3 - Brasil Por Suas Apareì Ncias Seì C XIX

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Da Coroa ao

Diploma
IMPÉRIO
UMA CIVILIZAÇÃO NOS TRÓPICOS

BRASIL POR SUAS APARÊNCIAS


VOLUME 2

Mara Rubia Sant’Anna


Sumário
3. Da coroa ao diploma (1870 – 1889) .................................................................................. 4
Crescimento industrial ........................................................................................................... 4
3.1 Realismo: a vida como ela é ........................................................................................ 6
Realismo e novas descobertas científicas ...................................................................... 6
A visão de Machado de Assis ......................................................................................... 7
3.2 O baile da despedida vai começar ............................................................................... 9
O rei ausente na administração nacional ........................................................................ 9
3.2.1 Quando um rei perde sua majestade ................................................................... 11
A fraca saúde do rei espelha a elite em decadência ..................................................... 12
3.3 Os novos grupos de elite e suas idéias ...................................................................... 13
3.3.1 O parlamento ao sabor do café ............................................................................ 14
Barões do café na política ............................................................................................. 14
O consumo da elite cafeeira .......................................................................................... 15
3.3.2 As novas feições citadinas ................................................................................... 16
Desenvolvimento das cidades ....................................................................................... 16
3.3.3 Unidos pela aristocracia ....................................................................................... 17
Estudantes e intelectuais .............................................................................................. 17
Abolição e República ..................................................................................................... 18
3.3.4 Novos atores e a deposição do protagonista ....................................................... 18
Manifestos dos trabalhadores ....................................................................................... 18
Diferentes ideais de República ...................................................................................... 19
Devaneios da velha oligarquia versus o domínio da nova ............................................ 20
Divulgando ideais republicanos ..................................................................................... 21
Abolicionistas ................................................................................................................ 22
Abolição é modernidade ................................................................................................ 25
3.4 Os grupos marginais .................................................................................................. 27
Índices da população brasileira ..................................................................................... 27
3.4.1 Negros .................................................................................................................. 27
Escravos nas lavouras de café ..................................................................................... 28
Redução da população escrava .................................................................................... 29
O Brasil é negro: presença na cultura nacional ............................................................ 31
3.4.2 Mulatos ................................................................................................................. 33
Preconceito e trabalho .................................................................................................. 34
Discriminação racial e protesto na literatura ................................................................. 35
3.4.3 Imigrantes ............................................................................................................. 37
Imigrantes em fuga do capitalismo ................................................................................ 38
Colonos chineses vetados pelo Brasil ........................................................................... 39
Más condições de trabalho aos imigrantes ................................................................... 39
Imigração subvencionada ............................................................................................. 40
Focos das primeiras colônias ........................................................................................ 41
Identidades estrangeiras ............................................................................................... 43
A promessa de um novo Brasil republicano .................................................................. 44
E a Naçao ...................................................................................................................... 44
3.5 Última valsa ................................................................................................................ 45
Críticas à Vossa Majestade ........................................................................................... 45
Propaganda Imperial ..................................................................................................... 46
Insatisfação popular com a Monarquia ......................................................................... 47
O rei enfermo ................................................................................................................ 47
Autonomia para a burguesia: reformas no governo ...................................................... 49
Articulação para o golpe ................................................................................................ 50
O Baile da Ilha Fiscal .................................................................................................... 51
O golpe e a posse ......................................................................................................... 52
Discurso inaugural da República ................................................................................... 53
A monarquia acabou ..................................................................................................... 54
O Brasil conforme a maré ............................................................................................. 56
3. Da coroa ao diploma (1870 – 1889)
A década de 1870 é um marco do mundo de transformações importantes
ocorridas na economia, na política e, principalmente, no âmbito social.

Na Europa as duas últimas unidades territoriais, não constituídas como nação,


conseguem convergir as forças dissonantes e, em nome do Nacionalismo, se constituírem
como unidade política e legal. Nasceu a Itália e a Alemanha.

As lutas de cunho1 popular, reivindicadoras da democracia, da liberdade e


igualdade tão professada, são caladas seja pela repressão, seja por medidas econômicas
que a industrialização tomou. Seu último brado foi a Comuna de Paris, que em 1870
implantou um efêmero governo socialista. A luta mesmo modificada após 1870 com o fim
das barricadas2 e dos enfrentamentos diretos, não desapareceu e começou a ser
promovida com base nas idéias socialistas do materialismo histórico3 de Karl Marx, entre
outras, como o Anarquismo4.

Crescimento industrial
A economia mundial, marcada pela Segunda Revolução Industrial, impunha seu
ritmo a todos os cantos do planeta. As máquinas a vapor, que haviam inaugurado a
industrialização, no final do século XIX, foram sendo substituídas pelos motores a
combustão e pelos motores elétricos. Além disso, a velha concorrência feita por empresas
de médio porte foi anulada pela constituição de grandes grupos empresariais que
estabeleceram o capitalismo monopolista que cresceu, engolindo tudo a sua volta, ao
longo do século XX.

1
Cunho- característica; marca; feição; sinal distintivo.
2
Barricadas-modo de defesa; trincheiras.
3
Materialismo histórico- O materialismo histórico é uma proposta teórica para o estudo da sociedade, da
economia e da história que foi pela primeira vez elaborada por Karl Marx (1818-1883), malgrado ele próprio
nunca tenha empregado essa expressão. De acordo com a tese do materialismo histórico defende-se que a
evolução histórica, desde as sociedades mais remotas até a atual, se dá pelos confrontos entre diferentes
classes sociais decorrentes da "exploração do homem pelo homem".
4
Anarquismo- doutrina que prega a eliminação de toda autoridade, a substituição da soberania do Estado
pelo contato livre; fundada na convicção de que todas as formas de governo interferem na liberdade
individual; ação ou movimento anarquista.
Porém, somente a Inglaterra tinha um parque industrial consolidado. Ferrovias e
indústria metalúrgica eram as grandes colunas de sustentação da forte economia inglesa.
A França, por sua vez, mantendo a política protecionista5 que vigorava desde o século
anterior, impediu o crescimento mais acelerado do seu parque industrial e, assim, em
1870, para cada 2 artesãos franceses havia apenas um operário. Este país manteve seu
diferencial, o artístico e artesanal como meios de produção do luxo.

A Alemanha, principalmente após a unificação, constituiu uma indústria forte no


âmbito de máquinas, siderurgia e trens. Os demais países da Europa também propuseram

5
Política protecionista- teoria que propõe um conjunto de medidas econômicas que favorecem as
atividades internas (produção nacional) em detrimento da concorrência estrangeira. O oposto desta doutrina
suas indústrias, com exceção da Espanha, Rússia e Portugal. Porém, os demais, eram
mais modestos na extensão de seus produtos, contudo, sustentáveis internamente e
independentes das produções industriais externas.

Entre todos os países europeus foram constituídos trustes, ou seja, grupos de


empresas que dominam todas as etapas da produção e, ao longo do século XX, estes
monopólios foram constituindo os cartéis, isto é, associações de trustes que dividem o
mercado entre si. Nada sobrava para países de economia industrial incipiente6 como o
Brasil. O Barão de Mauá que o diga.

3.1 Realismo: a vida como ela é


Realismo e novas descobertas científicas
Também no campo artístico é relevante o esgotamento do romantismo e o
surgimento do realismo, tanto quanto o desenvolvimento de expressões artísticas
marcadas pela vanguarda conceitual e técnica, como o impressionismo e a arte de Gustav
Klimt.

Sintonizado com diversas propostas científicas e filosóficas inovadoras


(Nietzsche, Husserl, Marx, Schopenhauer, Plante, Maxwell, Hertz, Steinmetz, Röngtgen,
Thomson, Freud, Darwin, Pasteur, Koch e Mendel, entre muitos outros) o realismo
propunha uma visão da sociedade e do homem que desdenhava da forma idealista que o

é o livre-comércio. Porque a economia é uma ciência de meios, o protecionismo é o meio econômico para
lograr o objetivo político de uma nação independente.
6
Incipiente- principiante; novato; que está em começo.
romantismo difundia. Os realistas instauraram uma estética adequada às exigências do
progresso material que a industrialização trouxera e, dialogando com o mundo urbanizado,
cientificista e até cruel, descreveram personagens, construíram enredos pictóricos e
literários nos quais o homem e suas misérias humanas e de caráter eram colocadas à
mostra. O grande nome da literatura brasileira foi filiado a esta escola: Machado de Assis.

A visão de Machado de Assis


Esse grande escritor, de origem humilde e de inteligência aguçada, colocou em
pauta, de maneira irônica, sutil e mordaz, toda a situação social que observava cujos
valores tradicionais estavam em decadência e uma crise profunda era nutrida sob a capa
da polidez e da erudição de salão. É sobre uma vida sem nenhum heroísmo ou momentos
extraordinários que escreveu Machado de Assis, a vida do homem urbano de posses
medianas e que, entre a Corte e o progresso, passava seus dias cumprindo seus deveres
e esperando suas recompensas mesquinhas de uma vida com conforto e tranqüilidade.

A busca pelas raízes populares e a renovação dos intelectuais

O idealismo, ao lado das obras de Machado de Assis, continuou existindo, porém


numa versão lírica, como é o caso do Parnasianismo de Cruz e Sousa ou das rimas
perfeitas de Olavo Bilac, e, ainda, na prosa regionalista, cujos exemplos mais conhecidos
são o de Domingos Olímpio (Luiza-Homem), de Bernardo Guimarães (A Escrava Isaura),
de Visconde de Taunay (Inocência) ou mesmo José de Alencar em sua fase final (O
Gaúcho, O Sertanejo).
Enquanto Machado de Assis descrevia a vida do homem urbano, funcionário de
gabinete, como ele próprio fora um, outros autores ocuparam-se dos grupos sociais mais
marginais e, alimentados pela corrente do Naturalismo, desvelaram-se em discutir,
descrever e tingir com tintas fortes a vida dos pobres, retirantes, imigrantes, negros e
mulheres sozinhas das grandes cidades. O Cortiço de Aluísio de Azevedo é a obra
emblemática deste tipo de literatura.

Ao lado dos literatos de todas as agremiações, seja aquela que continuava a


ser impressa e lida chamada de “literatura sorriso-da-sociedade”, cujas pitadas de lirismo e
romantismo conduziam as especulações das vivências mundanas, ou seja a mais
engajada nos problemas e valores de sua época, haviam intelectuais de grande
envergadura produzindo novos saberes sobre o Brasil, como Sílvio Romero e Capistrano
de Abreu. Estes intelectuais incentivaram a busca de raízes populares para a criação
artística brasileira, dando início aos estudos de folclore no país. Sob os ventos do
nacionalismo europeu, da literatura regionalista e mesmo dialogando com o romantismo
antecessor eles propunham uma discussão da identidade brasileira que ganhava
autonomia em relação à figura do monarca.

Foi neste momento histórico que, nos bairros mais simples e independentes da
cultura européia, começou a despontar artistas como Chiquinha Gonzaga, a ser criado às
sociedades carnavalescas, os conjuntos de chorinho e tantas outras manifestações de
cunho artístico e popular.

Portanto, enquanto a Europa marchava nos caminhos da unificação e da


industrialização maciça, o II Reinado do Império do Brasil via suas estruturas intelectuais
se renovarem, ao mesmo tempo, que tensões sérias se instalavam no centro do modelo de
economia e política que era vivido.

3.2 O baile da despedida vai começar


O rei ausente na administração nacional
Neste mundo em ebulição o bom imperador, mesmo com toda a sua erudição e
tolerância aos poderes parlamentares estabelecidos, tornava-se démodé.
Segundo Schwarcz7 a partir do retorno da segunda viagem, e a despeito do bel te-
déum que comemorou o seu regresso, o imperador mais parecia um estrangeiro em terras
próprias. Quase como espectador, observava os movimentos políticos – em especial o
crescimento do Partido Republicano e do abolicionismo -, assistia de camarote à demissão
do Gabinete Conservador e à subida dos liberais, afastados do poder fazia dez anos. Os
graves problemas que assolavam o país, como o movimento sedicioso ocorrido nas
províncias da Paraíba e de Pernambuco, em 1874, apelidado de Quebra-Quilos, ou a
terrível seca de 1877, pareciam não afetá-lo8.

Não apenas o mundo com sua segunda revolução industrial e seus ideais
vanguardistas estavam desintonizados com a figura do Imperador, como também o próprio
não alimentava mais os rituais que o sagravam constantemente seu reinado. O beija-mão
tão caro aos fidalgos nostálgicos e aos recém-chegados à Corte deixou de existir. As
roupas imperiais tornaram-se roupas de qualquer cidadão de posses, sendo os trajes
pomposos e simbólicos da condição de Imperador usado raramente, somente quando
eram imprescindíveis às comemorações oficiais.

O viajante Koseritz, na década de 1880, descreveu a Corte como um ambiente


desprovido de luxo e requinte e, mesmo, censurou os trajes do Imperador e suas moradas,
carruagens, uniformes dos seus pajens, os desfiles oficiais, tudo considerado decadente e
penoso. A descrição que relata de um cortejo da Corte que assistiu ao lado de dois outros
intelectuais de sua época, faz destaque a “impressão carnavalesca” que atribui a tudo que
observava. O povo, segundo o viajante, diante do Imperador que descia de sua carruagem,
não fez nenhum gesto que demonstrasse admiração e respeito, nem vivas ou aplausos.
Diante disso tudo Koseritz finalizou dizendo: “Em conjunto, a impressão total da festa era
mais de molde a sugerir o sentimento do cômico que o do respeito”9.

7
SCHMARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador: Dom Pedro II, um monarca nos trópicos. São
Paulo: Cia das letras, 1998.
8
SCHMARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador: Dom Pedro II, um monarca nos trópicos. São
Paulo: Cia das letras, 1998, p. 410.
9
Apud SCHMARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador: Dom Pedro II, um monarca nos trópicos. São
Paulo: Cia das letras, 1998, p. 412.
Como analisado para a queda da monarquia francesa por Jean-Marie Apostólidès10,
quando corpo real e simbólico passa a existir independentemente um do outro se instala
um vácuo no poder, podendo a instituição chamada Estado, outrora fundida no corpo real
de um soberano, existir por si mesma e, logo, dar a possibilidade que um grupo social ou
outros corpos reais desprovidos de uma simbologia de soberania ocupe este lugar e aí
erija a expressão do poder nacional.

As doenças, as viagens e, principalmente, a beneficência e a atitude democrática


realizadas pelo corpo real foram gerando lacunas e fissuras na relação dele com o corpo
simbólico do Imperador.

O Império estava instituído como corpo simbólico e sua existência na condição de


Estado-Nação, constituído, nas décadas precedentes, com a presença do corpo real de
Pedro de Alcântara, podia manter-se mesmo quando o corpo calejado fosse destituído das
investiduras imperiais.

3.2.1 Quando um rei perde sua majestade

Entre 1887 e 1888 fez D. Pedro II duas viagens para as estações de tratamento de
saúde da Europa, a cada ida e volta, as especulações11 sobre suas doenças e sanidade
mental eram sempre numerosas. Seu aspecto idoso, com longas barbas brancas, evidente
calvície e passos lentos, somavam-se às críticas ferrenhas de suas condições de
governante. Se no período anterior a esta última década ele era acusado de ser
voluntarioso e interroper todas as legislaturas da Câmara, no período seguinte o Imperador
era delatado como inapto12 e ultrapassado para os desafios dos novos horizontes
mundiais.

10
APOSTOLIDES, Jean-Marie. O rei-máquina: espetáculo e política no tempo de Luis XIV. Rio de Janeiro:
J. Olympio; Brasília, DF: Edunb, 1993.
11
Especulações-ver, olhar atentamente, vigiar; observar; inquirir; estudar; meditar sobre qualquer matéria e
fazer dela estudo teórico; meter-se em negócios com a mira de lucros exagerados; traficar; agenciar; tirar
proveito, abusando da boa fé ou da credulidade de outrem.
12
Inapto- inadequado, não apto; inepto.
Dentre os muitos políticos da época que escreviam nos jornais, João Penido,
deputado liberal mineiro, pertencente ao grupo de oposição ao Gabinete conservador do
Conselheiro João Alfredo, usou mais de uma vez a palavra na Câmara para fazer
chacota13 das condições de governabilidade do Imperador:

Hoje sua Majestade reina, mas não governa, nem administra como fazia antes:
administram por ele, governam por ele. Isto é o que está na consciência de todos e é
a voz pública. Pela enfermidade que o persegue, a ação de Sua Majestade limita-se
a perguntar aos Ministros: ‘Que papéis temos para assinar? ‘ E assina-os sem
discutir, sem dar mesmo a sua opinião. Diz-se, e eu tenho a coragem de repetir sob a
minha responsabilidade, que o Imperador de fato é o Sr. Conde de Mota Maia! Sua
Majestade move-se ao aceno do Sr. Mota-Maia, a quem obedece como uma criança
dócil e bem educada. Se o Sr. Conde de Mota Maia diz que Sua Majestade saia, Sua
14
Majestade sai; se diz que fique, Sua Majestade fica.

Rui Barbosa, segundo a interpretação de Lídia Besouchet, destacou em seus


discursos o aspecto senil15 do imperador, “acentuava essa espécie de imbecilidade que se
apoderava de todos os reis no ocaso; ressaltava os sintomas inquietadores da decadência
mental do chefe do Estado”16 .

A fraca saúde do rei espelha a elite em decadência


Mesmo que se considerem as palavras de Rui Barbosa e de João Penido como
excessivamente ásperas, o que conta é que a elite brasileira, que por décadas tinha o
Imperador e sua Corte como um sinal e garantia de sua superioridade, via-se

13
Chacota- zombaria; troça; gracejo; trovas burlescas; seguidilhas satíricas; antiga canção popular; dança
antiga acompanhada de canto.
14
In: LYRA, Heitor. História de D. Pedro II. Vol. Declínio 1880-1891, Belo Horizonte: Editora Itatiaia
Limitada, 1977, p. 41.
15
Senil- relativo à velhice; próprio de velho; que apresenta os característicos da senectude, tais como
debilidade física e mental; decrépito, caduco.
16
BESOUCHET, Lídia. Pedro II e o século XIX. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.132.
desconfortável diante de um corpo real que na sua idade mais avançada, nas suas
constantes viagens para tratamentos de saúde e nas críticas que recebia um sinal que a
queda do Imperador era semelhante a sua. Como se mirar num espelho que descascava e
se embaçava rapidamente? Diante deste mal estar a elite se via acuada para defender
com veemência17 ou fazer-se de surda diante de novos discursos que prometiam espelhos
novos e futuros brilhantes.

As chamadas “questões” que detonaram o fim da Monarquia podem ser entendidas


como pontos de aglutinação de uma insatisfação que era gerada cotidianamente pela
minguada reprodução de rituais de superioridade e esplendor que outrora nutriram o
Império e sua Corte da crença que podiam ser europeus nos trópicos. É necessário pensar
que não há uma relação de causa e conseqüência, não foi porque os rituais se
dispersaram que as questões militar, religiosa e escravocrata ocorreram e nem ao inverso,
mas como todo processo, na circularidade dos discursos sobre a decadência imperial na
face do próprio imperador, aliada aos problemas políticos e econômicos, pressões
internacionais e novas ideologias os cenários e os enredos se alteravam tanto quanto os
personagens e seus papéis, embora os atores permanecessem os mesmos.

3.3 Os novos grupos de elite e suas idéias


A última fase do Império brasileiro foi marcada por mudanças na economia
significativas, como já analisado anteriormente, que provocaram o surgimento de novos
grupos de elite. De um lado cafeicultores bem abastados e com acesso a informação e

17
Veemência- qualidade do que é veemente; impulso rápido na alma ou nas paixões; impetuosidade;
energia calorosa; intensidade; centro; rigor; eloqüência arrebatadora; arrebatamento; ardor; instância; grande
interesse, entusiasmo; empenho.
luxo que provinham da Europa, do outro lado, bacharéis, importadores, comerciantes,
militares graduados, funcionários públicos de alto escalão que constituíam o incipiente
grupo urbano de poder aquisitivo médio e com ares de intelectualidade a flor da pele. Entre
esta gente urbana ainda havia os industriais, não muitos nem de grandes fortunas, mas
destacados o suficiente para serem apresentados com fidalguia nas rodas sociais.

A cafeicultura iniciada na região fluminense deu origem e serviu de modelo para um


rico e soberbo grupo social do final do Império. Estes homens do café, ou barões como
ficaram conhecidos, disputaram ou conquistaram os cargos de Juízes de Paz, Oficiais da
Guarda Nacional e de Deputados provinciais, tendo assim tanto o poder econômico como
o político sob o seu controle. Se até 1870 puderam ser vistos como grupo hegemônico e o
pilar de sustentação da política conservadora do Barão do Rio Branco, porém, após as
primeiras leis abolicionistas, a inserção da mão-de-obra imigrante e as novas áreas de
cultivo, essa elite requinte começou a disputar entre si quem fala mais alto.

3.3.1 O parlamento ao sabor do café

Barões do café na política

De um lado ou do outro da região cafeicultora, essa gente formava uma aristocracia


e imitava padrões de vida e comportamentos não muito distintos daqueles observáveis nos
senhores “brancos de açúcar”. Praticavam os casamentos entre os seus, construindo as
oligarquias que dominaram (senão dominam) por muitos anos a economia e política
brasileira. Muitos destes fazendeiros, os mais velhos especialmente, ostentavam títulos
nobiliárquicos, sobretudo de baronato. No segundo momento desta rica “casta”, os títulos
nobiliárquicos não caiam mais com muita elegância e de barões, envidaram esforços para
que se tornarem deputados, senadores ou controlar estes cargos por meio dos filhos
bacharelados na Europa ou outros protegidos. Ligados a Corte pelas cadeiras
parlamentares, deixavam de viver exclusivamente da fazenda, tendo uma rica morada
citadina, construída com apuros arquitetônicos, servidas por serviçais brancos, instruídos
e, alguns, estrangeiros para postos de governantas e mordomos.

O consumo da elite cafeeira


A senhora destes homens ilustres do Império exibiam mais do que boas jóias, eram
eximias pianistas, liam em língua estrangeira, falavam fluentemente o francês e foram
educadas no Brasil ou no exterior com esmero18.

Segundo Mário Maestri

Os cafeicultores esmeravam-se em cultivar valores e hábitos que acreditavam


enobrecedores. Valorizavam a hospitalidade concedida a seus iguais, protegiam
afilhados desvalidos, financiavam iniciativas culturais e beneficentes, empreendiam
custosas viagens à Europa, sustentavam os estudos dos filhos no estrangeiro (...)
Gastavam fortes somas na compra de carruagens, cavalos de raça, móveis, louças e
19
indumentárias européias

Além de tudo isso, estes cafeicultores tinham um prazer ímpar por amantes caras,
as quais sustentavam com luxo e pompa numa casa urbana preparada para esse fim.
Quanto mais francesas ou parecendo ser fossem as ditas amantes, mais o cafeicultor se

18
Esmero- grande cuidado em qualquer serviço; perfeição, apuro, primor; correção, asseio (no trabalho ou
no vestuário).
19
MAESTRI, Mário. Uma História do Brasil Império. São Paulo: Contexto, 2001, p.113.
empenhava em sustentar sua beldade. Um prazer que não era gozado a público, mas que
correndo de boca em boca, dava a este senhor um coroamento especial em seu status.

3.3.2 As novas feições citadinas

Desenvolvimento das cidades


Com o crescimento das cidades, as funções e profissões necessárias para seu
funcionamento geraram a formação de um grupo volumoso de novos sujeitos sociais, claro
que não tão novos, pois traziam todos os membros uma admiração forte por ideais
compartilhados pelos grupos de elite também.

Desde as iniciativas de Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá, em 1846, a


indústria brasileira teve seu primeiro surto, vivendo um momento importante a partir de
1870 com o setor da mineração que propiciou o surgimento de pequenas fábricas de ferro
e outros bens de consumo de média duração. Algo que se multiplicou com uma certa
velocidade na medida em que o excedente financeiro das lavouras de café foram aplicados
em atividades urbanas, como comércio, serviço e indústrias. Contudo, como o grosso do
dinheiro, que vinha das mãos dos barões cafeicultores não era gasto na economia local,
mas sim aplicado em mais terras e organização de novas frentes de plantio cafeicultor ou
na importação dos bens de consumo, para essas novas atividades o recurso que chegava
era o minguado salário dos trabalhadores urbanos, mais ou menos abastados.
Portanto, as cidades cresceram, as oportunidades de trabalho nelas também e,
assim, a população que aí vivia. Na última fase do Império a presença dos imigrantes de
origem européia também se fez cada vez mais marcante nas cidades.

Cada um com seus recursos, mais ou menos fartos, movimentavam a economia e


adquiriam hábitos e valores que diferiam dos interioranos. Segundo Emília Viotti da Costa:

Ampliando-se o público, ampliaram-se os jornais e revistas em circulação. Fundaram-


se associações artísticas e musicais em várias cidades. Aumentou a sociabilidade.
Atenuou-se a disciplina rígida do patriarcalismo que segregara no lar a mulher de
classe média e alta. A crescente diversificação ocupacional nos grandes centros
20
urbanos tornou mais complexa a estrutura social.

Nestas revistas e jornais, oportunidades de lazer e trocas de idéias que as


cidades ofereciam vicejava21 uma visão de mundo que correspondia aos interesses da
aristocracia agrária, a qual se impunha como modelo de civilidade, realização e, logo,
superioridade.

3.3.3 Unidos pela aristocracia

Estudantes e intelectuais
Outro fator a destacar é o ensino, oferecido pelos liceus ou faculdades, atraia jovens
do interior e de outras capitais menos desenvolvidas para a cidade do Rio de Janeiro, São
Paulo e Salvador. Em São Paulo o Largo São Francisco, com sua Academia de Direito, na
capital a Escola de Belas Artes, em Salvador a Escola de Medicina, em todos lugares um
universo de discussões calorosas que reunia a elite juvenil do Brasil, de onde saíam muitos
dos intelectuais notáveis, juristas famosos e homens de poder. Nas salas, nos largos das
escolas e nas ruas da cidade essa massa, chamada estudantil, declamava o romantismo e
abraçava os ideais com fervor, lia os clássicos europeus e defendia em discursos
empoados as bandeiras da hora. Provindos dos meios abastados e vinculados à Europa
por sua formação, os estudantes reforçavam os ideais da aristocracia agrária também.

20
Apud ALENCAR, Francisco; RAMALHO, Lucia Carpi; RIBEIRO, Marcus Venicio Toledo. História da
sociedade brasileira. 15. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996, P. 151.
21
Vicejava- ter viço; estar viçoso; vegetar exuberantemente; dar viço a; fazer brotar com exuberância.
Abolição e República

Tanto é intensa essa assimilação de ideais que não havia uma expressão de crítica
ou contextualização das verdades expressas nos veículos de comunicação de massa.
Estes em coro defendiam a abolição e a república enquanto seus leitores aplaudiam,
fascinados, a possibilidade dessa cumplicidade.

Foi exatamente por se sintonizarem com estes mesmo ideais que a camada média
urbana das cidades foi capaz de se mobilizar, a partir dos estudantes e militares, para
reivindicar a reforma do sistema eleitoral, que em 1881, através da Lei Saraiva, ficou
instituído as eleições diretas e a elegibilidade de não católicos, mantendo por outro lado
uma exigência de renda mínima para ser eleitor22.

3.3.4 Novos atores e a deposição do protagonista

Manifestos dos trabalhadores


Em meio aos bacharéis afortunados ou não, funcionários de maior ou menor
escalão, comerciantes locais ou grandes exportadores, militares oficiais e soldados
contentes e familiarizados com os ideais da elite, um pequeno grupo urbano fazia um
descompasso nessa marcha. Estes eram os operários.

Eles usufruindo de condições de trabalho e salários bem desvantajosos, além de


contarem com a experiência européia de contestação, organizaram algumas greves e com
isso traçaram uma opção política diferente da proposta no país. Os cânticos do

22
ALENCAR, Francisco; RAMALHO, Lucia Carpi; RIBEIRO, Marcus Venicio Toledo. História da sociedade
brasileira. 15. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996, p. 170.
anarquismo entoado pelos imigrantes italianos eram solitários, mas deixou no horizonte
político uma possibilidade a mais que o grupo urbano, em geral, preferiu ignorar.

Portanto, do campo ou da cidade, a imagem desgastada do Imperador fazia par a


uma proposta de renovação da peça encenada. Era necessário renovar os papéis, havia
muitos e novos atores e boa parte deles considerando-se apta a tomar o vácuo que o
corpo real havia criado diante de um corpo simbólico questionável.

Diferentes ideais de República


Os ideais republicanos não são homogêneos. Desde as guerras pela independência
nas Américas várias versões do que seria a República perfeita se debateram. De um lado,
a república como idéia radical, manifestação popular que, pela força e mobilização, levaria
ao fim do poder monárquico, sempre visto como tirano. Lopes Trovão e Silva Jardim,
segundo Boris Fausto23 foram defensores dessa bandeira. De outro lado, Quintino
Bocaiúva, defendia uma república construída pelas idéias, com tranqüilidade, baseada nas
leis e no direito.

Entre um ou outro, a República era uma bandeira desfraldada ora para acusar a
excessiva centralização do poder e defender o federalismo; em outros momentos,
especialmente diante do público das ruas, era a expressão da maior representação política
dos cidadãos, um sistema de governo que daria direitos e garantias individuais aos
cidadãos. Na boca dos abolicionistas, a República era a certeza do fim da escravidão.

Curiosamente, no Rio de Janeiro, vivendo sob as barbas do Imperador, a República


era defendida em sua expressão mais violenta. O que amavam era a utopia24 do governo
do povo, que os gregos clássicos teriam criado, era a igualdade e a liberdade. Já no centro
do poder, os republicanos cariocas não se sentiam incomodados com o federalismo.
Porém, com muito nexo, em São Paulo, a República era o meio e o fim de uma inversão do
gozo do poder, e assim, combinava perfeitamente com federalismo, menor interesse na
defesa das liberdades civis e políticas e, logo, com a escravidão. Também, portanto, é
historicamente explicado porque os cariocas não fundaram um partido republicano,
deixando essa feita para os paulistas. Desde o surgimento do Partido Republicano era em

23
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1997, p.228.
24
Utopia- que está fora da realidade, que nunca foi realizado no passado nem poderá vir a sê-lo no futuro;
plano ou sonho irrealizável ou de realização num futuro imprevisível; ideal; fantasia, quimera.
Minas Gerais e São Paulo que ele encontrava maior presença entre o eleitorado e tinha o
maior número de candidatos eleitos.

Devaneios da velha oligarquia versus o domínio da nova

Onde estava a elite neste jogo é uma questão que interessa. A velha oligarquia
mantinha-se, mais silenciosa, entre a cerca e o portão, sonhando com um Imperador que
virasse a mesa, mas reconhecendo que ele estava acabado. Mais pobre que outrora, vivia
muito mais da lembrança dos dias de glória e fausto do que da possibilidade efetiva de
reviver tudo isso. A nova oligarquia tinha o queijo e a faca na mão. Possuía os recursos
necessários para se exibir sempre atual, européia, luxuosa. Vangloriava-se de sustentar a
Nação e estar sintonizada com o futuro, com os modelos externos de desenvolvimento e
lendo e entendendo as novas teorias que prometiam revolucionar o mundo, como o
positivismo.

Na crista desta onda, a nova oligarquia estava ao alcance dos olhos de todos, mas
distante das oportunidades de muitos. No alto se colocava como modelo e sua vontade
tornava-se uma ordem. Na Convenção de Itu, evento histórico que marcava o trabalho
político a ser feito pelo PR, dos 133 presentes, 76 eram fazendeiros do oeste paulista e,
assim, na maioria e nas exibições de sua retórica e aparência de quem possuía muito
dinheiro eles não apenas fizeram vencer suas propostas pela maioria numérica que
representavam, como se fizeram vencer como opção do novo mundo desejado25.

Divulgando ideais republicanos


Através dos jornais e comícios os republicanos “fizeram a cabeça” do povo,
gradualmente. A República era o jornal oficial do Partido desde 1871, a Gazeta de Notícias
e a Gazeta da Noite eram outros dois jornais de cunho republicano, quase como panfletos,
estes jornais incendiavam as discussões com escritas polêmicas e cheias de descrição,
dados, nomes e fatos de comoção pública.

Completando a ação comícios eram feitos em locais públicos de grande acesso,


como o campo de São Cristóvão e no Largo do Paço. Na ocasião de leis mais
problemáticas, como a do “imposto do vintém” os jornais e seus escritores acendiam ainda
mais a chama da discórdia contra o Império. Destes comícios e jornais alguns conflitos
ocorreram entre populares e defensores da monarquia, inflamando cada vez mais a idéia
da República26. Clubes republicanos e círculos do mesmo teor se multiplicaram
rapidamente, havendo em Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul grande
concentração destes.

Além das agremiações próprias, os republicanos elegeram entre os bares e


confeitarias das cidades os seus pontos de encontro, como o “Café de Londres”, situado

25
Apud ALENCAR, Francisco; RAMALHO, Lucia Carpi; RIBEIRO, Marcus Venicio Toledo. História da
sociedade brasileira. 15. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996, P. 171
26
MORAES, Evaristo de. Da Monarquia para a República (1870-1889) 2º Edição. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1985. p. 17.
na rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro. Nos finais de tarde, quem quisesse se reunir aos
republicanos mais famosos ou vê-los reunidos bastava passar pela Rua do Ouvidor e dar
uma paradinha em frente ao Café nomeado. Desta forma, o amor aos ideais por uma
sociedade mais democrática, ser republicano também passava por algumas práticas e
exibições culturais e sociais que davam, no cenário da cidade, visibilidade certa.

No Brasil do final do século XIX, com suas cidades e populações urbanas


considerável, a proposição de uma nova identidade para a Nação arregimentava mais
estratégias e meios do que outrora. Os meios de comunicação, a visibilidades urbanas e
as performances públicas tornaram-se ferramentas indispensáveis diante de uma multidão
que deveria ser convencida que existiam espelhos maiores e melhores a serem adotados
como modelo.

Abolicionistas
Ser abolicionista e republicano não era obrigatório. Mesmo que tenha havido
conhecidos republicanos, como Vicente de Sousa, Lopes Trovão, José do Patrocínio,
Ubaldino do Amaral, Ciro de Azevedo que eram defensores das duas causas, existiu,
também, aqueles que eram pelo fim da escravidão com a manutenção da Monarquia. Esse
é o caso de André Rebouças e Joaquim Nabuco, entre tantos outros27.

A defesa da abolição do trabalho escravo como da República teve início já no I


Reinado. Contudo, eram manifestações tímidas e somente com a implantação de um
programa político mais efetivo, com pessoas de poder econômico representativo envolvido
nesta causa que o movimento ganhou corpo e, assim, no final do século XIX, no Brasil,
intelectual que se prezasse era abolicionista e republicano.

27
[MORAES, Evaristo de. Da Monarquia para a República (1870-1889) 2º Edição. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1985. p. 59.
Dentro da lógica de análise que é desenvolvida neste trabalho, entende-se que a
defesa do fim da abolição era uma crítica severa a manutenção de um ranço do passado
colonial, o que destoava, na imagem que a elite fazia de si própria, da condição de
semelhante a elite européia, espelho e meta, do grupo nacional.

Por décadas a elite brasileira conviveu diariamente com o trabalho servil e criou
mecanismos para “naturalizá-lo”, dando a crer que a existência deste tipo de trabalho, tão
distante dos ideais de liberdade e igualdade que na Europa querida defendia-se com tanto
fervor, em nada manchava sua reputação de co-irmã das gentes abastadas e requintadas
do Velho Continente. A forma íntima como tratavam seus escravos domésticos, dando-lhes
apelidos que hoje nos soam como carinhosos: nonô, dadá, pretinha ou muitos outros no
diminutivo, por exemplo, ou a distância que impunha aos seus escravos rurais, deixando-
os nas mãos de capatazes que cumpriam suas funções sem incomodar seus patrões,
foram meios de fazer de conta que a escravidão não era problema de alguém. Quando um
negro fugia ou se rebelava o problema estava nesse indivíduo, que não “prestava” e que
açoitado iria se repor em seu lugar, a servidão.

Todavia, com a consolidação da sociedade burguesa na França e Inglaterra, com


sua conseqüente pressão para a extinção deste tipo de trabalho tão danoso ao
capitalismo, com a economia e urbanização das maiores capitais indo de vento em popa a
presença da escravidão começou a ser significada como um empecilho enorme ao futuro
promissor da terra.

Nas palavras de um historiador do II Império:


Não é possível exagerar os males que nos trouxe a escravidão (...). Durante
trezentos anos refestelamo-nos no trabalho, primeiro do índio, depois do negro.
Queiram os destinos do Brasil que não nos seja preciso tanto tempo para livrar-nos
de uma vez do funestíssimo veneno da maldita instituição, que pela indefectível lei da
justiça na história, que quer que todo erro traga em si o seu castigo, ainda nos pesa e
28
avexa .

As mesmas dissensões29 existentes entre ideais republicanos, como visto


anteriormente, se fazia em relação aos ideais abolicionistas. Enquanto no Rio de Janeiro,
de um republicanismo mais democrático, de cunho filosófico e revolucionário, a abolição
era uma questão sine qua non30 para o Novo Brasil, em São Paulo, de um republicanismo
circunstancial, abolição e república não se completavam mutuamente. Desde a Convenção
de Itu era expresso, no programa do partido republicano, que sua causa em nada dizia
respeito a causa dos abolicionistas, porém a escravidão, como bons latifundiários que
eram, era problema a ser levado em conta. Defendiam que o fim do cativeiro fosse feito de
forma gradual, lenta, segundo os interesses de cada província, ou melhor, das elites locais
de proprietários de escravos, e de maneira a respeitar as possibilidades de adoção de
mão-de-obra livre, conforme o caso de cada um. Inclusive, defendiam abertamente o
princípio da indenização, dizendo com todas as letras que propriedade tomada pelo
governo é sujeita ao reembolso e, nesse caso, o direito inalienável31 da propriedade recaía
sobre a existência de um homem, aquele chamado escravo.

Durante as décadas de 1870 e 80, com as leis paliativas aprovadas (Lei do Ventre
Livre, dos Sexagenários) o que estava em jogo era a negociação entre as versões de

28
Revista de História. Ano 1, nº1 julho 2005. p. 137.
29
Dissensões/ dissensão - divergência, discrepância; desavença; desinteligência.
30
Sine qua non- ou condição sine qua non originou-se do termo legal em latim para “sem o qual não pode
ser”. Refere-se a uma ação, condição ou ingrediente indispensável e essencial.
31
Inalienável-que se não pode alienar; que se não pode ceder, dar ou vender.
república e a questão da abolição. Porém, foram jogos precisos de vaidades e relações
íntimas que precipitaram a abolição da escravidão em 1888.

Relata Evaristo Moraes que foi a ação de José do Patrocínio, movido por ciúmes e
disputas com João Alfredo, junto à Princesa Isabel que a convenceu, com bajulações e
pressões contínuas a assinar a Lei Áurea. Promulgada a Lei, Patrocínio se empenhou mais
um tanto para imortalizar a Princesa como a “loura mãe dos cativos” e atribui-lhe o
epíteto32 de Redentora33.

Afirma José Murilo de Carvalho que Patrocínio “viveu na fronteira de mundos


distintos, se não conflitivos”34, pois afinal era mulato, de origem simples, mas sempre
envolvido com a elite e fazendo parte dela por sua intelectualidade e presença política e
desta característica é tecido sua habilidade em inflamar os encontros populares, o
conteúdo dos seus artigos e discursos políticos, enfim, de construir com sua retórica e
aparência a força de sua discursividade.

Abolição é modernidade
Entre ideais republicanos mais ou menos propensos à abolição e as intrigas
palacianas ou que se deve concluir é que também a defesa do fim da escravidão se
constituiu numa voga social, na qual estar a favor dela era estar sintonizado com o futuro,
ser intelectualizado e preocupado com o desenvolvimento da Nação, esta cada vez mais

32
Epíteto-palavra que qualifica um substantivo; atributo ou acessório; cognome; alcunha.
33
MORAES, Evaristo de. Da Monarquia para a República (1870-1889) 2º Edição. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1985. p. 60.
34
PATROCÍNIO, José do. Campanha Abolicionista: Coletânea de Artigos. Rio de Janeiro: Fundação
Biblioteca Nacional, Departamento Nacional do Livro, 1996. p. 9.
independente do corpo real de um Imperador. Por isso, a partir de 1885, os próprios lideres
do partido republicano paulista, como Prudente de Moraes e Campos Sales, passaram a
defender a abolição pelo viés da dignidade, da não propriedade do homem pelo homem e
a convencer seus correligionários35 que qualquer reação para conter a abolição seria
desgaste necessário, seria busca ingrata de querer fazer parar a roda do tempo e do
progresso e que mais valia a pena acelerar as mudanças do regime de governo e, regendo
a máquina estatal, encontrar as soluções mais baratas para a substituição da mão-de-obra
escrava.

Os positivistas, que em 05 de setembro de 1878 fundaram a Sociedade Positivista


do Rio de Janeiro, nas figuras de Miguel Lemos e Teixeira Mendes, sempre foram contra
qualquer defesa pela manutenção da escravidão. Dentro da lógica racionalista que
abraçavam era um contra-senso pensar em república para um país de cativos. Quintino
Bocaiúva, Américo Brasiliense, como importantes candidatos republicanos, somente
encontraram o apoio dos positivistas quando se manifestaram publicamente pela Abolição.

Portanto, nada mais moderno para um Brasil do futuro que ser republicano,
abolicionista e branco, promovendo a vinda da Europa para as fazendas e lavouras
brasileiras, através da mão branca do imigrante italiano, alemão, polonês, austríaco etc.
Além disso, cabe salientar, que a causa do abolicionismo, na medida em que não
implicava necessariamente na defesa da República surgiu, segundo José Murilo de
Carvalho, “como o movimento que permitiu falar-se no Brasil, pela primeira vez, em algo

35
Correligionários- que ou aquele que tem a mesma religião que outrem; por ext. o que é da mesma
opinião, do mesmo partido, da mesma seita.
parecido com uma opinião pública, uma vontade nacional”36, ou seja, congregou elite,
pensantes e população em geral em torno de um ideal de Nação Brasileira, aquela que
seria livre da escravidão e tanto pelo seu assunto – a Nação – como pelo seu processo fez
com que se constituísse uma comunidade imaginada entre este viventes de um país com
escravidão.

3.4 Os grupos marginais


Se negros e imigrantes faziam parte dos discursos da elite em seus projetos de
tornar o Império mais europeu, nem que para isso ele precisasse deixar de existir, esses
sujeitos sociais possuíam vida e objetivos próprios e distintos daqueles que a elite definia
para eles.

Índices da população brasileira


Em 1872 foi calculado que a população total do Brasil era de 9,93 milhões. Minas
Gerais era a província mais povoada, seguida de Bahia, Pernambuco, São Paulo e Rio de
Janeiro. A província da Corte, entre 1850 e 70, passou de segunda para a quinta mais
povoada do território, por efeito da expansão cafeeira e a concentração da mão-de-obra
escrava em São Paulo. Nesta população geral, os mulatos eram cerca de 42% dos
habitantes, enquanto os brancos 38% e os negros 20%. Nas últimas décadas, também,
houve um aumento de 30% no número de brancos o que é explicado pela imigração
européia, que despejava no Brasil em torno de 10 mil pessoas/ano.

O meio urbano era constituído, majoritariamente, pelo Rio de Janeiro, que tinha 522
mil habitantes em 1890 e que, segundo Boris Fausto, era “o único grande centro urbano”37.
Seguindo-a vinham Salvador, Recife, Belém e São Paulo, que possuía na mesma data
apenas 65 mil habitantes juntas.

3.4.1 Negros
A vida dos negros, no final do II Império, quando seus filhos já nasciam livres
perante a lei, mas nem sempre perante os seus proprietários, ganhou opções distintas,
especialmente para os escravos urbanos, portadores de maiores informações do que os
seus congêneres rurais. Amparados por leis que propunham variáveis a sua condição de

36
PATROCÍNIO, José do. Campanha Abolicionista: Coletânea de Artigos. Rio de Janeiro: Fundação
Biblioteca Nacional, Departamento Nacional do Livro, 1996. p. 16.
37
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1997. p. 237.
escravos, como a do Ventre Livre, a do pecúlio para fins de alforria, a que impedia a
divisão dos grupos familiares por venda, e, ainda, presenciando os debates dos
abolicionistas, acoitados por clubes e ligas pelo fim da escravidão, estes negros passaram
a vislumbrar, como luta pessoal e experiência individual, a liberdade38.

Escravos nas lavouras de café


Por outro lado, desde o fim do tráfico de escravos, em 1850, o tráfico interno
aumentou consideravelmente, acompanhando a necessidade crescente de mão-de-obra
da expansão das lavouras de café pelo oeste do sudeste e norte do Paraná. Esse tráfico
transferiu trabalhadores de fazendas menores, onde as relações com os patrões tinham
sido construídas ao longo dos anos e nas quais os métodos de trabalho, castigo,
recompensas e condições de alforria já haviam sido estabelecidas pelos costumes.
Chegados a grandes fazendas, com métodos mais “racionais” de trabalho e onde as
relações interpessoais foram zeradas, estes escravos passam a manifestar uma constante
rebeldia. Não foram poucos os custos de vigilância e disciplinarização que esse tipo de
equipe de trabalho exigiu dos cafeicultores, tanto que a Revista Ilustrada noticiava sobre a
“onda negra”, que consistia nas revoltas em série de escravos nas fazendas de café que
tentavam matar capatazes, senhores e famílias de trabalhadores brancos39.

Bernardino foi um desses criminosos da Onda Negra e em seu processo-crime,


Manuel Passos, negociante da freguesia onde ocorreu o fato, depôs que o réu lhe teria dito
que fora forçado ao crime “pelo mau cativeiro em que vivia” e porque o senhor lhe havia

38
Ver SCHWARZ, Reis, Lilia Moritz; Letícia Vidor de Souza (orgs). Negras imagens, ensaios sobre cultura
e escravidão no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1996. p. 135.
39
Apud ALENCASTRO, Luiz Filipe de. (org). História da vida privada no Brasil: Império: a corte e a
modernidade nacional. Vol 2. São Paulo: Companhia das Letra, 1997. p.357.
“roubado os domingos e dias santos”40. Importante, sobretudo, pensar que a existência
destes processos e julgamentos dá indício de duas coisas: primeiro que o escravo, nestes
casos, entendia-se como trabalhador e, logo, portador de direitos e merecedor de respeito
e, segundo, que a justiça da época como outros homens brancos, reconheciam este negro
como tal. Se não é o caso de falar de direito, propriamente dito, é ao menos pertinente
pensar em condições de respeito que eram solicitadas.

Redução da população escrava

Ainda nesse contexto de reformulações das condições da escravidão no fim do II


Império, Hebe Castro afirma: “O recrudescimento do tráfico interno, a partir de meados do
século, intensificaria o processo de crioulização dos cativos, além de fazer regredir a
pulverização da posse de escravos, até então característica no Brasil”41, estes dois fatores
fazem com que a população branca veja mais nitidamente, no sudeste, o peso numérico
da escravidão, inclusive ajudada pelos resultados do Censo de 1872, e se dê conta, com a
propaganda abolicionista, do quanto o Brasil era “negro”. Essa mesma autora, analisando
processos-crimes da região centro-sul, identificou que muitos negros opunham-se a sua
venda ou negociação e para contornar isso, seus senhores, criavam mecanismos para

40
Apud ALENCASTRO, Luiz Filipe de. (org). História da vida privada no Brasil: Império: a corte e a
modernidade nacional. Vol 2. São Paulo: Companhia das Letra, 1997. p.357.
41
In: ALENCASTRO, Luiz Filipe de. (org). História da vida privada no Brasil: Império: a corte e a
modernidade nacional. Vol 2. São Paulo: Companhia das Letra, 1997. p.345.
tentar diminuir a oposição dos negros, cujos valores tornaram-se cada vez mais lucrativo
para quem vendia.

Como se pode observar nas tabelas abaixo, numa proporção direta, desde o fim do
tráfico negreiro a população escrava foi ficando mais escassa, o que repercutia no valor
desta mão-de-obra.

Tabela: Proporção população livre e escrava, no Brasil, entre 1850 a 1887

Anos População livre Total População % da população


escrava escrava s/ o
total

1850 5.520.000 8.020.000 2.500.000 31%

1872 8.449.672 9.930.478 1.510.806 15%

1887 (*) 13.278.816 14.002.235 723.419 5%


(*) Damos aqui o número de escravos recenseados em março deste ano. Não havendo calculo para
o total da população na mesma ocasião, tomamos os dados do ano seguinte, o erro não poderá ser
apreciável.
Fonte: PRADO, Caio Junior. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São
Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000. p. 118.

Preço médio dos escravos (15-29 anos) – Oeste Paulista

Período Preço em mil-réis Valorização

1843-1847 550$000 100

1848-1852 649$000 118,1

1853-1857 1:177$500 214,1

1858-1862 1:840$000 334,5

1863-1867 1:817$000 330,4

1868-1872 1:792$500 326

1873-1877 2:076$862 377,6


1878-1882 1:882$912 342,3

1883-1887 926$795 168,5

Fonte: MARTINS, J. de S. O cativeiro da Terra. 2 edição. São Paulo: LECH, 1981. p. 27.

Também D. Pedro II concedia uma comenda, chamada da Rosa, aos senhores de


escravos que emancipassem seus cativos, o que tanto incentivou os pequenos
proprietários brancos afoitos pelos últimos brilhos do Império, como deu aos negros uma
esperança de liberdade a partir da bajulação de seu senhor e a conquista da “grata”
alforria. Desta ou de muitas outras formas, não se pode supor que ao longo dos 400 anos
de escravidão no Brasil, esse sistema desumano de trabalho, tenha sido igual e nem que
os sujeitos desta condição tenham permanecidos inalterados na compreensão de sua
existência e possibilidades de mudança.

O Brasil é negro: presença na cultura nacional


Para os brasileiros do século XX, por muito tempo, a presença negra na cultura,
chamada nacional, se encontrou (e ainda os livros didáticos repetem isso tanto quanto a
publicidade das marcas nacionais) na capoeira, no samba e na feijoada, num esquema
simplista e simplório de fazer referência a um grupo étnico maciçamente presente no
território brasileiro. Mais do que a óbvia origem da capoeira nos jogos de lutas dos antigos
escravos negros, é preciso destacar a lógica dessa linguagem corporal que se “incorporou”
à lógica de cultura brasileira e, difundida como dominante, tornou-se tanto agente como
representação da dita cultura nacional. Os passos da capoeira manifestam uma estratégia
de poder, pois a ação do lutador/dançarino combina malícia e dissimulação, pois o
movimento das mãos, pernas e corpo embaralham a reação do oponente sem, contudo,
atacá-lo frontalmente. O corpo se abaixa, a mão arrasta-se na areia, o adversário de pé,
supõe superioridade, porém, de súbito, as mãos que deslizam tocam sua perna e a puxam,
talvez, ágil o adversário joga seu corpo contra o movimento e num salto inesperado salva-
se do golpe que o faria cair. Assim, as negociações diárias também podem ocorrer, num
Brasil marcado pelo “jeitinho brasileiro”, por uma habilidade ímpar de negociar diferenças
ao mesmo tempo em que as mantêm discriminatórias. Como diz Letícia Reis, “o mesmo
corpo que se conforma é aquele que, em momento apropriado, se insurge e ataca”42.

A feijoada, por sua vez, além de prato típico constituído pelo apelo exótico de uma
indústria turística, também expressa na sua composição e sabores uma lógica social e
cultural que compõe, como agente que é, uma lógica de identidade nacional. A mistura de
restos não nobres de carnes, submersos em um caldo espesso e bem temperado, alça
aquilo que era lixo à condição de quitute e a composição em sua densidade oferece
mistério e curiosidade ao paladar aguçado pelo odor forte e apetitoso. A criatividade
brasileira, nos mercados internacionais, se destaca pela apropriação de materiais
inusitados que incorporados, transformados, agregados à composições originais também
aguçam os paladares. A sensualidade da mulher brasileira também é revestida de uma
lógica semelhante, onde a voluptuosidade das formas mais generosas dos quadris, mesmo
que distinto dos padrões clássicos de beleza, associada a uma ginga, a um negacear
marcado na fala, no gestual e no comportamento se constituíram como padrão de beleza e
a sensualidade se significa, como o caldo de feijão, em não revelar por todo o que contém
e exigir do interessado o degustar para bem reconhecer o que está comendo.

A mistura, como diz Roberto Damatta43, é um traço cultural que marca a identidade
do brasileiro, fazendo-nos capaz, mais que os anglo-saxônicos, de negociar, de sobreviver

42
SCHWARZ, Reis, Lilia Moritz; Letícia Vidor de Souza (orgs). Negras imagens, ensaios sobre cultura e
escravidão no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1996. p. 38.
43
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
em meio a diversidade e conseguir, apesar das dificuldades, se caracterizar como um povo
alegre e hospitaleiro.

Portanto, mais que elementos isolados e folclóricos, as relações entre as etnias


sobre o solo brasileiro produziram lógicas de constituir possibilidades de mundo, fazendo
com que nas práticas cotidianas do comer, de falar, de se relacionar com os outros, de dar
um jeito na vida e nas dificuldades se construísse uma fusão de diversos agentes, como
feijoadas, capoeiras etc.

3.4.2 Mulatos
Nestes mesmos projetos de Nação também se fazem presentes os mulatos e
mulatas. Todavia, este termo não designa com muita clareza quem são estes sujeitos e
mesmo nos jornais e documentos da época o termo é difuso. Tal como pardo, caboclo,
curiboca, cabra são termos genéricos que tem como unidade mais recorrente a idéia de
um mestiço, quase sempre associada de forma pejorativa a algo não puro e que,
contextualmente, aparecem muito mais em meio aos “jogos de xingamentos e atribuições
de identidades”44, como afirma Ivana Lima, do que como expressão provinda de reflexões
científicas apuradas. Entre estes sujeitos, o mulato é alguém bastante peculiar.

Gozando de uma situação mais favorável socialmente, o mulato, se encontra mais


no meio urbano, tendo uma profissão autônoma quase sempre e transitando, com certa
tranqüilidade entre brancos e negros. O 1º. Censo Demográfico brasileiro, na questão para
identificar a etnia da pessoa, listou as seguintes opções: pretos, pardos e cabras, além de

44
LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas. Sentido da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional. p. 51.
branco. A população inquirida, afirma Maria Ângela d’Incao, era contrária a esses registros
de cor, e mesmo de nascimento ou casamento, pois desconfiava que dando uma definição
de sua etnia estaria selando sua sorte diante do Estado, pois afirmar pertencer a esta ou
aquela etnia ou cor, como diriam naquele tempo, era definir lugares sociais, pois somente
a cor branca possuía cidadania na sociedade imperial. Assim sendo, o mulato, nestas
ocasiões sentiu-se a vontade para responder, diante do censor, que sua cor era branca
desde que possuísse liberdade, casa, sustento e independência.
Ocupando as profissões intermediárias entre o trabalho manual e os quadros
superiores: pequeno comércio, artesanato, técnicos agrícolas ou industriais, empregos
menores da administração, os mulatos eram “muito bem adaptados ao clima, à ecologia
brasileira”45. Vivendo nas ruas, ocupando-se de quase tudo que era consumido ou
prestado na forma de serviço, o mulato construía sua identidade como sendo um sujeito no
limite entre a elite e a marginalidade, dono das negociações, meio capoeira meio feijoada,
atacava negaceando46, transformava lixo em iguaria.

Preconceito e trabalho

Porém numa sociedade em que o modelo europeu vigorava a todo custo e em que
brancos tinham prioridade, a vinda dos imigrantes europeus transformou a balança étnica
imperial. Com a escassez de mão-de-obra escrava teria sido mais racional a adoção dos
trabalhadores brancos e pobres de outras regiões do Brasil nas lavouras cafeeiras.
Todavia, isso não ocorreu por dois motivos, todos ligados ao preconceito: primeiro que o
trabalhador branco, mesmo que pobre via como indigno de sua condição o trabalho
substitutivo do escravo e, segundo, que o cafeicultor, admirador das teorias européias e de
seus ares intelectuais, compartilhava das noções de Buckle e Gobineau que consideravam
os mestiços como gente de má índole e má formação orgânica. Desta feita, quanto mais a
República se firmou mais a presença dos imigrantes representou um embranquecimento
desejado da população brasileira, processo que os imigrantes pareciam garantir com sua
pele clara47.

45
FREDERIC, Mauro. O Brasil no tempo de D. Pedro II: 1831-1889. São Paulo: Cia das Letras, 1991, p.34.
46
Negaceando- atrair por meio de negaças (engodo; isca; chamariz; convite; sedução; engano; logro;
provocação; recusa); fazer negaças a; provocar, seduzir, enganar; recusar.
47
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1997. p. 204.
Confirmando isso, mesmo com as terríveis secas que castigaram o nordeste no fim
do século XIX, a maioria dos retirantes se direcionou para o Norte, para a região da
extração da borracha para tentar a vida como “empresário” de si.

Portanto, o mulato e todos os mestiços ficaram em meio a discussão do fim da


escravidão se ser contemplados por ela, pois ela não se tratava de uma discussão de
princípios humanitários ou democráticos, mas sim, de um projeto de nação branca e
moderna. Alcançada a abolição e, em seguida, o fim do Império, a escravidão e toda a
discriminação racial que com ela caminha, a qual atingiu e atinge não apenas negros e ex-
escravos, mas também a todos que possam ter seu sangue “contaminado” dessa
negritude, caíram no esquecimento dos debates políticos, da verve poética dos
abolicionistas, das leis e das propostas políticas.

Como afirma Hebe Mattos:

A crescente hegemonia dos paradigmas naturalista e do darwinismo social,


especialmente após 1888, acabaria por relegar ao ostracismo a luta contra a
discriminação racial durante o período monárquico, retendo na memória nacional
apenas os intelectuais negros diretamente engajados na luta abolicionista, como
48
André Rebouças, José do Patrocínio e, em alguma medida, o próprio Luís Gama .

Não faltaram intelectuais na República que tentaram amenizar, discutir ou recompor


esse passado histórico e condição cultural, fazendo proposições como o do caldeirão das
raças, da boa sociabilidade e integração entre senhores e escravos, no povo mestiço e por
isso forte, entre outras tantas tornadas de senso comum. O que ficou foi um olhar
enviesado49 de que não há preconceito racial no Brasil, como se a pele negra e outros
traços biótipos próprios não continuassem a impor, como no tempo dos “Negros de
Suor”50, diante de olhos preconceituosos a diferença como expressão de inferioridade.

Discriminação racial e protesto na literatura


O poema de Luís Gama, chamado “Quem sou eu?”, é um sussurro em grito de uma
discriminação racial que não se findou com a escravidão e nem se restringiu aos negros:

48
Ostracismo- desterro por dez anos, a que eram condenados os atenienses por crimes políticos; por ext.
exclusão, especialmente da governação pública; exclusão, isolamento, proscrição; atitude de indiferença ou
desprezo que os membros de um grupo assumem para com indivíduos refratários a padrões de
comportamento estabelecidos; esquecimento. MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil
monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2004, p. 60.
49
Olhar enviesado- com suspeitas, desconfiado.
50
Ver Volume 1 do CD-rom Brasil por suas aparências.
QUEM SOU EU?

(Também conhecido como Bodarrada,um neologismo relativo a bode, no caso o


poeta quis usar a expressão no sentido da designação pejorativa para os homens
livres com ascendência negra, usado no Império e ainda hoje em certas regiões do
nordeste)

58
E com tretas e com furtos
Quem sou eu? Que importa quem? Vão subindo a passos curtos;
Sou um trovador proscrito, Fazem grossa pepineira,
Que trago na fronte escrito
esta palavra "Ninguém!" Só pela arte do Vieira,
A.E. Zaluar - "Dores e Flores" E com jeito e proteções.
Galgam altas posições!
Amo o pobre, deixo o rico, Mas eu sempre vigiando
Vivo como o Tico-tico; Nessa súcia vou malhando
Não me envolvo em torvelinho ,
51 De tratante, bem ou mal,
Vivo só no meu cantinho; Com semblante festival
Da grandeza sempre longe Dou de rijo no pedante
Como vive o pobre monge. De pílulas fabricante
59
Tenho mui poucos amigos, Que blasona arte divina
Porém bons, que são antigos, Com sulfatos de quinina
Fujo sempre à hipocrisia, Trabusanas, xaropadas,
60
52
À sandice , à fidalguia; E mil outras patacoadas .
Das manadas de Barões? Que, sem pingo de rubor
Anjo Bento, antes trovões. Diz a todos que é DOUTOR!
Faço versos, não sou vate ,
53 Não tolero o magistrado,
61
Digo muito disparate, Que do brio descuidado,
Mas só rendo obediência Vende a lei, trai a justiça
À virtude, à inteligência: - Faz a todos injustiça -
Eis aqui o Getulino Com rigor deprime o pobre
54
Que no pletro anda mofino .
55 Presta abrigo ao rico, ao nobre,
Sei que é louco e que é pateta E só acha horrendo crime
Quem se mete a ser poeta; No mendigo, que deprime.
Que no século das luzes, - neste dou com dupla força,
56 57 Té que a manha perca ou torça.
Os birbantes mais lapuzes ,
Compram negros e comendas, Fujo às léguas do lojista,
Têm brasões, não - das Kalendas; Do beato e do sacrista -
Crocodilos disfarçados,
51
Torvelinho - de *torbelhão, turbilhão ; Fr. Que se fazem muito honrados
tourbillon; redemoinho. Mas que, tendo ocasião,
52
Sandice- dito tolo; caráter ou qualidade de São mais feros que o Leão
sandeu; parvoíce, tolice; falta de senso; fraseado Fujo ao cego lisonjeiro,
sem lógica. Que, qual ramo de salgueiro,
53
Vate- aquele que fez vaticínios; profeta; poeta Maleável, sem firmeza
ao qual eram atribuídos dons proféticos, 58
especialmente na Roma antiga; poeta; profetisa. Tretas- mutreta; ardil, manha; artimanha;
54 palavreado.
Pletro- antiga medida de 100 pés gregos ou 59
104 romanos (30 metros); antiga medida agrária Blasona/blasonar- do Cast. Blasonar; pintar
de 100 pés quadrados (9 ares). ou esculpir escudo de armas ou brasão em;
55
Mofino- infeliz; desastrado; tacanho; mostrar com alarde, ostentar; vangloriar-se,
turbulento; mal sucedido; avarento; s. m., Brasil, gabar-se.
60
doentio; aquele que é mofino. Patacoadas- disparate; ostentação ridícula;
56
Birbantes- bigorrilha, patife, biltre. pantominice; jactância; fanfarronice; Brasil, léria,
57
Lapuzes- grosseiro; rude. mentira.
61
Brio- sentimento de dignidade, pundonor; zelo,
coragem, ânimo; garbo.
65
Vive à lei da natureza Belas damas emproadas
66
Que, conforme sopra o vento, De nobreza empantufadas ;
Dá mil voltas, num momento Repimpados principotes,
O que sou, e como penso, Orgulhosos fidalgotes,
Aqui vai com todo o senso, Frades, Bispos, Cardeais,
Posto que já veja irados Fanfarrões imperiais,
62
Muitos lorpas enfurnados Gentes pobres, nobres gentes
Vomitando maldições, Em todos há meus parentes.
Contra as minhas reflexões. Entre a brava militança
Eu bem sei que sou qual Grilo, Fulge e brilha alta bodança;
63
De maçante e mau estilo; Guardas, Cabos, Furriéis
E que os homens poderosos Brigadeiros, Coronéis
Desta arenga receosos Destemidos Marechais,
Hão de chamar-me Tarelo Rutilantes Generais,
Bode, negro, Mongibelo; Capitães de mar-e-guerra
Porém eu que não me abalo - Tudo marra, tudo berra -
Vou tangendo o meu badalo Na suprema eternidade,
Com repique impertinente, Onde habita a Divindade,
Pondo a trote muita gente. Bodes há santificados,
Se negro sou, ou sou bode Que por nós são adorados.
Pouco importa. O que isto pode? Entre o coro dos Anjinhos
Bodes há de toda casta Também há muitos bodinhos.
Pois que a espécie é muito vasta... O amante de Syringa
Há cinzentos, há rajados, Tinha pêlo e má catinga;
Baios, pampas e malhados, O deus Mendes, pelas costas,
Bodes negros, bodes brancos, Na cabeça tinha pontas;
E, sejamos todos francos, Jove, quando foi menino,
Uns plebeus e outros nobres. Chupitou leite caprino;
Bodes ricos, bodes pobres, E segundo o antigo mito
Bodes sábios importantes, Também Fauno foi cabrito.
E também alguns tratantes... Nos domínios de Plutão,
Aqui, nesta boa terra, Guarda um bode o Alcorão;
64
Marram todos, tudo berra; Nos lundus e nas modinhas
Nobres, Condes e Duquesas, São cantadas as bodinhas:
Ricas Damas e Marquesas Pois se todos têm rabicho,
Deputados, senadores, Para que tanto capricho?
Gentis-homens, vereadores; Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
62
Lorpas- imbecil; parvo; grosseiro; boçal; Cesse pois a matinada,
pateta. Porque tudo é bodarrada!
63
Maçante- chato, repetitivo; enfadonho.
64 65
Marram- arremeter com os chifres; bater com a Emproadas/ emproado – tolo; presumido;
cornada; dar marrada; turrar; bater com o marrão; orgulhoso.
66
encontrar-se de frente com alguém. Empantufadas- pessoas que utilizam sapatos
de ambiente doméstico, delicados e bastante
confortáveis; metáfora para vida ociosa.
[In: http://bayo.sites.uol.com.br/luisgama.htm]

3.4.3 Imigrantes
Todo o Império era uma terra de imigrados. Porém nem todos gozavam deste
status. Desde a implantação do sistema de capitanias hereditárias foi grande o número de
estrangeiros que vieram para as terras brasileiras. O ouro de Minas Gerais, no século
XVIII atraiu milhares. Contudo, foi no II Reinado que a imigração se constituiu numa
política expansionista e ocupacional do governo, fazendo campanhas e dando incentivos
para que europeus viessem para cá. Eles, por sua vez, alimentados pelas narrações mais
ou menos fantasiosas da fartura americana, sonhavam com uma vida melhor nestas
paragens. A política imperial visou formar uma população livre de pequenos proprietários
que ocupasse as terras ainda virgens, os rincões esquecidos e que com a atividade
agrícola, pastoril e mesmo manufatureira viesse a desenvolver o comércio interno,
abastecendo as grandes cidades de gêneros alimentícios. Além disso, era dessa gente
branca e saudável, como diriam os médicos da época, que o Império teria os jovens para
as forças armadas e gerações de brancos livres.

Imigrantes em fuga do capitalismo

Primeiro vieram os portugueses, atrás de seu Rei. Depois toda espécie de


estrangeiro, em busca da vida fácil e, finalmente, o quase refugiado do capitalismo
industrial que se instalava na Europa.

Do outro lado do Atlântico, países a leste e ao sul da França, estavam


reformulando suas estruturas econômicas, sociais e políticas. O processo de unificação
das cidades ou reinos independentes da atual Itália e Alemanha foi transformando o
espaço rural em área da agroindústria, expropriando terras e deixando os pequenos
produtores reais sem competitividade. Nas palavras de Maestri:

O abandono da terra natal constituiu uma saída para a crise vivida por multidões de
camponeses italianos. Partia-se para a América para fugir da fome, do trabalho
fatigante, da desnutrição, do salário irrisório, do alto aluguel da terra. A emigração
era uma forma de revolta surda e silenciosa contra os donos da terra. Ela prometia
67
um futuro risinho para todos
67
MAESTRI, Mario. Uma História do Brasil Império. São Paulo: Contexto, 2001, p.123.
Os governos dos países de origem destes imigrantes viam com alegria sua partida.
Afinal sua vinda para a América iria descomprimir as tensões em torno da terra e ainda
deu surgimento a uma empresa lucrativa: a de Navegação, Colonização e Imigração.
Estas faziam o recrutamento dos migrantes, organizavam o transporte marítimo e ainda
negociavam terras no novo continente.

Colonos chineses vetados pelo Brasil


Outras partes do planeta também possuíam excedentes de mão-de-obra rural e
estavam dispostos a promover a migração dos mesmos, porém quando este não era
europeu, a elite brasileira sempre ciosa de sua superioridade, coloca obstáculos. Esse foi
o caso da migração provinda da Ásia.

Colonos chineses foram trazidos por franceses e ingleses para as sua colônias e
inspiraram alguns políticos brasileiros a fazer o mesmo, porém a opção foi ferrenha68.
Nicolau Moreira, presidente da Associação Auxiliadora da Indústria Nacional, escreveu
em 1881 na revista de sua Instituição:

Não aceito o chim por ser, como dizem seus apologistas, simplesmente produtor. O
bom operário, em minha opinião, deve ser rigorosamente produtor e consumidor; é
produzindo e consumindo que se desenvolvem as indústrias, (...). Não aceito o
69
chim, porque afugenta a imigração européia livre e inteligente .

Más condições de trabalho aos imigrantes


Senador Vergueiro também defensor da “boa” imigração, em 1847, fundou a
empresa Vergueiro & Cia, que trouxe posteriormente 364 famílias, alemãs e suíças, para
a fazenda Ibicaba, de sua propriedade, na região de Limeira, interior de São Paulo. O
contrato firmado com esta firma contemplava um contrato de parceria, qual seja:
pagamento de despesas de viagem e instalação na fazenda, após, financiamento dos
recursos necessários para a manutenção e promoção da unidade produtiva. Os valores
somados seriam debitados na medida em que os colonos produzissem, acrescidos dos
juros de 6% ao ano.

A dívida nunca se esgotava e ainda, a parceria não era muito equilibrada, pois
quem negociava a colheita de café era o próprio latifundiário, a lavoura de subsistência
era dividida ao meio por conta do uso da terra e o endividamento dos colonos não

68
Ferrenha- com afinco; determinação; com força.
cessava. Reclamando das condições com que eram tratados, os locais onde moravam, o
tipo de sementes que recebiam e outras coisas do trato diário, o sistema teve pouco
sucesso e, logo, os defensores da boa gente européia desconfiavam de sua escolha
mediante seus objetivos escravocratas.

Na Europa difundiu-se uma propaganda danosa à emigração para o Brasil. Através


de cartas e matérias jornalísticas eram denunciadas as condições de vida nas fazendas
de café, vindo a produzir manifestações oficiais por parte dos governos europeus junto ao
governo imperial brasileiro.

Imigração subvencionada

A elite rural tratou logo de pressionar o governo para tomar conta da imigração,
dando início ao sistema de “imigração subvencionada”, por volta de 1860. Por este
sistema as primeiras despesas eram arcadas pelo governo imperial e os fazendeiros
ficavam responsáveis pelos gastos dos colonos no primeiro ano no país. Além disso, foi
previsto um salário fixo anual e mais um salário que variava de acordo com o volume das
colheitas. Com estas medidas o colono tinha menor possibilidade de ficar preso por
dívidas com o seu patrão inicial e, assim, muitos foram com o tempo se tornando
produtores independentes, buscando terras mais distantes, a despeito da Lei de Terras de
1850, e fundando seu sonho de prosperidade na América. Muitos também foram para as
cidades dar início a uma vida de pequenos comerciantes ou industriais, cujos trabalhos
feitos em família, geraram lucros rápidos numa sociedade emergente.

69
apud ALENCAR, Francisco; RAMALHO, Lucia Carpi; RIBEIRO, Marcus Venicio Toledo. História da
sociedade brasileira. 15. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996, P. 146.
Focos das primeiras colônias
Calcula-se que em 1888 mais de 200 mil italianos chegaram ao Brasil, somado as
outras levas que haviam entrado antes da abolição da escravatura70. Também é
importante lembrar que além do sudeste, principalmente no sul, foram constituídas
grandes colônias italianas e alemães, além de outras nacionalidades, que se tornaram
responsáveis pela ocupação e desenvolvimento de regiões até então desprovidas da
presença branca. Esse processo custou a vida de milhares de indígenas e recuou para
mais longe a fronteira entre o império civilizado e o selvagem.

Segundo os dados de Fazoli a colonização alemã teve seu primeiro núcleo em São
Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Já em Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro, quase na
mesma época, aportaram cerca de dois mil imigrantes alemães dando início a este
povoado. Em 1849 ocorreu a chegada dos imigrantes no Vale do Itajaí, no Estado de
Santa Catarina através da Companhia Colonizadora de Hamburgo, criando com esta
iniciativa as futuras cidades de Joinville, Brusque e Blumenau. No Rio de Janeiro, em
1855, através de uma outra companhia colonizadora, a “Central de Colonização” foi
introduzido cerca de 20 mil novos imigrantes de origem européia. Em São Paulo, uma
leva significativa de norte-americanos, após a Guerra da Secessão, se fixaram no interior
do Estado, fundando Americana. Já em 1875, um alto número de imigrante vindo da
Rússia, Polônia e Ucrânia originaram a cidade de Ponta Grossa, no Paraná. No fim do

70
COSTA, Virginia. História da Imigração no Brasil. As Famílias. São Paulo: Serviço Nacional de
Divulgação Cultural Brasileiro, 1986, p.13.
Império chegaram os primeiros imigrantes vindos da Síria, Líbano, Palestina e em menos
quantidade os Turcos71.

Contudo, a maioria dos imigrantes que aqui chegaram, serviram como mão-de-obra
para o cultivo de café, provenientes de cidades européias, principalmente da Itália,
Portugal e Alemanha.

Tabala: Entrada de imigrantes no Brasil por periodo

Ano Imigrantes

1860\1869 108.187

1870\1879 193.931

1880\1889 453.781

Fonte: FAZOLI, Arnaldo Filho. História do Brasil: 2º Grau. São Paulo: Ed do Brasil,
1977. p.215.

71
FAZOLI, Arnaldo Filho. História do Brasil: 2º Grau. São Paulo: Ed do Brasil, 1977. p.216.
Identidades estrangeiras
Esses milhares de imigrantes, cada um trazendo a marca de ser um estrangeiro,
produziram processos identitários diversos. Mesmo que pertencentes a grupos étnicos,
conforme a região de onde provinham, foram sendo construídos no olhar do Outro, aquele
que se reconhecia como o brasileiro, como uma unidade homogênea de caracteres, na
qual se fundia imagens idealizadas da condição de europeu, os pressupostos raciais de
superioridade, o estereótipo do bom trabalhador, religioso fervoroso, sério, briguento,
tímido, sovina e outros tantos que povoam nosso imaginário social. Para estes imigrantes,
distantes de suas terras natais, acuados diante do desafio de constituir uma nova vida em
terras estranhas, ancorar-se numa identidade grupal era uma importante estratégia de
sobrevivência e sucesso.

Como outros grupos de imigrantes em outros países, a distância da terra se


converte em saudade da pátria e se foi no embate com as outras identidades convividas,
na busca de macro referências que lhe dessem sentido que a identidade nacional de
italiano, polonês, alemão, chinês e tantas outras que foi construída em solo estrangeiro.
Tanto quanto a identidade brasileira se esboçava nesse diálogo com o Outro. Alencastro
no texto que aborda as diferenças alimentares entre europeus e brasileiros lembra como
na relação de estranhamento e de aculturação “a influência dos modos de vida e dos
hábitos alimentares e culturais europeus será (foram) propagada pelos núcleos
coloniais”72, onde cotidianamente as formas de viver eram confrontadas e tanto se
aprendeu a comer manteiga, pão, queijo e vinho como comidas corriqueiras, como nos
hábitos estrangeiros foram incorporados a mandioca, a carne assada na brasa e o
pescado em abundância. Enfim, como sempre, foi em meio a diferença que se construiu
as semelhanças.

A promessa de um novo Brasil republicano


Para os republicanos a presença dessa gente branca e européia, era atestado de
certeza que a República inaugurava um novo Brasil no velho território. Nas palavras de
Luis Felipe Alencastro:

Preocupados, ao contrário, com o mapa social e cultural do país, a burocracia


imperial e a intelectualidade tentavam fazer da imigração um instrumento de
civilização (...) no projeto sobre o conjunto de famílias, de vidas privadas, que
formaria a futura vida pública brasileira: no reverso do debate sobre a imigração
73
desenhava-se o debate sobre a nacionalidade .

Essa convicção não se manteve intacta ao longo do processo de inserção do


imigrante na vida da cidade, pois os diversos incidentes com estrangeiros, inclusive as
greves, levantes de cunho messiânico, como o movimento dos “Mucker”74, ocorrido na
colônia alemã de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, entre outros, fizeram os
defensores da imigração como meio de europeização do Brasil, duvidar que as coisas
seriam tão tranqüilas como imaginadas.

E a Naçao

O que conta é que no cenário do Brasil republicano a presença do branco, europeu


ou não, com sua aparência sintonizada no espírito de otimismo, que a virada do século
XIX prometia, a qual também era anunciada como à virada do “destino manifesto” do país,
com sua fala cheio de francesismos e seus consumos marcados pela tecnologia, que nas
últimas décadas havia sido desenvolvida, representava e agenciava o sonho de uma
Nação única e desenvolvida.

72
ALENCASTRO, Luiz Filipe de. (org). História da vida privada no Brasil: Império: a corte e a
modernidade nacional. Vol 2. São Paulo: Companhia das Letra, 1997. p.303.
73
ALENCASTRO, Luiz Filipe de. (org). História da vida privada no Brasil: Império: a corte e a
modernidade nacional. Vol 2. São Paulo: Companhia das Letra, 1997. p.294.
74
ALENCASTRO, Luiz Filipe de. (org). História da vida privada no Brasil: Império: a corte e a
modernidade nacional. Vol 2. São Paulo: Companhia das Letra, 1997. p.312.
3.5 Última valsa
A guerra do Paraguai já desaparecia da memória da maioria, porém a disputa
interna de como as eleições deveriam ocorrer ainda fazia os seus respingos; em Belém e
Recife a ação judicial que o Imperador impetrou contra os Bispos Dom Vital Maria e Dom
Antônio Macedo, devido a expulsão dos maçons das irmandades religiosas, era ainda
assunto de muita conversa e muita discussão entre maçons e republicanos. Do púlpito
estes e outros religiosos acusavam a Monarquia e na platéia os republicanos aplaudiam
de pé. A proibição de discussão pública de assuntos militares e manifestações
exageradas pró-república pelos oficiais do Exército deu ainda mais sabor e munição para
as críticas que os militares, alçados à herói da Pátria, após a vitória de Humaitá, faziam à
Monarquia inspirados pelo positivismo de August Comte. E, principalmente, o fim da
escravidão fazia com que os últimos latifundiários monarquistas deixassem de apoiar o
Imperador, influenciado pela finanças alteradas que a partida de sua mão-de-obra deixou
e pela ameaça que a sucessão e o III Reinado fossem marcados por estas crises

Críticas à Vossa Majestade


Tudo e todos tinham algum motivo para desconfiar, fosse o Exército com as
punições que recebiam pela desobediência à Majestade, fosse os católicos pela gerência
do Estado sobre as suas igrejas, fosse os latifundiários pelas suas finanças e os grupos
sociais urbanos que estimulados pela propaganda política ferrenha dos republicanos
acabaram por se convencerem que a Monarquia não mais podia representar o Brasil.
Os ex-escravos, por sua vez, dividiam-se entre os que passaram a serem
monarquistas e opositores dos “paulistas”, assim identificados os republicanos, e aqueles
que não tendo mais onde morar ou trabalhar passaram a migrar para as cidades em
busca de uma solução para os seus problemas e dores.

Propaganda Imperial

Enquanto isso, no Palácio Imperial, no começo de 1889, D. Pedro II comemorava a


publicação de um grande ensaio sobre o Brasil que foi publicado no livro francês Grande
Encyclopédie, no qual, com a ajuda do Visconde do Rio Branco, o Brasil era descrito em
suas grandezas e maravilhas por 51 páginas, ficando em número de páginas atrás
apenas da Alemanha. Era um orgulho ter tanto a contar. Também o rabino Benjamim
Mossé escreveu nesse ano a biografia de D. Pedro II, exaltando-o como Imperador do
Novo Mundo e “cultor das línguas clássicas e um estudioso do hebraísmo”75. Coroando
essa propaganda imperial fantástica, o Brasil se esmerava em construir um grande
pavilhão para a Exposição Universal de Paris, de 1889,

O Brasil, como vimos, participava ainda da importante Exposição Universal de Paris,


de 1889. Cavalcanti, Rio Branco, Eduardo Prado se esmeraram na construção de
um pavilhão grandioso, com o estilo hibrido dos palácios de fantasia. Contava com
uma torre majestosa de quarenta metros de cúpula envidraçada e chamativa. Em
um quiosque ao lado, vendia-se café a dez centímetro a xícara. Enormes telas do
pintor brasileiro Estevão da Silva, apresentando frutas tropicais, enfeitavam as salas
mais vazias. Seis estatuas colossais representavam os rios do Brasil, e numa
enorme bacia flutuava, romanticamente, uma típica vitória-régia. Enquanto a
Holanda comemorava o aniversario francês com um bela tupila, a nossa espécie
75
Apud SCHWARCZ, Liliam Moritz. As Barbas do Imperador: Dom Pedro II, um monarca nos trópicos.
São Paulo: Companhia das Letras. 1998. p. 445.
selvagem e exótica representava as excentricidades do Brasil. O café e a fúria de
76
nossos rios e de nossa vegetação adornavam a civilizado e grandioso edifício .

Insatisfação popular com a Monarquia


Por mais que o Imperador parecesse intocável aos olhos estrangeiros,
internamente Rui Barbosa e muitos outros não o perdoavam em nada. Inclusive um
incidente de um disparo feito em direção a D. Pedro II por um jovem português, era
tomado como expressão visível da insatisfação do povo com a Monarquia, e esse
representado pelos agrupamentos em locais públicos, começou a tomar por hábito gritar
“Vivas à República” ou “morras à Monarquia”. Atitudes de represálias eram tomadas por
alguns apaixonados funcionários reais, o que D. Pedro II respondia com um aceno de
cabeça, considerando desnecessárias as medidas. O governo liberal de Ouro Preto,
encabeçado por José do Patrocínio, cria a Guarda Negra, uma espécie de corpo de
segurança pessoal das Majestades. Todavia, o tiro saiu pela culatra e a oposição acusava
de capoeiras e gente vil os soldados deste corpo militar.

O rei enfermo

Rui Barbosa e Deodoro da Fonseca aproveitavam, seja na tribuna legislativa ou


nas reuniões do Partido Republicano, para alimentar a imagem de uma Monarquia que
não tinha mais como sobreviver. Contudo, a figura do monarca era preservada nos
sentimentos da população, que se condescendia77 com as doenças dele, com seus
cabelos brancos, com sua fama de sábio e bom e, assim, diante dos ânimos mais
agitados, a maioria falava em esperar a sucessão “natural” do trono para implantar a
República.

76
SCHWARCZ, Liliam Moritz. As Barbas do Imperador: Dom Pedro II, um monarca nos trópicos. São
Paulo: Companhia das Letras. 1998. p. 445-446.
77
Condescendia /condescendência- ação de condescender; qualidade de quem é condescendente;
propensão para condescender; complacência; transigência; ceder; anuir voluntariamente; aceitar.
D. Pedro cansado, muito abatido com seus males físicos não provoca para si as
críticas feita à Monarquia, ao contrário, se ela ainda sobrevivia, em meio a toda a crise,
era graças ao respeito e consideração que a população em geral possui para com ele.

Segundo os jornais da época a situação se agravava continuadamente. As notícias


de suas viagens, como a feita a Poço de Caldas, em fins de 1886, destacavam sua
necessidade de cura das doenças mais do que qualquer outro feito. No ano seguinte,
Conde d’Eu afirmou, alimentando os jornais da época, que seu sogro apresentava
“enfraquecimento da memória no tocante aos fatos em curso, irresolução nas decisões,
tardança da palavra”. Neste ínterim, a conselho dos médicos, foi realizada uma viagem de
cura à Europa, que acabou agravando o estado mórbido do Monarca, a ponto de ser
prognosticada doença fatal. Em maio de 1888, no Brasil, a Princesa assinava o decreto
de abolição e lamentou que o pai estivesse tão mal. Nos dias 9 e 10 de maio, assistido
por médicos em Milão, estava ele, conforme expressão do Conde d’Eu, “lutando com a
morte”. Já em Paris suas crises agravaram-se, chegando a Imperador a receber a
extrema-unção. Vindo da Itália, o professor Sêmola desanimou a população ao relatar que
depois de observar o estado do enfermo confirmou que ele sofria de exaurimento bulbar e
paralisia cardíaca.

Mesmo melhorando e voltando ao Brasil, ele continuou no Brasil seu tratamento,


com a orientação do médico Conde de Mota Maia, que lhe recomendou a hidroterapia e
mesmo assim nunca mais pode se entregar a um trabalho contínuo fosse este físico ou
intelectual.

Seus íntimos percebiam que o Soberano não era aquele homem de sempre,
“inclinado ao trabalho, andarilho incansável, ocupando-se de tudo e de todo, dando o que
fazer aos ministros” e que já havia deixado de ler aos jornais. Numa outra nota à impressa
o neto de Pedro II afirmou que: “Infelizmente, nunca mais teremos aquele homem ativo de
há cinco anos”. Visconde de Taunay escreveu em seu diário em abril de 1889 que “O
Imperador está cada vez mais esquecido das coisas presentes e alheios aos assuntos
políticos”78, em maio percebeu que ao abrir a sessão legislativa, ele se apresentava fraco
e de pernas bambas.

Portanto, não tendo maiores esperanças em reverter o quadro nem de sua saúde
real ou simbólica, D. Pedro II se retirou com a família para o Palácio de Petrópolis e lá,
como um cidadão, um marido, pai e avô zeloso viveu distante das disputas da Corte,
vestido em seu jaquetão, tendo sempre um livro na mão, realizando pequenas
caminhadas pelo jardim e fazendo poses para fotografias familiares, como qualquer casal
burguês e seus herdeiros tinham o costume de fazer naquela época.

Como destaca Schwarcz: “(...) D. Pedro vivia alheio em seu mundo, distante das
tensões políticas da Corte. Mais uma vez, as imagens cumpririam uma função oficial:
retratar uma família unida e acima dos dissabores do mundo da política”79.

Autonomia para a burguesia: reformas no governo


Enfim a imagem de um império tropical, exótico, que fundia a ilustração européia e
a virilidade americana foi trincada. O velho regime monárquico centralizado, defensor dos
decadentes proprietários de terras e de escravos, não podia atender aos interesses dos
novos grupos sociais em emergência. O setor mais dinâmico da classe dominante, a
burguesia usineira e cafeeira, queria a descentralização e a autonomia. Queria mais
poder decisório, para não depender de um distante e burocratizado governo central. Se
não trocavam a capital do país, ao menos davam a São Paulo a liberdade de se
desenvolver.

Os monarquistas ou anti-republicanos reagiam como podiam, colavam aqui,


remendavam ali, mas a imagem continuava difícil de ser percebida com nitidez. Em junho
de 1889 um novo gabinete, mais liberal foi nomeado, chefiado pelo Visconde de Ouro

78
Todas citações e dados destas folhas IN: MORAES, Evaristo de. Da Monarquia para a República
(1810-1889), 2º edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 66-67.
79
SCHWARCZ, Liliam Moritz. As Barbas do Imperador: Dom Pedro II, um monarca nos trópicos. São
Paulo: Companhia das Letras. 1998. p. 450.
Preto, que logo a frente dos Ministérios propôs um amplo programa reformista, que
incluía:

1. Eleições para a Câmara, nomeação de militares para as pastas da Marinha e da


Guerra, o que se supunha iria melhorar a relação com os militares;

2. Autonomia municipal e provincial – o que atendia os anseios paulista


republicanos;

3. Liberdade de culto religioso e ideológico – aliviando a tensão entre comunidade


católica e monarquia, como de outras agremiações também;

4. Incentivo à imigração – ampliando o apoio financeiro para atender o déficit de


mão-de-obra nas lavouras de café, apaziguando assim os ânimos dos
cafeicultores;

5. Redução das atribuições do Conselho de Estado – o que reduziria as idéias


mais reacionários do reinado, e

6. Implantação de uma política emissionista – a qual geraria recursos para fazer as


implantações necessárias e investir no crescimento econômico imprescindível.

Articulação para o golpe


Porém os republicanos ansiavam pelo poder, não podiam esperar que as medidas
do liberal Visconde de Ouro Preto dêem-se certo ou amenizasse a crise. Era preciso agir
logo para que o sangue não esfriasse e que uma nova imagem novinha em folha tomasse
conta do imaginário social. Em 09 de novembro, no Clube Militar, sob a presidência de
Deodoro, foi articulado o golpe, que seria ameno, sem violências ou ameaças ao
Imperador.

Dois dias depois a Ilha Fiscal foi engalanada para homenagear oficiais da Marinha
chilena presentes na Corte. D. Pedro II e a família real desceram de Petrópolis para se
apresentar pela derradeira vez como majestades do Brasil. Pela manhã inauguraram, no
Caju, o Hospital São Sebastião, a tarde, ele, presidiu o Conselho de Ministros e, à noite,
se preparou adequadamente para se apresentar no baile.
O Baile da Ilha Fiscal
O Baile da Ilha Fiscal foi um grande evento, para o qual foi distribuído 3 mil convites,
sendo o palácio iluminado por milhares de velas, o que visava representar a imponência
da monarquia. O traje do Imperador naquela noite foi a invariável “casaca preta folgada” e
na lapela continha o seu “fiel carneirinho”, broche presente na maioria das fotos e
ilustrações, que representava a Ordem do Tosão de Ouro. A Imperatriz disfarçou o luto
que guardava ainda da filha com vestido de renda de Chantilly pretas, guarnecidas de
vidrilhos. O salão estava decorado com as bandeiras dos dois países.

Suas Majestades Imperiais, o conde D’Eu e a princesa Isabel retiraram-se cedo, a


uma da madrugada, “antes da ceia colossal” e, naquela noite, apenas Pedro Augusto da
família real valsou. Como outras grandes festas promovidas pela Casa Imperial toda a
pompa foi seguida a risca e cada dama recebeu um carnê contendo a seqüência de
estilos de danças, com uma vasta programação que continha “quadrilha, valsa, polca,
valsa novamente, lanceiros, valsa, quadrilha, mazurca, polca, quadrilha, valsa, lanceiros,
valsa, polca e galope”80, além de farto banquete e esmerada decoração, coroando assim
um sábado onde todos se divertiram muito.

Mesmo sem bailar, D. Pedro II ao desembarcar no Largo de São Cristóvão, de


retorno à terra firme, brincou com o médico Mota Maia depois de um tropeço: a

80
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. Teatro das Sombras. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ,
1996.
“Monarquia tropeça, mas não cai”, frase que ficou como emblema de um imperador que
pouco acreditava na crise que o rondava.

O baile, todavia, ficou conhecido nos discursos republicanos como sendo um


símbolo do final da monarquia, onde se deu orgias infindáveis, a ostentação e o luxo
incompatível para a situação política do período. Ocorreram rumores de que as Forças
Armadas teriam sido intencionalmente excluídas da lista de convidados devido aos seus
protestos à monarquia.

O Baile da Ilha Fiscal ficou parecendo uma grande confraternização dos herdeiros
do império, onde no mesmo salão estavam os liberais e conservadores, a corte e seus
barões, até mesmo o primeiro tenente da Marinha, José Augusto Vinhaes, que teve um
grande papel no golpe que destituiu a Monarquia dias depois, expressando assim uma
marca política inconfundível do Brasil, qual seja, todos são amigos no poder.

O povo, como sempre, ficou fora do baile, envoltos com seus fandangos e lundus,
coroando seus reis81.

O golpe e a posse
Deodoro, no dia 15, apenas com um regimento, entrou no Paço e depôs o Gabinete
liberal de Ouro Preto. Retornou pelas principais ruas da cidade, acompanhado por um
séqüito que se formou de militares e populares atraídos pelo movimento, que pela
passagem da cavalaria e dos adeptos deduziram os fatos.

81
SCHWARCZ, Liliam Moritz. As Barbas do Imperador: Dom Pedro II, um monarca nos trópicos. São
Paulo: Companhia das Letras. 1998. p. 455.
A falta de um ritual e de maior performance descontentou alguns colegas, que, de
pronto, organizaram manifestações e um ato público na Câmara Municipal do Rio de
Janeiro para proclamar o fim da monarquia e o advento da República. Esse grupo
composto por Aníbal Falcão, José do Patrocínio e Pardal Mallet convidaram o povo a
comparecer na Câmara Municipal, onde seria proclamada a República, hasteando uma
bandeira simbólica. Arranjada a bandeira, a comissão partiu da Rua do Ouvidor rumo à
Câmara Municipal, no Campo de Aclamação. Ali, de fato, foi proclamada a República e
hasteada a bandeira, mais tarde formou-se um enorme cortejo com muitas pessoas, que
percorreram a cidade e cantavam a Marselhesa. Às 7 horas estavam os manifestantes
em frente à casa do marechal Deodoro, onde era aclamado, assim como aos outros
chefes militares do movimento. Em frente ao povo eles declararam que estava organizado
o Governo Provisório, o qual convocaria uma Constituinte, para que assim “a Nação fosse
definitivamente liberada do governo monárquico”. Os tais atos instituidores do Governo
Provisório só foram lavrados, tarde da noite e após a adesão da Marinha de Guerra,
Deodoro supôs que tudo estava resolvido e voltou para sua casa.

Discurso inaugural da República

Tudo foi improvisado da bandeira ao discurso, da passeata ao Governo Provisório e


mesmo o discurso inaugural do novo sistema de governo:

- Concidadãos!
O Povo, o Exercito e a Armada Nacional, em prefeita comunhão de sentimentos
com os nossos concidadãos residentes nas províncias, acabam de decretar a
deposição da dinastia imperial e conseqüentemente à extinção do sistema
monárquico representativo. Como resultado imediato desta revolução nacional, de
caráter essencialmente patriótico, acaba de ser instituído um Governo Provisório,
cuja principal missão e garantir a ordem pública, a liberdade e os direitos dos
cidadãos. Para comporem esse governo, enquanto a Nação soberana, pelos seus
órgãos competentes, não proceder à escolha do governo definitivo, foram
nomeados pelo Chefe do Poder Executivo da Nação os cidadãos abaixo assinados.
Concidadãos! – O Governo Provisório, simples agente temporário da soberania
nacional e o governo da paz, da liberdade, da fraternidade e da ordem. No uso das
atribuições e faculdades extraordinárias de que se acha investido para a defesa da
integridade da Pátria e da ordem pública o Governo Provisório, por todos os meios
ao seu alcance, promete e garante a todos os habitantes do Brasil, nacionais e
estrangeiros, a segurança da vida e da propriedade, o respeito aos direitos
individuais e políticos, salvas, quando a estes, as limitações exigidas pelo bem da
Pátria e pela legítima defesa do governo proclamado pelo Povo, pelo Exercito e pela
82
Armada Nacional .

82
Apud MORAES, Evaristo de. Da Monarquia para a República (1810-1889), 2º edição. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1985. p. 86-87.
Ninguém entendia bem essa improvisação de golpe.

A grande transformação que os republicanos por mais de 18 anos haviam defendido


foi resolvida com uma monção feita às pressas na redação do jornal Cidade do Rio,
alguns Vivas à República e um cortejo de alegres moços que cantavam a Marselhesa,
hino francês, pelas ruas comerciais do Rio. A independência, mesmo após dois reinados,
parecia não ser bem entendida e a República era uma festa na cidade, mais um Cortejo.
José do Patrocínio que tanto exaltou a Princesa Isabel foi um dos primeiros a sair às ruas
comemorando e dando vivas. Sua atitude somente faz pensar como incipiente eram os
idealismos, como as essências republicanas se firmavam nas aparências e gostos por um
novo regime político.

A monarquia acabou
O Conde d’Eu, presente na Corte, foi informado por terceiros dos acontecimentos
e, mesmo deduzindo que a Monarquia não podia sobreviver nessa agitação, entendeu os
primeiros passos apenas como a imposição do exército para a troca de ministério. Relata
Alencar que após ser informado da ação do exército junto ao Ministério da Guerra, o
Príncipe Consorte disse, conformado e astuto, que “Nesse caso, a monarquia acabou” 83.

D. Pedro permaneceu as primeiras horas do ocorrido em Petrópolis, esperando a


sua deixa nessa encenação. Foi Ouro Preto que o comunicou, enquanto Deodoro
desculpava-se com seus problemas cardíacos da demora. Ao chegar na Corte, com a

83
ALENCAR, Francisco; RAMALHO, Lucia Carpi; RIBEIRO, Marcus Venicio Toledo. História da sociedade
brasileira. 15. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996, p. 173.
filha e o genro, a confusão permanecia e todos não entendiam que golpe era aquele em
que os próprios líderes desconfiavam do que haviam feito. Relatos da época afirmam que
o Imperador ao chegar no Paço havia dito: “Isso é fogo de palha, conheço os meus
patrícios” e assim negou a ajuda do Almirante Bannen, que havia disponibilizado o navio
Cochrane da Marinha Chilena.

Governo provisório e banimento do Imperador

A constituição do governo provisório foi outra novela, pois tudo foi feito de uma hora
para outra. Contudo, quando o Imperador quis negociar com Deodoro e deu a ele tempo
de se organizar melhor, então, nada mais restou a fazer do que partir. A queda de uma
coroa estava decretada e a diplomação de um presidente da República agendada.

A carta datada de 16 de novembro que postulava o banimento do Imperador foi


entregue por um oficial de baixo escalão, enquanto todos os republicanos mantiveram
longe dos olhos do Imperador, pois não havia ainda quebrado a força e a energia do ritual
que por décadas souberam cumprir.

Seguiu com ele para a Europa alguns nobre mais chegados, como André Rebouças,
o Barão de Loreto e esposa, o Barão de Mutitiba e esposa, os Condes de Aljezur e Mota
Maia, a Viscondessa de Fonseca Costa e o Sr. M. Stoll, professor dos filhos do Conde
d’Eu, além da esposa, filha, netos e genro.
Do Brasil o Imperador quis apenas levar “a mais saudosa lembrança”84 , pois nem
mesmo a pensão de 5 mil contos ele aceitou.

O Brasil conforme a maré


Pelo mar chegou Cabral e disse ter descoberto a Terra de Santa Cruz; pelo mar D.
João VI e Carlota Joaquina trouxeram a Corte e a esperança para a elite local de se
assemelhar a suas co-irmãs européias; partindo e deixando seu filho, o jovem Pedro, não
aceitando atravessar o mar, realizou o desejo da elite tropical e fez uma Corte só para si.
Um dia, também o mar, levou o 1º. Imperador, e em seu lugar um menino ficou, a beira do
cais, sem entender muito bem o que via, observando as marolas e as velas ao longe,
soube que seria o Imperador do Brasil. O mar muitas outras vezes levou e trouxe o Pedro,
agora II, vendo os cabelos desaparecer e a barba embranquecer, porém, na derradeira
vez, o mar levou e nunca mais trouxe nem Pedro nem Imperador.

Na terra, sem necessidade do mar, um outro enredo começou; homens que


provinham da terra, nascidos e criados como brasileiros, entendidos como tais, quiseram
construir um país-Nação novo e próspero. Não mais água, agora terra, a promessa de
vida dependia de um ato antropofágico85, que engolindo a si mesmo pudesse regurgitar
algo de si.

Imagens, imagens são o que ficam, já dizia Walter Benjamin86.

84
Apud MORAES, Evaristo de. Da Monarquia para a República (1810-1889), 2º edição. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1985. p. 95.
85
Antropofágico- relativo à antropofagia, que é condição, estado ou ato de antropófago; canibalismo. Var:
androfagia.
86
BENJAMIN, Walter. Sociologia. São Paulo: Atica, 1991.

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