Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 79

O LEGADO DE

TIMOTHY
KELLER

Clube do Prisma no07


Edição especial
Exclusivo para assinantes
Efeito Prisma/2023
O Evangelho é isso: somos muito piores
do que imaginamos, e muito mais amados
do que poderíamos sonhar.

TIMOTHY KELLER
CONTEÚDO
TIMOTHY KELLER

INTRODUÇÃO MISSÕES URBANAS

5 O precioso legado 47 Sua cidade precisa


de conciliação de mais igrejas!
Rodolfo Amorim Daniel Câmara

CULTURA EVANGELHO

10 Engajamento cultural 55 O Deus pródigo


centrado no Evangelho Pedro Moraes
Bruno Maroni
JUSTIÇA

ORAÇÃO 60 Por que pensar


17 O presente eterno a generosidade?
Gláucio Zani Fernanda Terra

COMUNHÃO CIDADE

24 O dever da hospitalidade 63 Já amou sua


Maurício Avoletta cidade hoje?
João Pedro Rios
TRABALHO

29 Para além da ética SOFRIMENTO

Gabriel Pacheco 70 Navegando nas


profundezas da dor
IDOLATRIA Ian Hott
41 Deuses falsos
Flora Ngunga
O PRECIOSO
LEGADO DE
CONCILIAÇÃO
RODOLFO AMORIM

Creio que todos os que chegam a este texto já saberão das notícias
da partida do grande teólogo, pastor, apologeta e plantador de igrejas,
Timothy James Keller       Após lutar por
anos contra o câncer, Keller nos deixa um sólido e profundo legado que
apenas começamos a compreender. A Igreja Redeemer em Nova York,
plantada por ele em 1989, se desdobrou em cinco igrejas locais que atra-
em mais de 5000 pessoas semanalmente para seus cultos. Os ministérios
ligados à Redeemer incluem socorro aos necessitados, integração de fé e
trabalho, apoio e capacitação de artistas locais e auxílio na plantação de

5
igrejas mundo afora. Somente sob influência do ministério Redeemer
City to City, iniciado por Keller em 2001, foram plantadas mais de 800
igrejas em mais de 75 cidades globais nos cinco continentes. Além do
alcance da igreja local e seus braços institucionais, Timothy Keller se tor-
nou um autor prolífico mundialmente conhecido com mais de 7 milhões
de livros vendidos. Porém, gostaria de sublinhar neste breve texto um
dos legados de Timothy Keller que mais impressionam em um mundo de
polarizações fáceis e incapacidade de integração de posições distintas nos
mais variados temas: sua capacidade de conciliar de forma teórica,
prática e incontestavelmente frutífera, tradições intelectuais, doutrinárias
e institucionais que tendem a caminhar distantes, ou até mesmo provocar
cisões no corpo de Cristo espalhado pelo mundo.
Convertido em um contexto de evangelismo universitário
conectado ao Jesus Movement e aos trabalhos e publicações da InterVar-
sity Press, Timothy Keller pode ser considerado um cristão reformado
com forte identificação com o movimento evangelical e suas ênfases
tradicionais. Porém, para além das ênfases evangelicais, Keller bebeu
profundamente de outras tradições cristãs em seu período de formação
ao pastorado, demonstrando uma capacidade única de integrá-las e
reconciliá-las em uma síntese com implicações ministeriais frutíferas e
inspiradoras. Ainda recém-convertido, em Bucknell, Keller aprofundou
na tradição evangelical pietista e suas expressões no puritanismo. Já em
seus estudos teológicos em Gordon-Conwell, Keller foi introduzido à

6
tradição kuyperiana e sua ênfase no discernimento e atuação culturais. E,
após iniciar sua atuação junto à Igreja Presbiteriana da América (PCA),
Keller recebeu fortes influências da tradição doutrinária ligadas às igrejas
reformadas históricas. O que Keller construiu a partir destas distintas
tradições foi uma rica síntese conciliadora que agrega o que cada uma
tem de melhor em sua capacidade de responder aos desafios específicos
que a vida e o ministério apresentam.

Alguns fatos mencionados na biografia de Collin Hansen,


Timothy Keller: Sua formação espiritual e intelectual, nos ajudam a
apreciar este dom de Tim Keller. Nos primeiros anos de ministério,
enquanto pastoreava em Hopewell, Virgínia, Keller ministrava a uma
comunidade composta majoritariamente de trabalhadores braçais. A

7
correção doutrinária e a ênfase na piedade pessoal deram o toque de
seu bem-sucedido ministério ali. Quando chegou em Nova York, Keller
assumiu a tradição kuyperiana como norte de leitura e engajamento com
a cidade e com aqueles que queria alcançar para Cristo. Seus encontros
semanais com não-cristãos eram inspirados em Francis Schaeffer e sua
rotina no L’Abri, auxiliando-o na preparação dos sermões dominicais,
os quais eram bem recebidos pelos céticos novaiorquinos. Em sua fase
de sofrimento com o câncer e a doença de Crohn de sua esposa Kathy,
Keller recorreu a autores e práticas cristãs relacionados à profunda pieda-
de pessoal e proximidade com Deus, o puritano John Owen se tornando
uma referência definitiva em seus últimos anos.
Uma lista de autores apreciados por Keller pode reforçar esta
capacidade de conciliação de tradições. No rol eclético de escritores
dispersos em citações de livros e sermões estão desde puritanos como
Richard Baxter, John Owen e Martyn Lloyd-Jones, reformacionais como
Abraham Kuyper, Herman Bavinck e Dooyeweerd, reformados tradicio-
nais como Elizabeth Elliot e R. C. Sproul, latino-americanos como
Orlando Costas, anglicanos como C. S. Lewis, N. T. Wright e John Stott,
e autores diversos um tanto marginalizados no evangelicalismo como
Richard Lovelace, Soren Kierkegaard, J. R. R. Tolkien, Francis Collins,
Robert Bellah, James D. Hunter, Charles Taylor e Ernest Becker. Keller
cria que um evangelicalismo maduro representaria a síntese e con-
ciliação das ênfases de sensibilidade social do protestantismo histórico

8
liberal e a ênfase fundamentalista na correção doutrinária e apego à
verdade das Escrituras. Apenas uma tradição que recuperasse o que
é amplamente bíblico nas distintas ênfases cristãs que geralmente cami-
nham paralelas poderia, segundo Keller, apontar um caminho adiante
em um mundo profundamente refratário à fé e rápido em promover
cancelamentos e polarizações. E esta capacidade de síntese e conciliação,
dentre tantos, é um de seus principais legados aos cristãos para o
futuro.

9
ENGAJAMENTO
CULTURAL
{CENTRADO
CENTRADO
NO EVANGELHO}
EVANGELHO
BRUNO MARONI

A cultura é complexa, sutil e inescapável.


[...] Se não pensarmos deliberadamente
sobre nossa cultura, simplesmente nos
conformaremos a ela sem nem perceber
o que está acontecendo.

— Igreja Centrada, p. 221

10
FÉ E CULTURA EM BUSCA DE EQUILÍBRIO

É importante que a igreja dialogue com a cultura ao pregar o


evangelho e cultivar discípulos para a vida em missão? Esta pergunta
atravessa décadas de história eclesiástica, e foi primorosamente tratada
ao longo do ministério do pastor, teólogo e prolífico autor, Timothy
Keller.

MODELOS DE
INTERAÇ�ÃO CULTURAL

plenos da graça comum


MODELO DOS DOIS REINOS MODELO DA RELEVÂNCIA
Teologia da libertação
Vertente reformada do modelo
Protestantes históricos/liberais

Igreja emergente
Vertente luterana do modelo
Movimento focado nas pessoas
em busca de espiritualidade

Fusão das
perspectivas
Excelência Bem
passivos no ato humilde comum ativos no ato
de influenciar de influenciar
a cultura Igreja como Cosmovisão a cultura
contracultura diferenciada

Neoanabatistas Neocalvinismo

Novos monásticos
Direita religiosa
Anabatistas

Amish Teonomistas/reconstrucionistas

MODELO CONTRACULTURAL MODELO TRANSFORMACIONISTA


pouca graça comum

Fonte: Igreja Centrada, p. 275

11
Além de exímio estudioso da relação do cristianismo com a cul-
tura, Keller em si foi um exemplo vivo de como é possível viver em amor
e santidade e estar envolvido em nossos respectivos ecossistemas cultu-
rais. Isso graças à visão de um engajamento cultural centrado
singularmente no evangelho. Seja na cosmopolita e agitadíssima
Nova York ou nas cidadezinhas do interior brasileiro, é fundamental que
a participação da igreja no cenário cultural (nos ambientes profissionais,
universitários, políticos, artísticos, etc.) tenha no evangelho seu centro.
Engajar-se culturalmente de tal forma envolve fundir certas
perspectivas. Sim, Keller, no magistral Igreja Centrada, avaliou
minuciosamente os modelos disponíveis de relação fé e cultura (ver
pág. anterior) — respostas que os cristãos têm dado às mudanças
culturais em diferentes épocas, mas principalmente a partir do século
XX. O conjunto de modelos mais conhecido na teologia é de Richard
Niebuhr. Olhando para a história da igreja, Niebuhr entendeu que
certos grupos respondiam à cultura afastando-se dela (Cristo contra a
cultura), assimilando-se a ela (Cristo da cultura), sintetizando-a ou di-
vidindo-a (Cristo acima da cultura e Cristo e cultura em paradoxo), ou
transformando-a (Cristo transformador da cultura). Em sua didática
análise, Tim Keller adaptou esse esquema e apontou honestamente os
pontos fracos e fortes de cada proposta.
O desfecho é o seguinte: todos os modelos estão certos e todos
estão errados. O que precisamos é de equilíbrio bíblico.

12
A abordagem da igreja centrada procura mesclar as perspectivas culturais e bíblicas de
todos os modelos em suas atividades e ministério. — Igreja Centrada, p. 280

O ENREDO BÍBLICO REFINANDO PERSPECTIVAS

Como você e a sua comunidade respondem à cultura? Como


identificar qual modelo assumir ou rejeitar? Como saber quando
devemos afirmar ou negar os artefatos, práticas e espaços da nossa
cultura? Buscando orientação a partir da teologia bíblica,
instrui Keller. O compromisso humilde com as Escrituras nos leva à
presença fiel na sociedade — uma participação santa nas diversas áreas
da vida —, além da pregação clara e transformadora do evangelho,
bem como sensibilidade às injustiças e busca por harmonia. Para isso
Keller nos recorda dos estágios decisivos do enredo bíblico: a criação,
a queda no pecado, a redenção (por meio de Israel e através de Cristo),
e a restauração de todas as coisas. Com esses atos dramáticos temos
recursos refinados para ver e viver a cultura para além dos pessimismos
e otimismos, omissões e triunfalismos.
O que enredo bíblico nos ensina para o engajamento cultural?

1 A criação: O mundo criado é essencialmente bom. O Criador


segue o sustando e trabalhando nele através do nosso cultivo e cuidado
(Gênesis 2.15);

13
2 A queda no pecado: O pecado mancha todas as coisas, todo o
desenvolvimento cultural permeado de idolatria. Ainda assim, persiste
a graça comum de Deus.
3 Redenção: A obra de Cristo é tão ampla quanto a amplitude da cria-
ção. Todo o mundo bom que o Senhor criou foi e está sendo redimido
graças à cruz.
4 Restauração: E na ressurreição Jesus inaugurou a Nova Cidade
que se instalará (Apocalipse 21), onde todos os bens culturais glorificarão
o doador de toda boa dádiva.

O texto bíblico chama não a um equilíbrio de concessões, mas a um equilíbrio no qual


nosso pensamento é controlado “simultaneamente e o tempo todo” por tudo que a
Bíblia ensina. — Igreja Centrada, p. 273

CONSCIÊNCIA E SENSIBILIDADE

Keller também propõe que a postura da igreja em relação à


cultura passa pela consciência da estação na qual nos encontramos:
inverno, primavera, verão e outono. O que isso significa? A primeira esta-
esta
ção descreve períodos de franca hostilidade da cultura ao cristianismo,
tempos que exigem árduo esforço evangelístico. A segunda, contextos de
perseguição severa, mas de constante crescimento do Corpo. A terceira,
refere-se a situações quando a igreja encontra-se à frente na produção
cultural da sociedade. E a última, diz respeito à crescente marginalização
da fé cristã no ambiente cultural — em que se faz necessário buscar

14
novos caminhos para a formação e testemunho. Para ele, é onde esta-
mos hoje.

AS PERGUNTAS CERTAS PARA ENVOLVER-SE

Um ponto de partida para pôr em prática as perspectivas de


Keller sobre umm engajamento cultural centrado no evangelho pode ser
responder duas questões básicas: onde estamos culturalmente?
E para onde as Escrituras nos levam? Há uma tendência nos
movimentos de interação cultural de se desprender da Bíblia em troca de
uma relevância fugaz, mas o caminho mais sábio é o contrário: estaremos
mais aptos para interpretar e criar novas histórias para a nossa cultura à
medida que estivermos apaixonadamente entrelaçados à grande história
contada pela Palavra de Deus, o roteiro definitivo para a vida no culto, na
casa e na cultura.
Graças ao Pai pela sabedoria compartilhada por Tim Keller e
todo seu encorajamento e instrução para a igreja contemporânea, que
sente cada vez mais a responsabilidade — e o privilégio — de servir a
cultura com mãos virtuosas, mente renovada e coração transformado
pelas boas novas de Cristo.

15
O PRESENTE
ETERNO1
GLÁUCIO ZANI

Nenhuma tarefa literária é mais nobre do que a de eternizar, em


palavras que podem ser logo esquecidas, mas que permanecerão como
uma luz secretamente acesa, aquilo que um dia existiu e não existe mais
pela ordem natural das coisas.
Keller desrespeita a passagem do tempo, escreve em uma tempo-
ralidade em suspensão, em confronto com a história. Se, na história, as
pessoas ocupam tempo e lugar, Keller desconhece tais limitações.

1 Este texto é, antes de tudo, um agradecimento a Tim Keller. Mais do que um artigo sobre oração, pretendo
evidenciar minha gratidão a Deus pela vida e legado de Keller que, por meio de sua obra, auxiliou-me no
fortalecimento de minha fé, esperança e amor; a começar pela oração. Este texto é inspirado no livro: Oração:
experimentando intimidade com Deus, de Timothy Keller.

17
Um dos mais importantes escritores do século, com uma obra
extensa, Keller chega à condição de mestre contemporâneo com uma
produção regular marcada pela unidade de voz. A cada livro, amplia o
círculo de sua produção, sem mudanças bruscas ao gosto do inconstante
agora estético. Keller não quer contemporizar com os modismos. É um
autor de obra completa e não de livros publicados acidentalmente em
determinados estilos ou sobre determinadas temáticas. O todo de sua
obra também está, de forma metonímica, na parte. Assim, ler um de
seus livros é reler a sua obra, porque cada uma das coletâneas pertence
a um único e extenso tempo.
Toda sua trajetória consistiu em perseguir e projetar esse rastro
de luz por onde quer que passasse. A luz da esperança contra a sombria
face de um mundo hostil. A luz da alegria contra o sofrimento.
Viver também é amar e se você tiver a oportunidade de amar a
seus mestres e receber deles a devida orientação como este aprendiz teve
o privilégio, por meio dos livros, e depois lhe restar a saudade, saiba que
a saudade lhe visitará com amor.

UMA EXPERIÊNCIA TRANSFORMADORA

Relatar uma experiência com um livro requer sempre alguns


cuidados. Ao chamar a atenção para as peculiaridades, méritos ou até
mesmo eventuais defeitos da obra que comenta, o “resenhista” corre o
risco de antecipar o que o leitor precisa descobrir por ele mesmo. Esse

18
é um equilíbrio dos mais delicados: falar do essencial de um livro sem
trair o leitor. Ainda assim, me arriscarei, nas linhas que seguem, nesta
tarefa.
Meu primeiro contato com o livro Oração (2016) deu-se em um
grupo de estudos de minha comunidade de fé. Recordo da sensação de
liberdade ao findar a leitura. Finalmente sentia-me como um homem
livre, ou melhor dizendo, um leitor para quem o sol da liberdade brilhou
em raios fúlgidos.
Durante aqueles meses de volumoso relacionamento com
Oração de Keller, enfim, percebia-me desejoso em orar, sabedor da gran-
diosidade da oração. A oração, insistia Keller, “é reverência e intimidade,
luta e realidade. Tais coisas não acontecerão toda vez que orarmos, mas
cada uma delas deve ser um componente importante de nossa oração no
decorrer da vida”.
A oração, portanto, leva a um autoconhecimento impossível de
alcançar de outro modo. No meu caso, o caminho para o crescimento foi
uma volta às raízes teológicas e um adjacente caminhar com Keller.
Os efeitos dessas profundas transformações foram devastadores.
Dá-se que, dei conta de que priorizava a “vida exterior” que Keller apon-
tava nas páginas de seu livro. E, logicamente, ao priorizarmos a vida exte-
rior, nossa vida interior se tornará obscura e assustadora. Se os cristãos
não basearem sua própria vida no amor imutável de Deus, então terão
de aceitar e entender o próprio eu com base na opinião do momento. Eu
rogava por uma vida pessoal de oração bem melhor. Olhando à minha

19
volta, percebi depressa que não estava sozinho.
Uma das vantagens que as caminhadas adjacentes proporcionam
é o fato de estarmos tão perto a ponto de podermos “imitar” o outro.
Então, imitando Keller, eu implementei quatro mudanças práticas em
minha vida devocional particular.

Primeiro, levei vários meses para percorrer todos os salmos,


resumindo cada um deles. Isso me possibilitou começar a orar os salmos
com regularidade, passando por eles diversas vezes ao longo de um ano.
medita
Segundo, inseri a disciplina de um período regular de medita-
ção como transição entre a leitura da Bíblia e meu tempo de oração.
Terceiro, fiz o possível para orar de manhã e à noite, não
apenas de manhã.
Quarto, comecei a orar com uma expectativa maior.

Como Keller, não consigo pensar nada excelente que também


seja fácil. Pensando por esse prisma, a oração deve, então, ser uma das
coisas mais difíceis do mundo. Todavia, admitir que orar é difícil pode
ser encorajador. Se você trava uma grande luta com isso, saiba que não
está sozinho.
Somos um povo aliançado com um Deus bom, cujo amor é fiel
e dedicado e dura para sempre. Toda aliança exige compromisso. Ora, a
Bíblia toda fala de Deus; por isso, a prática da oração é tão disseminada

20
em suas páginas. A grandiosidade da oração nada mais é que uma exten-
são da grandiosidade e da glória de Deus em nossa vida. As escrituras são
um longo testemunho dessa verdade. E é na oração que experimentamos
essa união harmoniosa com Deus. Esse é o nosso compromisso. Isso é
aliança.
Segundo Keller: “a oração é tão poderosa que, sempre que lemos
a Bíblia, lá está ela. Por quê? Em qualquer lugar que Deus se encontre,
lá está a oração. Uma vez que Deus está em toda parte e é infinitamente
grande, a oração deve permear toda a nossa vida”.
Oração é deslumbramento, intimidade, luta. Mas tam-
bém caminho para a realidade. Não há mais importante, ou mais difícil,
ou mais rico, ou mais transformador da vida. Não existe absolutamente
nada tão grande quanto a oração. Orar é conversar com Deus, meditar
em sua palavra. Orar é encontrar com Deus, buscar sua face.
Conversar com Deus nos leva a um encontro com ele. A oração
não é apenas o modo de aprendermos o que Jesus fez em nosso favor,
mas também o modo pelo qual recebemos diariamente os benefícios de
Deus. Ela transforma teologia em experiência. Por meio dela, sentimos
sua presença e recebemos sua alegria, seu amor, sua paz e confiança,
sendo assim transformados em atitude, comportamento e caráter.

OBRIGADO, MESTRE!

As linhas acima sumarizam o que aprendi sobre oração enquan-

21
to “caminhava” com Keller. Esse é o deslocamento, o procedimento de
todo o livro, a começar pelo título: Oração: experimentando intimidade
com Deus. Assim se deu minha caminhada com o autor - a começar pelo
título - eu experimentei Deus. Faces de seu amor até então desconhecidas
para mim. Experimentei a liberdade.
Oração é o livro de uma época, enfim. O livro de épocas. Obra de
um autor que, como dito anteriormente, escreve em uma temporalidade
em suspenso, que carrega a luz da esperança contra a sombria face de um
mundo hostil. A luz da alegria contra o sofrimento.
Conforme confidenciado anteriormente, relatar uma experiên-
cia com um livro requer sempre alguns cuidados. Corre-se o risco de
antecipar o que o leitor precisa descobrir por ele mesmo. Esse é um
equilíbrio dos mais delicados: falar do essencial de um livro sem trair o
leitor.
“Ler não é só um ser de desejos, ler é um desejo de ser.” A amplitu-
de poética dessa afirmativa de Octávio Paz é muito bem-vinda para
expressar a experiência imperdível da leitura de Oração de Tim Keller.
Sendo o ato de ler uma experiência tão intensa e concentrada, como
afirma Ricardo Piglia, a leitura se funde e se confunde com o próprio
ato de viver. Descubra por si mesmo.
Adore a Deus, agradeça a Deus, encontre-se com Deus, com sua
graça, seu perdão, peça a sua ajuda. Pratique a oração diária. Ore,
ore, ore…

22
Oração, banquete das igrejas, tempo de anjos,
sopro de Deus no homem de volta ao nascimento,
alma em paráfrase, coração em peregrinação,
prumo cristão esquadrinhando céus e terra;
-
mecanismo em [luta] contra o Todo-Poderoso, torre do pecador,
trovão reverso, lança que transpassa o lado de Cristo,
os seis dias de transformação do mundo em uma hora,
uma espécie de melodia que todas as coisas ouvem e temem;
-
suavidade, e paz, e júbilo, e amor, e êxtase,
maná exaltado, alegria superlativa,
céu no prosaico, homem em belas vestes,
via láctea, ave do Paraíso,
sinos de igreja que ouvem além das estrelas, sangue da alma,
terra de especiarias, algo compreendido.

GEORGE HERBERT
(1593-1633)

23
O DEVER DA
HOSPITALIDADE
MAURÍCIO AVOLETTA

24
Procurai a paz da cidade, para onde vos fiz transportar em cativeiro, e orai por ela ao
Senhor; porque na sua paz vós tereis paz. — Jeremias 29:7

Assim como a imensa maioria das pessoas, nunca gostei daquele


fastidioso momento litúrgico em que o pastor pede aos membros da
igreja que cumprimentem os irmãos que estão à sua volta. O que dizer,
então, do momento, quase sempre constrangedor, de cumprimentar os
visitantes? Bom, juro que entendo os que pensam assim e se sentem des-
confortáveis, mas, por um motivo que vou explicar neste breve texto, eu
não me enquadro mais nesse grupo dos acanhados e envergonha-
dos. É importante pontuar que essa mudança é recente e veio depois de
ter ouvido uma pregação de Tim Keller sobre hospitalidade que, por sua
vez, era parte de uma série maior sobre disciplinas espirituais.
Li poucos livros do Tim Keller, mas ouvi muitas pregações e
palestras. Em algum sentido, conheci melhor sua voz do que sua letra.
Isso fez com que eu, assim como muitas outras pessoas declararam no
triste dia de sua morte, tivesse o pastor Tim mais como um amigo do
que como um ser inalcançável. Já desde 2020 que ouço suas pregações
quase diariamente e, como já deve ter ficado óbvio, muitas ouvi mais
de uma vez. Uma das pregações que ouvi repetidas vezes foi justamente
essa que falava sobre hospitalidade. Confesso que ouvir sobre isso no
meio de uma série sobre disciplinas espirituais me assustou um pouco.
Infelizmente, não deveria ter me assustado em nada. Eu não entendia a

25
hospitalidade como disciplina espiritual porque eu não havia compreen-
dido, de fato, o que são as disciplinas espirituais ou a hospitalidade cristã.
Já desde a pregação do pastor Tim que tenho pensado que a
hospitalidade é parte importante do caráter cristão. Ser hospitaleiro
não se trata de uma escolha, mas de parte fundante de nossa
identidade enquanto Imagens de Cristo para o mundo. É
óbvio que a hospitalidade se manifestara de formas distintas na vida de
cada cristão, mas é certo que ela se manifestará. Ser hospitaleiro, para
alguns, se limita a receber bem as pessoas em sua casa, mas devo dizer
que isso é um erro crasso. Receber bem alguém em sua casa é, sim, ser
hospitaleiro, mas isso não é nem 1% do que de fato é a hospitalidade
exigida de nós, cristãos.
Pense no exemplo que dei lá no início: cumprimentar os irmãos
com a paz do Senhor e cumprimentar visitantes. Parece algo bobo para
alguns e, como era para mim, é vergonhoso e até mesmo cansativo. No
entanto, isso é um modo tradicionalíssimo da forma mais simples
e ordinária de hospitalidade cristã. Quando cumprimentamos
nossos irmãos com a paz do Senhor, dizemos que, assim como Cristo
nos deu sua paz, nós entregamos aos nossos irmãos a paz que outrora
nos foi dada, a paz que excede todo entendimento. Naquele instante,
estamos dizendo ao nosso irmão: fique em paz, pois o Senhor é conosco!
Quando cumprimentamos os visitantes, estamos deixando claro para
aqueles que vieram conhecer o corpo de Nosso Senhor, que eles não são

26
mais estranhos entre nós. Aquele momento de boas-vindas é também
um momento de confiança: nós te recebemos com amor e gratidão neste
momento tão importante para nós. Tem como ser mais hospitaleiro que
isso?
Um dia antes da morte de Keller,
conversando com um querido amigo, tomei
conhecimento do podcast Questioning
Christianity, onde Keller falava sobre temas
importantes que circundam a mente de nossa
sociedade secular como moralidade, justiça,
fé, sentido da vida e assuntos afins. Comecei a ouvir as palestras no dia
da morte dele e foi impossível não lembrar da pregação sobre hospitali-
dade. Digo isso porque comecei a pensar nas mais diversas palestras e
pregações que ouvi, dos livros que li em que Keller tratava de temas es-
pinhosos e, às vezes, até mesmo algumas objeções bastante simplórias.
No entanto, em todos os casos, sem exceção, ele recebia as dúvidas e
os problemas com atenção e respeito. Keller era hospitaleiro com as
dúvidas das pessoas e não buscava um embate apologético,
mas uma conversa entre amigos.
No dia da morte de Keller, me lembro de ver o Twitter repleto
de homenagens e lembranças. Algumas, no entanto, me marcaram
profundamente. Em uma delas, um homem comentou que, em uma
palestra, no momento das perguntas, ele questionou algo que o pastor

27
Tim não soube responder. Isso não o chateou, mas, por óbvio, o deixou
sem sua resposta. No intervalo da palestra, no entanto, enquanto todos
saíram para almoçar, Tim Keller foi até esse rapaz e pediu para que ele
lhe explicasse melhor sua dúvida. E foi assim que eles gastaram mais de
40 minutos conversando apenas sobre as dúvidas do rapaz. Fora isso,
me impressionei com os incontáveis relatos de pessoas que conversaram
apenas uma vez com Keller e que, de tempos em tempos, permaneceram
recebendo e-mails ou até mesmo ligações dele, simplesmente perguntan-
do como eles estavam e se colocando à disposição para conversarem e
orarem juntos. No dia da morte de uma das pessoas que mais admirei,
pude ver que minha admiração não era desmedida. Tive a honra de ser
contemporâneo de alguém que foi imagem eucarística de Nosso Senhor.
Alguém que encarnou em sua própria vida a hospitalidade
que tanto me marcou.
Keller me fez perceber a real importância da hospitalidade cristã,
bem como me fez compreender que ser hospitaleiro é muito mais do que
simplesmente receber bem alguém em minha própria casa. Ser hospitalei-
Apren-
ro é fazer com que as pessoas se sintam em casa em qualquer lugar. Apren
di muitas coisas lendo e principalmente ouvindo Tim Keller, mas o que
com certeza nunca me esquecerei, é que ser hospitaleiro, para um cristão,
não é uma opção, mas um dever. Nosso dever é servir o mundo como se
servíssemos ao próprio Cristo. Nossa hospitalidade deve refletir a vida da
Nova Jerusalém até mesmo para aqueles que nunca desfrutarão dela.

28
GABRIEL PACHECO

PARA ALÉM
DA ÉTICA
COMO A FÉ IMPACTA
O TRABALHO?

29
Fui mártir por muitos anos na fé, em minha tentativa utópica de
encarnar o coram Deo, a máxima paulina fazei tudo para a glória de Deus.
Ainda encontro por aí registros de um neófito oscilante, num árduo
empenho de dar significado a essas palavras. Tudo? O que é tudo? Nos
poucos meses após a colisão com a graça, não compreendia como viver
para a glória de Deus. Alguns versos já haviam se tornado hipérbole
para mim, como o famigerado orai sem cessar. Não dá!, simplesmente
não dá. Como eu poderia passar todas as minhas horas nessa conexão
mística com o divino? Levava Jesus para caminhar — ele seguia meus
passos, na lógica invertida. Na sala de aula, o método mais eficaz era o de
mentalizar o plano celestial em meio às falas de um professor ignorado
pela minha religiosidade. O meu misticismo monástico saía em viagem
astral durante o intervalo: enquanto os colegas conversavam pela escola,
eu me escondia na escadaria, lendo Romanos. O escape era a resolução
do coram Deo. Só isso me satisfazia na teoria — na prática eu falhava, e
como falhava! A culpa foi a marca nos primeiros anos após a graça.
É recomendado, entretanto, um autoafastamento em meio
ao turbilhão de pensamentos, principalmente esses megalomaníacos.
Foi o que involuntariamente aconteceu. O tópico em questão — da
integralidade — começou a ser abordado nos círculos eclesiásticos.
A pergunta era: como podemos ser genuinamente cristãos no nosso
trabalho? Eu ainda não trabalhava, cursava o primeiro ano do Ensino
Médio, mas fui cativado pela interrogação. A resposta, no entanto, não

30
me convenceu. Propuseram clubinhos de oração e evangelismo no
horário de almoço. Percebi que isso também descredibilizava minha
própria teoria: não posso viver no meu plano astral evangélico durante
o trabalho! Na escola até funcionava: eu era um péssimo aluno — estava
sempre com a cabeça nas nuvens, literalmente. Mas no trabalho eu tinha
que trabalhar, ora! Seria insustentável esse estilo de vida a longo prazo.
Talvez seja por isso que tantos se afastem da fé após a escola? Seriam eles
tragados pela vida adulta, onde não há espaço para o cristianismo senão
no ministério?
Embebidos dessa teologia escapista, restam poucas possibilida-
des para o cristão em seu ambiente de trabalho. O coram Deo é contato
com o divino, seja por meio da oração, do jejum, da leitura da Bíblia ou
da comunhão — nada mais. Como um cristão vive fielmente a
sua religião nos espaços seculares de sua vida?

MODELOS COMUNS DE
INTERAÇÃO FÉ + TRABALHO

3 E’s

Evangelismo Ética Excelência

31
ÉTICA

O trabalho cristão — ou melhor, o trabalho desempenhado pelo


cristão — se resume, muitas vezes, ao não pecar. É mania nossa definir
a experiência de fé não pelo excesso, mas pela falta. Para a maioria dos
evangélicos, a sua religião tem mais a ver com deixar de fazer algo do que
com fazer algo a mais. O senso comum é que somos o povo que não usa
drogas, que não faz sexo antes do casamento, que não baixa filme pirata,
etc. E isso é verdade, mas uma definição que tem como base o negativo
não é lá muito empolgante. Nessa visão, ser cristão no trabalho significa
apenas ser ético. Não mentimos, não nos atrasamos, não xingamos, não,
não, não. Parece que o cristianismo não tem nada a oferecer ao trabalho,
ele não modifica como trabalhamos.

EVANGELISMO

Esse dualismo, tão difundido no cristianismo brasileiro, vê sacralidade


somente nas atividades explicitamente religiosas. Logo, eu só posso
fazer algo “para Deus” enquanto estiver falando com ou sobre Deus. O
evangelismo, então, passa a ser a única forma de viver a fé no ambiente de
trabalho. Durante todo o expediente, somente quando encontramos uma
brecha para pregar o Evangelho é que estamos, de fato, desempenhando
o nosso cristianismo.

32
EXCELÊNCIA

De todas as escassas possibilidades, essa parece ser a mais


assertiva, embora também seja insuficiente em si mesma. É velha a
história de Lutero e o sapateiro, quando este perguntou ao reformador
como trabalhar para a glória de Deus. A resposta? Faça um bom sapato
e venda por um preço justo. Sim, como cristãos, somos chamados a
fazer tudo com excelência. Dizem que, na Europa pós-Reforma, para
identificar se o produtor de uma cadeira era protestante, bastava olhar
debaixo dela: se fosse tão detalhado quanto a parte de cima — a visível
—, isso era um indicativo de que as mãos que a entalharam quiseram
dedicar todo o serviço à glória do Criador.

Essas três possibilidades de associar a fé ao trabalho são boas


e, na maioria das vezes, fundamentais. No entanto, percebe que elas
não dizem nada sobre o trabalho em si? Precisamos ser éticos
e excelentes em tudo o que fazemos, e somos chamados a pregar o
Evangelho em tempo e fora de tempo. Mas o que o cristianismo tem a
dizer ao trabalho? Como a nossa cosmovisão modifica a forma como
exercemos as nossas profissões — não reduzindo a experiência, mas a
expandindo?

33
GEORGE MACDONALD CS LEWIS TIMOTHY KELLER

O mesmo profeta que não é recebido em sua casa também é


negligenciado em sua geração. Por vezes com razão, somos tímidos ao
reconhecer um gigante intelectual do nosso tempo — a prudência espe-
ra a morte, onde não podemos mais cometer deslizes. E só a partir de
então que as obras tornam-se exorbitantemente valiosas. Em vida, nos
limitamos a comparar nossos heróis a mentes brilhantes do passado,
como simulacros ou cópias baratas do ícone original. Foi assim com
Timothy Keller: o “C.S. Lewis do séc. XXI”. Daqui uns anos surgirá
os “Kellers das próximas gerações”. Não gosto dessas comparações,
embora reconheça o que querem dizer. E sei bem o que Keller tem a
ver com Lewis: aquela genialidade mais rara, que arranca da ponta de
nossas línguas o que não conseguimos colocar em palavras. Muitos de
meus incômodos inexprimíveis ganharam substância através da obra

34
do pastor nova-iorquino. Foi ele quem me puxou desse poço de culpa
exotérico em que vivia, foi ele quem me apresentou uma forma de viver
minha fé fora da igreja, foi ele quem me apresentou a teologia do trabalho.

PENSANDO UMA TEOLOGIA DO TRABALHO

A cosmovisão cristã, assim como qualquer outra visão de


mundo, pode ser expressa através de uma narrativa:

Criação Queda Redenção Consumação


Deus criou Todas as coisas Deus está restaurando Todas as coisas serão
todas as coisas caíram com o pecado todas as coisas definitivamente restauradas
através da cruz quando Cristo retornar

Logo, uma teologia do trabalho observa o trabalho por esta


perspectiva: como ele se relaciona com a Criação, a Queda,
a Redenção e a Consumação?

Criação

A tortura de domingo à noite se deve, para alguns, à inevitável


responsabilidade do dia seguinte: preciso trabalhar porque preciso pagar

35
as contas. Aqui, teologia e cultura popular se confundem e formulam
uma doutrina nada bíblica: o trabalho é visto, na igreja e no mundo todo,
como um mal necessário. A abordagem deste artigo, partindo da Criação,
pode ser uma surpresa para muitos cristãos: trabalho não é consequência
da Queda? Bom, a isso respondemos um enfático não! Leia Gênesis 3
de novo e reconsidere: a maldição não é o labor, mas a fadiga.
Tocarei nesse tópico num instante.
Seria satisfatório parar por aqui e avançar para o aspecto da
Queda, mas não o posso fazer enquanto não mencionar o propósito do
trabalho. Sim, ele já existia antes do pecado, mas por quê? O relato da
Criação apresenta um discurso divino assombroso, mas em nenhum
momento encontramos nele o tetelestai [está consumado]. O grito de
Cristo naquela cruz não se refere à gênese do mundo, mas à sua Reden-
ção. Embora Deus tenha descansado de toda a sua obra, ela não é um
projeto concluído: ela continua, agora com cocriadores humanos.
Nós somos chamados a desenvolver as potencialidades da Criação de
Deus. Inclusive, repare como nos é revelado onde encontram-se pedras
preciosas ao redor do Éden (Gn 2:11-12). Essa não é uma informação
exaustiva, muito menos aleatória: são indicativos de matéria-prima
para o trabalhador. Este mundo foi feito para se desenvolver, e a prova
disso é a Nova Jerusalém: nela, não encontramos um jardim como no
início, mas uma cidade. Apesar de o termo “progresso” causar calafrios
em muitos cristãos, existe um certo progresso, santo, que é ordenança

36
divina para a humanidade.

Queda

Compreensivelmente, o trabalho é associado à Queda, o que


não vem de exegese nenhuma, mas de preguiça. É esse ritmo frenético
que nos exaure e condenamos: só pode ser o demo. Nem demônio, nem
anjo — humano! Trabalho é coisa de gente, essa gente criada pelo Deus
que quer ver o mundo todo povoado. Mas a Queda tem consequência;
inclusive, Queda e consequência são termos que andam
sempre de mãos dadas. A punição é imediata: “no suor do teu
rosto, comerás o teu pão” (Gn 3:19).
A rebelião do homem desorientou seu coração, o que afetou
todas as suas relações — e o trabalho não ficou de fora. Por causa da
Queda, a nossa produção pode vir a ser improdutiva. O solo maculado
nem sempre dá o fruto no tempo certo. O trabalho revela os nossos
ídolos quando rapidamente tomamos o fardo nos nossos braços e pen-
samos ser capazes de trazer o resultado sem a ajuda de Deus. Burnout
é nome novo de sintoma antigo. Nessa perseguição insana de sucesso,
nos tornamos egoístas: nas primeiras páginas da Bíblia, o trabalho é
construir uma torre que toque os céus e nos faça conhecidos, a torre de
Babel. E ainda ficamos perdidos na transitoriedade e futilidade de tudo
isso, quando o trabalho se torna sem sentido. Vaidade. Com a Queda,

37
inúmeros ídolos do trabalho são levantados, e precisamos ser capazes de
identificá-los com a ajuda do Espírito Santo.

Redenção

A boa notícia é que Cristo não veio para nos tornar adeptos de
uma religião: Ele veio nos dar vida, e vida em abundância. A
nossa fé não restaura “só” o nosso relacionamento com Deus, mas com
todas as áreas da nossa vida, e isso inclui o trabalho. Ao contrário do
que a teologia escapista sugere, nós podemos desfrutar da Redenção no
nosso ofício. Muitos de nós crescemos acreditando que Jesus viria para
nos tirar desse plano e nos levar a um Céu incorpóreo, mas já vimos que
não é bem assim. O palco da Redenção é a Criação que caiu, ela toda.
Má teologia conversa com cultura popular, e da mesma forma
que incrédulos trabalham com os olhos fixos no fim de semana, crentes
podem trabalhar de olho no culto dominical. Não nego que devemos ter
algo em vista, mas a nossa esperança é bem maior que um domingo ordi-
nário. Nós trabalhamos com os olhos fixos no Domingo dos domingos,
não o dia de folga, mas de Ressurreição, o dia em que a Morte começou a
andar para trás. Com a esperança em vista, podemos trabalhar fielmente,
desempenhando o nosso chamado de preservar a terra. Entendendo que
o Reino já está aqui, mas ainda não plenamente, evitamos tanto uma
postura ascética quanto uma expectativa triunfalista. O Reino virá, não

38
por nossa força, mas já podemos desfrutá-lo aqui e agora.

Consumação

O trabalho é tão importante para Deus que, pasmem!, ele é


presente na Nova Criação. A ideia de descanso eterno não deve ser
confundida com um ócio eterno, como se virássemos anjinhos harpistas
ou amebas etéreas. Na verdade, a vida na Cidade é dinâmica e pulsante,
e lá trabalharemos sem os efeitos da Queda, mas para a glória de Deus.
É Makoto Fujimura quem sugere que “as nossas produções culturais
são matéria-prima para a Nova Criação”. De fato, “no Senhor o nosso
trabalho não é em vão” (1Co 15:58).

Logo, como trabalharemos tendo em vista todas essas coisas?


Timothy Keller propõe algumas reflexões:

Identificando os ídolos
1. Qual é o enredo da cultura em que vivo e do campo em que traba-
lho? Quem são os protagonistas e os antagonistas?
2. Quais são as pressuposições básicas sobre significado, moralidade,
origem e destino?
3. Quais são os ídolos? As esperanças? Os temores?

39
Entendendo o nosso papel
1. Como minha profissão recria esse enredo e qual o seu papel no
enredo?
2. Que partes das cosmovisões estão basicamente alinhadas com o
Evangelho, de modo que posso concordar e alinhar-me com elas?
3. Que partes das cosmovisões predominantes são insolúveis sem
Cristo? Em outras palavras, em que pontos devo desafiar a minha
cultura? Como Jesus Cristo pode completar esse enredo de modo
diferente?
4. De que maneira essas histórias influenciam tanto a forma quanto o
conteúdo do meu trabalho? Como posso trabalhar não apenas com
excelência, mas também de modo distintamente cristão?
5. Que oportunidades minha profissão oferece para:
a. servir as pessoas individualmente;
b. servir à sociedade como um todo;
c. servir a meu campo de trabalho;
d. exemplificar competência e excelência;
e. testemunhar de Cristo?

40
DEUSES FALSOS
FLORA NGUNGA

Eu costumo dizer que, quando lemos livros, temos a oportunidade


de conversar com o autor. A minha experiência lendo os livros do Tim
Keller foi exatamente assim. Cada página era uma conversa, uma prosa,
um discipulado. Tivemos conversas sobre nós mesmos, seres humanos
caídos e agora adotados pelo Redentor em processo de santificação.
Falamos sobre esperança, sobre dias melhores. Falamos sobre o
nosso coração, sobre o meu coração. Uma das orações que
oramos juntos, enquanto eu lia seu livro Oração, foi a que se encontra
em Efésios 1:18: "que os olhos do seu coração sejam iluminados, a fim de
que você conheça a esperança pela qual Ele te chamou". Keller, na minha
interpretação, estava chamando a minha atenção para o meu coração
e desejando que eu tivesse os olhos do meu coração iluminados pela

41
verdade, a qual tem poder de me transformar por inteira. A verdade que
me permite entender cognitivamente e emocionalmente o que é belo, o
que é verdadeiro e o que é bom.
Eu cresci cantando e repetindo que "a boca fala daquilo que o
coração está cheio", mas não tinha completa consciência de como manter
os olhos desse coração iluminados, também pouco compreendia sobre
a seriedade de Provérbios 4:23, no qual Salomão nos adverte sobre a
importância de guardarmos o nosso coração porque "dele procedem
as fontes da vida". Keller me ajudou a compreender que o coração
é nosso sistema de orientação. Local onde temos nossos compro-
missos, esperanças e afetos mais profundos, os quais controlam nossos
sentimentos, pensamentos e comportamentos. Portanto, nosso querer
reverbera o que há em nosso coração.
Eu também cheguei a conversar com James K. A. Smith sobre
o coração, sei que Keller costumavaconversar com Smith nesta mesma
configuração que eu inventei. Smith também me ajudou a compreender
que o coração humano é como uma bússola que aponta para o que é mais
importante para mim. Ele me disse que é o coração que nos orienta para
alguma visão de "reino", o nosso telos. E, conversando com Keller através
de Deuses Falsos, pude identificar quem, de fato, estava sentado no trono
do reino que eu almejava viver.
Keller me desafiou a olhar para o meu coração. Ele me contou
que o coração tem uma capacidade descomunal de criar ídolos. E que
esses ídolos desorganizam nossos afetos. Eles nos fazem amar o que não

42
devemos ou nos fazem amar menos o que deveríamos amar mais. Keller
me fez algumas perguntas que me levaram a refletir profundamente
sobre os compromissos do meu coração.
Nas primeiras páginas do livro, a seguinte pergunta mexeu com
minhas estruturas: Flora, o que você gosta de imaginar? Quais são seus
desejos mais profundos?
Responder essa pergunta me trouxe um certo desconforto.
Os meus sonhos não eram coisas ruins. Eram coisas boas que
seres humanos costumam sonhar. Porque ali estaria um possível ídolo?
Keller me disse que os ídolos capturam a nossa imaginação e podemos
localizá-los ao olharmos para os nossos sonhos diários.
Eu me recordo de uma conversa que tive com a missionária
Andrea Vargas. Ela me disse que nós, cristãos, precisamos ter uma visão
mais robusta e honesta do que se configura pecado em nossas vidas.
Ficamos presos ao "pode ou não pode" e acabamos sendo negligentes com
aquelas coisas, originalmente boas e saudáveis, que podem capturar a
nossa imaginação e, também, gerar morte e não vida. Eu entendi, a partir
dessa conversa, que coisas boas podem se tornar ídolos e fazer com que
nosso coração nos oriente para outros "reinos" sem vida, mais especifica-
mente, reinos que não têm Jesus, o único caminho, verdade e vida.
Quando Deus ordenou a Abraão que sacrificasse um dos seus
maiores sonhos, seu filho Isaque, Ele estava dizendo que nós não pode-
mos transformar os nossos entes queridos em deuses falsos. Talvez,
para Sara, ter um filho era algo que, em sua imaginação, lhe forneceria

43
valor e sentido na vida, de tal forma que tentou realizar o sonho a qual-
quer custo. Tal ação afetou a vida de outras pessoas. Quando entregamos
nosso coração aos ídolos, nós colocamos em risco a nossa vida e a vida
das pessoas que nos rodeiam. Temos, como exemplo, a escrava Agar e
Lia, filha preterida de Labão, as quais tiveram suas vidas roubadas.
Quando Keller me disse que, às vezes, realizar o meu maior
desejo poderia ser o maior desastre da minha vida, fiquei um
pouco preocupada. Quis argumentar com Deus que eu faria diferente
de Sara, de Jonas, de Naamã, de Jacó e de Lia. Meu medo era que Deus
abortasse os meus sonhos. Não estava preocupada com a saúde do meu
coração e no risco que é ser entregue às próprias paixões.
Keller me falou que o amor não era tudo o que eu precisava.
Embora, na modernidade, o casamento tenha sido desvalorizado, ainda
existe, principalmente no meio evangélico, uma ideia fixa de que, depois
de aceitarmos a Jesus, precisamos incansavelmente encontrar o amor
eros. E eu realmente creio que o casamento pode ser algo sublime aqui
na terra, mas Lucas 20:34 e Mateus 22:30 deixam claro que os filhos da
ressurreição não olham para o casamento como aquilo que sacia nossa
fome, pois o casamento é terreno e não eterno. Fomos feitos com o
propósito de conhecer um amor supremo de alguém que realmente sacia
todas as fomes. Não podemos esperar que algo ou alguém preencha os
sapatos de Deus. A história de Jacó e de Lia é uma realidade no ambiente
evangélico e fora dele. Jacó queria amar. E ele se apegou tanto na vontade
de ter uma esposa linda, atraente como Raquel, que esse desejo se tornou

44
sua identidade, de tal forma que seus afetos acabaram desordenados. Ele
viveu dando tudo de si, como um escravo, cativo e sem perceber que os
ídolos não prometem o que cumprem.
Keller me fez uma outra pergunta: qual é o seu maior medo?
Flora, olhe para sua vida e reflita o que, se você perdesse, faria a vida
perder o sentido de ser vivida?
Com essa pergunta, ele queria saber o que o meu coração
entendia como paz e segurança. Na época em que respondi essa
pergunta, eu estava trabalhando na empresa dos meus sonhos e eu vivia
comentando com meus amigos o medo que eu tinha de ser demitida.
Keller chamou minha atenção e disse que eu tinha que ter cuidado,
pois caso meu emprego se tornasse um ídolo, eu poderia ser capaz de
fazer sacrifícios desnecessários para "agradar" esse deus que, na minha
cabeça, me garantia proteção e estabilidade. Quantas pessoas acabam
desenvolvendo doenças por se sacrificarem por seus empregos? Eu quis
chorar quando meu tempo na empresa chegou ao fim. Eu estava apega-
da à segurança financeira que o emprego me dava e esqueci daquele que
fez os céus e a terra, aquele que era, de fato, o meu sustento, o Senhor
do tempo, que muito antes de me formar no ventre materno já tinha
me escolhido e declarado que eu era algo muito bom. Não era o sucesso
que delimitava a minha identidade.
Uma outra pergunta que me ajudou a identificar meus deuses
foi: como você responde às orações não respondidas e esperanças frustra-
das? Você fica nervosa? Passa a se comportar como se sua vida não tivesse

45
mais sentido?
Eu me lembrei dos dias em que tratei certas pessoas mal, sim-
plesmente porque as minhas frustrações estavam diante de mim. Essa
pergunta me causou um constrangimento tão grande!, mas foi possível
calcular a fonte de onde fluíam minhas ações e comportamentos.
Jeremias 17:9 diz que "enganoso é o coração, mais do que todas as coisas,
e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?".
C. S. Lewis me falou algo que explica esse dilema: "se eu encontro
em mim um desejo que nenhuma experiência desse mundo possa satisfazer,
a explicação mais provável é que eu fui feito para um outro mundo".
Eu luto comigo mesma. Questiono como desfrutar plenamente a vida
que me é concedida, tornando-me atenta, no cotidiano, a tudo que me
lembra de que não tenho aqui em baixo morada permanente.
Como é difícil e lento educar o meu coração! Sinto milhares
de cordas me amarrarem ainda a muitas coisas terrenas que não fazem
parte de mim na eternidade como filha da ressurreição. E eu perguntei
ao Keller como eu poderia arrancá-las. Ele me disse que não era possível
arrancá-las como arrancamos as plantas, pois elas poderiam crescer
novamente. Temos que substituir os ídolos do coração por aquele que
nos dá vida: Jesus. Somente Ele pode ocupar o trono do nosso coração.
"Se a beleza e a glória de Cristo não capturarem nossas imaginações,
dominarem nosso pensamento consciente e não encherem nosso coração
de anseio e desejo alguma outra coisa o fará".

46
SUA CIDADE
PRECISA DE
+ IGREJAS!
DANIEL CÂMARA

De saída, preciso confessar que a ideia de plantar igrejas me fascina.


Fui filho de um pastor presbiteriano bem engajado com esse trabalho
— então, aprendi a rodar por pequenas igrejas antes de aprender a
andar. Algumas das mais antigas memórias da minha infância envolvem
registros turvos nas Congregações Presbiterianas de Canoas e de Char-
queadas, no Rio Grande do Sul. Depois, meus primeiros contatos mais
profundos com a periferia e a desigualdade se deram nas Congregações
do Alvorada (Sabará/MG) e de Vila Maria (Lagoa Santa/MG). Ainda
criança, vi a Igreja Presbiteriana de Lagoa Santa deixar de ser uma peque-
na congregação para ser uma igreja sólida que plantava novas igrejas.

47
Assim continuei pela adolescência e juventude. Cansei de ir em
cultos inaugurais. Não sei nem quantas vezes fui visitar obras de templos,
com todos os tamanhos e orçamentos. Descobri minha vocação para a
pregação do Evangelho em um culto de jovens da Congregação Presbite-
riana do Monte Azul (aqui em Belo Horizonte). Não à toa, hoje estou
engajado em um grupo de plantação da Igreja Presbiteriana Refúgio, que
pretende alcançar o Santa Tereza, em Belo Horizonte (o bairro do Clube
da Esquina). Movimentos para iniciar novas comunidades cristãs fazem
parte da minha história de vida (e, claro, de fé).
Mas reconheço que este olhar apaixonado é minoritá-
rio. Trazer este assunto à tona costuma gerar reações de desconfiança,
desprezo ou até horror. Não é exagero dizer que a visão do evangélico
médio sobre a Igreja foi intoxicada por uma cultura mercadológica com
pitadas feudais. Afinal, não é raro ver as comunidades de fé tratadas
(implicitamente ou às claras) como negócios milimetricamente pensados
para atrair um certo público consumidor e, a partir dele, criar esferas de
poder. A coisa é ainda mais trágica quando alguns cristãos maduros, que
abominam esta forma de lidar com o Corpo de Cristo, leem as plantações
de igrejas sob essas lentes.
“Por que abrir uma igreja com o mesmo estilo litúrgico de outra
que já existe?” Se a lógica for atender ao público que se identifica com este
estilo, não há motivo que não seja a deslealdade de uma concorrência re-
ligiosa. “Por que iniciar uma nova congregação se você pode simplesmente
ajudar uma igreja existente, já estruturada?” Se o raciocínio for a busca

48
por maior conforto, tal qual um consumidor, é melhor descansar onde
há mais recursos. “Por que um grupo sairia de uma igreja para começar
outra?” Se o que impera é uma ideia pecuarista de manter o maior núme-
ro de cabeças em um espaço determinado, plantar igrejas só poderia ser
um ato de mais pura rebelião.
Contudo, as coisas não são assim! É claro que existem
aproveitadores, que veem a comunhão da igreja como um negócio e,
para isso, estão dispostos a concorrer, roubar e até dividir. Mas essa
distorção não pode nos privar de enxergar o que é real. A vida em comu-
nidade não é regida pelo Código de Defesa do Consumidor: é pautada
pelas Escrituras, que ordena que façamos discípulos de todas as nações,
inclusive a nossa. Na Igreja de Deus, só há espaço para um Senhor —
e Ele ordena que sejamos Suas testemunhas em todo lugar, até mesmo
nas nossas cidades.
É óbvio que existem aqueles que “pregam a Cristo por interesse
pessoal, não de forma sincera” (Fp. 1.17). Isso não anula o fato de que
a plantação de igrejas continua sendo o método mais efetivo para comu-
nicar o Evangelho, em sua integralidade, de forma contextualizada, a
sociedades cada vez mais plurais. Se você deseja vencer quem trata a
igreja como negócio e alargar a tenda da família da fé, a solução passa
por plantar mais comunidades atentas ao sopro do Espírito e à dança
das culturas de seus entornos.
Justamente neste ponto está o elemento mais encantador do
legado de Timothy Keller. A despeito do seu inegável equilíbrio, de sua

49
visceral humildade, de sua profunda intelectualidade, de sua invejável
capacidade de comunicação e de seu louvável trânsito por contextos
tão antagônicos entre si, sua herança mais destacada é a Redeemer
Presbyterian Church, na cidade de Nova York. Estamos falando de
um homem que, desde o final do século XX, plantou e liderou uma
igreja continuamente ortodoxa e relevante em um templo
do secularismo pós-moderno. Esta é uma coisa que mexe com o
imaginário de quem é cristão. É como se, num arroubo de ansiedade
pelo Universo que virá, a Nova Jerusalém tivesse fincado uma bandeira
no coração da Babilônia — e diante dos nossos olhos!
Mas o quadro é mais amplo do que o ministério nova-iorquino.
Através da Redeemer City to City, organização que fomenta a plantação
de igrejas que pertencem ao perfil aqui descrito, centros urbanos de
todos os continentes foram povoados por comunidades cristãs centradas
no Evangelho e culturalmente contextualizadas. Não é preciso ir tão
longe para verificar essa realidade: em quase toda grande cidade brasilei-
ra, há igrejas diretamente apoiadas por este campo de atuação do Rev.
Keller. Com este cenário, é correto dizer que a compreensão do legado
de Timothy Keller passa por entender a importância que ele deu ao
empreendimento de plantação de igrejas.
A discussão sobre este tema permeia vários trechos da obra de
Keller. Por exemplo, o indispensável Igreja Centrada visita várias vezes
este assunto- sobretudo no capítulo 29, “A plantação de igrejas como uma
dinâmica do movimento”. Entretanto, arrisco-me a dizer que a produção

50
que melhor sintetiza o pensamento do plantador da Redeemer nesta
seara é o artigo “Why Plant Churches?” [“Por que plantar igrejas?”]1.
Em um breve texto, cheio das encantadoras qualidades de sua redação,
o Rev. Keller articula suas razões para plantar novas igrejas em quatro
eixos, que passo a resumir.
Antes de tudo, Timothy Keller afirma a importância crucial da
plantação de igrejas através do chamado à fidelidade ao mandato
bíblico. Ele destaca, corretamente, que a Grande Comissão não se
esgota em fazer discípulos, passando também pelo dever de batizá-los.
Com isso, além da mera administração do sacramento, falamos da
introdução dos novos discípulos à vida de uma comunidade cristã que,
com seu contexto de limites e responsabilidades, ajudará a conduzi-los
na jornada da fé salvadora.
Prova de que esta era mesmo a lógica de Jesus é a estratégia
adotada por Paulo, Seu apóstolo. Como Keller bem ressalta, a narrativa
de Atos mostra que as missões paulinas eram coordenadas a partir da
noção de que o modo mais adequado de influenciar permanentemente
uma nação é através de suas principais cidades (como foram os casos
de Filipos, Tessalônica, Corinto e Éfeso), que funcionam como centros
irradiadores do Evangelho para suas regiões vizinhas. Aliada a esta
convicção, estava a ideia de que a melhor forma de influenciar uma
cidade é plantando igrejas locais — só aí, segundo o critério apostólico,

1 KELLER, Timothy. “Why Plant Churches?”. Redeemer City to City, 2002. Disponível em: <https://redeemercity-
tocity.com/articles-stories/why-plant-churches>. Acesso em: 29 jun. 2023.

51
a atuação evangelística estaria concluída.
Para argumentar que esta não é uma situação peculiar à realida-
de do primeiro século, Keller diz que a plantação de igrejas é imprescin-
dível ante o chamado à fidelidade à Grande Comissão. Se a mis-
são cristã envolve fazer discípulos, batizá-los e ensiná-los, plantar outras
comunidades cristãs é a melhor opção. Nesses ambientes novos, ainda
em construção, há espaço para que vários grupos encontrem seu lugar:
jovens que não se adaptam aos costumes cristalizados de igrejas mais
antigas; novos moradores de uma região, que demorariam vários anos
para encontrar espaço para posições de influência em congregações
estabelecidas; novos grupos socioeconômicos que se sentem deslocados
em igrejas pensadas para outros perfis — tais quais os abastados mora-
dores das pujantes metrópoles do Brasil (como Belo Horizonte), que
se mudam para subúrbios tradicionalmente adaptados aos ritmos e
demandas interioranas (como Nova Lima).
Para além disso, há um elemento estatístico elencado pelo Rev.
Keller que, embora seja afeto ao contexto dos Estados Unidos, não é tão
distante da realidade percebida nas terras brasileiras: a maioria dos novos
membros de novas igrejas (60-80%) costuma ser de novos convertidos,
enquanto a renovação de membresia de igrejas estabelecidas (80-90%)
costuma se dar por transferências de outras comunidades. Por um impe-
rativo existencial, plantações de igreja são mais forçadas a buscar pessoas
alheias à realidade evangélica. Assim, a tendência é que, deste grupo de
pessoas, surjam as lideranças das novas igrejas, sensíveis às questões de

52
quem está fora do ambiente cristão, em um ciclo virtuoso que, em igrejas
mais antigas, costuma estar desgastado.
Outra razão elencada por Timothy Keller para a relevância das
plantações de igreja é o desejo de contínua renovação do Corpo
de Cristo. Estas novas frentes de trabalho eclesiástico, que costumam
ser mais receptivas a abordagens inovadoras de diálogo com seus contex-
tos, acabam servindo como laboratório de novas experiências, dando
subsídios, a partir de seus sucessos e fracassos, para que outras igrejas da
região revitalizem seu ministério. Neste ambiente com tons de aventura e
desbravamento, acabam surgindo novas lideranças, com perfis criativos,
inovadores e menos receosos perante os riscos, diferentes das outras (va-
liosas) virtudes valorizadas na formação de líderes de igrejas estabelecidas.
Aliás, onde essas congregações entram na equação? Conforme
discorre o Rev. Keller, o florescimento contínuo de novas igrejas em
uma região oferta uma oportunidade às antigas igrejas para que façam
um minucioso auto-exame: seja pela identificação de sua própria visão e
seus pontos fortes; seja pelo encorajamento de ver ministérios frutíferos
em sua localidade; seja pelas possíveis parcerias entre as várias gerações
de comunidades cristãs para que, juntas, façam o que não conseguiriam
fazer sozinhas. Da mesma forma, é natural que as plantações levem ao
crescimento de todas as igrejas da região - afinal, não é incomum que
convertidos das novas igrejas acabem, por variadas e legítimas razões,
acabem na membresia de alguma igreja já estabelecida.
Um último motivo mencionado por Timothy Keller nesta

53
questão, mais singelo, é que a plantação de igrejas incentiva o desen-
volvimento da mentalidade de Reino. Ainda que as igrejas
abandonem as mentalidades mais tímidas e protecionistas, abraçando
com ânimo a ideia de dar início a novas comunidades, algumas perdas
serão inevitáveis. Igrejas-mãe perderão alguns de seus melhores líderes,
além de outras famílias preciosas, para suas congregações. Não deixa
de ser dolorido. Mas, como afirma o Rev. Keller, “Neste ponto, as igrejas
existentes, de certa forma, têm uma pergunta diante delas: ‘Vamos nos
regozijar nos 80% — as novas pessoas que o Reino ganhou através desta
nova igreja — ou vamos lamentar a situação, ressentindo a partida das
três famílias que perdemos para isto?”.
Ouso dizer que aqui está uma das maiores forças do legado de
Timothy Keller: a consciência de que nossas cidades precisam de mais
igrejas. Sob esta inspiração, percebi a beleza e o privilégio de ter passeado
por plantações de igreja a vida toda. Debaixo desta orientação, entendi
que a vontade de Deus para mim hoje é participar do início de uma nova
comunidade cristã. Sob os ombros de Keller, cada cristão e cada igreja é
chamado a se encantar o universo de redenção que há no surgimento de
novas congregações centradas no Evangelho. Se é assim, o que estamos
esperando?

54
PEDRO MORAES

O DEUS
PRÓDIGO

55
O Deus Pródigo é, em minha opinião e experiência, o melhor dos
livros de Tim Keller. Em meio a tantas obras que trabalham a dinâmica
da fé com a cultura, de como podemos desenvolver um ministério
centrado na cidade e o impacto sociocultural do Evangelho, O Deus
Pródigo nos acorda da sonolência hipnótica do fazer, e nos escancara o
real chamado do Evangelho, um chamado para ser.
Meu primeiro contato com o livro foi lá em 2018, num período
de transição importante da minha vida. Migrando de um curso para
outro, mudando de cidade, encarando diversos conflitos que tocavam
minha fé e cosmovisão. No meio de toda essa bagunça, me indicaram
essa leitura. E como estava começando a me aventurar na "literatura
teológica" – se é que assim posso chamá-la –, imediatamente adquiri o
livro. Não era nenhum calhamaço, por isso o levei numa viagem para
ler durante o voo. Embarquei, me aconcheguei em meu assento e iniciei
a leitura. Logo nas primeiras páginas, fui pego de surpresa pelos escritos
que antecedem a introdução:

pródigo (adj.): 1. Esbanjador empoderado. 2. Que gasta até o fim.

É maravilhoso, hoje, poder reler essa obra depois de tanto


tempo, com mais sobriedade e em um novo momento de vida, e ainda
ser confrontado e acalentado pela mensagem de Cristo tão genialmente
exposta por Keller. A nova leitura da obra foi essencial, reforçando lições

56
esquecidas na correria da rotina e revelando novas nuances da fé.
Como a grande maioria das pessoas que cresceram em meio
cristão, ouvir a história de Lucas 15 era de imediato associá-la com
“a História do Filho Pródigo”. Particularmente, sempre encarei essa
passagem como uma lição a respeito de um filho que pede sua herança,
vai viver a vida adoidado, faz coisas que ele sempre quis fazer e que lhe
eram limitadas por imposição, cultura e regras do pai. Depois, o filho
perde tudo o que tem e quer voltar para a casa do pai, este que o recebe
de braços abertos, restituindo a ele tudo aquilo que havia abandonado.
Sei que estou contando o que a maioria já sabe, portanto não vou me
prolongar aqui.
Keller, em sua didática genial, demonstra como essa parábola
não pode ser vista só por essa perspectiva com a qual estamos tão fami-
liarizados. E, para ser sincero, antes de ler o livro eu temia me deparar
com mais do mesmo. Como estava errado! Eu pude me ver nessa histó-
ria, como esse filho mais novo que buscava o autoconhecimento longe
do Pai, me aventurando mundo afora. No entanto, relendo agora, me
identifiquei com o filho mais velho, escondido em minha conformidade
moral, pautando a solução para tudo na religião e suas tradições. Enten-
di, finalmente, que através dessa parábola, Jesus está apresentando uma
alternativa para viver.
Em Lucas 15, Jesus redefine o que é pecado e nos faz
ver outra face da Lei e da Graça simultaneamente. Quando

57
analisamos a história, somos ávidos em condenar a atitude do filho mais
novo. No entanto, o pecado retratado na parábola não é somente o de
considerar o pai como morto e reclamar sua herança. O pecado também
é revelado na atitude do primogênito, que buscava seguir a Lei para atin-
gir um patamar de incontestabilidade, no qual o pai seria supostamente
obrigado a lhe dar sua herança. Ambos os filhos estavam cegos para o
pecado, cada um com suas particularidades. O primeiro, preso em uma
obsessão de buscar o autoconhecimento ao se jogar mundo afora. O
segundo, orgulhoso, crendo ser detentor da justiça e da retidão.
Simultaneamente, na parábola, somos apresentados a um
ressignificado da salvação. O pai não mede riquezas para ter seus filhos
por perto – a salvação é uma festa! A maior festa de todos os tempos!
Para o filho mais novo, a graça e a misericórdia do pai são evidentes.
Ele voltava para casa disposto a ocupar o cargo de serviçal e é recebido
em amor e adotado pelo pai, sendo restituído com as melhores vestes,
jóias e o melhor novilho. O filho estava morto e reviveu, estava perdido
e foi achado (Lc 15:24).
No entanto, para o filho mais velho, furioso pela bondade do pai
para com o irmão, essa festa é o maior enigma da parábola.
Ele estava igualmente distante do pai: embora não houvesse abandonado
a sua casa, ele estava no campo remoendo seus verdadeiros amores e de-
sejos, enquanto aguardava a morte do pai. Mesmo em meio ao desrespei-
to do filho diante do convite ao banquete, o pai insiste que ele participe

58
da celebração do renascimento do mais novo. Assim, Jesus revela que a
salvação é ao mesmo tempo individual e coletiva. Sim, somos salvos como
indivíduos, mas partilhamos da alegria, gozo e renovação dos nossos
irmãos, participando concomitantemente da salvação uns dos outros.
Dessa forma, aprendemos uma nova maneira de viver. Vivemos
não mais pelo nosso orgulho, não mais acreditando que nossa força é
capaz de nos proporcionar o que é preciso para sermos salvos. Nosso
senso de justiça é quebrado e precisa ser recalibrado. Somente a justiça
de Cristo é santa! E também não precisamos nos atirar mundo afora
buscando descobrir quem somos ao nos entregarmos aos nossos praze-
res. Temos uma casa, um pai para nos receber e acolher, dizendo quem
verdadeiramente somos e trazendo à tona uma nova identidade pautada
não no que fizemos, mas no que o Pai – o verdadeiro pródigo –
gastou por nós na Cruz através do Filho.
De volta àquela definição que me é tão importante nessa obra.
Pródigo é aquele que é empoderado ao esbanjar, aquele que não mede
gastos nem esforços. E nosso Deus, de fato, é pródigo. Ele deu absoluta-
mente tudo por mim. Ele trouxe um novo significado para minha vida
ao me receber com um banquete após minha busca incessante por
autoconhecimento e ao me convidar para este mesmo banquete que,
no meu orgulho, recusei participar. É Ele quem me diz: "tudo que
tenho é seu".

59
POR QUE PENSAR
A GENEROSIDADE?
FERNANDA TERRA

O legado de Timothy Keller certamente alcançou muito mais pes-


soas do que ele próprio poderia imaginar. Suas mensagens não ficaram
restritas aos EUA, mas ultrapassaram as fronteiras geográficas, eviden-
ciando uma das diversas belezas do Evangelho do Senhor Jesus Cristo:
a catolicidade da fé, que não possui limites, mas alcança o propósito es-
tabelecido por Deus onde Ele desejar, pois a missão é totalmente dEle,
e nós somos apenas servos, convidados a fazer parte dessa boa obra.
Entre as contribuições de Tim Keller com seu conhecimento e
sua sabedoria, podemos destacar os ensinamentos sobre a generosidade
e a importância de o cristão compreender que o Evangelho também trata
do órfão, do pobre, da viúva e do estrangeiro. Um dos seus livros que

60
aborda esse princípio é Justiça Generosa: A graça de Deus e a justiça
social. Nele, somos levados pelo autor a compreender o significado da
palavra “justiça” com base no texto de Miqueias 6:8: “Ele te declarou, ó
homem, o que é bom e que é o que o Senhor pede de ti: que pratiques a
justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus.”
(ARA). Será que justiça e amor à misericórdia são concei-
tos diferentes? A resposta dada por Keller é: não.
Primeiramente, a palavra “misericórdia” vem do hebraico,
chesedh, que significa graça e misericórdia incondicionais de Deus. Já a
palavra “justiça” é mishpat, que é uma ênfase à ação. Quando tomamos
conhecimento disso e voltamos para o versículo, percebemos que
mishpat refere-se à ação e chesedh é a atitude, o motivo por trás da ação.
Assim, nas palavras de Keller: “Para andarmos com Deus, então, temos
de fazer justiça, com amor misericordioso”1.
QUARTETO DA
VULNERABILIDADE

Viúvas Órfãos

Estrangeiro Pobre

1 KELLER, Timothy. Justiça Generosa: A graça de Deus e a justiça social. 1ª Ed. São Paulo: Vida Nova, 2013. p. 25.

61
Aqui entra um princípio importante sobre a essência da genero-
sidade. Praticar a justiça social vai além de cumprir uma obrigação, é
o reflexo do caráter de Deus, que defende os vulneráveis e os fortalece.
Nesse sentido, Tim Keller aborda um conceito de Nicholas Wolterstorff,
o quarteto da vulnerabilidade: o órfão, o pobre, a viúva e o estran-
geiro, pessoas que fazem parte de toda sociedade de todas as épocas e
que, muitas vezes, não têm alguém que lute por seus direitos. Nisso, faz-se
relevante a presença fiel dos cristãos, por meio do princípio da justiça
social, defendendo os vulneráveis e garantindo seus direitos.
O conceito do quarteto da vulnerabilidade é expandido em
outras obras de Timothy Keller, como em seu livro Ministérios de Miseri-
córdia: O chamado para a estrada de Jericó. Ao destrinchar a parábola do
samaritano, Keller chama a atenção para as palavras de Jesus: “Amarás
o teu próximo”, e, a partir da exposição da história, o autor defende o
fato de que o “próximo a quem devemos ajudar é todo ser humano em
necessidade, até um inimigo”2.
Justiça Generosa e Ministérios de Misericórdia são grandes
contribuições do legado de Timothy Keller para que esse debate seja
equalizado conforme a Teologia Bíblia. Por fim, em resposta à pergunta
do título, precisamos pensar em generosidade para refletirmos o próprio
Cristo, que se fez justiça por nós ao morrer na Cruz e nos convocou a
seguir o mesmo exemplo para honra e glória de Deus por todo sempre.

2 KELLER, Timothy. Ministérios de misericórdia: O chamado para a estrada de Jericó. 1ª Ed. São Paulo: Vida Nova,
2016. p. 99.

62
JÁ AMOU SUA
CIDADE HOJE?
JOÃO PEDRO RIOS
Pense em um cabra “rato de apartamento”, criado cercado por
quatro paredes, ensinado a ter medo das ruas e da vizinhança e a amar a
segurança, o conforto e a frieza estável dos muros, portarias e fechaduras.
Pense ainda em um cabra que mal sabia andar pelas ruas do centro de sua
própria cidade, pelo contrário, nutria desgosto e até um certo ódio pelas
multidões, prédios, vendedores de foto 3x4 e compradores de ouro. Só de
pensar em ter que marcar um horário em um daqueles prédios públicos
para renovar um documento qualquer, já era tomado por uma mistura
lastimável de preguiça e murmuração.
Não me leve a mal, eu aprendi a engolir minha chatice. Fui fazer
meu ensino médio em uma escola pública localizada em uma das aveni-
das mais movimentadas da cidade, me envolvi com esportes e precisava
pegar ônibus para todo canto para treinar e competir (ainda hoje me
gabo de ter pegado ônibus para quase todas as cidades que fazem divisa
com Belo Horizonte). Depois fui fazer faculdade, adivinhe onde? No
centro. Foram 6 anos indo para lá todos os dias, então é óbvio que acabei
me acostumando. Mas se acostumar é uma coisa, compreender, entender
e olhar com olhos redimidos de compaixão, senso de responsabilidade e
admiração é outra. Muito prazer, este era eu antes do tio Keller.
De fato não sei em que posição da revista este artigo estará, mas
com certeza você já teve contato neste material com pelo menos uma
grande contribuição magnífica de Keller para este povo que se chama
igreja. Pregação, apologética, teologia bíblica, teologia pastoral… São

64
contribuições muito grandiosas em áreas extremamente importantes,
mas o ensino de Tim que mais impactou minha prática cristã não tinha
nada de óbvio ou previsível: aprenda a amar a sua cidade.
Um belo dia estava ouvindo uma série de podcast do Bibotalk
sobre um livro chamado Igreja Centrada, cada episódio ouvido ao lavar o
banheiro de casa era uma mistura complexa de êxtase e (muito) temor. Eu
precisava de mais, eu precisava engolir cada palavra daquela obra. Então
o fiz. Que soco no estômago! Minha carne me odeia diariamente por
ter lido aqueles parágrafos, agora sou constantemente incomodado por
aquelas verdades que se encravaram em minha mente igual carrapicho.
Facilmente consigo dividir minha vida em antes e depois daquele livro.
Pois bem, em determinado ponto da obra, Keller descreve sua
experiência como pastor na cidade mais cosmopolita e assustadora para
qualquer plantador de igreja que respeite minimamente as dificuldades
do ministério: Nova York. Mas a igreja não fica em qualquer lugar de
Nova York, mas sim, adivinhe?, no centro da cidade, na famigerada
Manhattan. Tranquilo, não é mesmo? Dificilmente elegeremos um lugar
com uma efervescência cultural tão intensa, é a cidade-profeta que ante-
cipa, escancara e é berço de tudo que se chama tendência. Silenciando
toda tentação monástica que o crente tem guardada dentro de si, foi ali
que Keller e sua equipe de missionários urbanos plantaram a Redeemer
Presbyterian Church.
Olhando agora, pode parecer que tudo correu em paz para Tim,

65
que foi uma caminhada tranquila, sem faraós, filisteus, feras selvagens,
baalins, reis idólatras ou deuses com cabeça de touro. Ledo engano! Tim
era gente como a gente, Tim relutou, Tim ficou com medo, Tim teve que
estudar, Tim teve que planejar, Tim teve que orar, Tim teve que amar. É
isso mesmo: a conclusão que Tim chega após anos de ministério é que
não adianta conhecer o suprassumo da teologia evangélica — se você
não amar a sua cidade, é improvável que você consiga comunicar bem o
Evangelho para os seus pacatos (ou nem tanto) cidadãos.
A tese de Tim é simples: Yahweh, o Deus de Israel, Pai do
Senhor Jesus Cristo, moveu a história através de cidades. Desde
Gênesis vemos este ajuntamento de pessoas com um protagonismo na
Narrativa da Redenção quase que invisível aos olhos. Enoque (cidade
fundada por Caim), Babel, Ur dos Caldeus, Sodoma, Gomorra, Jericó,
Nínive, Jerusalém, Betel, Betsaida, Corazim, Cafarnaum, Colossos,
Corinto, Éfeso, Filipos, Tessalônica… E como se não bastasse que o Deus
Altíssimo escolhesse humildemente se comunicar em língua humana, se
submetendo ao tempo e espaço histórico dos homens, Ele ainda se utiliza
de categorias entendíveis ao nosso intelecto para compreendermos o
progresso da revelação.
Explico: o cenário bíblico começa em um Jardim (do Éden) que
rapidamente “evolui” para cidades, porém elas se mostram ajuntamen-
tos corrompidos e repletos de intenções rebeldes e usurpadoras, mas é
curioso como ainda assim a Escritura termina em uma cidade (Nova

66
Jerusalém), mas uma na qual não existe nem choro e nem lamento.
Moral da história: cidades merecem a nossa atenção!
Aí vai a cereja do bolo: cidades nada mais são do que pessoas
juntas convivendo. Pessoas nada mais são do que criaturas feitas à
imagem e semelhança de Deus, várias delas totalmente alienadas dessa
verdade e aguardando pela pregação do Evangelho da salvação que
as libertará. Logo, cidades são grandes assentamentos da imagem
e semelhança do Senhor, verdadeiros alvos do envio da Igreja pelo
próprio Cristo. Quer mais ou o tio Tim já ganhou a sua atenção? Bom,
nesse ponto ele ganhou a minha e tive que admitir a minha teimosa e
arrogante rejeição à cidade.
Keller definitivamente não era desses de fazer teologia somente
atrás da escrivaninha com suéteres engomados intocáveis (nada contra
suéteres engomados), ele era um soldado campal, um guerreiro do front.
Na mesma toada, seu livro é um catapulta para fora da cadeira. Então, era
hora de mudar! Era hora de amar não só da boca para fora, mas calçar
os meus tênis e me expôr à selva de pedra. Ainda cheio de preconceitos,
lá fui eu aprender a discernir os tempos, as expressões artísticas, os sons
harmônicos e os dissonantes, as dinâmicas, os movimentos dos corpos,
uns lentos, outros rápidos demais, a natureza contrastante, a pluralidade
de seres, a beleza e a feiúra da vida em sociedade.
E quem seria Keller sem os seus leitores? Um deles, Guilherme
Gimenez, aquele mesmo que escreveu um dos artigos da revista passada,

67
de forma bem kelleriana me fez ir ainda mais além. Em uma conversa
invejosamente edificante, ele me fez entender que não bastava somente
me expôr à cidade: como um cristão, eu precisava interagir com ela,
viver os seus ritmos e pulsações de forma redimida caso eu quisesse ter
a oportunidade de mostrar que o Reino dos Céus havia chegado. Mais
um soco no estômago desse jovem quase ranzinza!
Tive de admitir, eles estavam certos! Cidades são feitas de pesso-
as, e pessoas não são robôs sem alma, são misturas absurdamente
complexas de coletividade e individualidade. Que ingenuidade
a minha pensar que seria capaz de pregar o Evangelho com excelência
sem conhecer quem são eles! E pior, beirando a categoria da hipocrisia,
como poderia eu falar do Cristo sem antes amar estas pessoas como Cris-
to as amou? Como eu poderia dizer que as amo, sendo que eu as evito a
qualquer custo?

68
Olha, foi bem difícil! Na verdade, ainda está sendo, ainda tenho
muito a aprender com amigos bem mais urbanos do que eu. Mas foi
libertador! Foi o primeiro passo para um agir cristão mais intencional,
com mais ternura e sabedoria. Foi o primeiro passo para descobrir mara-
vilhas antes ocultas dos meus olhos, ouvidos, mãos e papilas gustativas.
Foi o primeiro passo para tocar mãos desconhecidas, abraçar corpos
ignorados, falar nomes de anônimos e amar corações arruinados pelo
mal que assola este mundo. Foi o primeiro passo para falar de Jesus de
verdade, pois agora eu não falava mais um texto decorado ao vento, eu
falava do amor que eu compartilho para pessoas que eu vejo.
E você, já amou sua cidade hoje?

69
NAVEGANDO NAS
PROFUNDEZAS
DA DOR
IAN HOTT
A cada nova manhã
novas viúvas pranteiam, novos órfãos choram,
novos lamentos golpeiam a face do céu1

— Shakespeare

O sofrimento é uma parte inevitável da experiência humana.


Perdemos pessoas amadas, sofremos de doenças (algumas debilitantes
e fatais), somos traídos, fracassamos em nossas empreitadas, pecamos
mesmo quando não queremos. Ninguém está imune a qualquer uma
dessas e muitas outras dores. A vida é trágica!
E, obviamente, segue-se a questão: como é possível crer
em um Deus bom, justo e amoroso em meio a tanta perver-
sidade, dor e angústia?
Em seu ministério pastoral, Tim Keller precisou lidar com
essa dúvida mordaz várias vezes. Enquanto respondia às críticas dos
angustiados contra a existência de Deus, Keller também descobriu
muitas pessoas que encontravam Deus durante a aflição. Citando C. S.
Lewis, Keller concluiu que “Deus sussurra em nossas alegrias, fala em
nossa consciência, mas grita em nosso sofrimento”2. Além disso, Keller
aos poucos descobriu que a adversidade não só levava muitas pessoas
a crerem na existência de Deus, mas também levava as pessoas a ''uma

1 Macbeth, ato 4, cena 3. Proferido por Macduff.


2 C. S. Lewis. O problema do sofrimento (São Paulo: Vida. 2006), pg. 94.

71
experiência mais profunda da realidade, do amor e da graça de Deus’’3.
Após alguns anos de ministério, o próprio Keller teve que se
deparar com seu próprio sofrimento pessoal. Em 2002 ele foi diagnosti-
cado com câncer de tireoide, passando por cirurgia e tratamento. Foram
anos de luta. Essas experiências moldaram sua perspectiva e o levaram
a explorar o tema do sofrimento em seus livros Esperança em Tempos de
Medo: A Ressurreição e o Significado da Páscoa, Caminhando com Deus
em Meio à Dor e ao Sofrimento, e Nascimento, Casamento e Morte: Como
Encontrar Deus nos Eventos mais Significativos da Vida. Nestes livros,
Keller desenvolveu um teologia do sofrimento gloriosa, que não apenas
nos faz entender os nossos algozes neste mundo, como também nos guia
sobre como viver em meio a dor. O sofrimento não precisa ser fonte de
desespero e desesperança.

3 Timothy Keller. Caminhando com Deus em Meio à Dor e o Sofrimento (Edição do Kindle), pg. 18.

72
Em junho de 2020, o pastor Tim Keller revelou ter sido diagnos-
ticado com câncer de pâncreas e na manhã do dia 19 de maio de 2023 ele
faleceu, cercado pela família. Segundo relato público de seu filho Michael
Keller (em publicação no Twitter), suas derradeiras orações foram: “Me
leve para casa”.

O SIGNIFICADO DO SOFRIMENTO

A Bíblia oferece uma perspectiva única sobre o sofrimento. Ela


não nos reponde por quê sofremos ou o que é o sofrimento em si, mas
nos ensina sobre como sofrer e como passar pelo sofrimento. Para Keller
antes de ser uma questão filosófica, o sofrimento é uma adversidade
prática. Como nos revela tão profundamente o livro de Jó, Deus não está
interessado em nos explicar o sofrimento, mas está muitíssimo interessa-
do em caminhar conosco enquanto sofremos.
O cristianismo não possui uma teodiceia — uma defesa de Deus
em face da presença do mal no mundo —, como alerta Keller. O que o
cristianismo bíblico oferece é sentido em relação ao sofrimento.
A estudiosa de literatura clássica Judith Perkins mostrou que a
explicação que a tradição grega dava para o sofrimento não era prática
nem satisfatória para as pessoas comuns. Por outro lado, a abordagem
cristã à questão do sofrimento e do mal, concedia mais espaço à dor
e mais base para esperança e, portanto, era atrativa. E, de fato, o cristia-
nismo suplantou todas as noções pagãs sobre o sofrimento. A partir de

73
então, desenvolveu-se uma noção completamente nova de que o sofri-
mento não era nem ilusão, nem resultado dos caprichos do destino.
Sempre havia significado e propósito no sofrimento.
Isto é, não sabemos o que o sofrimento em si significa, mas sabe-
mos que ele trás consigo significado. As pessoas não são vítimas do
acaso, nem do destino, mas estão nas mãos de um Deus sábio e amoroso.
Keller escreve: “Um Deus pessoal é um Deus intencional, e na Bíblia
descobrimos as diferentes maneiras pelas quais o sofrimento opera na
vida das pessoas. Os pastores do início do cristianismo não acreditavam
numa maneira única de confortar ou preparar alguém para lidar com a
adversidade’’4. Ou seja, não há uma formula para consolar os que sofrem
ou mesmo para que nós vivamos o sofrimento. Mas há uma esperança
universal: a de que temos um Deus conosco (‫) ֵלאּו ָּנמִע‬.

4 Timothy Keller. Caminhando com Deus em Meio a Dor e o Sofrimento (Ed. Vida Nova), pg. 62.

74
JESUS DAS CICATRIZES

Durante a Primeira Guerra Mundial, Edward Shillito (1872-


–1948), um ministro da Igreja Livre na Inglaterra, compôs um poema,
colocando-se no lugar de um soldado sensibilizado pelos horrores da
Grande Guerra e pelas imagens e memórias que abalaram a Europa na
primeira metade do século XX. Em seu livro, Caminhando com Deus
em Meio à Dor e o Sofrimento, Keller cita o seguinte trecho do poema
de Shillito:

Os outros deuses eram fortes, mas tu eras fraco


Eles cavalgaram até o trono, mas tu cambaleaste
Contudo, às nossas feridas somente as feridas de Deus podem falar,
E, além de Ti, não há outro deus que as tenha

De fato, ao lermos o livro de Jó descobrimos que Deus não está


interessado em nos explicar suas razões e nem somos nós dignos de
questioná-lo. “O questionador é radicalmente desafiado quanto ao seu
direito de até mesmo fazer a pergunta’’5. Mas essa não é a solução final
que Deus dá ao nosso sofrimento. Longe de nos silenciar, Deus decide
encarnar e sofrer. Berger então cita Albert Camus: “Apenas o sacrifício de
um deus inocente justificaria a tortura infinita e universal da inocência.
Apenas o sofrimento mais miserável de Deus poderia aliviar a angústia

5 Peter Berger. The Sacred Canopy: Elements of a Sociological Theory of Religion, pg. 74.

75
do ser humano’’.
Portanto, é verdade que não sabemos porque Deus permite
que soframos, mas sabemos que Ele nos ama e nos entende. Ao morrer
na cruz, Ele conquistou a confiança de nosso coração com suas feridas
abertas. Se morreu por nós, é porque Deus quer o melhor para nós
— mesmo que isso exija de nós sofrer momentaneamente como Ele
também sofreu. “Sim, temos um Deus transcendente, mas pessoal, que
nos ama tanto que seu coração sofre muito por nós”6.
Consequentemente, ao ressuscitar, Cristo nos dá a esperança
de não só encarar o sofrimento, mas de saber que o venceremos na
ressurreição, como Ele mesmo venceu.

O CARÁTER INEXORÁVEL DA RESSURREIÇÃO

Uma das maiores diferenças entre o cristianismo primitivo e as


outras filosofias e religiões vigentes no primeiro século era a doutrina
da ressurreição futura do corpo e da restauração do mundo físico. A
ressurreição de Jesus é a resposta definitiva de Deus ao sofrimento.
Ela revela que a morte não tem a última palavra e que há esperança
além do túmulo. Keller afirma: "A ressurreição nos diz que Deus pode
transformar o mal em bem e que, no final, tudo ficará bem”7.
A morte é inevitável para todos nós. Mas a ressurreição de Cristo

6 Timothy Keller. Caminhando com Deus em Meio à Dor e o Sofrimento, (Ed. Vida Nova), pg. 167.
7 Timothy Keller. Esperança em Tempos de Medo (Edição do Kindle).

76
possui ainda mais sublime inevitabilidade, tornando a morte, em si,
obsoleta e mera lembrança longínqua. O grande triunfo do Novo Testa-
mento é nos mostrar que Deus não é apenas Senhor da morte e Sobera-
no sobre ela, mas também que Ele mesmo venceu a morte e que, por
causa disso, um dia Ele a eliminará da existência. Keller ressalta: “Em
meio ao luto e à dor, temos uma esperança inabalável, pois sabemos que
Deus está no controle e tem o poder de transformar até mesmo a morte
em vida”8.
Embora a morte seja uma realidade inescapável para nós que
vivemos, a mensagem central da fé cristã é a esperança da vida eterna
através de Jesus Cristo. A ressurreição é nosso último consolo.
Keller conta que conheceu uma mulher bem adoentada. Quan-
do as pessoas perguntavam a ela o que sentia, ela sempre respondia:
“nada que a ressurreição não cure’’. Ele mesmo tinha essa convicção
profunda, o que é estampado em sua última oração. Ao contemplar a
morte, o teólogo foi lembrado de que aquele não era o fim; ele sabia que
o dia 19 de maio de 2023 era apenas mais um capítulo em sua história
— as linhas que antecipavam a eternidade.
Com essa tamanha confiança que Keller deve ter escrito as
palavras que, provavelmente, o ajudaram a passar por seu próprio sofri-
mento: ‘'Se você sabe, não se esqueça disso nunca, que a ressurreição

8 Timothy Keller. Nascimento, Casamento e Morte: Como Encontrar Deus nos Eventos mais Significativos da Vida
(Edição do Kindle).

77
está a caminho, jamais você estará em trevas absolutas’’9.
Um dos legados de Tim Keller é nos lembrar que mesmo em
meio às nossas dores mais intensas, há sempre esperança e signi-
ficado. O sofrimento é uma realidade dolorosa, mas não definitiva.
Enquanto caminhamos com Deus em meio a dor e o sofrimento, encon-
tramos consolo, direção e esperança na ressurreição de Jesus Cristo, e
na certeza de que a morte não tem a última palavra. Podemos navegar
nas profundezas da dor confiantes, até que chegue a nossa hora de dizer
também: “Me leva para casa!”.

9 Timothy Keller. Esperança em Tempos de Medo (Edição Kindle).

78

Você também pode gostar