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A proliferação das igrejas e o recrudescimento dos conflitos sociais em Moçambique

The proliferation of churches and the resurgence of social conflicts in Mozambique


Júlio Chinguai1

Resumo: O presente artigo debruça-se sobre A Proliferação das Igrejas e o Recrudescimento


dos Conflitos Sociais em Moçambique, uma temática que deriva da disciplina de - Filosofia,
Política e Religião – do programa de Doutoramento em Filosofia, da Faculdade de Filosofia –
Universidade Eduardo Mondlane. Faz uma leitura crítica em relação à eclosão aritmeticamente
exponencial das igrejas em Moçambique, contrastado pela vertiginosa elevação do índice de
conflitos sociais. O ponto de partida para o debate, assenta-se, justamente, no facto de existir um
número cada vez maior de denominações religiosas e, em contrapartida, regista-se uma crescente
onda de criminalidade que vai desde brigas familiares que culminam em homicídios, desrespeito
e boçalismo nas escolas, consumo de drogas, assaltos, sequestros, terrorismo, até à
institucionalização da corrupção. Portanto, aliado ao descrito acima, urge levantar as seguintes
questões de reflexão: (i) Qual é o verdadeiro papel das igrejas na sociedade moçambicana? (ii)
Como se pode explicar os crescentes conflitos sociais numa sociedade “submersa” aos
ensinamentos de Deus? Será na “tentativa” de responder a estas questões, que se desenrolará
todo o debate, objectivando compreender as causas da “dissonância” entre a multiplicidade de
igrejas e o paralelo crescimento dos conflitos sociais. Em termos metodológicos, o trabalho
privilegia a pesquisa bibliográfica e documental, associadas à técnica de hermenêutica textual. A
relevância deste estudo prende-se no facto de convidar o leitor ou à sociedade moçambicana, em
geral, e às igrejas e seus fieis, em particular, para reflectir em torno do papel da igreja face à esta
problemática social. Os resultados parciais incidem sobre (i) a possibilidade de adoração a um
“deus construído” para interesses particulares de um grupo (líderes da igreja); (ii) a falta de fé
entre os pastores e seus seguidores e (iii) a transmutação de valores de uma ética cristã para a
lógica do capitalismo.

Palavras – chave: Proliferação das igrejas, Conflitos sociais em Moçambique.

Abstract: This article focuses on The Proliferation of Churches and the Recrudescence of Social
Conflicts in Mozambique, a theme that derives from the subject of - Philosophy, Politics and
Religion - of the Doctoral program in Philosophy, of the Faculty of Philosophy - Eduardo
Mondlane University. It makes a critical reading in relation to the arithmetically exponential
explosion of churches in Mozambique, contrasted by the vertiginous rise in the rate of social
conflicts. The starting point for the debate is based precisely on the fact that there is at least one
church on each “corner” of the block, the bankrupt tents are transformed into churches, there are
1
Doutorando em Filosofia, Faculdade de Filosofia, da Universidade Eduardo Mondlane. Docente na Escola de
Comunicação e Artes, na mesma Universidade.

1
preachers from door to door, at stops, on public and private transport, on television programs, on
social networks, by other words, we are in a world where churches are more accessible than
bread, transport, school, hospital, etc. On the other hand, there is a growing wave of crime
ranging from family fights that culminate in homicides, disrespect within the family, indiscipline
and stupidity in schools (drug use), robberies, kidnappings, terrorism, to the institutionalization
of corruption. Therefore, allied to the above, it is urgent to raise the following questions for
reflection: (i) What is the true role of churches in Mozambican society? (ii) How can one explain
the growing social conflicts in a society “submerged” in the teachings of God? It will be in the
“attempt” to answer these questions that the whole debate will unfold, aiming, in general, to
understand the causes of the “dissonance” between the multiplicity of churches and the parallel
growth of social conflicts. In methodological terms, the work privileges bibliographic and
documental research, associated with the technique of textual hermeneutics. The relevance of
this study lies in the fact that it invites the reader or Mozambican society, in general, and the
churches and their faithful, in particular, to reflect on the role of the churchs in the face of the
resurgence of social conflicts. The partial results focus on (i) the possibility of worshiping a
“built god” for the particular interests of a group (church leaders); (ii) the lack of faith among the
pastors and their followers and (iii) the transmutation of values from a Christian ethic to the logic
of capitalism.
Keywords: Proliferation of churches, Social conflicts in Mozambique.

Introdução

O presente estudo subordina-se ao tema - A Proliferação das Igrejas e o Recrudescimento dos


Conflitos Sociais em Moçambique. Advém de uma actividade de pesquisa para a culminação da
cadeira de Filosofia, Política e Religião do programa de Doutoramento em Filosofia.

No entendimento de Max Weber (1991) a religião não é algo alheio ou distante da realidade dos
indivíduos sociais. Sua importância está directamente relacionada com sua funcionalidade
prática, que seria exactamente oferecer ao indivíduo o atendimento das demandas e carências.
No mesmo diapasão, Mussomar (2021) entende a religião como sendo uma “tentativa de
responder à perguntas existenciais, tais como: de onde viemos? Para onde vamos? Qual é o
sentido da vida? [Ou seja], filosoficamente, a religião procura o significado último da vida”. Daí
que, a nossa inquietação sobre os actuais fenómenos religiosos, à luz de Weber e Mussomar,
ganha uma sustentabilidade, na medida em que, como seres humanos, habitantes deste meio,
gozamos do direito de questionar sobre esta realidade a que somos parte.
Neste contexto, tem sido frequente, actualmente, observar um fenómeno de “explosão” de
denominações religiosas que causam espanto até ao mais pacato e distraído cidadão. Ostentam
diversas designações, umas, são versículos extraídos da bíblia, outras, de índole totalmente

2
publicitária à semelhança dos estabelecimentos comerciais. Há, nos bairros suburbanos
(principalmente), mais igrejas que escolas e hospitais. Fazem “campanha” de porta-a-porta, nas
paragens, nos transportes, nos portões das escolas, nos parques e jardins, ou seja, em todos os
lugares públicos há sempre homens e mulheres falando de Deus.

Porém, é no meio da mesma sociedade “cristianizada” que se perpetra o banditismo, roubos,


sequestros, homicídios, fofoquices, corrupção, entre outros conflitos sociais que retardam o
desenvolvimento do país. Portanto, é em virtude deste fenómeno descrito, que emerge a nossa
inquietação e nos impele a encetar esta pesquisa, onde propusemo-nos a compreender as causas
do paradoxo entre a multiplicidade de igrejas e o paralelo crescimento de conflitos sociais em
Moçambique. E, para a operacionalização deste desiderato, pautamos em: (i) identificar a
literatura que debate - filosófica e historicamente - sobre o cristianismo em África e Moçambique
(em particular); (ii) descrever a práxis ou modus operandi de algumas igrejas neopentecostais do
nosso país; (iii) analisar as práticas destas igrejas confrontando-as com a literatura seleccionada
(incluindo algumas passagens bíblicas).

Entretanto, para dar “fôlego” ao debate, surgem duas questões fulcrais: (i) Qual é o verdadeiro
papel das igrejas na sociedade moçambicana? (ii) Como se podem explicar os crescentes
conflitos sociais numa sociedade “submersa” aos (diários) ensinamentos de Deus?

Metodologicamente, o trabalho privilegia a pesquisa bibliográfica e documental, associadas à


técnica de hermenêutica textual. Em termos conteudísticos, o estudo comporta: (i) uma breve
contextualização histórica do cristianismo em (África) Moçambique; (ii) a filosofia ou modus
operandi das igrejas neopentecostais e, por último, (iii) A praxis das igrejas neopentecostais no
“tribunal da razão”2.

Aporte bibliográfico

Para o presente debate, foram “convidados” autores como (i) John Baur (2014) – 2000 anos de
Cristianismo em África – uma história da igreja africana. Baur traz um suporte filosófico e
histórico sobre o percurso do cristianismo em África, de forma geral, e, Moçambique, em
particular; (ii) Bénézet Bujo e Juvénal Ilunga Muya (2012) – Teologia Africana no século XXI –
2
Conceito emprestado de Mussomar (2021:114)

3
algumas figuras. Estes dois autores remetem-nos ao entendimento filosófico sobre a formação de
uma teologia africana; (iii) Brazão Mazula (2016) - faz o seu contributo Dialogando com a
Política e a Religião – um conjunto de 11 prelecções que nos fazem pensar o País
(Moçambique): a democracia, a cidadania, a vida; (iv) Celestino Victor Mussomar (2021) – o
êxodo da grande culpa – uma crítica filosófica à economia africana - contribui, dentre várias
matérias, com questões da religião, seu significado na vida assim como pela proposta do
pluralismo religioso dentro da laicidade do Estado como resposta viável à ameaça de qualquer
pretensão de radicalismo religioso; (v) Max WEBER (1991) sobre Economia e sociedade (vi)
Maria de Lourdes Koerich Belli Stella (2018); (vii) ; Allan da Silva Coelho (2021); (viii) Eduardo
Refkalefsky, et al (2006) e (ix) Walter Barrier Júnior (2007) - trazem-nos um grande contributo
no concernente à Teologia da Prosperidade e sobre as temáticas da religião e secularização.

Cristianismo em (África) - Moçambique: uma breve contextualização histórica

O cristianismo em África não é um acontecimento recente, nem muito menos um subproduto do


colonialismo – as suas raízes remontam ao próprio tempo dos Apóstolos. A igreja já tinha
florescido na margem setentrional do continente, durante seiscentos anos antes do nascimento do
Islão. O Egipto e o Norte de África, com os seus grandes teólogos, como Santo Atanásio e Santo
Agostinho, eram os pilares da Igreja Universal (BAUR, 2014:11).

Segundo Baur (2014) o primeiro governante cristão a Sul do Sara foi Afonso, rei do Congo, que
durante vinte anos, trabalhou incansavelmente para estabelecer um reino cristão e, em 1526,
conjuntamente com o seu filho, o bispo Henrique, delineou um programa de evangelização para
ser levado a cabo em todas as províncias do referido reino. Durante mais de trezentos anos os
seus sucessores mostraram-se ansiosos por manter intensas relações com Roma, e, no decurso de
um século e meio, trouxeram para o país nada menos que quatrocentos e quarenta frades
capuchinhos.

Em 1792 foi fundada, pelos Morávios, a primeira missão permanente do Sul de África e na
África Ocidental e, foi estabelecida a primeira igreja constituída por escravos emancipados
vindos da América em Freetown, na Serra Leoa, inaugurando assim, a Era moderna do
Cristianismo em África. A fundação da maior parte das igrejas africanas, porém, teve lugar

4
durante o Período Colonial: 1880 – 1960 e ao longo dessa época foram trazidas para África
muitas das modernas infra-estruturas que facilitaram grandemente o trabalho de evangelização,
de tal forma que, por volta de 1990, estatisticamente, o Cristianismo tinha-se tornado a religião
da maioria, na maior parte dos países ao Sul do Sara (BAUR, 2014:12).

No concernente à Moçambique, Baur aponta a província de Sofala (1500?) como tendo sido o
primeiro lugar de interesse dos portugueses devido à sua importância no comércio de ouro.
Tendo ocupado, posteriormente, também Quelimane, mas não há registo de nenhum trabalho de
evangelização. Porém, entre 1560 – 1562, na chamada “Missão dos Tongas”, regista-se o
primeiro requerimento de uma missão vindo do lado africano, a sul. Um filho de Gamba, rei dos
Tonga, que residia perto de Inhambane, foi para Ilha de Moçambique com um amigo português,
para pedir se tornar cristão. O governador mandou baptizá-lo. À sua volta, seu irmão também
interessou-se, o que levou o pai a solicitar os missionários e, assim, em 1559, chegou aos
Jesuítas, o pedido de abertura de uma missão em Inhambane, tendo sido aceite o pedido e
confiado ao teólogo Gonçalo da Silveira (1521 – 1561).

Embora tenha sido o primeiro a receber os mensageiros do Evangelho, na costa leste do


continente africano, Moçambique era o menos cristianizado dos países a sul do equador, até à
Segunda Guerra Mundial.

Baur destaca a visita papal, em 1988, como sendo um dos marcos da mudança da situação para o
melhor. Depois das guerras travadas pela FRELIMO contra o regime de Ian Smith e do
terrorismo da RENAMO, que culminou com a assinatura dos acordos em Outubro de 1992, a
participação dos bispos tinha sido um sinal de reorientação económica e política do governo do
Ocidente.

Uma consequência positiva dos longos anos de guerra foi um novo espírito ecuménico em todo o
país. Actualmente, há uma celebração ecuménica do Natal, no domingo seguinte, ao dia 25 de
Dezembro; uma celebração penitencial, na terça-feira da Semana Santa, e uma oitava ecuménica,
durante a semana anterior do domingo de Pentecostes. Nessas ocasiões, os membros de várias
igrejas de uma “zona” preparam, em conjunto, uma Celebração da Palavra, e os pastores
partilham as funções (BAUR, 2014:351).

5
O crescimento da igreja dependia de métodos de evangelização e da resposta de acolhimento do
povo. Todas as sociedades missionárias tinham o mesmo objectivo básico: o de desenvolver
Igrejas locais, em África, como parte universal da Igreja de Cristo. O fim a atingir, claramente
delineado pelo católico Libermann, foi expresso pelo anglicano Henry Venn quando propôs a
criação de Igrejas africanas3 autogovernadas, autofinanciadas e auto-expansivas. O luterano
Warneck descreveu essas Igrejas como Igrejas populares incarnadas em toda a sociedade tribal.
Os três “auto” dos anglicanos foram aceites por muitos protestantes e transformaram as suas
missões em Igrejas autónomas que cresceram muito mais rapidamente que as católicas, a ênfase
luterana em penetrar a cultura tribal encontrou um eco generalizado no sentido de usar as línguas
africanas, e correspondia ao objectivo protestante de traduzir a Bíblia para as inumeráveis
línguas africanas (BAUR, 2014:429).

Hoje, volvidos mais de quarenta anos de independência, emergiram, como afirma Baur
(2014:12), dois factos importantes: (i) os cristãos africanos foram capazes de se distinguir entre a
substância do Cristianismo e a sua roupagem europeia; (ii) embora o Cristianismo tenha se
estabelecido, tem, por outro lado, problemas como: a “infiltração do secularismo” 4, a “desunião
entre as várias denominações cristãs, assim como desentendimentos internos entre os líderes, o
que gera fragmentações e, consequentemente, a afirmação das novas formas “mais espontâneas
do Cristianismo”5 ou simplesmente a proliferação das seitas (objecto da nossa pesquisa).

Cumprem-se, assim - por ironia?- (i) o presságio de Baur, de que “a África, em breve, não será
somente um continente do Terceiro Mundo, mas, sim, também, um terceiro poder espiritual entre
os Cristianismos do Ocidente e do Oriente” e (ii) a profecia do profeta africano Blyden, de que a
África seria “uma reserva espiritual do mundo”.

A filosofia ou modus operandi das igrejas neopentecostais6


3
A ideia de um Cristianismo africano foi defendida também por Meinrad Pierre Hebga, apontando para
uma “reorganização estrutural” (BUJO; MUYA, 2012:38).
4
Sobre o secularismo como factor da crise religiosa, hoje, Mazula (2016:52) - comunga da
opinião de Baur.
5
Philip Jenkins, citado por Mazula (2016:55)
6
O Neopentecostalismo ou Terceira Onda do Pentecostalismo é uma vertente do evangelicalismo,
conglomerando igrejas do movimento de Renovação Cristã. Os fiéis neopentecostais acreditam na palavra
pós-bíblica dos dons do Espírito Santo, incluindo glossolalia (falar em línguas), cura e realização de
profecias. Eles praticam a imposição de mãos buscando a atuação do Espírito Santo. Disponível em:
https://www.infoescola.com/religiao/neopentecostalismo/. Acesso em: 20/10/2022, 14h02.

6
As igrejas neopentecostais possuem uma racionalização na sua organização que não era um traço
comum nas suas antecessoras. Sua estrutura administrativa centralizada potencializa a sua
expansão no campo religioso. Além disso, há um uso intenso de recursos midiáticos, por meio de
jornal, revista, radio, TV e internet para sua expansão no mercado religioso (JÚNIOR, 2007:17)

Para os defensores da Teologia da Prosperidade7, Deus é o Senhor de todas as riquezas do


mundo, sendo um direito divino dos homens compartilharem as riquezas materiais, já que o
homem é filho de Deus. Diferentemente do perfil ascético do Pentecostalismo Tradicional, o fiel
do neopentecostalismo abraçou os valores da sociedade de consumo sem ter medo da punição
divina, ao contrário, a ostentação de riquezas materiais é um sinal da sua escolha.

O maior representante do evangelho da prosperidade, Kenneth Hagin, nasceu no Texas em 1917.


De origem pobre, passou por grandes dificuldades emocionais, físicas e financeiras, sendo criado
pelos avôs. Aos 15 anos de idade, ficou gravemente doente e passou a relatar que possuía visões
de Cristo e passagens pelo Céu e pelo Inferno. As viagens pelo Céu o levaram à conversão, e diz
receber a “verdadeira” revelação de Marcos 11:23,24 e da natureza cristã (JÚNIOR, 2007:42).

Ainda na década de 30, Hagin passou a ter o dom de cura, o que o levou a fazer parte do
movimento pentecostal, ingressando na Assembleia de Deus. Depois de alguns anos tornou-se
pastor itinerante promovendo a cura. Hagin sofreu influências marcantes de Essek William
Kenyon, de quem aprendeu sobre a cura divina e Confissão Positiva, e do televangelista Oral
Robert, quem adoptou pela primeira vez o conceito de Vida Abundante.

De acordo com Pierat, citado por Júnior (2007:46), a Teologia da Prosperidade é composta por
três divisões: (i) Autoridade Profética – representada como a capacidade atribuída aos líderes de
realizar milagres, visões, profecias, conversas com Jesus, curas, palavras de conhecimento, falar
em línguas, etc.; (ii) Confissão Positiva – refere-se à crença de que os cristãos detém poder,
obtido após o sacrifício de Jesus – de transformar em realidade, para o bem ou para o mal, o que
declaram, decretam, confessam ou determinam com a boca em voz alta; (iii) Saúde e
Prosperidade – segundo a doutrina de Prosperidade, o cristão deve viver com saúde plena, com
ausência de doenças, vindo a “adormecer” aos 70 ou 80 anos, sem dor ou sofrimento. Os

7
Teologia da Prosperidade é uma doutrina que surgiu na década de 40 nos EUA e reúne crenças sobre
cura, prosperidade e poder da fé. Tornou-se movimento doutrinário no decorrer dos anos 70, quando
encontrou abrigo nos evangélicos carismáticos dos EUA, (MARIANO, R. citado por JUNIOR, 2007:43).

7
indivíduos que não atingiram esse caminho, são pessoas ignorantes quanto ao conhecimento do
seu direito ou não reivindicam com fé suficiente. Também no campo das finanças, Hagin
considera a prosperidade financeira um direito do cristão, pois, faz parte da expiação efectuada
por Cristo.

Para fundamentar biblicamente essa afirmação, como o afirma (STELLA, 2018), propagadores
da prosperidade utilizam o texto bíblico de Provérbios 18:21 que diz: “A morte e a vida estão no
poder da língua; o que bem a utiliza come do seu fruto”. Refutando esse fundamento bíblico
Romeiro (1998) citado por Stella (2018), sentenceia que “se Deus fosse depender de nossas
fórmulas corretas e palavras preciosas para operar, ela não operaria mais. Deus é soberano [...]”.

Mariano (1999, citado por STELLA, 2018) afirma que os pregadores da doutrina da
prosperidade defendem que o crente que almeja receber grandes bênçãos, precisa ser radical na
demonstração de fé. Deve fazer coisas que do ponto de vista do “homem natural” e do cálculo
racional seriam loucura. Precisa dispor de muita coragem. Deve assumir riscos, doando à igreja
algo valioso como salário, poupança, herança, joias, carro, casas com a certeza de que reaverá
centuplicado, o que ofertou. E não pode guardar qualquer resquício de dúvida quanto ao retorno
de sua fé, já que, advertem os pastores, “a dúvida é do Diabo”. [...] tal demonstração de fé é
denominada de “provar” e “desafiar” a Deus.
A prosperidade financeira é assunto presente nos cultos realizados por igrejas neopentecostais.
Com a finalidade de defender tal ensinamento, recorrem a vários textos bíblicos, sendo o mais
frequente o versículo de 2 Coríntios 9.6: “Aquele que semeia pouco, pouco também ceifará; e o
que semeia com fartura, com abundância também ceifará”. Deste modo, conduzem os fiéis, à
compreensão de que o cristão ganha mediante a quantidade que doa (PIERRAT, 1993:151, citado
por STELLA, 2018).

A praxis das igrejas neopentecostais no “tribunal da razão”8

As igrejas neopentecostais, em especial, desenvolvem estratégias persuasivas que colocam as


preocupações teológicas de uma vida futura ou da salvação em segundo plano, priorizando
aspectos práticos e quotidianos da sociedade de consumo — por exemplo, o sucesso profissional
e financeiro, baseados no imediatismo desenfreado, contrariando os ensinamentos do seu Mestre

8
Conceito emprestado de Mussomar (2021:114)

8
(Jesus Cristo) em Mateus 6:33: “Mas, buscai primeiro o Reino de Deus, e a sua justiça, e todas
estas coisas vos serão acrescentadas”.
O mais surpreendente, entretanto, é que o fenómeno do acelerado crescimento da religiosidade
contemporânea que assistimos nos tempos que correm, ao contrário do que se esperava, não é
suscitado pelo suposto poder dos conteúdos teológicos ou espirituais que vêm sendo actualmente
pregados. Em um período anterior, tais conteúdos visavam a ensinar os fiéis a respeito da vida e
da morte em todas as suas nuanças, com uma ênfase extremamente forte na vida eterna. Hoje,
estes mesmos conteúdos, são estruturados essencialmente por uma lógica mercantil que se
distancia do sagrado e acaba por associar salvação e consumo, como relatam Pierucci & Prandi,
(1996:260, citados por REFKALEFSKY, 2006:2):

Desde que a religião perdeu para o conhecimento laico-científico a


prerrogativa de explicar e justificar a vida nos seus mais variados aspectos,
ela passou a interessar apenas em razão do seu proveito individual. Como
a sociedade e a nação não precisam dela para nada essencial ao seu
funcionamento, e a ela recorrem apenas festivamente, a religião foi
passando pouco a pouco para o território do indivíduo. E desta para a do
consumo, onde se vê agora obrigada a seguir as regras do mercado.

Nesta senda da secularização e da lógica mercadológica a que a religião recaiu, Brazão Mazula
(2016:50) constata que o novo capitalismo, impulsionado pelas novas tecnologias e pela
globalização, cria novos conceitos de liberdade, afastando-a, ao máximo possível, das pressões
ou obrigações morais que lhe são adversas e que sejam consentâneas com a acumulação
galopante e usufruto da riqueza, não importando os meios. E para este desiderato, Mazula
assevera a frieza do capitalismo elencando dois aspectos: “(i) torna o Homem hostil ao Deus
bom e criador e em sua substituição impõe o deus perverso e depravado, assente na raça, na
nação, na facção (…), no progresso, no dinheiro, no gozo” e, “se for necessário, provoca crises,
como foi a crise imobiliária nos EUA, que afectou tremendamente a Europa, com o consequente
agravamento da fome no mundo” (MAZULA, 2016:51).

Em Weber, aliado à colocação de Mazula, vimos que a ética protestante possui afinidade electiva
com o espírito do capitalismo, não como relação de causa determinante do desenvolvimento

9
económico, mas sim, como um relacionamento de atracção mútua e de mútuo reforço
(COELHO, 2021:192). Portanto, é dentro desta simbiose e “intimidade” que caminham o
protestantismo e o capitalismo, “esvaziando” como diria Mazula, toda a dimensão escatológica
do Cristianismo.

Ainda nesta reflexão da secularização, Mazula percebe, ao ler “O fim da História”, de Francis
Fukuyama, quão abalados são os valores absolutos da verdade e da fé. E na sua primeira tese 9
“acusa” o declínio da hegemonia do Ocidente como sendo o que abalou o Cristianismo, nos seus
princípios, dogmas, procurando esvaziar sua doutrina e a sua moral.

A crítica ao pentecostalismo e, sobretudo, à Teologia da Prosperidade tem ocupado um lugar de


destaque em vários pesquisadores em que, nós também nos aliamos, questionando de forma
acirrada os notáveis desvios dos princípios e papel da igreja, rumando ao capitalismo, como
podemos notar em Stella (2018),

A Teologia da Prosperidade, apesar de estar ligada de forma mais direta às


igrejas Neopentecostais e a líderes arraigados em crenças que, se
analisadas à luz da Sagrada Escritura, estão distorcidas, vem ganhando
cada vez mais espaço entre os cristãos, antes, conhecidos como
tradicionais. Além de que faz parte da vida de inúmeros “leigos” que
buscam nela apenas respostas imediatas para questões de sua vida, de seu
dia-a-dia, e ainda procuram a cura para seus males e a prosperidade
financeira tão prometida por seus propagadores. Assim, nesse contexto
surgem os denominados “mercadores de bênçãos” e “divulgadores” de
uma prosperidade que alcança qualquer dimensão.

Mazula, junta-se a esta crítica, acrescentando que “os falsos profetas” exploram ao máximo o
lado mais fraco do Homem, o da pobreza material ou espiritual, exibindo “envergadura
económica”, fazendo-lhes acreditar que, dando mais os seus haveres às ditas igrejas, Deus fará
milagres para atender às suas necessidades materiais. Tornam-se “verdadeiras empresas
económico-espirituais”.

9
A primeira tese do livro “Dialogando com a Politica e a Religião” – 2016.

10
Fora à questão da propalada prosperidade, as igrejas neopentecostais, têm incitado conflitos
sociais (brigas, crises de ciúmes, fofocas, desrespeito) no quadro da “Autoridade Profética” – a
tal capacidade atribuída aos líderes de realizar milagres, visões, profecias, conversas com Jesus,
curas, palavras de conhecimento, falar em línguas. Vezes sem conta, vemos através da sua
própria mídia, profecias feitas em pleno culto, na presença de todos, denunciando traições entre
casais10, ou, decretando fim de um relacionamento 11 porque a profecia vê um dos cônjuges
casando com uma outra mulher ou um outro homem.

Afinal, qual é a verdadeira função da profecia? O profeta recebia a mensagem directamente de


Deus (Números 12:6). Essa mensagem podia vir na forma de visão, sonho ou palavras. O profeta
transmitia a mensagem pregando, escrevendo ou através de suas acções. O trabalho do profeta
era muito sério, porque tinha a responsabilidade de transmitir a profecia de maneira correcta, sem
acrescentar suas ideias ou interpretações pessoais. Portanto, a profecia tem a função de (i)
Ensinar – sobre Deus e seu relacionamento com a humanidade; (ii) Guiar – revelar o que as
pessoas deveriam fazer; (iii) Prever – acontecimentos futuros.

De acordo com a Bíblia, a função do profeta é ajudar a edificar a igreja, transmitindo uma
revelação dada por Deus (1 Coríntios 14:3). O profeta fala o que Deus lhe manda falar. Não é
trabalho do profeta interpretar as profecias nem criar doutrinas novas e muito menos falar da
vida pessoal ou íntima de casais.

Mazula, dedica a “Prelecção 7” do seu livro, para falar do “Profetismo da vida religiosa na
sociedade [moçambicana] actual” e, da síntese de algumas passagens bíblicas, definiu o
profetismo como sendo “uma missão e um dom gratuito de Deus, que é exercido em estreita
ligação e sintonia com Ele, não por vigarices, nem por adivinhação, e numa atitude de profunda
humildade, como a de Moisés”. E, prosseguindo, alvitra-nos sobre a necessidade de “darmos
ouvidos aos verdadeiros profetas que Deus nos envia e tomarmo-nos felizes, quando não os
escutamos e seguimos os “agoueiros ou os actuais nabis” do consumismo, seremos abandonados
por Deus, quando, abusando dos carismas que Ele nos deu, desencaminhamos os sedentos de
justiça de Deus (MAZULA, 2016:122-123).

10
Vídeos disponível em: https://youtu.be/z_dGtiFDcck. E https://youtu.be/SfWj6NNuNyc . Acesso em: 20 de
Outubro de 2022.
11
Vídeos disponível em: https://youtu.be/B31mFlbcSbA. E https://youtu.be/P12jV9imODY. Acesso em: 20 de
Outubro de 2022.

11
Feito este debate, nos é chegado o momento de “resgatarmos” as questões das quais partimos,
nomeadamente: (i) Qual é o verdadeiro papel das igrejas na sociedade moçambicana? (ii) Como
se pode explicar os crescentes conflitos sociais numa sociedade “submersa” aos ensinamentos de
Deus?

Para estas duas questões, destacamos dois filósofos moçambicanos12, nomeadamente: Mussomar
e Mazula.

Mussomar13 responde a este paradoxo apontando a três principais factores: (i) a não ocorrência
do Iluminismo em Moçambique14; (ii) Falta de separação entre Religião e Fé/Ideologização das
religiões (o neopentecostalismo abandonou o Evangelho primário; (iii) a falta da fé nas pessoas
(tanto os pastores ou “profetas”, como os seus “fieis”). Para Mazula, as razões deste paradoxo
estao atreladas à secularização, globalização e o seu modelo capitalista financeiro, não descura,
também, a possibilidade de se estar a adorar a um “falso Deus” ou falsos profetas.

Entretanto, ao compenetrarmos no cerne do debate levantado e envolvendo a todos os autores,


notamos que partilham do entendimento de que as igrejas moçambicanas (na sua maioria) têm
uma agenda clara – “acumulação de riquezas recorrendo à lógica mercadológica do capitalismo”,
– não restando tempo para o que, realmente, deveria ser o seu verdadeiro papel: (i) “o sal da
Terra e luz do Mundo” (Mateus 5:13-16); (ii)“o sal é bom, mas, se deixar de ser salgado, como
restaurar o seu sabor? Tenham sal em vocês mesmos e vivam em paz uns com os outros”
(Marcos 9:50); (iii) Vocês, porém, são geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo
exclusivo de Deus, para anunciar as grandezas Daquele que os chamou das trevas para a sua
maravilhosa luz” (1 Pedro 2:9); (iv) “E disse-lhes: vão pelo mundo todo e preguem o evangelho
a todas as pessoas” (Marcos 16:15); (v) “Falando novamente ao povo, Jesus disse: Eu sou a luz
do mundo. Quem me segue, nunca andará em trevas, mas terá a luz da vida” (João 8:12); (vi)
“Amados, amemos uns aos outros, pois o amor procede de Deus. Aquele que ama é nascido de
Deus e conhece a Deus. Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1 João 4:7-
8).

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Pelo facto de vivenciarem a realidade religiosa do país.
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Extraído do apontamento da sua aula da disciplina de Filosofia, Politica e Religião, dada à turma de Doutoramento
em Filosofia, aos 08/09/2022.
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Para este filósofo, Moçambique saltou esta fase.

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Portanto, citamos algumas passagens bíblicas como forma de corporizar os princípios divinos e
que deveriam nortear as igrejas e definir o seu contributo na edificação de uma sociedade “pro”
amor, concórdia, solidariedade, respeito, humildade, paz.

Considerações finais

O debate sobre a proliferação das igrejas e o recrudescimento dos conflitos sociais em


Moçambique é de natureza complexa e, certamente, não poderia se esgotar neste breve estudo.
Entretanto, das leituras feitas, foi possível compreender que as causas deste paradoxo, prendem-
se com o “desligamento” das igrejas neopentecostais para com aquilo que deveria ser o seu
compromisso e o “fascínio” pela acumulação de riquezas, engrenando na lógica do
mercantilismo da fé por via da pregação da Teologia da Prosperidade.

A secularização, globalização e o seu modelo capitalista financeiro concorrem para a crise da


religião, associada à falta da fé entre os “pastores, profetas e seus fieis”. A Teologia da
Prosperidade, contrariamente ao evangelho primário, que pregava o amor, a busca do paraíso,
etc, prega a ideia de que o homem foi liberto do pecado original por meio do sacrifício de Cristo,
e, por isso, pode, não só usufruir dos bens terrenos, como também pode exigir de Deus, como um
direito adquirido, a saúde física e a abundância material.

Eles procuram convencer aos seus fieis que, o crente que almeja receber grandes bênçãos,
precisa ser radical na demonstração de fé. Deve fazer coisas extraordinárias para que tenham um
retorno equivalente. Dispondo, para o efeito, de muita coragem, convicção e fé inabalável,
assumindo riscos, sem guardar sombra de dúvida quanto ao retorno de sua fé, já que, advertem
os pastores, “a dúvida é do Diabo”.

Dito isto, confirmam-se os resultados parciais anteriormente anunciados que apontavam para: (i)
a possibilidade de adoração a um “deus construído” para interesses particulares de um grupo
(líderes da igreja); (ii) a falta de fé entre os pastores e seus seguidores e (iii) a transmutação de
valores de uma ética cristã para a lógica do capitalismo.

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Bibliografia

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Trad. Afonso Texeira, Paulinas. São Paulo, 2014.

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Paulinas Editora. Maputo, 2012.

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MUSSOMAR, Celestino Victor. O êxodo da grande culpa: uma crítica filosófica à economia
africana. Paulinas Editora. São Paulo, 2021.

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STELLA, Maria de Lourdes Koerich Belli. Teologia da prosperidade: riscos de uma teologia
controversa. Curitiba, 2018.

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