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Os principais constituintes da cannabis são os canabinoides, que, como diz o

nome, claro, são substâncias ativas provenientes da própria cannabis. E para


distingui-los dos canabinoides sintéticos e dos canabinoides endógenos, ou
endocanabinoides, eles são chamados de fitocanabinoides. Mais de 120 desses
compostos foram isolados da planta e um número cada vez maior de
fitocanabinoides novos estão sendo identificados.

Além dos fitocanabinoides, a cannabis também produz uma vasta gama de


constituintes, como os terpenos, terpenóides, flavonóides e alcalóides, e uma
gama de outras substâncias diferentes. Mais de mil compostos químicos já
foram identificados apenas na cannabis.

O tetrahidrocanabinol (THC) foi o primeiro canabinoide a ser estudado,


principalmente por causa de seu envolvimento com os receptores canabinoides
CB1, provocando um efeito psicoativo conhecido e descrito na literatura como
"efeito de intoxicação". Além de se ligar aos receptores endógenos CB1 e CB2, o
THC também pode ter efeitos sobre uma grande variedade de diferentes alvos
moleculares no corpo, como outros receptores não-canabinóides, canais iônicos,
enzimas e a inibição de várias moléculas. Então, além de ter efeitos diretamente
no sistema endocanabinoide, por meio dos receptores canabinoides CB1 e CB2,
podemos ver que o THC também tem efeitos em muitos outros alvos
moleculares, visando outros sistemas no corpo humano.

Acreditava-se que essa era a única parte ativa da planta cannabis. Sabemos
agora que não é verdade, que diferentes canabinoides têm diferentes efeitos, e
alguns têm efeitos que não provêm da ativação direta do sistema
endocanabinoide e que não provocam esse efeito psicoativo de intoxicação.

O segundo fitocanabinoide mais estudado é o canabidiol, ou CBD. Foi isolado


em 1940, e sua estrutura foi identificada apenas um ano antes da estrutura do
THC, então em 1963. Ele não é intoxicante, porém é psicoativo, ou seja, atua sobre
a psique e o cérebro, mas de forma muito diferente do THC.

O CBD tem uma afinidade fraca com os receptores canabinoides. Assim, modula
o sistema endocanabinoide indiretamente, ou com uma capacidade limitada.
Ele não é como o THC, que ativa diretamente os receptores CB1 e CB2. O CBD
tem efeitos sobre outros receptores não-canabinoides. Na verdade, ele tem
muitos alvos moleculares no corpo, diferentes receptores, enzimas, canais
iônicos, bem como proteínas e transportadores. Mais de 60 alvos moleculares
diferentes foram relatados na literatura sobre o CBD.

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Mais uma vez, a parte mais interessante sobre os fitocanabinoides são os seus
efeitos terapêuticos. E podemos ver que o CBD, muito semelhante ao THC, tem
um perfil terapêutico bastante amplo e muito útil em diversas condições crôni-
cas.

Uma das ações mais marcantes do canabidiol é o seu efeito anticonvulsivo, e já


existem medicamentos que foram aprovados para tipos específicos de epilepsia,
como a Síndrome de Lennox-Gastaut e Síndrome de Dravet.

O CBD ainda possui ação ansiolítica e antidepressiva, antiinflamatória, antioxi-


dante, neuroprotetora e analgésica. Além de ajudar a regular a resposta de
estresse.

Já o THC geralmente é referenciado como “recreativo”, algo para fazer em festas


ou uma forma divertida de passar o tempo. Mas ele é muito mais do que isso.

O FDA reconhece que o THC tem claros benefícios medicinais e ele é registrado
nos Estados Unidos na sua forma pura como Dronabinol (Marinol) e é aprovado
para uso em pacientes oncológicos e portadores do HIV como antiemético e
impulsionador do apetite. Alguns estudos demonstraram marcante ação anal-
gésica e de redução na espasticidade em pacientes com esclerose múltipla.

O CBD e THC interagem sinergicamente e amplificam as qualidades terapêuti-


cas um do outro. E ainda, o CBD também pode mitigar os efeitos adversos causa-
dos pelo excesso de THC, como a ansiedade e a taquicardia.

E o que são terpenos e terpenóides? Terpenos são os compostos aromáticos


encontrados em muitas plantas na natureza. Eles são os responsáveis pelo cheiro
e o sabor característicos da cannabis, pois os canabinoides não têm cheiro. Os
terpenos são encontrados em muitas plantas, não apenas na cannabis, ao con-
trário dos fitocanabinoides como o THC e CBD. Mais de 200 terpenos já foram
isolados da cannabis, e são divididos pelo seu número de átomos de carbono. Os
terpenos e terpenóides modulam a atividade de alguns fitocanabinoides especí-
ficos, demonstrando efeitos sinérgicos, potencializadores, modulatórios e aditi-
vos, e podem contribuir para os efeitos terapêuticos da planta.

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Beta Mirceno

Anti-inflamatório (Lorenzetti et al., 1991)


Analgésico (Rao et al., 1990)
Antioxidante (Ciftci et al., 2014)
Anticancerìgeno (De-Oliveira et al., 1997)
Sedativo (Bisset & Wichtl, 2004)
Relaxante muscular (Do Vale et al., 2002)

Linalcool

Antidepressivo (McPartland & Russo, 2001)


Analgésico (Batista et al., 2010)
Ansiolítico (Russo, 2011)
Imunomodulatório (McPartland et al., 2001)
Sedativo (Buchbauer et al., 1993)
Anticonvulsivante (Sulak et al., 2017)
Antibacteriano (Kim et al., 2008)

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O sistema endocanabinoide (SEC) é um sistema muito interessante, por fornecer
equilíbrio ao corpo. Trata-se de um mecanismo de regulação homeostática. Ho-
meostase é a manutenção do meio interno em resposta às condições internas e
externas do ambiente em constantes mudanças. O SEC se relaciona às células,
aos tecidos, aos órgãos e praticamente a todos os sistemas fisiológicos do nosso
corpo. Como é um sistema, é composto por diferentes elementos.

Os primeiros são os canabinoides endógenos, ou endocanabinoides. Eles são os


principais agonistas dos receptores canabinoides, e são derivados do ácido ara-
quidônico. A etanolamina araquidonoil foi o primeiro endocanabinoide identifi-
cado e gentilmente apelidado de "anandamida", proveniente do sânscrito
ananda, que significa “felicidade”. Posteriormente, o 2-araquidonoilglicerol am-
plamente conhecido pela sigla 2-AG, foi também identificado.

O segundo componente desse sistema foca nos receptores canabinoides, que


podem ser classificados como tipo 1, conhecido por CB1, ou tipo 2 chamado de
CB2. Se olharmos esquematicamente para esse sistema, vemos que os endoca-
nabinoides são moléculas mensageiras lipídicas que transmitem mensagens de
uma célula para outra.

Elas entregam essas mensagens interagindo ou ligando-se a receptores especí-


ficos presentes nas células. Os receptores CB1 são encontrados de forma abun-
dante nas células do sistema nervoso central e periférico, enquanto que os recep-
tores CB2 encontram-se preferencialmente em células do sistema imune.

A anandamida, ou AEA, se liga ao receptor CB1 e ao receptor CB2, atuando neles


como um agonista parcial. Ela também afeta outros alvos moleculares, como nos
receptores vanilóides do tipo 1 (TRPV1).

O 2-AG assim como a anandamida se liga ao receptor CB1 e CB2, e atua como um
agonista total. O 2-AG é considerado o verdadeiro ligante do sistema endocana-
binoide, o que se confirma também pelo fato dos níveis de 2-AG no cérebro
serem 117 vezes superiores aos níveis da anandamida. No cérebro, ele atua por
meio de uma sinalização retrógrada rápida nos neurônios pré-sinápticos. A
anandamida e o 2-AG têm uma vida útil relativamente curta e são rapidamente
degradados pelas suas enzimas metabolizadoras.

Por falar em agonistas e antagonistas, é importante entender como esses com-


postos ou ligantes agem. Os agonistas (AEA e 2AG) ativam os receptores canabi-
noides, CB1 e CB2. Existem agonistas totais, que ativam totalmente o receptor,

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bem como agonistas parciais, que ativam os receptores parcialmente. O 2-AG é
um agonista completo, por isso ativa completamente esses receptores, enquan-
to a anandamida é um agonista parcial. O delta-9-THC também é um agonista
parcial tanto do receptor CB1 como do receptor CB2, com efeitos semelhantes
aos da anandamida.

Estima-se que os receptores canabinoides estão presentes em todos os animais


cordados há pelo menos 540 milhões de anos. Ademais, o fato de o receptor CB1
ser o receptor acoplado à proteína G mais abundante presente no cérebro
humano nos diz que esse sistema é muito importante. O sistema endocanabi-
noide está presente em todos os vertebrados. Está presente nos peixes, anfíbios,
pássaros, répteis e também nos mamíferos. Essa presença em tantas espécies
diferentes de animais nos diz que ele tem um papel importante relacionado à
sobrevivência e à evolução.

Como citado anteriormente, os receptores do sistema endocanabinoide (CB1 e


CB2) estão presentes em vários tecidos, células e órgãos do corpo. Podemos ver
que o CB1 está presente principalmente no SNC, bem como em outros órgãos,
como os reprodutivos. Está presente em regiões específicas do cérebro em
quantidades superiores ou inferiores, dependendo da função de cada região. O
receptor CB2, por outro lado, está presente nas células imunológicas e nos
órgãos do sistema imunológico. Podemos encontrá-lo no baço e nos gânglios
linfáticos, no pâncreas e no timo, na medula óssea e em outras células imunes,
como leucócitos e macrófagos. Porém é sabido que os receptores CB2 também
foram detectados em células do SNC e participam da sinalização neuronal.

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Um aspecto interessante da sinalização endocanabinoide é a chamada sinaliza-
ção retrógrada. Os endocanabinoides têm uma via de sinalização oposta a todos
os outros neurotransmissores conhecidos até hoje. Nos neurônios pós-sinápticos
eles são sintetizados sob demanda e não são armazenados em vesículas. Após
um estímulo (influxo de cálcio) e a subsequente ativação das fosfolipases (fosfoli-
pase D no caso da anandamida e diaciglicerol lipase no caso do 2-AG), que con-
vertem os fosfolipídeos em endocanabinoides (fosfolipídios são uma classe de
lipídios que formam um dos principais componentes da membrana plasmática
celular). Eles parecem atingir imediatamente a fenda sináptica e se acoplar aos
receptores CB1 pré-sinápticos. A ativação dos receptores CB1 resulta finalmente
em uma diminuição no influxo de cálcio nos terminais axônicos, gerando assim
o bloqueio da sinalização desse neurônio, portanto da liberação de neurotrans-
missores do neurônio pré-sináptico. A sinalização retrógrada endocanabinoide
tem uma função muito importante no SNC. Isso também se confirma pelo fato
dos receptores CB1 serem os receptores acoplados à proteína G mais abundantes
no cérebro humano.

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Explicamos anteriormente que o sistema endocanabinoide tem efeitos impor-
tantes em quase todos os sistemas fisiológicos do corpo. Ele tem implicações em
quase todos os aspectos da gestação e do desenvolvimento embrionário, assim
como no desenvolvimento e maturação do SNC e periférico, e também participa
ativamente dos sistemas imune e gastrointestinal.

Com esse papel tão importante em todos os sistemas do corpo humano, pode-
mos pressupor que se algo não funcionar bem ou se o sistema endocanabinoide
não estiver equilibrado, sintomas e doenças específicas podem aparecer. De
forma geral, a desregulação do sistema endocanabinoide tem profundas impli-
cações em muitos aspectos fisiológicos de nosso corpo, pode provocar e tem
sido associada a muitas doenças crônicas refratárias, como as doenças neurode-
generativas, disfunções motoras, transtornos de humor, psicose, autismo, obesi-
dade, câncer, infertilidade e outras condições patológicas. Entende-se então que
a desregulação desse sistema pode estar envolvida em várias condições patoló-
gicas, como a endometriose, o aborto espontâneo, a gravidez ectópica e até
mesmo o câncer endometrial. Os níveis dos principais componentes do sistema
endocanabinoide, ou seja, os endocanabinoides, os receptores e as suas enzimas,
podem se alterar em diferentes problemas de saúde, e contribuir para o desen-
volvimento e manutenção dos sintomas de variadas doenças crônicas.

Apesar da importância óbvia do sistema endocanabinoide em muitas funções


corporais, ele ainda não faz parte do currículo da maioria das faculdades de Medi-
cina ou universidades. Por que um sistema tão importante não está sendo ensi-
nado nas universidades?
Essa é uma pergunta que devemos nos fazer. Será que é porque seu nome inclui
a palavra "canabinoide"? Talvez se o nome fosse alterado para o “sistema lipídico
endógeno" os estudantes aprenderiam sobre ele nas universidades?

Outra questão importante é pensarmos em como mudar essa situação. Trata-se


de um sistema muito importante, e a falta do seu conhecimento contribui para a
falta de conhecimento sobre como nosso organismo funciona de fato, na saúde
e na doença . A falta da compreensão sobre como o sistema endocanabinoide
funciona, por que ele funciona e sua importância podem ser fatores prejudiciais
para muitos estudantes de Medicina, bem como médicos e outros cientistas.
É nosso compromisso fazer com que isso mude no futuro.

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Os medicamentos à base de cannabis contém uma grande variedade de com-
postos químicos, incluindo os canabinoides delta-9-tetrahidrocanabinol (THC) e
canabidiol (CBD). A farmacocinética dos canabinoides e seus efeitos observados
dependem da formulação e das vias de administração, que devem ser adaptadas
às necessidades individuais dos pacientes.

Como o THC e o CBD são metabolizados no fígado, existe a possibilidade de ocor-


rer interações medicamentosas via inibição ou indução de enzimas ou transpor-
tadores, e interações farmacodinâmicas podem ocorrer se a cannabis for admi-
nistrada junto com outros fármacos depressores do SNC, podendo ainda ocorrer,
por exemplo, taquicardia quando utilizada com agentes simpaticomiméticos.

Quando ocorre uma interação medicamentosa, sugere-se reduzir a dose do


fármaco ou do canabinoide em uso, e normalmente é uma situação autolimita-
da, que se resolve em algumas horas. Entre os anticonvulsivantes, há evidências
de aumento dos níveis de topiramato, rufinamida, zonisamida, eslicarbazepina e
N-desmetilclobazam, este último com aumento da sedação, em pacientes com
epilepsia. O uso concomitante de anticoagulantes como a varfarina aumenta o
risco de sangramento. Outras associações a serem evitadas são erva de São João
(Hypericum perforatum), rifampicina, cetoconazol e alguns antivirais.

A cannabis aumenta os efeitos depressores do SNC quando combinada com


álcool, barbitúricos e benzodiazepínicos, mas provavelmente não produz esse
efeito com os opióides. O THC induz a CYP1A2, então pode reduzir os níveis de
drogas metabolizadas por ela. O CBD inibe CYP3A4 e CYP2D6, e pode aumentar
os níveis de drogas metabolizadas por estas isoenzimas. Vale lembrar que a
CPY3A4 metaboliza cerca de um quarto de
todos os medicamentos.

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Os produtos padronizados (grau farmacêutico) derivados de cannabis no Brasil
estão disponíveis em farmácias, drogarias e recentemente em farmácias magis-
trais. Também estão disponíveis para prescrição médica os produtos importados,
produzidos por empresas que não seguem todos os rigores de manufatura (não
são de grau farmacêutico) e são considerados suplementos alimentares em seus
países de origem(produtos para uso compassivo). A Anvisa disponibiliza a lista
destes produtos, que deve ser constantemente atualizada.

Para entender o uso racional destes produtos, é necessário o entendimento do


sistema endocanabinoide e suas formas de modulação, assim como saber qual o
objetivo do tratamento. Alguns esquemas de dosagens e protocolos podem ser
sugeridos e esse é um tema importante que deve ser extensamente estudado e
atualizado.

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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Promising Leads. Adv Pharmacol. 2017;80:67-134. doi: 10.1016/bs.apha.2017.03.004.

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Med Cannabis Cannabinoids 2020;3:61–73. DOI: 10.1159/000507998

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