wish. We would
world recently. More than 530 thousand
never imagine, not even in our darkest
deaths occurred in Brazil. Brazil concen-
nightmares, losing a loved one in these
trates more than half of the deaths in
circumstances. So, with a lot of firmness
South America. Unfortunately, we are and
and courage, we have tried to make the
will always be the largest contingent of
Escaneie o QR code isolated environment as cozy as possible.
bereaved people in the world due to Co-
abaixo e ouça a
vid-19, along with countries such as the We have received the medication and
narração desse texto
United States and India. In Ijuí only, a city looked forward to it halting the progres-
of 80,000 inhabitants, it is as if about ten sion of the disease and reducing it to, in
commercial flights had been thrown to effect, the “little flu”. We have received
the ground, causing the death of absolu- an oximeter to show us when it is time to
tely all passengers. rush to the hospital. We have monitored
the temperature. We had to learn some cli-
(It feels like) our deceased loved ones
nical terms: hospitalization, pulmonary
dye again every day we wake up in the
physiotherapy, light flux, middle flux,
morning and remember their absence.
Hudson mask, NIV, ICU, pronation, intu-
But death is the absence of the pre- bation, tracheostomy, etc. After all, we
sent, especially in times of Covid. It’s im- had to understand or even google some

19
terms when valuable (and also human, we At that moment, we had to make
need to remember this) health professio- some decisions. We had to do it by our-
nals told us on the phone the patient’s selves, among our small family and a few
FiO2 was ok or s/he needed dialysis. friends. That was the only way we could
grieve due to the pandemic. “Should we
Unfortunately, most people didn’t
cremate or bury him? Should we hold a
have enough time to understand the in-
wake”. Because of health regulations, we
tensive therapy complex language. So-
should keep the coffins closed during the
metimes there weren’t available beds.
wakes. We were thankful for not being
Sometimes there wasn’t transportation.
allowed to hold a wake. We wouldn’t want
Sometimes people would only want to cry
to confront the pious gaze of people de-
for help. We shouted, “what a disgrace!”,
nouncing his recent death. Besides that,
drowning into our powerlessness.
there was the fear of contamination. And
Those who could access the Heal- we couldn’t bear going through all that
th Care Service would hardly remember again. So, we remained enclosed in our
when we left our beloved father at the farewell of five people, sometimes a little
hospital with his backpack and cell phone. less, sometimes a little more, for which
We asked him in distress if he had got the we could not even choose a nice outfit for
charger. We told him we had left a note on our deceased to wear. After the first ove-
his bag, trying to calm him down amidst rwhelming, cruel, impossible days, we
the chaos. Then, holding back the cry and were confused and scared. We lost track
trying to disguise the fear, we uttered one of time and everything else.
last and true “I love you” with a broken
A fear of looking at the pictures con-
voice. The cell phone was essential becau-
sumed us because they made us miss him
se we needed to follow his daily progress.
even more. We only watched TV shows
It was the only possibility. We believed in
disconnected from the country’s political
his cure, though it was unlikely.
and sanitary catastrophe. We didn’t want
Suddenly, like life had played a trick to read the newspapers or watch the news
on us, our beloved father passed away. sites because we were grieving, and our
We couldn’t even see him, touch him, or deceased ones were on the news. We were
caress him once more. also on the agenda.
Soon after his early departure, we They would advise us to keep the
started organizing his funeral. We subjec- good memories, trying to ease our suffe-
ted ourselves to unpleasant bureaucratic ring. We nodded in agreement. We were
and clumsy procedures to obtain his de- too tired to explain we couldn’t bring the
ath certificate, which we intended to fold good memories back. Not yet. We would
to avoid the words death and cause of be lucky enough if we could dream of our
death confronting us next to our beloved deceased ones and wake up with a smile.
father’s name.

20
But, at the same time, the good me- laugh at things amid chaos. In mourning,
mories assailed our thoughts day after we tend to personalize everything, and to
day, night after night, making us laugh do so is all too human. We personalize
shyly. Those good memories were weak things to the point of feeling disgusted
and shy, but genuine. by the alien laughter of those who do not
even know who we are, or our deceased
After a while, considering each per-
loved ones are.
son and family had their own perception
of time, we let the pictures take over the When the vaccine (overpriced or not)
house, the nightstands, and the walls. We was finally available for our age group
began to stare at the photos of our belo- and our loved ones’ group, we felt a mix
ved father for fear we would forget every of joy and anger. Unfortunately, most
detail, every feature of his face. We would of the deceased who had not had access
listen to and watch fondly all the videos to the vaccine, and others who had it,
the new technologies provided us. We did couldn’t avoid their tragic fate.
it not to forget the grimaces and, finally,
His shoes, which are still in the clo-
the voice that used to repeat our names
set, carried in their soles the paths of an
and nicknames with affection (sometimes
entire life that was prematurely interrup-
not so much).
ted. Now and then, aware or unaware, we
When we finally managed to stand were tempted to smell his perfume, whi-
up, although staggering and confused, ch is still on the shelf in the bathroom,
life denounced that, on the next working despite knowing the memory of his smell
day, we would need to change the owner- would make us cry.
ship of accounts, submit applications for
His absence also seemed to scream
pension benefits (once again, if we were
in WhatsApp groups. The WhatsApp mes-
lucky), arrange for inventories, and clo-
sage “he left” sounded violent! Why did
se bank accounts. And as if this were not
WhatsApp arbitrarily remove our beloved
enough, sometimes we were still surpri-
father from family and friends groups?
sed by an inconvenient call from a tele-
Once we had dried the tears and collected
marketer asking to speak to our deceased
the rage, we realized that maybe it would
father. We were, of course, indignant,
be better this way. It was hard to see he
thinking how they could not know he had
would never receive our messages again.
passed away.
Besides, removing him from the group
A chill would run down our spine would be less painful if we could take
when we entered a business establish- him with us somewhere else, perhaps in
ment in town and confronted people wi- our dreams.
thout masks, laughing. We would wonder
Yes, death is a present absence. An
if we should ask them to put on their
absence that speaks, screams, and cries.
masks, or if they would politicize even
What should we do when life, in its tor-
our grief and fear, or how they could still

21
tuous and uncertain ways, offered such cult, painful, and arduous the mourning
a tragedy, depriving us, so abruptly, of may be.
the solar physical presence of those we
Would we not suffer all over again
loved so much? How could our lives go
in exchange for living another day or
on? We felt as if a piece was missing. It
two with our dad? It seems to me that
would always be missing.
we would all experience the bitter taste
There’s no pain outside life. Death of grief many times to have the opportu-
imposes itself in the absence of those nity to give one more hug, cuddle once
who left. The departure of our beloved again, and argue one more time. And that
ones denounces the transience of life and is enough. Life can still be good, and if
the fact that one day, the last person on everything goes well, we will accumulate
Earth who could, at last, speak about us nostalgia for the people we love and leave
will also be dead. in these same people a nostalgia for who
we were, are, and will still be.[3]
We were under the impression that
we would grieve forever. And maybe we
would, indeed. [1] Pâmela Copetti Ghisleni is AVICO-BRASIL’s asso-
ciate legal advisor, grieving the loss of her father
In Grande Sertão: Veredas, the fa- in the (impossible) attempt to describe the pain of
mous writer from Minas Gerais, Guima- Brazilian mourners amid the Covid-19 pandemic.
rães Rosa, says that The flow of life wraps [2] Translated by Ana Karina Borges Braun e proo-
everything up. Life is like that: it heats up fread by Ananyr Porto Fajardo.
and cools down, tightens up and loosens [3] This open letter honors the victims of Covid-19
up, quiets down, and disquiets. What it and supports the bereaved. We read it on July 10,
wants from us is courage. So, we should 2021, in an act that honored the victims of the co-
have courage. May we resignify our exis- ronavirus, in the Amphitheater of the Praça da Re-
pública in Ijuí/RS, a city of 83 thousand inhabitants
tence and relationships, however diffi- that, to this date, had already lost 234 people to
covid-19.

22
23
“A pandemia desfez abruptamente o combinado, os planos e as expectativas
de futuro. Trouxe com ela, na mesma velocidade, a saudade e a falta. Uma
ausência tão espessa e encorpada que é quase possível tocá-la.”
Imagem de Freepik

24
Como falar dessa “faca cravada no peito”?
Por Monalisa Dias de Siqueira

“O luto é uma forma cruel de aprendi-


zado. Você aprende como ele pode
ser pouco suave, raivoso. Aprende como
vessamentos sociais e políticos: o núme-
ro estarrecedor de vítimas; os descasos,
negligências e negacionismos do governo
os pêsames podem soar rasos. Aprende federal frente a uma crise sanitária sem
quanto do luto tem a ver com palavras, precedentes; o medo da doença, de ou-
com a derrota das palavras e a busca das tras mortes e da situação financeira da fa-
palavras”. É assim uma das formas que mília. A sensação de injustiça; de que não
Chimamanda Ngozi Adiche [1] narra o são apenas números; de um futuro que
luto vivido pela morte do pai na pandemia não será como o planejado; de que nada
de Covid-19. A rapidez com que a vida se será como antes em suas vidas e de suas
torna outra após a morte, uma mudança famílias; de que a pandemia não possibi-
implacável, as tantas e novas camadas lita sequer viver o luto coletivo; de que as
que o luto expõe certamente fazem com pessoas amadas foram antes da hora, já
que o tempo do sentir e do pensar seja que o combinado era viver.
alterado. É nesse tempo que a luta com
A pandemia desfez abruptamente o
as palavras muitas vezes é travada e ela
combinado, os planos e as expectativas
precisa de espaço.
de futuro. Trouxe com ela, na mesma ve-
Acredito que construímos coletiva- locidade, a saudade e a falta. Uma ausên-
mente um espaço possível no grupo de cia tão espessa e encorpada que é quase
Escaneie o QR code apoio ao luto da Avico. Porque para falar possível tocá-la, que parece se materiali-
abaixo e ouça a de uma dor que é como a de um “nervo zar e se fazer presente em cada canto da
narração desse texto exposto” ou de uma “faca cravada no pei- casa, uma presença ausente.
to” é necessário um espaço “com muita
Às vezes as palavras vêm rápidas e
confiança”, “sem julgamentos”. Mesmo
abundantes, em outras é preciso caçá-las,
tendo dúvidas sobre “como pode ser bom
vencê-las entre pausas, choros e escuta.
falar sobre a dor”, ainda mais com “estra-
Mais cedo ou mais tarde elas vão se for-
nhos”, o grupo se dispôs a olhar para al-
mando e nos contam da tristeza de não
gumas das camadas da perda e encontrar
ter se despedido; da lembrança do últi-
palavras para dizê-las.
mo olhar ao entrar no carro; dos sorrisos;
A experiência do luto na pandemia daquele breve momento de arrumar as
de Covid-19 tem se mostrado ainda mais bolsas e mochilas com os pertences para
densa e complexa, tendo em vista os atra- ir ao hospital; do até logo pela chamada

25
de vídeo no celular cheio de esperança na orla do Guaíba; do tradicional molho
do retorno. Ao encontrar as palavras, elas de tomate da família; da cadeira vazia na
também nos revelam – como um segredo mesa na hora das refeições; dos altares de
que ninguém gostaria mais de guardar - santos e das plantas; das camisas preferi-
as incertezas, especialmente em relação das que não foram doadas e ficaram nos
a outras pessoas da família também hos- quartos materializando a ausência; das
pitalizadas ou vulneráveis; a desolação fotografias ainda difíceis de olhar; das
com a impossibilidade de realizar os ri- ligações telefônicas com palavras incen-
tos fúnebres; os desentendimentos fami- tivadoras tão importantes que deixaram
liares; o vazio ao voltar para casa. de existir; do nome da pessoa amada que
Nesse contexto, a casa ganha outra segue nos contatos telefônicos; das men-
dimensão. É nela onde a dor é mais inten- sagens de áudio de WhatsApp que ainda
sa, onde se busca abrigo ou se pode fugir se configuram como algo impossível de
da dura realidade, e é também onde as serem ouvidas novamente.
tentativas de reorganizar o cotidiano vão Os sonhos vão começar a compor
começar em algum momento. As tarefas esse rol de lembranças. É bom relembrá-
antes simples, vão exigir mais. Como ar- -los e contá-los. Às vezes eles parecem
rumar os armários, selecionar o que fica tão reais que confundem a própria rea-
e o que será doado, escolher se a urna lidade e chegam nesse espaço coletivo à
com as cinzas será guardada em casa ou espera de interpretação. Como as pessoas
se será levada aos lugares de afeto para amadas estão? O que queriam nos dizer
que as cinzas passam voar e se eternizar no sonho? Pareciam felizes, tristes, será
junto as águas, ao vento, as plantas ou as que sentem saudade também? Será que
pedras? seguem existindo em algum lugar e de lá
Infelizmente o luto faz isso conosco: olham e zelam por aqueles que ficaram
nos obriga a encarar a existência. Além aqui? Ninguém se sente apto a dar res-
disso, nos faz pensar na morte de outras postas, mas elas podem existir dentro de
pessoas (e na nossa), nos faz sentir a fra- cada um.
gilidade da vida. Ele faz com que todos Ao longo das semanas, ninguém é
os sentimentos possam conviver a um mais percebido como estranho, pelo con-
só tempo, como também nos confunde e trário, a familiaridade e conexão construí-
surpreende: como é possível sentir tanta da no grupo impressiona a todos. Alguns
raiva, chorar de dor e, em seguida, sorrir podem ser vistos como mais “fortes” ou
de alegria com uma breve lembrança? “práticos” para lidar com as novas de-
E por falar em lembranças, como elas mandas cotidianas, mas é notável o esfor-
vêm de repente, nos momentos mais im- ço de todos para sair de casa e resolver as
prováveis e sem pedir licença! Elas vêm, burocracias que dizem respeito a morte.
inclusive, a partir das lembranças dos Tudo isso é contado a partir das novas
outros: quando contam das caminhadas palavras que passam a fazer parte da ro-

26
tina: inventário, pensão, partilha de bens. çamos a trilhar um caminho para contar,
E com elas outras palavras e significados para fazer com que sigam vivas, pelo di-
que aos poucos vão sendo compreendi- reito à memória.
dos e compartilhados. Reconfigurações
familiares começam a tomar forma.
*Agradeço imensamente as/aos participantes do
Nesse espaço e tempo do luto que vi- Grupo de Apoio ao Luto da AVICO pelos três meses
vemos juntos, conhecemos homens e mu- que estivemos juntas/os. Cada encontro, às sextas-
lheres a partir das palavras dos que fica- -feiras, que trocamos tantos afetos foram funda-
mentais e reafirmaram a potência do coletivo nesse
ram. Narrativas fortes sobre como eram momento tão difícil. Sou grata pela confiança, por
pessoas apaziguadoras, mediadoras, “o compartilharem o desejo de registrar o que vivemos
pescoço da família” e descrições tão deta- e por autorizarem a publicação desse relato.
lhadas sobre seu modo de viver que eles **Monalisa Dias de Siqueira é pós-doutoranda em
passaram verdadeiramente a existir para Antropologia Social pela UFRGS e pesquisadora da
nós e é como se já os conhecêssemos há Rede Covid-19 Humanidades MCTI, no Projeto A
anos. E, felizmente, também conhecemos Covid-19 no Brasil: análise e resposta aos impactos
sociais da pandemia entre profissionais de saúde e
as que sobreviveram, ouvimos suas his- população em isolamento (Convênio Ref.: 0464/20
tórias de amor e suas dores, choramos e FINEP/UFRGS). Tem acompanhado a AVICO desde
rimos a cada encontro. seu surgimento em abril de 2021, em especial o GT
de Apoio ao Luto.
Ainda é difícil se confrontar com a
realidade que as pessoas amadas morre- [1] ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Notas sobre o luto.
São Paulo: Companhia das Letras, 2021. p. 14.
ram, de falar delas sem elas, mas come-

27
28
How to talk about this knife stuck on my chest
By Monalisa Dias de Siqueira[1],[2]

“G rief is a cruel kind of education.


You learn how ungentle mourning
can be, how full of anger. You learn how
face of an unprecedented health crisis;
the fear of disease and other deaths, and
the families’ financial situation. There
glib condolences can feel. You learn how are a lot of discomforts such as the fe-
much grief is about language, the failure eling of injustice, deaths seen just like
of language and the grasping for langua- numbers, the unplanned future, the ine-
ge.”[3] This is how Chimamanda Ngozi vitable changes in people’s lives and
Adiche[4] narrates the grief she experien- their families, the collective mourning
ced over her father’s death during the Co- made impossible, and the early death of
vid-19 pandemic. The speed with which loved ones.
life becomes different after death, a re-
The pandemic abruptly shattered
lentless change, and the many new layers
the agreement, the plans, and the expec-
that grief exposes alter the time for fe-
tations for the future. It brought with it,
eling and thinking. It’s when one wages
at the same speed, longing and absence.
the struggle with words and needs space.
Such a thick and full-bodied absence can
We collectively built a possible spa- be almost touched and seems to materia-
ce in Avico’s bereavement support group. lize and make itself present in every cor-
This is so because talking about a pain ner of the house, an absent presence.
that feels like an “exposed nerve” or a
Escaneie o QR code Sometimes the words come quickly
“knife stuck in the chest” requires a ne-
abaixo e ouça a and abundantly, but other times it’s ne-
cessary space with a lot of trust and no
narração desse texto cessary to hunt for them, and overcome
judgments. Even though they had doubts
them between pauses, crying, and liste-
about “how good it can be to talk about
ning. Soon we start to talk about the sad-
grief,” even more so with “strangers,” the
ness of not having said goodbye, the me-
group was willing to look at some of the
mory of the last look when getting into
layers of loss and find words to say them.
the car, the last smile, the brief moment
Mourning became even more dense of packing up the bags and backpacks to
and complex during the Covid-19 pande- go to the hospital, the hopeful goodbye
mic due to social and political crossings. through the video call on the cell phone.
These crossings are the staggering num- The right words also reveal to us – like
ber of victims; the federal government’s a secret that no one would like to keep
neglect, negligence, and denialism in the anymore – the uncertainties, especially

29
regarding other hospitalized or vulnerab- This list of memories also includes
le family members; the desolation for the dreams. It’s nice to recollect and talk
impossibility of performing the funeral about them. Sometimes they seem so real
rites; the family disagreements; the emp- that they are confused with reality and
tiness when returning home. arrive in this collective space waiting for
interpretation. How are the loved ones
In this context, home takes on another
doing? What did they want to tell us in
dimension, where the pain is more intense,
the dream? Did they seem happy or sad?
where one seeks shelter or escape from the
Do they miss us too? Do they continue to
harsh reality and attempts to reorganize a
exist somewhere and watch over and care
new beginning of daily life. Tasks that used
for those who stayed here? No one can
to be simple feel demanding. It becomes
provide answers, but they may exist wi-
hard to organize the closets, select which
thin each one of us.
belongings will remain and which will be
donated, and decide to keep the urn with Over the weeks, everyone is impres-
the ashes at home or take it somewhe- sed by the familiarity and connection of
re and let them fly away to the water, the the group. Some may seem “stronger” or
wind, the plants, or the rocks. “more practical” in dealing with the new
daily demands, but it’s remarkable how
Unfortunately, grief forces us to face
much effort everyone makes to leave
existence. Moreover, it makes us think
home and solve the bureaucracies con-
about other people’s deaths and our own
cerning death. The new words that beco-
and feel the fragility of life. It makes all fe-
me familiar to us, such as estate inven-
elings come together but also confuses and
tory, pension, and property division, tell
surprises us. Then we ask ourselves how it
us about this new reality. Family reconfi-
is possible to feel so much anger, cry with
gurations begin to take shape.
pain, and then smile at a memory.
The mourning space and time we sha-
It’s surprising how memories come
re lead us to meet men and women throu-
unexpectedly in the most improbable
gh their stories. Their strong narratives
moments! It happens when we talk about
about their role as mediators and appe-
the long walks by the Guaíba river; the
asers, as well as their way of life give us
traditional family’s tomato sauce; the
the impression that we have known them
empty chair at mealtime; the saint altars
for years. Fortunately, we also know tho-
and plants; the favorite shirt we kept; the
se who have survived, listen to their love
photos still hard to look at; the beloved
stories and pains, and cry and laugh at
person’s name in the phone contacts; the
every encounter.
phone calls with encouraging words and
the WhatsApp audio messages we will not It’s still hard to confront our loved
hear any more. one’s death and to talk about them wi-

30
thout them, but we have started on a path Project Covid-19 in Brazil: analysis and response to
to tell their stories, to make them live on, the social impacts of the pandemic among health
professionals and isolated population (Agreement
for the right to memory. Ref.: 0464/20 FINEP/UFRGS). She has accompanied
AVICO since its inception in April 2021, particularly
the Grief Support Work Group.
**I immensely thank the participants of AVICO’s
[2] Translated by Ana Karina Borges Braun and proo-
Grief Support Group for the three months we have
fread by Ananyr Porto Fajardo.
been together. Each meeting we had on Fridays,
where we exchanged so much affection, was funda- [3] Available at: https://www.newyorker.com/
mental and reaffirmed the power of the collective in culture/personal-history/notes=-on-grief#:~:text-
this difficult moment. I am grateful for their trust, Grief%20is%20a%20cruel%20kind,and%20the%20
for sharing the desire to record what we lived, and grasping%20for%20language. Accessed: 24 January
for authorizing the publication of this report. 2023.

[1] Monalisa Dias de Siqueira is a postdoctoral fellow [4] ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Notas sobre o luto
in Social Anthropology at UFRGS and a researcher [Notes on Grief]. São Paulo: Companhia das Letras,
at the Covid-19 Humanities MCTI Network in the 2021. p. 14.

31
Foto de Tânia Mainerz para o El País, 29/04/2021.

Paola Falceta posa tendo, na frente, o retrato de sua mãe, Italira.

32
A dona Italira que habita em mim
por Paola Falceta

M inha mãe era uma força da na-


tureza! De descendência italiana
(pai) e alemã (mãe), sempre foi uma mu-
dia que eu precisava de informação para
não sofrer, adoecer ou ter uma gravidez
indesejada. A mãe, ainda que tivesse uma
lher muito inteligente e de personalidade personalidade forte, e fosse dona de uma
forte e marcante. Quem a conheceu con- franqueza que algumas vezes passava
corda comigo. Tanto que todos os meus do limite da boa educação, era admirada
amigos que frequentavam a minha casa, pela família e seus amigos. Era muito difí-
enquanto eu morava com ela, a admira- cil passar incólume por sua presença!
vam muito! Minha tia Itália, professora
Assim como muitas relações entre
da UFRGS aposentada, sempre disse que
mães e filhas aconteceram conflitos entre
minha mãe era a mais inteligente da fa-
nós, mas geralmente nos dávamos muito
mília, porém muitas vezes tímida nesse
bem. E quando brigávamos não demora-
tema. Não conseguiu completar o ensino
va muito para que a relação voltasse a se
médio e teve que se dedicar aos filhos,
pois engravidou aos dezenove anos e o apaziguar. Na nossa família, composta de
casamento com meu pai foi “inevitável”. pai e mãe e sete filhos era impossível não
Ainda que meu pai conte rindo, que se de- haver conflitos. Então me desenvolvi nes-
pendesse somente da vontade dela talvez se ambiente onde se podia conversar so-
nem tivesse acontecido. bre tudo, no entanto às vezes era neces-
sário falar “gritando” para ser ouvido ou
Escaneie o QR code Minhas melhores lembranças de in- impor os nossos pensamentos de forma
abaixo e ouça a fância são recheadas de boas refeições mais incisiva. Éramos uma micro bolha
narração desse texto preparadas por ela ou de quando chega- da sociedade.
va uma encomenda do “circulo do livro”,
que minha irmã Vivianne era sócia, e nós Depois de muita terapia e conse-
abríamos felizes da vida com as novi- quente amadurecimento pude enxergar
dades literárias do mês. Já no início da “minha veia”, como pessoa e mulher. E o
minha adolescência, diferente da criação quanto foi difícil, na década de cinquenta,
dada aos meus irmãos mais velhos, dona ela ter casado grávida aos 19 anos e aos
Italira conversava comigo sobre qualquer 25 ter cinco filhos em sequência. Ter vivi-
assunto, colégio, amigos, minhas experi- do um casamento de mais 60 anos, cheio
ências e namorados. De forma objetiva, de altos e baixos, separações, retornos,
ela sempre me orientou como lidar com dificuldades de todos os tipos. Sobretu-
as minhas relações efetivas, pois enten- do uma paixão avassaladora que nunca

33
os permitiu separarem de forma perma- dela falecer eram as séries coreanas, tur-
nente. Certa vez ela me disse que queria cas, alemães, espanholas, norueguesas e
ter nascido na minha geração, pois teria dinamarquesas. Adorávamos descobrir
direito de escolha a uma carreira, não ter as diferenças de cultura e costumes de
tido tantos filhos e escolher manter-se ou cada uma. E mesmo “mais velhinha” mi-
não nas relações afetivas. Muitas vezes nha mãe gostava de uma série românti-
minha mãe reproduzia o machismo estru- ca, a sua última indicação foi para que
tural de nossa sociedade, mas se mara- eu assistisse “Virgin River”, que “eu me
vilhava com a liberdade de escolha que apaixonaria pelo Jack”! Acabei assistindo
eu e as netas podíamos exercer. Adorava essa série depois do seu falecimento e me
quando as minhas amigas Marion, Fernan- peguei chorando e trocando informações
da, Janaína, Jamile, e mais recentemente com ela em pensamento. Aliás, faço isso
Kyriê, Lidiana, Michelle, entre outras, que diariamente.
visitavam a nossa casa e compartilháva-
mos as nossas experiências de trabalho e Minha mãe sempre foi uma cozinhei-
afetos. Ela adorava ouvir as histórias de ra talentosa, porém crítica. Segundo ela,
vidas dos meus amigos e amigas. era difícil que chegássemos perto do ta-
lento dela na preparação da alimentação
Outra memória afetiva que tenho da nossa família. E apesar dela ter perdi-
dela tem relação com o amor que tinha do um pouco o “tesão” nesse fazer, ainda
aos livros, cinema e séries. Dividíamos a conseguia transmitir seu afeto nos mo-
mesma paixão, e me lembro das inúme- mentos que partilhava conosco. Mais re-
ras vezes que ela me pedia pra comprar a centemente, antes de chegar os finais de
coleção “Cavalo de Tróia”, de J.J. Benitez semana, ela sempre nos perguntava o que
e levasse pra ela ler, ou “As Crônica de gostaríamos de comer no sábado e domin-
Gelo e Fogo (da série Game off Thrones)” go, dias de elaborar uma refeição espe-
de George R. R. ou ainda que eu pedisse cial. E depois de sua partida deste plano,
emprestada a coleção do “Harry Potter” me peguei diversas vezes cozinhando um
da J. K. Rowling para Kátia Canani, minha sopão de legumes, uma massa com carne
amiga e ex-colega de trabalho, que tam- de panela ou ainda tomando um mingau
bém era uma leitora voraz. Durante muito de maisena com canela, chorando e rin-
tempo ela foi minha parceira de cinema, do ao mesmo tempo. Essa foi umas das
e acho que a última vez que a levei para formas que encontrei de mantê-la perto
uma sessão pipoca e filme foi para assis- de mim.
tir a “Saga dos Vingadores” da Marvel.
Com a idade avançando, ela não queria Há cerca de cinco anos, Dona Itali-
mais sair de casa e trocou a paixão pelo ra me ensinou a amar os gatos, e ambas
cinema pelas séries. Era muito fã da Ne- temos três felinos, sendo quatro destes
tflix e trocávamos toda a semana infor- da mesma ninhada. E essa é a maior falta
mações e impressões sobre novidades da que sinto dela, pois conversávamos todos
plataforma. Nosso último hobbie antes os dias pelo WhatsApp sobre os nossos

34
“filhotes” e suas travessuras. Nos divertí- ção pela covid-19, pra mim e toda a nossa
amos muito com nossos bichinhos! família, o legado que fica é: que a união
faz a dor menos insuportável. Fortaleci
Já hospitalizada, ainda que com
algumas lições que aprendi com ela no
medo de morrer, pois seu quadro de saú-
decorrer da nossa “caminhada”. Aprendi
de era bem grave, ela não deixou de ser
que toda a vida é única e importa muito.
divertida, autêntica e perseverante. Não
Que mesmo na dor, unidos em um cole-
se permitiu falar de morte e esmorecer.
tivo, somos potência, somos solidarieda-
Fez a amizade com as colegas de quarto
de, somos choro compulsivo, somos em-
coletivo, com as familiares e equipe de
patia, somos sorrisos, somos conforto,
enfermagem e médicos. A minha velhinha
resistência e luta. Mas aprendi, também,
foi muito guerreira! O processo de adoe-
que nenhum dinheiro e poder desse mun-
cimento pela covid-19 foi sofrido, solitá-
do valem mais que a nossa dignidade e
rio e deixou uma série de interrogações,
existência! E é com esse legado que me
mas escolhi que não resumiria a história
conecto a ela nos dias de saudades e con-
da minha mãe.
firmo um propósito a seguir.
Dona Italira me deixou muitas he-
ranças, mas nenhuma delas tem valor
*Paola Falceta, filha de Italira Suzana Falceta da Sil-
financeiro, todas têm valores morais, de va falecida em 02 de março de 2021 pela covid-19,
experiências e de afetos. Ainda que seus também é vice-presidente da Avico Brasil, assisten-
últimos dias de vida tenham sido inten- te social, defensora de direitos humanos e pesqui-
sos e tristes em decorrência de sua infec- sadora em saúde.

35
36
Dona Italira who lives in me
by Paola Falceta[1],[2]

M y mother was a force of natu-


re! She descended from Italians
and Germans, was intelligent, and had
prevent me from suffering, getting sick,
or getting an unwanted pregnancy. Despi-
te her strong personality and frankness,
a strong and striking personality. Those which sometimes surpassed the limits of
who met her would agree with me. Those politeness, she was admired by her fa-
friends who used to visit us when I still mily and friends. It was really difficult to
lived with her admired her a lot! My aunt pass unnoticed by her presence!
Itália, a retired professor at the Federal
Like many other mother-daughter re-
University of Rio Grande do Sul (UFRGS),
lationships, ours had its conflicts, but in
used to say my mother was the most in-
general we used to get along really well.
telligent person in the family but often
And it did not take very long for us to
shy on this subject. My mother could not
make it up after an argument. Conside-
finish high school because she had to de-
ring my parents had seven children, it was
dicate herself to her children, since she
impossible not having conflicts in such a
got pregnant at 19 years old. Therefore,
big family. Even though I grew up in an
getting married to my father was inevita-
environment where I was allowed to talk
ble, although he used to say, while lau-
about almost everything, sometimes I ne-
ghing, she would not have married if it
eded to shout to be heard or impose my
depended only on her will.
thoughts more forcefully. We were a tiny
My best childhood memories are fil- bubble of our society. After much thera-
led with good meals she used to prepare py and consequent maturing, I could see
or with receiving packages from the Book “my vein” as a person and woman. I could
Circle, which my sister was a member of, also understand how hard it was, in the
and which we would open happily to che- fifties, for her to get married pregnant,
ck the literary novelties of the month. In at nineteen, and have all her children in a
my early teens, differently from the way row until she was twenty-five. It was also
Dona Italira raised my older brothers, hard having lived a marriage for over 60
she would talk to me about everything, years, with ups and lows, splits, returns,
my school, friends, and boyfriends. In a and all kinds of difficulties. Above all,
very objective way, she always guided me they lived an overwhelming passion that
to deal with my love relationships, for never allowed them to be permanently se-
she believed getting information would parated. She once told me she wished to

37
have been born in my generation. Becau- festyles. And despite being an “old lady”,
se she would have had the right to choose she loved romantic series, and her last
a career, not to have so many children, suggestion was for me to watch Virgin
and whether to remain in emotional re- River. She said I would “fall in love with
lationships or not. My mother often re- Jack”! I ended up watching this series af-
produced the structural sexism of our ter her passing and crying while I exchan-
society, but she got really excited at the ged information with her in my thoughts.
freedom of choice that her daughter and I have been doing it every day recently.
granddaughter could experience. She lo-
My mother was talented but critical.
ved it when my friends Marion, Fernanda,
According to her, we could hardly cook
Janaína, Jamile, Kyriê, Lidiana, and Mi-
as well as she could. Despite her pleasure
chelle visited our house and shared our
in doing so, she could still pass on her
work experiences and affections. She lo-
affection in the moments shared with us.
ved to hear my friends’ life stories.
More recently, she asked us before the
Another fond memory I have of her weekend what we would like to eat on
has to do with her love for books, mo- Saturdays and Sundays when she would
vies, and TV series. We shared the same prepare delicious meals. After she passed
passion. She asked me countless times to away, I often caught myself cooking some
buy her the Trojan Horse collection by J. vegetable soup, pot roast with pasta, or
J. Benitez, or The Chronicles of Ice and cornstarch porridge with cinnamon while
Fire (from the Game of Thrones TV se- I cried and laughed simultaneously. That
ries) by George R. R. She also asked me was one of the ways I found to keep her
to borrow the Harry Potter collection by close to me.
J. K. Rowling from Kátia Canani. Kátia
About five years ago, Dona Italira
was my friend and former workmate, and
taught me to love cats, and each of us
also a voracious reader. For a long time,
had three cats. Of the total of six, four
my mother had been a movie partner,
came from the same litter. The moments
and I think the last time I took her to a
I miss her the most are when I remem-
popcorn and movie session was to wat-
ber the conversations we used to have on
ch The Avengers Saga. As she grew old,
WhatsApp every day about our “puppies”
she didn’t want to leave her house any-
and their tricks. We had a lot of fun with
more, and then she changed her passion
our pets!
from movies to TV series. She was a big
fan of Netflix, and we talked about our When she was in the hospital, even
impressions of new features on the pla- though she was afraid of dying because
tform every week. Our most recent hobby of her serious health condition, she ne-
before she passed away was the Korean, ver stopped being fun, authentic, and
Turkish, German, Spanish, Norwegian, persevering. She didn’t let herself talk
and Danish series. We loved to find out about death and discourage. She made
about the differences in culture and li- friends with her roommates in the collec-

38
tive room, their relatives, and the nursing power, solidarity, compulsive crying, em-
and medical staff. My old lady was such pathy, smiles, comfort, resistance, and
a warrior! Getting sick from covid-19 was struggle when we are together. But I have
painful and lonely and left a series of also learned that no money and power in
questions, but I have decided I would not this world are worth more than our digni-
summarize my mother’s history. ty and existence! And her legacy keeps us
connected in those days of longing and
Dona Italira left me many legacies,
confirms my purpose of going ahead.
but none has financial value. They all
have moral values of experiences and af-
fection. Although her last days were in- [1] Paola Falceta is Italira Suzana Falceta’s daughter,
tense and sad because of her covid-19 who died from covid-19 on March 2, 2021. Paola Fal-
infection, the legacy that remains is that ceta is the vice-president of Associação de Vítimas
e Familiares de Vítimas da Covid-19 [Association of
bonding makes the pain less unbearable. I Covid-19 Victims and Victims’ Family Members] –
have strengthened some lessons I learned AVICO Brasil, social worker, human rights defender,
along our path. I have learned every life and health researcher.
is unique and matters very much. I have [2] Translated by Ana Karina Borges Braun and proo-
learned that even in pain, we have more fread by Ananyr Porto Fajardo.

39
“E quanto mais falamos do filho amado, os laços indissolúveis tornam o plano
de voo algo que nunca cessará, pois olhar para o mundo é um exercício contínuo,
Imagem de DCStudio no Freepik

incessante. A essência do nosso Joaquim se mantém no destemor.”

40
A Força do Sublime e Puro Amor
por Dione Michels Sá de Souza

O amor é o sustento que nos ampara,


que nos embala na renovação da
força pessoal, cotidianamente. É o amor
ser o melhor piloto de aviões do mundo.
Transcrevo aqui essa carta, que tenho
guardada comigo, entre tantos outros tra-
que nos fortalece, inclusive diante da dor balhos escolares, os quais sempre cuidei
pela partida nosso filho único, que aos 29 com muito carinho.
anos nos deixou fisicamente, em 28 de ja-
“Deus,
neiro de 2021, na pandemia de Covid-19.
Eu gostaria de perguntar a Deus se eu
Não, não existe como superar a per-
poderia ser alguém de futuro.
da do filho, não existe como pensar ou
se preparar para enfrentar tamanha dor, Sobre meus medos, eu queria falar a
mas o amor inesgotável é o instrumento Deus que eu tenho medo de muitas coi-
para lidar com a ausência. O exercício de sas.
ver o mundo através do olhar nobre, for-
Meus sonhos, é que eu tenho muito
te e destemido do nosso amado filho Jo-
sonhos para contar a Deus, milhões de
aquim, nosso Quinzinho, é um acalanto.
sonhos.
Nosso lindo anjo que Deus nos con-
Eu só tenho um desejo, me tornar o
fiou a existência, nos mostrou a impor-
melhor piloto de avião do mundo e do
tância de realizar sonhos. O ímpeto des-
universo também. É esse o desejo que eu
Escaneie o QR code bravador sempre foi a sua bússola, pois
queria contar a Ele.
abaixo e ouça a desde pequeno nosso filho escolhia quais
seriam os seus desafios e os superava. Ele Joaquim”.
narração desse texto
se tornou expert em tudo em que deseja- E assim aconteceu quando, de volta
va. Para ele, não havia fronteiras que não ao Brasil, se dedicou aos estudos e fez to-
pudessem ser superadas. dos os cursos para ser um grande piloto.
E foi assim que aos 16 anos ele foi Conquistou amigos, cresceu na profissão,
estudar fora do país. Fez o terceiro ano era admirado pelos colegas.
do ensino médio no Estados Unidos, em Quando foi chamado para voar trans-
busca do seu maior sonho, aperfeiçoar portando pacientes contaminados pela
o idioma, que seria fundamental para a Covid-19, não hesitou. Fez dezenas de
profissão escolhida: aos 8 anos contou a voos, sempre muito responsável, ajudou
Deus, em uma cartinha, que gostaria de a salvar incontáveis vidas. Até a fatídica

41
notícia chegar: “mãe, fui contaminado, netos! Em dezembro de 2020, ele convi-
não consegui escapar, um colega de tra- dou a namorada para morar em SP, fez
balho que também estava contaminado um contrato de união estável, e juntos ti-
passou Covid pra mim!”. nham os sonhos de todo o casal jovem:
comprar um apartamento, ter filhos, via-
Foi assim que recebemos a notícia.
jar... todos os sonhos foram interrompi-
No início a preocupação, que logo se
dos, inclusive o projeto de que fôssemos
transformou em desespero, quando a si-
morar perto dele, o que já era quase uma
tuação dele se complicou, quando houve
realidade.
atraso no atendimento, quando foi inter-
nado na UTI e teve o pulmão perfurado... Hoje somos pais enlutados, nossos
logo tudo se complicou mais ainda, até o sonhos foram desfeitos.
fatídico dia em que ele não resistiu e nos
Sabemos que ele vive, e viverá para
deixou para sempre.
sempre na memória e no coração de to-
E quanto mais falamos do filho ama- dos que o amam.
do, os laços indissolúveis tornam o plano
O amor vencerá a morte!
de voo algo que nunca cessará, pois olhar
para o mundo é um exercício contínuo, Sua mãe, Dione
incessante. A essência do nosso Joaquim
Seu pai, Joaquim
se mantém no destemor, sempre com a
vontade imensa de desbravar o mundo Te amaremos para todo o sempre!
com a coragem ilimitada, esse é o legado
indiscutível a honrar.
*Dione Michels Sá de Souza, 64 anos, advogada apo-
Joaquim, nosso filho único, também sentada, mãe enlutada de Quinzinho – Joaquim Ai-
tinha o sonho de construir a família dele, res Sá de Souza, 29 anos, piloto de avião da empresa
Prevent Sênior. Casada com Joaquim Aires de Souza,
ter filhos, poder nos dar os tão sonhados
75 anos, e residentes em Ilhéus – Bahia.

42
The power of sublime and pure love
By Dione Michels Sá de Souza[1],[2]

L ove is the sustenance that embraces


and cradles us in the daily renewal
of personal strength. It’s love that stren-
with me among so many other school pa-
pers which I have taken care of with great
affection.
gthens us, even in the face of grief for
“Dear God,
the departure of our only son, who left us
physically on January 28, 2021, at the age I want to ask you if I could be some-
of 29, in the Covid-19 pandemic. body in the future.
There’s no way to overcome the loss About my fears, I would like to tell
of a son, to think or be prepared to face you I’m afraid of so many things.
this pain, but endless love is the tool
I have so many dreams to tell you,
to deal with such absence. The exercise
millions of them.
of seeing the world through the noble,
strong, and fearless eyes of our beloved I only wish to become the best pilot
son Joaquim, our Quinzinho, is soothing. in the world and the universe. I just wan-
ted to tell You this.
The beautiful angel God entrusted us
with showed us the importance of making Joaquim”
dreams come true. His pioneering impe- When he returned to Brazil, he de-
tus used to be his compass. From the dicated himself to his studies and took
time he was a child he would choose his all the courses to become a great pilot.
challenges and surpass them, becoming He made friends and achieved profes-
an expert in everything he aimed. For sional growth and the admiration of his
him, there were no boundaries that could workmates.
not be overcome by him.
When the company called him to fly
And that’s why he went abroad to stu- transporting patients contaminated by
dy when he was sixteen. He did his third- Covid-19, he didn’t hesitate. He made
-grade high school in the United States to dozens of flights, always with great res-
achieve his greatest dream of improving ponsibility, and helped save countless
his language skills and succeeding in his lives until the fateful news came: “Mom,
future career. When he was eight, he wro- a workmate who was infected passed on
te a letter to God telling Him he would Covid-19 to me!”
like to become the best pilot in the world.
Below, I transcribe the letter I have kept This is how we received the news. At

43
first there was concern which soon tur- dreams as every young couple: buying an
ned to despair when his situation became apartment, having children, and trave-
more serious, when there was delays in ling. But all these dreams were interrup-
his treatment, when he was admitted to ted, including our project of living near
the ICU and had his lung punctured. Soon them, which was already almost a reality.
everything became even more complica-
Now we are bereaved parents, with
ted until the fateful day when he couldn’t
shattered dreams.
resist and left us forever.
We know he still lives and will live fo-
And the more we talk about our belo-
rever in the memory and hearts of those
ved son, the more the indissoluble bonds
who love him.
make the fight plan into something that
will never cease because looking at the Love will defeat death!
world is a continuous, relentless exerci-
You mom, Dione,
se. The essence of our Joaquim remains
in his fearlessness, his constant will to Your dad, Joaquim,
break new ground with unlimited coura- We’ll love you forever!
ge, and his unquestionable legacy to ho-
nor.
[1] Dione Michels Sá de Souza is 64, a retired lawyer
Joaquim, our only child, also had the
and Quinzinho’s bereaved mother – Quinzinho or
dream of building his family, having his Joaquim Aires Sá de Souza was 29, and an airline
children, and being able to give us the pilot for Prevent Sênior Company. She is married to
much-desired grandchildren! In Decem- Joaquim Aires de Souza, 75. They live in Ilhéus –
Bahia.
ber 2020, he asked his girlfriend to move
to São Paulo to live with him and made a [2] Translated by Ana Karina Borges Braun and proo-
stable union contract. They had the same fread by Ananyr Porto Fajardo.

44
45
Foto de Alex Dukhanov na Unsplash

“Mas, milagrosamente, o tempo mudou e quando ninguém esperava, já


estava chovendo, isso no verão nordestino em um período de estiagem. Deus
providenciou chuva para mostrar que é somente nele que devemos confiar.”

46
Estrada nova
Por Adalberto Oliveira

O ano de 2021 foi muito triste para


toda nossa família, pois perdemos,
de forma trágica, uma pessoa impor-
Após um ano de licença médica e
no aguardo de resultados científicos
no combate ao Vírus da Covid 19, Bena
tantíssima para todos nós: FRANCISCA ainda esperava por uma vacina que não
ADALBENE OLIVEIRA SILVA, que não era chegava. Enquanto outras nações davam
só minha irmã, ela era inspiração para prioridade na imunização do seu povo, os
todos que a conheciam. Com apenas 41 brasileiros faziam “arminhas” com a mão
anos e inúmeras vitórias, Bena, como era e gritavam “Mito”.
chamada carinhosamente por seus pa-
A chegada da vacina era a melhor no-
cientes, amigos e familiares, era mãe de 2
tícia que poderíamos receber e finalmen-
meninas lindas, sendo Eduarda Larissa a
te ela veio, embora de forma lenta, sem
mais velha e Maria Fernanda de 7 aninhos
muitos detalhes sobre sua eficácia em
a filha caçula. Bena era sinônimo de su-
pacientes com comorbidades. Mas veio.
peração, estava sempre disposta a ajudar.
Beninha vacinou-se, tomou as duas doses
Era concursada como Agente de Saúde há
nos períodos indicados pelo Ministério
mais de 15 anos. Como era como porta-
da Saúde. Seu organismo não reagiu e ela
dora de diabetes, automedicava-se 3 ve-
não sentiu nenhuma reação. Ela carregava
zes ao dia com insulina; sofria de asma,
dentro de si esperança e confiança: dizia
síndrome do pânico, depressão, ansieda-
nos quatro cantos por onde passava que
de, hipertensão e um problema cardíaco
Escaneie o QR code agora estava imunizada e voltaria a tra-
decorrente das inúmeras vezes que este-
abaixo e ouça a balhar, mas somente eu sabia o quanto
ve em crises. Em 2019 foi diagnostica-
narração desse texto sua felicidade poderia trazer de tristeza
da com fibromialgia, mas não esmoreceu
para todos nós. Inclusive, a alertei e pedi
e continuou trabalhando até o início da
até, pelo amor de Deus, para ela não acei-
pandemia, período em que foi afastada
tar o retorno das visitas domiciliares que
de suas atividades laborais. Mesmo afas-
ela teria que fazer como agente de saúde.
tada das visitas domiciliares e bastante
Entretanto, o perito que a atendeu permi-
debilitada, sua rotina de trabalho não pa-
tiu seu retorno e lá foi ela de encontro ao
rou: visitava vizinhos acamados, realiza-
vírus, um vírus maldito, extremamente
va atendimento via celular e cuidava dos
violento e alimentado por uma nação hi-
afazeres da casa, sempre com um belo
pócrita, que segue sem pensar em alguns
sorriso e palavras de conforto. Assim era
líderes políticos ou religiosos.
Bena.

47
Minha irmã foi infectada na primei- para ela, mas Bena pediu-me, pelo amor
ra semana do seu retorno ao trabalho. Na de Deus, para que eu não fizesse isso. E
verdade, na minha família foram 9 infec- escutei essa frase da boca dela: “Eu me
tados ao mesmo tempo. Ela, com todas entrego nas mãos de Deus, o que tiver que
as comorbidades que carregava, passou ser, será”. E então me pediu para levá-la
uma semana com sintomas gripais. Ainda para casa. Entramos no carro e seguimos
sem acreditar no perigo que estava cor- até a sua residência; foi a última vez que
rendo, mesmo com alguns sintomas da eu vi minha irmã. Lá chegando, ela desceu
infecção viral, dispunha-se a ajudar aos do carro já fraquejando, sendo auxiliada
familiares também infectados. Mas eu sa- por minha esposa Eline, que nos acompa-
bia que a coisa ia ficar incontrolável. Mi- nhava desde às 7:00 horas da manhã; já
nha irmã procurou o hospital local (UPA), era mais de 2:00 horas da tarde. Fui para
fez alguns exames, mas a situação só se casa aflito e desesperado, não consegui
agrava. O hospital estava superlotado. Foi relaxar. À noite, praticamente não dormi,
aí que a convenci a fazer uma tomografia lembrando do sofrimento da minha ama-
dos pulmões, mesmo que para isso tivés- da irmã.
semos que nos deslocar para uma cidade
Na madrugada, Bena não aguentava
vizinha, pois em Morada Nova, Ceará, de
mais e pediu ajuda ao nosso sobrinho Vi-
onde somos filhos, não existia esse exa-
nícius para levá-la para a UPA. Chegan-
me, nem na rede particular. Muitos hos-
do lá, foi colocada em uma cadeira hos-
pitais estavam superlotados e as pessoas
pitalar e permaneceu por 48 horas nessa
estavam morrendo diariamente, diversos
cadeira por falta de leitos. Eu não me
sem tempo nem mesmo de chegar aos
conformava com aquela situação e pedi
hospitais. Era esse o cenário que nos en-
ajuda nas redes sociais, liguei para vere-
contrávamos, no início de abril de 2021.
adores e até para um deputado em bus-
Após retornamos de Limoeiro do ca de ajuda para minha irmã. Mas nada
Norte com o resultado do exame, com- aconteceu. No dia seguinte, recebemos a
provando que 50% dos seus pulmões notícia que havia uma vaga disponível de
estavam comprometidos, ainda tivemos UTI no Hospital Regional de Quixeramo-
que escutar da médica plantonista da UPA bim, que fica há mais de 100 quilômetros
(Unidade de Pronto Atendimento) de Mo- de distância de Morada Nova, Ceará. Mas
rada Nova, Ceará, que não havia sequer era uma esperança e confesso que até me
uma cama para a colocar. Mesmo ela, uma alegrei. Como Bena já estava bastante de-
profissional da área da saúde que ajudou bilitada de tanto sofrer, os médicos do
a salvar tantas vidas, foi mandada para SAMU decidiram que, mesmo ela estando
acabar de morrer em casa, por falta de consciente, para sua transferência ocor-
um leito de enfermaria para recebê-la. E rer bem, teriam que entubar a paciente.
assim fizemos: fomos para casa. Lembro- Conversaram com os familiares e explica-
-me muito bem que eu até iria entrar lá ram a situação para Bena que, sorrindo e
naquele hospital e brigar por uma vaga serena, aceitou o procedimento.

48
Todos nós estávamos esperançosos, era considerada por seus vizinhos; a Tia
só não contávamos com mais um proble- Bena estava morta, sem a permissão nem
ma em sua transferência. Após a saída da mesmo para ser velada, dadas as circuns-
ambulância do SAMU da UPA com destino tâncias do momento pandêmico em que
a Quixeramobim, em alguns minutos mi- vivíamos. Foi o dia mais triste de toda mi-
nha irmã mais velha, Francisca Maria, que nha vida; enterrar minha irmã às pressas,
estava trabalhando, recebeu uma ligação em um dia de sol escaldante. Mas, mila-
de uma enfermeira que estava acompa- grosamente, o tempo mudou e quando
nhando a paciente Bena. A enfermeira pe- ninguém esperava, já estava chovendo,
diu a presença de minha irmã mais velha isso no verão nordestino em um perío-
na UPA, dizendo que a ambulância que do de estiagem. Deus providenciou chu-
havia levado Bena teve que retornar, após va para mostrar que é somente nele que
os profissionais de saúde identificarem a devemos confiar, que os homens aqui na
ausência de oxigênio no equipamento da terra são falhos, que a perfeição somen-
ambulância. Assim, corremos todos para te ele é capaz de produzir. E aqui estou,
o Hospital, mas quando lá chegamos re- triste, desolado, pensativo e revoltado,
cebemos a triste notícia que, após várias mas ao mesmo tempo sereno e confiante
paradas cardiorrespiratória, Bena havia no poder de Jesus Cristo para conseguir
falecido, deixando para trás sua família superar e seguir vencendo, trabalhando
desesperada, amigos e parceiros de tra- e levando o legado de minha irmã ADAL-
balho desolados, por saberem que não BENE que sempre falava: “ajudar a quem
mais teríamos em nosso meio aquela lin- precisa é praticar o amor incondicional”.
da mulher, que brilhava e inspirava todos Morada Nova, Ceará, 30 de setembro 2021.
que a conhecia.
*Sou Adalberto Oliveira, neto e filho de agricultores
Estava ali, dentro de um saco tér- de Morada Nova, no Ceará. Sou mais uma vítima da
mico, em um caixão lacrado o corpo de exclusão social governamental que condena, sem
direito à defesa, os mais fragilizados à morte, bem
FRANCISCA ADALBENE OLIVEIRA SILVA: fi-
como condena os seus familiares ao luto eterno.
lha, mãe, esposa, amiga, irmã e tia, como

49
50
A new road
By Adalberto Oliveira[1],[2]

2 021 was such a sad year for our


family because we lost, in a tragic
way, our dear FRANCISCA ADALBENE OLI-
nization of their people, Brazilians made
gestures as they were shooting and called
the president Mito [Myth].
VEIRA SILVA. She was my sister and an
The arrival of the vaccine was the
inspiration for everyone who knew her.
best news we could have received. When
Bena, as we called her affectionately, was
it finally arrived, we did not have many
only 41 and had two beautiful daughters.
details about its efficacy in patients with
The oldest is Larissa, and the youngest
comorbidities. But it came. Bena was vac-
is Marina Fernanda. Bena would always
cinated with the two doses prescribed by
overcome her challenges and would alwa-
the Ministry of Health. Her body didn’t re-
ys be willing to help. She had worked as
act and didn’t feel any reaction. She car-
a Community Health Worker for over 15
ried hope and confidence within herself:
years. Bena suffered from diabetes, asth-
she used to say everywhere she went that
ma, panic disorder, depression, anxiety,
she was immunized and would return to
hypertension, and a heart condition re-
work. But only I knew how much sadness
sulting from her countless crises. In 2019
her happiness could bring to all of us. I
she was diagnosed with fibromyalgia, but
even warned her and even asked her, for
she didn’t give up and kept working until
God’s sake, not to accept to go back to
the pandemic began, when she had to wi-
the home visits that she should do as a
thdraw from her professional activities.
community health worker. However, the
Even though she was away from home
specialist who cared for her allowed her
visits and quite weak, her work routine
to return to work. Then she met a cursed
didn’t stop: she visited bedridden nei-
and deadly virus fed by a hypocritical
ghbors, assisted them via the cell pho-
nation that follows some political or reli-
ne, and did the housework, always with
gious leaders without thinking.
a beautiful smile and words of comfort.
That’s the way Bena was. My sister was infected within the
first week upon her return to work. Nine
After a year of medical leave and
of my family members were infected at
waiting for scientific results in the fight
the same time. Despite all the comorbi-
against the Covid-19 virus, Bena was still
dities she carried, she spent a week with
waiting for a vaccine that didn’t arrive.
flu-like symptoms. Even so, she didn’t
While other nations prioritized the immu-
believe the danger she was in and was

51
willing to help her infected family mem- At dawn, Bena could not stand the
bers. But I knew things would get out of suffering any longer. Then she asked our
control. My sister went to the local in- nephew Vinícius to take her to the UPA.
termediary hospital (UPA) and did some After they arrived there, she remained in a
tests, but the condition worsened. The hospital chair for 48 hours due to the lack
hospital was overcrowded. Then I convin- of beds. Then I decided to ask for help on
ced her to make a lung CT scan. We had social networks. I called councilmen and
to go to a neighboring city because the- even a congressman to help my sister.
re were no tests, not even in the private But nothing happened. The next day we
network, in Morada Nova, Ceará, our ho- were told there was an available ICU pla-
metown. At the beginning of April 2021, ce in the Regional Hospital of Quixeramo-
many hospitals were overcrowded. A lot bim, which is over 100 kilometers away
of people died every day before entering from Morada Nova. But there was hope,
the hospitals. and I confess it made me happy. As Bena
was already very weak from so much su-
After we returned from Limoeiro do
ffering, the SAMU [urgent transportation
Norte with the test results proving that
service] doctors decided that, even thou-
50% of her lungs were compromised, we
gh she was conscious, they would have
still had to hear from the doctor on duty
to intubate her to transfer her well. They
at the UPA in Morada Nova, that there was
talked to the family members and explai-
not even a bed for her. Therefore, even
ned the situation to Bena. She smiled and
after having saved so many lives, they
calmly accepted the procedure.
sent her home to die. And so we did: we
went home. I remember very well that I We were hopeful and didn’t count on
was going to that hospital and fight for a one more problem in her transfer. After
place for her, but Bena asked me, for the the SAMU ambulance left towards Quixe-
love of God, not to do that. And I heard ramobim, my older sister, Francisca Ma-
her saying that she would place herself in ria, who was at work, received a call from
God’s hands because whatever had to be, a nurse. The nurse asked my older sister
would be. And then she asked me to take to go to the UPA, saying the ambulance
her home. We got in the car, and I drove had had to come back because the heal-
her home. It was the last time I saw my th providers had identified the lack of
sister. When we arrived at around 2 p.m., oxygen in the ambulance equipment. So,
she got out of the car, already weak, and we all rushed to the hospital. When we
my wife Eline helped her. We had spent arrived there, we received the sad news
the whole day together since 7 a.m. I that, after several cardiac arrests, Bena
went home distressed and desperate, and had died. She had left us. Her family was
I could not relax. At night, I hardly slept, desperate. Her friends and work partners
thinking about how much my beloved sis- were desolate. We would no longer live
ter had been suffering. with that beautiful woman who shone
and inspired everyone who knew her.

52
There she was, inside a thermal bag, confident in the power of Jesus Christ to
in a sealed coffin. FRANCISCA ADALBENE overcome and keep on winning, working,
OLIVEIRA SILVA was a daughter, mother, and carrying on the legacy of my sister
wife, friend, sister, and aunt, as her nei- ADALBENE, who always said that helping
ghbors considered her. Bena was dead, those in need is practicing unconditional
not even allowed to be buried, given the love.
circumstances of the pandemic we were
Morada Nova, Ceará, September 30th,
living. It was the saddest day of my life,
2021.
for I had to bury my sister in haste on
a scorching sunny day. But miraculous-
ly, the weather changed, and suddenly it [1] I’m Adalberto Oliveira, grandson and son of far-
started to rain in the Northeastern sum- mers from Morada Nova, in the state of Ceará. I’m
another victim of the governmental social exclusion
mer dry period. God provided rain to that condemns the weakest to death, and their re-
show us He is the only one to be trusted, latives to eternal grieve, without the right to a de-
that we are flawed, and only He is perfect. fense.

And here I am, sad, thoughtful, and [2] Translated by Ana Karina Borges Braun and proo-
angry. On the other hand, I’m serene and fread by Ananyr Porto Fajardo.

53
Foto de Cícero Bezerra para o site da APIB https://apiboficial.org/2021/09/07/nossa-voz-e-a-resistencia-4-mil-mulheres-indigenas-ocupam-brasilia-no-dia-7-de-setembro/

54
em Brasília (DF).
Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade
(Anmiga) para a II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, no ano de 2021
Sobre uma e tantas mortes
Por Patrice Schuch

M inha mãe morreu num 07 de se-


tembro. De súbito. Feriado nacio-
nal, foi um dia silencioso. Eu estava em
A sensação era de que a minha mãe ain-
da tinha muito a viver, mas a pressa da
morte nos encheu de escuridão, tristeza e
casa com Luísa, minha filha, então com 3 desamparo. Em mim, esse sofrimento não
anos. Em minha pressa para ir ao hospi- desapareceu, mas convive com as boas
tal, fui parada por Luísa, que pediu para lembranças de uma vida de amizades,
ir junto, “ver a vovó”. Mas nunca mais a de sorrisos e de cuidado. Virou saudade:
viu, apesar da minha insistência ao pé de uma “solidão acompanhada”, como defi-
ouvido de minha mãe, desacordada e já niu poeticamente Pablo Neruda[1]. Com a
sem chances de qualquer vida. Naque- saudade, veio também o acolhimento da
le momento, pedi para ela voltar, disse finitude que me atravessa – e a todos nós.
que a esperávamos para fazer um bolo de Afinal, é porque morremos que a vida, os
chocolate, daqueles que só ela mesma sa- afetos e a procura do outro tem sentido.
bia fazer, daqueles que nós adorávamos. Pensemos nos mortos, então.
Lembro, depois do velório, de ir à casa
***
dos meus pais. Foi lá que comi a ambrosia
feita um dia antes por minha mãe, uma “O que morre quando as pessoas
delícia que ela tinha aprendido a fazer morrem? O que existe e resiste quando
com a minha avó, mãe dela. Era uma re- os mortos são lembrados? Qual é o lugar
ceita de família, daquelas que todo mun- da morte na vida dos que sobrevivem?”
Escaneie o QR code do tem uma, mas enfeita para ser a sua. A Essas questões animam o vídeo “Evoca-
abaixo e ouça a dela, de minha mãe, naquele dia, em cada ção”, produzido por um coletivo de an-
narração desse texto colher que eu degustava tinha a certeza tropólogas e antropólogos para home-
de ser única. A única e a última. nagear e honrar os mortos do Brasil de
2020[2]. Mortos da violência. Mortes da
Minha mãe não morreu de Covid-19,
indiferença. Mortes do preconceito. Mor-
mas em decorrência de uma trombose.
tes da intolerância. Mortos da pandemia
Morreu também sem ar, não por um vírus,
da Covid-19:
mas por um trombo. A dela, uma doença
silenciosa que pegou todos nós, a família, “Mortes classificadas como naturais
em desaviso. Por algum tempo, pensamos que poderiam ser adiadas, mortes iden-
sobre a inevitabilidade de sua morte, ten- tificadas como violentas que deveriam
tando descobrir como poderia ter sido ser evitadas. Mortes morridas e mortes
evitada, postergada, preterida. E se (...)? matadas, vidas interrompidas pela into-

55
lerância, atingidas pela indiferença, ame- ce a II Marcha das Mulheres Indígenas,
açadas pela ignorância. Morrer que trans- cujo tema é: “Reflorestando mentes para
forma a própria morte ao mostrar que a a cura da Terra”. No manifesto lançado
vida não tem um só fim. Viver que se ma- pela Articulação Nacional das Mulheres
nifesta nos encantamentos de honra aos Indígenas Guerreiras da Ancestralidade,
mortos e faz do nascer e morrer lutas, escrevem:
parte de caminhos que se cruzam em si”
“Estamos em busca da garantia de
(Evocações, 2020).
nossos territórios, das que nos antecede-
Mortes que provocam lutos e lutas. ram, para as presentes e futuras gerações,
Lutas que eternizam nomes, rostos, cor- defendendo o meio ambiente, este bem
pos, sabores, cheiros e memórias das comum que garante nossos modos de
pessoas que deixam saudade. Lutos que vida enquanto humanidade. Para além de
inscrevem politicamente as mortes que mero recurso físico é igualmente morada
se acumulam – até setembro de 2021, de espíritos das florestas, dos animais e
já eram mais de 580.000. Mortes que in- das águas da vida como um todo, fonte
terrogam sobre sua inevitabilidade. E se de nossos conhecimentos ancestrais”[3].
houvesse um programa eficaz de distan-
Nessa política da coexistência posta
ciamento social? E se houvesse uma po-
em prática pelas guerreiras da ancestrali-
lítica de testagem? E se houvesse vacina
dade, entrelaçam-se mortes e vidas, lutos
mais cedo? E se houvesse infraestruturas
e lutas. As mortes tornam-se perdas que
econômicas, sociais e de saúde adequa-
abrem espaço para novos caminhos, proje-
das para o enfrentamento da pandemia? E
tos, solidariedades. Um reflorescer. Talvez
se, para muitos, importasse uma e tantas
seja essa a mensagem que importa para
mortes? Se a morte pode evocar a vida, o
hoje. Flores-Ser. Quem sabe, esse movi-
genocídio não. Ele fala apenas de destrui-
mento nos leve à criação de um novo pas-
ção do outro. Da violência. Da eliminação
sado. Oxalá, à invenção de um futuro an-
da palavra. Do terror.
cestral. Nenhuma morte terá sido em vão.
***
Escrevo esse texto em 07 de setem- * Patrice Schuch é doutora em antropologia social,
bro. Estamos em 2021. Feriado nacional, professora do Programa de Pós-Graduação em An-
é um dia barulhento. De madrugada, ado- tropologia Social da UFRGS e pesquisadora do Proje-
to “A Covid-19 no Brasil: análise e resposta aos im-
radores do presidente Jair Bolsonaro – em pactos sociais da pandemia entre profissionais de
sua maioria brancos e de camadas mé- saúde e população em isolamento” (Convênio Ref.:
dias da população brasileira - invadiram 0464/20 FINEP/UFRGS) desenvolvida pela Rede Co-
a Esplanada dos Ministérios, desejando a vid-19 Humanidades MCTI. Email: patrice.schuch@
gmail.com
derrocada da democracia. A partir da vio-
lência e do medo, acionam a morte como
um espetáculo do extermínio do outro. [1] “Saudade. Saudade é solidão acompanhada, é
Em contraposição, perto dali, aconte- quando o amor ainda não foi embora, mas o ama-

56
do já… Saudade é amar um passado que ainda não passar pela vida e não viver. O maior dos sofrimen-
passou, é recusar um presente que nos machuca, é tos é nunca ter sofrido. (Pablo Neruda).
não ver o futuro que nos convida… Saudade é sen-
tir que existe o que não existe mais… Saudade é o [2] O vídeo “Evocação” (2020) foi apresentado no
inferno dos que perderam, é a dor dos que ficaram 32 Reunião Brasileira de Antropologia, realizada em
para trás, é o gosto de morte na boca dos que con- novembro de 2020 e pode ser acessado, juntamente
tinuam… Só uma pessoa no mundo deseja sentir com a sua ficha técnica, a partir do seguinte link:
saudade: aquela que nunca amou. E esse é o maior https://expo.abant.org.br/evocacao/
dos sofrimentos: não ter por quem sentir saudades, [3] Sobre isso, ver: https://anmiga.org/marcha-das-
-mulheres/

57
58
About one and so many other deaths
By Patrice Schuch[1],[2]

M y mother died on September 7th.


She died suddenly. It was a natio-
nal holiday, and it was a silent day. I was
how it could have been avoided, postpo-
ned, or turned down. And if (...)? We felt
like my mother should have lived much
at home with Luísa, my three-year-old longer, but her sudden death brought us
daughter. Although I were in a hurry to go darkness, sadness, and helplessness. My
to the hospital, I had to slow down when suffering hasn’t disappeared, but it still
Luísa said she wanted to go with me to lives with the good memories of her abili-
see her granny. But she would never see ty to make friends, smile, and take care of
her granny again, despite my insistence people. My sorrow has changed into lon-
in trying to wake her up when I saw her ging, into an “accompanied loneliness’,
lying on the bed without any chance of according to Pablo Neruda.[3] This lon-
surviving. At that moment, I asked her to ging made me aware of the feeling of our
come back. I told her we would wait for finitude. After all, death gives life a sen-
her to come and see us and make the cho- se of affection, searching, and meaning.
colate cake only she could make, the one Let’s think about death, then.
we loved so much. I remember going to
***
my parents’ house after the wake. Then I
ate some ambrosia my mother had made “What dies when people die? What
the previous day. It’s a delicious dessert exists and resists when we remember the
made with eggs, milk, lime, and sugar she dead? Where is the place of death in the
had learned from her mother. It was the lives of those people who survive?” These
usual family recipe with personal chan- are questions from the vídeo “Evocação”
ges to give it a personal touch. That day [Evocation], produced by a collective of
her ambrosia was the only and the best anthropologists to honor those people
one for me, and the last one. who died in Brazil in 2020[4] as a con-
sequence of violence, indifference, pre-
My mother died from Covid-19, wor-
judice, intolerance, and the pandemic of
sened by a thrombosis. She died brea-
Covid-19:
thless, not because of a virus, but be-
cause of a thrombus. Her silent disease “Despite being seen as natural, those
caught the family by surprise. deaths were violent and should have been
avoided. Those who died or were killed
For a while we thought we could have
to death represent lives interrupted by
avoided her death. We tried to find out
intolerance, affected by indifference, and

59
threatened by ignorance. Dying changes gathered for the II Marcha das Mulheres
death itself, showing life does not have Indígenas (Second March of Indigenous
only one purpose. A life that manifests Women), whose theme is Reflorestando
itself in the enchantment of honoring mentes para a cura da Terra (Reforesting
the dead and change birth and death into Minds for Healing the Earth). The mani-
fights, parts of paths that meet”. (Evoca- fest, launched by Articulação Nacional
tion, 2020) das Mulheres Indígenas Guerreiras da
Ancestralidade (National Articulation of
Deaths that generate mourning and
Indigenous Women Warriors of Ancestry),
fights. Fights that eternalize names, fa-
reads:
ces, bodies, flavors, smells, and memo-
ries of people who will be missed. Mour- “We are searching for the guarantee
ning that politically inscribe accumulated of our ancestor territories for the present
deaths – until September 2021, more than and future generations, defending our en-
580,000 people had already died [in Bra- vironment, our common good, that secu-
zil]. These deaths make us ask about ine- res our way of life, as humanity. Beyond
vitability. And if there were an efficient mere physical resources, our territories
social distancing program? And if there are the home of forest spirits, animals,
were a testing policy? And the vaccina- and waters of life as a whole.” [5]
tion had started earlier? And if there were
This policy of coexistence the war-
appropriate economical social and heal-
riors of ancestry have been practicing
th infrastructures to confront the pande-
links lives and deaths, mourning and fi-
mic? And if a lot of people cared about so
ghts. Death changes into loss, opening
many deaths? If death can echo life, ge-
space to new paths, projects, and solida-
nocide cannot. Genocide only talks about
rities, like a reflowering. Maybe this is the
destruction, violence, elimination, terror.
message that matters today. Re-flower-
*** -ing. Hopefully, this movement will lead
us to the reinvention of the past and the
I wrote this text today, September
invention of an ancestral future. No death
7th, 2021. It’s a national holiday, a noisy
will be in vain.
day. At dawn, Jair Bolsonaro’s sympathi-
zers, most white and middle class, inva-
ded the Esplanada dos Ministérios (Minis- [1] Patrice Schuch is a PhD in Social Anthropology,
tries Esplanade), proclaiming the end of a professor at the Post Graduate Program in Social
democracy. They activate death as a spec- Anthropology at UFRGS, and a researcher. The re-
search referred to is the Project Covid-19 in Brazil:
tacle of extermination of the other throu- analysis and response to the social impacts of the
gh violence and fear. On the other hand, pandemic among health professionals and isolated
next to the Esplanade, a group of women population (Agreement Ref.: 0464/20 FINEP/UFRGS)

60
developed by the Covid-19 Humanities MCTI Ne- world wishes longing: the one who has never loved.
twork. Email: patrice.schuch@gmail.com. And this is the greatest of all sufferings: not having
anybody to miss, going through life without living.
[2] Translated by Ana Karina Borges Braun and proo- The greatest suffering is to have never suffered
fread by Ananyr Porto Fajardo. (Pablo Neruda).”
[3]“Longing. Longing and solitude walk together, it [4] The video “Evocação” [Evocation] (2020) was pre-
is when love hasn’t gone away, but the loved one sented at the 32nd Brazilian Meeting of Anthropo-
has...Longing is to love a past that hasn’t passed logy, held in November 2020 and can be accessed,
yet, refusing a present that hurts, not seeing the fu- along with its fact sheet, from the following link:
ture that invites us... Longing is to feel the existence https://expo.abant.org.br/evocacao/
of something that doesn’t exist anymore...Longing
is the hell of those who have lost, the pain of those [5] About this, see: https://anmiga.org/marcha-das-
who stayed behind, the taste of death in the mouth -mulheres/.
of those who keep going on...Only one person in the

61
“Enfrentava longas caminhadas, das quais não abria mão, pois entendia
que precisava “fortalecer” os seus pulmões. Seguia no seu ritmo, parava
Foto de Eduardo Barrios na Unsplash

algumas vezes, recuperava o fôlego e continuava. Sempre chegava ao seu


destino, ou melhor, cumpria a missão que ela mesma se imputava.”

62
Guerreira Intransigente
Por Carla Mariela Carriconde Tomasi

M inha mãe era teimosa, que é um


jeito carinhoso de dizer “guerrei-
ra, intransigente”.
assuntos. No Brique era pura diversão:
vistoriávamos toda a feira, sem esquecer
de olhar do outro lado os cachorros e ga-
tos, uma das suas paixões, os quais esta-
Há alguns anos foi diagnosticada
vam para a adoção.
com DPOC (Doença Pulmonar Obstrutiva
Crônica), mais conhecida como Enfisema Mas isso era aos domingos. Nos ou-
Pulmonar, doença que, como o nome diz, tros dias, enfrentava sozinha o trajeto e
não tem cura e vai se agravando com o as paradas, pois nem sempre era possível
tempo, tempo que ela esticava, com sua estar com ela, embora eu gostasse tanto.
determinação de não se entregar. Com Vivíamos, minha irmã e eu, em estado de
essa determinação conseguiu se manter alerta, preocupadas: onde foi a mãe? Já
bem, se recuperando de várias pneumo- não deveria ter voltado? Que horas ela
nias e internações. Sempre renascia e vol- saiu?
tava ao seu normal: linda e independente!
Caiu na rua algumas vezes. Lembro
Enfrentava longas caminhadas, das de uma vez em que caiu e nos chamou.
quais não abria mão, pois entendia que Fomos vê-la e insistimos em levá-la ao
precisava “fortalecer” os seus pulmões. Pronto Socorro. Insistimos muito! Não
Seguia no seu ritmo, parava algumas ve- queria, pois já havia providenciado os
zes, recuperava o fôlego e continuava. próprios curativos nos joelhos e braços.
Escaneie o QR code
Sempre chegava ao seu destino, ou me- Que vergonha e culpa senti quando a mé-
abaixo e ouça a
lhor, cumpria a missão que ela mesma se dica tirou o curativo para examinar o jo-
narração desse texto
imputava. elho e vi o estrago: estava como se fosse
uma boca aberta. Como não olhei antes?
Quantos domingos fomos juntas
Mesmo com a precaução de levá-la ao HPS
passear no Brique da Redenção! Íamos a
(Hospital Pronto Socorro), por que não
pé das primeiras duas quadras até a Av.
olhei antes? Porque ela era assim e não
Osvaldo Aranha, percursos mais difíceis,
dava para medir seu sofrimento por suas
período de aquecimento, parávamos bas-
reações.
tante, mas era tranquilo, hora de olhar as
árvores, os jardins das casas, o que nos Em outro episódio da série “tombos”,
parecia bonito, tecer comentários sobre a os vizinhos chamaram o SAMU (Servi-
rua pela qual passávamos sempre. Depois ço de Atendimento Móvel de Urgência) e
disso, vencíamos várias quadras e muitos me avisaram. Desci minha rua correndo,

63
assustada, para acompanhá-la na ambu- eu entendi como: mais essa agora! Lá fo-
lância. E lá estava ela: óculos escuros em mos nós, eu longe dela, na frente com o
dia nublado, mesmo sendo míope, e salto motorista.
alto, só para passear com o cachorro ao
A emergência do Clínicas para Co-
redor da quadra.
vid era tipo uma garagem em que a am-
Em outra situação, série “Pneumo- bulância estacionava e uma porta larga
nia”, em que não precisou de internação e se abria apenas para pacientes. Dava para
minha irmã e eu nos revezávamos para fi- ver alguns dos leitos, mas a porta logo
car com ela em sua casa, aconteceu um de se fechava. Então só pude vê-la de novo
seus milagres. O meu turno era à tarde, e por duas vezes: a primeira, muito rápi-
eis que, de manhã, enquanto eu cuidava do, quando um funcionário veio falar co-
das minhas tarefas domésticas, rompi o migo sobre os dados para a internação e
Tendão de Aquiles. Cheguei em sua casa me entregar um saco plástico azul com as
já usando uma bota ortopédica, pois já roupas dela e a segunda, quando a médi-
tinha sido atendida emergencialmente. ca veio falar comigo e pedi para deixar
Estava nervosa, pois precisaria procurar a porta aberta mais um pouco para que
um médico que fosse do plano de saúde e eu pudesse enxergá-la. E eu falei alto: “
fazer uma cirurgia, em um prazo de uma - Mãe, mostra como você é corajosa, faz
semana. Péssima hora, pois meus filhos, tua mágica! Te amo!” Ela respondeu com:
ainda pequenos, também demandavam “ - Um beijo para os guris!” - e um movi-
meus cuidados. Minha mãe, que estava mento com a mão - Vai! Vai! Como se tudo
mal, começou a melhorar na hora. Já não estivesse bem.
era ela que precisava dos meus cuidados,
E a porta foi fechando, eu espiando,
mas eu dos dela.
acompanhando para aproveitar ao máxi-
Quando necessitou ser internada mo possível. Eu e o saco azul! Já tinha
em consequência da Covid 19, coube a amanhecido e voltei para casa a pé. A ci-
mim acompanhá-la de ambulância para dade acordando e eu com um aperto no
ao HCPA (Hospital de Clínicas de Porto coração, com a sensação de que era a
Alegre), pois eu não estava contaminada. última vez que via minha mãe viva: sem
Cheguei correndo, às 4 horas da manhã, beijo, sem toque, sem abraço, sem despe-
logo após o telefonema de minha irmã. dida. Percorri, assim, a metade do “nos-
Não podia me aproximar, fiquei na por- so percurso” até a Redenção, com o saco
ta do apartamento assistindo, enquanto azul e sem ela.
ela era carregada pelos enfermeiros. Me *Carla Mariela Carriconde Tomasi, psicóloga. Filha
olhou e fez um gesto com as mãos, que de Nara Carriconde, falecida em 05/12/2020.

64
An Intransigent Warrior
By Carla Mariela Carriconde Tomasi[1],[2]

M y mother was stubborn. Then I


called her an “intransigent war-
rior” affectionately.
the Brique da Redenção fair. She loved
those pets.
But that was on Sundays. On the
Some years ago, she was diagnosed other days, she faced those walks and
with COPD (Chronic Obstructive Pulmo- pauses alone. I couldn’t go with her all
nary Disease), better known as Pulmonary the time, although I loved it so much. My
Emphysema. This disease has no cure and sister and I were always worried, thinking
gets worse with time. But she stretched her about where she was, if she would come
time determined not to give in. She mana- back, and what time she had left.
ged to keep herself well, recovering from
She fell on the street a few times. I
several cases of pneumonia and hospitali-
remember the time she fell and called
zations. She was always reborn and retur-
us for help. We insisted on taking her to
ned to normal: beautiful and independent!
the hospital, but she had already applied
She used to have long walks, never giving
dressings on her injured knees and arms.
up because she believed she needed to
Later we took her to the doctor, and I felt
strengthen her lungs. She went at her own
ashamed and guilty when she removed
pace, stopped a few times, caught her bre-
the dressings to examine my mother.
ath, and kept going. She always arrived at
her destination, fulfilling the mission she Her knees were seriously hurt. I
had entrusted to herself. asked myself how I hadn’t been able to
see that before, but we couldn’t measure
We went to Brique da Redenção, a
her suffering through her reactions.
fair at a park with the same name, for a
walk so many times! We used to walk two Another time she fell on the street
blocks to Osvaldo Aranha Avenue. It was near home, and her neighbors called an
warming up for her. We used to stop a ambulance and called me afterward. I got
few times to watch the trees, the gardens, scared and ran to her house to accom-
and other beautiful things, talking about pany her to the hospital. When I arrived,
the streets where we always walked. Af- I saw her sitting on the ground, wearing
ter that, she won her challenge of walking her sunglasses and high heels. She had
many blocks while we talked about many gone out to walk the dog.
subjects. We had a lot of fun visiting the
In one of her pneumonia crises, she
stalls with cats and dogs for adoption at
did not need to go to the hospital, and my

65
sister and I took turns staying with her at that door, and only the patients could en-
home. My turn was in the afternoon. One ter. You could only see some of the beds,
day, I ruptured my Achilles tendon while but soon the door would close. After that,
doing the housework. Then a miracle ha- I could see my mother again twice. Once
ppened. Before going to her place in the when a staff member came to talk about
afternoon, I went to an emergency to get her admission data and gave me a blue
medical care. I had to wear an orthopedic plastic bag with her clothes inside. Se-
boot and felt nervous because I needed cond, when the doctor came to talk and
to find a doctor who belonged to my he- left the door open for a moment so that I
alth insurance to do the surgery within could see my mother. Then I said: “Mom,
a week. Besides, I had to take care of my show us how brave you are, do your ma-
two little children. My mother suddenly gic! I love you!”. And she said: “Send my
started to recover from pneumonia. She love to the boys”, gesturing for me to lea-
didn’t need me to take care of her anymo- ve, as if everything was fine.
re. Now I needed her help.
As the door closed, I watched her
When she became infected with Co- make the most of it. And I was left with
vid-19, I had to accompany her by ambu- the blue bag! It was dawn, and I walked
lance to HCPA (Hospital das Clínicas de back home. The city was waking up, and
Porto Alegre). I arrived at her home in a I had a feeling in my heart that it was the
hurry, at 4 am, right after my sister had last time I would see my mother alive: no
called me. As I couldn’t be near her, I kiss, no touch, no hug, no goodbye. So,
stood next to the door watching the nur- I walked half of “our route” to Redenção
ses carrying her. She looked at me and Park, with the blue bag and without her.
gestured her hands, saying “And now
this!”. Off we went. I was away from her,
sitting next to the driver. [1] Carla Mariela Carriconde Tomasi. She is a psy-
chologist and the daughter of Nara Carriconde, de-
The COVID-19 emergency room at ceased in May 5, 2020.
the hospital was like a garage with a wide [2] Translated by Ana Karina Borges Braun and proo-
door. The ambulance would park next to fread by Ananyr Porto Fajardo.

66
67
“Tiago demorou a escolher a profissão que queria ter na vida, até descobrir
a Geografia. Entrou na faculdade e realmente se dedicou. Foi um aluno
aplicado. Tinha especial interesse pelos problemas urbanos, lamentava a
Foto de Majestic Lukas na Unsplash

poluição dos igarapés que recortam a cidade de Manaus/AM e se tornou


participante voluntário em diversos grupos que nos fins de semana saiam
para retirar lixos das águas.”

68
Réquiem por meu filho Daniel Tiago Omena Melo
Por Lucynier Omena

R epresento bem minha geração.


Exerci os diversos papéis que
quase todas as mulheres deste tempo vi-
ponsável por toda essa tragédia, zomban-
do de nossa dor todos os dias através dos
meios de comunicação, despersonalizan-
venciam. Mãe, filha, esposa, estudante, do a pessoa querida que partiu, relegan-
trabalhadora, professora, sindicalista e do-a a uma sinistra estatística, tornando
em várias outras atividades, muitas ve- esta dor infinitamente maior. E é assim
zes simultaneamente. Porém, mãe foi só que vou tentando sobreviver ao quarto
o que eu fui no mês de março de 2021, vazio, à cama que nunca mais foi preciso
quando vi a cada dia a vida do meu filho ser arrumada, ao lugar na mesa que nun-
Tiago se acabar, sem poder retê-la, sem ca mais será ocupado.
poder parar o tempo para evitar o inexo-
Tiago demorou a escolher a profis-
rável desfecho. Dias de extrema agonia
são que queria ter na vida, até descobrir
pela qual passamos, apoiados por paren-
a Geografia. Entrou na faculdade e real-
tes e amigos que se recusavam a acredi-
mente se dedicou. Foi um aluno aplicado.
tar que o final da história dele não seria
Tinha especial interesse pelos problemas
diferente dos quase 400 mil mortos em
urbanos, lamentava a poluição dos igara-
consequência da Covid-19, à época.
pés que recortam a cidade de Manaus/AM
Não sou a única mãe a ter perdido e se tornou participante voluntário em
um filho nessa pandemia. Posso imaginar diversos grupos que nos fins de semana
Escaneie o QR code quantas outras mulheres entre as mais de saiam para retirar lixos das águas. Depois
abaixo e ouça a 600 mil mortes no Brasil foram atingidas de completar vinte anos fez excursões
narração desse texto por essa perda. E todas, estou certa, co- por vários países da Europa e em suas
nheceram a saudade definida por Chico fotos de viagem registrava de modo par-
Buarque como “o revés do parto”, a dor ticular a temática urbana. Não o aspecto
que sentimos quando damos à luz, multi- turístico somente, mas curiosidades que
plicada por mil pela nossa impotência em ele percebia no planejamento das cida-
dar, ao nosso filho, a vida uma segunda des, que privilegiavam a circulação dos
vez. E o martírio de “olhar o quarto do fi- pedestres, dos ciclistas, dos cadeirantes
lho que já morreu”, vivido todos os dias. e na eficiência do transporte público. Em
grandes centros como Paris, Londres, Lis-
Minha ferida está exposta de modo
boa, Dublin, Amsterdã, Milão e outros,
indescritível, bem como a revolta de sa-
Tiago descobriu o urbano humano, perce-
ber que houve culpados, que há um res-

69
beu que a cidade devia servir as pessoas, luções encontradas na implementação do
sendo ao mesmo tempo limpas, coloridas projeto nas cidades brasileiras. Os expe-
e com mobiliários próprios. rimentos expressos nas reuniões seriam
o norteador das decisões que beneficia-
Em 2013, a Secretaria Municipal de
riam os municípios.
Limpeza Urbana (SEMULSP) da cidade de
Manaus reestruturava-se e precisava de A primeira viagem seria para São
alguém com conhecimento em geopro- Paulo, no mês de agosto, e a segunda para
cessamento. O nome dele foi lembrado, e Brasília, em outubro. E a última, seria,
indicado para trabalhar pela secretaria da para o encerramento, na cidade de Esto-
época, Sra. Suely D’Araújo, com quem fi- colmo, na Suécia, prevista para o mês de
cou alguns meses se familiarizando com dezembro. Devido aos transtornos provo-
o desafio que era gerir a limpeza urbana cados pela Covid-19, a viagem para São
de um município como Manaus. Porém, Paulo ocorreu no final do ano, momento
foi trabalhando junto ao secretário, Sr. em que ele expôs seu trabalho e narrou
Paulo Farias, que começaram a dinamizar sua experiência na implementação do
a identificação dos problemas de sanea- projeto em Manaus. Retornou encantado
mento básico que Manaus enfrentava. Es- com os contatos que fizera, com as trocas
timulado pelo chefe, Tiago estava sempre profissionais vivenciadas. Brasília e Esto-
disposto, sentia-se realizado com o tra- colmo estavam dependendo do controle
balho que vinha desenvolvendo e nele se da pandemia.
envolvia cada vez mais. O Tiago profis-
Todos esses sonhos começaram a
sional era um homem de caráter e princí-
ruir no dia 6 de março, quando à noiti-
pios, um “jovem diferenciado, agregador
nha o ouvi tossir. A Covid invadira minha
e construtivo”, como o definiu para mim
casa e, ciente da maneira como evoluía
seu chefe por longos anos na SEMULSP.
a doença, imediatamente ele teve acesso
O máximo do reconhecimento veio aos tratamentos. Tiago não passou um
no ano passado quando foi indicado a momento sem acompanhamento médico,
participar de um projeto sobre Resíduo até a internação no dia 9/03. A partir daí
Sólido Urbano desenvolvido pela Asso- foi só declínio. Nosso contato com a clíni-
ciação Brasileira de Empresas de Limpeza ca era diário e todos os dias recebíamos o
Pública e Resíduos Especiais (ABRELPE) boletim médico. Ele era jovem, saudável,
e pela Agência Sueca de Meio Ambiente. sem comorbidades, porém os pulmões
A intensão era envolver jovens do país não conseguiam se fortalecer para evitar
todo. Meu filho poderia, além da oportu- as doenças oportunistas que fatalmente
nidade de integrar uma rede internacio- o acometeriam. Dez dias depois foi entu-
nal de profissionais, manter contato com bado.
representantes de outros estados e enri-
Tiago perdeu a luta no final da ma-
quecer-se com as trocas de informações
nhã de sexta-feira, dia dois de abril. De
sobre os desafios apresentados e as so-
mim, foi arrancado o companheiro que

70
passou 39 anos ao meu lado. Raiva, sen- vou te encontrar novamente. E vou con-
timento de injustiça, e tudo o que uma tinuar te amando, como o primeiro filho
mãe sente quando perde seu amado filho. que segurei nos braços, como o pedaço
Porém com o agravante da minha certeza de mim que tu és, como a minha descen-
de que sua morte poderia ser evitada, a dência roubada da forma mais vil e irres-
clareza que Tiago se foi antes da hora, a ponsável, como a obra mais perfeita e
nítida consciência de que meu filho como preciosa que me foi permitido realizar.
tantos brasileiros de março de 2020 para
Depois que meus filhos nasceram,
cá, foi mais uma vítima do obscurantis-
eles passaram a ser a estrutura que sus-
mo e negacionismo que o presidente es-
tentava meu corpo, minha vida. Agora
colhido nas urnas, expôs os brasileiros de
sigo vivendo só pela metade, a parte que
norte a sul.
coube a minha filha Raquel. A outra, a
Além de mim, meu filho deixou o pai que Tiago representava, tenta se manter
e uma irmã, sua parceira e cúmplice. E de pé e poder, assim como milhares de
avós, tios, primos e uma legião de ami- pais, tios, avós, filhos, sobrinhos, netos,
gos. Em mim, uma revolta difícil de men- amigos e colegas de pessoas que perde-
surar, uma realidade ainda impossível ram seus entes para essa pandemia, ver
de enfrentar, mesmo passados sete me- os culpados reconhecidos, julgados e
ses. Uma saudade que me tortura todos condenados.
os dias quando penso em vê-lo, em falar
com ele e ser obrigada a reconhecer que
*Lucynier Omena é socióloga e servidora pública
não posso mais. aposentada. “Sou amazonense, residente na cidade
Tiago meu filho amado, tu vais estar de Manaus, lugar em que, de acordo com a CPI da
Covid, foi usado como experimento para imunidade
perto de mim na minha lembrança e na de rebanho. Local em que o oxigênio, o elemento
minha saudade, até o dia da minha par- vital para vida humana, foi substituído por medica-
tida. A discrição, a paciência, o bom hu- mentos comprovadamente ineficazes para comba-
mor, a generosidade e o companheirismo. ter o vírus. Mãe, órfã de um filho amado, que busca
justiça para as famílias das 400 mil mortes, identi-
A certeza desse encontro é o que me fará ficados pela CPI da Covid, que padeceram quando
ficar por aqui, aguardando o dia em que poderiam ter sido salvas”.

71
72
Requiem for my son Daniel Tiago Omena Melo
By Lucynier Omena[1],[2]

I represent my generation well. I


played the various roles that almost
all women of this time have experienced.
tragedy mocks our pain through the me-
dia, depersonalizes the dear ones who
have departed, and relegates them to sta-
I’m a mother, daughter, wife, student, tistics, making this pain infinitely grea-
worker, teacher, and union member, of- ter. And this is how I keep trying to survi-
ten simultaneously. But above all, I was ve the empty room, the bed I don’t need
a mother on March 2021, when I saw my to make anymore, the place at the table
son Tiago die a little bit every day, wi- he will never occupy again.
thout being able to stop it, without being
Tiago took a while to choose his pro-
able to stop time to prevent the inevitable
fession until he decided to study Geogra-
end. Those were days of extreme agony.
phy. He entered college and studied hard.
Relatives and friends who refused to be-
He was a diligent student. He was inte-
lieve that the end of his story would be
rested in urban problems, regretted the
no different from the nearly four hundred
pollution of the streams that cut throu-
thousand who had died from Covid-19 at
gh Manaus, AM, and became a volunteer
the time supported us.
in several groups that removed garbage
I’m not the only mother who lost a from the waters on the weekends. When
child in this pandemic. I can imagine that he turned twenty, he went on excursions
this loss affected many other women. Af- to several European countries. He registe-
ter all, more than six hundred thousand red the urban topic in a particular way in
people have died in Brazil. I’m sure all of his travel photos. He observed not only
them have known the longing Chico Bu- the touristic aspects but also the curio-
arque defined as “the reverse of birth,” sities he noticed in the planning of the
the pain we feel when we give birth, mul- cities, which privileged the circulation of
tiplied a thousandfold by our powerless- pedestrians, cyclists, wheelchair users,
ness to give our child life a second time. and the efficiency of public transporta-
We have experienced the martyrdom of tion. In great centers such as Paris, Lon-
“tidying the room of the child” who has don, Lisbon, Dublin, Amsterdam, Milan,
died every day. and others, Tiago discovered the human
urbanism. He realized the city should ser-
I can’t describe the depth of my pain
ve the people, being at the same time cle-
or the revolt for knowing there are guilty
an, colorful, and with its street furniture.
parties. The man responsible for all this

73
In 2013, the Municipal Department He would first travel to São Paulo in
of Urban Cleaning - SEMULSP - of Manaus August and afterward to Brasília in Oc-
was restructuring and needed someone tober. And the last one would be for the
with knowledge in geoprocessing. The se- closing, in the city of Stockholm in Swe-
cretary of the time, Mrs. Suely D’Araújo, den, scheduled for December. Due to the
with whom he had spent a few months Covid-19 inconveniences, we could only
becoming familiar with the challenging travel to São Paulo at the end of the year.
management of the urban cleaning of a Then he exposed his work and narrated
city like Manaus, appointed him to do his experience in the project implementa-
the job. However, they could only iden- tion in Manaus. He became delighted with
tify Manaus’ sanitation problems when the contacts he had made with the pro-
he started to work with the secretary of fessional exchanges he had experienced.
the time, Mr. Farias. Stimulated by his Brasilia and Stockholm depended on the
boss, Tiago was always willing. The work control of the pandemic.
he was developing fulfilled him, and he
All these dreams began to crumb-
became involved in it. Tiago was a pro-
le on March 6. On this day, I heard him
fessional with character and principles,
coughing. Covid had invaded my home.
“a differentiated, aggregative, and cons-
As we were aware of the development of
tructive young man”, as his boss defined
the disease, he immediately had access to
him to me for his many years of work at
treatment. Tiago didn’t spend a moment
SEMULSP.
without medical attention until his hospi-
The ultimate recognition came last talization on March 9. From that moment
year when members of a project on Ur- on he only got worse. We contacted the
ban Solid Waste developed by the Brazi- clinic every day to receive the medical
lian Association of Companies for Public report. He was young, healthy, and had
Cleaning and Special Waste - ABRELPE - no comorbidities, but his lungs were not
and by the Swedish Environmental Agen- strong enough to avoid the opportunistic
cy appointed him to participate. They in- diseases that would fatally affect him. He
tended to involve young people from all was intubated ten days later.
over the country. Besides the opportunity
Tiago lost the fight on Friday mor-
to be part of an international network of
ning, April 2. I lost the companion who
professionals, my son could keep in con-
had spent 39 years by my side. I felt ou-
tact with representatives from other sta-
traged like a mother feels when she loses
tes. He would also enrich his professional
her beloved son. I knew we could have
knowledge by exchanging information
avoided his death. I was aware he was one
about the challenges presented and the
more victim of obscurantism and denia-
solutions found in the project in Brazilian
lism. And all this aggravated my feelings.
cities. The experiences expressed in the
meetings would guide the decisions that Besides me, my son left his father
would benefit the municipalities. and his sister. She was his partner and his

74
accomplice. He also left his grandparents, of me will keep on living, the part that be-
uncles, cousins, and a legion of friends. longs to my daughter Raquel. The other
I’m still outraged even after seven mon- part, the one that belonged to Tiago, is
ths. Longing tortures me every day when trying to stand up and see the culprits
I acknowledge I’ll never see or talk to him acknowledged, judged, and convicted,
again. like thousands of parents, uncles, gran-
dparents, children, nephews, grandchil-
Tiago, my beloved son, you’ll be clo-
dren, friends, and colleagues who lost
se to me in my memory and my longing
their loved ones to this pandemic.
until the day of my departure. Thinking
of your discretion, patience, good humor,
generosity, and companionship, and the [1] Lucynier Omena is a sociologist and retired
certainty I’ll meet you again will make me public servant. “I’m from Amazonas, and I live in
stay here. And I’ll always love you, like Manaus, a place that, according to the Covid CPI
the first child I held in my arms, like the [Committee on Public Information], was used as an
experiment for herd immunity. A place where oxy-
piece of me that you are, as the offspring gen, the vital element for human life, was replaced
I lost in the vilest and irresponsible way, by drugs proven ineffective against the virus. A mo-
like the most perfect and precious work I ther, orphaned by a beloved son, seeks justice for
was allowed to accomplish. the families of the 400,000 dead people identified
by the Covid CPI. People who suffered to death ins-
After my children were born, they tead of being saved.”
became the structure that sustained my [2] Translated by Ana Karina Borges Braun and proo-
body and my life. From now on, only half fread by Ananyr Porto Fajardo.

75
Foto de Brandon Morgan na Unsplash

“E, quando chegar o dia em que a nossa filha Maria Clara for agraciada por
Deus com um grande amor, como foi o nosso, seguramente já seremos capazes de
escolher quem a levará fisicamente ao altar no seu lugar, pois temos certeza que
você estará com ela.”

76
“Mãe, quem me levará ao altar?”
Por Maria Izabel Collar

E ssa foi a primeira pergunta que re-


cebi de minha filha com 17 anos,
naquele inacreditável 24 de março de
uma ressaca, quase desânimo, e, nesse
caso, surgiu um estado febril que dei-
xou meu marido alerta. Na quarta, como
2021, quando fomos surpreendidos pela é muito atencioso com a saúde, fez o
pior notícia de nossas vidas. O nosso que- exame rápido para Covid... quando ouvi o
rido Fabinho tinha sido vencido pelo mal- carro entrando na garagem e não o vi des-
dito vírus da Covid-19. cendo, corri e me deparei com uma cena
que penso que jamais esquecerei: ele
Aqui de casa, ele seguramente era o
debruçado sobre o volante. A princípio
que mais tinha medo que fossemos con-
imaginei que estivesse de brincadeira, o
taminados, era do time que tomou muita
Fabio tinha um excelente humor que me
ivermectina, como empresário também
encantava, tudo era motivo de brincadei-
esteve na linha de frente, pois muitas
ra, a vida ao lado dele era leve, cheia de
pessoas que testavam positivo continu-
descontração, prazerosa.
avam circulando, sem máscara, sem dis-
tanciamento. No município em que a Mas a brincadeira acabou. Aquela
quantidade de mortes foi bem acima da manhã de 3 de março de 2021 foi então
média nacional, não houve medidas efi- um dos momentos mais inacreditáveis
cientes capazes de evitar a contaminação que vivemos, o silêncio meio que tomou
no comércio. conta de nós dois. Lembro que fizemos
Escaneie o QR code uma chamada de vídeo com o Pneumo,
Mas é impossível saber onde ele foi
abaixo e ouça a que realizou as primeiras orientações de
contaminado, na verdade tudo isso che-
narração desse texto isolamento. Ele foi pra nossa suíte, agora
ga ser quase um mistério, pois, naquele
sozinho, a porta foi fechada, o acesso de
que seria nosso último final de semana
alimentos, remédios foi feito todo pela
com o Fabinho, aproveitamos, como sem-
janela, que felizmente ficava para o fun-
pre, sua companhia, pedalamos, fize-
do do quintal.
mos churrasco, namoramos e por último,
aquela pipoca no mesmo pote que só ele Foram dias de apreensão, porém
sabia fazer para a Clara. Apesar desse praticamente sem sintomas. No entan-
contato tão próximo, graças a Deus não to, para amanhecer o dia 11, a saturação
fomos contaminados. caiu, a temperatura subiu, Dr. Guga, um
dos nossos médicos da família, por pre-
Na segunda feira , pois é, as segun-
caução e pra deixar o Fabinho mais tran-
das são historicamente carregadas de

77
quilo, orientou fazer uma tomografia. viar sua solidão, na esperança que um dia
Não pensei duas vezes: eu o levaria para seu dono vai voltar.
o Hospital para realizar o exame, e assim
Então Xico, enquanto você uiva, nós
o fiz. O carro foi estacionado afastado do
também choramos a partida inesperada
hospital, dessa forma, fizemos nossa úl-
do Fabinho. Não dá pra acreditar, claro
tima caminhada juntos, de mãos dadas,
que não dá, não vimos, não velamos, nos
tranquilos, seria apenas um exame... só
despedimos de um caixão lacrado, sem
que não. Começa ali o pior e mais inima-
uma chamada de vídeo, sem uma ligação,
ginável dos pesadelos que mudaria para
sem uma palavra, não, assim não, sem se-
sempre uma linda história de amor, que
quer o direito de ter comigo sua aliança,
há 31 anos me fazia a mulher mais reali-
a nossa aliança... O Hospital Metropolita-
zada desta existência, por saber dia a dia
no disse que ela sumiu. Para uns, apenas
que era muito amada, admirada, valoriza-
algumas gramas de ouro, para mim, um
da e respeitada por esse homem que sem-
sinal sagrado da aliança que fizemos com
pre foi meu porto, meu mar, meu mundo
Deus há 26 anos, uma aliança de amor, fi-
seguro, tinha o mais aconchegante e for-
delidade, comprometimento, uma aliança
te abraço, capaz de me equilibrar em um
de felicidade.
instante.
Então a maldita Covid-19 e todos
Quando se perde um amor, perde-se
aqueles que não lutaram pelo controle da
um pouco de nós mesmos, nossa referên-
sua disseminação não nos deram sequer
cia de casal, enfim, perdemos nossa es-
o direito de escolher a última troca de
colha, nossa cara metade, aquela pessoa
roupa, que possivelmente não seria um
que vivemos experiências únicas de ser
terno, esse só foi para aqueles momentos
mulher, mãe, companheiro de vida, de
sobretudo formais, como casamentos,
pedal, cavalgadas, viagens, churrascos,
formaturas, especialmente a do Felipe.
ECC, de momentos difíceis. Interrompe-
Para esse último “evento”, provavelmen-
mos sonhos, projetos, sem tempo pra
te escolheríamos uma roupa bem country
nada, exatamente pra nada.
que ele tanto gostava, aquela bota nova,
Foram oito difíceis e intermináveis não, essa vai continuar na caixa, lembran-
dias de internação. Por duas vezes eu e do uma paixão pelos cavalos e o laço.
nossos filhos fomos vê-lo, de longe, pela
Não sabemos, nem isso, nem muitas
janela. Mal sabíamos que aquele aceno,
outras coisas, que supomos tenham acon-
em 14 de março, um domingo, seria um
tecido, naquele hospital. A comunicação
adeus, com um balão vermelho em forma
era incerta, lembro que os médicos me
de coração, para expressar todo o amor
diziam, quando chegamos ficar 48 horas
que temos por ele, que tanta falta tem
sem notícias, tenham calma, estamos vi-
feito em nossas vidas, de nossas famílias,
vendo uma verdadeira guerra e seguiam
dos amigos, do seu fiel cachorro Xico,
exaustos de perder tantos pacientes. O
que em muitas noites uiva triste para ali-
Fabinho morreu no dia 24 de março, mês

78
crucial na nossa cidade de Santa Fé (PR), Enquanto eu viver, propagarei a la-
que ultrapassou as médias nacionais com mentável história de uma pandemia mun-
50 mortes. Só em março morreram 18 ci- dial que matou meu marido e mais 590
dadãos, ou seja, quase 40% das mortes mil pessoas no Brasil. Muitos e muitos
ocorreram nesse mês. deles morreram evitavelmente porque in-
felizmente a vida não tem sido uma prio-
Imagino, ingenuamente, que deve
ridade nesses tempos.
ficar para os gestores um sentimento de
incapacidade, tristeza e arrependimento Estamos tentando seguir em frente.
por não terem sidos corajosos e respon- E, quando chegar o dia em que a nossa
sáveis o suficiente para impedir que tan- filha Maria Clara for agraciada por Deus
tas mortes evitáveis acontecessem. Mas com um grande amor, como foi o nosso,
a empatia ainda é um sentimento pouco seguramente já seremos capazes de es-
cultivado por muitos nessa área do poder colher quem a levará fisicamente ao altar
público. Os eleitores de antes são agora no seu lugar, pois temos certeza que você
apenas números estatísticos. Números estará com ela e com o Felipe sim, como
que apavoram. Aqui teremos um Bosque sempre esteve e permanecerá. A mim
da Saudade com 50 árvores, até hoje, cabe a gratidão por ter sido esse pai ines-
uma para cada vítima da Covid-19. Essa quecível, que não poderá trilhar com ela
quantidade seria motivo de comemora- o caminho do altar, mas que, no entanto,
ção pelos ambientalistas de iPhone, como ensinou nesses 17 anos o melhor cami-
somos conhecidos pelo Agro. Sim, essas nho de todos, o caminho do amor.
árvores serão duplamente importantes:
para a natureza e, igualmente, para as
*Maria Izabel Collar é professora especialista em
famílias dessas vítimas, que terão nesse Educação Especial e gestora na escola Novo Ama-
Memorial um acalanto, um lugar especial nhecer – APAE de Santa Fé (PR).
de lembranças.

79
80
“Mom, who’s going to walk me down the aisle?”
By Maria Izabel Collar [1], [2]

C lara, my seventeen-year-old daugh-


ter, asked me that question on Mar-
ch 24, 2021, when we received the terri-
was joking because he was usually humo-
rous, playful, and relaxed.
But the joke was over. That morning,
ble news the Covid-19 virus had defeated
March 3, 2021, was one of the most unbe-
our dear Fabinho.
lievable moments we experienced, and the
He certainly was the one who feared silence took over both of us. I remember
most we could be contaminated. He took we had a video call with the pulmonologist,
lots of ivermectin. As a businessman, he who gave us the first isolation instructions.
was also on the front line because many My husband went alone to our suite, closed
people who tested positive kept circula- the door, and had access to food and me-
ting without masks or distancing. In our dicine through the window, which fortuna-
town, where the number of deaths was tely was at the back of the yard.
well above the national average, there
Those were apprehensive days, but
were no efficient measures to avoid con-
he almost didn’t have symptoms. On
tamination in commerce.
March 11, at dawn, his saturation dro-
But it’s impossible to know where he pped, his temperature raised, and Dr.
was contaminated. It sounds almost like a Guga, one o four family doctors, advised
mystery. The last weekend we spent toge- him to have a tomography as a precau-
ther, we went biking, had barbecue, and tion. I didn’t think twice: I took him to
had some popcorn he made for Clara. Al- the hospital. I parked the car halfway to
though we spent that weekend with him, the hospital and we took our last walk to-
Clara and I weren’t contaminated. gether, holding hands, to have one more
exam. The worst and most unimaginable
On Monday — since this day, Mon-
nightmare that would change our beauti-
days have felt like a hangover, almost a
ful love story had started. I had been the
discouragement — my husband started
most fulfilled woman in this existence for
to run a fever. On Wednesday, as he was
31 years, for knowing he loved me, admi-
careful, he went to take the Covid-19 test.
red me, valued me, and respected me. He
When I heard the sound of his car ente-
had always been my safe harbor, my sea,
ring the garage and couldn’t see him lea-
my world. He had the warmest and stron-
ving the car, I ran and witnessed a scene
gest embrace that would help me keep
I will never forget: I saw him leaning over
my balance.
the steering wheel. At first, I thought he

81
When we lose the love of our life, we he used to wear it only on formal occa-
lose a little bit of ourselves, our referen- sions such as weddings and graduations,
ce as a couple, our choices, and our soul like our son Felipe’s graduation. He would
mate. We lose the partner with whom we have chosen the country-style outfit he
have experienced being a woman, a mo- loved so much. His new boots I have kept
ther. We lose the partner we have shared in a box will remind me of his passion for
a life with, the one we have gone biking, horses and lasso.
riding, and traveling with, the one we
We probably don’t know about many
have shared dreams, and projects with.
things that happened at that hospital. We
Those eight days of hospitalization couldn’t communicate effectively, and
were hard and endless. My children and the doctors used to ask us to be calm
I went there twice to watch him through because they were facing a war and felt
the window. We hardly knew the wave exhausted after losing so many patients.
we gave him on that Sunday, March 14, Fabinho died o March 24, a crucial month
would be a goodbye. We had taken a red when our town, Santa Fé in Paraná, had
heart-shaped balloon to show him how surpassed the national average with fif-
much we loved him. We had missed him ty deaths. 40% of the deaths occurred in
so much. His faithful dog Xico had mis- March when eighteen people died.
sed him too. Xico howled every night to
I wonder, naively, if the government
relieve its loneliness, hoping its owner
has experienced a feeling of incapacity,
would return.
sadness, and regret for not having been
While Xico howled, we cried about brave and responsible enough to avoid
Fabinho’s sudden departure. It was hard so many deaths. But empathy is still litt-
to believe he was dead. We couldn’t see le cultivated among those responsible for
him, wake him. We had to say goodbye to public power. The voters from before are
him in a sealed coffin. We couldn’t have now just statistical numbers. It is scary
a video call, a word. I couldn’t even keep to face the number of deaths. We are
his ring. At Metropolitano hospital, they building a park called Bosque da Sauda-
told me it had disappeared. For some pe- de, where we have planted fifty trees so
ople, it represents just a few grams of far, one for each victim of Covid-19. This
gold, but for me, it means a sacred sign number would be a reason for celebration
of the alliance we made with God 26 years among the iPhone environmentalists, as
ago, an alliance of love, fidelity, commit- people know us in the Agri. Yes, these tre-
ment, and happiness. es are doubly important: for nature and
the families of these victims, who will
Then Covid-19 and all those who
have a warm place of memories in this
didn’t fight against its dissemination,
memorial.
who didn’t even try to control it, didn’t
give us the right to dress him to his fune- As long as I live, I will spread this
ral. He wouldn’t want to wear a suit, for sad story about a worldwide pandemic

82
that killed my husband and 590 thou- ys been. I’m so grateful Clara had such an
sand other people in Brazil. Many of them unforgettable father. Although he won’t
could have survived, but unfortunately, be able to walk her down the aisle, I know
life hasn’t been a priority in these times. he has taught her for seventeen years the
best way to live is with love.
We have been trying to move on.
And, when God graces our daughter Maria
Clara with the love of her life, as he did to [1] Maria Izabel Collar is a specialist teacher in Spe-
us, we’ll surely be able to choose somebo- cial Education and manager of the Novo Amanhecer
dy to walk her down the aisle in his place School - APAE of Santa Fe (PR).
because I’m sure he’ll always be by her [2] Translated by Ana Karina Borges Braun and proo-
side and Felipe’s side too as he has alwa- fread by Ananyr Porto Fajardo.

83
Fotografias de Jean Segata.

Juliara e sua filha Luísa no ano de 2015.

84
Sinto e Muito
Por Juliara Borges Segata

N o último mês sonhei frequente-


mente que estava amamentando.
Amamentava uma criança que era minha
me assustava. Posso afirmar então que
para mim o ato de amamentar era recon-
fortante, emocionalmente e corporalmen-
e ao mesmo tempo não era, aquela sensa- te. Ainda seguindo aquela sensação que
ção que só o sonho nos permite ter de algo só os sonhos nos trazem, eu conseguia
que é sentido sem precisar ser explicado, sentir o que a criança sentia, e era um re-
na verdade acho que nem pode ser expli- conforto de um corpo que estava famin-
cado, é algo que não pode ser colocado to e se alimentou, de leite e de amor, era
em palavras, apenas sentido. A sensação como se estivéssemos com muita sauda-
de amamentar era muito real, sentia os de um do outro e enfim nos encontrásse-
seios inchados, o leite percorrendo seu mos. Nós dois enquanto um só estávamos
caminho até chegar na boca da criança, em um estado de equilíbrio de nossas ne-
que sugava com satisfação aconchegada cessidades, o amor mútuo nos tirou do
no meu colo. Pensei muito sobre isso, a caos, da dor, do sofrimento, da fome de
princípio relacionei esse sonho frequente amor, da saudade. Me dei conta do que
a minha relação com minhas filhas, mas esse sonho representava quando me pre-
logo descartei essa possibilidade. Come- parava para entrar em uma reunião de um
cei a me questionar então sobre o que a grupo de apoio para pessoas enlutadas,
amamentação significava pra mim. Nos acompanho com um grupo de pesquisa-
Escaneie o QR code períodos em que amamentei eu produzia doras a AVICO (Associação de Vítimas e
abaixo e ouça a muito leite, quando amamentei minha fi- Familiares de Vítimas da COVID). De súbi-
narração desse texto lha mais velha eu também doava para o to tive a sensação do leite que chega sem
banco de leite do hospital e quando ama- avisar e molha a roupa, aquela sensação
mentei minha filha mais nova doava leite que só quem já amamentou vai saber do
para gêmeos paralelamente. Essa grande que se trata, ou não, seriam as sensações
quantidade de leite que eu produzia me e emoções permitidas apenas para quem
trazia felicidade e ao mesmo tempo dor. já as viveu? Não passou de uma sensação,
Lembro de tentar saciar minha sede com mas, estava ali a resposta da minha per-
um pouco de gelo, já que beber um copo gunta. Eu sonhava em trazer reconforto
de água seria impensável dada a grande para aqueles que perderam seus amores,
quantidade de leite que eu teria. A alta sua mãe, seu pai, seus irmãos, de uma
produção de leite pode ocasionar sérios forma tão brutal, sem ao menos conse-
problemas de saúde e essa possibilidade guir se despedir dignamente. Eu falava

85
“sinto muito”, “meus pêsames”, “que tris- ainda que online não diminuíram a inten-
te isso”, mas não eram suficientes para sidade das suas trocas de experiências.
transmitir o quanto esses sofrimentos, Pensar nessas pessoas engajadas pelo
essas dores e saudades não eram mais bem comum, preocupadas em dar um
apenas deles, mas parte de todos que se sentido benéfico para suas existências
importam assim como eu. Seus relatos de no mundo enquanto transformadores de
saudade me tocavam de uma forma que uma realidade que se mostra tão doloro-
eu não tinha consciência, apenas o sonho sa, me fez voltar novamente para o meu
pôde me mostrar o quanto. Queria poder sonho e as lembranças que ele me trou-
fazer algo, queria poder trazer essas pes- xe. Enquanto eu entregava os vidros de
soas de volta, assim como o leite começa leite congelado no hospital pensava nas
a ser produzido assim que termina. Que- crianças que se beneficiariam com ele, é
ria que todos se importassem, queria que inquestionável a riqueza do leite materno
esse sofrimento não existisse, mas como para o bebê. Entretanto, eu pensava ainda
ele existe, queria apenas que soubessem mais nas mães que por algum motivo não
que eu sinto também. Eu sou doutoranda tinham como oferece-lo através de seus
em antropologia, eu estou fazendo uma corpos, mas poderiam amamentar mes-
pesquisa enquanto sou mãe, sou filha, mo assim. O pai das crianças gêmeas ia
esposa, amiga, vizinha, sou alguém que até a minha casa buscar o leite que eu ti-
tem uma história, que vive uma história, nha armazenado, sua esposa e seus filhos
sou alguém que sente, que ama e odeia, continuaram um bom tempo no hospital
que está presente no mundo. Não tenho até que ficaram “fortes o suficiente” para
como falar da pesquisa sem estar embar- irem para casa. Ele pegava os vidros da
cada nela com a minha bagagem. Acom- minha mão como se fosse a coisa mais
panhamos a AVICO desde seu surgimen- preciosa que alguém poderia ter e guar-
to em abril de 2021. Todas as reuniões dava em sua maleta refrigerada, dizia que
acontecem de forma remota, agora algo não poderia se demorar já que teria que
corriqueiro e ao qual já nos acostumamos atravessar a cidade para levar o leite para
passados um ano em meio a uma pande- o hospital onde seria analisado para de-
mia. O contato com a diretoria e com os pois ser disponível para o consumo. Ele
grupos de trabalho que foram criados (1. não se demorava, mas fazia questão de
Grupo de apoio psicológico; 2. Criança contar quanto os bebês haviam crescido e
e adolescente; 3. Comunicação; 4. Previ- engordado, cada centímetro, cada grama,
dência, trabalho e solidariedade; 5. Vaci- era contada como uma conquista que era
na e assistência; 6. Assessoria Jurídica; nossa. Eles recebiam o leite, enquanto eu
7. Privação de liberdade) se dá principal- recebia muito mais, recebia a sentimento
mente através do aplicativo WhatsApp de estar fazendo algo bom e transforma-
onde também as reuniões por aplicati- dor. Para mim a AVICO é isso, uma gran-
vos de vídeo são agendadas. A formação de rede de apoio movida a solidariedade
desses grupos e seus encontros semanais com trocas de valor imensurável para to-

86
dos e todas. As pessoas procuram a asso- veram que deixar de lado suas profissões,
ciação pedindo ajuda para “entrar na jus- mais de cem pessoas querendo fazer par-
tiça”, não conseguem comprovar que se te desse grupo desde o seu surgimento,
infectaram no trabalho, não conseguem hoje são mais de mil pessoas que já fize-
licença de saúde para tratar os sintomas ram o pedido para se associarem. A AVI-
que continuam a sentir no chamado pós- CO transforma a dor numa luta coletiva,
-covid. Outras, procuram nela um espaço assim como os sonhos, ela é um espaço
para falar, expressar seus sentimentos e onde as experiências se encontram e se
suas indignações, trocar experiências de transformam.
seus lutos, saber se mais alguém sorri
com as lembranças dos que perderam e
*Juliara Borges Segata é doutoranda em Antropolo-
no instante seguinte cai no choro com- gia Social pela UFRGS, a pesquisa referida no texto
pulsivamente, são pessoas que tiveram resulta do Projeto A Covid-19 no Brasil: análise e
suas vidas transformadas pelas perdas, resposta aos impactos sociais da pandemia entre
que tentam seguir suas novas rotinas sem profissionais de saúde e população em isolamento
(Convênio Ref.: 0464/20 FINEP/UFRGS) desenvolvi-
a presença dos que se foram. São assis- da pela Rede Covid-19 Humanidades MCTI, onde é
tentes sociais, psicólogas e psicólogos, pesquisadora voluntária. Email: juliaraborges87@
advogadas, ativistas e militantes, donas gmail.com
de casa, pesquisadores ou pessoas que ti-

87
88
I’m so sorry
By Juliara Borges Segata[1],[2]

I n the last month, I often dreamed I


was breastfeeding a child who was
mine, but at the same time wasn’t. I had
feel what the child felt, the comfort of a
hungry child fed with milk and love. It
was as if we were longing for each other
this feeling only dreams allow us to have, and finally met. The two of us were in a
of having something we can feel but don’t state of balancing our needs. Mutual love
need to explain. I think it’s something we brought us out of chaos, pain, suffering,
can’t explain, not even with words, some- hunger for love, and longing. I realized
thing we can only feel. The feeling of bre- what this dream represented while prepa-
astfeeding felt real, and I could feel my ring to join a meeting of support for bere-
breasts swelling, the milk making its way aved people that I follow with a group of
to the child’s mouth, who sucked with sa- researchers from Associação de Vítimas e
tisfaction and snuggled in my lap. I thou- Familiares de Vítimas da Covid-19 [Asso-
ght a lot about it, and at first, I related ciation of Covid-19 Victims and Victims’
this frequent dream to my relationship Family Members] – AVICO Brasil. Sudden-
with my daughters, but soon I discarded ly I had the same feeling I had when the
this interpretation. Then I began to won- milk was about to come without warning
der what breastfeeding meant to me. In and wet my clothes, that feeling that only
the periods I breastfed, I produced a lot those who have already breastfed can un-
of milk. While breastfeeding my older derstand. Or wouldn’t those feelings and
daughter, I could donate milk to the hos- emotions be allowed only to those who
pital bank milk, and while breastfeeding have experienced them? It was nothing
my younger daughter, I could donate milk more than a feeling, but the answer to my
to tweens. Being able to produce so much question was there. I dreamed of bringing
milk brought me happiness and pain. I re- comfort to those who had lost people
member trying to satisfy my thirst with they loved, their mothers, fathers, bro-
ice since drinking water would be un- thers, and sisters, in such a brutal way,
thinkable given the large amount of milk without being able to say goodbye.
I would have. High milk production can
I used to say things like “I’m sorry”
cause serious health problems, and this
and “My sentiments”, and that is sad, but
possibility scared me. Then I can say that
those were not enough to convey the idea
breastfeeding was emotionally and phy-
that this suffering, pain, and longing were
sically comforting for me. Still following
not theirs only, but also of those who ca-
that feeling only dreams bring us, I could

89
red about them as I did. I did not know milk to the hospital, I thought of the chil-
the impact of their longing accounts on dren who would benefit. The richness of
me until I could understand my dreams. breast milk for the baby is unquestionab-
I wish I could do something about it, le. Then I also thought about the mothers
bring these people back, just like I could who couldn’t provide milk through their
start to produce milk as soon as it had bodies but could breastfeed anyway. The
finished. I hope everybody cares about twins’ father would come to my house to
this, and I hope this suffering ends, but get the milk I had stored. His wife and
since it is still here, I hope these people children spent some time in the hospi-
only know I feel it. I’m a PhD candidate tal until they were “strong enough” to go
in anthropology, and I am a researcher, home. He would take the precious jars ca-
a mother, a daughter, a wife, a friend, a refully and put them in his refrigerated
neighbor, somebody who has and lives case, saying he couldn’t stay long since
a story, somebody who feels, loves, and he would have to cross the city to take
hates, somebody who is present in the the milk to the hospital, where they would
world/exists. I can’t talk about research be analyzed and then made available for
without considering my background. I consumption. He wouldn’t take long, but
have followed AVICO since its emergen- he would say how much the babies had
ce in April 2021. We got used to having grown and gained weight, counting every
remote meetings, which became usual inch and every ounce as our achievement.
since the pandemic started a year and a They would get the milk, but I would get
half ago. We contacted the board of direc- much more, for I would feel I was doing
tors and the workgroups mainly through something good and transforming. For
WhatsApp, where we also scheduled the me, AVICO is a support network based
meetings by video application. The work- on solidarity and immensurable valued
groups were the following: 1. Psychologi- exchanges for everyone. People come to
cal support group; 2. Children and teena- the association asking for help to go to
gers; 3. Communication; 4. Welfare, work, court, but they can’t prove they have got
and solidarity; 5. Vaccination and assis- infected at work or get a health license
tance; 6. Legal counseling; 7. Deprivation to treat the symptoms they keep feeling
of freedom. The creation of these groups in the so-called post-covid. Others see in
and their weekly remote meetings didn’t it a space to talk, express their feelings
decrease the intensity of their exchange and indignation, exchange experiences
of experiences. Thinking about these pe- of their mourning, find out if someone
ople engaged for the common good, con- else smiles, and then fall into compulsi-
cerned about giving a beneficial meaning ve crying with the memories of the ones
to their existence in the world to transfor- they have lost. Although these people’s
msuch a painful reality, made me go back losses have transformed their lives, they
to my dream and the recollection it brou- have tried to follow their new routines.
ght me. As I delivered the jars of frozen They are social workers, psychologists,

90
lawyers, activists and militants, housewi- [1] Juliara Borges Segata is a PhD. candidate in Social
ves, researchers, or people who had to le- Anthropology at UFRGS. The research referred to in
the text results from the Project Covid-19 in Bra-
ave their professions behind. More than zil: analysis and response to the social impacts of
a hundred people have wanted to be part the pandemic among health professionals and iso-
of this group since its creation, and today lated population (Agreement Ref.: 0464/20 FINEP/
more than a thousand people have asked UFRGS) developed by the Covid-19 Humanities MCTI
Network, for which she is a volunteer researcher.
to join. AVICO has changed pain into a Email: juliaraborges87@gmail.com.
collective struggle, like dreams; it beca-
[2] Translated by Ana Karina Borges Braun and proo-
me a space of encounter and transforma- fread by Ananyr Porto Fajardo.
tion of experiences.

91
Na foto, da esquerda para a direita, Rafaella, Jaime e Pâmela.

92
O que é um pai (e como despedir-se dele)
Por Pâmela Copetti Ghisleni e Rafaella Copetti Ghisleni

O que é um pai, afinal?


A relação entre pais e filhos se
dente que brigávamos (eu sinto tanta fal-
ta do nosso “gritedo”, “gritedo” este que
me situava no mundo e me fazia ver e
constrói numa ambivalência no mínimo
sentir que em minhas veias corria o teu
curiosa. Não sei o que é ser um pai, nem
sangue e a tua potência), tu fazias ques-
mesmo uma mãe, mas sei o que é ser filha
tão de “cobrar” da mãe o que parecia ser
de um pai presente. Então, acho que pos-
culpa dela, mas na verdade tinha tudo a
so responder a essa pergunta.
ver contigo: “mas, Liane, esta guria quer
Quando, aos 18 anos, me inscrevi ter sempre a última palavra!”. Tu tinhas
para o vestibular de engenharia florestal razão. Realizei-me profissional e também
e, como se a minha insanidade não tives- existencialmente fazendo Direito. Reali-
se limites, também para engenharia elé- zei-me ainda mais como advogada e pro-
trica, meu pai silenciou. Não me encora- fessora e neste terreno que eu gosto de
jou. Mas também não me castrou. Apenas desbravar como quem abre uma picada a
disse “vai, minha filha”. facão é importante marcar posição, prin-
cipalmente quando corremos o risco de
Fui. E voltei. Uma semana de curso
querer que as coisas, o mundo e princi-
foi suficiente para perceber que aquilo
palmente as pessoas mudem.
não era para mim. Lembro da brisa fresca
da noite de março na qual fui até a univer- Quando publiquei meu primeiro livro
Escaneie o QR code sidade para trancar o curso. Cheguei em e as caixas com a primeira tiragem che-
abaixo e ouça a casa e revelei o que eu achava que seria garam aqui em casa, você saiu meio que
narração desse texto um escândalo (eu achava também que se- à espreita com o celular à mão e lembro
ria uma revelação). No aconchego do lar, de ter pensado que tu não havias dado a
vi que não era nem um escândalo e muito importância devida para aquele momen-
menos uma revelação. Meu pai limitou-se to. Ledo engano. Em poucos minutos, na
a dizer “eu achei meio estranho mesmo, rádio local, anunciavam que a filha do Jai-
mas também achei que você devia tentar me e da Liane e a irmã da Rafaella havia
para ver se gostava”. E foi nesse exato publicado sua primeira obra. Eu olhava
momento, talvez um pouco tarde, é ver- para você, todo espaçoso sentado na sua
dade, que eu percebi que tu, meu pai, me namoradeira do quiosque, e via no fun-
conhecias como ninguém. do dos teus olhos marejados um orgulho
tão bonito. “Estou fazendo meu pai feliz”,
Quando brigávamos, porque é evi-
pensei, “é isto que um filho deve fazer

93
para o seu pai numa relação em que existe (e às vezes os teus também). Que homem
amor e cumplicidade”. Choramos juntos. sábio tu foste, meu pai.
Pouco antes de você adoecer, íamos a O dia de hoje não dói mais ou menos
Curitiba para que eu fosse fazer o concur- do que o de ontem ou do que o de ama-
so público da Polícia Civil do Paraná (tu nhã. Tu nem gostavas destas datas come-
rias de mim dizendo que eu “não ia ‘dar morativas mesmo. O dia de hoje dói como
muito certo’ como Delegada”; tu tinhas doem todos os outros. Mas hoje é o sau-
toda razão). Estávamos às voltas com os doso “Dia dos Pais” e tu mereces mais um
locais de prova, que não eram anunciados, texto. As palavras, tão valiosas para mim,
justamente em meio à pandemia. Mesmo instrumento do meu trabalho, do meu
sabendo que eu não queria a carreira, tu dizer e do meu desdizer, são o presente
achavas que eu devia ir. “Vai para trei- que ainda posso te dar. Se tu não podes
nar, minha filha”. Chorei (coisa que não ouvi-las, que o mundo inteiro saiba, e que
costumava fazer; agora faço mais do que fique registrado para a posteridade que
gostaria). Eu definitivamente não sabia se eu tive o melhor pai do mundo.
devia, e nem mesmo se queria, ir. Tu en-
Eu, Pâmela, acho que isto é um pai.
tão me disseste, com a firmeza que te era
tão particular: “Minha filha, essa decisão E como despedir-se de um pai?
é tua, é tu quem tem de saber se quer ou
É curioso pensar que podemos viver
não ir”. Chorei mais. Quando os locais de
100, 200 anos. A vida nunca vai nos pre-
prova foram finalmente anunciados, no
parar para despedir-se de um pai. Des-
sábado pela manhã, a menos de 24 horas
pedir-se de um pai é fazer o impossível,
da realização das provas, abri a porta do
mas é fazer o que tem de ser feito. Des-
teu quarto e da mãe, que ainda dormiam,
pedir-se de um pai é dizer, uma vez mais,
e sussurrei, sentada ao pé da cama: “pai,
que ainda estamos juntos, e que sempre
mãe, saíram os locais de prova”. Em uma
estaremos.
fração de segundos, como num piscar de
olhos, tu estavas de pé. Olhou-me com Entrar na UTI e me despedir de ti foi
aqueles teus olhos pretos de jabuticaba, a coisa mais difícil que já fiz na minha
aquele bigode anarquizado, e disse-me, vida. Antes de entrar, o Marlon pegou na
olhando-me no fundo da alma, “viu?!”, minha mão e me disse "fala pra ele que se
como se anunciasse que já devíamos es- estiver difícil ele pode descansar". A Din-
tar na estrada. Decidi que não iríamos. E da Martha, que chegou lá em 5 minutos,
que bom que não fomos (as provas foram me disse pra pedir pra que se ele tives-
canceladas na madrugada do dia no qual se um pouquinho de força, lutasse mais
seriam realizadas). Acho que tu me ensi- um pouco. Entrei e te vi saturando 80%.
naste a ser meio bruxa, a acreditar na mi- O pulmão expandindo quase nada. Nora
nha intuição. É bonito pensar assim, mas [noradrenalina] lá em cima e a PA [pres-
a verdade é que você me ensinou, como são arterial] caindo. Alternei umas 15 ve-
dizem por aí, a “assumir os meus BOs” zes entre falar que, se estivesse difícil,

94
você podia descansar que a gente ia ficar tu saiba que nós temos muito orgulho de
juntas e bem, mas, que se você tivesse ti.
forças e pudesse lutar mais um pouco, a
Obrigada por ter me dado um amor
gente ia estar juntas e te ajudar no que
tão grande que me preparou pra tudo nes-
fosse preciso. Alternava tanto porque eu
se mundo, inclusive pra ficar longe de ti.
sabia que você precisava descansar, mas
não queria que você sentisse que eu que- Eu, Rafaella, acho que isto é um pai,
ria que você descansasse. e acho que esta foi a forma que encon-
trei de dizer, uma vez mais, com as mãos
Foi o dia mais difícil e triste da mi-
agarradinhas, ainda que apartadas pelos
nha vida, e, assim como Chimamanda,
EPIs, que eu te amo.
peço a Deus pra que nunca haja um dia
que supere esse.
Hoje consigo perceber que tudo que Ijuí-Porto Alegre/RS, 08 de agosto de 2021.
tu me ensinou na vida me preparou pra
esse momento. Tu me ensinou a ser forte, Das gurias do Jaime, Pâmela e Rafaella Copetti Ghis-
a ser corajosa, a puxar a frente e seguir leni.
em frente. Me ensinou a ter voz, a não
baixar a cabeça, a ser independente. Me
*Jaime Luís Cottens Ghisleni faleceu vítima do novo
ensinou que eu tenho de me entregar de
coronavírus em Ijuí/RS, no dia 31 de março de 2021,
coração pra fazer e defender o que acre- aos 61 anos de idade. Jaime chorava mais de alegria
dito, pois é isso que dá sentido a vida. É do que de tristeza. Na tristeza, calava-se. Quando
olhar pra trás e ter orgulho do que se fez, formou as duas filhas, uma em Direito e outra em
Medicina, chorou. Gostava de sonhar. E como todo
do que se viveu. E eu sei que tu tem muito
bom sonhador, contagiou os outros com os seus so-
orgulho da vida que viveu e de mim e da nhos, especialmente as duas filhas, que mesmo com
Pã, onde quer que tu esteja. E quero que os pés fincados no chão, também gostam de sonhar.

95
96
What being a father means (and how to say goodbye)
By Pâmela Copetti Ghisleni and Rafaella Copetti Ghisleni[1]

W hat is the meaning of being a fa-


ther, anyway?
times fought (I miss so much our yelling
that placed me in the world and made me
see and feel that your blood and power
The relationship between parents
ran in my veins), you made a point of
and children is curiously ambivalent. I
"charging" mom for what seemed to be
don't know what it is to be a father or a
her fault, but it had everything to do with
mother, but I do know what it is to be the
you: but, Liane, this girl always wants to
daughter of a present father. So, I think I
have the last word! You were right. I was
can answer that question.
fulfilled professionally and also existen-
When I was eighteen, I applied to take tially by taking the Law degree. I became
the entrance exam for forestry enginee- even more fulfilled as a lawyer and a te-
ring and, as if my insanity had no limits, acher. I like to explore this terrain, like
also for electrical engineering; my father someone who cuts a narrow path through
was quiet. He didn’t encourage me or cas- the woods. And we need to mark a posi-
trate me. He just said, “go ahead, child”. tion, especially when we want things, the
world, and people to change.
I went ahead. And I came back. After
a course week, I realized that it was not When I published my first book and
for me. I remember the cool breeze of the the boxes arrived here at home, you snu-
March evening when I went to the univer- ck out with your cell phone in hand, and I
sity to drop out. I came home and revea- remember thinking that you hadn't given
led what I thought would be a scandal (I the moment the importance it deserved.
also thought it would be a revelation). In I was wrong. In a few minutes, the local
the warmth of home, I saw that it was nei- radio announced Jaime and Liane's dau-
ther a scandal nor much less a revelation. ghter and Rafaella's sister had published
My father said that decision sounded a her first book. I would look at you, sitting
little strange, but he thought I should try on your kiosk flirt chair, and see deep in
it to see if I liked it. your watery eyes how proud you were. I
thought I had made my father happy. I
And it was at that very moment,
also thought that was what a child should
perhaps a little late, it’s true, that I reali-
do for his loving father. We cried together.
zed that you, my father, knew me like no
other one. Shortly before you got sick, we were
going to Curitiba so that I could take the
When we fought, because we some-

97
public exam for the Civil Police of Paraná Today it hurts as all the others do. But
(you laughed at me, saying I would not today is the nostalgic "Father's Day,"
do well as a police inspector; you were and you deserve another text. Words,
right). We scrambled to find the test sites, so valuable to me, the instrument of my
which were not announced, right in the work, of my saying and saying nothing, is
middle of the pandemic. Although you the gift I can still give you. If you cannot
knew I didn’t want this career, you told hear them, let the world know I had the
me I should try it. I cried (which I did not best father ever.
use to do, but now I do more than I would
I think this is being a father.
like). I didn’t know if I should try it or
wanted to go. You then told me, with the And how to say goodbye to a father?
firmness that was so particular to you:
It’s curious to think that we can live
“Honey, that’s your decision. It’s up one or two hundred years. Life will ne-
to you whether you want to go or not." I ver prepare us to say goodbye to a fa-
cried some more. When they announced ther. It feels impossible to say goodbye
the exam sites on Saturday morning, less to a father, but it’s what I have to do now.
than 24 hours before the tests would take Saying goodbye to a father means we are
place, I went to your room. Mom was still and will always be together.
sleeping, and I whispered, sitting at the
The hardest thing I have ever done
foot of the bed: "Dad, Mom, they have
was enter the ICU to say goodbye to you.
released the test locations.” In a second,
Before I went in, Marlon took my hand and
as if in the blink of an eye, you were on
asked me to tell you should rest if that
your feet. You looked at me with those
was hard. Dinda Martha, who got there in
black eyes of yours, that anarchic musta-
5 minutes, told me to ask you to fight a
che, and said, looking deep into my soul,
little more if you were strong enough. I
"See?!", as if announcing we should be on
went in and saw you saturating 80%. Lung
the road by now. I decided not to go. And
expanding almost nothing. His noradre-
we were lucky we did not go because they
naline was up, and his BP was dropping. I
canceled the exams in the early hours of
thought about 15 times before giving you
the day on which they would take place.
Marlon's and Dinda Martha's messages. I
You taught me to be a bit of a witch, to
also meant to tell you we would be toge-
believe in my intuition. It's nice to think
ther to help you with whatever you nee-
so, but the truth is that you taught me to
ded. I thought so much because I knew
claim responsibility for my actions (and
you needed to rest, but I didn't want you
sometimes yours too). What a wise man
to worry about us.
you were, Dad!
It was the saddest and most difficult
Today it doesn’t hurt no more or less
day of my life, and, like Chimamanda, I
than yesterday or tomorrow. You didn't
pray to God I may never find a sadder
even like these celebration dates anyway.
day.

98
I can see everything you taught me ped hands, even if separated by PPE, that
prepared me for this moment. You tau- I love you.
ght me to be strong and brave, to pull
ahead and move forward, to have a voi-
ce, not to lower my head, and to be in- Ijuí-Porto Alegre/RS, August 8, 2021.
dependent. You taught me I have to give
myself wholeheartedly to do and defend From Jaime's girls, Pâmela and Rafaella Copetti
what I believe in because this gives mea- Ghisleni.[2]
ning to life. I’m proud of what you have
done and lived, and I know you are proud
[1] Translated by Ana Karina Borges Braun and proo-
of your life. You are proud of Pamela and
fread by Ananyr Porto Fajardo.
me, wherever you are. And I want you to
know that we are very proud of you. [2] Jaime Luís Cottens Ghisleni died from the new
coronavirus in Ijuí/RS, on March 31, 2021, at the
Thank you for giving me such great age of 61. Jaime cried more in joy than in sadness.
In sadness, he kept quiet. He cried at his daughters’
love that prepared me for everything, in-
graduation. One graduated in Law, and the other in
cluding being away from you. Medicine. He liked to dream. And like all good drea-
mers, he made others dream too, especially his two
I think you are the father, and this daughters, who, even with their feet firmly planted
is my way to say, once again, with clas- on the ground, are also dreamers.

99
“Estou aproveitando essa oportunidade para fazer o que ainda não tinha
feito: estou voltando ao Facebook para ler sobre o que aconteceu naquele 31 de
Foto de Kari Shea na Unsplash

março de 2021. E logo me deparo com a primeira frase: ‘Desejo que você tenha
a quem amar e quando estiver bem cansado ainda existe amor para recome-
çar’”.

100
O que fazer?
Por Nelson Fernando Carvalho

“E hoje, mais uma vez eu sonho con-


tigo! Acordo com uma sensação de
coração preenchido! No sonho tu não es-
não consigo enxergar o que estou escre-
vendo por causa das lágrimas.
Eu penso e digo para algumas pesso-
tava ao meu lado em matéria, mas ainda
as que eu tenho uma faca cravada no meu
estava aqui nesse plano. E estava bem, eu
peito e que às vezes ela se mexe e dói.
estava bem!! Embora a gente sentisse sau-
Quando aconteceu o fato a faca se mexia
dade uma da outra! E quando eu te disse
toda hora, mas aos poucos foi diminuin-
isso pelo whats, tu me manda prints das do. Só que hoje, lendo isto, ela deu uma
minhas ultimas postagens, inclusive de volta inteira no meu peito e não para. E
uma foto em que eu estava com as mãos justo hoje que eu tenho que falar sobre
sujas de chocolate! ‘Ontem de noite eu isso no grupo de apoio ao luto da Avico.
comi chocolate antes de dormir’. Eu en- Isso é algo que ninguém vai escapar, uns
tendi o que quis me dizer: ‘Eu estou te mais cedo, outros mais tarde. Só que nin-
acompanhando, tô vendo tudo! Mesmo guém sabe de que forma vai ser. Infeliz-
não estando mais nesse plano!!’. Desculpa mente Kati, tu foi cedo demais.
as lagrimas logo pela manhã .... Às vezes
elas pulam dos meus olhos, luto todos Por que eu não sonho com ela tam-
os dias com todas as forças que herdei bém? Por que nas duas ou três vezes que
de ti para que elas não venham... Às ve- sonhei não lembro direito? Mas, todos os
zes a saudade vence!!! EU TE AMO MÃE, E dias eu lembro dela (todos!). E como eu
Escaneie o QR code
ESTAMOS COM SAUDADE!! (Foi essa frase amo música e passo o dia cantando, estou
abaixo e ouça a
que te mandei pelo whats no sonho) #Se- sempre lembrando, já que muitas músi-
narração desse texto
jaSempreLuzMãe” [1]. cas me lembram você:

Acordo e olho o Facebook e a primei- “Às vezes me pego sozinho pensan-


ra postagem que vejo é esta, escrita pou- do em você. Me bate a saudade no peito,
cas horas antes pela minha filha. querendo te ver”[2].

Posso falar que ela acabou comigo, “Tem horas que bate uma tristeza tão
minha filha? Não dá. Não posso. Não devo grande que eu não sei o que fazer e nem
dizer. Tu está lutando com um imenso para onde ir”[3].
monstro dentro de ti e se eu falar algo “Hoje eu preciso ouvir qualquer pa-
vou te deixar pior ainda. Vou chorar sozi- lavra tua, qualquer frase exagerada que
nho para não te deixar mais triste. Quase me faça sentir alegria em estar vivo. Hoje

101
preciso de você com qualquer humor, “Ela está em um lugar de muita paz
com qualquer sorriso. Hoje só tua presen- e luz”.
ça vai me deixar feliz. Só hoje”[4].
“Tenho certeza que os grandes mes-
Então, acho que a morte nos traz tres estão conduzindo ela nesse momen-
muita dor, tristeza, decepção. Mas, nos to”.
dá forças para continuar seguindo em
“Fará muita falta minha amiga. Ficam
frente porque temos outras pessoas im-
os belos frutos que deixaste. Com certe-
portantes nessa vida que precisam de
za deixará em cada um agradáveis lem-
nós. Penso que quem era bom continua
branças. Lembrarei com carinho do zelo
sendo bom ou até melhor, mas quem era
ao cuidar da minha filha, do sorriso e voz
mau continua sendo mau (provavelmente
doce, do espirro delicado, xis mega capri-
deve ter exceções).
chados, goiabas compartilhadas e tantos
Estou aproveitando essa oportunida- outros momentos que tive o privilégio de
de para fazer o que ainda não tinha feito: estar com ela. Ser iluminado, seguirá o
estou voltando ao Facebook para ler so- caminho da luz envolta de todo amor e
bre o que aconteceu naquele 31 de março carinho de todos nós. Chinho, Tami, Cla-
de 2021. E logo me deparo com a primei- ra, Fernando e Fabi. Sigam unidos e fortes
ra frase: “Desejo que você tenha a quem no amor. Força e serenidade”.
amar e quando estiver bem cansado ainda
existe amor para recomeçar”[5]. Todos a amavam. Ela era especial. E
dizem que ela é uma luz que vai iluminar
Vejo a foto da lua cheia que ela ama- nós todos.
va e sempre tirava fotos.
Nesse momento minha neta me liga
Consegui ler 331 comentários no por vídeo com aquele sorriso e me faz
perfil do Facebook da minha filha. Doeu! lembrar o que a Kati dizia: “Tu é a luz dos
“A guerreira descansou. Seja sempre luz, meus olhos”. E tenho que parar de chorar
mãe”. para falar com ela.
“Que o brilho que ela tinha se trans- E é por ela e pelos meus filhos que
forme em uma estrela”. vivo agora.
“Seu brilho inesgotável e cativante
agora está sobre nós”.
*Nelson Fernando Carvalho de Paula, Chinho, espo-
“Ainda tenho um bonequinho que ela so de Kati Soares de Paula, falecida em 31/03/2021,
aos 55 anos, em decorrência da Covid-19. Pai de
me deu no Natal e falou para mim que era
Tamires Soares de Paula e de Fernando Soares de
meu neto homem. Porque eu não tinha Paula, avô da Clara. É uma homenagem a amada Kati
um filho homem e foi uma pura verdade. e aos 41 anos de casamento, como ela sempre dizia:
Meu primeiro neto foi um homenzinho “Sinto muito, me perdoe, te amo, sou grato”.
que encheu de alegria nossa família”. [1] Texto escrito no Facebook por minha filha Tami-
res na manhã do dia 03/09/2021.
“A luz que nunca passou em branco”.

102
[2] Música “Caçador de Corações” da dupla Gian & [4] Música “Só Hoje” da banda Jota Quest.
Giovani.
[5] Música “Amor para recomeçar” de Frejat.
[3] Música “Choro” de Fábio Júnior.

103
104
What to do
By Tamires Carvalho [1]

I dreamed of you again! I woke


up with a feeling of a full heart!
In the dream, you were not beside me in
I’m used to tell people I have a knife
stuck in my chest that sometimes moves
and hurts. When the fact happened, it mo-
the matter, but you were still here on this ved all the time, but gradually it calmed
plane. Even though we missed each other, down. Only today, reading this, it went all
we were fine! And when I told you this the way around my chest and won’t stop.
through WhatsApp, you sent me prints Therefore, I have to talk about it in the
of my last posts, including a picture of Associação de Vítimas e Familiares de Ví-
me with chocolate all over my hands! You timas da Covid-19 [Covid-19 Victims and
said you had seen me eating chocolate be- Victims’ Family Members Association] –
fore going to sleep. I knew you meant you AVICO Brasil bereavement support group.
were with me, seeing everything, even No one will escape it sooner or later. It’s
though you were no longer on this plane! just that no one knows which way it will
Sorry about the tears in the morning. So- go. Unfortunately, Kati, you went too soon.
metimes they jump out of my eyes, and
Why haven’t I dreamed of her too?
I fight every day with all the strength I
Why can’t I remember well the two or three
inherited from you to stop them. Someti-
dreams I had? But every day, I remember
mes longing wins! I LOVE YOU MOM AND
her. And since I love music and spend my
I MISS YOU!!! (This is the sentence I sent
days singing, I’m always remembering
you in WhatsApp in my dream) #BeAlwa-
many songs that remind me of you:
ysLightMother”. [2]
“Sometimes, I catch myself alone
By Nelson Fernando Carvalho [3]
thinking of you. I miss you in my chest,
I wake up and look at Facebook, and longing to see you”. [4]
the first post I see is the one my daughter
“Sometimes, I feel so sad that I don’t
wrote a few hours earlier.
know what to do or where to go”. [5]
Can I say her death is the end of me,
“I need to hear any word from you,
my child? I can’t. I must not say it. You
any exaggerated phrase that makes me
are struggling with a monster inside you,
feel joy at being alive. Today I need you
and if I say anything, I will make you feel
in any mood, with any smile. Today only
even worse. I’ll cry alone so as not to
your presence will make me happy. Just
make you sadder. I can barely see what I
today.” [6]
am writing because of the tears.

105
Although death brings us a lot of “We’ll miss you, my friend. The be-
pain, sadness, and disappointment, it autiful fruits you left behind will remain.
gives us the strength to keep moving fo- You left pleasant memories in each one.
rward because other important people I’ll remember with fondness the zeal in
need us. Those people who have been taking care of my daughter, the smile and
good will be as good as before or even sweet voice, the soft sneezing, the deli-
better. But those people who have been cious hamburger you made, shared gua-
bad will always be the same. (There pro- vas, and so many other moments I had
bably are exceptions). the privilege to share with you. As an
enlightened being, you’ll follow the path
I’m taking this opportunity to do
of light surrounded by all the love and
what I have not done before: I’m going
affection from all of us. Chinho, Tami,
back to Facebook to read about what ha-
Clara, Fernando, and Fabi. Stay united in
ppened on March 31, 2021. Then I came
love, strength, and serenity.”
across the first sentence: “I wish you have
someone to love and when you are tired, Everyone loved her. She was special.
you still find love to start over.” [7] And they say she is a light that will illu-
minate us all.
I see the picture of the full moon she
loved. She used to take photos of it. My granddaughter has just called me
by video with that smile to remind me of
I managed to read 331 comments on
what Kati used to say: “You are the light
my daughter’s Facebook profile. It hurt!
of my eyes.” And I have to stop crying to
“The warrior has rested. Always be light,
talk to her.
mom.”
And it is for her and my children that
“May the glow she had become a
I live now.
star.”
“Her inexhaustible and captivating
[1] Translated by Ana Karina Borges Braun and proo-
glow is now upon us.” fread by Ananyr Porto Fajardo.
“I still have a little doll she gave me [2] My daughter Tamires wrote this text on Face-
for Christmas, telling me it was supposed book on September 3, 2021.
to be my male grandson because I didn’t [3] Nelson Fernando Carvalho de Paula, also called
have a male child. My first grandson was a China, was Kati Soares de Paula’s husband. Kati died
little man who filled our family with joy.” from Covid-19 on March 31, 2021 when she was fif-
ty-five. Nelson has two children, Tamires Soares de
“The light that never went blank.” Paula and Fernando Soares de Paula. He also has a
granddaughter, Clara. “I dedicate this tribute to my
“She’s in a place of great peace and beloved Kati and our 41 years of marriage. As she
light.” always said: “I’m sorry, forgive me, I love you, I am
grateful.”
“I’m sure the great masters are lea-
[4] Song “Caçador de Corações” by Gian & Giovani.
ding her at this moment.”

106
[5] Song “Choro” by Fábio Júnior. [7] Song “Amor para recomeçar” by Frejat.
[6] Song “Só Hoje” by Jota Quest.

107
Foto de Sasha Freemind na Unsplash

“Com espírito alegre e extrovertido, Gianni não escondia seus sentimentos.


Muitas vezes, devastava o ambiente com suas explosões. Vivia para ver um
sorriso nos lábios de cada sobrinha que amava incondicionalmente.”

108
Sonho interrompido
Por Cláudia Dantas Pinto de Sousa

H á meses sentia a necessidade de


exteriorizar meus sentimentos de
angústia e revolta provocados pelo passa-
não pode compartilhar a mesa com a figu-
ra feminina mais importante de sua vida:
sua mãe! Pela manhã, procurou ajuda,
mento de minha afilhada e sobrinha Gian- embora tardia. Adentrou os corredores
ni. Revolta porque, com apenas 34 anos e do hospital , e a partir daí somente men-
transbordando vida, foi retirada de seu so- sagens dela pelo “whats app”, o restante
nho e projeto de, em um futuro próximo, do dia queixando-se de fraqueza. Um dia
experimentar a plenitude da maternidade. após, o quadro se agravou, as enfermeiras
nos acalmavam com telefonemas de aca-
Há 34 anos, ela chegou para alegrar
lento e assim mantínhamos a esperança.
minha família. Ainda tinha meses, quan-
Jamais passava em nosso pensamento um
do sua mãe, minha irmã, separou-se do
acontecimento pior.
seu pai e, assim, toda a família ganhou
uma filha, uma sobrinha e uma neta. Para O fim da tarde veio como um crepús-
todos resumido em uma única palavra: fi- culo; pois a médica de plantão, amiga de
lha querida e amada. infância da Giannni , dizia com os olhos
seu verdadeiro estado de saúde. E assim
Com espírito alegre e extrovertido,
foi, nas horas derradeiras do dia dez de
não escondia seus sentimentos. Muitas
maio de 2021, após uma tentativa de in-
vezes, devastava o ambiente com suas
tubação, seus últimos suspiros de vida
explosões. Vivia para ver um sorriso nos
Escaneie o QR code foram dados.
lábios de cada sobrinha que amava in-
abaixo e ouça a condicionalmente. Por outro lado, se algo Esse triste acontecimento com minha
narração desse texto a descontentasse, não media palavras sobrinha querida e com milhares de ou-
para esbravejar suas raivas e frustrações. tras pessoas me pôs a refletir sobre o caos
que nos encontramos. Se há um culpado
Entretanto, um dia mostrou-se cansa-
por essa tragédia, que seja divinamente
da em estado gripal. Cinco dias se pas-
perdoado pelo mal que está conseguindo
saram, esse cenário não deu trégua e si-
fazer à humanidade!
lenciosamente invadiu seu pulmão. Nesse
momento, uma frase marcante para seu
pai: - não consigo ficar sentada, meu pai, * Cláudia Dantas Pinto de Sousa, 49 anos, professo-
sinto-me muito cansada – e assim foi ga- ra da rede estadual de São Paulo há 27 anos. Casada
lopante a deterioração de sua saúde. Um há 31 anos e moradora de uma pacata cidade de Sa-
dia depois, segundo domingo de maio, lesópolis, berço do Rio Tietê.

109
110
A broken dream
By Cláudia Dantas Pinto de Sousa [1], [2]

I have felt the need to exteriorize


my (feelings of) anguish and revolt
since Gianni, my niece and goddaughter,
ther, the most important woman in her
life! In the morning, she went to the hos-
pital searching for help, but it was too
passed away. After all, she was only thir- late. From that moment on, we could only
ty-four and full of life and soon inten- talk to her through WhatsApp. She com-
ded to experience the plenitude da mo- plained about feeling weak. The next day,
therhood. her health worsened even more, and the
nurses tried to calm us down and keep
She came thirty-four years ago to
us hopeful through encouraging phone
bring joy to my family. When she was a
calls. We would never imagine such a ter-
few months old, her mother (my sister)
rible thing would happen.
and father split. This way, the family wel-
comed a daughter, a niece, and a grand- The evening came as twilight. The
daughter. In a few words, she was everyo- doctor on duty was Gianni’s childhood
ne’s dear and beloved daughter. friend, and her look told us about my nie-
ce’s health condition. This way, on May
She was cheerful and extroverted and
10, 2021, Gianni was intubated and gave
never hid her feelings. Often she devasta-
her last sigh.
ted the environment with her explosions.
She loved seeing her nieces smiling. She My dear niece’s death and millions of
loved them unconditionally. On the other other deaths have made me think about
hand, whenever she got displeased, she the chaos we have faced. If there’s a cul-
raved about her anger and frustration. prit for this tragedy, may God forgive him
for harming humankind!
However, one day she felt tired due
to the flu-like symptoms. Five days later,
she got worse and had her lungs affected. [1] Cláudia Dantas Pinto de Sousa is 49 years old.
At that moment, she told her father she She has been a São Paulo state school teacher for
was exhausted – thus, her health declined twenty seven years. She has been married for thirty
one years and lives in in the quiet town of Salesópo-
fast. The next day was Mother’s Day, but lis, the birthplace of the Tietê River.
she couldn’t share the table with her mo-
[2] Translated by Ana Karina Borges Braun and
proofread by Ananyr Porto Fajardo.

111
Foto de Adrian Hernandez na Unsplash

“Eu canto para a minha mãe, que me embalou com cantigas de ninar. Que hoje
embalam meus sonhos.”

112
Obrigada, Mãe!
Por Gilmara Bueno

M inha mãe, Conceição Bueno, 76


anos, faleceu de Covid-19 em 3
de março de 2021, na cidade de Passo
Fui tomada por um enorme sentimen-
to de impotência. Subitamente percebi,
que mesmo sendo médica, naquele mo-
Fundo – RS. Faleceu três semanas após os mento, nada podia fazer para ajudar, nada
primeiros sintomas (ficou uma semana podia fazer para salvá-la. A doença seguia
em casa, uma semana no leito do hospital seu curso inexorável. Apenas orei e entre-
e uma semana na UTI). Deixou dois filhos, guei nas mãos de Deus nossas vidas.
além de mim: Paulo (54 anos), Alexandre
(46 anos); e três netos: Arthur (20 anos),
Felipe (14 anos) e Augusto (9 anos). Três ***
semanas após seu falecimento, começou Conceição foi uma mulher alegre,
a vacinação para sua faixa etária. cheia de vida. As crianças costumavam
Conceição partiu de forma súbita, chamá-la de: “titia perfumada e colorida”.
quando vivia o melhor período de sua vida As amigas referiam-se a ela como: “alguém
em termos de saúde. Havia superado um que Deus fez e jogou a forma fora”. Sim,
câncer de mama, em remissão desde 2017. ela era única e especial. Com seus expres-
sivos e lindos olhos verdes, era cativante
e empática. Dotada de temperamento ex-
*** pansivo, fazia amigos onde quer que es-
Escaneie o QR code tivesse. Era amada por todos e também
O adeus por WhatsApp: amou os amigos e a família intensamente.
abaixo e ouça a
narração desse texto Vivenciei a dor de não poder vê-la, to- Sofreu grandes decepções, tristezas,
cá-la, estar ao seu lado para lhe alcançar incompreensões, traições, porém, nun-
um copo de água, uma fruta, uma flor... ca deixou a amargura tomar conta de sua
oferecer meu carinho e minha presença. essência, tão pouco o ceticismo. Seguia
A imagem dela sozinha é muito vívida em confiante no amor e na bondade. Gene-
minha mente. Através de vídeo chamada rosa, afetiva era o elemento agregador da
por WhatsApp, pude dizer a ela o quanto família. Priorizou a família em sua vida,
estava sendo forte e guerreira. Uma va- amava as festas e a casa cheia. Foi minha
lente, cujo semblante transmitia paz e se- referência de amor, meu modelo de mu-
renidade. E pude dizer também o quanto lher e ser humano, minha grande amiga e
eu a amo! confidente.

113
*** Eu sinto sua falta
Faço agora uma reflexão que vem da Mãe, desculpe pelas vezes que você
música composta por Bono Vox (vocalista chorou...
do grupo de rock U2). Bono a compôs em
Desculpe-me por não fazer as coisas
2020 para esse momento da pandemia
certas
que estamos passando. Diz assim: “cante
como um ato de resistência / cante apesar E por todas as tempestades que eu
de seu coração derrotado / cante, quando possa ter causado
você canta, não há distâncias / então, dei-
Eu estava errada, seque suas lágri-
xe seu amor ser conhecido”.
mas, seque suas lágrimas...
Eu canto para a minha mãe, que me
Mãe espero que isso a faça sorrir
embalou com cantigas de ninar. Que hoje
embalam meus sonhos. Espero que você esteja feliz com a
minha vida
Mãe, canto para você a canção inter-
pretada pelo grupo de tenores IL Divo, Em paz com todas as escolhas que eu
que se chama “Mama”. fiz
“Mama (mãe) Como eu mudei ao longo do cami-
nho... pelo caminho”.
Mãe, obrigada por quem eu sou
Obrigada, Conceição!
Obrigada por todas as coisas que eu
não sou “Quando se diz obrigada, se dizem
Desculpe-me pelas palavras não ditas muitas coisas mais, que vêm de mui-
to perto e de muito longe. De tão longe
Mãe, relembre toda a minha vida quanto a origem do indivíduo humano,
Você me mostrou o amor e se sacri- de tão perto quanto o secreto pulsar do
ficou coração” (Kahlin Gibram).

Pense em todos os dias, desde o início Obrigada, Mãe!

Como eu mudei ao longo do cami- Por ter acreditado no meu ideal, na


nho... minha utopia, no meu mundo de sonhos.
Por ter escutado minhas angústias, ale-
Eu sei que você acredita grias e decepções, sempre como se fosse
Eu sei que você tinha sonhos a primeira vez. Por acreditar que ainda
chegarei a ser mais do que sonhei.
Me desculpe se levei todo esse tempo
para ver
*Gilmara Bueno é médica psiquiatra com atuação
Que eu estou onde estou em Porto Alegre–RS. Idealizadora e CEO da platafor-
ma de saúde mental Junta Mente (www.juntamente.
Por causa da sua verdade com.br).

114
Thank you, mom!
By Gilmara Bueno[1],[2]

M y mother, Conceição Bueno, 76,


died of Covid-19 on March 3,
2021, in Passo Fundo, RS. She died three
me. Although I was a doctor, I realized
I could do nothing to help her, to save
her. The disease followed its inescapable
weeks after the first symptoms appeared course. I just prayed and put our lives in
(she stayed one week at home, one week in God’s hands.
the hospital bed, and one week in the ICU).
***
She left two sons besides me: Paulo (54 ye-
ars old) and Alexandre (46 years old). She Conceição was a joyful and full-of-li-
also left three grandsons: Arthur (20 years fe woman. The children used to call her a
old), Felipe (14 years old), and Augusto (9 fragrant and colorful auntie. Her friends
years old). Three weeks after her death, used to say God had made her and thrown
vaccination for her age group began. away the form afterward. That’s true.
She was unique and special. With her ex-
Conceição passed away in the heal-
pressive and beautiful green eyes, she
thiest period of her life. She had over-
was captivating and empathetic. She was
come breast cancer, in remission since
communicative and made friends where-
2017.
ver she was. She loved her friends and fa-
mily intensely, and they loved her.
*** She suffered great disappointments,
sadness, misunderstandings, and be-
The goodbye on WhatsApp:
trayals. However, she never let bitterness
It was painful not being able to see or skepticism take over her essence. She
her, touch her, be close to her to reach remained confident in love and goodness.
out for a glass of water, a fruit, a flower, She was generous and affectionate and
to offer my affection and my presence. always tried to aggregate her family. She
The image of her alone is vivid in my prioritized her family and loved throwing
mind. Through a video call on WhatsApp, parties and welcoming everyone. She was
I could tell her how strong and brave she my reference of love, my model of wo-
was. She was a warrior whose look con- man and human being, my great friend
veyed peace and serenity. And I could and confidant.
also tell her how much I love her!
A feeling of helplessness came over
***

115
I’m now making a reflection based on All of the storms I may have caused
a song Bono Vox (lead singer of the rock
And I’ve been wrong; dry your eyes
group U2) composed in 2020 for this mo-
[dry your eyes]
ment of the pandemic we are going throu-
gh. It goes like this: “sing as an act of And I know you believed
resistance / sing though your heart is over-
And I know you had dreams
thrown / sing, when you sing, there is no
distance / so let your love be known”.[3] And I’m sorry it took all this time to
see
I sing to my mother, who cradled me
with lullabies. Today they rock my dreams. That I am where I am because of your
truth
Mom, I will sing for you the song per-
formed by the tenor group IL Divo, which And I miss you, yeah I miss you
is called “Mama”. Mi mancherai
Mama[4] Mama I hope this makes you smile
Mama, thank you for who I am I hope you’re happy with my life
Thank you for all the things I’m not At peace with every choice I made
Forgive me for the words unsaid How I’ve changed along the way
For the times I forgot [along the way]
Mama remember all my life ‘Cause I know you believed in all of
my dreams
You showed me love, you sacrificed
And I owe it all to you
Think of those young and early days
Mama
How I’ve changed along the way
[along the way] Thank you, Conceição!
And I know you believed “When one says thank you, one says
many more things, which come from very
And I know you had dreams
near and far. They come as far away as
And I’m sorry it took all this time to the origin of the human individual, as
see close as the secret heartbeat.” (Khalil Gi-
bran)
That I am where I am because of your
truth Thank you, Mom!
And I miss you, yeah I miss you Thank you for believing in my ideal,
my utopia, my dream world. Thank you
Mama forgive the times you cried
for listening to my anguish, joys, and
Forgive me for not making right disappointments, always as if it was the

116
first time. Thank you for believing I’ll [2] Translated by Ana Karina Borges Braun and
still be more than I could have dreamed. proofread by Ananyr Porto Fajardo.
[3] Available at: https://www.letras.mus.br/
u2/let-your-love-be-known/. Accessed: 15 January
[1] Gilmara Bueno is a psychiatrist who works 2023.
in Porto Alegre, RS. She is the founder and CEO of
the mental health platform Junta Mente (www.jun- [4] Available at: https://www.letras.mus.br/
tamente.com.br). il-divo/264343/. Accessed: 15 January 2023.

117
“Entre meu pai e eu são incontáveis as despedidas. Quando eu passava as
Foto de Ben Shanks na Unsplash

férias com minha mãe em Porto Alegre. Quando, aos 11 anos de idade, decidi
viver com ela. Nas visitas que eu fazia, e ele sempre pedia pra eu ficar ‘mais
uns dias’. Há quase 4 meses, a última e mais dolorosa despedida.”

118
Meu último adeus
Por Vitória Passos Bender

E ntre meu pai e eu são incontáveis


as despedidas. Quando eu passava
as férias com minha mãe em Porto Ale-
so e incansável. Mano, obrigada por isso!
No segundo dia de enfermaria, quando a
máscara de Hudson já não ajudava e ele
gre. Quando, aos 11 anos de idade, decidi precisou do respirador, o medo tomou
viver com ela. Nas visitas que eu fazia, e conta de mim. Tentando segurar o choro,
ele sempre pedia pra eu ficar “mais uns corri pra casa, arrumei uma mala e “voei”
dias”. Há quase 4 meses, a última e mais para Canguçu. Naquele momento, já era
dolorosa despedida. A covid-19 levou quase impossível manter a calma. Meu
meu pai. pai era jovem, saudável, eu simplesmente
não conseguia acreditar que ele estava se
Foram uns 10 dias entre o resultado
aproximando de uma entubação, de leito
positivo do exame e a internação hospita-
de UTI ou do pior. Na manhã do quarto
lar. Dias de febre, de antibióticos, de di-
dia de internação, veio a notícia que ne-
ficuldade para respirar, de verificação da
nhum de nós queria ouvir: meu pai seria
saturação, de apreensão. Eu acompanha- sedado e entubado. Em uma chamada de
va tudo de longe, afinal, havia risco de vídeo, que durou pouco mais de 1min, ti-
contaminação. Meu pai estava no quarto, vemos de nos despedir. Eu só consegui
isolado, e não tinha nada que eu pudesse dizer que o amava, que ia ficar tudo bem
fazer além de acreditar que tudo ficaria e que estávamos esperando por ele.
bem. Até que, no dia 21/05/2020, recebi
Escaneie o QR code uma mensagem no whatsapp, as últimas As visitas na UTI eram sempre mui-
abaixo e ouça a palavras dele pra mim: “Não dá mais, vou to tristes, as notícias nunca chegaram a
narração desse texto ter que ir para o hospital. Estão vindo me ser boas de verdade e nos apegávamos a
buscar”. Uma vez mais a impotência... eu qualquer pequena possibilidade de me-
não podia fazer nada além de continuar lhora. Eu me orgulhava de conseguir não
acreditando que tudo ficaria bem. chorar perto dele, naqueles míseros 15
minutos de visita, conseguia me manter
O hospital em que meu pai foi in- forte, falar das coisas que ele gostava de
ternado permitia a permanência de um fazer, das “sapequices” da Elena, minha
acompanhante. Na prática, meu irmão irmã mais nova, e do churrasco que eu
foi internado junto. Não podíamos reve- assaria quando ele voltasse pra casa. Eu
zar, se ele saísse de lá, não poderia re- sei que ele sentia nossa presença, mes-
tornar, mas pelo menos sabíamos que o mo sedado. E, de alguma forma, reagia.
pai não estava só. Meu irmão foi corajo- A mão que tentava segurar a minha, a so-

119
brancelha que levantava levemente, os vacina, negacionismo, negligência, apos-
batimentos que aceleravam. Ele sabia que ta na imunidade de rebanho, genocídio.
estávamos lá por ele. Pra ele. Por duas doses de uma vacina que já exis-
tia. A dor da perda e a saudade são in-
Foram quase 30 dias de uma batalha
findáveis. A revolta e a sensação de im-
injusta, dolorosa e cruel. Meu pai resistiu
potência, também. Sempre lembrar, para
bravamente, mas o corpo já não aguen-
nunca esquecer daqueles que não tiveram
tava mais. E eu, que tantas vezes disse
chance de lutar com todas as armas.
adeus, tive que me despedir pela última
vez. “Parada cardio-pulmonar, insufici-
ência respiratória, SARA por Covid-19” é *Vitória Bender é filha de Clésio Bender, falecido em
o que consta na certidão de óbito como 18 de julho de 2021, aos 49 anos, em decorrência
causas da morte. Eu acrescento: falta de da Covid-19.

120
My last goodbye
By Vitória Passos Bender[1],[2]

M y father and I had countless goo-


dbyes. We said goodbye when I
spent the vacations with my mother in
thank you for that! On the second day at
the ward, when Hudson’s mask no longer
helped and dad needed the respirator, I
Porto Alegre, when, at the age of 11, I panicked. Trying to hold back the tears,
decided to live with her, when I visited I ran home, packed a bag, and “flew” to
him, and he always asked me to stay a Canguçu, RS. I could hardly stay calm. My
few more days. Our last and most pain- father was young and healthy, and I could
ful goodbye was almost four months ago not believe that he was approaching intu-
when covid-19 took my father away. bation, an ICU bed, or the worst. On the
morning of the fourth day of hospitaliza-
It took about ten apprehensive days
tion, we heard the terrible news: my fa-
between the positive test result and the
ther would be sedated and intubated. We
hospital admission. My father had to take
had to say goodbye in a one-minute vi-
antibiotics and measure his saturation
deo call. I could only say I loved him, that
because of fever and difficult breathing.
everything was going to be okay, and that
I had to follow everything from afar; af-
we were waiting for him.
ter all, there was a risk of contamination.
My father was in the room, isolated. All I The visits to the ICU were always sad,
could do was hope he would be fine. On news was never good, and we clung to any
May 21, 2020, I received his message on possibility of improvement. I was proud
WhatsApp. His last words to me said he for not crying next to him during the fif-
could not stand anymore and had to go teen-minute visits. I was able to keep my-
to the hospital. The ambulance was co- self strong, talking about the things he
ming to get him. Again, I felt powerless. I liked to do, my playful younger sister Ele-
couldn’t do anything but continue to be- na, and the barbecue I would cook when
lieve that everything would be fine. he came home. I know he felt our presen-
ce, even sedated, and somehow he reac-
The hospital where my father stayed
ted. I could feel his hand trying to hold
allowed one accompanying person. In
mine, his slightly raised eyebrow, and his
practice, my brother could accompany
accelerated heartbeat. He knew we were
him. We could not take turns. If my bro-
there for him.
ther left, he couldn’t come back, but at
least we knew dad was not alone. My This unfair, painful, and cruel battle
brother was brave and tireless. Brother, lasted almost thirty days. My father resis-

121
ted bravely, but his body could not take it feeling of powerlessness, too. Always re-
anymore. And I had to say goodbye for the member to never forget those who didn’t
last time. The cause of death on the cer- have the chance to fight with all their we-
tificate read cardiopulmonary arrest, res- apons.
piratory failure, and ARDS by Covid-19. [1] Vitória Bender is Clésio Bender’s daughter. He
I would add lack of vaccines, denialism, died from Covid-19 on July 18, 2021, at the age of
neglect, betting on herd immunity, and 49.
genocide. The pain for the loss and the [2] Translated by Ana Karina Borges Braun and proo-
longing are endless. The revolt and the fread by Ananyr Porto Fajardo.

122
123
Foto de Nasim Dadfar na Unsplash

“Aprendi muitas coisas contigo nesse tempo. Em vida foste meu farol, nada
mais justo te retribuir agora. Te celebro a cada dia e vou celebrar até o fim da
vida.”

124
Ser de luz
Por Tatiane Silva da Silva

H á 10 meses e 15 dias fizeste a


passagem para o mundo espiri-
tual, ainda assim, tem dias que me pego
Choro pelas coisas que não farás com o
teu guri (o orgulho da tua vida), choro pe-
los sonhos e planos interrompidos. Choro
tentando acreditar no que aconteceu... porque tínhamos a certeza que coisa boa
Naquela sexta-feira do dia 18/12/2020, não viria desse governo, antes mesmo das
perto das 15h30, você entrava no SAMU, eleições, tinha algo maligno pairando no
só estava “meio amarelinho”, segundo ar e já estávamos em sofrimento. Choro
me relataram... E, no mesmo instante, porque tu não me ouviste… e pelas diver-
começava o meu desespero para chegar sas vezes que te pedi para ficar comigo,
em Porto Alegre o quanto antes, pois só pois, aqui, os casos eram baixos. Choro
conseguia pensar no teu medo de estar porque tu dizias que estavas bem e, pro-
num hospital, porque tu era assim, tinha vavelmente, naquela altura já sabias que
medo de quase tudo (rsrsrs), mas era par- não resistirias à doença. Choro porque sa-
ceria para os filmes de terror, deixava o bia que tu estavas com muito medo e não
medo de lado e assistia só para me acom- falaste nada para não me preocupar. Cho-
panhar... ro quando passam as programações que
combinávamos de assistir juntos, choro
Enquanto aguardava na rodoviária,
quando termina um filme e não tenho a
um milhão de coisas passavam pela cabe-
tua opinião e, antes, sempre trocávamos
ça, não conseguia pensar racionalmente,
Escaneie o QR code os pontos de vista acerca dos filmes...
era um misto de sentimentos que dispu-
abaixo e ouça a tavam espaço com rezas e súplicas e, ob- Tudo me leva a lembrar de ti. Nes-
narração desse texto viamente, o discurso que estava na ponta ses quase 10 anos, fazíamos tudo jun-
da língua, pois claro que eu iria te cobrar tos (mesmo à distância), éramos nós pra
explicações! Tudo em vão... tudo, sempre.
Às 18h tu perdias o bem mais precio- Diante de todo o horror exposto na
so: a vida. Engoli o discurso, mas não o mídia, difícil não me perguntar "Por que
choro. Choro ao lembrar que tiraram tua te foste tão rápido? Anteciparam tua par-
chance de se vacinar, porque esse gover- tida? Te deram remédios sem eficácia
no medíocre atrasou o máximo que pode comprovada?" Afinal, todo mundo vai
a aquisição das vacinas pela ganância do morrer um dia, tu serias apenas mais um
dinheiro. Choro porque tu tinhas uma naquele momento… Será que teu porte
vida inteira pela frente, só tinha 48 anos. de não atleta valia a exaustão dos médi-

125
cos? Será que decidiram quem morreria tentando retomar a paz que me tiraram
ou viveria? Será que viram uma oportuni- na marra, porque sou muito maior que
dade de se pouparem de trabalhar? vocês, em sentimento e espírito.
Meu choro não é pela morte em si, Aprendi muitas coisas contigo nes-
porque ela é a única certeza da vida, meu se tempo. Em vida foste meu farol, nada
choro é pela injustiça de terem usurpa- mais justo te retribuir agora. Te celebro a
do tua vida sem nenhum escrúpulo, de cada dia e vou celebrar até o fim da vida.
propósito, de caso pensado, coisa antiga, Quero que recebas toda a iluminação pos-
afinal, a meta era matar uns 30 mil e a sível. Provavelmente estás agitando aí em
pandemia só facilitou a intenção. cima, gostavas de ser o centro das aten-
ções em vida e não poderia ser diferen-
Aos que elegeram esse governo geno-
te agora. Te imagino cercado de luz, sob
cida, meus parabéns, atingiram o objeti-
uma chuva de flores celestiais e bons es-
vo com sucesso. Que vocês tenham vida
píritos. Fica bem, aí. Vou ficar bem, aqui.
longa e plena, porque gente de mentali-
Até porque nós merecemos. Te lembran-
dade rasa, atrasada, tacanha e todos os
do, amando e venerando.
maus adjetivos que existirem nesse mun-
do são insuficientes para denominar vo- P.S: Ficas me devendo as verificações
cês. Certamente vão precisar de muitos e nos textos que eu sempre te pedia.
muitos anos de vida para refletir as male-
zas pensadas e cometidas e, ainda assim,
será pouco tempo pra limpar todo o ódio *Tatiane Silva da Silva, 44 anos, natural de Porto
Alegre, estou engenheira civil concursada no muni-
espalhado por vocês neste mundo. Estou cípio do Rio Grande desde fevereiro de 2019. Namo-
rava com o Iuri desde abril de 2011.

126
A being of light
By Tatiane Silva da Silva[1],[2]

A lthough you have made the pas-


sage to the spiritual world ten
months and fifteen days ago, sometimes
only 48 years old, because of the things
you will not do with your son (the pride
of your life), the dreams and plans that
I still catch myself trying to believe what were interrupted, the certainty that no-
happened... On that Friday, December thing good would come of this govern-
18, 2020, around 3:30 pm, you entered ment, even before the elections. We knew
the Emergency Medical Service. You only there was something evil hovering in the
looked a little yellow, as the doctors told air and we were already suffering. I cry
me. At that moment, I got desperate to get because you didn't listen to me. I cry for
to Porto Alegre as soon as possible. All I the many times I asked you to stay with
could think about was your fear of being me, because here the cases were low. I cry
in a hospital. You were like that, you were because you said you were fine, and pro-
afraid of almost everything (lol), but you bably by then you knew you would not
were a partner for horror movies becau- survive the illness. I cry because I knew
se you put your fear aside and watched you were terrified, and you didn't say
them only to keep up with me... anything not to worry me. I cry when the
TV shows that we had agreed to watch to-
While waiting at the bus station, a
gether are on, I cry when a movie ends
million things went through my head. I
and I cannot hear your opinion as befo-
couldn’t think. Mixed feelings fought for
re, when we always exchanged points of
space with prayers and pleas and, of cou-
view about the movies.
rse, the discourse that was on the tip of
my tongue because I was surely going to Everything reminds me of you. We
ask you for explanations! All in vain... did everything together (even at a distan-
ce) during the last ten years.
At 6 p.m., you would lose the most
precious possession: life. I got spee- In the face of all the horror expo-
chless, but I could not avoid crying. I sed in the media, it’s hard not to wonder
cry every time I remember that they took why you left so early or why they gave
away your chance to be vaccinated becau- you ineffective drugs. After all, everyo-
se this mediocre government delayed the ne is going to die one day. You would be
acquisition of vaccines as long as they just one more at that moment. I wonder
could for the greed of money. I cry be- if your non-athletic bearing was worth
cause you had a whole life ahead , being the exhaustion of the doctors. I wonder

127
if they decided who would die or live. I I have learned many things from you
wonder if they saw an opportunity to save during this time. You were my beacon,
themselves from the trouble of working. and nothing could be more fitting than re-
ciprocating you now. I think of you every
I don’t cry about death because we
day, and I’ll do it until the end of my life.
know that eventually we will all die. I
I want you to receive all the enlighten-
don’t cry about the injustice of having
ment possible. You're probably rocking
your life usurped without scruple, on pur-
up there, you liked to be the center of at-
pose. After all, the goal was to kill some
tention, and it could not be any different
30,000, and the pandemic only facilitated
now. I picture you surrounded by light,
the intention.
under a shower of heavenly flowers and
I congratulate those who elected this good spirits. I hope you are fine there. I’ll
genocidal government. They have succes- be fine here. I know we deserve it, and I
sfully achieved their goal. May you have think of you, love you, and worship you.
a long and full life because this is what
P.S.: You owe me the text revisions I
people with a shallow, backward, narrow-
always asked you for.
-minded mindset like you deserve. You
will need several years to reflect on the
evils you have thought about and perpe- [1] Tatiane Silva da Silva is 44 years old. She was
trated. Even so, it will not be long enough born in Porto Alegre and has been working as a cer-
to clean all the hate you have spread in tified civil engineer in the city of Rio Grande since
this world. I’m trying to regain the peace February 2019. She had been dating Iuri since April
2011.
you took from me because I’m much bet-
ter than you in terms of feeling or spirit. [2] Translated by Ana Karina Borges Braun and proo-
fread by Ananyr Porto da Silva.

128
129
“Sei que farei falta, sei que meu amor é correspondido, sei que
nossa parceria durou por toda uma vida e que, nos últimos anos,
pudemos ficar mais tempo perto um do outro.”
Foto de Jess moe na Unsplash

130
A mensagem não lida

N o dia 27 de março de 2021, às


23h59, nosso pai, Roberto Pereira
da Silva, faleceu em decorrência de com-
dos mais simples aos mais complexos.
Um dos seus sonhos era conhecer a Euro-
pa e eu fui contigo, mesmo não querendo
plicações da Covid-19. No dia 28 de mar- tanto ir, mesmo com meu jeito rabugen-
ço, nossos pais fariam aniversário de ca- to, mas fui só pra te ver feliz, só pra ver
samento e gostavam de comemorar essa esse sorriso em seu rosto. Você não tem
data. Portanto, mesmo com muita dor, no ideia do amor que sinto por você.
dia seguinte à sua passagem escrevemos
Você é a minha paixão, o amor de
um texto em nome dele para nossa mãe.
toda a minha vida; e se eu vivesse mil ou-
Para que ela sentisse, através de nós, todo
tras vidas, desejaria que você estivesse
o amor e cuidado dele.
comigo em todas elas.
“Ao meu eterno amor, Toinha.
Sei que farei falta, sei que meu amor
Hoje, dia 28 de março, comemoro no é correspondido, sei que nossa parceria
céu os 34 anos da segunda melhor deci- durou por toda uma vida e que, nos últi-
são que tomei em minha vida. A primeira mos anos, pudemos ficar mais tempo per-
foi ter aceitado Jesus Cristo como meu to um do outro. E desejo que você fique
Senhor e Salvador e a segunda foi ter de- bem e que saiba que sempre terá nossa
cidido dividir a minha vida com você; e se família para cuidar de você. Deixei meus
eu pudesse voltar ao passado, teria esco- traços em cada um de nossos filhos e es-
Escaneie o QR code
lhido tudo de novo, mais uma vez. pero que você possa lembrar de mim ao
abaixo e ouça a
vê-los e que sinta meu abraço ao abraçá-
narração desse texto Benzão, até quem nunca te conheceu
-los, que sinta o meu cuidado ao ser cui-
sabe o quanto eu te amo, o quanto eu sou
dada por eles. Que você fique bem, fique
teu.
forte. Tome seus remédios nos horários
Meu coração foi seu até a última ba- certinhos, coma bem, descanse, divirta-
tida. Sempre tentei demonstrar o cuidado -se e receba o conforto que vem dos céus.
e o amor que sinto por você; e eu sei que Sei que sua fé é grande, inabalável, por
um dia nós vamos nos ver de novo, no isso descanse em nosso Senhor e na mes-
paraíso. ma certeza que eu tenho, a de que nos
reencontraremos na eternidade.
E eu te amo tanto que, mais do que
tudo, quero te ver feliz. Sempre lutei para Te amo para todo sempre, seu Eto.”
fazer os seus gostos, os seus caprichos,

131
(Homenagem póstuma escrita pelos *Sobre os autores:
seus filhos, com base em tudo o que ex- Thalita tem 34 anos, é a primogênita do casal, a
perienciamos como espectadores dessa “princesa dos cabelos mágicos”. É historiadora, re-
linda história de amor.)” visora de textos. Por vezes sofre, e chega a chorar,
ao olhar nos olhos de seus filhos, sabendo que eles
Infelizmente, no dia 11 de abril de estão privados da presença de seus avós, que se or-
2021, às 10h05, nossa mãe, Antônia Maria gulhavam tanto deles.
Martins da Silva, veio a falecer também e, Roberto tem 32 anos, é o filho do meio, o “Tico”.
por isso, nunca chegou a ler a mensagem Administrador e empreendedor. Tem tentado seguir
o exemplo de seu pai, dando suporte à família, e
que escrevemos. Ela não sentiu a perda tem sido forte ao ter que lidar com situações difí-
da partida dele e acreditamos que, ago- ceis que vêm acontecendo após o incidente.
ra, eles estejam juntos. O que nos resta Thaís tem 30 anos, é a caçula, a “Thizíca”. Adminis-
é essa imensa dor que dilacera, o vazio tradora e gerente de projetos. Mora na Irlanda e a
impreenchível que a ausência deles nos cada dia luta para se manter em pé, pois sua refe-
causou. Lutamos por justiça e para que a rência de lar para voltar não existe mais.
memória deles seja sempre exaltada com
amor e admiração.

132
The unread message
By Thalita Pereira da Silva, Roberto Pereira da Silva e Taís Pereira da Silva[1],[2]

O n 27 March 2021, at 11:59 p.m.,


our father, Roberto Pereira da Silva,
died of complications of covid-19. The
to visit Europe, and I went there with
you. Although I didn’t want to go, despite
my grumpy mood, I decided to go only
following day was our parents’ wedding to make you happy and see that smile on
anniversary, and they liked to celebrate your face. You have no idea how much I
the date. Despite the pain, we wrote our love you.
mother a text on his behalf so that she
You are my passion, the love of all
could feel all his love and care.
my life, and if I lived a thousand other
“For my eternal love, Toinha. lives, I would wish to spend all of them
with you.
Today, March 28, I’m in heaven cele-
brating the second-best decision I made I know you’ll miss me. I know you
34 years ago. The first one was to have love me too. I know that our partnership
accepted Jesus Christ as my Lord and Sa- lasted for all life and that, in recent years,
vior, and the second was to decide to sha- we could spend more time together. I wish
re my life with you; and if I could go back you all the best, and I want you to know
in time, I would have chosen everything you’ll always have our family to take care
again, once again. of you. I left my traces in each one of our
children, and I hope you can remember
My love, even those who have never
me every time you look at them, feel my
known you know how much I love you,
embrace when you hug them, and feel my
how much I am yours.
care when they take care of you. I hope
My heart was yours until the last you get well and are strong. I hope you
beat. I always tried to demonstrate the take your medicines at the right time, eat
care and love I feel for you, and I know well, rest, have fun, and feel the comfort
that one day we will see each other again; sent from Heaven. I know how immense
I know that one day we’ll see each other and unshakable your faith is. So, rest in
again, in Heaven. our Lord, and be sure we’ll meet again in
eternity.
And I love you so much that, more
than anything, I want to see you happy. I will love you forever, your Eto.”
I always fought to please your tastes and
(Posthumous tribute written by your
whims, from the simplest to the most
children, based on everything we expe-
complex ones. One of your dreams was

133
rienced as spectators of this beautiful [1] Thalita, alias princess of the magical hair, is 34
love story)”. years old and the youngest child. She is a historian
and text copyholder. Sometimes she suffers, and
Unfortunately, on April 11, 2021, at she even cries when she looks at her children and
remembers they’ll never see their so proud grandpa-
10:05 a.m., our mother, Antônia Maria rents again. Roberto, alias Tico, is 32 and the midd-
Martins da Silva, passed away. Therefo- le son. He’s a businessman and an entrepreneur. He
re, she was never able to read our mes- has attempted to follow his father in supporting his
sage. She didn’t feel the loss of his de- family and has been strong when dealing with diffi-
cult situations that have happened recently. Thaís,
parture, and we believe they are together alias Thizíca, is 30 and the youngest child. She’s a
now. All we have left is this immense, he- businesswoman and project manager. She lives in
artbreaking pain, the emptiness of their Ireland and has tried hard to stand upright because
absence. We fight for justice so that we she has lost her home reference.
can exalt their memory with love and ad- [2] Translated by Ana Karina Borges Braun and proo-
miration. fread by Ananyr Porto Fajardo.

134
135
“Certa vez minha cunhada me presenteou com uma xícara de porcelana. Ao me
entregar a xícara, ela me recomendou quase como um pacto, que sempre ao tomar
Foto de Crawford Jolly na Unsplash

um café eu me lembrasse dela. Minha cunhada significava muito para mim e se


ela me via como uma super cunhada, isso demonstrava o sentimento de afeto e
admiração recíprocos que nos unia desde os tempos da adolescência.”

136
Para uma Super Cunhada
Parte 1
Por Ivarlete de França

N ão sei muito por onde come-


çar, nem sei se esse é o começo,
meio ou o fim, mas vou contar. Certa vez
guém, compartilhando nossas dores, ale-
grias e sonhos, vivendo a vida com toda
sua intensidade, nos torna capazes de ex-
minha cunhada me presenteou com uma perimentar sentimentos de grandiosida-
xícara de porcelana. Ela continha os dize- de e até mesmo de imortalidade. É como
res: "Para uma Super Cunhada”. Ao me en- se o universo conspirasse a nosso favor
tregar a xícara, ela me recomendou qua- - um processo natural do ser humano no
se como um pacto, que sempre ao tomar sentido de se eternizar, especialmente no
um café eu me lembrasse dela. Ela veio amor.
de Londrina, no Paraná, para Xangri-lá, no
Minha cunhada era como uma irmã
Litoral Norte do Rio Grande do Sul, onde
para mim. Ela era a irmã mais nova de
residimos. Ela era uma pessoa que ado-
três, e meu marido é o mais velho. O ir-
rava viajar e aproveitou uma viagem que
mão do meio veio a falecer tragicamen-
fez a Gramado para me trazer a xícara de
te, ainda muito jovem. Não bastasse essa
lembrança. Eu fui a única da família a re-
perda, no mesmo dia em que ele morreu
ceber um presente naquele dia o que me
faleceu também a mãe deles, minha so-
deixou lisonjeada especialmente pelos
gra, foi um sofrimento duplo. Após isso,
dizeres. Minha cunhada significava muito
ocorreu o falecimento do meu sogro, fi-
Escaneie o QR code para mim e se ela me via como uma super
cando somente ela, minha cunhada e o
abaixo e ouça a cunhada, isso demonstrava o sentimento
meu marido, os dois únicos membros da
narração desse texto de afeto e admiração recíprocos que nos
família ainda vivos. Meus pais também
unia desde os tempos da adolescência.
logo faleceram e nos deparamos unidas
Ao mesmo tempo, eu sentia nessa men-
pela dor do luto, que infelizmente chega-
sagem o peso da minha responsabilidade
ria pra mim novamente.
pelo fato de estar sendo vista com tama-
nha qualidade e virtude. Sei lá, só sei que Foi no auge da pandemia, enquanto
eu fui eleita uma super cunhada. Por que procurávamos encontrar forças para so-
razão eu me sentia tão viva? Afinal, era breviver ao clima obscuro no qual fomos
apenas uma xícara, dessas que são ven- submetidos, que recebemos a notícia de
didas como souvenir em todos os lugares que minha cunhada, o marido e um filho
frequentados por turistas. Penso que os haviam testado positivo para o vírus. Ela
momentos em que passamos junto de al- mesma nos tranquilizou ao telefone di-

137
zendo que os sintomas eram leves e que Tomada pelo desânimo, eu só sabia
não havia motivos para preocupação. Nós lamentar a ausência e os planos que fize-
mulheres, somos sempre as cuidadoras mos para o ano de 2022, quando nos en-
da família, e como grande cuidadora, ela contraríamos em Curitiba para comemo-
não arredou pé do lado do marido e do rar minhas bodas de ouro. Tudo tinha ido
filho. O marido precisou ser entubado e por água abaixo e aquela sensação de im-
ela não saiu de perto dele no hospital. potência parecia interminável. Foi quan-
Ao contrário dele, ela não tinha comor- do eu vi o chamado numa rede social de
bidades, sua saúde era de ferro, como um amigo querido que se recuperava da
costuma se dizer na expressão popular. infecção pela Covid-19, para compor um
Nenhum deles havia sido vacinado, pois coletivo de pessoas, vítimas e familiares
estavam na interminável fila de espera, das vítimas da Covid 19, e que tinha o ob-
aguardando sua vez. Logo, o coração da jetivo de dar voz aos que se encontravam
gente já começou se afligir. Em menos alijados dos espaços de fala e de repre-
de uma semana, numa madrugada fria e sentação. Senti que era ali onde eu pode-
sombria, uma voz desesperada ao tele- ria ser acolhida e também acolher os que
fone trazia a triste notícia de sua morte. sofriam as dores das perdas pelo luto. Re-
Tivera uma parada cardíaca no momen- fleti muito antes de me colocar à disposi-
to da intubação, falava o meu sobrinho, ção, pois ainda continuava lutando para
enquanto parecia se sentir perdido, pois enfrentar minha dor. Pensei: nada melhor
o pai ainda estava hospitalizado. Nessa do que um café para nos ajudar a tomar
hora, perdemos o chão. A incredulidade decisão. Foi quando a força das palavras,
tomava conta da gente, milhões de per- gravadas naquela xícara, com os dizeres
guntas sem respostas nos atormentavam "Para uma Super Cunhada”, me impul-
todos os dias e noites. Tratava-se de uma sionaram a contribuir com esse projeto
pessoa saudável, então por que, por que, sensível, acolhedor e humanitário, que
por quê? Fomos impedidos de fazer o ri- se propõe transformar nossos lutos soli-
tual de passagem, de dizer o adeus final, tários em uma estratégia de luta coleti-
de chorar ao lado do corpo, de abraçar va – “do luto à luta”. Pela primeira vez,
os sobreviventes e oferecer conforto, de além das lembranças sofridas, a xícara
estar junto da família. Cada um sofria so- de café assumiu seu verdadeiro sentido
zinho. A dor da perda se amplificou com para mim! Hoje, integro a Associação das
a solidão, com a negação da despedida, Vítimas e Familiares das Vítimas da Co-
com o cancelamento da presença daquele vid 19 – AVICO como Diretora de Saúde e
que se foi e de quem ficou. Quem fica, faço parte do seu Grupo de acolhimento
não fica, se vai também, mergulhado no e apoio psicológico às pessoas enlutadas.
escuro de não poder ver de perto aquele
que partiu.

138
O dia em que o mundo parou
Parte 2

Por Irvalete de França

A o narrar minha dor, pergunto-me


como é que cada um reinventa a
vida. Como é que conferimos sentidos à
tos de muita angústia até que ele venceu
a batalha e saiu do hospital. Nesses mo-
mentos, nossas esperanças se renovaram
existência quando o sofrimento é inespe- pela volta a vida em recuperação de cada
rado e o momento é sombrio? Como ti- pessoa que sobrevive e nos permite espe-
ramos das próprias entranhas as forças rançar e lutar por todos os que ainda estão
propulsoras necessárias para colocar em doentes. Mas essa esperança não durou
palavras, faladas, cantadas ou escritas, muito tempo, minha cunhada não conse-
rompendo com o silêncio assusta (dor) guiu vencer a batalha e nos deixou, assim
que insiste em nos acompanhar? como muitos que não conseguiram vencer
Caminhando por dentro de mim mes- e deixaram aqueles que os amavam. É di-
ma fui encarar minhas lembranças. Tra- fícil aceitarmos perder quem amamos, es-
zer de volta as verdades que constituem pecialmente, um amor fraternal no verda-
minha essência. Uma colcha de retalhos deiro sentido da palavra e incondicional,
com inúmeros remendos, onde todos os como foi traduzido pela música do Renato
pedaços servem para levantar o meu cor- Russo, precisamos amar as pessoas como
Escaneie o QR code po e sustentar minha vida. Não é fácil re- se não houvesse o amanhã.
abaixo e ouça a viver uma dor mas, ao parirmos nossas Minha cunhada, já aposentada e com
narração desse texto memórias, mesmo que sofridas, delas re- os filhos criados, realizava seus sonhos,
nascemos. Cada um sabe a dor e a delícia fazendo aquilo que mais lhe dava prazer:
de ser o que é, já dizia a letra da música viajar, descobrir lugares desconhecidos e
de Caetano Veloso, cale a boca e não cale registrar seus passeios. Sempre feliz como
na boca a notícia ruim. se fosse uma criança descobrindo o mun-
No auge da pandemia, acompanhei a do e sempre vinha nos visitar para matar
luta de um amigo querido que se encon- a saudade recíproca. Cheia de vida e com
trava hospitalizado e intubado, através saúde, expectava ter vida longa, é assim
de um grupo de WatsApp criado pela irmã que acreditamos que deva ser quando se
dele para organizar uma corrente positi- trata de uma super mulher como ela. Eis
va pela sua recuperação. Foram momen- que veio a pandemia e mudou os rumos

139
das nossas vidas, tivemos que nos isolar, É nesse cenário devastador, propício ao
nada de visitas, nem viagens, tudo ficou sentimento três D - desamparo, desespe-
suspenso. O contato passou a ser somen- ro e desesperança - que se apresentam os
te virtual e só notícias de dor e de luto elementos favoráveis ao surgimento dos
invadiram nossas vidas. Algo de sombrio suicídios na sociedade. Nesse momento
se abateu sobre todos, trazendo de volta de sofrimento, com a baixa imunidade e
lembranças de dor e de lutos passados, também humanidade, é que se manifes-
multiplicados pelos lutos e dores do co- tam inúmeros agravos a saúde, nos obri-
tidiano de vidas perdidas pela Covid-19. gando a lutar ainda mais para sobreviver
Um misto de medo, impotência e indig- e nos manter saudáveis para enfrentar o
nação, tão impactantes e capazes de pa- nosso dia o dia pandêmico.
ralisar nossas vidas como se tivéssemos
Ainda tenho momentos de altos e
saído da letra da música de Raul Seixas - o
baixos sim, mas também vivo a experiên-
dia em que o mundo parou!
cia de compartilhar sonhos coletivamen-
Além de enfrentar um vírus mortal te, que renovam nossas esperanças de um
e até então desconhecido, ainda convi- novo amanhecer, tal qual dizem também
vemos com uma crise política sem pre- outros versos de Raul Seixas, “sonho que
cedentes, com a negação da ciência, com se sonha só é só um sonho, mas sonho
o ataques e boicotes contra os imunizan- que se sonha junto é realidade”.
tes, com a banalização das mortes e des-
Sigamos de mãos dadas, trocando
caso para com milhares de vidas perdi-
abraços, lágrimas e alegrias, na certeza
das. Uma nação desgovernada, jogada a
de que ninguém irá soltar a mão de nin-
própria sorte, desamparada, sem proteção
guém, mesmo nos momentos mais difí-
do estado, um caos político e social, que
ceis da vida!
se caracteriza como genocídio. Em meio
a situação de tamanho sofrimento das ví-
timas, sobreviventes e familiares atingi- *Ivarlete Guimarães de França é Psicóloga, especia-
dos pela doença, pessoas sequeladas que lista em Saúde e Pós Graduada em Saúde e Trabalho
pela UFRGS. Iva, como é carinhosamente chamada
não encontram apoio psicológico e social,
pelos amigos, é também ativista em Direitos Huma-
num sistema de saúde e assistencial em nos e Saúde Mental, diretora de Saúde na Avico -
colapso, com perdas de direitos, de tra- Associação das vítimas e familiares das Vítimas de
balho e renda, de espaços de convivência Covid-19, integrante do Grupo de Apoio às pessoas
enlutadas, bem como Integrante do Fórum Gaúcho
coletiva e sobretudo, de esperança, afe-
de Saúde Mental. Iva, está em processo de elabora-
tando todas as dimensões da vida huma- ção do próprio luto, amenizado no coletivo.
na e material, uma verdadeira sindemia.

140
For a super sister-in-law
Part 1
By Ivarlete de França[1],[2]

I don’t know where to start, not


even if this is the beginning, mi-
ddle, or end, but I will tell a story. Once
My sister-in-law was like a sister to me.
She was the youngest of three children,
and my husband was the oldest. Their mi-
my sister-in-law gave me a china cup. It ddle brother died young in a tragic way.
read: “For a super sister-in-law”. Then And to make things worse, their mother
she asked me to think of her every time I died on the same day. Later my father-in-
had coffee. It sounded almost like a pact. -law died. Therefore, my sister-in-law and
She came from Londrina, in the state my husband were the only relatives left
of Paraná, to Xangrilá, on the North co- alive. When my parents died, we realized
ast of Rio Grande do Sul, where we live. we shared the same grief. Unfortunately, I
She loved traveling and bought the cup would feel that grief again sometime later.
on a trip to Gramado. I was the one per-
At the height of the pandemic, we fa-
son in the family who got a gift that day,
ced two challenges. The first was strug-
and I felt proud, mainly fo its sayings,
gling to survive its darkness. The second
because my sister-in-law meant a lot to
was receiving the news that my sister-in-
me. Those words demonstrated the reci-
-law, her husband, and her son had con-
procal affection and admiration that had
tracted the virus. We spoke on the phone,
linked us since our teenage years. At the
and she told us to calm down because
same time, being seen with such quality
their symptoms were mild. Women are
and virtue felt like a great responsibility.
always the caretakers of the family, and
I didn’t know why she thought so. Why
as a great caretaker, she did not leave her
did I feel so alive? After all, it was just
husband and son's side. When the doctors
the kind of souvenir sold in every tourist
intubated her husband, she never left his
place. I think the moments we spend with
side in the hospital. Unlike him, she had
somebody, sharing our pain, joy, and
no comorbidities. Her health was excel-
dreams, living intensely, make us able to
lent. They had not received the vaccine
experience magnificent, even immortal
because they were waiting for their turn.
feelings. It’s like the universe conspired
Soon we started to feel distressed. Less
in our favor – a natural human process in
than a week later, on a dark and cold ni-
the sense of eternalizing love.

141
ght, a desperate voice on the phone gave ling of impotence seemed endless. Then,
us the sad news of her death. Our nephew a friend of mine who had just recovered
told us she had had a cardiac arrest at the from Covid-19 wrote a message on a social
moment of her intubation. He sounded network inviting people to form a collec-
lost because his father was still in the tive of victims and relatives of victims of
hospital. At that moment, we lost ground. Covid-19. It aimed to give voice to those
We could hardly believe it. We had thou- deprived of space for speaking and repre-
sands of questions with no answers tor- sentation. I felt that was the place that
menting us day and night. She was a heal- could host all the people in pain of their
thy person, then why? We couldn’t make grief. I had to think about it before feeling
the rite of passage, say goodbye, cry be- available because I was still struggling to
side her body, hold and comfort her dear deal with my pain. Then I thought I would
ones, or be with them. We had to suffer make the best decision while drinking
on our own. The solitude, the denial of fa- some coffee. At that moment, those words
rewell, because of the sudden departure, engraved on my cup drove me to contribu-
enlarged the pain of the loss. Part of us te to that sensitive, warm, and humanita-
had gone with her. We had dived into the rian project aimed to change our solitary
darkness of her absence. grief into a strategy of a collective fight
– “from grief to fight”. For the first time,
Taken by discouragement, I could
the cup had a real meaning for me beyond
only grieve her absence and our plans to
the painful memories! Today I am AVICO’s
meet in Curitiba in 2022 to celebrate my
Health Director and a member of its group
husband’s and I Golden Anniversary. Our
of reception and psychological support to
plans had run into the sand, and the fee-
bereaved people.

142
The Day the World Stopped
Part 2
By Ivarlete de França[1],[2]

I n telling my story, I ask myself


how I can reinvent it. How can we
give meaning to existence when we suffer
fighting for the survival of the sick ones.
But this hope did not last because our sis-
ter-in-law could not survive this battle.
unexpected and dark moments? How can She died like so many other people who
we find the strength in spoken or sung also left their loved ones. It’s hard to ac-
words, to break the scary silence that in- cept losing the ones we love, especially in
sists on accompanying us? the sense of unconditional fraternal love.
I needed much reflection to face my And here I quote Renato Russo: “We need
memories and recover the truth of my es- to love people as if there is no tomorrow”.
sence. My memories are like a patchwork My sister-in-law was retired and had
quilt, where every piece can raise my grown children. She used to make her
body and support me. It’s not easy to re- dreams come true by doing the things she
live pain, but when we allow our memo- most loved, such as traveling, finding out
ries back, even the painful ones, we rein- unknown places to visit, and taking pic-
terpret them. And here I quote Caetano tures of them. She kept the happiness of
Veloso: “Everyone knows the bad and the a child discovering the world and always
good of being who we are, be silent and came to see us put an end in our mutual
do not silence the bad news. You know longing. She was healthy and lively, so we
how to explain any bad news.” expected her to live long. Then the pan-
At the height of the pandemic, I wit- demic came, changing our lives and lea-
nessed the struggle of a dear friend to ding us to isolation. There were no visits
survive during his intubation. His sister or trips anymore. We could only contact
included me in a WhatsApp group she had people virtually and only heard the news
created to organize a positive chain for of pain and grief. A shadow invaded our
his recovery. We experienced a lot of an- lives, bringing back memories of pain and
guish until he won his battle and left the mourning multiplied by the deaths Co-
hospital. These experiences of recovering vid-19 caused. A mix of fear, powerless-
and surviving made us renew our hope of ness, and outrage so impactful they could

143
paralyze our lives as if we had come out manifest themselves, forcing us to fight
of the lyrics of Raul Seixas’ song “The day even harder to survive and stay healthy
when the world stopped!” to face our pandemic day by day.
Besides facing a mortal and unknown I still have my ups and downs, but
virus, we had to live with a political crisis I also live the experience of sharing dre-
with no precedents. We had to deal with ams collectively, which renews our ho-
the denial of science, attacks, boycotts pes for a new dawn. As Raul Seixas sings,
against immunizers, and the banalizing “dreams dreamed alone are only dreams,
neglect of thousands of deaths. A nation but dreams dreamed together are real.”
ungoverned, left to its destiny, with no
Let us go on holding hands, exchan-
State protection, political and social cha-
ging hugs, tears, and joys. Let us not let
os characterized as genocide. We were a
go of our hands, especially in the hardest
nation amid the suffering of the victims,
moments!
survivors, and family members affected
by the disease, people with sequelae wi-
thout any psychological and social su- [1] Ivarlete Guimarães de França is a psychologist,
pport in a collapsed health and welfare specialist in health, and post graduated in Heal-
system. We have lost rights, work and th and Work from UFRGS. She is also an activist in
Human Rights and Mental Health, Health Director at
income, spaces of collective coexistence
Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Co-
and, above all, hope, affecting all dimen- vid-19 [Association of Victims and Victims’ Relatives
sions of human and material life, a true of Covid-19] – AVICO Brasil, and a member of Fórum
syndemic. This devastating scenario, cha- Gaúcho de Saúde Mental [Rio Grande do Sul Mental
Health Forum member]. Iva is in the process of elabo-
racterized by helplessness and despair,
rating on her grief, softened in the collective.
is favorable to the emergence of suici-
des. Amidst suffering, low immunity, and [2] Translated by Ana Karina Borges Braun and proo-
fread by Ananyr Porto Fajardo.
inhumanity, countless health problems

144
145
“Dormíamos na mesma cama, brigávamos para quem ia apagar
a luz antes de deitar para dormir. As vezes ela acordava mais
Foto de John Su na Unsplash

cedo e ficava ali parada me olhando.”

146
Minha mãe, minha eterna saudade
Por Mônica Miranda da Silva Azevedo

D ifícil de acreditar, entender, acei-


tar e explicar esse sentimento que
tem tomado conta da minha vida nesses
na coluna, Finalmente ela tinha um pouco
de sossego comprou nossa casinha, ar-
rumou tudo do nosso jeitinho, com tanto
últimos 6 meses, sem a presença da mi- amor e carinho, o neto mais velho que era
nha mãe no meu dia a dia. Acordar e saber o seu xodó , fazendo 18 anos e um outro
que não tenho mais aquele bom dia acom- neto faltando um mês para nascer, meu
panhado do Deus te abençoe, daquela Deus um mês, como tínhamos planos,
pergunta diária: tem muito serviço hoje? e mais uma vez me questiono o porquê
Você já almoçou? e no final do dia aquele dela ir embora agora, Logo agora? ago-
Boa noite, dorme com Deus, eu amo você ra que ela estava mais tranquila, pode-
filha. Como ela me mimava, sempre tão ria se dedicar e curtir o neto mais novo.
carinhosa, queria sempre está por perto, Como ela curtiu cada segundo da minha
dormíamos na mesma cama, brigávamos gravidez. E eu acabo questionando outra
para quem ia apagar a luz antes de deitar vez, como foi injusto ela partir logo ago-
para dormir. As vezes ela acordava mais ra, deixando tantas coisas sem terminar,
cedo e ficava ali parada me olhando. Tí- para mim nunca vai fazer sentido. Como
nhamos uma necessidade inexplicável de ela tinha medo de se contaminar, como
estar juntas talvez no nosso interior já sa- ela se prevenia, como ela era revoltada
bíamos que seriamos separadas. Ah como com o descaso pela parte dos governan-
Escaneie o QR code tudo isso me faz falta! E quando eu vejo tes. Mas infelizmente em uma triste ma-
abaixo e ouça a no jornal a quantidade de pessoas que fa- nhã de segunda-feira, veio o diagnóstico,
narração desse texto leceram pelo covid-19, eu penso, um da- era o covid-19, os sintomas eram leves,
queles número é minha mãe, e ao mesmo e veio o isolamento, nunca vou esque-
tempo eu rebato e questiono minha mãe cer o olhar dela de tristeza no portão de
não é só um dígito, ela é minha mãe. Uma casa, acenando com a mão era a nossa
mulher maravilhosa, uma supermãe, tia, despedida. E enfim veio o último áudio
avó, tão guerreira, batalhadora, tão sorri- tô com falta de ar, tô com falta de ar....E
dente, sorria até do que não tinha graça e assim em uma tarde de aflição, do dia 08
em seus olhos podíamos ver aquela von- de março de 2021, no dia da mulher, ela
tade de viver. Depois de trabalhar pesa- se foi para sempre e eu nem consegui di-
do a vida toda, passar por uma tristeza zer mais uma vez o quanto eu a amava. E
tão grande de perder um filho tragica- assim vivo diariamente suspirando uma
mente, enfrentar um câncer, uma cirurgia saudade que não tem fim. Após um mês

147
que ela se foi o tão esperado neto che- eu perdi um pedaço do meu mundo e da
gou e é impossível não olhar para ele e minha história. E eu sigo em frente, na
imaginar como seria se ela estivesse aqui, lembrança da força que ela sempre repre-
como estaria mimando o neto, como es- sentou.
taria cuidando de nós. Eu não perdi só a
melhor mãe do mundo, eu perdi a melhor
*Mônica Miranda da Silva Azevedo, filha de Núbia
avó que meus filhos tiveram, a minha Margarete Miranda da Silva, falecida 08/03/2021 ví-
melhor amiga, o meu porto seguro, enfim tima de Covid-19, deixando uma eterna saudade em
nossos corações.

148
My mom, my eternal longing
By Mônica Miranda da Silva Azevedo [1], [2]

I t’s hard to believe, understand, ac-


cept, and explain this feeling that
has taken over my life in these past six
everything our way, with much love and
affection. I ask myself why she had to le-
ave this way, now that her eldest grand-
months after my mother's passing. It’s son, her sweetheart, will turn eighteen,
hard to wake up and realize I will no and another grandson will be born soon.
longer hear her saying good morning If she could have stayed here, she would
and God bless you. It’s hard not to hear have enjoyed every second of my preg-
her daily questions asking if I had much nancy and dedicated herself to her you-
work or had already had lunch. It’s hard ngest grandson. She had so many things
not to hear good night, sleep well, and I unfinished! For me, it will never make
love you. She used to spoil me giving so sense. I remember her fear of contamina-
much love, always trying to be close by. tion, her care to avoid it, and her outra-
We used to sleep in the same bed and fou- ge against the government's negligence.
ght over who would turn off the light be- Unfortunately, on a sad Monday morning,
fore going to bed. Sometimes she would the covid-19 diagnosis came. The symp-
wake up early and stand there looking at toms were mild, and the isolation came. I
me. We had an inexplicable need to be will never forget her sad look at the hou-
together. Maybe we could already sense se gate, waving goodbye. And finally, the
we would be apart soon. Oh, how I miss last audio came. “I’m short of breath”,
this all! Every time I see in the newspa- she said. On an afflicting afternoon, on
per the number of people who have died March 08, 2021, on Women's Day, she was
from covid-19, I think she is one of them. gone forever, and I could not even tell her
And at the same time, I refuse to accept it once again how much I loved her. Since
and question that my mother is not just a then, I have sighed an endless longing.
digit. A wonderful woman, a supermom, A month later, her long-awaited grand-
aunt, grandmother, such a warrior, such son arrived. It’s impossible not to look at
a fighter, such a smiler, she smiled even him and imagine how it would be if she
at things that were not funny, and in her were here, how she would be spoiling her
eyes you could see that will to live. Af- grandson, how she would be taking care
ter working hard all her life, losing a son of us. I didn’t only lose the best mother in
tragically, facing cancer and a surgery on the world but also the best grandmother
her back bone, she finally had a little pea- my children ever had, my best friend, and
ce, bought our little house, and arranged my safe harbor. I lost a piece of my world

149
and story, but I’ll l move on, honoring the covid-19 on August 3rd, 2021 and left an eternal
strength she always represented. longing in our hearts.
[2] Translated by Ana Karina Borges Braun and proo-
fread by Ananyr Porto Fajardo.
[1] Mônica Miranda da Silva Azevedo is Núbia Mar-
garete Miranda da Silva’s daughter. Núbia died from

150
151
152

Você também pode gostar