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PRÓLOGO

Minha irmã havia saído para uma festa no sábado. Hoje era quarta-feira,
fazia cinco dias que ela estava desaparecida!

Ela saiu para celebrar com seus amigos porque tinha sido aceita na
universidade. Saíra à noite, às 20:00, prometendo ao nosso pai que estaria
de volta até as 23:30, no máximo. Papai não ficou contente com a ideia,
mas no final, cedeu após ser conquistado pelo charme dela. Ela estava
bonita, usando uma saia brilhante e seu cabelo trançado, como de costume,
combinado com uma blusa preta simples sob uma jaqueta pesada. Nos pés,
seus adorados coturnos tratorados.

Ela passou pelo meu quarto e entrou sem bater na porta. Eu, Emma, Orion,
Kai e Luna estávamos esparramados pelo carpete do meu quarto em volta de
livros e tudo que um estudante de ensino médio precisaria saber para começar
o segundo ano da escola. Ela puxou minha orelha e disse que não era para
mim ir dormir tarde e que se ela chegasse e estivéssemos acordados, ela
contaria aos pais de todos. Foi uma ameaça engraçada porque logo em
seguida beijou o topo de nossas cabeças e saiu pela porta. Foi a última vez
que a vi.

Minha irmã foi encontrada na reserva por Talon Onelasa na quarta-feira,


14 de agosto, às 05:28 da manhã. As autoridades foram chamadas, e a
família da vítima para identificar o corpo.

Vítima: minha irmã era um ser humano, com sonhos e ambições, uma
menina de boa índole que nunca deu trabalho algum para os nossos pais.
Saía pouco, mas não dava a mínima como as outras garotas para sua vida
social. Aos 19 anos, só tinha o sonho de se tornar bióloga e orgulhar o
nosso clã.
Meu pai não permitiu que minha mãe fosse. Talon era amigo há anos da
família; seus filhos cresceram conosco. Era óbvio que ele sabia reconhecer
minha irmã. Eu ouvi quando ele falou ao telefone com meu pai.

"Traga somente Cyrus, não venha com Ayana. Ela não vai ficar
bem. Diga a Cyrus que venha preparado para tudo. Nossa
menininha, Makaio, é uma tragédia!"

Foi a última coisa que ele disse antes de desligar a chamada com meu pai.
Logo, entramos na caminhonete e fomos até o local na reserva Flathead.
No meio das árvores e terra molhada pela chuva do dia anterior, estavam
as fitas amarelas da polícia local sinalizando o crime cometido.

— Quem são vocês? — Um policial perguntou, claramente ele não era


local, talvez vindo de outro condado. Todos na cidade sabiam quem eram
os Lahote.

— Eu sou o pai de Pandora Lahote, ela é minha filha! — Meu pai


informou ao policial. Eles discutiam calorosamente sobre algo relacionado
a parentes ou qualquer pessoa que pudesse vê-la.

A garoa começou a cair do céu novamente, fazendo-me erguer o capuz do


meu casaco sobre a cabeça. Olhando através da faixa amarela, tudo parecia
nebuloso. Meu pai já não mantinha uma conversa civilizada; sua voz
começava a se elevar enquanto discutia com os dois policiais.

Eu me afastei deles, observando as raízes cortadas perto das bases das


árvores. Não pareciam cortes de facas ou alguém tentando colher raízes
para algo; pareciam cortes feitos por garras. Enquanto um dos policiais
saía de trás da fita para conter meu pai, aproveitei a distração e deslizei por
baixo da linha das autoridades.

Corri sem me importar se iria cair no chão pelo barro lamacento estar
deslizante ou pelo musgo perto das árvores que se espalhavam pelo
caminho. Algumas pessoas tentaram me conter, um dos policias até mesmo
colocou a mão em mim.

Pandora Lahote, 19 anos, filha de Makaio Lahote e Ayana Lahote, irmã


mais velha de Cyrus Lahote e Luna Araruna, tinha sonhos e desejos. Seu
nome nativo em nossa tribo era Pavati, "águas claras", um rio que sempre
fluiu calmo. Nunca teve inimigos, tinha poucos amigos e era a menina
mais doce e gentil que eu conheceria em toda a minha existência.

Minha irmã estava nua, suas tranças haviam sido cortadas até a orelha e
seus olhos verdes, herdados de minha mãe, estavam abertos, opacos, sem
vida. Seu corpo estava exposto, sem nenhuma compaixão e sensibilidade
pelas autoridades e pelo monstro que a matou. Pude perceber que a pele de
seu braço esquerdo estava vermelha e, ao me aproximar mais do que o
recomendado, vi que onde ficava sua tatuagem dos Tlaat, não havia mais
pele. No lugar onde ficava a tatuagem de nossa tribo, só restava a carne e,
agora, os vermes que andavam por seu corpo. Era minha irmã ali, e eu mal
a reconhecia pela decomposição do corpo.

O cheiro fez com que meu estômago se revirasse, fazendo-me sentir o


gosto da bile na boca. Meu corpo inteiro tremia, e meus olhos ardiam. Não
sei quando meus joelhos cederam nem quando comecei a chorar como uma
criancinha. Só me lembro de Talon me segurando e pegando no colo, como
quando tinha 5 anos, e me colocando no banco de trás de sua caminhonete.

Eu tinha passado pelo ritual de nossa tribo e já era um homem aos olhos
deles, mas não tinha vergonha de tudo que demonstrei. Eu era um
adolescente de 17 anos que tinha acabado de perder o raio de sol que
movia sua vida, minha irmã!
01
“Oi mãe, estou fugindo de casa e comi minha
última barrinha de cereal!”
Ambry Ateara

“PARA : Kaya Ateara

Mãe, não sei se conseguirá ver isso. Estou sem telefone


há no mínimo duas semanas. Vi que me mandou alguns
e-mails preocupada com a minha situação. Sei que meu
pai ligou para te tranquilizar, apenas para que parasse
de ligar desesperada aqui em casa, se é que posso
chamar isso de casa. Juntei algumas economias, não é
muito, mas foi o suficiente para comprar uma passagem
de ônibus até Montana. Espero que me receba, estou
indo para ficar. A convivência com meu pai se tornou
deplorável, mamãe. Eu entendo agora mais do que
nunca porque decidiu pelo divórcio e sinto muito por, na
época, ter escolhido ficar com esse miserável.

Sei que o que estou prestes a fazer é arriscado e idiota,


e aceito ficar de castigo, desde que seja na sua casa,
longe dele. Não quero causar confusão, mas acho que, a
essa altura, já deve suspeitar o que aconteceu.

Amo você, mamãe, e se tudo correr bem, chegarei em sua


casa em 2 dias, no máximo.

DE: Ambry Ateara”


Tinha conseguido achar o meu notebook alguns dias atrás. Meu pai havia
escondido no armário ao lado do banheiro na parte de cima, mas há duas
semanas, para sua infelicidade, tive que ficar sozinho em casa, e comecei a
tirar tudo do lugar. Há dois dias, percebi que se continuasse aqui, ou teria
que fingir ser algo para agradá-lo, ou acabaria morto pela mão do meu
próprio pai.

Juntei cada mísero centavo que tinha e comprei uma única passagem. O
único problema era que daqui até Shadow Falls eram 9 horas de trânsito,
só que isso era de carro. Não havia muitos ônibus de Banks, Oregon, até
Shadow Falls, Montana, e nenhum ia diretamente para lá. Só que o
dinheiro que eu tinha só dava para um único ônibus, problemas que
resolverei apenas quando estiver longe daqui.

Levava tudo que considerava valioso, mas nada muito exorbitante. Apenas
uma mochila e uma bolsa do ginásio cheia de minhas roupas e coisas.
Terminei de vestir meu casaco, para caso fizesse frio, coloquei minha
touca preta com um bordado de pena no meio (presente de minha mãe no
Natal passado). Saindo do meu quarto.

Uma parte traiçoeira minha se apegava a todas as lembranças vividas aqui,


cada janta na mesa pequena redonda na cozinha, toda vez que corri pelas
escadas e ouvi meu pai gritando para ir devagar, as visitas anuais de minha
mãe, os natais em família, as noites de sábado que assistíamos futebol na
televisão na sala, ele bebendo sua cerveja e eu comendo salgadinho, as idas
à escola, o dinheiro pro lanche que ele me dava, sempre em cima do balcão
sendo segurado pelo saleiro. Fechei a porta de meu quarto, olhando uma
última vez para o ambiente, lembrando o exato motivo da minha fuga
desesperada no meio da noite.

Os hematomas ainda estão na minha pele, o olho roxo que ganhei aquela
noite agora assume um tom esverdeado, meus músculos ainda doem. A
última semana foi a mais difícil, talvez seja parte por minha
irresponsabilidade.
Ele sempre deu sinais, até os mais sutis, mas eu não queria acreditar no
fundo.

“Olha, vi aquele seu amigo Spencer, não sei se ele é boa gente para
andar com você, meu filho.”

“Ouviu aquela notícia ontem na TV, aquelas aberrações lutando por


direito ao casamento.”

A última gota foi no sábado, ele ia pegar um turno extra no trabalho.


Sempre que ele fazia isso, chamava Spencer para dormir aqui em casa, por
morarmos em um bairro perigoso. Mas naquele dia meu pai chegou mais
cedo e nos viu.

Considerava uma covardia própria estar saindo dessa forma, mas meu pai
está em casa, e eu ainda não sou maluco ou suicida o bastante para bater de
frente com ele. Passando pela porta entreaberta de seu quarto, vi pela fresta
o homem alto de quase dois metros de altura, branco como a neve,
apagado, como um urso após um dardo tranquilizante.

Dardo tranquilizante, remédio roubado do armário da tia Dinger na visita


passada à sua casa, há dois meses atrás, dá na mesma, aquela velha era
asquerosa e preconceituosa, mas ela tem muitos problemas de saúde que
requerem tratamento, muitos e muitos remédios, alguns tão fortes que
poderiam derrubar um cavalo. Não pretendia derrubar um cavalo, apenas
meu pai, e eu consegui!

Segurei mais firme a alça de minha bolsa e desci correndo as escadas,


peguei os lanches que havia separado no outro dia e guardei na mochila.
Tudo que não precisava ser guardado adequadamente ou resfriado, apenas
o necessário para 2 ou 3 dias de viagem. Se tivesse sorte, não iria ficar
tanto tempo na estrada.

~《○》~
Sentia que meu corpo estava sendo sacudido. Poderia ser apenas uma
impressão ou efeito do sono pesado que tinha adquirido ao entrar no
ônibus.

—Ei, menino, anda levanta! — A sacudida dessa vez veio com a voz de
uma mulher. — Não tenho o dia todo, acorde logo! — Sua voz já estava
beirando ao estado em que as pessoas consideram o assassinato.

Me mexi desconfortável em meu banco, abrindo aos poucos meus olhos,


me acostumando com a claridade que entrava pelo vidro ao meu lado.
Passei a mão pelos meus olhos, fazendo o máximo para deixá-los abertos.
Sentia que a mulher irritada à minha frente poderia me dar uma boa
bofetada se dormisse novamente na sua presença.

— Esse é o último ponto do ônibus, menino. Se não descer agora, vai


voltar ao Oregon! — Falou, dando meia volta, indo para a cabine do
motorista.

— Merda, puta merda! — No mesmo instante, meu sono desapareceu do


meu corpo. Me estiquei e peguei minha mochila e bolsa em um
compartimento em cima da minha poltrona. Assim que consegui,
verifiquei meu corpo, vendo os meus bolsos, tudo aqui!

— Muito obrigado por ter me avisado! — Disse, passando pela mulher que
tinha me acordado. Logo desci a pequena escada de dois degraus do ônibus
e me vi no sol escaldante do meio da manhã. Olhando meu relógio,
descobri ser nove horas.

A parte boa de ser abandonado no meio do nada pelo ônibus a duas horas
do seu destino final é que, pior que você está, você não fica. Bom, eu acho.
É a minha primeira vez sendo abandonado no meio da estrada também.

Eu não tinha um mapa, embora o folheto amassado que tinha tirado de


minha mochila não fosse tão diferente de um. A única diferença é que
mostrava os pontos turísticos que não me serviam para merda nenhuma no
momento.

Sem telefone, sem mapa, sem porra nenhuma! Olhando ao redor, percebi a
cagada que tinha feito. Não tem nada aqui. Olhava para um lado e era
apenas a estrada de terra batida. Olhei para o outro e a mesma coisa. Além
de cercas de arames que cercam mato e mais mato, nenhuma casa, sinal de
vida humana ou sequer animal.

— Pensa positivo, Embry, em algum momento alguém vai ter que passar
aqui. Não é o fim do mundo que estamos pensando! — Tentei me apegar
ao fato que na rodoviária o painel dizia que passaria outro ônibus como o
que peguei em duas horas.

A parte boa é que até lá vou ter morrido assado pelo sol do meio-dia que
logo se aproximava. Olhava de um lado pro outro da estrada. Se eu fosse
mais adiante, poderia me perder e consequentemente perderia o possível
ônibus. Não tinha porque ter medo de ficar onde estava. O único risco que
corria era a insolação. Não tinha nem sequer uma vaca pra correr atrás de
mim, quem dirá uma alma mal intencionada.

Meia hora depois e eu me encontro sentado no meio-fio comendo a minha


última barrinha de cereal.O que posso fazer, o estoque era grande, mas a
ansiedade e o sentimento de morte iminente me fizeram acabar com eles
um por um como um descontrolado.

— Vou morrer no meio do nada e ninguém vai saber. Pelo grande espírito,
sem sombra de dúvidas, Ateara, sua melhor ideia até agora! — Bati em
minha própria testa, zombando de minha própria estupidez.

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