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Manuel Lobato

mlobato1@letras.ulisboa.pt
Centro de História da Universidade de Lisboa

CULTURAS DO SUESTE ASIÁTICO

DIVERSIDADE LINGUÍSTICA E MINORIAS ÉTNICAS


Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• MATTHEWS, Bruce. 1999. “The Legacy of Tradition and


Authority: Buddhism and the Nation in Myanmar”. In Ian
Harris (ed.), Buddhism and Politics in twentieth-century
Asia. Londres e Nova Iorque: Continuum. pp. 26-53.

• WATKINS, Justin. 2007. “Burma / Myanmar”. In Andrew


Simpson (ed.), Language and National Identity in Asia.
Oxford University Press (Oxford Linguistics series). pp.
263-287.

• Estudar a diversidade linguística e étnica que caracteriza a AS é


estudar também as questões da identidade e os principais
marcadores identitários: a etnicidade, a língua, a cultura e a religião
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Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• A Birmânia / Myanmar tornou-se independente do colonialismo


britânico em 1948

• tem um governo militar desde 1962


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Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• Pelo menos 70 línguas são faladas por outras tantas etnias e


identidades
• entre as as línguas mais faladas no país pertencentes ao ramo Loloish
da subfamília tibeto-birmanesa, o birmanês é de longe a mais falada

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• A planície central é etnicamente birmanesa e monolingue enquanto
as áreas montanhosas de fronteira são multilingues e etnicamente
muito diversificadas

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Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• Dois terços dos 55 milhões de birmaneses (2014) falam a língua


birmane ou birmanesa e vivem nas férteis planícies centrais,
ocupando cerca de metade da área do país

• o governo tem promovido a língua birmane como elemento


importante da sua política cultural visando o controlo sobre todo o
país
• a política cultural da ditadura militar faz parte do conflito armado
que desde os anos 50 opõe, de forma periódica e intermitente, as
forças governamentais a cerca de 20 grupos rebeldes com
identidades étnicas e linguísticas próprias
• os maiores grupos minoritários são os Karen, Mon, Shan e Kachin
• usam as suas próprias línguas como forma de resistência para
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contrariar a política de assimilação por parte da maioria étnica
birmanesa
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Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

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Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• ‘Myanmar’ é o nome oficial do país desde 1989, quando substituiu a


anterior designação ‘Birmânia’ (ing. Burma) usada e reconhecida
externamente desde o século XV

• nos séculos XVI e XVII os portugueses não reconheciam unidade


política à região, usando no entanto ‘bramá’ como etnónimo e
designação de um dos seus reis

• ‘Myanmar’ retomou a designação pela qual foi conhecido o território


sob domínio dos reis birmaneses de Avá a partir de meados do século
XIX, embora a designação seja muito mais antiga

• em 1989, juntamente com o nome do país, foi também alterada boa


parte da toponímia 9
Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• As mudanças de nome são bastante comuns na Birmânia /


Myanmar, pois muitas pessoas usam diferentes nomes ao longo
das suas vidas, reflexo de diferentes identidades de que podem
ser portadoras

• o termo ‘Myanmar’ não tem sido bem-sucedido internacionalmente


por não existir em inglês uma forma adjetivada óbvia da palavra
(começa agora a impor-se)

• o birmanês (ou birmane), língua oficial e nacional, é a única


língua administrativa, usada pelos meios de comunicação e no
ensino público desde a instauração da ditadura militar em 1962,
que baniu o uso do inglês
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• Na periferia existem algumas formas dialetais de birmanês, como o
arracanês (Rakhine), o tavoyanês (Dawei) e o Intha

• além das línguas do


ramo Loloish da
subfamília tibeto-
birmanesa, que são
as mais faladas e
que incluem o
birmanês, são
também faladas na
parte ocidental de
Myanmar línguas do
ramo Kuki-Chin da
mesma subfamília 11
tibeto-birmanesa
Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• No norte de
Arracão (Arakan /
Rakhine) e no
estado de Chin
(ocidente) são
faladas cerca de
duas dúzias dessas
línguas do ramo
Kuki-Chin da
subfamília tibeto-
birmanesa, cada
uma com poucos
falantes (alguns
milhares a algumas
dezenas de milhar) 12
Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• Há ainda umas 20 línguas do ramo Karen / Kayin da subfamília tibeto-


birmanesa na fronteira com a Tailândia (3 a 4 milhões de falantes)

• línguas da família Tai-


Kadai - a que pertencem
o tailandês e o laociano -
são faladas por cerca de
10% da população,
predominantemente no
estado Shan (uns 3
milhões, 6% da
população), no
Nordeste, mas também
no Norte, Sul e Oeste,
em zonas dos estados 13
Kachin e Kayah e do
distrito de Mandalay
Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• As línguas Mon-Khmer formam a terceira família de línguas sendo


faladas por cerca de 7% da população
• a principal língua Mon-
Khmer é o próprio Mon, com
800 mil falantes no Estado
Mon no sueste do país

• outras línguas Mon-Khmer


são faladas por comunidades
dispersas no estado Shan e
no norte da Birmânia
central, incluindo a língua
Wa, com 600 a 700 mil
falantes, enquanto metade
desse número fala outras 14
línguas aparentadas, como o
Palaung
Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• No século XIX, com a colonização britânica, um grande número de


indianos falantes de hindi, urdu, bengali e tâmil (tâmul), estabeleceu-
se nos centros urbanos
• no estado de Arakan / Rakhine (port. Arracão), centenas de
milhar de muçulmanos Rohingya falam um dialeto bengali de
Chittagong (port. Chatigão)
• o chinês é falado por uma influente minoria, ensinado no ensino
privado e usado como língua franca nas zonas fronteiriças com a China

• embora seja
uma língua
morta, o Pali
permanece
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culturalmente
importante
Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• O pali é a língua das escrituras budistas estudadas, recitadas e


cantadas (salmodiadas) na prática religiosa budista

• como língua
erudita, é uma
fonte de
empréstimo
de vocabulário
religioso ao
birmanês,
Mon e Shan

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Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• A importância do inglês tem


flutuado na Birmânia /
Myanmar durante os últimos
150 anos

• recentemente o inglês
recuperou algum terreno,
depois de quase ter
desaparecido, por ter sido
rejeitado e mesmo proibido
pelas políticas culturais
nacionalistas pós
independência e pós golpe de
1962, que promoveram o 17
birmanês em detrimento do
inglês
Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• O historiador Victor Lieberman (1978: 457) mostrou que a identidade


étnica na Birmânia / Myanmar nem sempre é determinada pela
linhagem de sangue:
• um kachin podia, se quisesse, tornar-se num shan, adotando o
budismo e a maneira de vestir e de falar dos shan
• e um birmanês ou um mon que tivesse vivido em zonas bilingues
da Birmânia pré-colonial podia escolher tornar-se culturalmente
mon ou birmanês
• dá como exemplo o rei birmanês do século XVI, Tabin-shwei-htì,
que adotou a identidade mon, cortando o cabelo e vestindo-se ao
estilo dos mon
• Lieberman afirma ainda que o domínio da língua tem sido um dos 18
principais requisitos para se ser bem sucedido ao adotar uma
diferente identidade étnica na Birmânia
Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• A identidade étnica na Birmânia pré-colonial pode ser encarada


como um papel que cada um podia escolher e aprender, falando
a língua e ostentando as tatuagens, o vestuário e o penteado
apropriados
• Lieberman sugere
que a adaptabilidade
promoveu a
homogeneidade
étnica porque muitas
pessoas procuravam
manter boas
relações com os dois
maiores centros de
poder, o reino Mon 19
do Pegu e o reino
birmanês de Avá
Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• Até meados do século XVIII, a identidade étnica e a lealdade política


nem sempre coincidiam, pois grupos com a mesma língua e cultura
podiam estar – e frequentemente estavam - vinculados a diferentes
poderes regionais

• no século XVIII, no vale do Irrawaddy falava-se birmanês como língua


materna, pois muitos descendentes dos antigos reinos de Pyu, Thet
e Kadu adotaram gradualmente o birmanês e foram assimilados pela
sociedade maioritária, tal como fez também a classe dominante de
Arracão, que abandonou a sua língua nativa

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Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• Esta era a situação em 1824 quando


os britânicos anexaram a Birmânia
em três fases ou guerras :
• Arracão e Tenaçarim foram-lhes
cedidos no Tratado de Yandabo
(1826), que pôs fim à Primeira
Guerra Anglo-Birmanesa (1824-26)
• a Baixa Birmânia foi anexada em
1853, após a Segunda Guerra
(1852-53)
• a Alta Birmânia, incluindo a capital
Avá, na Terceira Guerra (1885)

• a Birmânia permaneceu uma


província da Índia britânica (Raj) até 21
1937, tendo os ingleses criado um
sistema educativo baseado no inglês
Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• Uma nova elite birmanesa de formação ocidental emergiu nas áreas


urbanas, inicialmente aderindo à prosperidade comercial e aos
progressos técnicos introduzidos pelos britânicos, mas vindo cada
vez mais a questionar e a desafiar o domínio colonial
• o movimento nacionalista era liderado e dominado por falantes de
birmanês, que erigiram a língua, a literatura e a cultura birmanesas
em símbolos nacionais aquando da independência em 1948

• O Do Bama Asi-ayone ou ‘Nós Organização Birmanesa’, fundado em


1930, procurava reformar e re-birmanizar a sociedade, eliminando as
influências estrangeiras
• os seus membros
autodenominavam-se thakin ou
mestres, termo até então usado 22

para referir os funcionários


ingleses
Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• A sua primeira publicação política foi mais tarde usada como letra do
hino nacional:
• “A Birmânia é o nosso país / A literatura birmanesa é a
nossa literatura / A língua birmanesa é a nossa língua /
Amemos a nossa terra / Elogiemos o nosso país /
Respeitemos a nossa língua”
• a literatura
nacionalista, toda
ela em birmanês,
produzida até à
invasão japonesa
em 1942, valorizou
fortemente a
língua birmanesa e
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o grupo étnico
maioritário que a
falava
Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• Círculos religiosos também se opuseram à influência ocidental


britânica, como a YMBA, Young Men’s Buddhist Association, criada
em 1906, cujo programa independentista defendia o budismo a par
da ‘língua nacional’ e do ‘espírito nacional’
• desde 1917, os monges birmanes começaram a
envolver-se em atividades políticas, quando se
verificou que as reformas em curso na Índia
britânica não seriam aplicadas na Birmânia
• U Ottama, líder religioso que viajou pela Índia,
promoveu o budismo desde 1921 como uma via
paralela ao ideal de satyagraha, a confrontação
não-violenta de Gandhi
• o budismo era agora apresentado como libertação do jugo colonial e
o nibbana (nirvana) podia ser alcançado através da luta pela
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independência
• retoma-se a velha conceção de que ser budista é ser birmanês
Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• Os britânicos não interferiam na vida religiosa, pelo que não vigiavam


os mosteiros, especialmente os maiores e melhor organizados
• desde 1878 que os britânicos se recusavam a nomear o
thathanabaing, supremo líder da sangha, a comunidade das
diversas ordens de monges budistas
• o movimento nacionalista era muito crítico do domínio económico
exercido pelas minorias chinesa e indiana
• Em 1886 eclodiram movimentos proféticos e messiânicos,que
anunciavam a chegada iminente do Restaurador da Idade de Ouro
– set kya min, referido pelo cânone pali – identificado com o
mítico rei pássaro, que haveria de devorar todos os estrangeiros
• em 1938 eclodiu uma revolta dirigida por um monge proveniente
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do delta do Irrawaddi, zona rural fortemente deprimida pela
aquisição de terras por imigrantes indianos
Birmânia / Myanmar – revolta de 1938

26
Birmânia / Myanmar – revolta de 1938

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Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• Fazia apelo a uma nova realeza que enfrentasse os britânicos, mas


não teve a amplitude da anterior revolta de 1886

• muitos monges aderiram, mas a revolta era rural, predominando a


invocação dos nat ou espíritos, amuletos, tatuagens protetoras e
práticas mágicas

• o sentimento xenófobo reforçou a identidade birmanesa dos mais


desfavorecidos num país cuja economia era dominada por
estrangeiros, criando um nacionalismo birmanês de orientação
ideológica socialista (embora não marxista)

• ainda antes da independência surgiu uma ‘Sociedade de Tradução da


Birmânia’, cujo objetivo era traduzir livros educativos para aumentar
os hábitos de leitura e incentivar a ‘boa escrita’ em língua birmanesa
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por meio da concessão de prémios literários


Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• Os japoneses, que ocuparam o país em 1942, apelaram à cooperação


da sangha, enquanto um adipadi ou ‘grande líder’ se autoproclamava
protetor do budismo
• a constituição outorgada pelos japoneses, decalcada da do Japão
Meiji, promoveu a paridade entre o chefe do exército e o chefe de
estado, caso do Bogyoke, o major-general Aung San, que viria a
negociar a independência após a retirada japonesa
• Aung San, considerado o “pai
da nação”, era líder do partido
“antifascista” e foi assassinado
com todo o seu governo em
1947
• era pai de Aung San Suu Kyi,
líder da oposição à ditadura 29
desde há várias décadas e
prémio Nobel da Paz em 1991
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• Sucedeu U Nu,
ministro de Aung San,
um dos fundadores do
Do Bama Asi-ayone ou
‘Nós Organização
Birmanesa’ e o único
sobrevivente do
massacre de 1947, que
se tornou primeiro-
ministro desde a
independência em
1948 até ao golpe de
estado de 1962
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Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• Em 1948, após negociação com os ingleses, nasceu a União da


Birmânia como estado federal, que concedia às minorias não-
birmaneses ampla autonomia nos 7 estados fronteiriços
• as minorias étnicas, excluídas do projeto nacionalista, começaram a
alimentar ideias separatistas, que originaram múltiplas e
prolongadas revoltas após a independência (1948) e contribuíram
diretamente para a instauração do regime militar em 1962

• eclodiram revoltas armadas de cariz étnico contra o governo: as


diversas comunidades Shan e Karen, que anteriormente não estavam
ligadas entre si, começaram a forjar comunidades pan-étnicas (‘os
Shan’, ‘os Karen’)

• com U Nu os budistas ganharam peso político: a sangha birmanesa


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não era racista nem xenófoba e mantinha relações amigáveis com as
sangha das minorias étnicas do país
Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• U Nu, que era um budista piedoso e sincero, procurou restaurar a


sangha e limitar a influência de associações políticas de monges;
promoveu o culto dos nat a uma quase religião de estado e proibiu o
massacre de gado praticado pelas minorias étnicas não budistas
• o fracasso de U Nu nos estados
minoritários, num quadro de
crise económica e revoltas
generalizadas, desencadeou o
golpe militar de 1962 que pôs
fim ao período democrático
• o país passou a ser governado
pelo Partido do Programa
Socialista Birmanês (BSPP),
liderado pelo Conselho 32
Revolucionário do general Ne Ne Win (1962-1988)
Win (1962-1988)
Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• Além de combater as rebeliões


rurais de grupos minoritários
(Karen, Chin, Shan e Kachin), Ne
Win era um feroz xenófobo
empenhado em erradicar todos
os vestígios de colonialismo,
centrando-se na cultura, língua,
tradição e religião, o que criou
um recrudescimento do
nacionalismo birmanês

• o uso do inglês foi drasticamente reduzido Ne Win (1962-1988)


no ensino, mesmo na universidade
• campanhas de alfabetização nos anos 60 para falantes de
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birmanês; incentivada a criação de um novo vocabulário técnico e
político (socialista); a padronização formal do birmanês foi iniciada
nos anos 70
Diversidade linguística e minorias étnicas. Birmânia / Myanmar

• os falantes de línguas minoritárias costumam levar


vidas multilingues, enquanto as pessoas de etnia
birmanesa (Bamar) só aprendem inglês
• várias línguas são faladas de ambos os lados da
fronteira por comunidades que adquiriram um
sentimento de identidade comum apesar das
divisões políticas e administrativas:
• os Wa, que também vivem na China, os Karen
(Kayin) e Karenni (Kayah) na Tailândia, e os Naga
no nordeste da Índia

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