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A reforma da Lei de Direitos Autorais:

adaptações ao contexto da sociedade


informacional
ROSANE LEAL DA SILVA
Doutora em Direito (UFSC). Mestrado em Integração Latino – Americana (UFSM).
Professora Adjunta do Curso de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito
(UFSM). Coordenadora do Núcleo de Direito Informacional (NUDI/UFSM).

LETÍCIA ALMEIDA DE LA RUE


Mestre em Direito (UFSM). Graduada em Direito (UFSM). Analista processual na
Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Sociedade informacional e repercussões no direito de autor 3 A readequação


da Lei de Direitos Autorais frente aos conflitos entre interesse público e privado na sociedade informacional
4 Conclusão 5 Referências.

RESUMO: Este artigo levanta a questão de que o caráter patrimonial e individualista


do direito de autor não encontra mais respaldo na sociedade informacional,
devendo ser pensado em harmonia com a Constituição Federal, uma vez que possui
uma função social a cumprir. A pesquisa visa analisar a reforma da Lei de Direitos
Autorais para verificar se as alterações propostas estão em consonância com as
mudanças produzidas pelo uso da internet, oportunizando um maior equilíbrio
entre direito de autor e direito à informação e à cultura. Para tanto, optou-se
por uma abordagem dialética, em razão do conflito de direitos apresentado pelo
tema, abordando-se a repercussão da sociedade informacional sobre o direito de
autor e a análise da reforma da Lei. Ao final, verificou-se que as propostas de
alteração da lei falham por não tratarem adequadamente as transformações do
direito de autor no contexto da internet.

PALAVRAS-CHAVE: Direito de Autor Função Social Sociedade Informacional


Internet Reforma da Lei de Direitos Autorais.

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A reforma da Lei de Direitos Autorais
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The reform of the Copyright Law: adaptations to the context of


informational society

CONTENTS: 1 Introduction 2 Informational society and its impacts on copyright 3


Readjustment of the Copyright Law against conflicts between public and private interest in
informational society 4 Conclusion 5 References.

ABSTRACT: This article brings up the question about the patrimonial and
individualistic character of copyright no longer finds support in the informational
society, and should be designed in harmony with the Federal Constitution, since
it has a social function to fulfill. Accordingly, the present study aims to analyze
the reform of the Copyright Law to determine whether the proposed changes
are in line with the changes produced by the use of the internet, providing a
greater balance between copyright and the right to information and culture.
Therefore, it was chosen the dialectic approach method, due to the conflict of
rights presented by the subject, dividing the article into two parts: firstly, the
impact of the informational society in copyright was verified; secondly, the law
reform was analyzed. Finally, it was found that the proposals to change the law
fail because they do not properly handle the transformations of copyright in the
context of the internet.

KEYWORDS: Copyright Social Function Informational Society Internet


Reform of The Copyright Law.

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La reforma de la Ley de Derechos de Autor: adaptaciones al contexto de la


sociedad informacional

CONTENIDO: 1 Introducción 2 Sociedad informacional y suas repercusiones en el derecho de


autor 3 El reajuste de la Ley de Derechos de Autor frente a los conflictos entre interés público
y privado en la sociedad informacional 4 Conclusión 5 Referencias

RESUMEN: En este artículo se plantea la cuestión de que el carácter patrimonial


e individualista del derecho de autor ya no encuentra apoyo en la sociedad
informacional, debiendo estar pensado en armonía con la Constitución Federal,
ya que tiene una función social que cumplir. En consecuencia, el presente estudio
tiene como objetivo analizar la reforma de la Ley de Derechos de Autor para
determinar si los cambios propuestos están en consonancia con las alteraciones
producidas por el uso de la Internet, proporcionando un mayor equilibrio entre
derecho de autor y derecho a la información y a la cultura. Por lo tanto, se optó
por un enfoque dialéctico, debido al conflicto de derechos que se presenta en
el tema, dividiéndose al artículo en dos partes: en primer lugar, se refirió al
impacto de la sociedad informacional sobre el derecho de autor; y en segundo
lugar, se realizó el análisis de la reforma legislativa. Al final, se encontró que las
propuestas de modificación de la ley fracasan por no manejar adecuadamente las
transformaciones del derecho de autor en el contexto de la Internet.

PALABRAS CLAVE: Derecho de Autor Función Social Sociedad Informacional


Internet Reforma de la Ley de Derechos de Autor.

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1 Introdução

No contexto da sociedade informacional, verifica-se que, por um lado,


boa parte do conteúdo disponível na internet é protegido pela Lei de
Direitos Autorais (BRASIL, 1998) e, por isso, sua utilização sem o pagamento de
uma contraprestação ao autor configura violação ao direito do titular da obra.
Por outro lado, a internet tem amplo potencial na difusão do conhecimento, da
informação e da cultura, em consonância com a função social que o direito de
autor deve cumprir. Nesse sentido, a discussão sobre o interesse privado do
autor em obter uma remuneração justa pelo seu trabalho e o interesse público da
sociedade de acesso à cultura e à informação tornaram-se ainda mais acirrados
com o desenvolvimento e a evolução das tecnologias informacionais iniciados
nas últimas décadas do século passado. É dentro dessa perspectiva que se verifica
a necessidade de readequar a legislação sobre o tema, de modo a buscar um
equilíbrio entre o direito de autor e o direito à informação e à cultura – todos
constitucionalmente assegurados.
Nesse sentido, o presente artigo tem por objetivo analisar a reforma da Lei
de Direitos Autorais – LDA (BRASIL, 1998), iniciada em 2007 pelo Ministério
da Cultura, de modo a responder ao seguinte problema de pesquisa: é possível
afirmar que as alterações propostas estão em consonância com as mudanças
advindas da sociedade informacional e proporcionarão equilíbrio entre os
interesses contrapostos do autor e o direito de amplo acesso à informação e à
cultura decorrentes da sociedade em rede? Para solucionar esse problema, optou-
se pela abordagem dialética, tendo em vista as colisões de direitos presentes no
tema em estudo, ao que se agregou o método de procedimento comparativo, uma
vez que constatou-se o texto da atual LDA com o Projeto de Lei elaborado a partir
das consultas públicas efetuadas sobre o tema. À luz dessa metodologia, o artigo
dividiu-se em duas partes: na primeira, abordou-se a repercussão da sociedade
informacional sobre o direito de autor; na segunda, efetuou-se a análise da
reforma da LDA, para verificar se a nova redação proposta mostra-se adequada
às mudanças provocadas pela sociedade informacional. Ao final ensaiou-se uma
tentativa de síntese, oferecendo-se resposta (ainda que provisória) ao problema
de pesquisa formulado.

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2 Sociedade informacional e repercussões no direito de autor


Castells (1999) ensina que o avanço tecnológico dos últimos anos do século
XX teve a internet como um forte aliado, tecnologia que surge como consequência
da fusão entre estratégia militar, cooperação científica, iniciativa tecnológica e
inovação contracultural. A sociedade passa, assim, da era industrial para a era da
informação. Essa transformação dá origem ao que muitos autores denominam
de sociedade da informação, termo também empregado por Manuel Castells que,
no entanto, vai além ao enfatizar o papel dinâmico que os fluxos informacionais
desempenham na sociedade em rede. Em virtude dessas características que vão
além do tratamento da informação de maneira estática, o autor se revela um dos
poucos que oferece clara distinção conceitual entre sociedade da informação e
sociedade informacional, o que justifica a transcrição literal de extensa citação,
bem como a escolha terminológica, no âmbito deste artigo, pela utilização do
termo sociedade informacional.1 Eis suas palavras:

Gostaria de fazer uma distinção analítica entre as noções de sociedade


da informação e sociedade informacional com consequências similares
para a economia da informação e economia informacional. O termo
sociedade da informação enfatiza o papel da informação na sociedade.
Mas afirmo que informação, em seu sentido mais amplo, por exemplo,
como comunicação de conhecimentos, foi crucial a todas as sociedades,
inclusive à Europa medieval, que era culturalmente estruturada e,
até certo ponto, unificada pelo escolasticismo, ou seja, no geral uma
infraestrutura intelectual (ver Southern 1995). Ao contrário, o termo
informacional indica o atributo de uma forma específica de organização
social em que a geração, o processamento e a transmissão da informação
tornam-se as fontes fundamentais de produtividade e poder devido às
novas condições tecnológicas surgidas nesse período histórico. [...] Meu
emprego dos termos sociedade informacional e economia informacional
tenta uma caracterização mais precisa das transformações atuais, além
da sensata observação de que a informação e os conhecimentos são
importantes para nossas sociedades. Porém, o conteúdo real de sociedade
informacional tem que ser determinado pela observação e pela análise
(CASTELLS, 2008, p. 64-65, grifos do autor).

Trata-se de uma sociedade na qual a emergência, o desenvolvimento e


a difusão de novas tecnologias de informação e comunicação estão na base da

1  que não significa abandonar a expressão sociedade da informação. Apenas indica que este artigo
O
abordará os fluxos informacionais a partir de uma visão dinâmica, multidimensional e complexa.

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estruturação das relações sociais e econômicas, e o conhecimento passa a ser de


imensurável valor, indispensável para o desenvolvimento econômico, tecnológico
e cultural como um todo (REIS; PIRES, 2011b). Antes dessas reconfigurações
sociais, predominavam as mídias massivas, ou seja, as mídias tradicionais,
baseadas na divulgação de informação para um público homogeneizado. Agora,
contudo, entram em cena as mídias pós-massivas – com destaque para a internet,
que possibilitam uma liberdade de expressão, memória e navegação na esfera
informacional infinitamente maior que nas mídias anteriores, propiciando novas
formas de comunicação e intercâmbio de conteúdo, exercidas de maneira ampla,
aberta e multidirecional (LEMOS; LÉVY, 2010). Nesse novo cenário, qualquer
pessoa pode produzir, distribuir e compartilhar conteúdo próprio, enriquecendo
as trocas culturais (LEMOS; LÉVY, 2010). Portanto, todo o conjunto exposto
demonstra que as tecnologias da informação e da comunicação propiciaram
imensa facilidade na produção e na difusão do conteúdo. Dentro desse contexto,
que propicia a qualquer pessoa produzir e distribuir conteúdo, bem como
simplifica o acesso a bens culturais, verifica-se que uma das áreas jurídicas que
mais tem suscitado debates é a do direito de autor.
É tutelado pela Constituição Federal – CF/88 (BRASIL, 1988), no artigo 5o,
inciso XXVII, o direito exclusivo dos autores de utilizar, publicar e reproduzir
suas obras; direito esse transmissível aos herdeiros pelo tempo previsto
em lei (BRASIL, 1988). Já a LDA (BRASIL, 1998) regula o tema no plano
infraconstitucional. O direito de autor objetiva a tutela da criação literária,
científica e artística, outorgando-se um direito exclusivo ao autor, que passa a
ser o titular da exploração econômica da obra (ASCENSÃO, 1997). Pode ser
entendido, conforme Bittar (1994, p.11), como um direito sui generis, pois não
se insere dentro da concepção clássica de direito de propriedade, uma vez que
se de desdobra em dois vínculos autônomos: o patrimonial e o pessoal ou moral.
Conforme Lemos (2011), o primeiro vínculo citado está presente no artigo
29 da LDA (BRASIL, 1988), que consiste na exploração econômica da obra, e
o segundo está indicado no artigo 24 (BRASIL, 1988) e diz respeito a direitos
pessoais, ligados à relação do autor com a elaboração de sua própria obra.
Na seara internacional, os dois tratados mais importantes são a Convenção de
Berna, a qual o Brasil aderiu em 1922 – por meio do Decreto no 75.699 (BRASIL,
1975); e o Acordo TRIPS – pelo Decreto no 1.355 (BRASIL, 1994). Dentro desse
contexto, observa-se que a internet possibilita a maior difusão das criações
artísticas, literárias e científicas, ampliando o acesso a tais bens. Contudo muito

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do que está disponível na rede hoje é protegido pelo direito de autor. Ascensão
(2011b) argumenta que passa a haver um questionamento acerca do acesso aos
conteúdos existentes na internet, sobretudo porque a cultura cada vez mais se
baseia em produtos com suporte virtual ou, ao menos, digitalizáveis, tornando-a
depositária desse acervo cultural mundial.
Desse embate jurídico surgiram, segundo Paesani (2007), duas correntes.
A primeira, mais conservadora, entende que a obra pertence exclusivamente ao
autor e todos os direitos são a ele reservados. Já a visão oposta considera que
deve haver um abrandamento dos direitos exclusivos do autor, incentivando
a livre reprodução e a difusão da obra. Assim, percebe-se uma nítida colisão
entre o direito patrimonial do autor e a possibilidade sem precedentes oferecida
pela internet para a produção e a difusão do conhecimento cultural. Portanto, a
sociedade informacional acentuou o conflito – que, embora antigo, existia em
menor escala entre o interesse privado do titular do direito sobre a obra (o autor e
às vezes também o editor) e o interesse público da coletividade em ver facilitado o
acesso a bens culturais.2 Diante desse impasse, surge um desafio: como encontrar
um equilíbrio entre o interesse do criador e o interesse da sociedade no acesso
à cultura? Tal questão tem extrema relevância pelo fato de que, com os estudos
sobre o tema, verificou-se que o direito de autor, assim como os demais direitos,
está sujeito ao cumprimento de uma função social.

2.1 A função social do direito de autor no contexto da internet


A visão clássica do direito de autor sempre se pautou pela exclusividade
do criador sobre sua obra. Contudo esse entendimento não encontra mais
lugar no contexto atual. O fato de as tecnologias da informação e comunicação
terem impulsionado a circulação de bens culturais, de uma maneira até pouco
tempo inimaginável, fez com que se repensasse a concepção desse direito como

2  Constituição Federal (BRASIL, 1988), ao lado da tutela concedida aos direitos de autor, também
A
confere especial proteção ao direito à cultura. Nesse aspecto, José Afonso da Silva (2009, p. 838)
afirma que a Constituição de 1988 “deu relevante importância à cultura, tomado esse termo
em sentido abrangente da formação educacional do povo, expressões criadoras da pessoa e das
projeções do espírito humano materializadas em suportes expressivos, portadores de referências
à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, que se
exprimem por vários dos seus artigos (5o, IX, 23, III a V, 24, VII a IX, 30, IX, e 205 a 217), formando
aquilo que se denomina ordem constitucional da cultura, ou constituição cultural, constituída
pelo conjunto de normas que contêm referências culturais e disposições consubstanciadoras dos
direitos sociais relativos à educação e à cultura”.

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algo absoluto, sujeito às vontades e aos caprichos do autor. No paradigma do


Estado Democrático de Direito, toma corpo a chamada constitucionalização
do direito privado. Esse fenômeno, que se dá com a passagem da Constituição
(BRASIL, 1988) para o centro do sistema jurídico, teve início no Brasil com a
redemocratização do País, por ocasião da promulgação da CF/88. A partir daí, a
Constituição passa a desfrutar não apenas de supremacia formal, mas também de
supremacia material, exibindo força normativa e funcionando não somente como
parâmetro de validade para a ordem infraconstitucional, mas também como vetor
de interpretação para as demais normas do sistema. A Constituição passa a ser
um modo de olhar e interpretar os demais ramos do Direito, e a ordem jurídica
passa a ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, buscando a realização
dos valores nela consagrados (BARROSO, 2010).
Nesse sentido, com a reconfiguração do Direito Privado, o direito de
autor, antes visto como absoluto, passa, num contexto civil-constitucional, por
transformações que demonstram a importância de estar em harmonia com
interesses sociais e outros direitos fundamentais. Assim, existe tanto a necessidade
de proteger as criações intelectuais – como forma de reconhecer e remunerar o
criador pela sua obra, inclusive incentivando-o a novas criações –, quanto a de
promover a sua função social – motivo pelo qual tal direito deve sofrer restrições
sempre que servir de empecilhos à concretização de outros direitos, como o de
acesso à informação e à cultura. Em outras palavras, a proteção concedida pelo
ordenamento jurídico ao autor não deve ser incondicional, mas sim balizada, de
modo a tutelar o exercício de outros direitos fundamentais garantidos na CF/88.
Carboni (2008) entende que o direito de autor tem como função social a
promoção do desenvolvimento econômico, cultural e tecnológico, por meio da
concessão de um direito exclusivo para a utilização e a exploração de determinadas
obras intelectuais por certo prazo. Ainda segundo o autor (CARBONI, 2008), a
função social visa corrigir distorções, excessos e abusos praticados por particulares
ao fazerem uso desse direito, de forma a garantir que o interesse coletivo sobre o
desenvolvimento cultural e tecnológico possa, em determinados casos, se sobrepor
ao interesse individual do autor. É nesse sentido que existem as limitações aos

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direitos de autor,3 situações taxativamente previstas na LDA, nos artigos 46 a 48,


em que a obra pode ser livremente utilizada, mesmo sem autorização do detentor
dos direitos, de modo a garantir um equilíbrio entre os interesses do autor e a
proteção a outros direitos, como a liberdade de expressão artística, intelectual,
científica e de comunicação, o acesso à informação e às fontes de cultura nacional,
dentro de outros valores, todos garantidos constitucionalmente (LEMOS, 2011).
Conforme Ascensão (1997), as limitações abrangem tudo aquilo que impede que
o direito de autor tenha caráter absoluto, marcando assim espaços de liberdade
que devem ser preservados em prol do interesse coletivo (ASCENSÃO, 2011a).
De toda sorte, um importante dispositivo previsto no art. 9o, II, da Convenção
de Berna (BRASIL, 1975), estabelece que as limitações previstas pelos países
devem respeitar a regra dos três passos, que dispõe: (a) podem ser previstas
exceções em casos especiais; (b) desde que a reprodução, nesses casos, não
prejudique a exploração normal da obra; (c) nem cause um prejuízo injustificado
aos legítimos interesses do autor (LEMOS, 2011). De acordo com Basso (2007),
essa norma geral da Convenção serve de base para todas as limitações aos direitos
de propriedade intelectual previstos nos tratados e nas convenções internacionais
posteriores e também nas legislações internas de cada país. Contudo as
limitações expressas na LDA são criticadas por serem umas das mais restritivas
do mundo. Assim, o que se observa é que o viés patrimonial-individualista, que
historicamente permeou o Direito Privado, ainda se encontra bastante arraigado
no direito de autor brasileiro (REIS; PIRES, 2011a). Por tudo isto, a atual LDA,
embora prevendo algumas limitações ao direito exclusivo do autor, ainda serve
de entrave à consecução de um direito funcionalizado, tendo em vista seu caráter
essencialmente protecionista (REIS; PIRES, 2011a).
Para Reis e Pires (2011a), socializar o conhecimento é uma das bases para
inovar e, consequentemente, construir outros saberes. Assim sendo, do ponto de
vista social, a internet revela-se extremamente valiosa para o compartilhamento de
bens intelectuais, que constituem fontes de conhecimento. O acesso a tais fontes
é requisito essencial para a promoção do desenvolvimento cultural, econômico

3 Exemplos de limitações ao direito de autor previstas no artigo 46 da LDA são: a) a informação


em si, por meio da reprodução de notícias (inciso I, a); b) a reprodução na imprensa de discursos
pronunciados em reuniões públicas (inciso I, b); c) a reprodução de obras, sem fins comerciais,
feita mediante o sistema Braille, para uso exclusivo de deficientes visuais (inciso I, d); d) a
reprodução de pequenos trechos, para uso do copista, desde que sem intuito de lucro (inciso II);
e e) a citação de passagens de qualquer obra para fins de estudo, crítica ou polêmica (inciso III)
(BRASIL, 1998).

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e tecnológico de uma sociedade. Observa-se, portanto, que a atual LDA não está
de acordo com a função social que o direito de autor deve ter, uma vez que o
caráter restritivo e individualista da lei vai de encontro a ideais democráticos
expressos na Constituição, como o acesso à educação e à cultura. Krestchmann
(2011) argumenta que, ao se observar o rol de limitações, percebe-se que elas
foram criadas muito mais para reforçar o direito do autor ou do titular do que
para efetivamente possibilitar um equilíbrio entre o justo interesse privado dos
criadores e o interesse público da sociedade. O conflito de interesses torna-se
ainda mais acirrado quando se trata da difusão de obras na internet. Afinal, é
notório que boa parte das atitudes adotadas pelos internautas desafia as regras
clássicas de direito de autor, especialmente quando são compartilhados arquivos,
a partir do download de livros, filmes, músicas, ou realizados remix a partir de
obras de terceiros. Todavia, critica-se o fato de o Brasil, um país no qual não há
compatibilidade entre a renda da população e o preço dos livros, possuir uma
legislação que proíbe a cópia ou a digitalização para uso educacional ou científico,
prejudicando o acesso a recursos educacionais, elemento fundamental para
desenvolver a qualificação profissional (LEMOS, 2011).
Diante disso, o problema enfrentado pela sociedade contemporânea é que as
atuais limitações da LDA pátria não se coadunam mais com a realidade advinda
da internet. Se, por um lado, a internet auxilia no cumprimento da função social
do direito de autor na medida em que facilita a circulação da informação, por
outro lado essa facilidade vem muitas vezes acompanhada de violação ao direito
patrimonial do detentor da obra. Wachowicz (2011) resume bem a questão,
apontando o paradoxo existente no fato de que a sociedade informacional
se estrutura a partir do primado da liberdade de informação em favor da
disseminação do conhecimento e da cultura. Afinal, apenas pode haver uma
sociedade informacional se existir garantia de liberdade de acesso à informação.
No entanto, o sistema de tutela jurídica dos bens intelectuais somente se justifica
pela concessão de um direito exclusivo ao autor. Surge assim um conflito de
direitos, na medida em que boa parte do conteúdo disponível na rede é protegido
por leis de direitos de autor. Em suma, embora boa parte das atitudes dos
internautas configure violação de direitos de autor, a divulgação massiva de bens
culturais contribui como nunca antes para cumprir a função social desse direito,
propiciando de maneira ampla e facilitada o acesso à informação, à educação e à
cultura. É dentro dessa perspectiva que o conflito deve ser trabalhado, no intuito
de buscar o balanceamento entre dois interesses antagônicos.

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Lemos (2011) refere que é imperioso que se façam adaptações na atual


lei de direitos de autor para adequá-la à sociedade informacional, à crescente
digitalização de conteúdos e às atuais práticas sociais. Atitudes como copiar em
um blog um texto encontrado na internet; buscar uma imagem na rede e inseri-
la numa apresentação de Power Point; gravar no MP3 Player o conteúdo de um
CD adquirido; colocar uma música disponível numa rede de compartilhamento
peer-to-peer (P2P)4 podem ser consideradas legais por boa parte da sociedade,
de tão corriqueiras que são. No entanto, de acordo com a lei, nenhuma dessas
condutas é permitida. Por isso, o autor alerta que “[...] em um contexto em que
grande parte da população age de forma contrária à lei, é preciso que haja um
debate franco sobre o descompasso entre o direito e a sociedade” (2011, p. 73).
E, nesse contexto, Palfrey e Gasser (2011) destacam que a contínua violação a
direitos de autor por parte dos internautas decorre muitas vezes da ausência de
conhecimento acerca das leis que regulam a propriedade intelectual, afirmando
que boa parte dos usuários da internet acredita que as formas de cópia privada e
não comercial de obras protegidas por direitos de autor é ou ao menos deveria
ser permitida. Por exemplo, Souza e Castro (2011) mencionam que, embora
parte da doutrina considere que o compartilhamento de arquivos via rede peer-
to-peer configura violação a direitos de autor, existe uma parte significativa da
sociedade que entende que a utilização desses mecanismos, sem finalidade
lucrativa, representa a mera circulação livre de informação, o que não poderia ser
controlado ou taxado.
Desse modo, tem-se verificado que a atual legislação brasileira se afigura
insuficiente frente às transformações propiciadas pela sociedade informacional.
Afinal, é evidente que o direito de autor acaba se tornando um óbice à difusão
dos bens culturais, motivo pelo qual a legislação não se encontra mais em sintonia
com a realidade atual.

[...] por meio de uma interpretação literal do regime atual de direitos


autorais, qualquer usuário de internet pode ser transformado em um
potencial infrator de direitos ou ainda, de maneira mais drástica, em um
potencial criminoso (REIS; PIRES, 2011b, p. 322).

4 Peer-to-peer é “uma tecnologia aonde dados são distribuídos sem que haja um servidor central
para onde todos devem enviar seus dados e de onde os dados são obtidos, como no caso do
e-mail e da www. Na prática, todos os usuários de um sistema de peer-to-peer – que significa
ponto-a-ponto ou parceiro-a-parceiro – atuam como clientes – receptores – e como servidores –
transmissores – de dados” (LESSIG, 2004, p. 37).

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Nesse contexto, Palfrey e Grasser (2011) lecionam que uma das lições do
passado recente é que é improvável que a ampliação das restrições previstas
em lei seja uma resposta convincente aos desafios apresentados pela tecnologia
digital. Nesse caso específico, as normas legais existentes estão desconectadas
de normas sociais poderosas, como no caso do compartilhamento de arquivos.
Contudo, alertam os autores, ainda mais perigosas do que regras ultrapassadas
são novas regras inadequadas. É por isso que qualquer mudança na legislação
autoral deve ser pensada com muito cuidado, especialmente quanto às limitações,
porquanto são elas que vão determinar o quão restritiva ou não será a lei e o quão
adaptada estará ao ambiente digital, conforme se demonstrará a seguir.

3 A readequação da Lei de Direitos Autorais frente aos conflitos


entre interesse público e privado na sociedade informacional
O Ministério da Cultura iniciou, em 2007, um debate acerca da revisão
da Lei no 9.610 (BRASIL, 1998), proposta que vem inserta no contexto de
transformações pelas quais a sociedade passou nos últimos anos, em especial
pelo surgimento da internet. O conflito entre o interesse público de acesso à
cultura e o interesse patrimonial do autor revelou-se ainda mais marcante com
as possibilidades trazidas pela sociedade informacional, o que acentuou o embate
e apontou para a necessidade de aproximar a legislação do seu caráter social, na
tentativa de obter a conciliação entre direitos antagônicos. Por exemplo, no rol das
limitações aos direitos de autor não se encontra a permissão para realizar cópia
integral de obra legitimamente adquirida. Em outras palavras, a lei não autoriza
que determinada pessoa que tenha adquirido de maneira legítima um CD possa
copiar o seu conteúdo para um tocador de MP3. Outro tema bastante polêmico
e não contemplado na LDA é compartilhamento de arquivos/redes peer-to-peer.
Configura-se necessária, portanto, uma ampliação das limitações do direito de
autor, buscando-se sua adequação ao contexto da sociedade informacional, para
assegurar a efetividade da função social do autor, uma vez que as atuais exceções
mostram-se insuficientes para a busca do equilíbrio entre direitos.
Iniciou-se no âmbito do Ministério da Cultura, em 2007, a discussão acerca
da reforma da atual Lei no 9.610 (BRASIL, 1998). Entre dezembro de 2007 e
setembro de 2009, esse Ministério promoveu a realização de debates públicos
cujas contribuições resultaram na minuta de anteprojeto de lei. Essa proposta
foi objeto de consulta pública em plataforma online realizada entre 14 de junho

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e 31 de agosto de 2010. Com a conclusão da consulta pública, o Ministério da


Cultura consolidou as contribuições apresentadas e encaminhou o texto final à
Casa Civil da Presidência da República, o que ocorreu em dezembro de 2010.
Em janeiro de 2011, revisou-se o anteprojeto e novamente encaminhou-se para
consulta pública, ocorrida entre 25 de abril e 30 de maio de 2011. Todavia dessa
vez não se utilizou uma plataforma online que permitisse a imediata divulgação
dos comentários, disponibilizando-se formulários prontos que deveriam ser
preenchidos e encaminhados ao Ministério, cujo conteúdo publicizou-se apenas
após o encerramento da consulta. Ultimada essa etapa, elaborou-se nova versão
do anteprojeto de lei. A partir das proposições mencionadas, elaborou-se o
Projeto de Lei no 3.133 (BRASIL, 2012), que tramita na Câmara dos Deputados, o
qual foi objeto de análise no sentido de verificar os rumos que esse processo está
seguindo. Esse será o percurso percorrido no próximo tópico.

3.1 A reforma da Lei de Direitos Autorais: avanços e retrocessos


A análise da reforma da Lei de Direitos Autorais abordará especificamente o
Capítulo IV que, tanto no Projeto de Lei quanto na Lei no 9.610 (BRASIL, 1998),
trata das limitações aos direitos de autor, o que será feito com o objetivo de
verificar se as modificações revelam avanços na adequação da lei com a realidade
tecnológica atual e, em consequência, com a concretização da função social do
direito de autor.5 O caput do artigo 46 do Projeto de Lei dispõe expressamente
que as limitações configuram casos nos quais a utilização da obra dispensa a
autorização do titular e a necessidade de remuneração por parte de quem as utiliza
(BRASIL, 2012), o que não consta na normativa atual. Essa alteração revela-se
de fundamental importância, uma vez que, ao deixar expressa a dispensa de
autorização e remuneração – características inerentes ao próprio conceito de
limitações –, afasta as dúvidas existentes nesse ponto.
Como o inciso I trata genericamente da cópia integral para uso privado e não
comercial, o inciso II refere-se, especificamente, à possibilidade de transferir o
conteúdo de um exemplar ou arquivo digital para outro formato ou dispositivo,
a fim de garantir a portabilidade ou a interoperabilidade da obra, desde que para

5 O atual artigo 46 possui oito incisos. No Projeto de Lei, o artigo 46 passa a contar com dezoito
incisos e dois parágrafos. Nesse sentido, a fim de abordar as mudanças propostas nos anteprojetos
de lei, analisar-se-ão o caput do artigo 46 e os incisos I, II, III, IV, VI, VIII, IX, XIII, XVII, XVIII,
bem como o parágrafo segundo, porquanto são os dispositivos que passaram por alterações e
possuem relevância no contexto da sociedade informacional (BRASIL, 2012).

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A reforma da Lei de Direitos Autorais
270

uso privado e não comercial (BRASIL, 2012). Essa possibilidade está em plena
consonância com as facilidades trazidas pelas tecnologias digitais. Outro impacto
lembrado pela doutrina é no setor educacional, na medida em que autoriza a
cópia de um livro para uso privado e não comercial. Atualmente a maior parte
da doutrina considera a redação atual da LDA ultrapassada no que tange à cópia
privada e para uso não comercial, pois é totalmente restritiva na admissão da
reprodução de uma obra, impondo diversas condicionantes e permitindo somente
a cópia de pequenos trechos. Segundo Ascensão (2011a, p. 23), a redação da lei
“[...] não é compatível com a difusão da cultura, nem tem que ver com os objetivos
do direito do autor”. Inclusive, a introdução desse inciso na atual LDA mostrou-se
um retrocesso, uma vez que a normativa anterior, Lei no 5.988 (BRASIL, 1973),
permitia a reprodução de um exemplar inteiro, feito pelo próprio copista, para
uso próprio e sem fins lucrativos. No Projeto de Lei (BRASIL, 2012), eliminou-
se a expressão pequenos trechos existente na lei atual, autorizando assim a cópia
integral de um exemplar. Ademais, a inclusão da expressão por qualquer meio
ou processo possui o mérito de abranger a reprodução digital, o que se mostra
coerente com os avanços tecnológicos.
Criticam-se as exigências inseridas tanto no inciso I quanto no II, que
determinam que a obra seja legitimamente adquirida. Ascensão (2011c) censura
severamente essas expressões do Projeto de Lei (BRASIL, 2012), uma vez que
entende que elas não se relacionam com a cópia para uso privado. O que interessa,
em última análise, é que a cópia seja feita para uso privado, independentemente
do modo de aquisição da obra que foi copiada. A obtenção da obra originária de
forma ilegítima interessa apenas para fins de repressão desse ato de aquisição
ou publicação, não tendo relação com o fato de terem sido feitas cópias privadas
da obra. Assim, Ascensão (2011a) entende que, em vez de estabelecer diversas
condicionantes para o uso privado da obra, seria mais adequado que a lei fizesse
um reconhecimento genérico da licitude do uso privado. Isso porque quem faz
uso privado está fora do âmbito do direito de autor, uma vez que não efetua
exploração econômica da obra.
Por sua vez, os incisos III e IV (BRASIL, 2012) tratam das limitações ao
direito de autor que visam a garantir o livre exercício da imprensa. Equivalem
ao inciso I, alíneas a e b da atual LDA (BRASIL, 1998). O inciso III do Projeto
de Lei prevê ser livre a reprodução na imprensa, ou em qualquer outro meio
de comunicação, de notícias ou artigos informativos, publicados em diários ou
periódicos. O inciso IV prevê ser livre também a utilização na imprensa, ou em

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271

qualquer outro meio de comunicação, de discursos públicos ou de qualquer


obra, quando for justificado e, na extensão necessária, para cumprir o dever de
informar (BRASIL, 2012). A utilização da expressão em qualquer outro meio de
comunicação mostra-se positiva, uma vez que abre a possibilidade de inclusão
de veículos digitais, a exemplo de blogs, no alcance da norma. Da mesma forma,
a inclusão da expressão de qualquer obra, quando for justificada e na extensão
necessária para cumprir o dever de informar sobre fatos noticiosos (BRASIL, 2012,
grifo nosso) resultou adequada, uma vez que a redação amplia a possibilidade
de reprodução de obras quando houver a necessidade de noticiar. Essa previsão
está em consonância com o acesso à informação e com as novas tecnologias, que
disponibilizam notícias em formatos pouco tradicionais. Coaduna-se também
com a regra dos três passos, uma vez que versa sobre situação especial em que
não há prejuízo à exploração da obra ou ao seu autor, já que se trata apenas de
reprodução com caráter informativo.
O inciso VI refere-se à possibilidade de comunicação pública de obras, tais
como a representação teatral, a declamação, a exibição audiovisual ou a execução
musical, sem intuito de lucro e de forma gratuita e ocorridas no recesso familiar
ou em estabelecimentos de ensino (BRASIL, 2012). A nova redação, de maneira
positiva, amplia as possibilidades em relação à redação atual, que só autoriza
a representação teatral e a execução musical. Assim, práticas cotidianas dos
professores, como exibição de filmes e músicas aos alunos, estariam amparadas
pela lei, permitindo-se inclusive o uso das tecnologias digitais para comunicação
de tais obras aos alunos. Versa o inciso VIII sobre a incorporação de obras já
existentes em novas criações (BRASIL, 2012). O Relatório de Análise das
Contribuições ao Anteprojeto de Modernização da Lei de Direitos Autorais
(BRASIL, 2013) esclarece que essa limitação possibilita o uso transformativo de
obras que são assimiladas em novas criações e transformadas, compondo uma
obra inédita e substancialmente distinta da obra primígena. É o caso de criações
como remixes e mash-ups. Do mesmo modo, possibilitam o uso não proposital e
incidental de uma obra em outra (por exemplo no caso de gravações de imagem
ou depoimentos, nos quais uma música é captada acidentalmente ao fundo).
Outra importante inovação proposta diz respeito à ampliação da
acessibilidade de pessoas com deficiência aos bens culturais, prevista no inciso
IX. Na legislação atual, cuja previsão encontra-se no inciso I, alínea d, somente
é regulado o acesso às pessoas que apresentam problemas visuais, ao passo que
as propostas mostram-se mais alinhadas com os valores de uma sociedade mais

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A reforma da Lei de Direitos Autorais
272

justa e solidária. Ao assim dispor, esses dispositivos também evidenciam que


o Brasil respeita a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, da qual é signatário, conforme o Decreto no 6.949 (BRASIL, 2009),
buscando assim promover o amplo acesso desses sujeitos aos bens culturais.
No entanto, essa proposta também não se mostra totalmente isenta de críticas,
uma vez que a redação estabelece que não pode haver fim comercial/intuito
de lucro direto ou indireto na reprodução de obras destinadas a esse público.
Ora, seguindo o raciocínio apresentado por Wachowicz et al. (2011, p. 64), essa
exigência inviabiliza a própria disponibilização do material em outros formatos,
pois “sabe-se que a adaptação de uma obra escrita para o braile, por exemplo, é
muito custosa, assim dificilmente haveria interesse em promover tal adaptação
de forma totalmente gratuita”. Ademais, entende-se que as tecnologias digitais
permitem a divulgação das obras em diversos formatos que podem ser acessíveis
à parcela da população que possui algum tipo de deficiência, de modo que a
inclusão dessa restrição confronta com a possibilidade de levar, por um meio
mais prático, criações intelectuais a pessoas com deficiência.
Verifica-se que o inciso XIII abarca uma previsão inexistente na atual LDA
(BRASIL, 2012): permite que bibliotecas e demais instituições museológicas
realizem a reprodução de obras a fim de garantir a sua conservação e seu
arquivamento, desde que sem finalidade comercial. Por exemplo, a atual lei não
permite a cópia de segurança para preservação de obras, o que pode ocasionar
sérios prejuízos à memória cultural brasileira. O inciso XVII contempla outra
inovação das propostas. De acordo com o Relatório (BRASIL, 2013), o inciso
tem como objetivo franquear a consulta a coleções que integram os acervos de
bibliotecas, arquivos e instituições museológicas e, em conjunto com o inciso
XIII, permitirá maior acesso ao patrimônio cultural brasileiro. Não se trata aqui
de liberar na internet arquivos digitais de obras protegidas, mas sim de colocar à
disposição do público do acervo dessas instituições por meio de redes fechadas.
Outra importante questão está relacionada à redação do inciso XVIII.
Conforme o Relatório (BRASIL, 2013), esse dispositivo tem como objetivo
permitir a reprodução, sem finalidade comercial, de obra literária, fonograma
ou obra audiovisual que estejam esgotadas, de modo a evitar que o desinteresse
econômico na distribuição de uma obra impeça o seu acesso. Outro aspecto
positivo é que incluiu-se a reprodução por meios digitais. O parágrafo segundo
do Projeto de Lei – também inovação em relação à lei atual – traz uma cláusula
geral baseada na regra dos três passos da Convenção de Berna (BRASIL, 1975),

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Rosane Leal da Silva e Letícia Almeida de La Rue
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que permite a adequação das limitações em outros casos. Prevê que não constitui
ofensa aos direitos autorais a reprodução, a distribuição e a comunicação ao público
de obras protegidas, dispensando-se inclusive a prévia e expressa autorização do
titular e a necessidade de remuneração por parte de quem as utilizada quando
a utilização for para fins educacionais, didáticos, informativos, de pesquisa ou
para uso como recurso criativo. Para tanto, a utilização deve ser feita na medida
justificada para o fim a se atingir, sem prejudicar a exploração normal da obra
utilizada e nem causar prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores
(BRASIL, 2012). Essa alteração revela-se positiva ao permitir maior flexibilidade
ao rol fechado da atual LDA. Outro aspecto positivo é que não condiciona o uso
livre das obras à autorização do Poder Judiciário, evitando uma judicialização
desnecessária da questão. Numa época em que se buscam meios alternativos
de resolução de conflitos de modo a desafogar o Poder Judiciário, o Projeto
de Lei coaduna-se a essa tendência, por diminuir a burocracia e propiciar uma
adaptação ao contexto dinâmico da internet. Nesse sentido, o Projeto de Lei
apresenta maior dinamicidade em relação à atual normativa, permitindo uma
adaptação das limitações do direito de autor ao constante e cada vez mais rápido
desenvolvimento tecnológico. Ascensão (2011c) corrobora o entendimento,
aduzindo que a complementação das restrições elencadas no artigo por meio de
uma cláusula geral inspirada na regra dos três passos permite a maleabilidade das
limitações, algo muito necessário quando estão em discussão questões impactadas
pelo desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação.

4 Conclusão
Conforme o viés clássico da legislação, de caráter patrimonial e individualista,
o direito de autor deveria ser entendido como absoluto e, portanto, restringido
somente em casos excepcionais. Contudo essa concepção não encontra mais
espaço na atualidade, uma vez que, no paradigma do Estado Democrático de
Direito, passou-se a entender que o direito de autor possui uma função social
que lhe é inerente, em consonância com os valores e os princípios irradiados da
Constituição Federal (BRASIL, 1988).
A sociedade informacional abriu imensas possibilidades para produção,
transmissão e compartilhamento de bens culturais, contribuindo com a promoção
do desenvolvimento econômico, tecnológico e cultural, e possibilitando assim
concretizar a função social do direito de autor. Nada obstante, a lei atual é

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A reforma da Lei de Direitos Autorais
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desatualizada e classifica como violação ao direito de autor praticamente


qualquer atitude relacionada ao uso de um bem cultural feito por um internauta.
Assim, afigura-se necessária a alteração legislativa para harmonizar o interesse
econômico do autor com o interesse público de acesso à cultura e à informação,
de maneira a aproximar o texto legal da realidade da sociedade em rede. Nesse
sentido, é extremamente positiva e necessária a reforma da Lei de Direitos
Autorais (BRASIL, 1998), cujas propostas de revisão, abertas para consulta
pública em 2010 e 2011, deram visibilidade ao debate e possibilitaram, de
maneira bastante promissora, a participação dos cidadãos na construção de um
Projeto de Lei (BRASIL, 2012) mais adequado à realidade social, contribuindo
com o fortalecimento do processo democrático no País.
Todavia o que se percebe é que o Projeto de Lei peca ao não instigar o debate
relativo às transformações advindas da internet e as consequentes mudanças
acarretadas no direito de autor. Isso porque, da análise desse Projeto, percebe-
se sua omissão em regulamentar tais questões, uma vez que poucos dispositivos
tratam diretamente do tema. Embora as alterações ampliem os usos livres em
relação à atual LDA, não versam especificamente sobre temas que interessam à
sociedade em rede. Merece ser criticada a omissão no que diz respeito a buscar a
regulamentação do tema no ambiente digital, o que impede a plena funcionalidade
do direito de autor. Persistindo-se nesse caminho, prosseguirá a contradição
existente entre a realidade das práticas tecnológicas da sociedade e o texto legal.
Destaque-se que o Projeto de Lei (BRASIL, 2012) é omisso em tratar da
questão do compartilhamento de arquivos/redes P2P. Contudo a popularização
e a utilização massiva por parte dos usuários da internet desse modelo revela a
urgência de uma regulamentação. Ainda que se afigure difícil elaborar um modelo
normativo que concilie os interesses dos autores e dos internautas, as propostas
sequer colocaram esse aspecto em discussão. Submeter a questão nas consultas
públicas poderia ter sido um primeiro passo na tentativa de encontrar caminhos
para regulamentar a troca de arquivos digitais.
Outro ponto não contemplado foi a digitalização de acervos de bens culturais,
a fim de preservar o patrimônio histórico-cultural de um determinado país ou
comunidade. O inciso XIII, ainda que trate da questão da reprodução de obras
para fins de preservação, não dispõe expressamente que é permitida a sua
digitalização, o que pode ocasionar diversos embates jurídicos posteriormente.
A previsão do inciso XVII acerca da colocação à disposição do público dos
acervos de bibliotecas e instituições análogas por meio de redes fechadas é

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Rosane Leal da Silva e Letícia Almeida de La Rue
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positiva. Contudo, mais do que essa previsão, seria interessante que fosse aberto
o debate acerca do empréstimo de exemplares digitais de obras de bibliotecas.
Por exemplo: para a educação a distância, o empréstimo de livros em formato
digital é extremamente relevante. Não se pode desconsiderar que a tendência do
livro digital é crescente, e a possibilidade de bibliotecas emprestarem materiais
em formato digital é uma boa maneira de ampliar o acesso a bens culturais.
Entende-se relevante a previsão sobre intercâmbio de material digitalizado entre
bibliotecas, a fim de ampliar o material disponível para consulta e possibilitar
que obras inacessíveis numa instituição possam ser disponibilizadas por outra.
Isso reduziria desigualdades regionais, ao permitir o acesso a livros disponíveis
somente num determinado local.
Positiva é a inclusão, nos incisos III e IV, que tratam do livre exercício
da imprensa, da expressão em qualquer outro meio de comunicação, de modo a
permitir que blogs ou outros sites que não sejam essencialmente jornalísticos, mas
que também veiculam informações a título ilustrativo, de crítica ou de pesquisa
acadêmica estejam abarcados pelo manto da proteção legal. Outro avanço foi a
inserção do parágrafo segundo no Projeto de Lei, cuja cláusula aberta se coaduna
com a flexibilidade necessária imposta pela internet na interpretação das leis,
porquanto no ambiente digital as alterações e as novidades são constantes e
cada vez mais céleres, exigindo uma legislação dinâmica. Uma lei que contemple
limitações de forma restrita e fechada dificilmente será adaptável à velocidade
do mundo digital. Já a cláusula aberta, tendência das legislações elaboradas nos
últimos anos, permite averiguar cada caso concreto, realizando a ponderação
entre o interesse privado e o interesse público. Essa ponderação é absolutamente
necessária a fim de verificar se deve preponderar o direito do autor ou o direito
de acesso à cultura por parte dos cidadãos.
Entende-se que a harmonização desses direitos em colisão pode ser obtida por
meio da elaboração de legislação que reconheça e respeite as rápidas e constantes
mudanças propiciadas pela sociedade informacional. Essa lei deve se mostrar
flexível e dotada de cláusula geral que inclua a cláusula dos três passos, essencial
para responder as novas questões decorrentes das mudanças tecnológicas. A
adoção desse modelo permitirá que a nova lei não somente responda de maneira
mais adequada aos conflitos envolvendo a propriedade intelectual em tempos
de internet, como também harmonize interesses atualmente contrapostos, já
que o exame do caso concreto oferece os contornos para atingir a desejável
funcionalização dos direitos do autor. Portanto, ainda que o atual Projeto de Lei

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A reforma da Lei de Direitos Autorais
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seja aprovado (o que por ora é apenas uma hipótese), suas insuficiências estão
apontando que o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer para adequar os
direitos de autor ao ritmo da sociedade informacional.

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