O documento discute a dramaturgia na dança à luz da noção de corpo da consciência e memória criadora. Apresenta definições históricas de dramaturgia na dança e no teatro e discute como a dança moderna exige autonomia em relação à narrativa. Também reflete sobre como os corpos que dançam e escrevem sistematizam discursos de forma diferente.
O documento discute a dramaturgia na dança à luz da noção de corpo da consciência e memória criadora. Apresenta definições históricas de dramaturgia na dança e no teatro e discute como a dança moderna exige autonomia em relação à narrativa. Também reflete sobre como os corpos que dançam e escrevem sistematizam discursos de forma diferente.
O documento discute a dramaturgia na dança à luz da noção de corpo da consciência e memória criadora. Apresenta definições históricas de dramaturgia na dança e no teatro e discute como a dança moderna exige autonomia em relação à narrativa. Também reflete sobre como os corpos que dançam e escrevem sistematizam discursos de forma diferente.
ISSN Eletrnico 2236-3254 CORPO DA CONSCINCIA E POSSVEIS DRAMATURGIAS DA MEMRIA QUE DANA LEONARDELLI, Patrcia.
2 Revista Cena - Nmero 9 ISSN Eletrnico 2236-3254 CORPO DA CONSCINCIA E POSSVEIS DRAMATURGIAS DA MEMRIA QUE DANA LEONARDELLI, Patrcia.
RESUMO: Nosso texto pretende discutir alguns pontos-chave da problemtica de dramaturgia em Dana a partir das noes de memria como recriao do vivido e fluxo de atualizaes e virtualizaes em devir, proposta por Gilles Deleuze, e de corpo da conscincia apresentada por Jos Gil. A partir dessa interlocuo epistemolgica, desejamos indicar alguns caminhos tericos que auxiliem na reviso do conceito de dramaturgia, em que o corpo surge como o territrio das snteses dinmicas que problematizam, mas tambm ampliam, as possibilidades semnticas de trabalho com a palavra. PALAVRAS-CHAVE: Memria; Corpo-em-arte; Dramaturgia; Movimento; Dana. ABSTRACT: Our paper seeks to discuss some key points of the issue of Dance drama based on the notions of memory as a recreation of the lived and flow of updates and virtualization, proposed by Gilles Deleuze and body awareness by Jose Gil. From this epistemological dialogue, wish to point out some theoretical ways to assist in reviewing the concept of drama, in which the body appears to be the territory of dynamic syntheses that question, but also extend the semantic possibilities of working with the word. KEYWORDS: Memory; Body-in-art; Dramaturgy; Movement; Dance. ____________________
Nosso artigo pretende retomar algumas questes centrais do debate sobre dramaturgia em Dana luz da noo de corpo do pensamento, proposta por Jos Gil, e de memria criadora, de Gilles Deleuze, para da sugerir possveis redefinies nos desenhos daquilo que mais comumente reconhecemos como dramaturgia strictu sensu. Para tanto, necessrio que, primeiro, repensemos a criao em dramaturgia (e seu espao) como um processo que se d tanto no mbito do encontro dos artistas-criadores como da performatividade como campo em suspenso. Partamos de algumas definies histricas de dramaturgia em Dana pela perspectiva de criadores-chave da disciplina. Marianne van Kherkoven, uma das mais produtivas pesquisadoras da rea (foi colaboradora dos coregrafos Jan Lauwers / Needcompany, Guy Cassiers, Anne Teresa de Keersmaeker e Kris Verdonck) e editora das revistas Theaterschrift e Etcetera, especializadas em Dana e Teatro Ps-dramtico, pontua a questo da construo e da natureza dos materiais. Enquanto a dramaturgia 3 Revista Cena - Nmero 9 ISSN Eletrnico 2236-3254 CORPO DA CONSCINCIA E POSSVEIS DRAMATURGIAS DA MEMRIA QUE DANA LEONARDELLI, Patrcia.
em Teatro partiria geralmente de um texto, ou de um tema a partir do qual evolui o enredo 1 , a mesma disciplina, quando trabalhada na Dana, tomaria como estmulo fundamental a msica ou os movimentos dos danarinos, o que define operacionalidades distintas nos processos de criao. A escrita teatral, entendida como pea, conforme a dramaturga, estaria pressionada, pelas prprias singularidades do fazer teatral, a se estruturar dentro de uma dinmica de significao, de construo de sentidos, de contar histrias, qual a Dana moderna e contempornea no se submete. Enquanto as aes, gestos, deslocamentos, enfim, desenhos fsicos do ator em cena aproximam sua construo (a personagem) do comportamento cotidiano, a abstrao de movimentos permitida pela Dana provoca, s palavras de Kerkhoven, o trabalho do dramaturgo a se deixar afetar por outras contaminaes sutis, intuitivas, no-denotativas, analgicas, ou que nome queiramos dar a um fluxo de afetaes que se re- territorializa para zonas de representaes fugidias, de rastros de sentido, de devires velozes que parecem se esquivar da semiotizao. Eis a primeira e mais imediata diferenciao histrica do conceito quando trabalhado nas duas reas. Como sabemos, a Dana, no cerne de seu prprio processo de emancipao como linguagem, que marca a passagem dessa arte do estatuto clssico para aquele moderno, exigiu sua autonomia da narrativa e do drama como condio sine qua non de evoluo. A dramaturgia acompanhou essa ruptura seminal e fundou um campo de pesquisa que explora a produo do texto em condies amplamente diversificadas, e abriu espao para toda escrita fundada em/por processos hbridos da cena. A essa problemtica inicial levantada por Kerkhoven, o tambm dramaturgo Antoine Pickels acrescenta uma questo fundamental: a participao do bailarino/intrprete-criador nessa atividade. Pickels reflete sobre o paradoxo, em certa medida, inconcilivel entre as duas atividades: o trabalho do corpo-em-arte que dana e aquele que escreve. Tratam-se de estados e disposies para sistematizar seus discursos que produzem nexos, de fato, muito, distintos, mas que podem se beneficiar precisamente
1 Ela se refere, evidentemente, ao teatro dramtico. 4 Revista Cena - Nmero 9 ISSN Eletrnico 2236-3254 CORPO DA CONSCINCIA E POSSVEIS DRAMATURGIAS DA MEMRIA QUE DANA LEONARDELLI, Patrcia.
dessas diferenas. O corpo que dana trabalha numa velocidade de agenciamentos muita mais alta do que o corpo que escreve. No falamos aqui de velocidade na execuo da coreografia, ou da improvisao, que pode ser visualmente desacelerada, mas da dinmica prpria da Dana de desvio das linguagens convencionais do corpo, ou, pelo menos, de contaminao dessas linguagens pelo seu atravessamento por movimentos intraduzveis, no-denotativos, que pressionam o que danado exatamente para a fronteira da linguagem como a reconhecemos. E, nesse sentido, para Pickels, est claro que o corpo que dana , em grande parte, inapreensvel palavra e ao estatuto da dramaturgia, ao qual no deve se submeter para normatizar sua potncia de criao. Entretanto, esses corpos que danam tambm podem organizar seus discursos, da mesma forma que um corpo que escreve pode se deixar atravessar por foras criadoras que o faam transgredir os modelos dramatrgicos convencionais e inventar novos suportes e formatos para o trabalho com a palavra nesses contextos. De forma que, apenas com a contribuio desses dois criadores, j possvel abordar algumas questes essenciais de nosso debate. Se insistirmos em uma ciso da dramaturgia por disciplina, inevitvel que atentemos para o delicado e precrio equilbrio hierrquico que parece acompanhar as relaes entre Dana e dramaturgia tanto quanto desta ltima com o Teatro. Porm, possvel pensarmos o trabalho dramatrgico por outra perspectiva, de certa forma, intrnseca ao prprio fazer, e que busca as zonas de avizinhamento entre as atividades do dramaturgo de Dana, do dramaturgo em Teatro, do ator e do danarino. Trata-se de no pensar mais os corpos criadores em questo a partir da rea em que se encaixam, mas, primeiramente, por sua condio de corpos- em-arte criando e sistematizando discursos mais ou menos convencionais (no sentido de reconhecveis), em desenhos singulares. Dessa forma, a dramaturgia surge como produto de vivncias de criao que j nascem assumidamente em fronteira, e cujas singularidades expressivas se filiam s dinmicas especficas de cada processo, e no numa aproximao forosa com determinada rea e seus modelos de escrita (texto dramtico 5 Revista Cena - Nmero 9 ISSN Eletrnico 2236-3254 CORPO DA CONSCINCIA E POSSVEIS DRAMATURGIAS DA MEMRIA QUE DANA LEONARDELLI, Patrcia.
para o Teatro, texto dramtico para a Dana, texto ps-dramtico para Performance, ou para a Dana, etc.). Pensemos como isso possvel. Como j afirmamos, o corpo que dana sintetiza conhecimento em condies profundamente distintas do corpo que escreve, e o traduz em formas igualmente diferenciadas, seno opostas. Enquanto o corpo que escreve busca construir significados e traduzi-los em uma lngua, o corpo que dana se encaminha para o esvaziamento de todo sentido apriorstico que implica na pesquisa sobre o movimento puro em si. So processos absolutamente particulares, orientados por agenciamentos e dinmicas diametralmente opostos, mas que se provocam e atravessam quando confrontados; e que se utilizam de uma base comum, qual seja, os prprios corpo dos bailarinos e dramaturgos como estratos orgnicos, histricos e criadores em devir. O filsofo Jos Gil, em sua obra de referncia Movimento Total O Corpo e a Dana, analisa, na passagem abaixo, precisamente o efeito da velocidade dos atravessamentos e snteses envolvidas no trabalho do corpo que dana, e como tal dinmica pressiona para o esvaziamento, vazio, este, que se preenche por uma nova noo de articulao: No h gestemas discretos, comparveis aos monemas, nem unidades inseparveis no-significativas, como os fonemas. Da a inexistncia de uma dupla articulao de uma linguagem do corpo, maneira da linguagem falada. (...) O corpo comum exprime um sentido, embora no por meio de uma linguagem. Porque, se a constituio anatmica no permite a formao de uma linguagem com uma dupla articulao de unidades discretas, o corpo nem por isso menos articulado.(...) Os gestos tornam-se inteiramente transparentes, traduzveis em significaes gerais. O corpo exprime ento a linguagem articulada, os seus movimentos finalizados, fala a lngua clara das funes sociais. A linguagem do corpo no difere grandemente do que dele dizem os discursos imperativos de todos os gneros e que moldam os seus movimentos (GIL, 2002, p. 72). Embora claramente menos reverenciado pelo filsofo, esse corpo que fala, e, na mesma medida, escreve, visto que estamos no campo da produo dos discursos pela palavra, busca organizar experincias em relatos (no nosso ver, no necessariamente arbitrrios quanto ao contedo, 6 Revista Cena - Nmero 9 ISSN Eletrnico 2236-3254 CORPO DA CONSCINCIA E POSSVEIS DRAMATURGIAS DA MEMRIA QUE DANA LEONARDELLI, Patrcia.
ainda que o sejam no que tange forma). um corpo-em-arte que opera inevitavelmente na velocidade das snteses de conscincia, sem s quais a comunicao pela palavra no se processa. No estamos afirmando que todo texto seja orientado por uma esttica da lgica e do entendimento, pois, certo, estaramos ignorando toda produo dramatrgica desde as vanguardas histricas at o ps-dramtico. Porm, operacionalmente, tambm certo que o trabalho com a palavra pressionado por foras de organizao que desejam desenhos comunicantes que encaminham para a palavra, para o cdigo partilhado. A no-linguagem da Dana, explicada por Gil, exatamente o resultado do trabalho do corpo em desejos outros de produo rumo ao desconhecido da criao. A Dana no busca sentidos, to mais se potencializa quanto abandona a pretenso de mimese e de se valer de formas narrativas que as transformam numa espcie de irm enfeitada do Teatro. O mbito de trabalho do corpo que dana essencialmente outro. Mas o que surge quando se dana a destruio dos sentidos, o esvaziamento dos gestos e dos movimentos luz dos atravessamentos energticos? O bailarino como corpo construtor de um plano de imanncia cuja velocidade dos atravessamentos, do processo de virtualizao e atualizao, excede aquela de codificao e decodificao pela palavra e seus nexos. Como afirma Gil na mesma obra: Porque a Dana cria um plano de imanncia, o sentido desposa imediatamente o movimento. A Dana no exprime, portanto, o sentido, ela o sentido, (porque o movimento o sentido).(...) A Dana constri o plano de movimento onde o esprito e o corpo so um s, porque o movimento do sentido desposa o prprio sentido do movimento: danar no significar, simbolizar ou indicar significaes ou coisas, mas traar o movimento graas ao qual todos esse sentidos nascem. No movimento danado, o sentido torna-se ao (GIL, 2002, p. 79). Observe-se que no se trata somente de destruir ou plasmar sentidos, o que manteria a Dana sujeita s lgicas de produo da linguagem. O plano de imanncia da Dana produz um campo ao qual nada do sentido escapa linguagem, porque os movimentos do sentido entram nos prprios movimentos de sentido da Dana em ao, criando seus nexos especficos. 7 Revista Cena - Nmero 9 ISSN Eletrnico 2236-3254 CORPO DA CONSCINCIA E POSSVEIS DRAMATURGIAS DA MEMRIA QUE DANA LEONARDELLI, Patrcia.
O gesto do bailarino, criado no plano de imanncia e na velocidade especficos da Dana, o gesto em devir, por isso no significa, no remete, no explica. um movimento nuvem que nunca se conclui, imediatamente deseja outro desdobrar-se, sem jamais se fechar na significao. As frases s quais nos referimos para designar as pequenas partes de uma coreografia, paradoxalmente, no servem para dizer, mas para esquivar. Nesse processo, o bailarino como corpo depoente passa, s palavras de Gil, de um pensamento sobre o corpo, para um corpo de pensamento, da conscincia do corpo para o corpo da conscincia. Na Dana, o bailarino eleva sua graduao energtica a um ponto que faz com que a conscincia do seu corpo, fundamental para sua arte, se amplie para produzir a transformao do pensar em um modo outro, em que a velocidade das informaes excede o reconhecimento racional e sua traduo. um saber indizvel, que se processa em territrios diludos, para o qual as antigas hierarquias da cognio j no oferecem respostas, pois envolve uma reorganizao das funes da mente e a destruio do dualismo mente- extenso. como se a conscincia baixasse do centro cortical e reintegrasse integralmente o todo complexo que participa do trabalho criador (Gil classifica essa conscincia exatamente como conscincia infra). pelas snteses criadoras do corpo da conscincia como apresentamos at agora que buscamos entender a produo do corpo que dana. E pela compreenso das singularidades operacionais desse corpo que podemos pensar novas estratgias de interlocuo com a produo de dramaturgia. Como equalizar encontros energticos e sinergticos possveis entre tais corpos? Eis que convm resgatar, nesse contexto, uma perspectiva de dramaturgia em Dana apresentada pela filsofa Charlotte Dubray, que, acreditamos, sugere um trnsito de trabalho potente para os corpos que danam e aqueles que escrevem. Dubray salienta que, quando a dramaturgia atinge seu espao final, qual seja, o espao cnico, ela s existe enquanto atravessada pelas foras visveis e invisveis e pelos adensamentos que definem os corpos de danarinos/atores/performadores e audincia naquele encontro presente. um ponto de mltiplas atualizaes. 8 Revista Cena - Nmero 9 ISSN Eletrnico 2236-3254 CORPO DA CONSCINCIA E POSSVEIS DRAMATURGIAS DA MEMRIA QUE DANA LEONARDELLI, Patrcia.
Dessa forma, conforme a filsofa, interrogar a dramaturgia na Dana nos convida a pesquisar a atualizao de duas ordens de significaes distintas. De imediato, reconhecemos um trabalho cnico como coreografia, mas qual texto ele atualiza? Um elemento se coloca aqui como candidato ao texto: o corpo. Em Dana, a dramaturgia se centra no corpo, que ela designou como sendo o principal lugar de emergncia do sentido. Tcnico, carnal e emotivo, o corpo se inventa e se conta ao longo de uma coreografia ao grado de um tempo cnico compartilhado. Mas, o que reter desse dom do corpo, qual parte dele, desse vivido to profundamente inscrito em sua carne o bailarino consente em entregar? Quando nos pergunta qual texto a coreografia atualiza, cuja resposta o prprio corpo como plano de imanncia, Dubray redimensiona profundamente a complexidade do processo. Ela localiza a dramaturgia como uma construo que se d em um lugar em suspenso entre os corpos que escrevem e aqueles que danam, e, vai mais longe: tambm aqueles que assistem e co-participam energeticamente do encontro-evento- espetculo, relacionando-a diretamente, com a noo de performatividade contempornea. Trata-se, pois, de investigarmos quais mecanismos podem fomentar uma produo dessa natureza , qual seja, a de uma dramaturgia da performatividade. Deleuze nos aponta alguns caminhos quando, relendo a teoria da memria de Bergson, nos apresenta o conceito de memria como um processo, no de reteno da experincia histrica passada, uma ida do sujeito no presente rumo a conjunto de sensaes, percepes e afetos passados reconhecidos como um acontecimento especfico. Mas, sim, de uma atualizao do vivido pelas contingncias do presente, em que as lembranas se definem pressionadas pelo conjunto de condies de toda natureza que marca o instante presente especfico pelo qual passa o corpo. Para Deleuze, o virtual, campo da memrias, o possvel constitudo em suspenso, mas no um possvel como fenmeno esttico, e sim um complexo problemtico, que chama um processo de resoluo: a atualizao. realidade latente, consistente, organizada, autnoma, devinda, que aguarda pela efetivao das relaes que lhe transportem da 9 Revista Cena - Nmero 9 ISSN Eletrnico 2236-3254 CORPO DA CONSCINCIA E POSSVEIS DRAMATURGIAS DA MEMRIA QUE DANA LEONARDELLI, Patrcia.
suspenso para atualizao. Assim, o virtual no se ope ao real, mas ao atual. Ele contm o real na nvoa problemtica de tenses e tendncias que lhe identificam, mas cuja resoluo no est contida aprioristicamente nessa nvoa. Esse um ponto fundamental das relaes de atualizao, e que as distinguem da realizao: elas so sempre criadoras. O virtual, a potncia em desejo, contm e oferece as possibilidades de relao para definir o real, mas as formas de atualizao no so dadas estruturalmente pela possibilidade. Cada estrato carrega suas virtualidades e organiza sua identidade precisamente na maneira como as atualiza e como recria novos virtuais. Dessa forma, todo corpo um corpo criador, posto que recria sua histria toda vez que atualiza suas memrias no presente. A memria, quando trabalhada pelo corpo-em-arte depoente, dispe os contedos histricos em um trnsito intenso e acelerado entre os conhecimentos apreendidos e em apreenso, a ponto de um se misturar de tal forma ao outro que j no se pode falar em ncleos fechados de experincia armazenada, mas em fluxo de contaminaes. O que varia so as molduras estticas que tais memrias adquirem quando na produo de uma obra de arte, seja uma coreografia, uma personagem dramtica, uma performance, etc. Aos distintos enquadramentos que a memria criadora adquire pelo trabalho do corpo-em-arte, denominamos depoimento pessoal. Analisemo-no mais profundamente. No tempo da criao, o passado irrompe como a fora que recupera e revela os subsdios pelos quais o sujeito se oferece aos estmulos do processo. Esses materiais so a fonte de seu depoimento pessoal, so o prprio sujeito transbordando da pele em aes, sons, palavras, e reconstruindo sua histria pelas circunstncias mais ou menos ficcionais de cada processo de criao. o prprio artista como singularidade em devir que se desfaz e reinventa na criao e estruturao do depoimento a cada apresentao. Mais do que em qualquer outra atividade humana, o artista da cena que se pe em devir como profisso, se dilui e se reconta infinitamente cada vez que depe para formar sua obra. 10 Revista Cena - Nmero 9 ISSN Eletrnico 2236-3254 CORPO DA CONSCINCIA E POSSVEIS DRAMATURGIAS DA MEMRIA QUE DANA LEONARDELLI, Patrcia.
No depoimento especfico do corpo que dana, verificamos um processo que tende radicalmente para a diluio dos agregadores pessoais pelo movimento. O bailarino torna-se fluxo dinmico de uma memria que no pode ser traduzida seno pelo prprio conjunto de aes/sentido da dana executada naquele instante e nas relaes que da advm. Sua atividade fora a ruptura de sentidos, e se choca com a fora de agregao da palavra. Da nasce a atvica querela entre texto e movimento, que tem na produo dramatrgica em Dana sua crise ampliada Crise justificada, posto que tratamos de uma disciplina que envolve a criao conjunta de pelo menos dois corpos, e, talvez trs ou mais, em dinmicas bastante distintas. Como equalizar a produo de relatos do bailarino, do dramaturgo e do espectador, se, como deseja Dubray, o tomarmos como parte possvel do processo de produo dramatrgica? Quais danas essas memrias agenciadas podem sintetizar? Com quais desenhos estticos? Quais mecanismos servem para organizar os materiais? Cada processo de criao oferecer as respostas, e arriscarmos regras parece improvvel e contraproducente. Parece-nos mais potente entendermos esse dilogo de corpos em estados distintos no tanto como uma disputa de saberes, como, nos parece, tem sucedido com certa freqncia entre os campos, mas como uma negociao, um fluxo de agenciamentos desejosos que permita construir outros corpos pelos quais, finalmente, possa falar essa complexa dramaturgia, agora no mais apenas da Dana, mas da performatividade. Corpos que danam, escrevem ou se deslocam para ter uma experincia de co-criar uma obra mesmo que seja na funo de audincia so corpos que se colocam voluntariamente no campo da peformatividade, do fluxo das intensidades. As intensidades movimentam os corpos para determinadas zonas conforme a ordem dos desejos, projetam-lhes ao contato com o que tambm lhe procura para agenciar interesses, necessidades. Criam uma zona de instabilidade: desterritorializam e reconfiguram os estratos. pela potncia dos desejos que os seres se deslocam, e estabelecem os agenciamentos que os definem em 11 Revista Cena - Nmero 9 ISSN Eletrnico 2236-3254 CORPO DA CONSCINCIA E POSSVEIS DRAMATURGIAS DA MEMRIA QUE DANA LEONARDELLI, Patrcia.
determinado recorte, os quais podemos incluir tambm a criao dramatrgica. A dramaturgia, nesse cenrio, precisa se reconhecer como uma dramaturgia de campo, da imanncia, que precisa considerar no somente a palavra como atualizao final do processo, mas o fluxo de virtualizao das memrias que ela imediatamente provoca. No est apenas na palavra como resultado, posto que o processo no termina. A palavra volta para bailarino e, talvez, para pblico, e se agencia novamente em outras condies, para da desdobrar novos discursos. Ela se funda no campo suspenso da performatividade como fenmeno que no est s no intrprete, nem s no dramaturgo nem no pblico apenas, mas no fluxo real da dana das memrias organizadas dinamicamente nos depoimento especfico do bailarino e nos agenciamentos com a audincia, em devir. Uma tarefa que leva o trabalho do dramaturgo a um nvel impensvel: dar conta no somente do que se diz, mas de seus desdobramentos como parte da obra. No entanto, este o lugar para onde a condio ps- dramtica, e de forma mais radical, a Dana como trabalho do corpo da conscincia, conduziu essa funo em nossos tempos, e da qual j no nos parece mais possvel recuar.
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