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Ge Nero Deficie Ncia e A Produc A o de V
Ge Nero Deficie Ncia e A Produc A o de V
Editora CRV
Curitiba – Brasil
2019
Copyright © da Editora CRV
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Editora CRV
Revisão: Gerusa Bondan e Maria Isabel de Castro Lima
M954
Mundos de mulheres no Brasil / Ana Maria Veiga, Claudia Regina Nichnig, Cristina
Scheibe Wolff, Jair Zandoná (organização) – Curitiba : CRV, 2019.
550 p.
Bibliografia
ISBN 978-85-444-3129-0
DOI 10.24824/978854443129.0
2019
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 - E-mail: sac@editoracrv.com.br
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Conselho Editorial: Comitê Científico:
Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB) Angelo Aparecido Priori (UEM)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Arnaldo Oliveira Souza Júnior (UFPI)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Carlos Ugo Santander Joo (UFG)
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT) Dagmar Manieri (UFT)
Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro) Edison Bariani (FCLAR)
Carmen Tereza Velanga (UNIR) Elizeu de Miranda Corrêa (PUC/SP)
Celso Conti (UFSCar) Fauston Negreiros (UFPI)
Cesar Gerónimo Tello (Univer. Nacional Fernando Antonio Gonçalves Alcoforado
Três de Febrero – Argentina) (Universitat de Barcelona, UB, Espanha)
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG) Giovani José da Silva (UNIFAP)
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL) José de Ribamar Sousa Pereira (Exército
Élsio José Corá (UFFS) Brasileiro/Ministério da Defesa)
Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Kelly Cristina de Souza Prudencio (UFPR)
Fernando Antônio Gonçalves Alcoforado (IPB) Liv Rebecca Sovik (UFRJ)
Francisco Carlos Duarte (PUC-PR) Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US)
Gloria Fariñas León (Universidade Marcos Aurelio Guedes de Oliveira (UFPE)
de La Havana – Cuba) Maria Schirley Luft (UFRR)
Guillermo Arias Beatón (Universidade Mauro Guilherme Pinheiro Koury (UFPB)
de La Havana – Cuba) Ricardo Ferreira Freitas (UERJ)
Jailson Alves dos Santos (UFRJ) Renato Jose Pinto Ortiz (UNICAMP)
João Adalberto Campato Junior (UNESP) Rubens Elias da Silva (UFOPA)
Josania Portela (UFPI) Sergio Augusto Soares Mattos (UFRB)
Leonel Severo Rocha (UNISINOS) Silvia Maria Favero Arend (UDESC)
Lídia de Oliveira Xavier (UNIEURO) Sonia Maria Ferreira Koehler (UNISAL)
Lourdes Helena da Silva (UFV) Suyanne Tolentino de Souza (PUC-PR)
Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US)
Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC)
Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA)
Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFSCar)
Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL-MG)
Renato Francisco dos Santos Paula (UFG)
Rodrigo Pratte-Santos (UFES)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)
APRESENTAÇÃO
MUNDOS DE MULHERES E FAZENDO
GÊNERO – ACADEMIA EM MOVIMENTO 13
Ana Maria Veiga
Claudia Regina Nichnig
Cristina Scheibe Wolff
Jair Zandoná
I. GÊNERO E FEMINISMOS
CAPÍTULO 1
REDES FEMINISTAS NO ENFRENTAMENTO DO
RACISMO PATRIARCAL HETERONORMATIVO 19
Cláudia Pons Cardoso
CAPÍTULO 2
DUELO, DESOBEDIENCIA Y DESEO 31
María Pia López
CAPÍTULO 3
DIREITOS REPRODUTIVOS E REPRODUÇÃO ASSISTIDA:
aportes da sociologia do corpo 39
Laurence Tain
CAPÍTULO 4
COALICIONES QUEER: aborto, feminismo y
disidencias sexuales (1990 a 2005 en Buenos Aires) 49
Mabel Bellucci
CAPÍTULO 5
GÊNERO E FEMINISMO EM CIÊNCIAS E TECNOLOGIA:
o papel de uma educação crítica 61
Carla Giovana Cabral
CAPÍTULO 6
NAS PROFUNDEZAS RASAS DO CORPO:
semióticas a-significantes e processos de subjetivação
e dessubjetivação dos marcadores sociais de gênero 73
Durval Muniz de Albuquerque Júnior
CAPÍTULO 7
CRÍTICA FEMINISTA E NARRATIVAS PÓS/DESCOLONIAIS:
os limites do gênero e da representação 87
Sandra Regina Goulart Almeida
CAPÍTULO 8
O DISCURSO OPOSICIONAL E OS
PARADOXOS DA REPRESENTAÇÃO 97
Leila Assumpção Harris
CAPÍTULO 9
FEMINISMOS, PADRÕES DE ATUAÇÃO E DISPUTAS
POLÍTICAS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO 109
Flávia Biroli
CAPÍTULO 10
LOS RETOS DEL FEMINISMO EN LA ERA DEL “FASCISMO
SOCIAL” Y DEL NEO-INTEGRISMO RELIGIOSO
EN CENTROAMÉRICA 119
Montserrat Sagot
CAPÍTULO 11
EXPOSICIONES DE ARTE FEMINISTAS Y/O DE LO QUEER:
¿resistencias, utopías o arqueologías? 133
Rosa Maria Blanca
CAPÍTULO 12
MARCHA DOS VADIOS DE ALICE PORTO: apropriações
de fotografias de feministos em manifestações feministas 139
Ana Maio
CAPÍTULO 13
OCUPAR O ENSINO DE ARTES COM AS REFLEXÕES
SOBRE RELAÇÕES DE GÊNERO E DE SEXUALIDADES 145
Rafael Siqueira de Guimarães
CAPÍTULO 14
SEXUALIDADE, GÊNERO E DISTOPIA NAS LITERATURAS
AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA 153
Mário César Lugarinho
CAPÍTULO 15
IMITAÇÃO DE SARTRE E SIMONE DE BEAUVOIR OU A
DIFICULDADE DAS RELAÇÕES SOCIAIS E AFETIVAS NO
PÓS-INDEPENDÊNCIA ANGOLANO 165
Maria Teresa Salgado
CAPÍTULO 16
CORPOS NUS DE MULHERES NEGRAS:
poéticas da violência / poéticas da resistência 175
Catarina Martins
CAPÍTULO 17
A ESCRITURA COMO ESPAÇO DE RESISTÊNCIA E PODER:
autoras com origens em ex-colônias italianas na África 185
Márcia de Almeida
CAPÍTULO 18
CORPO, DISCURSO E POESIA EM AUTORAS NEGRAS
CONTEMPORÂNEAS: linguagens eco(dis)tópicas 197
Izabel F. O. Brandão
CAPÍTULO 19
ALGUNOS APUNTES SOBRE FEMINISMOS EN AMÉRICA LATINA 213
María Luisa Femenías
CAPÍTULO 20
FEMINISMO DIALÓGICO 223
Márcia Tiburi
CAPÍTULO 21
A ATUALIDADE DO FEMINISMO NEGRO E
INTERSECCIONAL DE LÉLIA GONZALEZ 231
Carla Rodrigues
CAPÍTULO 22
A QUEM TUDO QUER SABER, NADA SE LHE DIZ:
uma educação sem gênero e sem sexualidade é desejável? 241
Fernando Seffner
CAPÍTULO 23
ASCENSÃO E QUEDA DE UMA POLÍTICA EDUCACIONAL LGBT 251
Alexandre Bortolini
CAPÍTULO 24
GÊNERO E EDUCAÇÃO – A EXPERIÊNCIA DO GDE 263
Olga Regina Zigelli Garcia
VII. O CUIDADO COMO UM DIREITO:
produção e reprodução da vida humana
CAPÍTULO 25
INTERFACES ENTRE VIOLÊNCIAS DE
GÊNERO E AÇÕES DE CUIDADOS 275
Lourdes Maria Bandeira
CAPÍTULO 26
GÉNERO, MIGRACIONES Y CUIDADO COMUNITARIO
EN CONTEXTOS DE RELEGACIÓN URBANA 289
María José Magliano
CAPÍTULO 27
E QUEM VAI CUIDAR DELAS? MIGRAÇÃO
INTERNACIONAL DE MULHERES ORIGINÁRIAS
DA AMÉRICA LATINA E TRABALHOS DE CUIDADO 299
Delia Dutra
CAPÍTULO 28
GÊNERO E SAÚDE: encrencas transdisciplinares para a psicologia? 311
Anna Paula Uziel
CAPÍTULO 29
GÊNERO, GERAÇÃO E SAÚDE:
diálogos entre a antropologia e a psicologia 317
Mónica Franch
CAPÍTULO 30
SAÚDE MENTAL E GÊNERO 327
Valeska Zanello
CAPÍTULO 31
DIVERSIDADE FUNCIONAL, PORNOGRAFIA
E PÓS-PORNOGRAFIA 339
Jorge Leite Jr.
CAPÍTULO 32
GÊNERO, DEFICIÊNCIA E A PRODUÇÃO
DE VULNERABILIDADES 353
Marivete Gesser
X. GÊNERO E VIOLÊNCIAS NA AMÉRICA LATINA
CAPÍTULO 33
AFECTOS JUSTOS: testimonio, violencia y género 365
Claudia Bacci
CAPÍTULO 34
AFECTOS, DUELO Y JUSTICIA EN LAS PRODUCCIONES
VISUALES SOBRE MUJERES PRESAS Y MUERTAS POR
ABORTAR EN AMÉRICA LATINA 381
Nayla Luz Vacarezza
CAPÍTULO 35
EL GÉNERO Y LA GENERALIZACIÓN DE LA
VIOLENCIA EN EL CONTEXTO MEXICANO ACTUAL 393
Mariana Berlanga
CAPÍTULO 36
MUJERES Y RESISTENCIA: las múltiples guerras
en el marco del conflicto armado colombiano 403
Izabel Solyszko Gomes
CAPÍTULO 37
DIVISÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, PRECARIZAÇÃO
E DESIGUALDADES INTERSECCIONAIS 415
Helena Hirata
CAPÍTULO 38
LA DESIGUAL ECUACIÓN ENTRE EL GÉNERO
Y EL TRABAJO: perspectivas feministas 425
Débora D’Antonio
CAPÍTULO 39
TRANSFORMAÇÕES E PERMANÊNCIAS NA TRAJETÓRIA
E ORGANIZAÇÃO DAS MULHERES DA CENTRAL ÚNICA
DOS TRABALHADORES 437
Junéia Martins Batista
CAPÍTULO 40
A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA 451
Ela Wiecko V. de Castilho
XII. MULHERES RURAIS E AGRICULTORAS
CAPÍTULO 41
QUE FEMINISMO É ESSE QUE NASCE NA HORTA? 463
Maria Ignez Silveira Paulilo
CAPÍTULO 42
METODOLOGÍAS DE CO-CREACIÓN DE CONOCIMIENTOS
PARA LA CONSTRUCCIÓN DEL MEDIO RURAL
LATINOAMERICANO DESDE LAS MUJERES 475
Ana Dorrego Carlón
CAPÍTULO 43
JÓVENES MILITANTES, SEXUALIDAD Y REVOLUCIÓN:
algunos dilemas en torno a los interrogantes, las categorías y
a la interpretación histórica de los años setenta 485
Isabella Cosse
CAPÍTULO 44
MEDICALIZACIÓN, INFANCIA E INTERSECCIONALIDAD:
historias de vida en Argentina 491
Cecilia Rustoyburu
CAPÍTULO 45
LAS LUCHAS FEMINISTAS Y LAS PERIODISTAS
CON VISIÓN DE GÉNERO: una articulación indispensable 507
Florencia Laura Rovetto
CAPÍTULO 46
LA ESCUELA AUDIOVISUAL AL BORDE (2011-2016):
políticas de la representación y artivismo contrasexual globalizado 517
Marta Cabrera
CAPÍTULO 47
CONTRANARRATIVAS NEGRAS E
DE GÊNERO EM MÍDIAS DIGITAIS 527
Célia Regina da Silva
CAPÍTULO 48
NEOCAPITALISMO EN RED: cuerpos a la carta 539
José María Valcuende del Río
Este livro apresenta uma rica variedade de textos e perspectivas que par-
tem de diferentes locais do mundo, trazendo em comum o debate feminista
contemporâneo mundial e os estudos de gênero e queer/LGBTQ+. As análises
apresentadas propõem articulações entre categorias, reafirmação de diferenças e
estratégias identitárias de gênero, que partem tanto do espaço acadêmico quanto
do campo artístico e do bojo dos movimentos sociais em luta permanente.
A divisão temática aqui proposta contempla afinidades entre 48 trabalhos
apresentados nas 33 mesas-redondas que fizeram parte do 13o Mundos de
Mulheres e Fazendo Gênero 11, que reuniu cerca de dez mil pessoas entre
os dias 30 de julho e 4 de agosto de 2017 na Universidade Federal de Santa
Catarina, em Florianópolis.
O evento, organizado pelo Instituto de Estudos de Gênero da UFSC – IEG
–, sob a coordenação das professoras Cristina Scheibe Wolff, Miriam Pillar
Grossi e Marlene de Fáveri, recebeu apoio de importantes instituições financia-
doras, sendo as principais CNPq, CAPES, FAPESC, ALESC, Fundação Ford
e Secretaria de Políticas para as Mulheres – SPM. Seus resultados superaram
as expectativas da organização, que proporcionou um encontro inédito e hori-
zontal entre academia, artistas e movimentos sociais. Entendemos que as e os
participantes também se sentiram contempladas/os, devido à mobilização e às
manifestações nas diversas mídias e redes sociais.
O método de seleção dos artigos aqui publicados teve caráter inclusivo,
dando espaço a todas as pessoas participantes de mesas-redondas que disponi-
bilizaram seus textos completos antes da realização do congresso. A qualidade
do engajamento acadêmico e militante fica evidente no conjunto da obra, que
busca ampliar o alcance das discussões e das propostas para uma sociedade mais
inclusiva, onde predomine a equidade e o respeito pelas diferenças.
O livro começa com artigos que abordam “Gênero e feminismos” partindo
do repúdio a qualquer tipo de preconceito, conservadorismo e fundamentalismo.
Nesse bloco inicial, apresentamos os textos de Claudia Pons Cardoso (Uni-
versidade Estadual da Bahia), María Pía Lopez (Ni una menos – Argentina),
Laurence Tain (Université de Lyon II), Mabel Bellucci (Universidad de Buenos
Aires), Carla Giovana Cabral (Universidade Federal do Rio Grande do Norte),
Durval Muniz de Albuquerque Júnior (Universidade Federal do Rio Grande
14
Marivete Gesser1
em decorrência das normas, não é algo alcançável, por mais esses sejam objetos
de intervenções médicas voltadas à correção dos supostos desvios; e d) a emer-
gência de uma condição precária, uma vez que o Estado-nação fica eximido de
garantir a adequação dos espaços com base nas variações corpóreas.
Como construir relações de alteridade em meio a enquadramentos que
consideram determinados corpos menos inteligíveis do que outros? Essa
questão é muito relevante uma vez que, para Butler (2015), para que ocorra
o processo de reconhecimento é necessário que haja não somente a apreensão
do outro, mas a inteligibilidade.
O enquadramento, portanto, pode contribuir para tornar os corpos mais ou
menos inteligíveis, bem como para configurar uma condição de precariedade da
vida e vulnerabilidade. Especificamente em relação aos enquadramentos rela-
cionados às pessoas com deficiência, pode-se afirmar que há o estabelecimento
de uma moldura que, com base em normas capacitistas ancoradas no modelo
médico da deficiência, tende a caracterizá-las como abjetas, defeituosas e inca-
pazes, dificultando a construção de relações de alteridade e, consequentemente,
de uma sociedade acessível para elas. Com base no pensamento de Butler,
pode-se afirmar que, para garantir a participação das pessoas com deficiência
em igualdade de condições é necessário, primeiramente, romper com o longo
processo de abjeção, tornando essas pessoas inteligíveis. Isso se torna um desafio
em função dos enquadramentos epistemológicos que insistem em compreender
a deficiência como uma doença que precisa ser curada e tratar as pessoas com
deficiência como dignas de pena, caridade e cuidados voltados à reabilitação do
corpo, conforme tem mostrado as pesquisas de Ana Machado, (2017), Marivete
Gesser e Adriano Nuernberg (2014), Hebe Regis, (2013), entre outras.
Enquadramentos que tornam os corpos ininteligíveis podem dificultar a
alteridade e a vinculação, criando uma condição de precariedade da vida. Bu-
tler (2015) destaca que todas as vidas são precárias, uma vez que dependem de
condições que estão fora delas, podendo ser eliminadas de maneira proposital
e acidental. Todavia, elas podem experienciar uma condição precária a qual
“designa a condição politicamente induzida na qual certas populações sofrem
com redes sociais e econômicas de apoio deficientes e ficam expostas de forma
diferenciada às violações, à violência e à morte” (BUTLER, 2015, p. 46). Para
romper com esses enquadramentos, precisamos, segundo a autora, repensar
normas corporais como as de gênero, capacitismo e racialização, mostrando
que não existe uma forma única de ser humano.
Essas normas produzem enquadramentos que dificultam a apreensão da
vida em sua precariedade, bem como o reconhecimento do humano naqueles
sujeitos que delas deviam. Ademais, fazendo uma analogia com o conceito de
performatividade, Butler (2015) propõe pensarmos o enquadramento como
provisório, uma vez que ele não é apreensível da mesma forma para todos. Ele
escapa do contexto em que foi produzido. Ou seja, “O ‘enquadramento’ não é
MUNDOS DE MULHERES NO BRASIL 357
capaz de conter completamente o que transmite, e se rompe toda vez que tenta
dar uma organização definitiva ao seu conteúdo” (BUTLER, 2015, p. 26). Por
isso, determinados enquadramentos realizados em um contexto específico,
quando são visibilizados em outros contextos, produzem comoção.
Portanto, as normas que configuram os enquadramentos são construídas
e podem ser desconstruídas. O processo de desconstrução é de fundamental
importância para que determinadas vidas possam ser apreendidas em sua pre-
cariedade e vulnerabilidade, facilitando, dessa forma, a nossa capacidade de
reconhecimento e vinculação.
Desconstruir normas, reinventar as molduras...: algumas
contribuições dos Estudos Feministas sobre Deficiência e
da Filosofia de Judith Butler para a construção de práticas
inclusivas e voltadas à garantia dos direitos humanos
Neste tópico, com base nos Estudos Feministas da Deficiência e no pensa-
mento de Butler, as noções de cuidado, dependência e interdependência serão
apresentadas como transversais a todas as relações e importantes para a cons-
trução de enquadramentos mais potentes para a garantia dos direitos humanos
das pessoas com deficiência.
Para iniciar essa discussão, há necessidade de se problematizar a noção de
independência, fortemente presente na sociedade contemporânea e entendida
como um ideal a ser alcançado por todas as pessoas. Visando tal problemati-
zação, Eva Kittay, Bruce Jennings e Angela Wassunna (2005) destacam que
há, nas sociedades industrializadas ocidentais, o que elas chamam de “mito do
independente”, sendo este um sujeito sem corpo, não em desenvolvimento, não
doente, não deficiente e que nunca vai envelhecer. Este mito atravessa e constitui
nossa maneira de conceber questões de justiça e de política bem como o valor
que damos à dimensão do cuidado (KITTAY; JENNINGS; WASUNNA, 2005).
Autores representantes dos Estudos Feministas da Deficiência tais como
Débora Diniz (2007), Anahi Mello e Adriano Nuernberg (2012), Rosemarie
Garland-Thompson (2014) e Laura Davy (2015) fazem uma crítica à noção
de independência. Para eles, ter como meta a independência das pessoas
com deficiência é negar as condições de precariedade e dependência a que
todos estamos sujeitos, e que apontam para a centralidade das relações de
interdependência entre as pessoas.
Essa dependência mútua e interdependência também é apontada como
importante para Eva Kittay (2015). Fazendo uma crítica às concepções de justiça
que não conseguem acomodar pessoas com a condição de deficiência intelec-
tual, a autora propõe que a noção de justiça social incorpore nossa dependência
mútua e inevitável e a nossa inexorável interdependência. Para a Kittay, a forma
de incluir todas as pessoas com deficiência é focalizar os seres humanos como
inevitavelmente dependentes, o cuidado como necessário devido à inevitável
358
Por fim, a autora faz uma reflexão sobre a responsabilidade que temos com
os outros, especialmente com aquelas pessoas que diferem das normas pelas
quais são construídos os campos de possibilidade de reconhecimento.
Com base no pensamento de Butler e nos Estudos Feministas da Deficiên-
cia, acredita-se que o princípio da interdependência deve atravessar e constituir
todas as políticas públicas voltadas às pessoas com e sem deficiência, norteando
as diversas práticas sociais. Contudo, considerando os discursos caritativos e
assistencialistas que atravessam e constituem o enquadramento da deficiência,
MUNDOS DE MULHERES NO BRASIL 359
REFERÊNCIAS
BRASIL, Decreto Lei nº 6.949/2009. (2009). Promulga a Convenção Internacio-
nal sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo,
assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Diário Oficial da União,
Brasília, (26.08.2009).