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Luiz Mendes

O “não”
você já tem!

7 perguntas para destemidos que


querem escrever mais e melhor
           
             

   


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Índice

1 Só escreve bem que lê muito?

2 Só escreve bem quem “fala” bem?

3 Só escreve bem quem domina a “gramática”?

4 É preciso ser claro, e ser “transparente”, ao escrever?

5 É preciso reduzir o que se escreve para dizer o necessário?

6 É preciso ser totalmente original para ser diferente?

7 É preciso ser politicamente correto para agradar ao leitor?


Solta o verbo!
O propósito da “Alter Verbo” cobre uma lacuna que nos pareceu
(a nós, da equipe) evidente: a falta de orientações pontuais sobre
produção de textos que fugisse àquelas técnicas artificiais que
engessam a escrita (e a “oratória”) das pessoas. Queríamos (e quere-
mos) um espaço que pudesse dar subsídios claros para quem quisesse
escrever (e falar) como sujeitos efetivamente engajados nas diversas
esferas sociais.
Jornalistas, escritores de ficção, advogados, publicitários,
professores (de língua portuguesa ou não), alunos, a todos quantos se
interessam pelos “segredos” que envolvem a produção de textos e
quem deseja fugir dos grilhões da técnica na direção de um mapea-
mento de seu estilo, dedico este pequeno “guia”.
É um guia, porque tenta direcionar algumas respostas a
perguntas que sempre nos enfrentam quando o assunto é “termos
que dizer algo a alguém”. O título deste livro remete a um guia e
lembra aqueles livros que dão o passo a passo, o caminho das pedras
das coisas. Mas apenas lembra, porque, na verdade, é uma introdução,
uma breve iniciação às duas tarefas maiores que nos direcionam aqui:

Fazer entender que quando produzimos textos, precisamos olhar para as condições
1 de produção: que lugar ocupamos? Quem é aquele para quem endereço meu texto?
Em que local irá circular?
E, decorrente disso, saber lidar com os diferentes gêneros do discurso em circula-
2 ção nessas esferas, buscando construir um efeito de individuação, uma assinatura,
um estilo.
As sete perguntas que fazemos têm, em princípio, a mesma resposta: “Não!”. No entanto,
quando se vai lendo, percebe-se uma breve reflexão que torna a pergunta feita mais complexa
do que parece ser. Veja abaixo qual é o tema central de cada pergunta:

1. Só escreve bem que lê muito? ESCRITA e LEITURA


2. Só escreve bem quem “fala” bem? ESCRITA e ORALIDADE
3. Só escreve bem quem domina a “gramática”? ESCRITA e “GRAMÁTICA”
4. É preciso ser claro, e ser “transparente”, ao escrever? CLAREZA
5. É preciso reduzir o que se escreve para dizer o necessário? CONCISÃO
6. É preciso ser totalmente original para ser diferente? ORIGINALIDADE
7. É preciso ser politicamente correto para agradar ao leitor? POLITICAMENTE
CORRETO

Convido você a ler as páginas que seguem. E não precisam ser lidas em ordem rígida,
seguindo capítulo a capítulo, sequencialmente. Por isso, você decide sua rota de leitura! De
qualquer forma, espero que, de algum modo, as breves reflexões feitas aqui possam contribuir,
ainda que inicialmente, com sua inserção na cultura letrada.
Luiz Mendes
Só escreve bem
quem lê muito?

NÃO!
E esse primeiro “não”, dos sete que aqui você terá, pode ser, para alguns, uma surpresa,
já que praticamente virou um lugar-comum dizer coisas como: “quanto mais lemos, melhor
escrevemos”.
Veja bem! A pergunta do título não radicaliza com subentendidos do tipo: “ler não vai te
ajudar a escrever”. Jamais! Mas não quando se fala em leitura e escrita, a relação quantidade de
leitura/qualidade de escrita não comporta uma proporção exata.
Quer um exemplo? Conhece Jorge Luís Borges (1889-1986)? Ele foi simplesmente um
dos maiores escritores argentinos do século XX, revolucionou a forma de escrita literária,
influenciando alguns dos grandes escritores mais recentes. Um deles, inclusive, faz parte de
minha biblioteca literária desde sempre, como o Ítalo Calvino. Em sua última entrevista conce-
dida a Roberto D’Ávila no ano de 1987, Borges, questionado se leu muitos livros, respondeu:

Não. Li muito poucos. Sempre reli os mesmos livros. Não


conheço a literatura contemporânea. Desde que perdi a vista como
leitor em 1955, não li nada de novo. (cf. na “revista Bula”:
https://www.revistabula.com)

Na sequência das perguntas, Borges ainda é confrontado mais uma vez sobre essa
declaração de ter lido pouco, já que ele era escritor literário e... dá-lhe outra declaração bom-
bástica:

Quase não li romances na vida, fora Joseph Conrad, que para mim é
o romancista. Fracassei com grandes romances, com Zachary, com
Flaubert.
Mesmo com “Cem Anos de Solidão” o sr. não foi até o fim?
Com “Cem Anos”, não. Completei no máximo 50 anos. Mas é um
excelente livro. Gostaria de conhecer o autor.

A sinceridade desse grande escritor da obra-prima “O Aleph” estilhaça qualquer “inteli-


gentinho” (para usar uma expressão do Luiz Felipe Pondé) que ainda insiste em angustiar o
outro com suas afirmações infundadas. Como assim, Borges não teria lido “Cem anos de
solidão”, de seu contemporâneo latino Gabriel García Márquez?
Mas uma coisa chama muito a atenção nesse depoimento do escritor argentino: o fato
de que ele relia romances, ou melhor, de que ele sempre voltava aos mesmos livros. Já percebeu
que quando uma criança gosta de uma história contada pelo pai antes de dormir pede na próxi-
ma noite que a mesma história seja contada? O pai até pode apresentar outra narrativa em livro
todo ilustrado, mas a criança vai insistir: quero a historinha “tal” (aquela de ontem).
escreve melhor.
Quem “sabe” ler Ocorre aí um processo complexo de identificação com a
história que nos enlaçou: os personagens, o ritmo da narrativa
(ações, suspenses etc.), o tema. E, no caso de nós, adultos, não é
diferente. O processo de apropriação do discurso do outro, das
vozes do outro, leva em conta um duplo movimento: empatia,
no sentido de aproximação e identificação com o que o outro
disse, e repetição, retorno ao que esse outro disse para que
haja “internalização”.
Isso significa dizer que, para escrever/produzir textos,
vou ao outro, me identifico com seu estilo, internalizo
modos/maneiras de dizer. E isso se faz, necessariamente, indo
algumas vezes ao mesmo autor.
Obviamente, esse “outro” não é apenas uma pessoa-au-
tor, mas pode ser uma comunidade. Por exemplo: se lemos cons-
tantemente matérias jornalísticas da Folha de S. Paulo ou assisti-
mos pela TV a matérias da Jovem Pan, não é difícil, aos poucos,
delimitar “jeitos”, “maneiras”, orientações valorativas específicas
daquela comunidade. Não fica difícil ler um texto e, mesmo sem
referências claras de onde veio, conseguimos dizer que tal texto
pode ter sido matéria do jornal “X” ou que tal conto é roseano
(estilo Guimarães Rosa), por exemplo.
Vê que estamos falando de leitura mais que de escrita?
Mas é isso mesmo. Não podemos negar a relação das duas, mas
negamos obrigatoriedade do tipo “só escreve bem quem lê muito”.
É hora de refazer a rota e dizer: quem “sabe” ler
pode escrever melhor. E “saber ler” significa ler com
qualidade, reler e ler de novo (pra ser redundante) e descobrir
algo novo a cada leitura, gastar o livro (e o e-book!), discutir “sozi-
nho” com o texto, xingar a matéria do jornal, chamá-lo de tenden-
cioso, elogiar. Quando der por si, já estará, quem sabe, escreven-
do uma opinião para ser compartilhada com outros leitores.
Isso mostra a dinâmica que existe entre os atos de ler e
escrever e com as possibilidades de comunicação mais próximas
que hoje temos com os escritores, jornalistas e outros produtores
de textos. A distância entre autor e leitor só diminuiu!
Enfim, por que não faz um teste? Comece a escrever algo!
Impressões sobre um acontecimento surpreendente ou senti-
mental de hoje (relato diário); lembranças da infância, adolescên-
cia, juventude (relato autobiográfico); letra de música. Entenda
que em princípio apenas você tem domínio sobre o que escreve e
que ninguém vai ler por enquanto, por isso, não hesite demais.
Sem medo. Solte a mão. Pouco a pouco, vai imaginando quem te
leria/ouviria; onde publicaria; em que sua história poderia afetar
alguém: Faria rir? Chorar? Provocaria uma tomada de posição?
Depois me conta se em seus pensamentos não vieram outros
músicos, outros autores que te marcaram, frases marcantes etc.
É como se você deslizasse o tempo todo do lugar de autor (do que
está escrevendo) e leitor (do que te marcou, do que te constituiu
até aqui).
É impressionante e muito estranho o fato de que quando você escreve e depois lê o
que escreveu, parece estar diante de outro escritor, especialmente se você guardou aquele
texto e só o releu depois de um tempo. Inclusive, pode acontecer de você sentir raiva ou admi-
rar positivamente alguma coisa que escreveu, mas de que não se lembra mais.
Gosto da tela “Os quatro evangelistas”, do artista barroco belga Jacob Jordaens (1593-
-1678), em que os escritores dos evangelhos se veem completamente envolvidos no processo
leitura dos textos bíblicos. Observem a expressão concentrada, com gestos como se estives-
sem dialogando sobre o texto bíblico, atentos a cada detalhe para não perderem o fio interpre-
tativo das escrituras. Estariam ali lendo seus próprios textos? Estariam ali lendo os profetas os
Salmos para se inspirarem ou confirmarem o que dizem? Não sabemos ao certo. O fato é que
os lugares intercambiáveis de leitor e escritor estão muito bem representados nesta obra de
arte. E a nós, os terceiros envolvidos nessa relação, cabe sentir, admirar, apropriar-nos dos
sentidos.
Só escreve bem
quem “fala” bem?

Quem não conhece a célebre frase “I have a dream!”?


Surgiu no discurso do reverendo Martin Luther King no sol escaldante daquele agosto
de 1963 e marcou um movimento pela liberdade. A frase não estava escrita no discurso e já
tinha sido pronunciada outra vez, mas sem o efeito impactante daquele dia. Clarence Jones, que
escrevia muitos discursos de King, estava lá no dia e confirmou isso .
Há aqui duas informações importantes sobre a relação fala e escrita. A primeira sobre
a inserção de um enunciado (uma fala) que emerge no momento do discurso de um dos maiores
e mais influentes oradores do século XX. King não tinha colocado a frase em seu discurso
escrito. A segunda sobre o fato de que o grande orador revolucionário tinha um assessor que
escrevia muitos de seus discursos!
Sobre esses efeitos muito positivos que ocorrem quando inserirmos, quase espontane-
amente, um enunciado em nosso texto merece um vídeo e um texto depois. Mas o fato é que
temos diante de nós um exemplo claro de impasse entre “falar bem” e “escrever bem”. Um
não é consequência do outro, o que nos leva ao segundo “NÃO!” desta série de perguntas
discutidas neste e-book. Arrisco dizer que o orador Luther King se sobressai em relação ao
escritor.
É claro que a expressão “falar bem” pode significar muitas coisas, mas aqui, como se
vê, estamos lidando com a ideia de falar bem para um grupo de pessoas, atividade esta ligada a
gêneros como discurso público, protesto, conferência, palestra, pregação/sermão religioso
etc. Inclusive, cito aqui Pe. Antônio Vieira como exemplo de um grande orador/pregador de
sermões e, ao mesmo tempo, um exímio escritor. Claro que, se pensarmos no fato de que a
maioria de seus escritos tinham o fim de se converterem em sermões (orais), ainda arrisco
afirmar que o orador, neste caso, também se sobressai ao escritor.
Se olharmos para o outro lado, veremos que a lista dos que escreviam bem, mas que
não eram afeitos à oratória é grande. Rui Barbosa, jurista e importante intelectual brasileiro,
embora escrevesse discursos e muitas vezes os pronunciava, não era visto como exímio
orador, como se pode ler nas palavras do filólogo Silveira Bueno:

“Rui Barbosa era um orador para ser lido, não escutado ou ouvido.
O que ele escrevia era uma maravilha, ninguém escreveu melhor
que Rui Barbosa, somente o Padre Vieira, que foi o professor dele,
mas para ouvi-lo era uma penitência”

Voltando ao ponto central que nos interessa (a escrita), vejo de modo claro que, ao
“falar para um público”, é comum a elaboração de um esboço por quem vai comunicar algo.
Estou me referindo especialmente aos gêneros discursivos públicos (e mais formais), como a
palestra, a aula, o seminário, o sermão religioso, o discurso (manifesto) etc.
Esses esboços são de diversos tipos e inclui:
Mapas mentais;
Fichamentos (tópicos);
Síntese do que vai ser falado;
Desenhos esquemáticos etc.
Um curso sobre escrita que inclua esses modos de se esquemati-
zarem textos seria muito interessante e certamente vou incluir
isso em cursos futuros. Que você acha?
Se pensarmos que a música é praticamente a “oralização” de uma letra (escrita) com inserção de
melodia, harmonia etc., não poderia me furtar de incluir aqui um achado impressionante que
mostra, em certo sentido, esse processo de esquematização antes do produto final. O exemplo é
da música de Renato Russo, “Mais uma vez”, que enviou uma prévia a Flávio Venturini , seu
parceiro nessa composição. Veja:

Se compararmos com a letra que hoje temos, ficamos bem surpresos com o que vemos.
A escrita dá certa “sustentação” a situações em que a oralidade é a modalidade em uso
(a música retirada da voz do compositor e rascunhada no papel, por exemplo). E não é incomum,
durante aulas, palestras, entrevistas etc., “a pessoa que fala” recitar, ler algum trecho que ilustre
sua fala. Ou, de outro modo, podemos suspender um discurso que preparamos por escrito e,
quiçá, conseguir efeitos impactantes como aquele promovido por King quando soltou: “Eu tenho
um sonho!”.

1
Confira essa informação no portal Terra: https://www.terra.com.br/: Discurso de Luther King quase não incluiu frase
"Eu tenho um sonho", de 26/08/2013.
2
Confira o texto sobre Rui Barbosa em https://reinaldopolito.com.br/homens-e-discursos-que-marcaram/
3
O post se encontra na página do músico no Facebook.
Só escreve bem quem
domina a “gramática”?

Pergunta difícil, não menos difícil que as perguntas anteriores, mas complicada quando
nos perguntamos o que entendemos por “gramática”. Claro que de imediato a resposta é
“NÃO!”, porque os termos “só” e “bem” em “só escreve bem” são pesados demais e excluem
muita coisa que deveria ser levada em conta no complexo processo de escrita.
Acho que a pergunta a ser respondida é: o que se entende
aqui por gramática e o que isso tem a ver com escrever “bem”?
Você certamente deve estar pensando naquelas gramáticas “normativas” tradicionais
de um Napoleão Mendes de Almeida, por exemplo. E não excluo que em certo sentido o termo
possa estar relacionado a isso. Mas o problema é mais complexo quando falamos de produção
textual (escrita), já que estamos falando de uso (social) da língua. Nesse sentido, pensamos
muito mais em gramáticas, no plural, sem perder de vista, é claro, as tentativas de padroniza-
ção dessas gramáticas.
Mas vamos ao ponto: quando você diz que “precisa saber gramática”, provavelmente
você está falando que precisa saber as “regras gramaticais” ou as normas. Então, vamos aqui
usar o termo normas para tratar a questão e tentar te trazer alguma luz aos dilemas na hora de
escrever. Não vou tratar de todas as dúvidas “de gramática” que se possa ter na hora da escrita
(nem seria possível aqui), mas com certeza vou tentar te mostrar um caminho que te faça refle-
tir sobre o uso da língua quando você está escrevendo um texto. Além disso, vou te indicar boas
gramáticas que poderão te ajudar no processo.
“Nos falará”; “Falar-nos-á” ou “Falará-nos”?
Sem meias palavras, já vamos direto ao ponto. Temos um problema de colocação do
pronome com verbos no futuro do presente. Uma gramática mais tradicional “de cara” aceitaria
como correto apenas o uso “falar-nos-á” (lembra o nome da colocação desse pronome? Mesó-
clise!). E as pessoas não usam a variante “Nos falará”? Sim. Mas vem de novo a gramática tradi-
cional e diz: não se inicia frase com pronome oblíquo!
Acontece que no dinâmico processo de escrita de um texto não são poucas vezes que
nos ocorre estarmos sendo “pedantes” se usarmos esse português “tão correto” do ponto de
vista da gramática tradicional. E por que percebemos isso? Porque as condições de produção
dos textos nos vão dando pistas sobre quais usos devemos/podemos fazer a fim de alcançar-
mos melhor o público a quem dirigimos nosso texto. Lembra o que são essas condições? Revi-
semos:

1
“O que escrevo?”; “Para quem escrevo?”; “Em que
lugar/onde vai circular o que escrevo”? etc. Perguntas que nos
instigam a balizar nossa produção e nos levam ao item 2 a seguir;

O gênero do discurso e a esfera em que produzo meus dis-

2 cursos/textos: notícia, reportagem, crônica esportiva, na esfera jornalística;


resumo, resenha, dissertação, tese, na esfera escolar/acadêmica; memorando,
ofício, na esfera da administração pública etc.
São essas balizas que vão nos sustentando e a questão central é interpretá-las para
produzirmos um texto coerente com tais condições.
Isso abre para mais um aspecto que queremos aqui pontuar: se estamos olhando para
o funcionamento da língua nos diversos usos que os sujeitos fazem dela, não dá para falar em
uma norma apenas, mas em normas que atendem a diferentes comunidades linguísticas. Estou
dizendo que “quem escreve/fala errado”, como dizem por aí, não significa dizer que quem faz
isso não esteja munido de regras.
Exemplo: sociedades letradas (com alto grau de escolarização, por exemplo) conde-
nam usos como: “Os menino fez a tarefa”. Há problemas de concordância (verbal e nominal) e,
segundo tais sociedades, o “certo” seria: “Os meninos fizeram a tarefa”. Estamos diante do
que se chama de norma culta, no sentido de que um grupo com um grau maior de escolariza-
ção regula seus usos conforme o que considera como “correto”. Concordo com o professor
Carlos Alberto Faraco em seu livro “Norma culta brasileira: desatando alguns nós”, publicado
pela editora Parábola em 2008, que o termo “norma culta” nem seria o mais adequado, já que
quem não usa essa norma não significa que não tenha cultura. Norma culta aqui é no sentido
de norma de prestígio que é mais valorizada por um certo grupo mais escolarizado.
Mas sabia que existe uma norma interna ao uso que foi condenado? Estou aqui falando
em regularidade, em uso partilhado “inconscientemente” por esses falantes que desconside-
ram as regras de concordância. Explico-me: nenhum desses falantes vai dizer algo como

*O meninos fez a tarefa ou


*O menino fizeram a tarefa para se referir a mais de um
menino que fez a tarefa.

E por que isso acontece? Porque existe uma regra internalizada que “diz” que o plural
no determinante que abre a frase é suficiente para mostrar que se trata de mais de um menino,
no caso. Ou seja: existe sim uma norma que regula o plural dessas frases condenadas pela
escola. Mas veja bem: as normas cultas/de prestígio (usos partilhados
por sociedades mais letradas/escolarizadas) precisam ser leva-
das em conta se se pretende circular por esferas sociais que pri-
vilegiam usos cada vez mais formais da língua. Isso depende, como eu
disse acima e em outros momentos, que tudo passa por uma intensa análise das condições de
produção do texto/gênero que você pretende produzir...
Dito isso, chegamos a um ponto complicadíssimo para quem adentra o universo da
escrita e produz textos: os julgamentos incoerentes que muitos “sabidões” da gramática fazem
por aí. Para usar um termo do professor Faraco (mencionado acima), estes são os guardiões
da norma curta. “Curta”, porque é artificial, limitada e não tem base científica alguma capaz
de explicar os fenômenos de uso da língua. Vamos a um exemplo?
Vez ou outro surgem na mídia dúvidas que fritam os neurônios das pessoas. Por exem-
plo: o “certo” é “risco de vida” ou “risco de morte”? E vem o jornalista que, por lidar com a
escrita, acha que pode/deve dar lições para os “menos iluminados”: “o certo é ‘risco de morte’,
porque não existe risco de viver”.
Cálculo errado, senhor jornalista! Primeiro, porque você mudou os termos “vida” por
“viver” e isso altera tudo. Segundo, porque você desconsiderou um recurso muito comum na
língua que é a elipse (quando ocultamos certos termos), como é o caso dessa expressão “risco
de vida”. E o termo ocultado é “perder”: “risco de (perder) a vida”. Pronto! Sem tagarelices! E
sem explicações infundadas e sem sentido algum...
O que fazer então? Escolha gramáticas que te tragam explicações mais pontuais (e com
base em reflexões de cunho científico) sobre os usos e, de posse de uma delimitação das condi-
ções de produção, escolha o caminho mais apropriado a seu projeto de produção textual. Eu
indico, por exemplo, as gramáticas do Evanildo Bechara (“Moderna gramática”) e do José
Carlos de Azeredo (“Gramática Houaiss”). Percebe o modo como estou escrevendo este
e-book? Quase em tom de conversa com vocês, vou monitorando minha linguagem: entre um
tom mais frouxo de bate-papo e um tom mais formal.
Espero poder falar mais com vocês sobre esse assunto e não nego minha vontade
imediata de nos encontrarmos em cursos que abordem essas questões.
É preciso ser claro, a ponto de
ser “transparente”, ao escrever?

Leia o trecho de um texto a seguir e me diz se é claro:

- Maria, ponha isso lá fora em qualquer parte.


- Junto com as outras?
- Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e
querer fazer coisa com elas. Ponha no lugar do outro dia.
- Sim senhora. Olha, o homem está aí.
- Aquele de quando choveu?
- Não, o que a senhora foi lá e falou com ele no domingo.

Parece óbvio para você (e para mim) que esse trecho não possui clareza, por não com-
preendermos o que se pede para pôr lá fora; qual homem está aí etc.

Mas agora leia o texto integral de onde retirei o trecho:

A Vaguidão Específica
Millôr Fernandes

"As mulheres têm uma maneira de falar que eu chamo de vago-específica."


Richard Gehman

- Maria, ponha isso lá fora em qualquer parte.


- Junto com as outras?
- Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer coisa com elas.
Ponha no lugar do outro dia.
- Sim senhora. Olha, o homem está aí.
- Aquele de quando choveu?
- Não, o que a senhora foi lá e falou com ele no domingo.
- Que é que você disse a ele?
- Eu disse pra ele continuar.
- Ele já começou?
- Acho que já. Eu disse que podia principiar por onde quisesse.
- É bom?
- Mais ou menos. O outro parece mais capaz.
- Você trouxe tudo pra cima?
- Não senhora, só trouxe as coisas. O resto não trouxe porque a senhora recomendou para
deixar até a véspera.
- Mas traga, traga. Na ocasião nós descemos tudo de novo. É melhor, senão atravanca a entrada
e ele reclama como na outra noite.
-Está bem. Vou ver como.
Melhorou a compreensão? Se você continua olhando para o texto tentando encontrar os
referentes (o sentido para os termos sem clara referência) certamente continua tudo confuso e
estranho.
Mas se você olhar para o entorno do texto, ou seja, para o título, a frase citada logo abaixo
e para o autor, a coisa muda! E podemos chegar às seguintes observações:

É uma crônica, um gênero que fala de coisas cotidianas, nos faz refletir sobre aconteci-
mentos, nos faz rir sobre comportamentos etc.;
O autor é Millôr Fernandes, grande escritor que privilegia o humor reflexivo, que faz
pensar;
O título e a citação adiantam que o texto intencionalmente terá muitas lacunas de senti-
do, será vago, pouco claro;
E que tal “vaguidão específica” refere-se a um modo peculiar, um estilo, de comunicar
das mulheres, como foi dito.

É a típica conversa de salão de beleza, em que só quem participa da conversa entende o que
se diz. Então, temos na crônica de Millôr quatro participantes: as duas mulheres que dialogam e se
entendem; o leitor (nós), que rimos da sátira diante de nós e o autor, que arquiteta tudo para dar
tom de humor e estilizar um “jeito” de mulher. Aos poucos, nem nos interessa mais saber o assunto
que elas conversam, mesmo porque, se soubermos, a crônica “perde o sentido”, não tem mais razão
de ser.
A clareza, na verdade, não pode ser vista como transparência comunicativa. Isso
porque quando escrevemos (e falamos) nunca se dirá tudo o que se deve/pode dizer e mais:
falhamos, há furos, somos opacos intencional ou inconscientemente.
O que fazer então para comunicarmos o que pretendemos, a fim de que o outro entenda a
mensagem? Exatamente o que fizemos em relação à crônica de Millôr: buscarmos como se dá a
relação de comunicação entre quem fala/escreve (estilo, momento em que escreveu, local onde
publicou) e quem lê/ouve e, a partir disso, buscar as razões/motivações do que se escreveu e em
que gênero (tipo de texto) aquilo foi escrito.
Veja um último exemplo da opacidade típica da linguagem na manchete retirada do site de
notícias G1, a propósito das eleições de 2018:
Isso não é muito diferente do que vimos nas últimas eleições de 2022: a falta de clareza
das propostas dos candidatos sobre várias áreas, inclusive a economia. Ou seja, em plena crise
econômica, não seria razoável que os candidatos ao menos fossem mais explícitos sobre como
faria a reforma tributária, por exemplo?
Os políticos lançam frases de efeito (vago), como as de Haddad, por exemplo, sobre a
necessidade de “combater privilégios”, “aumentar tributos sobre heranças grandes”, mas o que
isso tudo quer dizer? Como fará isso? Por que não mostram em detalhes? Perguntam os econo-
mistas. Nada pontual, muito menos claro.
E eu me volto a vocês, leitores: é por que tais políticos não sabem realmente como fazer
que eles são tão vagos? Ora, se olharmos para a esfera de onde esses sujeitos falam – a esfera
política – e se considerarmos o momento da fala – a corrida pela eleição –, a resposta é quase
óbvia: não! Não é porque eles não sabem como fazer (até porque são orientados por economistas
e estudiosos sobre como lidar com a crise econômica). É porque eles falam de um lugar que em
que, naquele momento e dadas aquelas circunstâncias, a vagueza, a falta de clareza faz parte do
programa, isto é, lançam belas frases de efeito, mas negam a eficácia quando confrontados pelos
sujeitos capazes de os denunciarem.
E teria como ser diferente disso? Seria possível um político que rompesse com essa
ordem discursiva e estabelecesse um corte nessa lógica vaga dos discursos políticos? Eu
creio/espero que sim, e você?
É preciso reduzir o que se
escreve para dizer o necessário?

Estamos aqui falando de outra coisa muito apreciada pelos “puristas do texto”: a conci-
são.
Quando digo “puristas”, estou falando daqueles que afirmam categoricamente que, ao
escrever, devemos priorizar um estilo mais “direto”, sem muitas inserções (apostos, orações
adjetivas etc.), de preferência observando a ordem Sujeito-Verbo-Objeto, por exemplo.
Steven Pinker, professor do Departamento de Psicologia da Universidade de Harvard,
em seu livro “Guia de escrita” , orienta na escrita do que chama de textos com clareza, precisão
e elegância. Apesar de trazer algumas reflexões interessantes sobre a necessidade de produzir-
mos textos menos “pomposos e eventualmente ridículos” (p. 34), o livro não leva muito em
conta uma coisa cara para nós aqui: o fato de que aquilo que escrevemos tem a ver com a
interação entre sujeito e, por isso, depende tanto das condições históricas quanto da elabora-
ção do estilo.
Vamos a um exemplo desse autor. Observe as duas frases a seguir e, em sua opinião,
qual é mais “elegante” (“bem” escrita):

1 Um mar de modelos voluptuosas e chamas excitantes na capa

2
Um mar de modelos pulcras

Não discordo que a 1ª frase seja mais “interessante”, mas as justificativas que Pinker dá
para que se exclua a 2ª frase como não sendo bem escrita não me convencem. Ele chama (pala-
vras dele) de “feia” a palavra “pulcra” e diz que “ninguém a usa, a menos queira se exibir”
(PINKER, p. 35). Isso significa que o termo “pulcro” nunca deve ser usado? Se pensarmos que
um texto ao ser produzido pode ter inúmeras intenções, a depender de “para quem escreve” e
a depender do gênero do discurso escolhido, esse termo pode ter seu lugar!
Tenho pressa em contextualizar, em pontuar a linguagem
sem deixá-la tão dispersa e ao mesmo tempo tão aprisionada a
tecnicismos como fazem muitos manuais de técnica de redação.
Vamos, então, a um dos maiores escritores de nossa literatura para enxergarmos como ele nos
dá uma aula de concisão: Graciliano Ramos. Autor de “Vidas Secas”, Graciliano foi milimétrico
na escolha (na depuração?) de cada palavra antes de lançar sua obra mais conhecida (talvez sua
obra-prima, mas tenho dúvidas se não é “São Bernardo”).
A começar pela escolha do título (e uma das coisas mais difíceis de escolher é o título
de um texto/uma obra, não é mesmo, leitor?), vemos na imagem abaixo esse processo de elabo-
ração concisa do escritor alagoano:

Figura na próxima página.


Esse é um dos borrões que o escritor faz no texto de prova do livro, alterando o título
“O mundo coberto de pennas” por “Vidas Secas”, apenas. Sem me alongar muito nas razões da
escolha do título, não posso deixar de elogiar a escolha, já que “Vidas Secas” é uma metáfora
que mais rapidamente nos leva ao conteúdo do livro: a galeria de personagens migrantes a
propósito da fuga da seca nordestina; além disso, remete a uma “seca” subjetiva, a uma dureza
de visões de mundo dos personagens ante a aridez ao redor. Enfim... brilhante a “sacada” de
Graciliano Ramos.
E veja bem mais um ponto na obra “Vidas Secas”: o jogo entre construção da metáfora
e elaboração concisa da prosa associados às relações entre os personagens vivendo em um
espaço-tempo em que tudo se passa com ressonâncias no presente (o que acaba por produzir
identificação com pessoas de qualquer época) vai tecendo a estética do romance. Molda-se
um estilo de fazer literário e um estilo de autor. “Nasce” Graciliano Ramos, o autor. Vejam: não
olhei para esse escritor sem desconsiderar o lugar de onde fala (a literatura) e as condições
que o atravessam. Mas esse é um daqueles autores sobre os quais quero falar em cursos, ou
por meio de outros textos, com vocês. Afinal, ele é um mestre da escrita. Inclusive, vale finali-
zar aqui com ensinamentos dele parafraseados pelo crítico literário Silviano Santiago:

“Como ele próprio nos alerta, o borrão na folha de papel,


que recobre e elimina a escrita apressada, equivocada e
preguiçosa, é virtude literária que serve para guiar a
vontade de endurecer o coração com a finalidade de
eliminar o peso do passado”.

Percebem o que é concisão efetivamente? Uma pessoa concisa ao escrever é uma


pessoa que entende que a escrita não pode ser apressada, preguiçosa, sem reescrita, sem
releitura. Se houver reduções no texto, isso não pode ser só para o texto “fica menor”, mas
deve ser estratégico. Deve implicar efeitos de sentidos/estéticos.

4
Livro publicado pela ed. Contexto, 2018.
5
Retirado do jornal https://outraspalavras.net/, publicado 17/05/2023.
É preciso ser totalmente
original para ser diferente?

O “não” deste capítulo é um refresco para quem acredita que produzir textos é um processo
que prima pela originalidade, no sentido de fazer o que “ninguém ainda conseguiu fazer”. Já
adianto: ser totalmente original é IM.POS.SÍ.VEL!
Clichês, frases-feitas, lugares-comuns são temidos por aqueles que produzem texto,
pois julgam ser ações típicas de “quem não tem criatividade”. E de novo, o problema maior que
aqui apontamos é o modo como dialogamos com esses clichês em nossos textos.
É isso mesmo! Que professor nunca soltou um “Vocês têm que pensar fora da caixa”,
para incentivar um pensamento crítico/analítico dos alunos, ou “nem tudo o que parece é”, ao
comentar a estratégia de mascaramento que certos gêneros de texto fazem? E qual seria o
problema se, em uma carta de reclamação ou mesmo em um ofício dirigido a uma autoridade
pública (vereador, deputado) algum cidadão soltar algo como “o seu direito termina quando
começa o do outro”? Entre aspas e utilizando a frase não necessariamente como argumento
principal, mas como ilustração para reforçar um problema de direitos e deveres entre os envol-
vidos, certamente o clichê poderá estar bem localizado e utilizado.
Vamos falar um pouco com a esfera publicitária? Pois bem, na esfera publicitária, o uso
de clichês/frases-feitas pode ser bem proveitoso, se o propósito discursivo estiver bem deline-
ado. Um site de publicidade aponta, por exemplo, 5 “passos” que, embora sejam por muitos
publicitários considerados clichês, podem, se bem contextualizados, colaborar com o processo
de divulgação e engajamento de consumidores. O 1º “clichê”, por exemplo, aponta para a neces-
sidade de se analisar a região/o local onde se divulga o produto para atingir o público. Veja:

Observe que o site nos avisou que se tratava de um conjunto de 5 clichês e não os
tomou como regras, mas como possibilidades de se pensar sobre o assunto e revisitar certos
caminhos que podem ser produtivos.
Eu poderia aqui multiplicar exemplos, mostrando que o “novo” é ilusório quando se
entende como algo novo aquilo que ninguém nunca fez. Mas vou comentar brevemente na
esfera da literatura como a repetição, se bem apropriada por alguém e devidamente “transfor-
mada”, pode produzir resultados seculares. Estou lembrando aqui de Shakespeare, cuja peça de
grande valor, “Hamlet”, foi uma adaptação muito feliz de um conto folclórico do século VI e que
se chamava “Amleth, príncipe da Dinamarca” . Dentre as várias adaptações e acréscimos que
Shakespeare faz está, por exemplo, o monólogo do príncipe em que ele manda a frase marcante
“To be or not to be, that is the question”. Também o final trágico, que inclui a morte de Hamlet,
não corresponde ao final feliz do folclore. Mas o que seria da peça sem essas memoráveis
cenas? Não teria jamais a força dramática de uma peça que fala fundo sobre nosso complexo
processo de subjetivação (de nos tornar sujeitos na/da [nossa] história). E paro por aqui,
porque é mais um grande autor que merecerão outros comentários sobre seu processo de
produção que muito nos ensina.
Originalidade, criatividade? Sim! É possível, não em uma
perspectiva individualista, mas necessariamente na relação com
o outro, aqueles que nos antecederam ou aqueles de nosso
tempo, os quais disseram/dizem coisas com as quais concorda-
mos ou das quais discordamos.
É isso! “Mais uma barreira que você pode romper” em relação à produção de textos,
para usar um clichê, e “botar a mão na massa”, para usar outro clichê.
Finalizo aqui com crônica “Os clichês da língua são como os gatos, têm sete vidas”, de
Sérgio Rodrigues, publicado na Folha de São Paulo, 08/02/2023. Brilhantemente, ele fala do
problema do uso de clichês, mas em tom de “piada”. Criatividade “pura”! Aproveitem:

[...]
Nada disso: os clichês, como os gatos, têm sete vidas! Ao menor cochilo, atacam
gregos e troianos, penetrando em corações e mentes.
O preço da ausência de clichês é a eterna vigilância. Todo escritor ou escritora
digno ou digna de ser assim chamado ou chamada sabe que sem suar em bicas, sem
trabalhar de sol a sol, não estará a salvo desse doce veneno.
Eu disse doce? Sim, porque um lugar-comum é como um chinelo velho para pé
cansado, proporcionando ao usuário uma nítida sensação de prazer e conforto.
É aí que mora o perigo! Não podemos perder de vista que esse amor bandido, no
fundo um santinho do pau oco, está sempre pronto a nos privar na calada da noite e
com um drible seco e desconcertante de um bem precioso.
E que bem será esse? Agora eu vou surpreender um total de zero pessoas, mas é
melhor chover no molhado e garantir que todos estejam na mesma página.
O bem precioso é a originalidade da expressão. O fio das palavras. O pensamento
desembaçado, lúcido. O espírito crítico. O contrário de sonambulismo.
É isso que o clichê —clássico ou contemporâneo, analógico ou digital, vernacular
ou bárbaro, lusófono ou anglófilo— corrompe, nos deixando de mãos abanando e a
ver navios no inverno tenebroso da linguagem.

6
https://maisexpressao.com.br/
7
Isso está bem explicado no livro “Hamlet ou Amleto?”, de Rodrigo Lacerda, publicado pela editora Zahar, 2015.
É preciso ser politicamente
correto para agradar ao leitor?

Vamos começar a tratar esse delicado assunto citando um texto do Estadão, escrito
pela Redação em 18/07/2017, intitulado “Pequeno dicionário do machismo”:

L de Licença maternidade
A licença maternidade é machista? É. Se não fosse ela se chamaria
licença natalidade. Presume-se que seja a mãe quem abra mão de
meses de trabalho em prol do cuidado com a criança. Sim, há, de
fato, a recuperação do parto e a amamentação. Mas não seria
sensato permitir que a família gerisse este período da forma que
lhe fosse mais conveniente, através do diálogo e da liberdade? O
machismo detesta a paternidade ativa e detesta a mulher que valo-
riza a própria carreira. Licença maternidade de 120 dias, licença
paternidade de 1 semana. Para o machismo assim está ótimo.

Como linguista e orientador de produções textuais, digo de saída que tenho grande
respeito pelos movimentos que revisam modos de comportamentos sociais que são/podem ser
ofensivos e que firam a dignidade humana. Mas é importante ressaltar que, em todo caso, cabe
reflexão e análise. E quando se trata de falar de politicamente correto em relação ao uso da
língua, podemos ter alguns problemas importantes.
Apoio-me em certa medida nas palavras do professor Dr. Sírio Possenti, da Universida-
de de Campinas. Em seu texto “A linguagem politicamente correta e a Análise do discurso” , ele
diz, em outras palavras, que a linguagem é heterogênea e que os sujeitos assumem posiciona-
mentos nas interações. E o que isso quer dizer? Basicamente, agora usando palavras de um
autor russo (Mikhail Bakhtin), que o sentido não reflete diretamente a realidade, mas a refrata.
Ou seja, não há transparência no que dizemos ao outro, mas diferentes tonalidades de sentido,
sentidos “outros”. Consequentemente, não é difícil aceitarmos a ideia de que as palavras são
objeto de disputa por sentidos na sociedade.

“Mulato”?
Um exemplo que Possenti traz é em relação a uma polêmica sobre o uso do termo “mulato” pelo
então candidato a presidente Fernando Henrique Cardoso. De um lado, houve leitores de um
jornal que o acusaram de racista por usar um termo que, segundo tais leitores, tem relação com
“mula”, o animal. Outro leitor assegurou que o termo não é derivado de “mula”, mas vem do
árabe (aproximadamente “mohalát” = mestiço).
O que nós, linguistas, podemos dizer disso? Que a língua é dinâmica, funciona segundo
diretrizes/condições sociais e históricas e que, por isso, há que se avaliarem as reais condições
em que determinado discurso foi dito no sentido de perceber o posicionamento que os sujeitos
ocupam naquele lugar social. E veja bem: seria a terminologia das palavras um parâmetro único
para avaliar se tal palavra é “racista”, “machista” ou “homofóbica”? Não mesmo. As palavras
com o tempo vão adquirindo sentidos tão variados que muitas vezes não guardam o sentido de
quando foram pronunciadas inicialmente . Possenti cita uma explicação do colunista Jânio de
Freitas.
Sobre essa questão da disputa pelos sentidos das palavras, Possenti dá outro exemplo
interessante: o do posicionamento da Folha de São Paulo no sentido de sugerir não mais usar em
suas matérias do jornal termos como “gay” ou “bicha” e passar a usar apenas termos, digamos,
técnicos, como “homossexual”. Um leitor não hesitou em responder asperamente que não queria
ser chamado assim (homossexual) por ser um termo imposto pela “medicina” e que preferia
continuar sendo chamado de “gay”, já que se tratava de uma autoidentificação/autoafirmação. O
que dizer disso? É ou não uma questão de disputa pelo sentido das palavras?
Sei que a questão do politicamente (in)correto afeta outros
campos, mas estou aqui tratando da linguagem e achar que é pos-
sível sair em busca de palavras mais transparentes, puras, por
exemplo, já vimos no capítulo sobre clareza que é irreal e não
reflete a realidade dos usos da linguagem pelo homem.
Entendo que, para um dicionário, que não delineia de modo pontual e satisfatório as
condições de produção dos discursos o termo “licença maternidade” seja “condenável”. Mas
quando a palavra circula entre as diversas esferas sociais, e entra na pena de algum escritor,
sujeito posicionado socioideologicamente, a coisa muda, o jogo vira.
Estou falando, por exemplo, com escritores de textos de humor, que “sobrevivem” lidan-
do com o politicamente (in)correto e com preconceitos e cercear usos, apenas em nome de um
“purismo” linguístico inalcançável, pode limitar a criação cômica. Não, é claro, para os destemi-
dos!

8
Está no livro “Os limites do sentido: ensaios sobre discurso e sujeito”, publicado pela editora Parábola, 2009.
9
É o que explica o colunista Jânio de Freitas, citado por Possenti.
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