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1. Introdução
"A palavra civilização e as suas derivadas têm, como tantas outras palavras
portuguesas, a grande maioria, uma origem latina. Civilização vem de civis-is, o
cidadão, ser moral sui-juris, responsável perante si mesmo, perante os outros e
perante a lei. A mesma origem têm a palavra civil, do cidadão e civilidade -
ciencia do governar a cidade, que é o conjunto de cidadãos e não o
agrupamento de casas formando ruas mais ou menos alinhadas. A palavra
civilidade já entre os romanos significava afabilidade, cortesia, honestidade,
boas maneiras, qualidades que eram precisamente as que distinguiam o
cidadão daquêles que não tinham esse estado e que eram designados pelo
termo bárbaros que correspondia a pessoas de instintos ferozes, sanguinários,
em que predominavam as tendencias para a única satisfação de apetites
materiais." (Cid, 1935: 12-13)
Quanto à relação que estabelece entre Civilização e Higiene, Cid tem consciência de
que na passagem do século quase se identifica completamente Higiene e
Civilização. Esta identidade é tão visível que Cid, procurando estabelecer as
diferenças e a relação entre os dois conceitos, afirma , a certa altura na sua
conferência, que entre uma e outra há tais relações de interdependência que até
muita gente, e boa, as julga como sinónimas. No entanto, para Cid, a diferença entre
Civilização e Higiene "aprofunda-se quando nos lembramos que a primeira exprime
um estado que nós definimos de maior aperfeiçoamento espiritual, enquanto que a
segunda quere significar a acção para se alcançar êsse estado..." (id:20). Assim, a
Higiene é o meio necessário para se atingir o estado de Civilização. A Higiene é
assim definida como "a ciencia - e não o ramo da medicina - que procura modificar
as pessoas e o meio onde vivem no sentido mais favorável ao aperfeiçoamento
integral daquelas." (ibid:17). Cid, na sua palestra utiliza essa imagem específica para
ferroviários, afirmando que a Higiene não é senão a força que põe a locomotiva da
Humanidade em marcha "para um determinado ideal - isto é - na marcha geral da
civilização." (ibid:20). Cerca de 50 anos antes, em 1888, Ricardo Jorge tinha feito as
seguintes relações entre Cidade, Civilização e Higiene:
*
Toda a produção discursiva e textual higienista pode, de certo modo, ser
interpretada como uma consciência da possibilidade de indistinção e o pânico
perante tal possibilidade. Os higienistas utilizam toda uma gama de argumentos,
religiosos, médicos, sociais e políticos no sentido de evidenciar a importância da
distinção entre aquelas duas ordens de sentido: a civilizacional e a barbárica.
Depois, munidos de uma legitimação civilizacional e civilizatória (médica,
religiosa...), assaltam a cidade com os seus inquéritos, os seus discursos e os seus
textos. A sua cruzada é pela Civilização e a Higiene é o meio pelo qual se localiza o
infiel - não para que o destruam, como afirmam pretenderem - e mais nítido se torna
o horizonte civilizacional.
+
simultaneidades mas em que uma "Medicina das classes ou das espécies" dá lugar
a uma "Medicina dos sintomas", dando esta lugar a uma "Medicina dos orgãos".
Com a medicina social dos higienistas são estas diversas medicinas que se
inscrevem na paisagem de uma cidade patológica em construção. É neste sentido
que um século depois, Ricardo Jorge afirma que “Na gerencia social moderna
começa a avultar um principio dirigente que raro preoccupou a sociedade antiga, e
muito menos a sociedade de hontem: esse principio, que ámanhã será insculpido na
magna carta dos deveres politicos, é - a defeza da saude e da vida, a lucta contra a
morbilidade e a mortalidade” (1888: 1). Para Jorge, a “reivindicação energica” em
relação à “segurança hygiénica do cidadão contra os damnos morbidos” “é a mais
brilhante conquista operada pelas sciencias biologicas, em nome da medicina e da
hygiene, no campo das sciencias moraes e politicas” (1888: 1 e 2).
"Se é verdade que tudo simboliza o corpo, também é verdade (se não mais verdade
e pela mesma razão) que o corpo simboliza tudo" (Douglas, 1991:145). As
habitações e a cidade eram entendidas pela metáfora do corpo e da alma na
ideologia higiénica. A cidade-como-corpo pode ser lida ao longo da obra de Ricardo
Jorge como por exemplo nas seguintes passagens:
"Se o colosso portuense fôra dado a vida nomade, elle locomovia-se para
buscar alimento e semear os seus dejectos. A sua vida é porém sedentaria;
está collado ao chão da cidade como um polypeiro. Para a sua nutrição é
forçoso que lhe vasem na boca os mantimentos, tal qual como a Gulliver, os
,
liliputianos. E não basta dar-lhe boa água e bom alimento a fartura; é preciso
remover-lhe a estrumeira, limpar esse estábulo d'
augias, diante do qual um
Hercules recuaria as suas façanhas."
"A grande hygiene, a hygiene municipal por excellencia, visa essencialmente a
essa dupla finalidade: contrastar a pureza do bolo alimentar e da água que tem
que ser ingerida no ventre da cidade -remover toda a massa fecal, todos os
escorralhos immundos..." (Jorge, 1888:9-10).
De facto a imagem da cidade-como-corpo parece ter sido mais que uma metáfora,
ela foi uma ideologia em acção com uma grande eficácia simbólica. Os textos
higienistas indiciam que os lugares altos e abertos seriam a cabeça da cidade (aliás
já o eram tradicionalmente), nas partes baixas estava o grande ventre da cidade e
também os seus mil braços, e no subsolo estavam os intestinos e o recto da cidade.
Este princípio ordenador das cidades deve, aliás, ser bastante antigo, senão tomado
conscientemente, pelo menos implicitamente (Douglas, 1991: 145). Parece ser um
raciocínio normal identificar a frente de uma cidade. Ninguém, creio, duvida que o
Porto nasceu defronte do Douro, Lisboa defronte do Tejo, etc. Ora, se é do senso
comum que uma cidade tenha frente, há-se também ter costas, e um lado direito e
um lado esquerdo. E as valorações humanas, culturalmente formadas, dadas a
todas essas lateralizações corporais hão-de estar também em parte representadas
nas próprias cidades.
-
afastam os fiéis do fim da religião, são actos essencialmente religiosos. Por meio
deles, as estruturas simbólicas são elaboradas e exibidas à luz do dia. No quadro
destas estruturas, os elementos díspares são relacionados e as experiências
adquirem sentido." (Douglas, 1991: 15).
Esta ideia de cidade doente ou o receio de contágio a toda a cidade das partes
doentes da mesma pode ser interpretada como tendo a sua origem na consciência
de um "curto-circuito no ciclo fecal". Talvez por isso esta metáfora hospitalar não nos
aparece como o lugar de uma prevenção da doença mas antes como lugar de
.
guerra e extermínio, pois: "a saneabilidade urbana tomou para base o mesmo
princípio da hospitalar: a destruíção dos focos putridos, a desinfecção, numa
palavra, a guerra de exterminação contra toda a bactéria nociva." (Jorge, 1888: 14-
15). Aliás, a cidade como lugar de uma arena, de um campo de batalha, lugar de
lutas ou de guerra repete-se em Ricardo Jorge: "...a arena por excellencia das lutas
conquistadoras da hygiene é a cidade; nem outro pudera ser o seu campo de
batalha senão ella, alli onde exubera a vida social em toda a plenitude dos seus
vicios e disformidades." (id: 5).
/
social da cidade e do seu saneamento, é um trajecto do olhar que procura as
invisibilidades, o lado obscuro, as lacunas da cidade, os intervalos de uma coerência
que é a visível para aí descobrir os seus lados negativos e as suas patologias. Tal
como na medicina dos corpos “o olhar do médico não se dirige inicialmente ao corpo
concreto, ao conjunto visível, à plenitude positiva que está diante dele - o doente -,
mas a intervalos de natureza, a lacunas e a distâncias em que aparecem como em
negativo <<os signos que diferenciam uma doença de uma outra, a verdadeira da
falsa, a legítima da bastarda, a maligna da benigna>>." (Foucault, 1994: 7). O
higienismo, capacitado do poder e da competência para tornar o invisível visível,
purificará o impuro, tornando assim saneável a cidade patológica que ele próprio
criou. O olhar médico, livre de obstáculos, tornando tudo em que se focaliza
translúcido e sendo por isso purificador ao instaurar um princípio de ordem era um
mito da transição do século XVIII para o XIX que Foucault refere: "Grande mito do
livre olhar que, em sua fidelidade em descobrir, recebe a virtude de destruir; olhar
purificado que purifica; liberto da sombra, ele dissipa as sombras." (id:17).
“Quem tem assistido a todos estes horrores, chega a desejar vivamente que,
em vez da vidange se operar de madrugada, como ordenam todos os
regulamentos municipaes, fôsse licito pratica-la alto dia. A hygiene nada lucra
em se poupar os olhos do publico a esse espectaculo ascoroso. Pelo contrario,
quanto mais se patenteasse tal indecencia mais odiosa se tornaria, e todo o
mundo havia de clamar por que se puzesse um termo a tão monstruosa
insalubridade.” (Jorge, 1888: 40)
0
dos inquéritos sanitários. No Manual do Médico Sanitário de Almeida Garrett de
1911 refere-se com pormenor em que consistiam tais inquéritos.
1
sanitário de todos os domicilios d'
uma determinada area":
Podemos perguntar-nos porque é que a palavra, falada e escrita, era tão importante
para os higienistas. Os higienistas deixaram-nos uma produção textual relativamente
impressionante: palestras e discursos, artigos, relatórios e livros. A palavra foi usada
por eles das mais diversas formas, desde a descrição da química da água de um
poço, da mecânica de um aparelho higiénico, das condições de vida de uma
população à exortação política ou até ao discurso poético. Há no higienismo toda
uma economia da palavra, desde a produção da palavra escrita e oralizada como
sistema de produção (os inquéritos) até à palavra escrita e oralizada como produto,
académico ou para o grande público.
*
própria polícia sanitária foi uma invenção higienista, podemos então dar talvez a
devida noção da relação da análise higienista com o abjecto, com a sua
descoberta/construção e a sua revelação/purificação. Refira-se, ainda a esse
propósito, Kristeva: "abjection, which modernity has learned to repress, dodge, or
fake, appears fundamental once the analytic point of view is asumed. (.../...) One
must keep open the wound where he or she who enters into the analytic adventure is
located -a wound that the professional establishment, along with the cynicism of the
times and of institutions, will soon manage to close up. (.../...) Purification is
something only the Logos is capable of.” (id: 27).
+
1994: 35 e 45), eram os exorcistas ideais dos medos e das culpas das elites, que em
França e em Inglaterra tinham resultado num mar de sangue e que em Portugal
tinham tido Maria da Fonte como resultado. A figura do médico-padre-magistrado
poderia gerir a deslocação da culpa para um discurso científico que funcionou talvez
como o elo catártico de uma cadeia de catarses que, segundo Kristeva, vai da
religião à arte: "The various means of purifying the abject - the various catharses -
make up the history of religions, and end up with that catharsis par excellence called
art, both on the far and near side of religion." (Kristeva, 1982: 17). O poder de um
discurso interrogativo, baseado numa autoridade médico-policial (inquéritos
sanitários) impunha como resultado a perplexidade e a expectativa dos
dependentes-revoltados. É esta mesma perplexidade e expectativa que a figura
herdeira dos higienistas, o psico-sociólogo/funcionário da Câmara/jornalista ainda
hoje encontra nas suas deambulações interrogativas pelos mesmos espaços. A
perplexidade/ expectativa habituou as populações desses espaços a uma esperança
ritual que se renova periodicamente através de novas visitas interrogativas. A figura
do médico-padre, reforçada se necessário pelo polícia, possibilita as interrogações
sobre os mais recônditos espaços da habitação, do corpo e da alma que se
apresentam como confissões de vida; o médico-magistrado cifra todas as
informações numa escrita científica - portanto duplamente secreta - e guarda
segredo do diagnóstico-sentença mantendo os interrogados numa dependência
expectante. De facto, os diagnósticos-sentenças surgem normalmente em textos
(artigos ou livros) de carácter académico inacessíveis sequer ao mero conhecimento
dos interrogados.
Mas, por outro lado, esta "topografia médica" (Foucault, 1994: 34) se possibilitava
uma função catártica, era também um poderoso instrumento de poder que levou os
higienistas a terem cada vez mais importância ao longo de todo o século XIX e
mesmo na primeira metade do presente século, sendo Ricardo Jorge o autor da
reforma de 1901 na saúde pública em Portugal.
,
de divulgação é sinónimo daquele que vai da natureza à cultura. A Higiene,
entendida como o meio necessário para se atingir a civilização, com o mesmo gesto
que transforma o invisível em visível, nomeia o indizível. Abrir a cidade até ao limite
do olhar e escrever esse olhar são os passos fulcrais da purificação higiénica. A
escrita higiénica surge-nos assim como um retrato da natureza, mas um retrato
purificado. Ou seja, um retrato que (re)inscreve uma ordem na natureza, assim
recontextualizando a cultura.
O higienismo afirma-se desde o início como uma ideologia sacrificial pois o processo
que transforma a cidade num corpo que há-se ser perscrutado pelo imperativo de
um olhar imperativo para que os topos se cifrem num logos, implica, finalmente, que
este logos identifique os topos da "insalubridade", topos esses que, de facto,
estavam já seleccionados quando se iniciou o mecanismo de busca. O higienismo
hospitalizou a cidade para nela descobrir as doenças que ele tinha inventado antes
de a hospitalizar. Os topos doentes da cidade estavam condenados a sê-lo antes
mesmo de qualquer diagnóstico em função de uma crença ideológica que
relacionava pobreza-insalubridade-imoralidade -criminalidade e todo o edifício
fantástico que o higienismo criou não serviu senão para legitimar culturalmente este
sacrifício topológico, ele próprio um sistema de segurança das convulsões criadas
pelo processo de urbanização.
-
total metamorfose do mesmo, ao mesmo tempo que o higienismo se inventava como
mecanismo de manutenção e regulação do mesmo. De facto, ambas as ideologias
eram sacrificiais, impondo a interdição da mimesis de apropriação pela substituição
da mesma por uma “mimesis de antagonista” (id.: 41) quer em relação aos
capitalistas, no caso do socialismo, quer em relação aos topos da insalubridade-
imoralidade-criminalidade urbana, no caso dos higienistas.
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cidade em crise em função de uma mimética capitalista da apropriação é re-
presentada quase como ritual quotidiano para aqueles que, como os assistentes
sociais, trabalham directamente com aqueles que são vitimas dessa violência e
chega aos Media quando os jornalistas ou opinion makers consideram que essa
violência possibilita a união da comunidade envolvente em actos de repúdio ou
compaixão e, finalmente, em alturas de renovação da cosmogonia política, os
políticos recorrem à re-presentificação da crise para se constituírem como arautos
de uma nova ordem social mais justa.
6. Conclusão
Bibliografia
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