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CANNABIS MEDICINAL:

POSSIBILIDADES E
DESAFIOS
DR. MAURICIO VERDERAME
MAURÍCIO BRIGAGÃO VERDERAME

 Médico formado pela FCMSC-SP (1990)


 Tít. especialista em Homeopatia e Acupuntura
 Estudo e trabalho com cannabis medicinal desde setembro 2019
 Conflito de interesses: nenhum
 Não-usuário de quaisquer drogas recreativas
HISTÓRICO
 Registro de uso doméstico pelos chineses há cerca de 10.000 anos. Evidências do
conhecimento de propr. narcóticas há 3.000 anos pelo menos. Extenso uso
religioso, recreativo, medicinal e industrial ao longo da história humana.
 Presente na primeira farmacopeia conhecida, Shennong Bencaojing (séc. I). É uma
das 50 plantas fundamentais da medicina tradicional chinesa.
 Papiro Ebers (documento arqueológico de 1500 a.C.) - uso vaginal triturado com
mel para tto. de patologias (provavelmente) inflamatórias. Vários outros papiros
entre 1800 e 1500 a.C. citam as propr. medicinais da cannabis.
 Uso medicinal na Antiguidade: Grécia, India, Holanda, Islã medieval
 Sir William O’Shaughnessy, no séc. XIX, fez extensa pesquisa sobre as propriedades
medicinais e introduziu seu uso no Ocidente em 1839, recomendando-a para
epilepsia e analgesia, entre outros. Dificuldades para padronização e assim obter
mesmo efeito.
 Restrições legais (Brasil - séc. XIX; EUA - séc. XX) - interesses das indústrias de
papel, tecido e combustível
HISTÓRICO

 Anos 30: Federal Bureau of Narcotics elabora propagandas ligando o uso da


cannabis a crimes violentos, insanidade, conduta irracional e pervertida
 Anos 70: Proibição e classificação como droga com alto potencial de abuso e sem
qualquer utilidade medicinal. Richard Nixon: “WAR ON DRUGS” (motivação política
e racial?)
 1996: California aprova lei que permite uso, posse e cultivo para fins medicinais,
dando início ao movimento pela legalização nos outros Estados
 Hoje, quase todos os Estados norteamericanos, com apenas seis exceções,
permitem o uso medicinal do óleo de CBD, com concentrações variadas de THC,
reguladas por lei. Na América do Sul, Argentina, México, Uruguai, Peru, Equador,
Colômbia, Brasil e Chile permitem uso medicinal.
 Uso na União Europeia (grande maioria dos países permite uso medicinal):
https://www.scielo.br/j/brjp/a/h58wmKqMxZWsMyJZBJTLSNS
 Em 02.12.2020 a ONU retirou a cannabis do Anexo IV (droga com alto potencial de
abuso e sem uso medicinal)
CIÊNCIA

 Raphael Mechoulam (ISRAEL): isolamento, identificação estrutural e síntese


completa do canabidiol (63) e do Δ9-tetrahydrocannabinol (64). Ele e sua equipe
identificaram e isolaram a anandamida e o 2-AG, principais endocanabinoides.
Mais recentemente, esterificou o ácido canabidiólico, de grande potencial
terapêutico.
 Elisaldo Carlini: pesquisas pioneiras sobre a ação do canabidiol em epilepsia
 SISTEMA ENDOCANABINOIDE
 O que é: sistema de sinalização e modulação em terminações nervosas
através dos endocanabinoides, seus receptores CB1 e CB2 e as enzimas que os
degradam.
 CB1: a maior parte está no cérebro, medula, SNP e sistema nervoso entérico,
mas apresenta-se também em menor proporção nos rins, baço, músculos,
intestinos, pulmões, coração, pele
 CB2: presente nas células do sistema imune
CIÊNCIA
 ENDOCANABINOIDES: derivados do ácido araquidônico
 Anandamida: agonista parcial de ambos os receptores, pouco mais afim ao CB1.
Produz analgesia, controla atividade motora, diminui emese e estimula apetite.
Tem efeitos antiproliferativos.
 2-AG: agonista total de ambos os receptores, com mais potência e efetividade.
Atua como molécula mensageira em vários sistemas, como imune e endócrino,
mas seu papel exato ainda não é plenamente compreendido.
 FUNÇÕES: Modulação de vários processos fisiológicos, atuando como
regulador da homeostase, principalmente no cérebro. Regula nocicepção
(percepção de dor), processos de memória (incluindo descarte de memórias
traumáticas), plasticidade e proliferação neuronal, formação de novas
sinapses. Além disso, afeta o sistema imune, cardiovascular, processos
endócrinos e controle de metabolismo energético. Atua no circuito do prazer
e recompensa, modulando-o.
 Descrição mais detalhada e técnica:
http://cienciasecognicao.org/neuroemdebate/arquivos/4365
A PLANTA: COMPONENTES ATIVOS

 Fonte milenar de fibras, usadas em cordas e roupas. O cânhamo (hemp), mais


usado pelas fibras, não tem quantidade significativa de THC. As sementes
fornecem biocombustível e extrai-se óleo comestível, que também é usado na
cosmética.
 Sidarta Ribeiro: “A maconha, como o cachorro, é uma invenção humana
criada para suprir necessidades humanas”. Foi cultivada e selecionada por
milhares de anos em diversos lugares, dando origem às variadas cepas, com
variadas finalidades. Não é um acidente - é uma construção da Humanidade.
 Fitocanabinoides são produzidos como proteção, apenas em plantas
femininas, mormente em suas flores. A planta contém centenas de
substâncias ativas, como flavonoides, terpenos e canabinoides, e cada cepa
tem um perfil diferente de composição. Conhecem-se mais de 100
canabinoides diferentes, com efeitos diferentes, muitas vezes opostos ou
complementares.
A PLANTA: COMPONENTES ATIVOS

 A planta tem canabinoides em sua forma ácida (“crus”) que, ao serem


descarboxilados pelo calor (fumados, vaporizados ou em outros processos),
transformam-se nas formas ativas.
Assim, CBDA, THCA, CBGA, CBCA, ao serem descarboxilados transformam-se
respectivamente em CBD, THC, CBG, CBC. O CBN (canabinol) é resultado da
degradação do THC em plantas com muito tempo de cura, envelhecidas. É um
canabinoide de bom poder sedativo. Formas químicas semelhantes, mas
diferentes em efeito estão presentes, como o THCV (tetrahidrocannabivarina,
antagonista do THC) e o CBDV (cannabidivarina, potente antiepiléptico)
 Cada cepa ou “strain” tem seu perfil próprio de presença de canabinoides,
cuja presença também varia em função da exposição ao sol, aporte hídrico e
qualidade do solo. Assim, a composição de cada amostra produzida não é
garantida em cada colheita, e uma análise espectrofotométrica é necessária
para comprovar a verdadeira gama de substâncias ali presentes. Uma
pesquisa em marcas europeias revelou que 9 de 13 delas não entregam o que
anunciam em seu rótulo.
INDICAÇÕES DE USO
INDICAÇÕES DE USO
 Indicações de uso do THC: esclerose múltipla, Alzheimer, Parkinson, doenças
autoimunes, drogadição, tumores
(https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5054289/), dor neuropática,
fibromialgia, náusea (QT), Tourette, glaucoma, stress pós-traumático,
potencializa efeito do CBD em óleos full e broad spectrum
 Efeito comitiva (“entourage”) - flavonoides e terpenos
 Tipos de óleo integral (“full spectrum”): THC > CBD, THC < CBD, THC = CBD
 Existem óleos de canabinoides separados e também sintéticos: só CBD, só THC,
Marinol, Dronabinol, Mevatyl ou Sativex (apenas CBD e THC)
 Hoje as farmácias de alguns países europeus já começam a trabalhar com
“montagem” de óleo com os canabinoides mais adequados a cada caso.
 Segurança: dose tóxica é altíssima: 650 kg em 10 minutos (fonte: “A Clinician’s
Guide to Cannabinoid Science”, Steven James, Cambridge University Press,
2021)
 Cannabis fumada x via oral x sublingual
 Metabolização hepática: citocromo P450
PRÁTICA CLÍNICA
 Ajuste gradativo de dosagem
 Acompanhamento conforme melhora de sintomas ou aparecimento de efeitos
colaterais.
 Curva de resposta dose x efeito em parábola invertida
 Já existe teste genético para determinar qual melhor perfil de canabinoides em
cada caso
 Efeitos colaterais: dose-dependentes. Podem incluir sonolência, agitação,
ansiedade, tontura e boca seca. Pode haver hiperêmese (raro).
 Cannabis medicinal causa dependência? E seu uso recreativo? Riscos do uso entre 13
e 25 anos.
 Ethan Russo (pioneiro cientista pesquisador clínico do uso de cannabis): Hipotetizou
a Síndrome de deficiência clínica de endocanabinoides (fibromialgia, enxaqueca,
bexiga irritável, estresse pós-traumático, cólon irritável), corroborada por estudos
clínicos posteriores.
CASOS CLÍNICOS
1) RPS, 7 anos
Autista moderado, fala palavras e frases esparsas. Agitado, passa o dia correndo,
fugindo. Não pára pra comer. Hipersensibilidade auditiva. Não tolera
contradição, grita, joga coisas, bate porta. Sono agitado, só dorme com
melatonina. Alta seletividade alimentar.
Retorno:
Usou óleo 1:1
Comendo mais, ainda com alta seletividade. Sono menos agitado, pede pra ir pra
cama. Irritabilidade diminuiu. Olha mais nos olhos. Não passa mais o dia
correndo e pára pra comer. Articulação de palavras melhorou, procura mais os
pais para falar, falando um pouco mais.
CASOS CLÍNICOS
2) RAD, 5 anos
Autista moderado para severo, bate cabeça, morde, não tolera contradição,
agitação psicomotora
Crises sensoriais: ruído, tato, textura de roupa
Dorme bem com melatonina
Baixa concentração
Retorno:
Óleo rico em THC piorou tudo: Humor, agressividade, sono, agitação
Óleo rico em CBD: melhora de crises sensoriais, agitação, agressividade, sono,
contato visual, pequeno avanço cognitivo
CASOS CLÍNICOS
3) KLS, 11 anos
Síndrome de Tourette, usa imipramina e risperidona
Tiques, encoprese, baixa concentração
Piora antes de dormir
Retorno:
Óleo rico em THC
Boa melhora dos tiques
Dorme bem melhor, sem agitação
Alívio mais rápido dos tiques
Em processo de retirada da imipramina
CASOS CLÍNICOS
4) GRS, 83 anos
Parkinson rígido + declínio cognitivo. Piorou após cirurgia de catarata com
anestesia geral, passando a apresentar o declínio + discinesia vesical. Andar
"travado". Episódios de delirium, acha que está na escola.
Retorno:
Óleo rico em THC
Bem menos episódios de delirium. Desorientação temporo-espacial melhor
Equilíbrio e mobilidade melhoraram muito: entra e sai do carro, tira roupa sem
ajuda, deita e se cobre sem ajuda. Mais lúcido, mais animado. Fixa letras na aula
de canto com mais facilidade
Não tem mais Romberg + e não tem mais nistagmo
Retirou medicação para discinesia vesical
Expressa desconforto por estar em casa de repouso
CASOS CLÍNICOS
5) CCG, 49 anos
Síndrome de Sjögren, tireoidite de Hashimoto, capsulite adesiva à D
Usa Rivotril para dormir, corticoide, tem rigidez matinal, xeroftalmia, fenômeno
de Raynaud
Retorno:
Óleo 1:1
Dormindo melhor. Ainda com Rivotril, mas se aumenta o óleo, dorme com mais
facilidade
Rigidez melhorou
Dores melhoraram muito
Sem corticoide atual
Ainda com xeroftalmia, sem melhora
Raynaud: não fica mais roxa, só vermelha na pta dos dedos
CASOS CLÍNICOS
6) BRS, 43 anos
Esquizofrenia crônica, paranoia, transtorno afetivo bipolar
Alucinações auditivas, várias tentativas de suicídio, várias tentativas de
assassinato da irmã e do filho, isolamento, dorme o tempo todo, compulsão
alimentar, humor instável, alta agressividade, cãibras, dor nos joelhos, memória
recente bastante prejudicada.
Retorno:
Filho fez óleo de maconha prensada (alto THC), depois usou óleo fornecido por
associação. Reporta que a paciente parou de ouvir vozes, regulou o sono, perdeu
15 kg, joga damas, brinca, baixou compulsão alimentar, comunica-se mais, mais
ativa, cuida da casa, humor mais estável, menos dores, melhora da memória
recente (consegue acompanhar novela), lembra de conversas anteriores.
Diabetes NID regulou e está caindo a glicemia. Tem pensamentos paranoicos, mas
diminuíram muito. Nenhum incidente de agressividade.
CASOS CLÍNICOS
 7) ACC, 56 anos
 Esclerose múltipla + trigeminalgia à direita

 Paciente com trigeminalgia crônica consequente à esclerose múltipla. Teve


ótima resposta com uso de óleo com alto teor de THC, conseguindo um nível
de controle de dor melhor que com pregabalina, que não usa mais.
Neurologista queria dar imunomodulador, porém com a boa evolução da
paciente, manteve conduta expectante nesse sentido.
 Tem crises quando se expõe ao frio (teve que mudar de lugar no trabalho, por
causa do ar condicionado). Em crise dolorosa, aumenta a dose do óleo com
boa resposta. Sente que a esclerose múltipla estacionou, sem surtos desde
que iniciou o tratamento. Não perdeu nenhum dia de trabalho em 2023.
PROBLEMAS
 Variabilidade de produto, de resposta e ajuste individual de dose
 Regulamentação legal
 No Brasil, a lei ainda favorece a indústria, obriga à importação e desfavorece a
população vulnerável, criminalizando o cultivo, perpetuando a “guerra às drogas”.
A alternativa para quem pode pagar advogado é fazer um habeas corpus - já foram
emitidos mais de 4000 até aqui.
 No Brasil e em vários outros países, existe uma limitação imposta pela lei às
quantidades de THC, o que dificulta severamente o uso desse canabinoide e
portanto impossibilita que os pacientes possam colher seus benefícios em várias
patologias em que seu uso é importante.
 Dificuldades de pesquisa pelas limitações legais
 poucos dados disponíveis sobre segurança e efeito de longo prazo no uso de
cannabis medicinal
 Preconceito
 Posturas de tratamento diferentes: “só CBD”, “só THC”, mais abrangentes
SUGESTÕES
 YouTube: Paula Dall’Stella, Carolina Nocetti, Sidarta Ribeiro
 “Maconha, Cérebro e Saúde” - Sidarta Ribeiro e Renato Malcher-Lopes
 “As Flores do Bem” - Sidarta Ribeiro
 “A Clinician’s Guide to Cannabinoid Science”, Steven James, Cambridge University
Press, 2021
 Cinco artigos científicos sobre cannabis medicinal (ênfase em Saúde Mental):
 https://jcannabisresearch.biomedcentral.com/articles/10.1186/s42238-019-0012-y
(2020)
 https://link.springer.com/article/10.1007/s10787-022-01020-z (2022)
 https://journals.lww.com/psychopharmacology/citation/2021/05000/cannabidiol_as
_a_treatment_for_mental_health.18.aspx
(2021)
 https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0165178121006417 (2022)
 https://www.mdpi.com/2077-0383/10/24/5852 (2021)
 Meu contato: drmauricioverde@gmail.com

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