Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
coordenadora
Adriana Freire Nogueira
coordenadora
Otium et Negotim
Otium et
Negotium
As Antíteses na Antiguidade
Actas de Colóquio
Vega Vega
2007
otium et negotium
Adriana Freire Nogueira
Coordenadora
otium et negotium
As Antíteses na Antiguidade
z
Lisboa
Vega
2007
Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade
Actas do IV Colóquio da APEC
coordenação
Adriana Freire Nogueira
concepção gráfica
Fernando Bastos
execução gráfica
Vega Editora, Ltda
Alto dos Moinhos, 6-A
1500-459 LISBOA
DEPÓSITO LEGAL
268413/07
(ao qual não faltou um banquete num restaurante grego). A ACTA (A Companhia
de Teatro do Algarve) fez uma ante-estreia da peça que estava a encenar (Antígona,
num texto adaptado da tragédia de Sófocles e de A Tumba de Antígona, de Maria
Zambrano), no Grande Auditório da Universidade do Algarve, numa das noites
do Colóquio, e o Cineclube de Faro disponibilizou-se para apresentar na sua sala,
no espaço do IPJ da cidade de Faro, a Phaedra, de Jules Dassin, dando estas duas
instituições culturais visibilidade ao que os classicistas do país podem fazer.
A leitura dos textos dirá tudo o resto.
Quero deixar aqui o nosso apreço e respeito pelo malogrado colega Fernando
Patrício Lemos, da Universidade de Lisboa, com quem pudemos conviver mais de
perto naqueles dias.
A todos os participantes, com e sem apresentação de comunicação, devo graças
pela presença no IV Colóquio da APEC e pela paciência em esperar pela saída des-
tas Actas. Não me alongando, quero destacar e agradecer especialmente:
- o apoio constante que nos deu o então Departamento de Letras Clássicas e
Modernas da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Al-
garve (hoje Departamento de Línguas, Comunicação e Artes), que quis, por muito
tempo, que o seu nome reflectisse esta área de conhecimento;
- ao Mestre Luís Miguel Pereira, que foi o braço direito da execução da activi-
dade;
- à Professora Doutora Maria de Fátima Sousa e Silva, pelo amparo que deu a
este projecto, desde o embrião.
Thesis and Antithesis in the Ancient Greek and Roman Theatre 241
Ioanna Papadopoulou
Real vs Virtual: a aprendizagem das declinações através do Jogo Lingua Latina 253
Luís Pereira
obras teatrais e épicas. Quanto a Plauto e a Terêncio, sabemos que as suas peças são,
na maioria, inspiradas na Comédia Nova grega.
Catão-o-Antigo, conhecido como adversário do helenismo, frequentava, no en-
tanto, no dizer de Plutarco, palestras e teatros gregos na Sicília. Consta até que, na
velhice, se teria aplicado a estudar grego…
E que dizer do chamado “círculo dos Cipiões”? A Grécia só foi definitivamente
conquistada por Roma em 146 a. C., mas, antes disso, Públio Cornélio Cipião
(filho de Cipião-o-Africano) escrevera História em grego, prova de que a cultura
romana, nessa época, já era bilingue. Em 168 a. C., depois da batalha de Pidna,
foi deportado para Roma, entre os reféns gregos, o notável estratego da Liga da
Arcádia, Políbio, que, como preceptor de Cipião Emiliano, escreveu em grego uma
das mais notáveis Histórias de Roma. Junto desta família actuou o filósofo grego
Panécio. Mais tarde, Possidónio havia de consolidar o estoicismo em Roma. E, pos-
teriormente, Lucrécio cantará o epicurismo, que não teve grande sucesso entre os
latinos, embora também Horácio fosse em certa medida epicurista.
Entretanto, como disse, a Grécia foi militarmente vencida em 146 a. C. e com
essa derrota consumou paradoxalmente a sua vitória.
No séc. I a.C., os poetas líricos latinos imitavam os Gregos alexandrinos. Cícero
chamava a este grupo inovador (em que Catulo foi um dos principais figurantes) os
“poetas novos” (neoteroi: Cartas a Ático, VII, 2, 1: poetae noui: De Oratore, 48, 161),
que detestavam o velho Énio. Apodava-os Cícero também de cantores Euphorionis
(Tusculanas, 3, 45), como imitadores fanáticos do alexandrino Eufórion.
Mas eis que falei de Cícero! Várias bibliotecas seriam necessárias (e não apenas
vários livros…) para falar pormenorizadamente da actuação de Cícero como trans-
missor da cultura grega para latim e, através deste, para toda a cultura ocidental.
Em breves palavras lembrarei apenas os aspectos fundamentais que todos conhe-
cem. Através das obras filosóficas de Cícero, a principais doutrinas filosóficas gregas
entraram no património cultural europeu. Ele não falou apenas da história da filo-
sofia grega: adaptou a linguagem filosófica à língua latina e, através dela, a todas as
línguas europeias. As obras ciceronianas em que se nota sobretudo a influência da
filosofia grega são: De Officiis, De Republica (I e II), De Legibus (I). Mas Cícero não
se ficou apenas pela filosofia. Encareceu também o valor da História (De Oratore,
II, 15, 62-63), lição igualmente recebida dos Gregos. Dissertou ainda sobre a me-
lhor forma de Constituição Política (como já fizera Políbio e vários outros autores
gregos, de Heródoto a Plutarco1).
As manifestações de apreço pela Grécia não escasseiam em muitos autores lati-
nos. Seria impossível, nesta breve comunicação, alongar-me em muitas citações so-
bre o assunto. Limitar-me-ei a lembrar um passo significativo de Plínio – o – Moço
1
Dissertei brevemente sobre a história das teorias respeitantes às várias formas de Constituições políticas em Grécia e
Roma no meu estudo intitulado: “Democracia – a palavra e o conteúdo de Heródoto a Plutarco” (Actas do Congresso
“Plutarco Educador da Europa”, de 11 e 12 de Novembro de 1999, Instituto de Estudos Clássicos e Humanísticos da
Faculdade de Letras de Coimbra. Edição da Fundação Engenheiro António de Almeida, Porto, 2002).
(autor da segunda metade do séc. I d. C.). Numa das suas Cartas, dirigida ao amigo
Máximo, nomeado procônsul da Acaia (designação da Grécia no Império Romano)
escreve (Cartas, 24, 1-4):
“A afeição que tenho por ti obriga-me, não a ensinar-te (pois não tens neces-
sidade de mestre), mas a lembrar-te que tenhas presente e ponhas em prática
o que sabes, sem o que melhor seria não saber nada. Pensa que foste enviado
para a província da Acaia, para o seio e o coração dessa Grécia em que, como
reza a tradição, foram descobertas a civilização, as letras e a própria cultura
de terra; que foste enviado para pôr em ordem as Constituições das cidades
livres; que foste enviado a homens que são homens por excelência, a cidadãos
livres, livres entre todos, que depois de terem recebido esse privilégio da na-
tureza, o conservam pela coragem, pelo mérito, pelas alianças, pelos tratados
e pela religião. Respeita os seus deuses fundadores e os nomes que os deuses
usam na sua língua; respeita a sua antiga glória e até a velhice que é venerável
no homem e sagrada nas cidades. Que junto de ti seja honrada a antiguida-
de, os grandes feitos e até as lendas. Não amesquinhes a dignidade de quem
quer que seja, nem mesmo a vaidade de alguém. Conserva diante dos olhos a
noção que dessa terra é que nos veio o Direito; que é ela que nos deu as nos-
sas leis, não depois de nos ter vencido, mas a nosso pedido; que é em Atenas
que vais entrar, que é Lacedemónia que vais governar e que arrancar--lhes a
última sombra e o nome que lhes resta seria cruel, selvagem, bárbaro.”2
Além deste passo significativo, lembrarei apenas o que todos sabem: o grande
poema épico de Virgílio faz de Eneias, um sobrevivente da guerra de Tróia, o fun-
dador do Império Romano. A epopeia latina está repleta de Homero.
Mas isto não quer dizer que os autores latinos não afirmassem os valores roma-
nos e não defendessem a originalidade romana em diversos sectores da vida pública
e privada. As obras mais notáveis a este respeito são o De Republica e o De Officiis
desse mesmo Cícero que tanto helenizou a cultura romana. Deste último tratado
citarei um passo referente ao conceito de guerra justa praticada pelos Romanos (I,
11, 34-36):
“Pelo que toca ao Estado, devem observar-se acima de tudo as leis da guer-
ra. Pois havendo duas formas de contender, uma pela discussão, outra pela
força, e sendo aquela própria do homem, e esta das feras, tem de se recorrer
à segunda, se não for possível utilizar a primeira. Por este motivo, pode-se
entrar em guerra devido a essa razão, a fim de se poder viver em paz sem
injustiça; porém, uma vez alcançada a vitória, devem deixar-se viver os que
não foram cruéis ou desumanos na guerra, assim como os nossos antepas-
2
Pline-le-Jeune, Lettres, Tomos I-IV, Paris, Les Belles Lettres.
No mesmo tratado ciceroniano são recordados sucintamente (I, 33. 121) os va-
lores dos mos maiorum (isto é, a tradição dos antepassados): justiça, lealdade, libera-
lidade, modéstia, temperança, amor da glória e da virtude (iustitia, fides, liberalitas,
modestia, temperantia, gloria, virtus).
Para concluir as alusões a Cícero, acrescentarei apenas umas curtas linhas do
De Officiis (II, 8, 26-27):
“gosto mais de lembrar factos de outros povos que os nossos. No entanto, en-
quanto era a generosidade que sustinha o império romano, e não a injustiça,
enquanto se fazia a guerra para defender os aliados ou para preservar o poder,
o fim das guerras era suave e a severidade só entrava em cena quando era
necessária; o Senado era o porto de abrigo de reis, povos e nações, e os nossos
magistrados e generais ambicionavam obter um único título de glória, o de
terem defendido as províncias e os aliados com justiça e lealdade. Assim po-
dia chamar-se com mais exactidão protecção do mundo do que império.”
4
Sobre este Discurso de Díon de Prusa publiquei um artigo intitulado “Uma novela Ecologista na Grécia Antiga” (Re-
vista Ágora, Universidade de Aveiro, n.º 2, 2000, pp. 33-44).
5
Sobre os Setenta ver a entrada correspondente no meu Dicionário de Literatura Grega, Lisboa, Verbo, 2001.
6
Sobre o uso do grego pelas comunidades judaicas no Império Romano, ver: Nuno Simões Rodrigues, Iudaei in Urbe.
Os Judeus em Roma de Pompeio aos Flávios. Tese de Doutoramento em História da Antiguidade Clássica apresentada à
Faculdade de Letras de Lisboa, Departamento de História, 2004, 918 pp. Informação: Esta tese encontra-se à leitura
nas seguintes bibliotecas: Biblioteca Nacional de Lisboa, Biblioteca Central da Faculdade de Leras de Lisboa, Biblioteca
do Instituto Clássico André de Resende da Faculdade de Letras de Lisboa, Biblioteca do Instituto de Estudos Clássicos
e Humanísticos da Faculdade de Letras de Coimbra.
dência da Grécia.
E eis que no séc. XXI, a cultura e a língua gregas permanecem em quase todos
os domínios da vida ocidental. No vocabulário da religião cristã, como já lembrá-
mos. Nas ciências tradicionais quase todo o vocabulário é grego (na Medicina, na
Filosofia, na Teorização Literária, na Gramática, etc.). Na política, o termo demo-
cracia repete-se todos os dias. No desporto, fala-se com frequência em autódromos,
hipódromos e em maratonas. A designação de Jogos Olímpicos consagra os maiores
eventos desportivos mundiais, evocação da velha Olímpia grega, onde se disputa-
vam os exercícios do pentatlo (salto, corrida, lançamento do disco, lançamento do
dardo, luta) e as corridas de carros, cujos vencedores o poeta Píndaro (no séc. V a.
C.) imortalizou nas suas Odes Olímpicas.
Na vida quotidiana, não podemos descer à rua sem encontrar táxis, e semáforos.
Se vamos ao correio, é possível expedir telegramas. Ao virar da esquina, podemos
entrar num fotógrafo ou numa biblioteca. E, na vida doméstica, diária, além do
telefone fixo, dispomos de objectos designados com termos greco-latinos, como o
telemóvel e a televisão. Não podemos esquecer também que a grande manifestação
de arte e de técnica, que se afirmou no séc. XX, assumiu o termo grego de cinema.
Não acabaríamos tão cedo se quiséssemos prolongar estas reminiscências…
E eis que aqui estamos no Algarve (que já foi árabe…) a celebrar antíteses greco-
latinas, carregadas de significado para o nosso pensamento e para a nossa activida-
de.
Horácio tinha razão: Roma, a “vencedora vencida” deu, e espero que dará ain-
da, durante milénios, a lição de respeito pelos vencidos, a capacidade de assimilação
de culturas alheias, contrariando a xenofobia (que também é palavra grega…).
F ará sentido este tema num colóquio sobre as “Antíteses na Antiguidade”? Amor
e ódio, paz e guerra, justiça e injustiça, palavra e acção, seriam, por certo, op-
ções bem mais óbvias e simples de tratar. Mas, um duplo fenómeno ainda hoje me
intriga: o da condição feminina na antiguidade, e o do fracasso do Cristianismo
em fazer vingar na prática o que se vê acontecer no evangelho e a doutrina apostó-
lica ensina. Não existe, de facto, uma antítese na relação homem/mulher. Mas, na
prática de muitos povos, e não só os menos cultos e civilizados, tal suposta antíte-
se molda consciências e mentalidades, impõe-se no âmbito dos relacionamentos,
descrimina e abala profundamente essa área tão sensível da pessoa e da dignidade
humana.
Tendemos a olhar para a Atenas clássica como o paradigma do progresso sócio-
político e cultural: o berço da democracia, da tolerância, da liberdade de pensamen-
to e expressão. Mas o facto é que a igualdade, como a entendemos hoje, não existia.
Só um número restrito de cidadãos com pergaminhos de ascendência democrática
ou uma situação económica invejável se podia gloriar de exercer os direitos cívicos
em plenitude. E as mulheres, mesmo as oriundas das famílias mais nobres, bem
poucos direitos tinham. A julgar por uma afirmação de Menandro, elas nem sequer
tinham direito à educação. “Ensinar uma mulher a ler e escrever?” Interroga-se e
acrescenta: “Que coisa terrível! É como instilar mais veneno numa cobra”.
Como justamente observa Cheryl Glenn, citando Stallybrass, “nos últimos dois
mil e quinhentos anos da cultura ocidental, a mulher ideal tem sido disciplinada
por códigos de cultura que requerem boca fechada (silêncio), corpo coberto (casti-
dade), e vida enclausurada (circunscrição doméstica)1. Mas houve sempre nobres
excepções que culminam com o ensino de Cristo e a prática do evangelho: mulhe-
res que ao longo da história da cultura fizeram a diferença na filosofia, na retórica,
na literatura, na religião, na sociedade e na educação.
res, por seu turno, eram praticamente destituídas de direitos e viam a área da sua
acção social circunscrita ao domínio das relações familiares e de amizade entre os
seus mais próximos. Excluídas da actividade social, económica e política, as mu-
lheres destinavam-se apenas ao casamento, à vida doméstica e à criação dos filhos2.
Quando Aristóteles afirma que o homem é por natureza superior à mulher3, e que
são mais nobres e belas as suas virtudes e acções4, está simplesmente a representar
um estado generalizado de consciência; estado que se perpetuou por mais de dois
milénios e induziu o homem a ver na mulher um ser naturalmente inferior e dele
dependente. Foi sacrificada por esta ideologia dominante que a mulher se viu des-
tituída de todos os seus direitos fundamentais. Sem espaço algum na vida pública,
e sem a mínima hipótese de acesso ao poder, ela se viu abafada e silenciada5. Não
tinha nome, não tinha estatuto, não tinha sequer direito à cultura e só em ca-
sos muito especiais à cidadania. E essas diferenças de tratamento não se baseavam
primariamente no sexo. Segundo a tese defendida por Fiorenza, “os antigos não
precisavam de se escudar em factos de diferença sexual para sustentar a tese de que
as mulheres eram inferiores aos homens e a eles sujeitas”6. O que determinava a
diferença entre o homem e a mulher, acrescenta, era o estatuto social e o lugar que
cada um ocupava na sociedade, e não o que organicamente os distinguia. Então, era
o género como categoria cultural que determinava a diferença de tratamento. Mas,
com o iluminismo, radicalizou-se a noção de dois sexos opostos, e passou a susten-
tar-se que é nessa oposição biológica incomensurável que se baseiam as diferentes
funções que homens e mulheres desempenham com suas vidas no plano da vida
económica, política, cultural, social e relacional. A mulher não é mais vista como
um ser humano inferior, mas como uma pessoa totalmente diferente do homem;
diferente, mas, mesmo assim, ideologicamente descriminada.
Esta foi a regra, mas houve, felizmente, bem nobres excepções; mulheres que
desafiaram a ideologia do silêncio feminino e romperam as amarras de uma menori-
dade desajustada e cruel, fazendo com que a sua voz isoladamente soasse na poesia,
na filosofia, na palavra profética e no deslumbramento da experiência religiosa. Safo,
Teano, Aspásia, Hiparquia e Diotima entre os gregos, Hortênsia, Fúlvia, Amásia
e Semprónia, entre os romanos, são apenas nove das muitas figuras femininas que
estoicamente resistiram contra a corrente dos tempos pela afirmação do valor e dig-
nidade da sua condição real.
Entre as primeiras, Safo de Lesbos foi a única mulher da antiguidade que pro-
2
Ibid., pp. 23-24. “A Greek marriage was a transaction whereby a woman’s father lent her out to the head of another
oikos, perhaps meeting her husband for the first time at their marriage, so that she might perform for the latter the
functions of wife and mother” (p. 24).
Aristóteles escreve que, “entre os sexos, o macho é por natureza superior e a fêmea inferior; o macho manda e a fêmea
3
duziu uma obra literária em nada inferior à mais bela obra poética dos melhores
escritores do sexo masculino. Platão invocou-a como a décima musa, Aristóteles
honrou-a como o expoente máximo de sabedoria, e Estrabão reconheceu nela uma
maravilha entre as mulheres. No número dos discípulos de Pitágoras que se dedi-
caram à filosofia e ao bem da educação e da cultura, contavam-se também muitas
mulheres. Pela sua escola, que dois séculos antes de Platão fora imortalizada por
visar a educação do homem total e se fundar no princípio de igual oportunidade
para ambos os sexos, passou uma mulher excepcionalmente culta chamada Teano.
Referida elogiosamente por Diógenes Laércio e Porfírio7, Teano contribuiu extraor-
dinariamente com suas cartas para a formação moral e espiritual de outras mulhe-
res, embora defendendo uma postura de moderação e ordem social, respeitando as
leis naturais de hierarquia no âmbito da família e do matrimónio. Diotima, mulher
pitagórica exaltada pela sua virtude, eloquência e sabedoria no Simpósio de Platão,
foi mais uma nobre excepção às mulheres excluídas da vida social e intelectual na
antiguidade helénica. Fosse ela uma figura histórica ou literária, o facto é que repre-
sentou a influência de uma mulher no pensamento filosófico, retórico e metafísico
de Sócrates e Platão8. Hiparquia nasceu na Trácia, no seio de uma família aristo-
crática ateniense em 346 a.C. Conforme Diógenes Laércio a retrata, lutou desde
muito cedo por se inserir em círculos intelectuais masculinos, e conseguiu-o em
resultado do seu convívio e aprendizagem com Crates, filósofo cínico brilhante que
se empenhara na disseminação dos ideais de justiça e igualdade. Desta sua relação
com o mestre resultou uma paixão tão forte que, vencendo todas as barreiras e re-
nunciando a todas as vantagens da sua nobre estirpe, acabou por unir a sua vida à
dele crescendo em conhecimento e sabedoria. Na sua luta constante pelos ideais da
equidade, da justiça e dos direitos humanos, Hiparquia passou a sua vida a enco-
rajar a união das mulheres contra todos os tipos de tirania e injustiça, reclamando
os seus direitos de cidadania em áreas tão diversas como a política, a administração
pública, o comércio, as artes e as humanidades9. Uma outra mulher que na Grécia
clássica também não ficou circunscrita à esfera da vida doméstica, antes sobremo-
do se distinguiu na vida pública, foi Aspásia10. A sua reputação na filosofia e na
retórica foi testemunhada tanto por Platão e Xenofonte como por Cícero, Plutarco
e Ateneu. Plutarco, por exemplo, diz que a sua sensibilidade política foi altamente
apreciada por Péricles, que não só se apaixonou por ela e a tomou por companhei-
7
Este último, na sua Vida de Pitágoras.
8
Cf. Platão, Banquete 207 c.
9
Cf. Maria Jamil Fasolo, “Hiparchia – The World’s First Liberated Woman”, http://ancienthistory.about.com /library/
bl/uc_fasolo1b.htm, 2002. Apaixonada pelo filósofo e pela sua doutrina, Hiparquia arriscou tudo. Contrariando as
pressões da família, disse: “Eu honro-vos como uma filha deve fazer, mas porei termo à vida se não consentirem o meu
casamento com Crates”. E, respondendo ao noivo que a pediu em casamento dizendo que nada lhe podia dar como
marido a não ser a filosofia e toda a satisfação que ela proporciona, respondeu: “Tens por mim um amor tão grande e
profundo como o que no íntimo eu sinto por ti? Se sim... então serei tua para sempre... Pois o que eu busco não é riqueza
material, mas as riquezas do espírito que só tu me podes ensinar”.
10
Cheryl Glenn, op. cit., p. 36-37.
ra11, como também se deixou seduzir pela sua arte na composição dos discursos que
mais o notabilizaram, nomeadamente a oração fúnebre12. O reconhecimento da sua
sabedoria e eloquência foi tão generalizado na antiguidade, que Filóstrato diz haver
sido ela quem afinou a língua de Péricles na imitação de Górgias – o mesmo Péricles
que Sócrates havia proclamado como o mais respeitado e perfeito orador do seu
tempo13. A formação retórica, filosófica e sofística de Aspásia, a sua sensibilidade e
competência política, e a influência poderosa que exerceu a estes vários níveis sobre
Péricles consagraram-na como membro activo e eficaz do mais distinto círculo in-
telectual de Atenas14.
A mulher romana, como a grega, foi vítima das mesmas vicissitudes. Poderá tal-
vez dizer-se que a condição da mulher melhorou um pouco sob o império romano15,
mas porque ela não tinha poder nem estava inserida na vida pública, a sua auto-
nomia era pouco mais do que ilusória16. De acordo com a lei romana, as mulheres
transitavam da autoridade dos pais para a dos maridos, e até uma viúva idosa e rica
precisava de um homem para lhe administrar os bens. A única vantagem de trata-
mento que elas poderiam ter devia-se a um mais elevado conceito do casamento, do
lar e da família na sociedade romana. A matrona romana de elevada estirpe chegou,
talvez por isso, a ver alargadas as áreas da sua competência, sobretudo na educação
dos filhos e nas decisões relativas ao seu casamento. As mais cultas vieram mesmo a
distinguir-se na vida pública; sempre, porém, em áreas definidas e contornadas pelo
poder masculino17. Bruce Winter argumenta que no século I a.C., um novo tipo
de mulher começou a surgir na cena social. Mulheres promíscuas, apaixonadas e
aculturadas imitavam a conduta vanguardista da elite feminina de Roma, especial-
mente as mulheres da casa imperial; mulheres que desafiavam a prática tradicional,
forçando a sua participação na vida pública, libertas de constrangimentos morais, e
sendo muito ousadas na maneira de se vestirem e apresentarem em público. As que
mais se distinguiram, transpondo as elementares fronteiras da sua condição, vieram
a sofrer na carne os efeitos da tal ousadia, acabando por ceder ou se mostrar extre-
mamente vulneráveis perante os assaltos desferidos contra a sua honra, a sua sexua-
11
Plutarco, Vidas dos Nobres Gregos e Romanos, 200.1.
12
Platão, Menexeno, 236 b.
13
Fedro 269e – 270a.
14
Cf. Sheryl Glenn, op. cit., p. 43.
15
Gillian Clark (Women in Late Antiquity: Pagan and Christian Life-Styles, Oxford: Clarendon Press, 1993, p. 71),
observa, por exemplo, que, em contraste com o Corpus Hipocrático, “os textos médicos da antiguidade tardia, à seme-
lhança dos do século I e II [d.C.], tendem a enfatizar a semelhança entre o homem e a mulher”. Cf. David Constan,
“Women, Ethnicity and Power in the Roman Empire”, Proceedings of the Second Conference on Feminism and the Classics,
publicadas em Diotima: Materials for the Study of Women and Gender in the Ancient World, 2000. http://www.stoa.org/
cgi-bin/text?doc=Stoa:text:2002.
16
Cf. Jâmblico, Babylonica (Helmar Habrich (ed.), Iamblichi Babyloniacorum Reliquiae, Leipzig: Teubner, 1960, pp.
27-29. Plutarco, em Virtudes das Mulheres 242 F, afirma que “a virtude da mulher e do homem é uma e a mesma”; mas,
vejam-se casos de virtude feminina em As Mulheres Etruscas 247 A-C, onde parece fazer-se a distinção entre virtude
activa e passiva para justificar a das mulheres.
17
Sheryl Glenn, op. cit., p. 73.
lidade e as suas margens de influência. Foi a presença desta nova classe de mulheres
na sociedade que provocou, não só o surgimento de leis relativas ao casamento e à
forma de apresentação da mulher em público, mas também uma nova ênfase entre
os filósofos sobre a necessidade de se regressar à prática das virtudes cardeais, em
especial a swfrosu n/ h18. Mas terá também provocado atitudes perversas como a
inveja, a calúnia, a injúria e a infâmia, sentimentos que injustamente acabavam por
denegrir até mesmo a imagem de mulheres cujo valor as distinguia na sociedade e
cultura do seu tempo19.
com um fluxo menstrual por mais de doze anos, e uma criança defunta – a acção
libertadora de Jesus tem implicações que ultrapassam o milagre. Também aqui a
história central é a de uma mulher considerada impura 22. Em vez de condenação e
exclusão, ela é objecto de especial cuidado. Até porque, se a mulher do primeiro ca-
pítulo é recipiente passiva da cura, esta mulher toma a iniciativa: aproxima-se, pensa
no que vai fazer (“se eu ao menos tocar nas suas vestes, serei curada”), e responde
com temor e fé, em adoração, às palavras de Jesus. Esta mulher, embora não fosse
uma discípula, agiu como tal, crendo nele e passando a segui-lo.
Mais adiante, no capítulo 7, estamos na presença de uma mulher que, a par
de ser mulher, é gentílica ou pagã, e tem uma filha possessa do demónio. Embora
combinando três formas distintas de impureza, também viu a sua petição atendida
na libertação da filha. Contrariamente à tradição dos judeus, a postura de Jesus
em todos estes casos não é de exclusão mas inclusão, e a sua abordagem não é de
condenação mas transformação e libertação. Independentemente das fronteiras que
as separavam e dos respectivos graus de impureza, todas estas mulheres receberam
a dignidade da fé e do ministério23.
Na narrativa da paixão (14-16), verificamos que as mulheres se tornam ainda
mais visíveis no núcleo dos discípulos de Jesus, por contraste com os apóstolos entre
os quais se conta um que o trai, outro que o nega, outros ainda que adormecem e
dele se afastam no auge da sua agonia. O único gesto de fé e de honra em toda a
narrativa foi a unção de Jesus por uma mulher, e este gesto sugere o cumprimento
simbólico de uma real função apostólica ligada à sua paixão e morte24. Além disso,
Marcos observa, no final da cena da crucificação, que enquanto os apóstolos se
afastaram do quadro das operações em que se deu a morte e sepultamento de Jesus,
as mulheres mantiveram-se em cena e permaneceram vigilantes sendo também as
primeiras testemunhas da ressurreição25. Nas palavras de Sabin, “o que é notável
nestas mulheres simples não é quem elas eram, mas o que fizeram. E, nas palavras da
narrativa marcana, o que elas fizeram foi agir como seguidoras fiéis (i.e., discípulos),
como servas (i.e., ministros), e como as testemunhas discipulares que ungiram seu
corpo (i.e., apóstolos)”26. De marginais e excluídas, no ministério de Jesus as mu-
lheres transformaram-se em discípulas, diaconisas e modelos de fé perfeitamente
integradas no testemunho do reino de Deus. Os apóstolos foram chamados a seguir
Jesus (Marcos 1), a tomar a sua cruz (Marcos 8), a seguir o seu exemplo como servos
de todos (Marcos 11), a preparar-se para a sua morte e vigiar com ele na sua agonia
No judaísmo antigo, a mulher era considerada impura durante o tempo da sua menstruação, e os profetas usavam essa
22
imagem como metáfora do povo de Israel em estado de impureza pela sua idolatria.
23
Marie Sabin, op. cit., p.7.
24
Marie Sabin comenta o significado teológico deste acto referindo-se ao óleo trazido num vaso de alabastro, ao seu alto
valor, e ao seu perfume, representando as especiarias que as mulheres mais tarde iriam levar ao túmulo de Jesus e simbo-
lizando a sua morte: o corpo de Jesus quebrantado na cruz do calvário e o seu sangue derramado (op. cit., pp. 5.7).
25
As mulheres referidas são Maria Madalena, Maria mãe de Tiago, e Salomé.
26
Marie Sabin, op. cit., p. 8.
27
Ibid., p. 11.
28
Cf. Jane Kopas, “Jesus and Women: Luke’s Gospel”, Theology Today 43:2, 1986, p. 192.
29
Nas promessas feitas a Zacarias e Maria, o primeiro põe em causa a promessa do anjo e fica mudo, a segunda crê,
interroga-se como pode ser isso, uma vez que é virgem, e é altamente favorecida e abençoada. No cântico, o Magnificat
(EvLuc.1:46-56), Maria celebra a solidariedade de todos os que buscam a justiça, em especial as mulheres que partilham
da sua esperança. A viúva de Naim, classe das mulheres mais oprimidas e negligenciadas da sociedade, recebeu de volta
a vida do seu filho, graças a um acto singular de compaixão (EvLuc. 7:11-17). A mulher pecadora, numa atitude humilde
de arrependimento, ungiu os pés de Jesus e lhos enxugou com os seus cabelos, em claro contraste com a atitude arrogan-
te do fariseu que convidara Jesus para jantar (EvLuc.7:36-50). Por isso os seus pecados lhe foram perdoados.
30
“Mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos, e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual
saíram sete demónios, e Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, Susana e muitas outras, as quais lhe prestavam
assistência com os seus bens” (EvLuc. 8:1-3).
31
Viagem que, segundo Kopas, nos dá a estrutura da apresentação do compromisso de Jesus com a sua missão (op. cit.,
p.198).
32
Apenas registada neste evangelho (EvLuc. 10:38-42).
33
Loc. cit.
34
“O conceito clássico de igualdade remonta a Aristóteles, que exige que iguais se tratem como iguais e os desiguais de
forma diferente... Esta definição aristotélica de igualdade produziu desigualdades consideráveis cujo padrão e tertium
comparationis para o ser humano tem sido – e ainda é – o homem culto de elite abastada, o senhor, o mestre, o pai de
família. Ele é a medida para o que significa ser humano; é ele que define quem e o que é igual e quem portanto pode
esperar direitos iguais, e quem e o que é desigual e deve por conseguinte ser tratado diferentemente” (Elizabeth Schüssler
Fiorenza, op. cit., p. 158).
35
Paul C. Vitz, “The Father Almighty, Maker of Male & Female”, http:/www.paulvitz.com/fatherhood2. html, pp.
3-5.
Cf. Don Garlington, “[Corpus-Paul] Martin on Galatians”, http://lists.ibiblio.org/pipermail/ corpuspaul/20030709/...,
36
pp. 1-2.
a sua vida a inspirar muitas outras mulheres a servir em várias frentes a causa do
evangelho.
O mundo poderia ser hoje bem diferente e o equilíbrio relacional entre o ho-
mem e a mulher mais nobre e justo se, na prática cristã, se tivesse seguido a doutrina
de Cristo com todas as suas consequências sociais e humanas. Mas, à medida que
o Cristianismo se foi instalando e o ministério pastoral evoluiu da sua simplicidade
original para uma hierarquia episcopal masculina, a missão da mulher foi-se apa-
gando e a consciência da sua dignidade diminuindo. Só assim se compreende que
figuras tão distintas da Igreja como Santo Agostinho e Tomás de Aquino se tives-
sem identificado teologicamente mais com a teoria filosófica de Aristóteles sobre a
mulher do que com os ensinamentos de Jesus Cristo, o Senhor da Igreja.
Corpus considerado
Léxico latino (LL) desde os primeiros documentos até ao fim da Antiguidade
(52309): em Gradenwitz.
Léxico latino vindo directamente do indo-europeu (IE/L) (4321): em Pokorny.
Léxico latino transmitido às línguas românicas (L/LR) (6481): em Meyer-
Lübke.
Léxico de Plauto (8303): em Maniet.
Léxico de Catão (3287): em Purnelle.
Léxico de Cícero (10014): em Laurand.
Léxico de Virgílio (5831): em Wetmore.
argentumextenebronides
cluninstaridysarchides 22
scytalosagittipelliger
clutomistaridysarchides honorificabilitudinitas
sesquivicesimusseptimus 23
supersesquisextusdecimus 24
25
subductisupercilicarptores 26
thesaurochrysonicochrysides
thesaurochrysonicochrysides 27
Quadro 1 - Palavras com 19 ou mais letras em Busca & Gradenwitz (obs: As palavras de Busa
não incluídas em Gradenwitz e as de Gradenwitz não incluídas em Busa estão em itálico).
Vejamos, em primeiro lugar, o que se passa com a dimensão das palavras e a sua
distribuição nos totais de Busa e de Gradenwitz (Quadro 2). A grande maioria delas
situa-se na dimensão de 5 a 12 letras, sobretudo na de 8 e 9. As dimensões de 1 a 3
letras e de 16 ou mais englobam um número relativamente muito reduzido de pala-
vras (Quadro 3). Uma vez que o número total de palavras das duas listas é diferente,
é útil examinar e comparar estes mesmos dados em percentagens (Quadro 4), o que
faremos geralmente daqui em diante pela mesma razão.
As palavras de origem indo-europeia de transmissão ininterrupta (Pokorny),
têm uma dimensão que varia entre 1 e 15 letras, e a maioria situa-se entre as 4 e as
8 letras, sobretudo na dimensão de 5 e 6 letras (Quadro 5).
As palavras transmitidas directamente às línguas românicas (Meyer-Lübke),
têm uma dimensão que varia entre 1 e 14 letras, e a maioria situa-se entre as 4 e as
8 letras, sobretudo na dimensão de 6 e 7 letras (Quadro 5).
A média geral é em Pokorny de 6,0650, em Gradenwitz de 8,7654, em Meyer-
Lübke 6,8263, em Plauto de 7,6112, em Catão de 6,8013, em Cícero de 7,7676 e
Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 21
António Rodrigues de Almeida
Relação entre a dimensão das palavras e o seu uso literário: Plauto, Catão,
Cícero e Virgílio
Os teóricos latinos da poética e da retórica (Cícero, Horácio, Quintiliano), re-
ferindo-se à dimensão das palavras, recomendam que se faça um uso harmonioso
delas, combinando alternadamente umas e outras, e que se evite o uso de palavras
muito longas. É óbvio que o uso oral ou escrito da língua latina implica necessa-
riamente o recurso às palavras muito pequenas e às palavras de dimensão média,
as primeiras porque são indispensáveis na interligação das palavras, as segundas
porque constituem a maior parte do léxico. No uso oral, se nos ativermos ao trajecto
do IE para as línguas românicas, revela-se em geral uma tendência constante para
privilegiar a dimensão pequena ou média baixa. No uso literário, verifica-se até ao
século IV d. C., um escrúpulo muito grande no uso de palavras muito longas: as
raras ocorrências devem-se fundamentalmente ao contexto da comédia, em inova-
ções, ao modo grego ou com elementos gregos, com duas bases lexicais (Plauto e Te-
rêncio), ao uso de numerais complexos (Cícero, Tito Lívio, Valério Máximo) e aos
contextos tecnico-científico (Columela, Celso, Plínio-o-Velho, Séneca) e religioso
(Arnóbio, Tertuliano). Com o século IV, embora não se possa falar de um grande
número de palavras muito longas, elas ocorrem com maior liberdade nos autores
cristãos, mormente em Santo Agostinho, e nos contextos das artes (especialmente
gramática, retórica e música).
Uso de Plauto, Catão, Cícero e Virgílio (Quadros 9-13). A dimensão mais fre-
Conclusão
As palavras muito curtas são em pequeno número, relativamente antigas, têm
um significado geral, são de uso comum e muito frequente, e constituídas por um
único elemento lexical.
As palavras muito longas são igualmente em pequeno número, mas são relati-
vamente recentes, têm um significado restrito, tendencialmente técnico, são de uso
pouco frequente ou mesmo singular, são constituídas por uma base (75,5%) ou
mais (34,5%) acompanhada de um ou mais prefixos e/ou sufixos.
As palavras de dimensão média são em grande número, são de uso frequente
mas em dependência do contexto, e são na sua maioria criações tipicamente latinas
constituídas segundo a fórmula PREFIXO(s) + BASE + SUFIXO(s), em época nem
muito antiga nem muito tardia.
Quadro 2
18000
16000
14000
Nº de palavras
12000
10000 Gradenwitz
8000 Busa
6000
4000
2000
0
1 3 5 7 9 11 13 15 17 19 21 23 25 27
Nº de letras
Quadro 3
300
250
200
Nº de palavras
150
100
50
0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23
Nº de letras
Quadro 4
18
16
14
12
Percentagem
10 Gradenwitz
8 Busa
6
4
2
0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 111213 14151617 181920 21222324 252627
Nº de letras
Quadro 5
Léxico latino vindo do IE (Pokorny) e passado às LR (Meyer-Lübke)
30
25
20
Percentagem
Pokorny
15
Meyer-Lübke
10
0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
Nº de letras
Quadro 6
10 8,76
9 7,61 7,76
8 6,82 6,8 6,71
6,06
Média geral
7
6
5
4
3
2
1
0
Cícero
Meyer-
Catão
Pokorny
Virgílo
Plauto
Gradenwitz
Lübke
Quadro 7
30
25
20
Percentagem
Gradenwitz
15 Pokorny
10 Meyer-Lübke
5
0
1 3 5 7 9 11 13 15 17 19 21 23
Nº de letras
Quadro 8
75
80
Percentagem
60
40
20 4,76 7,14 5,95 7,14
0
III-II a.C. I a.C. I d.C. II-III d.C. IV e post.
Séculos
Bibliografia
LAURAND, Louis, Études sur le style des discours de Cicéron. Avec une esquisse de
l’ histoire du “cursus”. III, Paris, Société d’Édition “Les Belles Lettres”, 19404 (Ap-
pendice II. Vocabulaire complet de Cicéron comparé au vocabulaire de ses discours).
WETMORE, Monroe. N., Index verborum Vergilianus, New Haven, Yale Univer-
sity Press, 19302.
Marigo Alexopoulou
U. Glasgow
mai_nostos@yahoo.gr
T his paper is the result of an investigation of two concepts which are regularly
found as opposites in Greek literature: nostos and lethe. You are probably fa-
miliar with this opposition in the Odyssey. But there has been little attention paid
to this constant opposition as it developed on the tragic stage. Yet, I believe that
such an antithesis is, in fact, an equally dynamic force in many Classical tragedies.
My ongoing research extends to the comprehensive study of nostos in drama in
general. However, in the interest of short-term feasibility, I wish to discuss a single
illustrative case, namely the tragic nostos of Agamemnon as it is approached by
Aeschylus. By considering this example I believe that one may reach a better un-
derstanding of the nature of nostos in Greek drama, generally speaking.
So far I have continuously employed the term nostos, but in many ways this
is not a self-explanatory notion. What then do we mean by this term? Etymo-
logically, nostos is a nominal derivative of the verb νέομαι (I return home). Nostos,
the homecoming of someone who has been away, occurs with varying elaboration
throughout much of ancient Greek literary culture and imagination. The earlier
Greek tradition included several variants of the nostos story, in both epic and in lyric
versions, among which the Odyssey is a major example. However, other examples of
this theme were also well-known in antiquity, such as the Nostoi ascribed by Proclus
to one Agias of Trozen; the three fragments of the Hesiodic catalogue that deal
with various features of the story of Agamemnon’s fatal return; and also the fact
that Stesichorus wrote a poem called Nostoi and a poem called Oresteia.2
In the Odyssey, the direct antithesis of νόστος (return) and λήθη (oblivion) is
pervasive: it forms the decisive tension of many episodes. Thus, for instance, in the
episode with the Lotus-eaters, the opposition of nostos and lethe is explicit: anyone
who eats their fruit becomes oblivious of all but immediate pleasure, and forgets his
desire to return home. So, indeed, those of Odysseus’ companions who consume
the lotus forget their homecoming (9. 95-7). The same effect is intended by Circe’s
1 *
The first version of this paper was written when I was invited to contribute to the exploration of the variety of antith-
esis in antiquity at the conference of Otium et Negotium at the University of Algarve, October 2004. I thank those who
invited me, and those who discussed the paper with me, on that and on subsequent occasions; and especially Professor
D.L. Cairns and Kieran Hendrick.
2
See Books three and four of the Odyssey; cf. the Nostoi ascribed by Proclus to one Agias of Trozen, see Bernabé PEG
I (1987) 94ff., Davies EFG (1988) 66f.; the three fragments of the Hesiodic catalogue treat various features of the story
of Agamemnon’s fatal return, see esp. Hesiod: 23(a) MW). Stesichorus wrote a poem called Nostoi, (Page PMGF 208,
209) and a poem called Oresteia (PMGF 210-19); cf. E. Tro. 78-83; A. Ag. 627, 635, 650-57; E. Hel. 407-10.
magic potion (10.236). In Book 12 the Sirens with their song appear as another
temptation to Odysseus’ desire to return home. The hypnotic power of their song
(θέλγουσιν 12.40,44) makes the listener forget his thoughts about homecoming.
These examples suggest that in the Odyssey there is in a constant opposition of nostos
and oblivion.
Thus is established the crux of the hero’s choice: Odysseus could either return
home, or remain unseen from his fellows and family in Ithaca. One who chooses
not to return sinks into oblivion (e.g. Od. 1.95, 3.77-78).3 Odysseus comes back
from darkness. This association is especially supported by the name of Καλυψώ
that derives from the verb καλύπτειν (to cover) and suggests darkness. Living with
Calypso would mean Odysseus’ cutting himself off from society, whereas Penelope
is part of his family, kin and friends. Circe functions in a similar way in Odysseus’
nostos-story. Even innocent Nausicaa stands for Odysseus as a temptation.
His homecoming, as for any voyager, is a reclaiming of his entire life in Ithaca.
He rediscovers those left behind amid the feeling of change, ageing and death (e.g.
the parents of Odysseus: Laertes (Od. 11.187-196) in his old age isolates himself out
of longing for his son, and Anticleia (Od. 11.197) dies out of longing for her son’s
homecoming). It is obvious that the search for an unchanged world of his remem-
brance is in vain. He has to re-establish himself and reinvent his identity as the king
and the head of the household. The joy of rediscovery is mixed with the sadness of
irreparable loss.
As in the Odyssey, so also in Greek tragedy the treatment of nostos becomes a
great metaphor for the concept of change and illustrates that our native land can-
not remain a place of fixity. Obviously the Odyssey must have been an influential
example for the Attic dramatists in shaping stories with a homecoming theme pre-
sented in tragedies. Already in the Odyssey Homer uses the problematic return of
Agamemnon as a counterpoint to Odysseus’ return. So what I want to consider
now briefly is how the dualistic perspective of nostos and oblivion shows itself in Ae-
schylus’ play. We have seen that the nostos-theme in Homer’s narrative is in explicit
contrast to the concept of lethe. This opposition in Aeschylus’ play is more subtle
but, as I will show, it is effective in creating strong ironical effects and manipulating
audience response.
Aeschylus’ Agamemnon is a nostos-play since it is about Agamemnon’s home-
coming.4 As I have already suggested nostos was a theme related to heroes return-
3
In Greek society the individual was also driven away from home in search for κλέος both in athletic contests and in
war. Achilles’ immortal glory signifies the heroic ideal of a θάνατος καλός (glorious death). He did not return home,
like Odysseus, but by dying young in Troy he obtained immortal glory (Il. 9.413 ὤλετο μέν μοι νόστος, ἀτὰρ κλέος
ἄφθιτον ἔσται).
4
Nostos, the absence of a hero and his return, is one of the characteristic plot-elements of Greek tragedy. Among
the surviving tragedies Aeschylus’ Persae, Aeschylus’ Agamemnon and Sophocles’ Trachiniae may properly be called
nostos-plays, since nostos is enacted as a basic element of their plot. The formal similarity of the nostos-plays has been
acknowledged, but has not been discussed explicitly. Taplin first traced the use of the nostos-pattern in Greek tragedy
and discussed briefly which of the surviving tragedies should be called nostos-plays. He defines the nostos-plays as follows
(1977) 124: ‘First Pers is an example of a form or pattern of plot which is recurrent in Greek drama: it is what might
ing from the Trojan War and the poetic repertoire included several variants of
the nostos-story. Now, in the case of Odysseus, while he is away from home, he is
offered other alternatives than returning. But for Agamemnon, what would be his
alternative? He thinks he can only return home and assumes that things will be the
same. However, his homecoming means oblivion. The fusion of nostos and oblivion
exposes the fundamentally problematic manner of his return. Can his homecoming
reconcile the past memories with the present situation? It is exactly these dynam-
ics of oblivion that Aeschylus exploits in order to bring about Agamemnon’s fatal
return.
The existence of the opposition between nostos and lethe is proved by the treat-
ment of Agamemnon’s homecoming in Aeschylus’ text. I wish now to make some
comments on some illustrative passages from Aeschylus’ Agamemnon that bring
about this antithesis. The antithesis of nostos and oblivion is established at the very
beginning of the play. The anxiety of the Watchman employed by Klytaimestra to
give warning of the arrival of Agamemnon sets up the mood of foreboding. And his
celebration when the beacon appears signalling the fall of Troy is cut short by fear.
His worries about Klytaimestra remain, but they are too dangerous to mention
openly. Thus, he would rather keep silent (35) and most importantly he will have
no recollection (λήθομαι 39) of hinting at anything at all.
So, while the opening lines of the play introduce the nostos-theme, we are made
to feel that there is danger impending for Agamemnon when he returns. On the
homecoming of Agamemnon the Chorus admits that they disapproved of his de-
cision to get involved in a war for the sake of Helen. The returning hero is con-
demned on his arrival (799-802). Can the past be forgotten? (eg. Agamemnon’s
decision to slaughter his daughter: 205-17). So Agamemnon is held responsible for
a number of crimes: Iphigeneia, a war for the sake of Helen, the heavy loss of life at
Troy, the sacrilege. The returning hero is not the same man as he was before. Most
significantly, he returns with Cassandra. She remains at first a silent and enigmatic
figure on stage and thus becomes yet one more element wrong in the homecoming.5
She is the visual evidence of change on the returning hero.6 His absence has also
affected the status of the members of the household who were left behind (see the
clear hints that the Chorus gives at Aegisthus: 808-9 cf. 1225, 1625).
The fatal return of Agamemnon was familiar to Aeschylus’ audience. But Ae-
schylus’ creative response to the tragic return of Agamemnon is evident in his treat-
ment of it. Agamemnon greets the gods who gave him a safe homecoming and
helped him win against Priam (810-13) but his entry to the palace is pre-empted
by Klytaimestra’s appearance. Her arrival is a sudden transformation of the situa-
be called a ‘nostos’ play. In such plays a ‘hero’ returns from some mission or expedition; he may return safely to some
catastrophe at home, or may (as here, i.e. in A. Pers.) return from a catastrophe’
5
See Taplin (1977) 304.
6
Cassandra, like Iole in Sophocles’ Trachiniae, threatens the symmetry of the marriage of Agamemnon and
Klytaimestra.
tion. Agamemnon was about to enter the palace and erase the crimes of the past.
Klytaimestra controls the palace door and she will be victorious in the debate over
the manner of his entry. The tapestry scene represents the transition of a victor to
a victim. Victory, in Pindar, brings the achiever to heroic heights and the divine
resentment is a possibility. Divine φθόνος is a prize of achievement. However, Ag-
amemnon is not treated as a victor who resumes his relations with society. While
the returning hero is ready to take up his activities as king and lord of his household
he remains segregated from the community. Klytaimestra receives him in a way
that does not secure his return. This is well illustrated in the sinister associations of
this valuable textile. She proposes he should walk on tapestries when he enters. The
tapestries are dyed crimson/purple which was very expensive. Hence Klytaimestra
is proposing gratuitous destruction of their household’s wealth. The colour is also
reminiscent of dried blood – a powerful visual image of imminent death. In this
fusion of the homecoming scene to his death Agamemnon has walked into the pal-
ace. Thus the scene has a dramatic point. It well illustrates that Klytaimestra can-
not forget what happened in the past (see esp. the reminder of Iphigineia’s death).
And although she feigns devotion to her husband (A. Ag. 607) like a good waiting
wife she becomes man-destroyer (see 1231).7 Her words and her actions initiate the
chain of transgressions that underline the flaw in the welcome-scene of the return-
ing Agamemnon.
The manner of Agamemnon’s death emphasises the terrible wrongness of the
king’s return. Klytaimestra traps Agamemnon coming out of the bath with a robe
(esp. 1125-9). The theme of bath and clothing that would normally signify a posi-
tive nostos is here perverted.8 Most remarkably, after the murder the robe is called
by Klytaimestra ἄπειρον ἀμφίβληστρον (1382). The use of the word ἀμφίβληστρον
seems designed to suggest ἀμφιβάλλειν, used in all Homeric passages (as Fraenkel
points out at 1382) for dressing the guest after his bath.9 Aeschylus departs from
this Homeric topos and ἀμφιβάλλειν becomes fatal. All these elements in the text
symbolically reflect the fact that Agamemnon’s homecoming is not accomplished
with his re-integration into the oikos but with his own death. The inability to forget
destroys the possibility of a successful nostos. His nostos becomes his oblivion that
will be his death. And this is quite natural since the ultimate lethe is death.10
The souring of his return makes one feel the distance between what was and what
7
In the case of Deianeira in Sophocles’ Trachiniae she appears completely disqualified for the role that Klytaimestra
plays, but she, like Klytaimestra, will prove herself man-destroyer of Heracles by sending a fatal garment in receiving
her husband on his return.
8
In the Odyssey Eurynome put a robe around Odysseus after his bath see: Od. 23.153-5.
9
See Fraenkel (1950) III on ἀμφίβληστρον at 1382: ‘In Ag. 1382 and Cho. 492 the word was undoubtedly chosen
because of the connotations of ἀμφιβάλλειν; it is obvious that another name for a fishing-net would not have served the
poet’s purpose. We have already noticed in general (on 1109) that the whole conception of Agamemnon’s murder in the
Oresteia rests on premises that are characteristically ‘Homeric’.’
10
Death is defined as the realm of oblivion, the λήθης πεδίον (see Hesiod Theogony 1216, Aristophanes Frogs 186).
is.11 Tragedy dramatises the tragic effect of nostos on the household. The returning
hero is no longer the person that he was when he departed and his oikos has changed
during his absence. One may think that nostos is sad by its nature since it involves
mutability. From a geographical point of view the absent hero returns to the same
place; but his tragic return reveals the effect of mutability due to the passage of time.
The past cannot be forgotten and thus Agamemnon’s homecoming remains forever
out of reach and solely in his imagination. I have tried to argue that the Greek an-
tithesis of nostos and oblivion is well illustrated in the Odyssey, especially in the case
of Odysseus, where if he stays homeless he risks complete obliteration. This dualistic
concept is extended on the tragic stage. By considering some passages from Aeschylus’
Agamemnon I hope that I have shown that such an antithesis is an equally dynamic
force in a tragedy dealing with a homecoming story. The memories of the past destroy
Agamemnon’s possibility of a positive nostos. Therefore, nostos and oblivion remain
two direct opposites that cannot be reconciled on tragic stage.
Bibliography
Vernant, J.-P. (1983), Myth and Thought among the Greeks (London).
11
The souring of the return is evident in the homecoming of other heroes in Greek tragedy (namely the return of
Heracles in Sophocles’ Trachiniae and Euripides’ Heracles, the return of Neoptolemus in Euripides’ Andromache and the
return of Orestes in Aeschylus’ Choephori and the two Electra-plays.
A mor e ódio. Vida e morte. Luz e trevas. Tristeza e euforia. Liberdade e escra-
vidão.
Estas são algumas das contradições de que se tecem, desde os tempos mais
remotos, as malhas do amor. É, sem dúvida, o paradoxo no seu estado mais puro,
este que junta, em uma só pessoa, contra todas as regras da coerência e sem o mais
pequeno vestígio de lucidez, tão contraditórios estados e sentimentos. Mas foi sem-
pre assim, ao longo da história do amor, o mesmo é dizer, desde que o homem se
conhece enquanto tal, enquanto ser que sente e, portanto, enquanto ser que ama.
Nem sempre assim é; mas não são poucos os poetas do amor que persistem em
acasalar amor e ódio, em juntar vida e morte, em anunciar, à uma, euforia e pessi-
mismo, em fazer conviver tristeza e alegria, em viver, ao mesmo tempo, na luz e nas
trevas, em sentir a liberdade mesclada de cadeias e grilhões.
São paradoxos, sim, aparentemente impossíveis, como todos os paradoxos, mas
que são, em si mesmos, um dos emblemas mais visíveis dos amantes de todos os
tempos.
Em certa medida, não surpreende que assim seja. Afinal de contas, o ódio mais
intenso entre dois seres é aquele que teve antes de si uma não menos inflamada pai-
xão. Porque do amor ao ódio, como da vida à morte, a distância é bem curta.
Foi assim que foi celebrado o amor por poetas de todos os tempos; Camões será,
entre muitos outros, um exemplo bem significativo; e, com ele, tantos outros poe-
tas do Renascimento e do Barroco. A Idade Média, o Renascimento, o Barroco, o
Maneirismo, porém, neste como em tantos outros aspectos, não foram inovadores,
antes foram recolher na Antiguidade Clássica, não apenas temas, como também a
forma de os exprimir.
Esse apego a motivos e a modos de expressão, entretanto, não nasce do acaso:
ao invés, tem as suas raízes em cada época concreta. Ou seja, neste, como em tantos
outros aspectos, a literatura e, em geral, toda a actividade estética emergem num
dado contexto; é, pois, nesse mesmo contexto que devemos buscar explicações para
ambas.
Ora, as figuras do exagero, em que o código retórico é fértil, como paradoxos,
antíteses, oximoros, hipérboles, e as que dão ao discurso uma formulação mais re-
buscada, como quiasmos e trocadilhos, entre tantas outras, são frequentes em tem-
pos de encruzilhada, quando o homem vive em permanente desencontro consigo
mesmo, quando o mundo ganha a aparência de um caos ou um labirinto. Foi o que
se passou no Maneirismo, como foi, igualmente, o que se passou, muitos séculos
A forma como o amor é cantado pelos poetas é bem o reflexo dos sentimentos
exacerbados característicos desses tempos de “desvario”, para deitarmos mão de
uma sugestiva expressão camoniana.
Assim era, também, o amor em Roma, à medida que a República caminhava
para o fim; ou, pelo menos, esse foi o retrato que nos foi legado por muitos dos po-
etas de então, o retrato de um sentimento exacerbado, onde o arrebatamento é nota
dominante e onde a paixão tudo subjuga; são, enfim, os traços de um sentimento
irracional, contraditório, obsessivo . 2
Quatro dos poetas mais destacados deste tempo, Tibulo, Ovídio, Catulo, Pro-
pércio, são exemplos sugestivos dessa entrega exclusiva ao amor, aos seus doces ma-
les e suas encantadoras agruras, às suas penosas alegrias.
São palavras de Ovídio, convicto de que era preferível uma noite de dúvidas,
angústias e incertezas a uma noite de sono; a primeira permite acalentar alguma
esperança; a segunda, pelo contrário, confunde-se com a morte. Antes, por isso, as
contradições do amor:
Vejam-se as reflexões de V. M. Aguiar e Silva, Maneirismo e barroco na poesia lírica portuguesa, Coimbra, Centro de
1
Estudos Românicos, 1971; vd. em especial os capítulos “A temática da lírica maneirista” (pp. 221-323) e “Estilo e formas
da lírica maneirista” (pp. 325-395).
2
De entre os muitos trabalhos que têm sido publicados nos últimos anos e cuja leitura influenciou especialmente as
reflexões feitas aqui, vale a pena referir: E. Greene, Erotics of domination: male desire and the mistress in latin love poetry,
Baltimore & London, The Johns Hopkins University Press, 1998; E. Greene, “Refiguring the feminine voice: Catullus
translating Sappho”: Arethusa 32.1 (1999) 1-18; P. Grimal, L’amour à Rome, Paris, Éditions Payot & Rivages, 1995; D.
F. Kennedy, The arts of love: five studies in the discourse of Roman love elegy, Cambridge, Cambridge University Press,
1993; S. Lilja, The Roman elegists’ attitude to women, Helsinki, Suomalainen Tiedeakatemia, 1965; G. Luck, The Latin
love elegy, London, Methuen & Co., 2ª ed., 1969; P. Veyne, L’ élégie érotique romaine: L ’amour, la poésie et l Occident,
Paris, Éditions du Seuil, 1983.
3
Ovídio, Amores, 2.9b.1-2
4
Ibidem, 43-46
Forçoso é reconhecer que este não é um jogo de palavras marcado pela novida-
de, nos seus paralelismos rítmicos, trocadilhos, como que a enredar no preciosismo
retórico o jogo do amor. É, pelo contrário, bem antigo; os poetas das últimas dé-
cadas da República usaram-no à saciedade, afeiçoados como eram a todo esse tipo
de floreados retóricos, como quiasmos, hipérboles, antíteses, entre outros. Era uma
atitude típica dos neóteroi, poetas da moda, olhados com desconfiança e desprezo
pelos seus contemporâneos mais austeros.
Estamos, portanto, longe daquela serenidade de matriz epicurista que parece
ter dominado a poesia de uns anos antes. Este é um tempo bem diferente, tempo
de um amor violento, exacerbado, inflamado; como dirão muitos versos de muitos
poetas, é tempo de um amor que arde; assim será, também, celebrado, séculos
mais tarde, pelos poetas do Maneirismo e do Barroco. É o amor-fogo que em suas
chamas implacáveis consome o poeta-amante. É um amor ao arrepio de qualquer
assomo de lucidez, que resvala ou faz resvalar para contradições absurdas, como é o
caso do apregoado convívio, na mesma pessoa, de amor e ódio.
Até mesmo Virgílio, o poeta que, ao longo da sua obra, nunca cantou o amor na
primeira pessoa, reconhece a força do amor e o seu poder; e, para o fazer, recorre,
também ele, à formulação antitética, de uma forma que faz sobressair, no combate,
vencedor e vencido:
Propércio, por seu turno, é, em toda a sua obra, uma história de amor repleta de
contradições; no seu percurso de poeta e amante, visto que ambos se confundem,
amor e ódio alternam, em momentos sucessivos, as mais das vezes de modo desor-
denado e incoerente.
A paixão e o temor são sentimentos a que, alternadamente, se submete. Paixão
por Cíntia, um fascínio irresistível, cuja nota principal será o desejo e a sensualida-
de. Paixão física, porque materializada no corpo e nos sentidos. Mas também temor.
Cíntia é altiva e prepotente, arrogante e autoritária, e possui um humor fácil, o que
a faz inconstante nas reacções (e nas relações); é, por isso, propensa a desvairados
arrebatamentos de amor, mas, ao mesmo tempo, a não menos violentos arrebata-
mentos de raiva. Quando assim acontece, Cíntia é avassaladora, implacável.
Mesmo assim, Propércio submete-se, procura-a, deseja-a, à espera de um peda-
5
Virg. Buc. 10.69.
ço de luz, o mesmo será dizer do encontro dos corpos, de uma noite de amor.
Assim se vai construindo, poema a poema, verso a verso, um binómio de fla-
grantes contradições e de emoções contrárias: Cíntia é a pérfida, a falsa, a fingidora,
a perjura. Ele, apesar disso, proclama constância, fidelidade, submissão. Mas, logo
depois, rejeita-a, antes de, irresistivelmente, de novo a ela se submeter. Cíntia é fria,
calculista, dominadora. Ele, por seu turno, sentimental, emotivo, submisso às leis
do amor. Foi isso que, desde o início do seu Monobiblos, assumiu. 6
Bem antes de Propércio, porém, Catulo será, neste mesmo aspecto, um exemplo
bem mais característico. A dilaceração que o atinge manifesta-se, de modo bem ex-
pressivo, na própria enunciação: coabitam, no seu íntimo, dois – o que ama com a
irracionalidade da paixão e o que, lucidamente, entende estar na hora de renunciar,
de pôr fim a tudo. Mas
6
A elegia 1.15 é, neste aspecto, elucidativa.
7
Prop. 2.5.28.
8
Catulo, 76.13.
9
Catulo, 8.
Muito e por muito tempo suportei. Pelo mal foi a paciência vencida.
Deixa um coração atormentado, ó amor insano.
Deve notar-se, desde logo, uma intensa rede de correspondências internas: tuli
antecipa patientia, e multa diuque reforçam o sentido dessa mesma palavra; uitiis
10
Ovídio, Amores, 3.11a.1-2.
documenta um artificioso jogo fónico com uicta; fatigato pectore está em subtil opo-
sição a turpis amor; esta mesma expressão, aliás, turpis amor, a encerrar o dístico,
pode bem ser a explicação de quanto a antecede – uitiis, patientia, uicta, fatigato.
Assim se amplifica a afronta e, também, a perversão em que se traduziu. Patientia,
por seu turno, relaciona-se com fatigato, do mesmo modo que multa e diu.
Logo depois, contudo, repete-se o verbo que serviu de abertura – ferre –, mas
associado a um novo conceito, o de pudor e vergonha; aqui, também, é de notar
o recurso, uma vez mais, a uma arquitectura de preciosismos, consubstanciada em
duplo quiasmo, associado a uma antítese: non pudet contrapõe-se, antiteticamente,
a pudet; e, no quiasmo non puduit ferre … tulisse pudet, já não é só a ordem dos
termos que se inverte, mas também a sua relação interna, que se converte de pas-
sado-presente em presente-passado. O amor, que surgia simbolizado nos grilhões
(catenas), passa a ser, ele mesmo, o subjugado – domitum:
13
Aen. 4.380-386.
Lutam entre si e o meu coração amolecido cada um para seu lado o puxam
daqui o amor, dali o ódio, mas, estou certo, é o amor que vence.
Hei-de odiar, se for capaz; se não, contra minha vontade hei-de amar.
Não ama o jugo o boi; aquilo, no entanto, que odeia, tem de suportá-lo.
Fujo da devassidão; àquele que foge, a beleza o traz de volta.
Abomino os vícios de carácter; o corpo, eis o que amo.
Assim, nem sem ti nem contigo sou capaz de viver,
e parece que nem sei o que quero.
Que fosses menos formosa ou menos velhaca, esse era o meu desejo;
não fica bem a tão grande formosura um carácter tão reles.
Os teus actos merecem ódio, o teu rosto reclama amor.
Pobre de mim!... É pelos seus vícios que ela mais se distingue!
Compadece-te de mim, pelas juras do leito partilhado, por todos os deuses
que tantas vezes te concedem o poder de os enganar
e pelo teu rosto, que tenho por manifestação de um poder divino
e pelos teus olhos, que arrebataram os meus!
O que quer que sejas, sempre hás-de ser minha! Tu, escolhe, ao menos,
se queres que também te queira ou se, antes, contra vontade eu te ame.
Será melhor que eu largue as velas e as solte a ventos que as levem
do que, apesar de o não querer, ser forçado a querer amar-te.
Em todo o poema, aquela que parece ser a sua força motriz é a oposição dia-
léctica entre o ódio e o amor; isso patenteia-se, desde logo, no elevado número de
ocorrências de palavras dessa área semântica: em dez dísticos, oito são as palavras
da área semântica do “amor”, cinco as da área do “ódio”.
É um contraste que se evidencia logo na abertura – luctantur, in contraria ten-
dunt – e que se consubstancia, do ponto de vista do código retórico, numa sucessão
de paradoxos e antíteses: hac amor, hac odium; odero… amabo; amat... odit; fugien-
tem reducit; auersor… amo e morum… corpus; nec sine te nec tecum; mores malos,
bona forma; facta, facies e odium amorem; nolim, uelim.
Esta evolução de formulações antitéticas, aliás, obedece a um esquema ovidiano
bem usual.
Surge a abrir, como se disse, o anúncio do paradoxo que há-de ser o seu fio
condutor, isto é, amor/ódio : luctantur… in contraria tendunt, hac amor, hac odium.
Mas logo se afirma o resultado da contenda – uincit amor.
A escolha por um dos elementos da antítese, no entanto, não depende da von-
tade; essa pronuncia-se, inquestionavelmente, pelo ódio: odero, si potero; sabe-se,
porém, desde o começo, que isso não é possível; e por isso se sublinha a contrarie-
dade: inuitus amabo.
Começa, a partir de então, a desenhar-se uma nova série de oposições, com a
intenção de clarificar o motivo das contradições e da hesitação inicialmente enun-
ciadas: as qualidades morais da mulher, ou antes, a falta delas, o seu espírito per-
verso, em claro contraponto à excelência do corpo e à beleza física mores... corpus...
forma. O que repugna ao poeta, no fim de contas, é o vício moral, os defeitos de ca-
rácter; por outro lado, como é próprio de Ovídio, poeta do sensual, do amor físico,
do sexo, o que o atrai é, sempre, o corpo e a beleza: auersor morum crimina, corpus
amo; nequitiam fugio, forma reducit; facta merent odium, facies exorat amorem.
Uma análise minuciosa tornaria ainda mais evidente que o texto documenta
um preciosismo estilístico bem visível, que é, afinal, desde sempre, a expressão mais
adequada do desarranjo interior, do desencontro, do desconcerto. São frases curtas,
antíteses e paradoxos, a par de jogos etimológicos rebuscados e aliterações, tudo
para dar nota de um espírito marcado pelo desassossego. Não será abusivo afirmar
que Ovídio, neste aspecto, é, em certa medida, um precursor de idênticas opções
estéticas de Camões e da poesia do ocaso do Renascimento.
É a Catulo que cabe, contudo, a autoria daquela que é, sem dúvida, a mais su-
blime expressão desta estranha convivência entre contrários, ou seja, entre o amor e
o ódio, nascida da paixão exacerbada e doentia em que o poeta se enredou e que a
sua obra espelha em tantos passos. Trata-se, como é bom de ver, do Carmen 85:
seguir para que apareçam outras. De todos os modos, são indóceis, as recordações,
são inclassificáveis e indomáveis. Às vezes aparecem coloridas; outras, ouve-se como
repetem as palavras sem valor que, não se sabe porquê, ficaram ali, enquanto as
graves, as transcendentes, as felizes, se apagaram para sempre. É necessário especu-
lar; suspender a escrita e perguntar-se: O que é que eu disse, o que é que me disse,
naquela ocasião? Umas vezes acerta-se; outras, só aproximadamente; algumas trans-
crevem um diálogo que não pode ter sido assim, mas que nunca se saberá como foi.
Escrever as memórias tem a sua parecença com escrever um romance, mais do que
é conveniente.»
Assim o regista Hugo Santos, pois sabe que mais tarde ou mais cedo terá de
partir. Como todos, afinal. Escreve porque segundo o seu ditame «as palavras fo-
ram sempre o princípio da nossa casa. Das nossas casas. Primeiro a pedra, a trave,
a madeira – os mil e um artefactos da conquista. Depois os pátios, os ventos, os
álamos e o recolhimento das sombras. E assim dispostas as palavras (ah, não te falei
na arquitectura do sonho e no jubi-lo de assumi-lo!), com outro olhar se fitou a
paisagem, se reclamou a terra, se tacteou a semente (...).
Escrevo-te isto e sei que é poesia. Mas também sei que a dúvida te alimenta as
certezas. Crer é, antes de mais, a encenação proposta pelo não-crer. De que te ser-
ve uma certeza se não podes contraditá-la? (...) Todos os rios vão dar ao mar. Pois
bem: imagina o invés. De quantas, grandiosas e imprevistas verdades, se faria a tua
imaginação?». Imagina fértil e cândida a fantasia da sua filha, afinal como o é a de
todas as crianças, pequenos deuses da Luz, elos entre o passado e o que a seguir
há-de chegar.
O diálogo interior recorrente em toda a obra, consigo mesmo, com a pequena
Marta e com o leitor toca-nos profundamente. As inquietudes do poeta são tam-
bém as nossas: «E, no fundo, porquê estares inquieto? Sossega, sossega…Os dias
não acabam hoje. A esta tarde quente se seguirá a luz breve do crepúsculo, o bailado
das sombras e um recôndito apelo, vindo da fundura da noite que se aproxima, a
que naturalmente terás que responder. Não penses no que dirás. As palavras foram
feitas para a surpresa e o maravilhamento de proferi-las, não para a complacência da
sua pronunciação.
(...) De que nos servem, para onde encaminharmos as naus de névoa das pala-
vras?»
Logo a seguir uma nova referência à pequena e terna mão infantil de Marta:
«Lembro: a tua mão inclina-se suavemente para o papel, parece ir adormecer sobre
ele. A palma para baixo, o polegar e o indicador sustendo ainda com dificuldade a
ponta afiada do lápis – a indecisão do gesto complementado o ofício divino da sua
anunciação. «Vamos desenha o sol». Procuras o canto esquerdo da folha de papel:
pressinto que aí encontrarás o sol. E uma ave depois, uma árvore, o acolchoado azul
duma nuvem, porventura a imprecisa pegada de quem, intruso e inesperado, veio
observar o voo, gozar a sombra, colher a luz. Claro, é o teu mundo.
(…) Escrever-te, entendo-o hoje, é assumir a fragilidade do homem que me
habita.
(…) Tens a luz e a emoção – que mais podes desejar? Tens ainda, meu pequeno
deus menor, tempo para interrogares os ventos, peneirares as névoas, contares as
areias, acariciares as brumas e aguardares as naves. E, enquanto esperas, novo tem-
po te virá para a indecisão de buscares.
(…) Falo-te, meu frágil deus menor, dum tempo de grandezas e usurpações,
de mentiras e verdades, de descrenças e esperanças, de medos dúbios, anónimas
coragens, fortuitas revelações – falo-te da usura dos silêncios. Que definitivamente
se foi? Não o sei também. Escrever (escrever-te) é-me hoje anteceder o naufrágio e
recolher os despojos. E, mais que tudo, recuperar das palavras o eco fugidio do seu
pronunciamento.»
E o poeta-romancista vai em busca do «velo de ouro» da Luz, qual argonauta
dos tempos pré-clássicos de antanho. O importante não é chegar, mas ir e diz: «(…)
Vamos sobe à montanha, procura o velo d’ouro no mais alto, no mais inacessível,
no mais recôndito lugar da terra. Não vás pelos caminhos que os teus olhos vêem,
mas por aqueles que a imaginação do olhar te reclamar. Tentarás chegar. Ah, mas
se o não conseguires, não desesperes. Chegar não é o mais importante. Chegaremos
algum dia? E onde? E quando? E estará lá o velo d’ ouro da verdade que procu-
ras?»
E eis o Alentejo também ele solo nostálgico, pátria de naves, abertura para a
bruma de outros tempos que são estes também, terra de amores e desamores, de
sangue que lateja nas veias, de Luz intensa e céu azul. A poética do amor entreteci-
da pelo grande escritor nato em Campo Maior tem profundas marcas clássicas. Tal
como em Ovídio7 percebemos na obra de Hugo Santos um certo desterro, expe-
rimentamos uma triste e inabalável nostalgia, um exílio incessantemente revivido,
pois a casa ancestral da «eternidade» da «Luz» é um elemento sempre omnipresente
da sua produção escrita.
7
Tal como em Ovídio assim também em algumas das poesias de Hugo Santos experimentamos momentos de um
erotismo surpreendente.
Hugo Santos deixa-nos algo de espantoso tal como Al-Mu’tamid: os seus pró-
prios versos. E esses versos têm o valor de um verdadeiro diário espiritual, porque
Hugo Santos tal como o magno poeta luso-árabe nascido em Beja no século XI,
rei de Silves e Sevilha, fez poesia em todos os momentos da sua vida: na graça, na
desdita, no amor!... Fê-lo quando estava apaixonado, quando se sentia desgraçado,
em todas as oportunidades. Ambos nos deixam um testemunho ímpar.
O artista na opinião de muitos, quando cria uma obra, está a exibir uma másca-
ra: tem diversas máscaras, cada poema poderá ser uma máscara. Fernando Pessoa,
enquanto iniciado, disse que «o poeta é um fingidor.» É essa máscara que cada um
poderá preencher ao ler. «E, no acto de ler, transformará a máscara – uma coisa de
fingir, inanimada – e dar-lhe-á vida, realidade. A criação artística é um mistério e
os mistérios não são para ser explicados, são para ser vividos. (…)9» Hugo Santos
tal como Al-Mu’tamid apresenta várias máscaras de si próprio, às vezes tão reais…
Ambos os poetas nascidos no cálido solo alentejano e a dada altura exilados da
primeira vida se pintaram como pensavam ser e pensaram como queriam parecer
aos outros.
Para ambos os poetas «o Amor é sentirmos que somos, não apenas nós, mas
também o outro, ou seja, que o outro não existe verdadeiramente fora do Mes-
mo10.
A subjugação à beleza feminina em alguns passos da obra Hugo Santos lembra-
nos outro grande poeta luso-árabe nascido em Silves, Ibn ’Ammar, companheiro e
primeiro-ministro de Al-Mu’tamid11.
São posições estruturantes em todo o pensamento poético-narrativo de Hugo
Santos o seu ecumenismo humanista, a sua constante busca da Luz que é a vida,
mas também as memórias e as sementes indeléveis deixadas por cada ser à face da
8
Cf. Hugo Santos, Diário dum Construtor de Naves, Lisboa, Editorial Éter, 1996. p. XXX.
9
Adalberto Alves, Portugal - Ecos de um passado Árabe, Lisboa, Instituto Camões, 1999, p. 19.
10
Idem Ibidem, p. 21.
11
Adalberto Alves e Hamdane Hadjadji, Ibn ‘Ammar Al-Andalusî, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, p. 55.
nave Terra. De tudo isto nos fala a sua excepcional obra em todas as ocasiões.
Ainda que separado fala-nos do seu Alentejo natal, região de grandes longes,
planícies de espaços ilimitados trazendo um verso em cada mão. As suas obras não
deixam nunca de reflectir a face telúrica, e o imaginário do espaço transtagano
de tempos idos12, onde uma Luz dourada o religa com o passado que também é o
presente.
Voltou o poeta e não encontrou a árvore, nem escutou o canto do rouxinol.
«(…) A casa é a minha eternidade. Buscai-me aqui, mesmo que não esteja. Procurai-
me, mesmo que não volte. (…) Fomos feitos para permanecer. Cortou-se a árvore;
lembraremos a sombra. O vale, os ventos e a montanha sentirão, rejuvenescida, a
presente ausência dela, a árvore. A luz virá, a cada alba, lembrar o espaço úbere das
folhas, das asas e dos frutos. Talvez digamos: «Vim e não encontrei a árvore, não
escutei o canto do rouxinol». Cerrai os olhos, peço-vos. Ouvi quem vem. Que im-
porta o tempo? Tudo está aí, voltado para o eco inicial do que fomos.»
A «casa-mãe» em Campo Maior é o local do bulício das primeiras interroga-
ções, espaços mentais que pairam sobre espaços físicos. As ruas, os cheiros, os sons
de um «país sem pátria» de um «país de sul e solidão», as verdades, as mentiram, as
emoções, ódios e afectos. O pai, a beleza humilhada da mãe, a tia Maria a inespe-
rada morte da avó Feliciana, a dor as contínuas ansiedades que levam a questionar
a existência de Deus àquele petiz aprendiz de ventos, de corpo franzino que vive
ainda hoje na presença do que é, escreve e ama sofregamente a vida...
São as dúvidas que conduzem o poeta à sabedoria do não saber e diz: «A uma
montanha ( ...) se seguirá outra e outra e outra.»
A horaciana ideia do tempo que passa e não volta, matizada por inultrapassáveis
formas com sensações e raízes bem portuguesas é também laboriosamente desen-
volvida pelo escritor de Campoamor: «Lançou-se a pedra à água. Serás capaz (por
mim to exijo) de recuperares o gesto, redesenhares o círculo, prolongares, o breve
ondular dos ranúnculos do rio? Sei que outra é a mão e outro também o jeito de
arremessá-la. Outra a pedra e a água? Diferente o círculo? Dragados pelo tempo
morreram os nenúfares.»
Ricardo Reis é desta forma, também seu companheiro de ideias, entristecendo-
se o poeta de Campoamor com a tristeza de saber o que é.
A natureza é também ela à boa maneira do lirismo das cantigas de amigo dos
13
Cf. Hugo Santos, Diário dum Construtor de Naves, Lisboa, Editorial Éter, 1996. p.I.
primórdios da nossa lírica, confidente do poeta. Num regresso de muitos anos de-
pois, fala em interiorizado monólogo com «Foge-ao-Vento», pescador que vivia nas
margens do rio Guadiana num velho moinho. Problemas familiares já esvaziados
são relembrados como se fossem um puzzle de nostalgias sempre presente. Depois
a guerra em África com as suas fratricidas mortes. Aura a primeira paixão. A emi-
gração para a Europa que empobrecia e esvaziava o país de recursos. O jogo sem-
pre lúdico e por vezes, perigoso das palavras; a polícia política sempre vigilante a
desatentos vocábulos. Porém, todos sabemos já, que a vida é um teatro de palavras.
Depois venda do último olival. Não foi dono da terra. A mãe que ficou só. A partida
de Aura para a África do Sul.
Uma tarde veio Sofia, avassaladora de paixão desencadeadora de grandiosos
hinos ao Amor. Era agora professor. Sofia partiu: «A solidão solidária, ouves-me tu,
aí? A melancolia, quase doce, do teu olhar, Sofia.»
Com Maria Irene outro amor e as utopias, as conversas vagueando por aqui,
por ali, sempre vagueando. Para o poeta foi aquele um tempo de utopias. Embora
desvanecidas ainda o será.
Chegou depois o 25 de Abril e o relato da história deste país das últimas décadas
e também políticas ironias, entretecidas na vida do poeta. Maria Irene e a paixão
de conversar. A morte da mãe assim descrita: «Vejo-te, sempre, velha, caminhando
entre áleas de tílias, quando as nostalgias requerem a tua presença.»
A «estação das lembranças», porque «feita (s) do passado, do presente e do futu-
ro de todas as outras, é uma estação sem tempo.»
Regressa de novo ao ensino. Esse o poeta que está dentro de si vai florindo cada
vez mais. E o jogo das palavras é cada vez mais intenso. São as palavras na opinião
do narrador, o artefacto das novas recordações da ligação ao momento actual. Ex-
plica ao seu deus menor «que as coisas já não são como eram, que até os pássaros
desertaram do nosso país-ao-sul.»
«(...) Desci ontem ao meu país-ao-sul. Quase desconheço os lugares do assom-
bramento. Uma voz ou outra, a espaços, sacudindo-se da poeira dos anos, vem
alertar-me para interiores peregrinações que não recuso.»
As recordações do pai continuam presentes: «Quando se caminha para o fim
(tu sabes, velho, que os anos não perdoam) valoriza-se mais a vida, nossa e as dos
demais.»
De seu pai lhe ficou um interrompido gesto de camponês de astros, um celeiro
de seus ventos, um porão de certezas e de dúvidas.
Não foram fáceis as palavras quando os potros da memória fizeram ouvir seus cascos
pelas longas planícies da solidão. Sabíamos, no entanto que outras naves assomavam já
ao vale e recolhiam o néctar de mais ventos, a anunciação dos deuses que tomavam14.
As recordações estão sempre omnipresentes:
14
Hugo Santos, Os Rios Sobre a Parede, Mira-Sintra - Mem Martins, Câmara Municipal de Sintra, 1992, p. 24.
Voltando à obra Os Caçadores da Luz, o fio de conversa com o seu deus menor
permanece desde a primeira até à última página, com avanços e recuos cronológi-
cos. «Às vezes, deus menor, sentimo-nos como actores de um filme que, ainda que
emocionalmente nosso, nos não pertence por completo.» Termina confidenciando
ao seu deus menor - Marta -, sua filha e a nós leitores: «(...) Que queres tu mais? Esta
é, sem apelo, a pátria que nos pertence.
Como disse a tia Maria, a história não acaba aqui, deus menor.»
15
Hugo Santos, Os Rios Sobre a Parede, Mira-Sintra - Mem Martins, Câmara Municipal de Sintra, 1992, p. 54.
16
Idem Ibidem.
17
Cf. Hugo Santos, Diário de Raivas e Afectos, Lisboa, Hugin, 2003, p. 12.
18
Cf. Hugo Santos, O Caçador, 1994, p. 1.
19
Cf. Hugo Santos, Os dias da Espera, Torres Vedras, Câmara Municipal de Torres Vedras, 1993, p. IX.
único, singular. O seu estilo é poderosamente próprio. Pena é que os seus escritos
sejam tão pouco conhecidos.
Em agradável otium consertámos um pequeno percurso por algumas das obras,
do grande escritor das letras portuguesas norte alentejano que é Hugo Santos, sem-
pre independente, secreto, misterioso e discreto.
Bebamos na magnífica e clássica prosa entretecida por Hugo Santos que faz dele
um dos maiores escritores de Língua Portuguesa do nosso tempo. Embriaguemo-
nos na Luz silenciosa e bela do Alentejo da raia, busquemos a Luz das nossas vidas
e com a alma plena atingiremos a utopia de ser...
A busca da Luz permanecerá efectiva e indelével na sua obra...
20
Cf. Hugo Santos, Os dias da Espera, Torres Vedras, Câmara Municipal de Torres Vedras, 1993.
Cláudia Cravo
U. Coimbra
claudiacravo@hotmail.com
O Idílio 2 de Teócrito dá-nos a conhecer Simeta, uma jovem mulher que recor-
re às artes mágicas na tentativa de recuperar a afeição de Délfis, um atleta
com quem manteve um relacionamento amoroso e por quem é ignorada há já onze
dias. O poema abre em plena acção, com Simeta a dirigir-se impacientemente à
sua escrava Téstilis com instruções muito precisas, concernentes aos preparativos
do ritual mágico que vai ter lugar a partir do v.17. Os primeiros dezasseis versos
funcionam como uma introdução, na qual Teócrito informa os leitores do que se
está a passar. Simeta procura o louro e os filtros de amor e ordena a Téstilis que
cinja uma taça com lã de cor vermelha. Anuncia, por duas vezes, a sua intenção
de prender o homem que ama, e passa de imediato a resumir a difícil situação em
que se encontra: Délfis não vem visitá-la nem quer saber dela, certamente por-
que encontrou um novo amor. A jovem está determinada a ir ter com ele, no dia
seguinte, à palestra de Timageto, mas antes quer prendê-lo por meio de feitiços.
Invoca, então, em voz baixa, Selene e Hécate, divindades de quem espera a ajuda
necessária para levar a sua empresa a bom termo. A Hécate dirige uma súplica
muito concreta: roga-lhe que a acompanhe até ao fim, para que os seus pharmaka
sejam tão eficazes como os das magas mais ilustres da Antiguidade.
Inicia-se aqui o ritual de encantamento amoroso, que nos é descrito em porme-
nor. Quase todas as operações desenvolvidas pelas duas mulheres pertencem à ma-
gia dita ‘simpática’, no sentido em que a transformação realizada sobre um objecto
pretende ter uma repercussão análoga sobre a pessoa visada pelo rito. Porque o uso
da palavra é indispensável para que qualquer acto mágico seja eficaz, os gestos de Si-
meta são quase sempre acompanhados de preces ou da expressão de um desejo, e o
nome de Délfis é repetido com insistência. A rapariga começa por queimar farinha
de cevada e louro, que simbolizam, respectivamente, os ossos e a carne do homem
amado. Passa depois a queimar o farelo, e é nesse exacto momento que os latidos
das cadelas anunciam a chegada de Hécate. O silêncio dos elementos da natureza
é um novo indício da presença da temível divindade. Segue-se o derretimento da
cera, muito provavelmente modelada numa figurinha representativa de Délfis, com
o intuito de fazer com que o próprio se derreta de amor. Entretanto, a serva recebe
ordens para fazer girar um rombo de bronze, numa tentativa de que, da mesma
forma, o atleta regresse, louco de paixão, à porta da sua ama. A cerimónia prossegue
com uma tripla libação, que vem acompanhada de um conjuro, também repetido
três vezes: Délfis deve esquecer o seu novo amor, da mesma forma que Teseu es-
queceu Ariadne, ao deixá-la abandonada numa ilha. A este paralelismo inspirado
porque antes vinha vê-la três ou quatro vezes por dia e entretanto já onze dias pas-
saram desde a sua última visita. Nesta altura, profere então as seguintes palavras,
dirigidas, como sempre, à Lua: «Agora vou amarrá-lo com os meus feitiços de amor!
Mas se ele continuar a atormentar-me, pelas Moiras que é à porta do Hades que
irá bater. tão perigosas são as drogas que guardo para ele no meu cofre, conheci-
mentos que aprendi de um estrangeiro assírio» (vv.159-162). Mais uma vez aqui nos
apercebemos de que Simeta não é uma feiticeira sábia e experiente. Para conhecer
os pharmaka que poderão causar a morte de Délfis, ela tem de consultar um mago
de profissão, neste caso alguém da Assíria, região de onde são provenientes terríveis
feiticeiros. O discurso acabado de citar deixa ainda entrever uma enorme insegu-
rança relativamente ao sucesso dos seus feitiços, pois a rapariga coloca a hipótese
do prolongamento do seu sofrimento amoroso («mas se ele [Délfis] continuar a
atormentar-me…»). Poucos versos depois, encontramos uma nova evidência da sua
pouca fé nas acções mágicas anteriormente realizadas, quando, ao despedir-se da
Lua, sua confidente, Simeta diz: «eu suportarei a minha paixão, como a suportei até
agora» (v.164). Estas declarações surpreendem quem esperava voltar a encontrar-se
com a mulher confiante da primeira parte do idílio e são a prova concludente de
que essa mulher segura de si mesma é apenas o disfarce usado por uma outra, que
não passa de uma jovem ingénua e desamparada, prestes a perder a esperança de
recuperar o homem que ama e com quem perdeu a virgindade.
A verdadeira natureza de Simeta revela-se apenas na segunda parte do poema,
mas é interessante notar como, desde o início, Teócrito foi deixando pequenos si-
nais que denunciam a carácter da sua personagem. Logo no v.8, enquanto fazia os
preparativos para o encantamento que se ia seguir, a rapariga profere as seguintes
palavras: «Amanhã irei à palestra de Timageto para ver Délfis e dizer-lhe como me
atormenta, mas agora quero prendê-lo com os meus feitiços». Se Simeta acreditasse
no seu poder como feiticeira, não teria premeditado encontrar-se com o amante
para repreendê-lo. O leitor mais atento apercebe-se, de imediato, que a jovem mu-
lher está muito longe de ter segurança na eficácia da sua magia, não obstante queira
fazer parecer o contrário. Um pouco mais adiante, no v.15, Teócrito coloca um
erro muito subtil na boca da sua protagonista, ao fazê-la trocar o nome da feiticeira
homérica Agamede por Perimede3. Para além de acrescentar um toque humorístico
ao poema, este equívoco de Simeta caracteriza-a, deste logo, como inculta e pouco
versada em assuntos de magia. No v.58, já no final do sortilégio amoroso, a rapariga
volta a indiciar falta de confiança no êxito dos seus feitiços, quando projecta levar a
Délfis, no dia seguinte, uma poção maligna preparada com lagarto esmagado.
Os detalhes que temos vindo a enumerar tornam evidente que a protagonista
do Idílio 2 não é uma verdadeira feiticeira. Devemos ter este facto bem presente
quando avaliamos a cena de encantamento do poema, caso contrário facilmente
3
Tal como H. White (Studies in Theocritus and other Hellenistic poets, Amsterdam, 1979, p.21) sugere, esta é a interpre-
tação mais verosímil para o uso do nome “Perimede” ao lado de figuras tão ilustres da magia, como Circe e Medeia.
incorreremos no erro de muitos estudiosos, que tentam ver no ritual descrito por
Teócrito uma fonte de informação rigorosa sobre as práticas reais de magia amorosa
na época helenística. Embora esteja completamente fora do nosso propósito debater
aqui esta complexa questão, convém todavia referir que uma análise pormenoriza-
da dos rituais desenvolvidos por Simeta permitir-nos-ia concluir que o poeta não
descreve ritos precisos, mas antes uma série de práticas mágicas entrelaçadas, que
muito dificilmente seriam usadas em conjunto4.
Sem pretensões de decalcar a realidade mágica contemporânea, Teócrito faz uso
do motivo da magia em função dos seus objectivos poéticos, que passam, antes de
mais, pela construção do retrato da sua protagonista. A abundância de procedimen-
tos mágicos utilizados por Simeta e a desenvoltura com que dá instruções à sua es-
crava deixam a impressão de que ela é uma maga perfeita. Quando o leitor descobre
que a pretensa heroína é, na realidade, a antítese do que aparenta ser, o impacto é
muito grande e, consequentemente, a adesão à dor de Simeta é muito mais fácil. Em
vez de uma mulher perigosa e ameaçadora, ela revela-se uma jovenzita incauta e de-
sesperada; alguém que foi vítima da sua própria ingenuidade e que agora se debate
com um forte sentimento de desonra; alguém que parece refugiar-se na auto-ilusão
para melhor poder suportar um desejo sem esperança de realização5; alguém que
tem como último recurso a magia, uma força tão irracional quanto o sentimento
que lhe agita o coração; alguém que executa uns ritos que aprendeu recentemente,
mas em cujo poder não confia. Simeta é, sem dúvida, uma das criações magistrais
de Teócrito, e este facto fica, inegavelmente, a dever-se à sua requintada caracteriza-
ção, que, como acabámos de ver, assenta numa original ambivalência de posturas.
4
Vide, a este propósito, o interessante estudo de F. Graf, La magie dans l Antiquité gréco-romaine (Paris, 1994) 199-230
e ainda D. Pralon «Théocrite, La magicienne», in A. Moreau et J.-C. Turpin (edd.), La magie. Du monde babylonien au
monde hellénistique. Tome 1 (Montpellier, 2000) 307-326.
5
Sobre o ritual de encantamento mágico entendido como uma tentativa de reconciliação de Simeta consigo mesma,
vide F. T. Griffiths, «Poetry as Pharmakon in Theocritus’ Idyll 2», in G. W. Bowersock, W. Burkert and M. C. J.
Putnam (edd.), Arktouros: Hellenic Studies presented to Bernard M. W. Knox (Berlin, 1979) 81-88 e H. Parry, «Magic
and the songstress. Theocritus’ Idyll 2», ICS 13 (1988), 43-55. Já em 1965, L. Séchan («Les magiciennes et l’amour chez
Théocrite», AFLA 39, pp.83-84) havia pertinentemente realçado que os encantamentos mágicos do Idílio 2 de Teócrito
não tinham como resultado prático o regresso de Délfis, mas sim o apaziguamento da dor de Simeta, sob a acção da
confidência e do canto.
........................................................
“Mas eis que se apagaram
Os antigos deuses sol interior das coisas
Eis que se abriu o vazio que nos separa das coisas
Somos alucinados pela ausência bebidos pela ausência
E aos mensageiros de Juliano a Sibila respondeu:
“– Ide dizer ao rei que o belo palácio jaz por terra quebrado.
Phebo já não tem cabana nem loureiro profético nem fonte melodiosa.
A água que fala calou-se”
2
Marguerite Yourcenar, Nouvelles Orientales, Gallimard, 1963, pp. 91-103; traduzido em português pela D. Qui-
xote, 1994, pp. 85-95.
Uma das motivações que explicam a adopção de uma realidade hostil que é
integrada e neutralizada numa nova mensagem, prende-se com as necessidades de
comunicação. Estas obrigam a uma retórica que apela aos valores de proximidade e
à realidade conhecida do receptor. Sendo o cristianismo uma religião proselítica, a
Boa-Nova assumia plasticamente as formas que melhor chegavam ao receptor, pelo
que tinha de assentar nas expectativas, nas ansiedades do homem a quem chegava,
para então frutificar.
Exemplo paradigmático desta adequação da mensagem ao público está nos Act.
17, 16-34. Paulo, o missionário privilegiado dos pagãos helénicos, faz o seu discurso
para os atenienses usando como ponto de partida o “altar ao deus desconhecido”.
A apresentação da nova religião num ambiente pagão helenizado e culto faz-se por
uma linguagem filosófica, apelando ao próprio relativismo e espírito de auto-crítica
com que os gregos consideravam a sua religião politeísta. Contudo, já num registo
mais caseiro, Pedro, o apóstolo que primeiramente assumiu a evangelização entre os
judeus, no seu discurso ao povo de Jerusalém (Act. 3, 12-26) centra a sua mensagem
no facto de Cristo ser o Messias que cumpre as promessas do Antigo Testamento, e
no facto de Cristo ter nascido entre o povo de Deus, para quem foi primeiramente
enviado. Pedro deixa no escuro a universalidade da mensagem cristã, não a negan-
do, mais omitindo-a, pois sabia que esse era um ponto sensível para a mentalidade
judaica. Estes dois episódios de evangelização provam a plasticidade que os primei-
ros divulgadores da fé cristã imprimiam ao conteúdo a divulgar, qualidade que foi
eficaz para o sucesso da nova religião.
Temos também de considerar razões menos intencionais, e até mais óbvias, pois
ninguém ou nada parte do vazio. A cultura de origem dos primeiros cristãos, na
qual foram educados e cujos contributos não podiam recusar, teria exercido o seu
papel. Assim, desde cedo penetrando em comunidades de cultura judaica e judeo-
helenizada, estavam criadas as condições para a transferência de aspectos culturais
entre o paganismo refinado dos primeiros séculos da nossa Era e o cristianismo.
Assim, este processo de transformação dos deuses pagãos em demónios cristãos
começou já e foi favorecido pelo próprio paganismo:
O paganismo desenvolveu, numa determinada fase da sua história, um discurso
crítico da religião tradicional que, desvalorizando os múltiplos deuses do panteão
tradicional em prol de uma concepção mais depurada e abstracta da divindade,
fez emergir como importante uma categoria divina que sempre existiu, mas que a
meditação filosófica do platonismo médio colocou como seres intermédios, activos
e mensageiros entre a entidade divina única e os homens: os daemones.
A reflexão filosófica grega de inspiração platónica, cujos reflexos encontramos,
por exemplo, em Plutarco, contemporânea da afirmação intelectual do cristianismo,
desaguou na reflexão cristã, que procurou, particularmente no séc. II, enquadrar o
conhecimento antigo com as exigências da nova fé. O resultado foi um hibridismo
notável de concepções3.
Segundo a religião grega, os demónios pagãos são seres intermédios, forças ac-
tivas que presidem aos rituais de comunicação entre homens e deuses, os oráculos e
sonhos, actos mágicos, adivinhação, com uma função protectora dos homens e das
suas necessidades4.
Valorizamos Plutarco não tanto pela profundidade das suas reflexões, mas mais
pelo facto de ele ter sido, no séc. II, um testemunho e transmissor das posições
dominantes da filosofia pagã do seu tempo, recolhendo as concepções dos filósofos
que deram forma à Antiguidade Tardia pagã. A demonologia Plutarquiana apro-
fundou a meditação sobre estes seres, acrescentando à sua natureza medianeira o
facto de eles habitarem o ar, ou seja, o espaço intermédio entre a terra e o céu, entre
os homens e os deuses, e)n me/sw| qew=n kai\ a)nqrw/pwn (De Iside, 26). Os daemo-
nes partilham com a natureza humana as paixões, e com a natureza divina a imor-
talidade, mas não a eternidade. É também Plutarco que nos expõe a ambivalência
destes seres criados pela divindade, que não estão necessariamente comprometidos
com o bem. São espíritos libertados dos corpos que podem ser maus ou bons5.
Também em Plutarco surge a interpretação das divindades do panteão tradi-
cional como seres de natureza demónica6. Os demónios são seres de natureza com-
plexa e inconsistente, transitória mikth\n kai\ a )nw /malon fu /sin e )co n/ twn kai\
proai/resin (De Iside, 26).
O cristianismo em afirmação apropriou-se das teorias demonológicas desenvol-
3
Justino ( Apologia II, 5, 2-6, PG 6 col. 452-453) tenta mostrar aos pagãos que as divindades a quem prestam culto
são demónios; Tatiano, (Oratio aduersus Graecos 16, PG 6, col. 841), refuta a crença de que os demónios são almas sepa-
radas dos corpos; as divindades pagãs, como demónios, estão associadas ao curso dos astros, e os homens deixaram-se
escravizar pela crença de que estes controlam o seu destino; Clemente de Alexandria, (Paedagogus III, 3-15 PG 2 cols.
252-253) afirma que eles não são entidades protectoras, mas seres caprichosos, sensuais e maus, ávidos de sacrifícios. O
mesmo Tatiano (Apologia I V, 3 PG 6 col. 336) afirma que são os demónios que tudo fazem para desviar os homens de
Cristo, atraindo-lhes a atenção com visões e sonhos, e com as maravilhas da magia. Para enganar os homens, eles che-
gam ao ponto de parodiar dogmas e ritos cristãos. E dá exemplos: Belerofonte, Perseu, Asclepios, Héracles, são imitações
mentirosas de Cristo (LIV, 7-8, col. 410); os banhos rituais imitam o baptismo (LXII (LXII, 1-2, col. 421); os mistérios
de Mitra a Eucaristia (LXVI 1-4, col. 428-429). Celso, pensador pagão, estabelece uma ponte entre a crença pagã
nas divindades inferiores, os daimones, e a diatribe cristã: se os cristãos crêem nos anjos, porque não reconhecem nos
daimones uma natureza angélica, cuja protecção é requerida por um culto? Temos nesta concepção o embrião do culto
dos anjos como “seres próximos de Deus” e dos demónios como seus equivalentes em estatuto, ainda que numa escala
de oposição. Preserva-se, desta forma, a concepção de Deus único, cuja omnipotência está acima do mal, o demónio, o
anjo, ou os anjos caídos em desgraça.
4
Hesíodo, Trabalhos e Dias, vv. 121-127, in M. H. R. Pereira, Hélade, 7ª ed., Coimbra, 1998, p. 94.
5
Plutarco, De Iside 26, in Plutarch’s Moralia, t. 5, Loeb, Cambridge-Harvard 1976, p. 64. Segundo Plutarco, Em-
pédocles diz que os demónios cumprem uma pena pelos seus erros e omissões. No cap. 46, apresenta a teoria dualista,
própria da religião mazdeísta, ou seja, a crença em a )ntite c
/ noi, artífices, um do bem e outro do mal. Estas entidades
divinas dividem os seres vivos entre si, as plantas e animais, (§ 46, p. 112) ou seja, esta teoria, também se reflecte no
mundo sensível. O cristianismo desenvolveu algumas correntes heréticas que exibiam este dualismo, como o manique-
ísmo.
6
De Iside..., cap. 25-26: as histórias de Tífon, Osíris e de Ísis, deuses egípcios sincreticamente associados aos deuses do
panteão helénico (Hades, Adónis ou Dioniso, Afrodite) não são de homens nem de deuses, mas de daimones. Nestes
parágrafos, Plutarco atribui aos deuses egípcios uma identidade demonológica, e estes servem de ponto de partida à
explanação de uma teoria demonológica, com uma resenha das posições dos filósofos anteriores (Platão, Xenócrates,
Crísipo, Homero, Empédocles).
kai\ h ) l/ lasan th\n do /xan tou= a )fqa /rtou qeou= e )n o (moiw /mati ei )
ko n/ oj fqartou= a )nqrw p/ ou kai\ peteinw =n kai\ tetrapo d/ wn kai\
e (rpetw =n (…) e l) a t/ reusan th = | kti/sei para\ to\n kti/santa
nos é oferecido pelo NT, onde a descrição é pautada pela sobriedade nas manifesta-
ções deste ser maligno, e também pelo facto de a representação deste como ser uno
dominar8.
Hierarquia, habitat, natureza ou história não despertam a atenção deste texto
chave. O demónio é um ser tentador, que age no coração dos homens, levando-os
ao mal: no livro do Génesis, quando tenta com sucesso Adão e Eva, e, já no NT,
no Evangelho de Mateus, quando tenta Jesus no limiar da sua carreira messiânica9.
Tem traços vagamente antropomórficos, mas a sua acção é definida em termos
abstractos ou imateriais. Não age directamente sobre a realidade visível, nem as-
sume formas sensíveis ao homem. É, no entanto, um ser poderoso. O livro do
Apocalipse vinca bem essa dimensão da potência do anjo caído, livro que sublima
como nenhum outro o dualismo entre Deus, identificado com o bem e o demónio,
identificado com o mal, duas entidades que se combatem pelo domínio do mundo.
De facto, não é na tradição judaica, ou mesmo no NT como texto das primeiras
gerações cristãs, muito influenciadas pelo judaísmo, que vamos encontrar a fonte
para a representação do mal como seres multiformes e zoomórficos, que veremos
irromper na literatura e no pensamento cristão da Antiguidade Tardia.
Esta demonização das divindades pagãs eclodirá sempre que o cristianismo,
na sua actividade proselítica, encontrar comunidades religiosamente arreigadas às
religiões pagãs locais, assumindo estes seres malignos, plasticamente, os contornos
característicos das divindades que a nova religião procurava suplantar.
Um exemplo paradigmático deste procedimento ocorre na Vida de Santo Antão,
biografia da autoria do Bispo de Alexandria, Atanásio, que, ao narrar os combates
heróicos de Antão, o primeiro monge, com os demónios, se transforma numa fonte
de informação preciosa sobre o estado religioso deste Egipto do séc. IV.
Os demónios de Atanásio coincidem, nos traços gerais, com o apontado por
Plutarco no De Iside: são seres aéreos, que vivem acima de nós, entre a terra e o
céu. Podem assumir múltiplas formas, diferenciadas entre si (21.4) Polu\j me\n
ou ) =n au )tw =n e )stin o ( o c ) / loj e )n tw = a )e /ri, kai\ makra\n ou )k ei )si\n a )f )
h (mw =n. Pollh\ de\ ti/j e )stin e )n au )toi=j diafora / (…). São seres que foram
criados bons, mas, caídos na terra por faltas próprias, enganam os pagãos com as
suas aparições. Movem-se por todo o lado, e, numa atmosfera saturada de espíritos
malignos, bloqueiam fisicamente a subida dos cristãos ao céu, de onde eles caíram,
no passado: (22.2) Alla\ )) kaloi\ me\n gego n/ asi kai\ au )toi/, e )kpeso n/ tej de\
a )po\ thj= ourani/ou
) fronh /sewj, kai\ loipo\n peri\ th\n gh =n kalindou /menoi,
tou\j me\n (E / llhnaj h )pa t/ hsan tai=j fantasi/aij (...) pa n/ ta kinou=sin,
qe l/ ontej e )mpodi/zein h (maj= thj= ei )j ouranou\ ) j a )no d/ ou i n( / a mh\ o q
( / en
e x) e p/ eson au )toi\ a )ne l/ qwmen h (mei=j (…). Têm o poder de se metamorfosearem
8
DACL, s. v. «Démon: Démonologie Chrétienne Primitive», t. 3; col. 143. Como personagem definida, o dia b/ oloj
surge no livro de Job. É um dos anjos da corte de Deus, e desempenha o papel activo no ferir de Job. É, portanto, um
instrumento dócil das ordens de Deus.
9
Mt 4 1-6.
10
De Iside, 71. Plutarco critica o facto de os egípcios tratarem os animais como deuses, não só por ser ridículo e preju-
dicial mas por degradar as práticas religiosas... Ai )gupti/wn (...) qerapeu o/ ntej au )ta\ ta\ zw =a kai\ perie p/ ontej w (j
qeou\j ou ) ge l/ wtoj mo n/ on ou )de\ cleuasmou = katapeplh k/ asi ta\j i (erourgi/a j, a l) la\ tou =to thj= a b) elteri/a j,
e l) acisto n/ e )sti kako n/ (…).
11
O AT dá já conta desta zoolatria dos egípcios, acusação que é retomada sempre que se dá um choque entre a cultura
judaica e as culturas politeístas, maioritárias no próximo oriente (Sap 11, 15, 16). Passa a ser uma crítica alargada ao uni-
verso dos pagãos no NT, como podemos perceber em Rom. 1, 23-25. A arqueologia mostrou que a religião tradicional
egípcia “s’enfonce de plus en plus dans la fange du culte zoolatrique” (Dictionnaire de Géographie Chrétienne, t. 3, col.
1336-1337) A mumificação dos gatos cães, crocodilos, aves, carneiros e mesmo escaravelhos é uma das manifestações
desta zoolatria e foi um fenómeno generalizado no período helenístico-romano do Egipto, como a arqueologia o prova.
Os autores gregos, como Diodoro Sículo, Estrabão e mesmo Plutarco (De Iside... 71) relatam episódios que provam ser
esta uma tendência muito popular da religião egípcia do final do Novo Império.
12
DSp. “Égypte”, col. 1321. Ísis e Osíris, a dupla de deuses tornada mais popular nos anos do Egipto helenístico-
romano, identificam-se com a terra negra, e húmida e com o Nilo que lhe dá a vida. Seth e Nefthys identificam-se com
a esterilidade selvagem do deserto que ameaça a terra fértil. Na Época cristã, os cultos de Ísis, Osíris, Horus, Ápis e de
Serápis, nas cidades associados a alguns deuses gregos (Afrodite, Dioniso, Hermes, Apolo) mantinham-se activos, ainda
que o Egipto se tivesse cristianizado com extraordinária rapidez.
aos hábitos dos cultos ancestrais, que sempre praticou e aos quais reconhecia valida-
de como adjuvante da sua relação com o meio natural, está bem presente no facto
de o seu herói, Antão, lutar contra o costume da mumificação, e de ter tomado
medidas para evitar que os seus seguidores sujeitassem o seu corpo, após a morte,
a um tratamento que o preservasse (caps. 90-91). Os seus seguidores eram cristãos,
mas para eles fazia sentido a mumificação dos entes queridos, prática milenar da
cultura egípcia. De igual modo, a invectiva de Antão centra-se sobre aspectos do
paganismo egípcio relacionados com o mundo natural: os oráculos e a sua vali-
dade para prever as cheias cíclicas, a magia que cura doenças, os ídolos-demónios
que reclamam culto para não se tornarem nocivos, tudo realidades de um mundo
religioso em fronteira, que ainda fornecia uma leitura do mundo capaz de atrair as
pessoas que dele dependiam.
E, de facto, o crescimento do monaquismo no Egipto, ocorrido após o termo
das grandes perseguições, acompanhou a cristianização dos espaços rurais perifé-
ricos. Neste sentido, a biografia de Antão é testemunho dos anos dramáticos de
convivência de dois sistemas religiosos, em que o emergente se procura substituir,
com escassas fracturas de funcionalidade, ao antigo. Antão, com o abandono pro-
gressivo do espaço civilizado das vilas, de Heracleópolis no Egipto Médio, a Pispir
e às montanhas do maciço arábico, nas bordas do mar vermelho, isola-se cada vez
mais no deserto egípcio, como se procurasse enfrentar o coração das trevas, que
para o egípcio comum era o deserto, espaço ermo e estéril.
Assim devemos compreender a presença de vários animais na obra de Atanásio,
que aqui se prestam a servirem de materialização para os demónios, os inimigos
do paladino da verdadeira fé, que é o monge cristão Antão. Uma via erudita, a das
correntes filosóficas dominantes de que a obra de Plutarco é um exemplo, havia já
aberto a porta à interpretação das divindades egípcias tradicionais como seres de es-
tatuto demónico, divindades inferiores, dotadas de um poder restrito e circunscrito
a um espaço. Mas também pelos caminhos da religiosidade popular, verificamos
que o panteão egípcio favoreceu esta identificação, visto muitos dos seus deuses
terem atributos e formas de representação teriomórficas.
Neste processo de afirmação da nova religião, que passa pelo combate aos ídolos
tradicionais, há também a apropriação de um esquema religioso que, paradoxal-
mente, garante a sobrevivência de elementos do paganismo no novo mundo. Como
sinal desta sobrevivência, temos o destaque dado ao conhecimento e caracterização
dos demónios.
A caracterização destes demónios coincide, em muitos aspectos, com a imagem
“oficial” com que se apresentavam os deuses egípcios. Os animais identificados
com Seth adquirem particular relevo13. Recolhido num túmulo, Antão é atacado
13
Em De Iside, 21, Plutarco apresenta uma interpretação astronómica dos deuses egípcios. As almas dos deuses-demó-
nios egípcios estão no firmamento: Ísis é a estrela Sírio, da constelação do cão, e por isso este animal representa a deusa.
Quando aparece no firmamento anuncia a chuva. Typhon-Seth é a estrela do urso (cap. 29) O boi é o animal de Serápis
ou de Osíris (cap. 38) O Nilo enche-se quando o sol se conjuga com a constelação do leão. (cap. 50) A serpente é um dos
A par desta caracterização zoomórfica dos demónios que assaltam Antão, cons-
tata-se a transferência de uma linguagem religiosa: Antão é capaz de agir sobre
o meio natural, sobre o comportamento das bestas, da mesma forma como um
sacerdote pagão exibia, como traço do seu poder, a manipulação da natureza por
meio da palavra16. Esta manipulação faz-se pelo recurso seja ao poder apotropaico
animais de Seth. (cap. 73) todos os animais de aparência selvagem estão identificados com o deus do mal, Tytphon-Seth
(…) pa =sa fu s/ ij a)/logoj kai\ qhriw d/ hj th =j tou = kakou = dai/monoj ge g/ one moi/raj (…)
14
O crocodilo, o burro e o hipopótamo são animais de Typhon-Seth (De Iside 50; 75).
15
Plutarco dá conta de um ritual execratório que envolve a precipitação de um burro, símbolo de Typhon-Seth, como
forma de expurgação do mal (De Iside 30).
16
O contacto com o sobrenatural através da manipulação da natureza animal, e o modo como este tipo de manifes-
tações estava arreigada à prática religiosa egípcia, está demonstrada em De Iside (73-75). Plutarco dá, como explicação
para esta prática uma interpretação lógica: os rituais mágicos (que não se esgotam nos sacrifícios) com animais reflectem
a necessidade e a utilidade destes animais (crei/a j kai\ w )felei/a j) na vida do homem egípcio. Os exemplos dados
por Plutarco mostram-nos que esta manipulação dos animais esgota a sua finalidade na reposição de um equilíbrio
da palavra, seja a uma prece, como no caso da expulsão dos crocodilos, seja com
mensagens que reforçam a fragilidade, fraqueza, ou inconsistência do poder dos
demónios.
A primeira multidão de demónios é expulsa a golpes de ironia (9.9-10)
(…) Ei ) du n/ ami/j tij h ) =n e )n u (mi=n, h k ) / ei kai\ mo n/ on e x) u (mw =n e )lqei=n
e n( / a; (...) -ei ) du n/ asqe kai\ e x) ousi/an e )la b/ ete kat )e )mou=, mh\ me l/ lete,
a )ll )e )pi/bhte... “Se tivésseis algum poder, bastaria um de vós. (...) Mas atacai, não
hesiteis, venham...”. Num outro ataque, (39, 3) os demónios enchem-lhe a caverna
de cavalos, feras e répteis. Antão expulsa-os com salmos: (…) i p( / pwn kai\ qhri/wn
kai\ e (rpetw =n e )plh /rwsan to\n oi k ) / allon (...).
) / on. Ka )gw\ e y
Durante uma vigília, o demónio lança contra ele animais selvagens, en-
tre estes hienas. As palavras de Antão, como chicotes, põem-nas em fuga,
(52, 2-3) Agrupnou=nti
) gou=n au )tw = | nukto\j e )pafh =ke qhri/a. Kai\ scedo\n e )n
e )kei/nh | th = | e)rh/mw| pasai = ai ( u ainai
(/ e x) elqou=sai tw =n fwlew =n (...) Tau=ta
tou= Antwni/ou
) le g/ ontoj e f
) / ugon e )kei=nai, w (j u (po\ ma /stigoj tou= lo g/ ou
diwko /menai.
Noutros passos ainda, Antão assume o poder taumatúrgico de interferir com a
natureza no sentido de a domesticar, de acordo com um ideal de universo civiliza-
do, submetido ao poder do homem que se assume como vigário de Deus na terra.
Segundo afirma Antão, no cap. 24.4, derrotar o demónio é domesticar e ci-
vilizar uma natureza selvagem, submetendo-a ao domínio humano: “é como pôr
a canga no focinho de um boi, como furar o nariz e os lábios de um escravo fu-
gitivo, aprisionando-o, é como fechar um pássaro na gaiola. Os demónios foram
reduzidos a escorpiões e serpentes que se podem esmagar com os pés” (…) w (j
me\n dra k/ wn ei (lku /sqh tw = a )gki/strw para\ tou= Swthroj, = w (j de\ kth =noj
forbai/an e )l/ abe peri\ ta\j r (i=naj, w (j de\ drape t/ hj kri/kw | de d/ etai tou\j
mukthraj = kai\ yelli/w | tetru p/ htai ta\ cei/lh. Kai\ de d/ etai me\n para\
tou= Kuri/ou w (j strouqi/on (...) dai/monej w (j skorpi/oi kai\ o f ) / eij ei )j to\
katapatei=sqai par )h (mw =n tw =n cristianw =n.
A percepção de que os deuses do paganismo migraram, no cristianismo, para
o estatuto de demónios não escapou a Marguerite Yourcenar, essa extraordinária
escritora belga que não escondia, nem a sua fé cristã, nem o seu amor pela cultura
clássica. Num pequeno conto publicado em 1963 no volume Nouvelles Orientales,
intitulado Notre-Dame-des-Hirondelles, a autora recriou poeticamente este encon-
tro entre as duas realidades antagónicas, cuja harmonia é restabelecida de forma
invulgar. Tem como protagonista o monge Terapião, na sua juventude discípulo
do grande Atanásio, de quem temos vindo a falar. Enviado para a Grécia, assume
como missão libertá-la dos sortilégios de Pã. E empreende, inspirado pela imagem
do seu mestre, uma cruzada iconoclasta contra as últimas manifestações de um
paganismo em decadência. E, no campo, pressente a presença das ninfas, essas
ecológico.
–“Quem te disse que a paz de Deus não se estende às ninfas como às gazelas
e aos rebanhos de cabras? – (...) Pois não sabes que no tempo da criação Deus
esqueceu-se de dar asas a certos anjos, que caíram na terra e se fixaram nas
florestas, onde formaram a raça das Ninfas e dos Faunos? E outros instala-
ram-se numa montanha, onde se tornaram deuses olímpicos. Não exaltes,
como os pagãos, a criatura à custa do criador, mas não te escandalizes tão-
pouco pela sua obra. E agradece a Deus no teu coração por ter criado Diana
e Apolo.”
Mas a sensualidade das ninfas perturba a obra de Terapião junto dos fiéis, e o
mesmo confessa que vai persegui-las, “até ao inferno”. A Senhora, numa postura
conciliadora, pede-lhe que a deixe entrar na gruta. Afasta com as mão uma enorme
cruz “aquele objecto familiar” e, transformando as ninfas em andorinhas, trá-las no
seu manto e devolve-as à luz, em liberdade.
Chamamos a atenção para os termos com que a Senhora, personagem que, na
obra, se vai revelando como Maria, a mãe de Cristo, constrói uma história divina
que assimila a tradição cristã e a pagã: Deus esqueceu-se de dar asas a alguns anjos,
que, caindo na terra, deram origem às ninfas, faunos e deuses olímpicos. Fica na
penumbra o aspecto da revolta do anjo, ou dos anjos, que teria estado na origem da
queda e, portanto, na etiologia destes seres que se opõem a Deus. Preserva-se, da
tradição pagã, o facto de os deuses terem uma origem e, da tradição cristã, o facto
de serem criados por Deus, ou seja, de ocuparem um lugar de potência inferior, em
relação à divindade suprema. As ninfas, divindades de estatuto secundário para o
paganismo, sendo transformadas em andorinhas, repõem a esfera de intervenção
destas entidades no mundo animado da natureza. A verdade poética de Marguerite
Yourcenar, que assim encontrou lugar para estas, é, portanto, o espelho dessa per-
manência dos deuses antigos num mundo conquistado para Cristo.
Mas há, sem dúvida, uma fractura entre o ponto de vista de Terapião e o da
Senhora, que só a intervenção miraculosa desta resolve. Encontramos este mesmo
sentido de fractura, de ausência de comunicação, e, com contornos bem mais dra-
máticos, no poema de Sophia de Mello Breyner “eis que se apagaram/os antigos
deuses sol interior das coisas/ eis que se abriu o vazio que nos separa das coisas...”.
Também a Senhora manda a Terapião que “não se escandalize com a obra de Deus”,
de que as ninfas, gazelas, e rebanhos de cabras fazem parte. Para Sofia, perdeu-se,
com o apagar dos deuses antigos, uma relação “com as coisas”, interpretamos nós,
com o mundo natural, com os seus ritmos e sentidos, em que o homem agia como
parte integrante e não como elemento externo de domínio. E não será por acaso
que, para Antão e para Terapião, o avanço e triunfo do cristianismo assume contor-
nos de uma ocupação física do mundo natural, numa estratégia de civilização que
passa pelo neutralizar e domesticar da força selvagem da natureza.
A expulsão dos deuses-demónios pagãos empreendida pelo cristianismo teve,
assim, o sentido de romper, no coração dos homens, a ligação entre estas entidades
e os seus mundos de sentido, inaugurando uma nova relação, agora mais desigual,
entre o homem e o espaço que o rodeia.
Katerina Dimopoulou
STC - Tessalónica
popepiou@otenet.gr
T his is a paper about the Iliadic gods and the perplexing question of their jus-
tice: scholars and readers alike have been puzzled by the gods’ behaviour ever
since antiquity;1 arguments and counter-arguments have been raised, and diverse
interpretations offered. For some, the gods represent a narrative device or mecha-
nism, the well-known Götterapparat, whose function is either to provide a relief
from the grim presentation of human life or to forward the plot of the poem – in
either case they are far from being agents of morality or justice; others deny their
justice on the grounds that the very concepts of morality and justice are simply
non existent at the age of the poem’s composition: according to such a view, the
archaic age is ignorant of the internalised and conceptualised ideas of later ages,
and it is therefore incapable of properly conceiving the very idea of divine justice;
finally, there are those who advocate divine justice and see in it a power that per-
meates the poem, even if very discreetly: the very end of the poem seems to prove,
according to this view, that the gods, and in particular Zeus, can be just.2
Such conflicting interpretations of the gods do not emerge ex nihilo: in fact,
they correspond to the conflicting qualities of the gods themselves. For the dif-
ficulty when discussing divine morality or justice in the Iliad lies with an essential
inconsistency in the portrayal of the gods: they are said to represent an idea of jus-
tice, even if vaguely and indirectly, yet at the same time they behave in a manner
that actually defies all the principles that an idea of justice seems to entail. In other
words, their actual behaviour and participation in the plot does not conform with
the belief in their supporting justice, a belief which does exist in the poem and is
expressed in a variety of ways and in a considerable number of cases.
A typical example of this inconsistency can be found in the episode of Menelaus’
and Paris’ duel. In book 3 Paris suggests that the end of the war should be deter-
mined by a duel between him and his main opponent. Oaths are taken in order to
seal the agreement that whoever wins will take Helen and the war will come to an
1
See Xenoph. frs.11B and 12B DK; Heracl. frs. 30 and 21 DK; Pl. Euthyphro and Resp. 398a-b, 607a.
For a sceptical or even negative attitude towards the existence of divine justice in the poem see, for example, Cal-
2
houn (1937) 268, Greene (1944) 11, Dodds (1951) 32, Chantraine (1952) 64, Adkins (1960) 62, Janko (1992)
on Ξ 153-155; for the opposite view, which advocates the gods’ justice see especially Lloyd-Jones (1983) ch. 1; also
Kirk (1985) on Γ 351-54 and Δ 160-162, Hainsworth (1993) on Ι 502-12, Richardson (1993) on Χ 358, Ω 22-76
and Ω 33-54.
end. Agamemnon invokes Zeus, Helios, the rivers and the earth, as well as the pow-
ers of the underworld, as witnesses of the agreement and the oaths taken who will
see to its fulfilment: if the Trojans violate the agreement, the gods should support
the Greeks (Γ 276-91). Just before the duel starts Menelaus expresses his feelings of
self-righteousness in a prayer to Ζεὺς Ξείνιος (Γ 351-54): Paris’ violation has to be
punished, and although it is Menelaus himself who will exact the punishment, the
god is invoked as the power who will guarantee the successful accomplishment of
this act.3 The duel ends with the intervention of Aphrodite, who saves Paris when
Menelaus is about to kill him (Γ 373ff); at Δ 105ff. the oath is being broken by
Pandarus who wounds Menelaus; Agamemnon, heavily sighing with pain, tries to
soothe his brother by claiming that Ζεὺς Ὅρκιος will punish the transgression, as he
punishes any transgression of the same kind, and in this way he will re-establish the
moral order that has been violated; for the violation of oaths is, after all, evidence of
disregard for the τιμή of Ζεὺς Ὅρκιος (Δ 154-168; cf. Δ 234-39, 266-71.). It is in this
belief that Agamemnon finds support for his sense of self-righteousness
However, the gods’ actual behaviour in the poem seems to contradict and belie
the heroes’ belief. In the first case, Zeus is not merely indifferent to the principle
of oath-taking, but he is actually responsible for the violation of the oaths since
he is the one who, under the pressure of Hera’s whining, sends Athene to incite
Pandarus’ attack on Menelaus (Δ 1-73). In the second case, Menelaus’ conviction
that Zeus is concerned for the moral aspect of the war seems incompatible with the
god’s actual motivation in the poem, which is largely, if not only, the result of his
old obligation to Thetis (Α 493-530). In both cases the god appears to us to be es-
sentially immoral and unjust.4
In order to understand the essence of the Iliadic gods we have to admit that this
inconsistency is an inextricable element of their very nature: the gods can be just
and unjust, moral and immoral. Once we admit this, the question is not whether
the gods are just or not, but how they can be both just and unjust, what is the
nature of the Iliadic gods and what are the elements that allow them this peculiar
inconsistency. I would like to approach this question in the light of the relation of
the gods to the Iliadic concept of μοῖρα. I will certainly not try to give an exhaus-
tive account either of Iliadic religion, or of the relation between fate and the gods;
rather, I will restrict myself to an aspect which I find particularly interesting and
illuminating, namely μοῖρα’s capacity to denote a cosmic moral order and the gods’
3
A similar ides is expressed by Menelaus in an even more powerful way at Ν 620-39; in his words self-righteousness and
despair are combined in an outburst of frustration as he realises that Zeus supports the Trojans after all; a strong moral
terminology is used by Menelaus, especially when condemning his enemies.
4
The poet’s narrative is clearly at odds with the heroes’ words. The idea that the heroes’ perception of reality is to be dif-
ferentiated from reality itself as presented by the poet has been explored by Jørgensen (1904) with regard to books 9-12 of
the Odyssey. The same distinction between two levels of knowledge is to be discerned in the Iliad as well. However impor-
tant the distinction, though, we cannot say with certainty whether the poet’s aim was to prove his heroes wrong or simply
to bring the limits of their mortal nature to even greater relief. More important, though, is the fact that the references to
divine justice are not limited to the heroes’ wishful thinking; one need only remember the simile of Π 384-93 and Apollo’s
outburst of moral indignation at Ω 33-54.
for example, tries to reconcile Achilles and Agamemnon, he speaks κατὰ μοῖραν (Α
286): he speaks, that is, in a manner that is appropriate to the situation as a whole
if order is to be maintained, and not simply appropriate to his own social status
or τιμή; the issue at stake is one of order and propriety on the side of Achilles and
Agamemnon, not of Nestor.
The two meanings, that of ‘share’ and that of ‘order’ or ‘propriety’, seem com-
bined in the third meaning, that of fate. The concept does not refer simply to an
established future or to a destiny; life’s predetermined course is now interpreted as
the result of an apportionment, thus further stressing the existence of individual
portions and shares, and consequently of limits. One’s share in life is individual and
unique, defined by the particular conditions of one’s own life and death.11 As Clay
notes, μοῖρα is what differentiates one hero from another, and this differentiation
may be said to span one’s life from birth to death.12 The fact that fate is perceived
as a share is perhaps the most important characteristic of the Iliadic concept; life
itself is departmentalised on the human level, and this seems to entail that there is
an order which is preserved whenever μοῖρα is fulfilled.
It is worth noting that μοῖρα as fate is mostly used as an explanation post even-
tum. Referring to accomplished events of the past, it entails both inevitability and
irreversibility, and it denotes the final and ultimate point whence no return can ever
exist. Thus, it becomes the reasoning, the explanation as to why things happened
as they have. This explanation does not correspond to an illustration of a rational
sequence of causes and effects; rather, μοῖρα simply removes the anxiety man feels
against the chaos that surrounds him, against the vertiginous speed of life itself, by
confirming that what happened was part of an order against which he could not
have acted.13
The order implicit in this idea can be seen as moral in two ways. First of all, the
principle of limitation, as suggested by the belief in well-defined shares, is moral
in the sense that it is consistent with itself: it almost imposes a law, and it does so
indiscriminately and invariably, perpetuating and thus confirming itself. Second,
being thus consistent with itself, this principle suggests an order according to which
the established limits cannot and therefore will not be violated. As Cornford rightly
observes, μοῖρα is not simply what must be, but also what ought to be.14
The event which seems to capture the idea of μοῖρα most successfully is un-
doubtedly death. This is a use that is most prominent in the Iliad. The reference can
11
See in particular Pötscher (1960).
12
Clay (1983) 157.
13
It is most important that fate is most of all a post eventum explanation for the poet: despite the fact that Achilles refers to
his own fated death prospectively, the narrative is actually a retrospective account given by the poet, and fate is in this way
no more than the reasoning behind Achilles’ untimely death. Besides, even the heroes themselves, when referring to fate
as an event which is to be accomplished in the future, they do so only when they realise the inevitability of its accomplish-
ment, presenting the unknown future as a well-known and certain past. The shift in perspectives should always be borne
in mind.
14
Cornford (1912) 11.
consciously uses Moirai here, for had he used the gods instead, he would not have been able to arouse the gods’ pity.
17
There are two further instances in which we have Μοῖρα: at Τ 87, where she appears along with Zeus and Erinys in Ag-
amemnon’s famous apology to Achilles, and at Τ 410, where Achilles’ horses foresee the hero’s death, for which they are not
these are only isolated cases that cannot provide us with convincing evidence of
μοῖρα’s personal character. In the poem μοῖρα is mainly an event, and not an agent
or a power imposing her will on man; the only agents the poet and his heroes ac-
knowledge are the gods. To quote Cornford, ‘[Moira] was not credited with fore-
sight, purpose, design; …though we speak of her as a “personification”, [she] has
not the most important element of personality – individual purpose … she is not
a deity who by an act of will designed and created that order [of the world]. She is
a representation which states a truth about this disposition of Nature, and to the
statement of that truth adds nothing except that the disposition is both necessary
and just’.18
To sum up: μοῖρα entails more than predetermination. Relating originally to
a share in a material sense, the word comes to mean a distribution which both
defines and preserves the order of well established limits. When this idea of distrib-
uted portions is applied to human life, and μοῖρα becomes one’s share in life and
death, it seems to retain its basic reference to this same order, which provides the
explanation as to why things happen as they do, why man has to die, or why he has
to die at a particular moment and under particular circumstances, why a disaster
must fall on a people; most often used as a post eventum explanation, it helps ‘make
sense’ out of life’s almost meaningless flow. The idea of order is related to that of
departmentalisation, which, when seen in terms of the social hierarchy and order,
refers to the most important idea of τιμή: τιμή is after all implicit of the limits that
demarcate one’s vital field of existence. The same idea of departmentalisation is true
of the gods and their divine τιμή. The Olympians exist primarily as a family, but at
the same time the very structure of the divine society is merely a reflection of that of
human society: Zeus is an ἄναξ (Γ 351), just like Agamemnon, demanding obedi-
ence and having the power to impose his will on the divine family (e.g. Α 545-67);
the gods hold assemblies of their own (e.g. Δ 1-77), and opinions are heard before
Zeus makes the final decision – a decision which is irrevocable; for as he himself
says, οὐ γὰρ ἐμὸν παλινάγρετον οὐδ’ ἀπατηλὸν / οὐδ’ ἀτελεύτητον, ὅ τί κεν κεφαλῇ
κατανεύσομαι (Α 526-27). In this order of social hierarchy, divine ethics is obviously
a reflection of human ethics: τιμή is of the utmost importance, and the relations be-
tween the gods are reciprocal, based on the same principle of do ut des that defines
human interrelations: Thetis helped Zeus once, and Zeus is now obliged to help her
back, showing thus his gratitude and properly recognising her τιμή (Α 503-10); if he
refuses to help her, she will think of herself as μετὰ πᾶσιν ἀτιμοτάτη θεόν (Α 516) –
responsible themselves, ἀλλὰ θεός τε μέγας καί μοῖρα κραταιή. In neither case, however, does there exist any obvious reason
for writing the word with a capital Μ. See Dodds (1951) 7.
18
Cornford (1912) 20-21; cf. Burkert (1985) 129. It is worth noting that in the Iliad the concept of fate is very close to
that of chance; fate does not refer to a metaphysically pre-ordained plan about the cosmos, and therefore it is to be differen-
tiated from the idea of destiny or providence; fate is simply a chance even, whose consequences are inevitable – the emphasis
being laid on the inevitability of the effect rather than on the indefinability of the cause, we talk of fate rather than chance.
Contra Dietrich (1965), who talks of a pre-Homeric personification, and indeed deification of μοῖρα.
and thus Zeus makes the promise that is necessary for the plot to unfold.19
In a very interesting passage of book 15, Poseidon refers to divine τιμή as the
result of departmentalisation:
O 187-199
A few lines later, Poseidon mentions that he is ἰσόμορος and ὁμῇ πεπρωμένος αἴσῃ
(209) with Zeus, each having an equal share of power. The passage is particularly
interesting for its relating τιμή with μοῖρα: the gods are called ἰσότιμοι and ἰσόμοροι
– in other words, each god has a τιμή, and this τιμή is seen as a μοῖρα, a share result-
ing from the apportionment of power; order can be attained and maintained only
when each god’s τιμή is properly acknowledged. This order of things is πεπρωμένη
αἴσῃ, established, that is, from without, an order which the gods should not oppose.
It is the order of life and nature, which exists independently of the Olympians:
despite their divine superiority, the gods are not the creators of this cosmos, nor are
they the authors of its order. The gods are part of this order just as men are, and
although they can apparently go against it, they never actually do. The same idea
is implied in two well-known, and almost identical, passages of the poem, Π 440-
49 and Χ 178-181: Zeus has been pondering whether he should save Sarpedon and
Hector respectively; the reply given by Hera in the first case is as follows:
19
Other references to the gods’ reciprocal relations: Θ 360-73, Ξ 263-79, Σ 394-409, Ω 110-111.
20
Burkert (1992: 88-95) informs us that the casting of lots among three deities, and the distribution of power among
them, is a motif taken from the Akkadian epic of Atrahasis – the result apparently of the neo-oriental influence on Greece
during the eighth century; not being rooted in actual Greek cult, it is one of the few cosmogonical references in the poem,
the other being Hera’s reference to Oceanus and Tethys at Ξ 201-2 and Ξ 246, and the scene of Zeus’ seduction by Hera in
Ξ, especially the description of their love-making at 346-51; see also Burkert (1985) 132.
In these cases αἶσα denotes the only share of which man is certain, his inextri-
cable link to death. According to Hera (and Athene), the god cannot set free from
death ἄνδρα θνητὸν ἐόντα, πάλαι πεπρωμένον αἴσῃ. The line sounds like a definition
almost of human essence, and it is obvious that the idea projected is that of human
mortality, a predictable, and therefore pre-ordained event, yet inescapable and be-
yond control. The gods can, but do not oppose this order of life. For this is an order
that precedes the birth of the Olympians, it is one of the human characteristics
for which the gods bear no responsibility: the fact that the heroes have to die is far
beyond their jurisdiction and power. The fact that Zeus is presented as being able
to choose, if so he wishes, to save the heroes, and thus control death and human
mortality, is not without significance: the god appears to be neither subordinate to
nor responsible for μοῖρα, but rather free to choose whether he should act according
to or against it; the fact that he opts for the former underlines his concern for the
moral order of life as suggested by μοῖρα.21
The same order that determines and demands human mortality defines the
immortal quintessence of the gods. The distinction between the divine and the
human is one prescribed by it, and the dividing line between the two is clearly and
irrevocably circumscribed. The stark contrast between the divine and the human
is an essential element of the poem, underlining as it does man’s mortal nature of
limited knowledge and perception: against the divine, immortal light of the ever
youthful Olympians the dark sorrow of man struggling against life and against
his own nature as prescribed by μοῖρα assumes an even graver significance, and the
tragic reality of the poem becomes even grimmer.22 More important still, this very
distinction which is part of the natural order implied by μοῖρα provides us with an
answer to the inconsistent behaviour of the gods.
The gods’ superiority is related to their superior τιμή. As Phoenix says of the
One can also think of the cases in which a violation of fate is suggested (ὑπέρμορα: Β 155-156; ὑπὲρ αἶσαν: Ζ 487, Π 780,
21
Ρ 321-22; ὑπέρμορον: Υ 29-30, Φ 516-17; ὑπὲρ μοῖραν: Υ 335-36): only once, at Π 780 do we hear of something happening
against fate, but the idea implicit is that fate can indeed be violated; it is the gods’ intervention which does not allow this to
happen. For a different view, which sees fate as the will of Zeus, see Lloyd-Jones (1983) 5.
22
For the importance of the distinction between the divine and the human see Griffin (1980) ch. 5, Taplin (1992) ch. 5
gods, τῶν περ καὶ μείζων ἀρετή τε τιμή τε βίη τε (Ι 498). Man should acknowledge
divine τιμή and divine superiority, thus acknowledging the very order of life. And
this he does in his desperate attempt to establish, as much as possible, a relation of
mutual reciprocity with the gods, whereby the elementary principle of retributive
justice will be hopefully maintained. Gods, on their part, are particularly sensitive
to their own τιμή, defending their privilege with an extreme sense of self-righteous-
ness. This preoccupation of the gods with their personal τιμή is usually the reason
why we feel disconcerted by their behaviour: Hera and Athene, for example, sup-
port the Greeks not out of a concern for their moral cause, but because their own
τιμή was violated when Paris chose Aphrodite over them (Ω 25-30); the offence can
cause an insatiable hatred that can be quenched only with the annihilation of Troy
(e.g. Δ 31-36); the gods’ behaviour is affected by their obsession to such a degree
that they seem to be motivated by their emotions and passions rather than by a
concern for justice or morality. Subject to love and hatred, affection and jealousy,
they can easily be regarded as self-centred and self-absorbed, impartial and essen-
tially immoral – their emotional weakness inevitably restricting their ability to act
justly.
Considering the importance of τιμή in Homeric society, the gods’ concern for
their τιμή does not come as a surprise. Anthropomorphism is a rationalising proc-
ess; the assimilation of the gods to human standards and principles reflects man’s
attempt to comprehend the indefinable power that exists beyond his knowledge,
and this means basically that essential qualities of the divine are simply translated
into signs or terms that will be easily identifiable or recognisable by man.23 Hence
the attributes of ἀρετή, τιμή and βίη, which are no more than the acknowledge-
ment, in human terms, of the superiority of the divine. The gods represent the
‘unattainable extreme, perfection’,24 and this perfection can only make sense if seen
in the light of principles of which man is aware.
The case of Zeus’ protection of oaths, ξενία and ἱκεσία is particularly illuminat-
ing: all three of these principles are of the utmost importance to Homeric society,
creating the conditions necessary for the coherence and security of the social group;
their violation is seen as a violation against Zeus himself, a sign of indifference
towards his τιμή, and the god’s reaction to such violations aims simply at restoring
the order. By being related directly to the supreme god, the principles are being es-
tablished and sanctioned: the necessary link between propriety and divine response
is made comprehensible through the reference to the god’s τιμή, and although we
may find the association too mundane, it seems to provide the proof for the god’s
concern for propriety: if Zeus punishes transgressions, this means that he is of-
fended by such transgressions, which are therefore unwelcome to him and con-
demned in man. The abstract idea of divine reciprocity and justice is reduced to the
23
See Chantraine (1952) 57ff, esp. 63.
24
Burkert (1996) 27; see also ch. 4.
The order prescribed by μοῖρα, the very order which demands human mortal-
ity and divine immortality, entitles the gods to occasional indifference. The rela-
tion between the human and the divine is indeed one of τιμή and reciprocity, but
this means that the gods can and do most often react when their personal τιμή is
involved, but they can also be indifferent when it is not. Enjoying their unique
privilege of immortal and superior power that their τιμή and μοῖρα entails, the gods
can easily disregard moral considerations if they so wish for the sake of some other
purpose of theirs. The gods are ‘perfectly within their own rights’31 when they react
because of their offended τιμή, but they are also perfectly within their own rights
when they decide to neglect man’s claims on morality. The gods are not bound by
any obligation towards man, and their occasionally immoral or excessive behaviour
is merely the natural consequence of their very immortality as prescribed by μοῖρα
and life’s order; immune to the fear of pain, time and death, they can do as they
please, certain that their bliss is eternal, never to be threatened by the misery of the
mortals.
Morality is evidently not the quintessence of the Iliadic gods, not in their rela-
tion to man; the relation between mortals and immortals is well defined as one of
inferiority-superiority, the limits being inviolable and irrevocable, and in the gods’
whimsical behaviour and wish to act as they like man acknowledges a right which
is based on this superiority of theirs. The gods are inaccessible, they are nature and
life itself, and man cannot demand their attention, nor press a rightful claim on
them. The gods can be just as easily as they can be unjust, moral as well as immoral,
for their morality is one that goes beyond the distinction of good and evil: it is
simply the harsh and irrational morality of μοῖρα and life that demands man’s utter
limitation by time and death. In the Iliadic gods the two antithetical qualities of
justice and injustice seem to converge into a peculiar synthesis which challenges our
expectations and demands a more cautious approach. Interpretations which aim at,
or wish for, a single and more consistent idea of the divine in the poem, inevitably
depend on a choice, a preference for one or the other characteristic, ignoring or
neglecting the aspect against which they opted, and thus disregarding an essential
quality of the Iliadic gods, namely their moral ambivalence.
31
Lloyd-Jones (1978) 4.
Select Bibliography
Burkert, W. (1985), Greek Religion: Archaic and Classical, Oxford (engl. trsl. by
J. Raffan)
(1992), The Orientalizing Revolution: Near Eastern Influence on Greek Culture in the
Early Archaic Age, Cambridge, Mass.- London
(1996), The Creation of the Sacred: Tracks of Biology in Early Religions, Cambridge,
Mass. – London
Clay, J. S. (1983), The Wrath of Athena: Gods and Men in the Odyssey, Princeton,
N. Jersey
Dietrich, B. C. (1965), Death, Fate and the Gods: The Development of a Religious
Idea in Greek Popular Belief and in Homer, London
Dodds, E. R. (1951), The Greeks and the Irrational, Berkeley, Los Angeles
Greene, W. C. (1944), Moira: Fate, Good, and Evil in Greek Thought, Cambridge,
Mass.
Jørgensen, O. (1904), ‘Das Auftreten der Götter in der Büchern ι-μ der Odys-
see’, Hermes 39: 357-382
Q uem é Aquiles; quem é Heitor? O seu canto é uno? A sua voz é uma mesma,
que entoa o canto de um só herói, a “ideia” de herói? São sinónimos ou an-
títese? Proponhamos aqui interrogações, baseadas nos dois seguintes excertos da
Ilíada:
I
462
465
470
Ilíada, XII, 462-471
Tradução:
(…) Então o magnífico Heitor, de aspecto semelhante 462
ao da rápida noite, avançou. Luzia com as terríveis armas de bronze
que lhe cingiam o corpo, trazendo na mão duas lanças.
Ninguém conseguiria travá-lo, excepto um deus, 465
quando ele transpôs a porta aqueia. Com fogo luziam seus olhos.
Voltando-se para a multidão, exortou os Troianos
a saltar os muros: e eles obedeceram a quem assim lhes exorta.
Nesse mesmo instante galgam os muros, e precipitam-se
sobre a sólida porta. Os Dánaos fogem então, aterrorizados, 470
para as côncavas naus, e um clamor sem fim eleva-se.
II
220
225
Ilíada, XIII, 215-229
Tradução:
Deteve-se então [Aquiles] no fosso, dirigindo-se para as muralhas, 215
não se misturando com os Aqueus: honra assim as sensatas ordens da mãe.
Detendo-se aí gritou, e para longe brama também Palas Atena:
Eleva-se já um clamor imenso junto dos troianos.
Tal como a retumbante voz que o salpinx faz ressoar
quando o inimigo quebrantador de ânimo cerca a cidade, 220
assim era a retumbante voz do Eácida.
Assim que ouviram o brônzeo brado do Eácida,
a todos se lhes quebrantou o ânimo: os cavalos de belas crinas
puxam os seus carros para trás: prevêem no seu ânimo desgraças.
Os cocheiros ficam estupefactos, ao verem o incessante fogo terrível 225
que alumia a cabeça do Peleida de grande ânimo.
Foi Atena, a deusa dos olhos garços, quem lha alumiou.
Três vezes gritou ingentemente o divino Aquiles sobre o fosso,
três vezes se atemorizaram os Troianos e seus ilustres aliados.
Sexto, Heitor morre. Ergo, o “início da morte” de Heitor começa neste trecho.
Mas também Aquiles sai definitivamente para o combate neste excerto. Aquiles
é , e, ao lançar-se ao combate com tal cantada violência, a sua morte do-
brará com ele: este é o ponto de viragem no canto de Aquiles, a partir deste gesto, o
herói entra definitivamente no seu destino: vingará Pátroclo a soldo da própria vida.
O fortíssimo com que ataca este seu acorde só pode levar a uma única cadência – a
sua morte – nem poderia, a partir deste momento, deixar incompleta a sinfonia
que assim começa; ou seja, a sua melodia começa aqui e na própria agógica da peça
seria impossível interrompê-la. Não seria aqui o momento apropriado para discutir
aquilo que sempre sentimos quando lemos este excerto no contexto global da Ilíada:
que estamos perante o clímax, o ponto culminante do crescendo musical que entoa
o canto de Aquiles, que todavia não coincide com o clímax da violência (talvez a
barbárie junto a rio Escamandro), o que causa uma certa estranheza. Referimo-nos
contudo a um clímax de força poética, de sentido e de luminosidade.
Procuremos agora encontrar pontos de encontro entre os dois excertos. De um
ponto de vista de proporção aritmética, repare-se nos seguintes cantos: XII-XVI-
XVIII-XXII – vão passar-se exactamente quatro cantos desde da passagem de Hei-
tor pelas muralhas até à morte de Pátroclo, e outros tantos desde o bélico aulido
de Aquiles até à morte de Heitor. Por outro lado, que reacção provocam os dois
heróis? Heitor, ao aparecer num imenso fulgor e ao exortar os troianos a transpor
a porta aqueia, vai provocar um tumulto sem fim, . Aquiles,
ao bradar ingentemente e ao ser visto com uma coroa de fogo, vai igualmente pro-
vocar um clamor incessante, a[speton kudoimovn (XVIII, 218). Como são descritos
os dois heróis? Em ambos reside a força do bronze: Heitor brilha com a luz do
terrível bronze (XII, 463-464), e a voz do Eácida é
de bronze, (XVIII, 222). Por outro lado, repare-se que ambos os he-
róis surgem comparados a manifestações da natureza: Heitor é comparado à presta
noite (XII, 463) e a cabeça de Aquiles luz com um fogo incessante,
(XVIII, 225). A comparação de uma personagem com a “noite rá-
pida” é inusitada nos textos homéricos, como sublinha Willcock1: em toda a Ilíada
e Odisseia só há duas comparações relativas à noite: na Ilíada I, 47, Apolo, trazendo
a praga, vem «como a noite» para as naus gregas; na Odisseia, XI, 606, Héracles
avança entre os fantasmas «como a escura noite», com o arco pronto a disparar.
Mas, como se vê, nenhum delas é tão sugestiva como esta comparação relativa à
«rápida noite», onde o adjectivo empresta celeridade à própria identificação de Hei-
tor com a Noite. E quanto ao fogo incessante que rodeia a fronte de Aquiles, este é
uma imagem suficiente para causar pânico nos próprios cavalos e nos seus cocheiros
– repare-se que este verso é formado quase somente por pés dactílicos, o que diz
bem da reacção que provoca: um medo súbito, toste como a noite de Heitor. Temos
então Heitor e Aquiles, heróis próximos na medida em que em ambos reside a força
1
M. M. Willcock, A Companion to the Iliad, The University of Chicago Press, Chicago-London, 1976, p. 143.
da terra: a noite e o fogo. É esta força telúrica da e do que, julgamos nós,
aproxima os dois heróis, e os torna agentes de um ojn unificador que os engloba: a
própria natureza. Por outro lado, ambos luzem com o fogo, . Os olhos de Heitor
brilham com o fogo, , e um fogo alumia a cabeça de Aquiles.
B) Da dissemelhança do gesto de Aquiles e de Heitor. Mas será ο de Aquiles o
mesmo que incendeia os olhos de Heitor? É uma importante questão, especialmente
se tomarmos metaforicamente, isto é, o fogo de alma, alento, arrojo mavórcio.
Isto porque se analisarmos o trecho do canto XVIII podemos encontrar na imagem
de Aquiles certos pormenores que não encontramos no do canto XII. Senão veja-
mos: é relativamente claro que a atitude guerreira dos dois heróis é diferente – Aqui-
les não se mistura com os Aqueus, nem os exorta ao combate, ao contrário de Hei-
tor. Repare-se que neste excerto só há referência aos Aqueus para dizer precisamente
que o herói não se mistura com ele; no do canto XII, pelo contrário, há uma clara
referência ao povo troiano, que em conjunto passa as muralhas do Dánaos. Assim,
Aquiles aparece só, e é só, o que aparentemente lhe dá um protagonismo diferente
do de Heitor, que representa um povo e não um indivíduo. Por outro lado, o clamor
que se eleva num e noutro excerto é de origem diferente. O o[mado" (XII, 471) que
sobrevem não é unicamente acirrado por Heitor, mas por ele e pelo seu povo. Já o
kudoivmon (XVIII, 218) que se eleva aos céus é pura e simples consequência de todos
verem a coroa de fogo inextinguível de Aquiles. O Eácida é só, não é chefe nem pas-
tor de tropas, o filho de Príamo, esse, é o seu povo, é o timoneiro e guia. Por outro
lado, repare-se no carácter estático de Aquiles, repetido em duas formas verbais do
verbo (XVIII, 215) e stav" (XVIII, 217). Aquiles está parado, imóvel,
enquanto o primeiro verbo associado a Heitor é e[store (XII, 462) – Heitor avança.
Aquiles detém-se enquanto todos os troianos recuam, aterrorizados.
Já as consequências do gesto de Aquiles parecem-nos ser diferentes: o terror que
se experimenta não se vive só no mundo humano, como no fragmento do canto
XII, mas também no mundo animal: os cavalos de belas crinas puxam os seus
carros para trás, prevendo no seu ânimo desgraças. A ideia de que um herói, pela
simples visão, transmite tal terror que até os cavalos se arreceiam é, sem dúvida,
mais superlativa do que o ‘simples’ medo dos Aqueus ao verem Heitor e o seu povo
renhir com eles, no final do canto XII. Aliás, se continuássemos a ler para além do
verso 229 do canto XVIII, verificaríamos que doze dos melhores troianos morreram
pela sua própria mão, matando-se com as suas armas involuntariamente quando
tentavam fugir atabalhoadamente (XVIII, 230-231): e isto tudo só à simples visão
do filho de Peleu.
Mais há mais evidências deste carácter bem mais superlativo do comportamen-
to de Aquiles em relação ao de Heitor. Repare-se que no texto do canto XVIII
aparece repetida quatro vezes em apenas quinze versos a palavra quvmo" compos-
tos dela, algo a que tentámos ser sensíveis na nossa tradução, repetindo a palavra
“ânimo”. A repetição deste vocábulo dá uma obriga-nos a visualizar e a ouvir (sim,
porque é um terror que se ouve) o pavor troiano ao ver o filho de Tétis – um terror
A. Parry, “The Language of Achilles”, in The Language and Background of Homer, G. S. Kirk (ed.), Cambridge-New
2
“daimoníaco” na acção heróica deste ser. Porque dizemos isto? Comecemos pela
própria filiação dos heróis. Aquiles é filho de Tétis. Não concordamos com interpre-
tações simplistas como é, pensamos, a posição de Bowra; de facto, num estudo
comparativo que este autor tem sobre as idades dos heróis, o autor diz a certo mo-
mento: «sometimes, like certain Greek heroes, they [the heroes] are half-divine in
origin; there is often something unusual or miraculous in their birth. But this is an
incidental and almost irrelevant, no more than a tribute to their eminence by trying
to explain it as a matter of breeding»3. Não podíamos discordar mais. O facto é que
não é acidente (no sentido aristotélico) o facto de Aquiles e ser filho de uma deusa;
se lhe retirassem em última análise esta qualidade (o processo epistemológico de
demonstração do aristotélico), Aquiles deixaria de ser Aquiles. Pelo
contrário, se lhes retirassem o seu famoso escudo, Aquiles continuaria a ser Aquiles.
Escudo é acidente (), filiação divina é substância (oujsiva). Porquê? Por-
que, em última análise, define o algo a que o discurso épico se reporta, a excelência
que não é adquirida, mas nasce com o herói, como aliás contraditoriamente admite
o próprio Bowra: «the Greek explained this [the heroes’ power] by saying that they
possessed a higher degree of inborn power, and indeed it is this which makes a hero,
wherever he is to be found»4. A forma de explicar este ‘inborn power’ não é uma
forma nem intelectual, nem poética, nem mitológica, nem sentimental, é uma for-
ma teológica: Aquiles é Aquiles por ter sido tocado “geneticamente” pelos deuses; a
sua filiação é a primeira prova da sua gratia divina. E nenhum outro herói na Ilíada
“é tocado” de tal forma; nenhum outro herói “canta com” os deuses. Clarifiquemos.
Esta otherness de Aquiles reside, em nosso entender, na qualidade da sua . No
contexto da epopeia, utilizar o termo requer um certo cuidado. Defendemos
que existe dois tipos de na Ilíada. A primeira, chamemos-lhe “ huma-
na”, é característica de personagens como Heitor ou Pátroclo, e os seus gestos de
arrogo definem-se por «cegueira heróica», ou seja, pela forma como não são capazes
de interpretar os sinais que lhes são enviados devido à excessiva confiança que têm
no momento do seu apogeu bélico – Heitor não soube interpretar o que representa-
va para ele vestir as armas de Aquiles, depois de despojar Pátroclo, assim como Pá-
troclo não soube parar o seu furor guerreiro, precipitando-se sobre Heitor, não se-
guindo os sinais dados pelo seu próprio amigo, Aquiles. E todo este
comportamento hybrístico assenta em gestos simbólicos, pequenos na dimensão,
embora posteriormente grandes no sentido – vestir as armas do émulo, avançar um
pouco mais na refrega. É fundamentalmente uma hybris de erro, isto é, de não saber
interpretar, um erro de cálculo (ajmartiva). O excesso de Aquiles é completamente
diferente. A sua hybris é cósmica, na medida em que todos os sinais são correcta-
mente interpretados por ele. Aliás, o erro é difícil, quando a própria mãe, uma
deusa!, lacrimosa lhe diz «Terás então uma morte rápida, meu filho, ao falares as-
3
C. M. Bowra, “The Meaning of a Heroic Age”, in The Language and Background of Homer, G. S. Kirk (ed.), Cambrid-
ge-New York, Heffer-Barnes & Noble, 1967, p. 23.
4
Bowra, ipso loco.
sim! Pois a morte está iminente para ti, junto com Heitor» (XVIII, 95-96), ao que
Aquiles responde: «Que eu morra agora mesmo, se não tentasse socorrer o meu
companheiro já morto.» Ou quando Xanto, o seu cavalo, lhe vaticina uma morte
em breve, ao que ele responde: «Xanto, porque me vaticinas a morte? Não precisas.
Isso bem eu próprio sei que de seguida o destino me fará perder, longe do amado
pai e mãe: mas com certeza não descansarei enquanto não levar os troianos ao fastio
da guerra» (XIX, 420-423). Este argumento de “pré-conhecimento” de Aquiles é
discutível, uma vez que Heitor também o tem (Pátroclo diz-lhe, morrendo, «não
viverás muito também; já de ti se acercou a morte e o destino potente, que te farão
subjugar pelo braço ilustre de Aquiles Eácida» (XVI, 853). No entanto, pensamos
que Heitor aceita esse destino, mas não se cola a ele, se me perdoam a expressão
usada pelo Professor José Pedro Serra, como é o caso de Aquiles, ou seja, divisa o
seu destino, mas não se lhe entrega heroicamente; o gesto de vestir as armas de Pá-
troclo é pequeno, é humano, é um “pequeno excesso”, embora grande, como já
dissemos, nas consequências. Pelo contrário, os excessos de Aquiles são enormes,
fisicamente enormes, enormes em termos de sentido. Mesmo a própria consciência
da sua morte; Clarke, numa exímia obra sobre os conceitos de alma e corpo em
Homero, soube como ninguém intuir a forma única como Aquiles encara a sua
morte: comentando IX 321-22, um dos momentos mais fortes no discurso de Aqui-
les a Ulisses. «Although he invokes it at a time when his mood has been dictated by
yielding to his passions in the most intense self-awareness, even here the core of the
images is that the yuchv will be lost in death, not that it underlies emotion, thought,
or active life”5. E esta torva consciência é, pensamos, bem própria deste herói; ela
encara a própria morte de uma forma diferente, pois vê o mundo de forma diferen-
te – ele foi tocado por gratia vertical, isto, vinda de cima. Tudo é isolado no seu
gesto; ele vindima um imenso número de troianos, turva a cor do rio com a sangue
das vítimas, investe contra a própria natureza e a sua ordem – a de Aquiles é
uma cósmica. Tudo é grande na sua cólera funesta; o arrastar do corpo de
Heitor em volta do túmulo de Pátroclo, a própria morte de Heitor, a bestialidade da
carnificina que vai provocando, o momento em que se detém sobre o fosso, como já
vimos. Os seus excessos perturbam não só a ordem humana, perturbam a ordem
cósmica – e é esse o verdadeiro motivo, no nosso entender, da sua iminente morte
– ordem cósmica porque a forma como ele é humano não é humana: as suas sevícias
têm algo de daimoníaco, quer pela sua filiação divina, quer porque toda a sua acção
é desmedida, pois excede a medida humana, por natureza horizontal, cronológica.
Aquiles é , Heitor é . Se nos conseguirem demonstrar que a de
Heitor é semelhante à de Aquiles, então admitiremos que o seu pu'r é semelhante.
Acentuámos a distância que vai de Aquiles a Heitor. Mas será mesmo verdade que
só existe um herói na Ilíada? Queríamos aqui dizer que sim; o tempo que dispomos
M. Clarke, Flesh and Spirit in the Songs of Homer: A Study of Words and Myths, Oxford, Clarendon Press, 1999, p. 57.
5
O autor não defende aqui a particular consciência de Aquiles em relação à morte, somos nós que interpretamos as suas
palavras dessa forma.
e o bom senso leva-nos a dizer que não. Vivemos em permanente antítese, em rela-
ção a nós próprios; vivendo queremos ser Aquiles, anelamos porém por igualmente
ser Heitor; somos heróis quando levamos aos limites da nossa ajrethv os dois pólos
do nosso querer. Ser Aquiles é sem dúvida tarefa dissonante, porque não está em nós
a decisão de o ser. Ser Heitor é igualmente sublime, difícil, mas não cósmico: de-
pende exclusivamente de nós, embora, paradoxalmente, a um deus seja impossível
ser Heitor. Quanto a mim, gostaria de ter provado do doce cálice materno o daímon
de tudo; teria preferido fixar-me no sol do exício sob a lua que alteia – participar em
passado futuro na grata guerra de Tróia.
1
Sobre o débito de Catulo à Grécia vide J. Bayet, «Catulle, la Grèce et Rome», in L’ Influence Grecque sur la poésie latine,
Entretiens Hardt, vol. II (Genève, 1953), pp. 1-39.
É bem conhecido este poema como o é também o Carme 7 que volta ao tema
dos beijos, como se fora um segundo fragmento de um contínuo dramático: à
2
O Carme 48 fala também em número infindável de beijos, mas agora nos olhos de mel de Juvêncio: «beijar-tos-ei até
perfazer trezentos mil / e não me parece que jamais possa ser saciado» (usque ad milia basiem trecenta / nec numquam
uidear satur futurus).
3
O de Jonson é uma fusão dos Carmes 5 e 7. Vide K. Quinn, Catullus, The Poems (London, Macmillan, 1973), p. 110,
ad Carm. 5.
4
Poemas e Fragmentos de Safo (Porto, 51995), p. 21.
……………..
**********
A última estrofe de Safo chegada até nós não tem tradução no poeta latino e
a quarta e última de Catulo parece ser acrescento seu, e nela o Veronês introduz o
conceito do otium, eivado da carga depreciativa que os Romanos lhe davam. E os
malefícios do ócio são realçados por tríplice anáfora que caminha do particular para
o universal5. É certo que a ode de Safo não se encontra completa, a avaliar por al-
gumas palavras que iniciariam a nova estrofe que começaria por afirmar que «tudo
era de ousar». Tudo parece indicar, no entanto, que a estrofe final de Catulo sobre
a ociosidade e suas consequências negativas é um acrescento seu. A controvérsia
5
Vide E. Ftaenkel, Horace (Oxford, 1957), p. 213.
sobre o assunto é longa e não oferece certezas. Essa nova estrofe de Catulo sobre o
ócio, tanto pode ser fruto de junção de parte de um poema independente com o
mesmo metro, devida a editor pouco escrupuloso; como tratar-se de auto-censura
ou de acrescento posterior do próprio poeta, ao preparar a composição para publi-
cação; ou, na opinião de T. Edwards, os versos são inovação de Catulo e traduzem
a colisão entre o temperamento e o dever6. A complexidade e incerteza da matéria
levaram E. Fraenkel a confessar que já mudara várias vezes de opinião e que tal
facto o predispôs a abster-se7.
Com uma mulher como Lésbia, o homem ciumento tem a vida ainda mais com-
plicada, porque ela não era pessoa que se possa dizer de um só amor ou de escassas
experiências. É uma mulher vivida, que troca com facilidade de afeições e de leito.
E Catulo naturalmente sofre, ao saber que ela se delicia nos braços de outro. Então
critica-a, torna-se a cada passo contundente. Assim acontece no Carme 11 que,
pertencente ao género da renuntiatio amoris, marca o fim da relação com a amada
e apresenta significativas correspondências com o 51 – a mesma estrutura métrica,
estrofes sáficas, uso da palavra rara identidem nos dois (11. 19 e 51. 3)8. Pode por
isso causar estranheza a sequência por que aparecem nos Carmes. Acidente ou pla-
nificação do poeta ou editor para transmitir a ideia de fragmentos colhidos ao acaso
num contínuo dramático? A composição, depois de exortação a Fúrio e a Aurélio (v.
1) e de várias referências geográficas longínquas (oriente afastado, Gália e Britânia),
até onde esses dois amigos não deixariam de o acompanhar sem desfalecimento (vv.
2-14), Catulo pede-lhes que levem a Lésbia a sua mensagem de rompimento — pa-
lavras azedas, nas quais a considera culpada de o seu amor ter morrido e a acusa de
hipocrisia, de ter muitos amantes e de não amar nenhum (vv. 15-24):
que o poeta retoma e desenvolve no Carme 62. 39-44, em símile à maneira homé-
rica, foi naturalmente colhida na Ilíada 8. 306-308 e em Safo fr. 105c Lobel-Page.
Virgílio utilizá-la-á também na Eneida 9. 435-436.
O retrato de Lésbia não sai nada favorecido dos citados versos do Carme 11;
muito pelo contrário. Afinal aparece caracterizada como uma mulher da vida que
se entrega a autênticas orgias com os seus muitos amantes devassos, uns trezentos
que abraça ao mesmo tempo (cum suis …moechis, / quos simul complexa tenet tre-
centos) e a quem esfrega as ilhargas (ilia rumpens). Não é, em nada, mais benéfica a
visão do Carme 58, no qual o poeta contrasta a felicidade passada (vv. 1-3) com a
degradação actual de Lésbia (vv. 4-5), passando da evocação amorosa à quase obs-
cenidade. As cores negras carregam-se sobretudo nos dois versos finais: acusa-a de
«nas encruzilhadas e nas vielas» (in quadriuiis et angiportis) descascar os Romanos,
com a forma verbal glubit a adquirir talvez conotações sensuais. E com tudo isto
estabelece vivo contraste a irónica grandiloquência da expressão magnanimi Remi
nepotes que conclui o poema:
Perante a promessa da amada (Carme 109), de que há-de ser eterno o amor que
lhe dedica (amorem / hunc nostrum inter nos perpetuumque fore), e apesar da insis-
tência num amor recíproco, sublinhado pela aposição de nostrum e inter nos, o poeta
recebe essa promessa com dúvidas, reservas, senão mesmo com amarga ironia. Por
isso pede aos deuses que façam com que a amada seja capaz de manter a palavra (fa-
cite ut uere promittere possit) e o diga com sinceridade e do fundo do coração. Lésbia,
todavia, em questão de amores não era, evidentemente, mulher de uma só palavra, e
logo esqueceu a promessa e a jura. Nem os deuses poderosos conseguiram o milagre
de que ela a mantivesse. O poema 109 é o último da colectânea pertencente ao ciclo
de Lésbia. Se foi Catulo a realizar a compilação dos Carmes para publicação, teria
optado por esta ordenação, porque desse modo nem deixava a impressão final de
alegria, nem de desespero.
A desilusão com a amada e recíproca confissão de amor é ainda mais evidente
no Carme 76, em que o poeta, em tom reflexivo e melancólico, declara ter perdido
de todo a esperança de que Lésbia mude o seu comportamento: assim, embora con-
sidere ser difícil largar, de repente, um longo amor (v. 13: difficile est longum subito
deponere amorem), é necessário que o faça e mantenha um coração firme (v. 11),
para não continuar um desgraçado (v. 12). E na súplica aos deuses, Catulo já não
pede que a amada corresponda ao seu amor ou que seja pudica; apenas manifesta o
desejo de recuperar a saúde (v. 25: ipse ualere opto et taetrum hunc deponere morbum).
Ressabe a melancolia este poema de renúncia ao amor.
O mesmo acontece no Carme 8, um novo poema típico de renúncia, de re-
nuntiatio amoris, embora com um tom significativamente diverso, pela elegância
de forma, pelos laivos de humor e de auto-ironia, pelo comedimento e controlo
nas ameaças. Catulo, mais uma vez, incita o coração a deixar de pensar na ama-
da, encorajando-o a suportar o desgosto e a sofrer resolutamente (vv. 1-2, 9-12 e
19); por outro lado, censura Lésbia e chama-lhe maldita, prevendo para ela triste
vida no futuro (vv. 14-18). A composição, um monólogo percorrido por profunda
e contida emoção, apresenta a seguinte sequência de conteúdo: enuncia a situação
de conflito e ruptura com Lésbia (vv. 1-2), evoca a felicidade do amor passado (vv.
3-8), anuncia a renúncia amorosa do presente (vv. 9-13), prevê o triste futuro da
amada (vv. 14-18) e termina por um verso (v. 19) de incitamento a si próprio para
ser forte no seu propósito e não ceder. Na opinião de Fraenkel, o poema evidencia
uma completa ausência de amor-próprio e descreve a mais gritante humilhação,
com pormenorizada precisão. E o poeta aceita a situação como inevitável, como se
fora um fruto da natureza. Cito os versos 1-2 e 10-11:
O poema insiste na lealdade (fides) no pacto (foedus) entre amantes, como tam-
bém acontece no Carme 109 – uma transposição para a esfera amorosa de hábitos
correntes nas relações humanas, tanto na administração, como nos negócios ou na
política. Constituído por dois dísticos apenas, a repetição anafórica de nulla no
início de cada um deles e de mea est no final, enfatiza a afirmação de que nenhuma
mulher foi tão amada e nenhuma lealdade foi tão lídima como a sua.
Mas os incentivos que a si próprio dirige, para que seja firme e não ceda, não
surtem efeito. E suplica, revolta-se, humilha-se. Catulo não consegue esquecer Lés-
bia. Assim, no Carme 75 confessa que muito se arruinou, devido à sua fidelidade, e
que muito desceu a sua alma, por culpa da amada. Agora já não é possível querer-
lhe bem nem deixar de a amar:
11
Catullus, The Poems (London, 21973), pp. 114-115.
mente traído e preterido, no coração o ódio começa a rivalizar com o amor. Por
isso revela, desiludido, que agora a conhece e a considera muito mais vil e leviana;
que já não é capaz de lhe querer bem, embora a ame mais (vv. 5-8). Composto por
quatro dísticos elegíacos, o primeiro relembra as juras de Lésbia, o segundo refere
o amor intenso e terno de Catulo, para os dois últimos revelarem que a traição e as
infidelidades de Lésbia conduziram o poeta a «amar mais» (amare magis) e a «bem
querer menos» (bene uelle minus). Cito os dois últimos dísticos:
Bibliografia
Bayet, J., «Catulle, la Grèce et Rome», in L’ Influence Grecque sur la poésie latine,
Entretiens Hardt, vol. II (Genève, 1953), pp. 1-39.
12
Catullus, The Poems (London, 21973), p. 421.
221-246.
Fitzgerald, W., Catullan Provocations. Lyric Poetry and the Drama of Position
(Berkeley, Univ. of California Press, 1995).
Janan, M., “When the Lamp is Shattered”. Desire and Narrative in Catullus
(Southern Illinois University Press, 1994).
Minyard, J. D., Lucretius and the Late Republic (Leiden, 1985), esp. pp. 22-29.
Isilda Leitão
ESHTE
isaleitao@hotmail.com
Introdução
A presente comunicação centra-se, no âmbito da vastíssima e diversificada obra
de Miguel de Unamuno, na atenção que o escritor deu ao recorrente tema de Fe-
dra.
A comunicação organiza-se em dois grandes blocos temáticos.
No primeiro, desenvolvem-se algumas reflexões sobre a importância que o autor
deu ao teatro. Dentro da produção textual unamuniana o teatro é, sem dúvida,
uma das formas de linguagem em que Unamuno deixa transparecer a sua concep-
ção da existência como agon, neste caso em Fedra.
No segundo bloco temático, partindo da antítese Afrodite-Ártemis, procuramos
surpreender o carácter agónico e paradoxal do imaginário unamuniano, imaginário
que sem fugir ao tempo e à contradição, ao racional e ao irracional, à claridade e
às trevas, aos cumes e aos abismos, descobre e constrói o elemento infirmitas que
habita a profundidade do próprio «hombre de carne y hueso».
1
Cf. Cassou apud Egido, 1986: 20.
Sobre a Fedra e a sua modernidade, sobre a lucha contra um público com pre-
conceitos, sobre as dificuldades em estreá-la ou dar-lhe continuidade, dado que
pressentia que não podia «luchar con la gente del teatro»11, sobre a pobreza que en-
contrava no teatro contemporâneo, Unamuno afirmava:
13
Vale a pena recordar o início desse Exordio , em que Unamuno afirma: «Esta mi tragedia Fedra no me ha sido posible
que me la accepten para representarla en un teatro de Madrid. La misma suerte han ocorrido a otros dramas que tengo com-
posto y presentados. Ha habido por ello razones externas al arte y otras internas a él. Las externas son que no formo parte del
cotarro de lo que se llama por antonomasia autores, ni hago nada por entrar en él mediante los procedimientos ya clásicos,
y que tampoco puedo ni debo reducir a perder el tiempo en saloncillos y otros lugares análogos solicitando, siquiera con una
silenciosa asiduidad a tales tertulias teatrales, un turno para que den al público a conocer mis obras dramáticas. Agréguese
que ni sé ni quiero saber escribir papeles, y menos cortados a la medida de tal actor o actriz desconociendo, como desconozco,
las respectivas aptitudes de los hoy en boga, desconocimiento que no me han de perdonar. Y como procuro, en vez de cortar
papeles, crear personajes - o más bien, personas, caracteres - tampoco puedo ni debo estar dispuesto a modificar y estropear a
éstos para acomodarlos, como a un potro, a las condiciones de quien los haya de representar. Son éstos, los actores y actrices,
los que en buena ley de arte deben doblegarse al carácter dramático. Hay un perenne conflito entre el arte dramático y el arte
teatral, entre la literatura y la escénica, y de esse conflito resulta que se impone al público dramas literariamente detestables,
estragando su gusto, y otras veces se ahogan excelentes dramas. [...]Lo que leído produce efecto dramático, cómico o trágico, ha
de producirlo si se sabe representarlo.» (Cf. Unamuno, 1958: 400-401, T. XII).
14
Cf. Unamuno, idem, ibidem.
15
Cf. Unamuno, idem, ibidem.
16
Cf. Unamuno, idem, ibidem.
17
Cf. Unamuno, idem: 402.
18
Cf. Unamuno, idem: 402.
española le falta pasión, [...] le falta tragédia, le falta drama. Le falta inten-
sidad 19
Deste modo, embora no rasto da tradição de Fedra, que passa por Eurípides,
Séneca, Racine ou D`Annunzio20, a Fedra de Unamuno distingue-se das de Raci-
ne ou de d`Annunzio pelo ausência de decoração e de retórica, que estes últimos
apresentam. Sobre a cenografia do trágico, lembramos Thierry Maulnier, quando
afirma: «Un mundo trágico es un mundo del que ha sido expulsado todo lo accidental;
la interpretación trágica de la vida lleva consigo toda una estética de la simplicidad».21
Seria pela «economia», pela «intensidad», pela «desnudez» total, numa grande an-
tinomia formal ao teatro seu contemporâneo, que se delineariam esses complexos
caminhos da contradição:
Com a sua Fedra, o «profesor de lengua y literatura griegas», «sin intención didác-
tica alguna», pretendia fazer, assim, um «ensayo de renovación y modernización de los
viejos temas»23, tentado pelo «amor irresistible de la madrasta por su hijastro»24.
Recordemos então o mito de Fedra, a brilhante (phaidra). Conta o mito que
Fedra, filha do rei e da rainha de Creta, foi dada em casamento ao rei de Atenas,
Teseu, quando este ainda estava casado com uma bárbara, Antiope ou Hipólita,
rainha das Amazonas, de cujo matrimónio tivera um filho, Hipólito.
Hipólito herda da mãe a paixão pela caça e pela natureza, dedicando especial
veneração a Ártemis, a deusa virgem, que se tornará sua protectora, desprezando os
favores de Afrodite, por considerá-la «la divinidad más malvada», enquanto Árte-
mis, irmã de Febo, seria «la más importante entre las divinidades. Por el verde bosque,
acompañando sin cesar la doncella con sus rápidos perros elimina las fieras de la tierra.»
(10-20), como descreve Eurípides.25
Descendente de Apolo, Fedra (tal como as mulheres da sua família, entre elas,
a sua irmã Ariadna) é perseguida pelo ódio de Afrodite, desde o momento em que
Apolo denunciou, junto dos Deuses do Olimpo, os amores entre a deusa e Marte.
Mulher de idade madura, de alto nível social, com dois filhos, «Fedra resultó
19
Cf. Unamuno, idem: 404.
20
20 O tema chama igualmente a atenção, entre outros, de Pausânias, Plutarco ou Diodoro Sículo.
21
21 Cf. Maulnier, apud Argullol, idem: 246.
22
22 Cf. Unamuno, idem: 402- 404.
23
23 Cf. Unamuno, 1991a: 305, T. I.
24
24 Cf. Unamuno, idem, ibidem.
25
25 Cf. Eurípides 2000 : 264.
presa en su corazón de terrible amor» (20-30)26, pelo seu jovem enteado, graças aos
desígnios de Afrodite, pois a deusa queria vingar-se de Hipólito «por los yerros»
(20-30)27 que havia cometido contra ela. Afrodite protegia os que veneravam o seu
«poder» e abatia todos os que o desafiavam. Fedra torna-se, deste modo, vítima da
vingança de Afrodite e do conflito entre as duas deusas.
Ártemis e Afrodite terão, na versão de Eurípides (Hipólito Coroado, 428 A.C.),
na do latino Séneca (Phaedra, entre 49 a 62 D.C.), ou na de Racine (Phédre, 1677),
um maior ou menor protagonismo, dependendo do enfoque ser posto mais no
conflito entre as divindades iradas ou no drama de amor à escala humana. Estas
versões deixam igualmente transparecer uma filosofia mais sofista (Eurípides), es-
tóica (Séneca), ou jansenista (Racine) do homem e da divindade, que pretendiam
servir de ponto de reflexão para a época. Eurípides será considerado um precursor
do Helenismo, dadas as profundas contradições e antinomias que presidem à sua
obra poética.
Quando, em 1912, Unamuno descreve a Fedra ao escritor Pérez Galdós, seu
«querido amigo y maestro»28, fá-lo da seguinte forma:
26
26 Cf. Eurípides, idem: 264.
27
27 Cf. Eurípides, idem: 264.
28
28 Cf. Unamuno, idem, ibidem.
29
29 Cf. Unamuno, carta (1911) a Fernando Díaz de Mendonza, apud Garcia Blanco, idem: 87.
30
30 Cf. Unamuno, carta (1913) a Ernesto E. Guzmán, apud Garcia Blanco, idem: 91-92.
sendo que o marido de Fedra, Teseu, na obra de Unamuno aparece com o nome de
Pedro. Fedra é uma mulher da burguesia, orfã, «neurocardíaca» como a mãe, edu-
cada num convento pelas «madres» (1, I), que se casa «vencida» pela «generosidad»
de Pedro (1, I). Não tem filhos e o enteado é, em palavras suas, «casi de mi edad
misma... podría ser mi hermano, mi marido.» (2, IV). Hipólito é um caçador, amante
da vida do campo. Quando nasceu, «costó la vida a su madre» (2, VI) e, embora
duvide que possa vir a enamorar-se, a única hipótese que apresenta para casamento
é «Diana» (1, IV).
Não aprofundaremos todas as semelhanças ou diferenças que se podem encon-
trar nas versões de Eurípides e de Racine, em relação à obra de Unamuno. Contudo,
gostaríamos de referir um dos aspectos centrais, nomeadamente no que diz respeito
ao tema amor/mors ou, nas palavras de Racine: “Et Phèdre au labyrinthe avec vous
descendue / Se serait avec vous retrouvée ou perdue.”(II, V).
Tal como no Hipólito Velado, a primeira versão perdida de Eurípides, (seguida
posteriormente pelo latino Séneca), ou tal como na Phédre de Racine (2, V)31, Una-
muno põe Fedra a declarar o seu amor a Hipólito (1, IV), ao contrário da segunda
versão do trágico grego, Hipólito Coroado, em que a ama denuncia o amor de Fedra
a Hipólito (570-670), talvez para não escandalizar o público da época de Péricles.
No que respeita à representação teatral da morte da personagem feminina, im-
porta dizer que as três se suicidam. Mas enquanto no Hipólito Coroado Fedra se
enforca, fora de cena (800-810), a Fedra de Racine toma uma poção venenosa (de
acordo com as bienséances, não era digna a morte por enforcamento...) e morre
rodeada por Teseu e por outras personagens (5, VII). A Fedra de Unamuno, suici-
dando-se com excesso de comprimidos, agoniza e morre fora de cena (todo o Acto
III, excepto a Cena I), pois Dom Miguel não gostava de «pantomina». Para o nosso
autor: «Las muertes en escena, y todo lo patológico - ataques de nervios, de locura - me
resulta insuportable.»32
Unamuno escreverá uma Fedra centrando-se na problemática amorosa, a do
«hombre de carne y hueso», levantando desta forma a questão da própria condição
feminina. Se a condição da mulher, no mundo antigo, parece não incutir, de uma
maneira geral, o respeito que o cristianismo e o culto mariano lhe imporiam33, uma
das perguntas que Unamuno parece colocar é como reagiria o tempo católico e
burguês do início do século XX a este drama. Pergunta que continua, quanto a nós,
pertinente no século XXI.34
31
31 Uma dupla transgressão de Racine/Fedra, se olharmos para as biénseances do século XVII, no que respeita à inicia-
tiva da declaração de amor ser feita por uma mulher e desse amor ser ilícito... Em 1677, a obra é impressa com o título
Phèdre et Hippolite, mas nas obras completas de 1687 aparece já com o título que hoje conhecemos.
32
32 Como afirma Unamuno, em carta (1912) a Ernesto A. Guzmán (Cf. Unamuno, apud Garcia Blanco, idem: 92)
33 O que não invalidaria, por exemplo, que Eurípides, excluindo a Fedra ou a Medeia, tenha sido um dos primeiros
33
que pintou com traços indeléveis a sua admiração pelas virtudes e dignidades da mulher , como recorda António
Freire, exemplificando com os perfis femininos de Ifigénia e Macária, Andrómaca e Alceste, Hécuba e Políxena (Cf.
Freire, 1985: 199).
34
34 Embora com distintas abordagens à problemática dos conflitos matrimoniais, como são o caso de La Esfinge
que está fortemente marcado neste drama unamuniano. Imaginário onde racional e
irracional, claridade e trevas, destino e vontade, cidade e campo, inocência e menti-
ra, cumes e abismos, convenção social e verdade interior, palavra e segredo, na uni-
dade e complementaridade desses pares de opostos, são a condição da construção
de um tempo simultaneamente mítico e histórico.
A antítese cidade e campo é um desses pares de opostos, uma dessas antinomias,
mas cada um desses pólos é também intrinsecamente paradoxal. A «Naturaleza»,
«no sufre fiebres ni necesita luchar para querer. Por eso es el verdadero templo de Diós»
(1, III); o campo é um locus aemenus, «allí se ve todo claro!» (1, III), é certo, mas,
paradoxalmente, é também o local onde se matam as feras, onde se «libra de vicios»
(1, III) e onde «se te curan las demasías» (1, III)
Também o segredo se opõe à urgência apolínea de tudo trazer à luz, também o
Segredo entra em conflito com a Palavra, a intimidade da alma com as exigências
e padrões sociais. O segredo individual mantém-nos separados da sociedade. Ao
revelarmos o nosso mistério, acabamos por revelar a nossa individualidade. Fedra,
ao confessar o segredo da sua alma, ao trazer para a luz, numa urgência apolínea,
os abismos da alma, ao romper com a máscara social, pela dificuldade de lidar com
a interioridade do recinto sagrado das «simas», acaba por se tornar vítima dessa ten-
são, dessa conflitualidade.
É certo que a alma gostaria de desnudar-se perante outrem na sua linguagem
simples, ingénua e espontânea, mas os muros e os véus, as preocupações considera-
das socialmente superiores, os imperativos de conformidade social, impedem, tan-
tas e tantas vezes, a experiência directa da profundidade da própria alma.
É este abraço, este inconciliável abraço, mas abraço por certo, esta tensão nunca
resolvida, jogo dramático do qual nenhuma das polaridades é excluída, que permite
construir e resgatar o sentido da vida e das coisas. Abraço onde convergem a acção
e a contemplação, a dúvida e a certeza, a eternidade e a caducidade, a quietude das
águas infinitas a que se aspira e o fluxo das águas heraclitianas de que não se pres-
cinde.
Ilustremos com alguns exemplos, algumas das polaridades e tensões anterior-
mente referidas:
(Hipólito) «La vida del campo, bajo el cielo libre, el aire libre, sobre la santa
y libre tiera, mejora el hombre. Alli no hay odios ni envidias; los robles, los
arroyos, las rocas, no envidian, no odian...» (1, 3)
(Nodriza) - «El sacrificio habría sido decir la verdad, toda la verdad.» (3, I)
(Pedro) - «...esto ha de guardarse aqui, enterrado entre los tres» (2, V)
(Hipólito) - «No vemos la sima hasta que estamos a su borde. Como pude
vivir junto de ella tan ciego?» (3, V)
38
38 Cf. Jung apud Moore, 1992: 314.
despenhou «No vemos la sima hasta que estamos a su borde» (3, III) - Unamuno en-
contra sempre alguma luz no seio das sombras, alguma dúvida na certeza, alguma
alma na elevação dos cumes.
Hipólito, na sua aérea e apolínea elevação, adorava Ártemis e desprezava Afrodi-
te, desdenhando «el lecho [...]no prueba el matrimónio» (10-20)39. O seu aio tinha-o
advertido que as divindades, como os seres humanos, não suportam um tratamento
desdenhoso e que procuram vingar-se se não lhe damos a atenção que merecem40.
A esta unilateralidade e desdém, os antigos gregos chamavam insulto à divindade,
atitude que acarretava a ira divina em relação aos mortais, que acarretava um feitiço
trágico. Um grego da antiguidade, cuja vida não corria bem, costumava questionar-
se sobre que divindade tinha ofendido. Questionava-se sobre a divindade que estava
esquecendo, sobre o altar em que não estava sacrificando.
O Hipólito unamuniano «es bueno, honrado y trabajador, pero fuera de su tra-
bajo parece no vivir sino para la caza» (1, II), não está «resuelto [a]casarse [...]como no
fuese con Diana [...]lo que dudo, llegase a enamorarme...» (1, III).
Seria esta hybris desmedida, esta recusa em aceitar a autoridade dos deuses, no
caso a divindade de Afrodite, que levaria ao desastre, à tragédia, ao sofrimento.
Hipólito com a sua «torpeza», a sua «ceguera», a sua «brutalidad» (3, VII), a sua
unilateralidade, com o seu insulto à divindade, a Afrodite, tece a sua própria tra-
gédia: «cazador no adverti como se caía y no la sustuve a tiempo, antes que la cosa no
tuviese remedio» (3, VII).
No entanto, a alma unamuniana descobre-se e constrói-se, acima de tudo, na
sua própria inteireza, na paradoxal totalidade, como mysterium coniunctionis, uma
forma de teleiósis completamente distinta. Descobre-se e constrói-se na plena acei-
tação e reconhecimento do elemento tensão, do elemento infirmitas, que habita
a própria alma. É neste sentido que talvez não seja inadequado dizer que a Fedra
habita em todos nós.
Como reconhece o próprio Hegel, a tendência para a desordem e para o sofri-
mento, para a patológico e para a anomalia, para a loucura mesmo, é uma forma
ou etapa necessária ao desenvolvimento da alma41, uma afirmação ontológica da
própria alma. O «cálice amargoso da desgraça»42, como reconhece o nosso Ante-
ro, a paixão e a dúvida, o tédio e o mal, são inerentes à natureza da alma, mas o
espírito, ao encerrar-se no seu mundo ideal, que tudo «consola» e que «para tudo é
compensação»43, ao elevar-se a um aperfeiçoamento espiritual, ao espírito superior,
de alguma forma atraiçoa a alma, a alma como totalidade, como paradoxo, com as
39
39 Cf. Eurípides, idem: 264.
40
40 «[...] ... a los dioses hay que llamarles amos [...] odian la actitud soberbia [...] como entonces no saludas tú a una diosa
respectable?» (90-100) (Cf. Eurípides, idem: 266).
41
Recordamos G. W. F. Hegel, e a sua Filosofia del Espirítu, «Zusatz»: «En la loucura, el alma lucha por restaurar la
perfecta armonía interior a partir de la contradicción existente» (Cf. Hegel, citado por Hillman, 1999:160).
42
Cf. A Santos Valente , Sonetos Completos.
43
Vide carta de 1886, a Vicente Machado de Faria e Maia (Cf. Quental, 1989: 811, T. VII).
BIBLIOGRAFIA
Fernando Lemos
U. Lisboa
1
Em razão da sua estratégia adulatória dirigida ao Príncipe, Marcial coloca a leitura dos seus versos não no ambiente
das termas ou das palestras, mas em tempo de convívio após uma cena imperial. Dados os hábitos de temperança de
Domiciano, espera que a bonomia alcançada pela satisfação do estômago e do espírito com bebida e alimentos divinos
constitua conjuntura propícia para o imperador deferir favoravelmente o empenho de Eufemo, constituindo-se em alto
mecenas do poeta. As notas que acompanham a recente tradução portuguesa dos epigramas são da máxima utilidade.
Neste caso, cf. Marcial, Epigramas, Lisboa, Edições 70, 2000, Vol.II. p.22. Será supérfluo confessar que consultei
passim os quatro volumes da obra da Colecção Clássicos Gregos e Latinos, resultantes da colaboração de professores das
Faculdades de Letras de Coimbra e de Lisboa.
2
Cf. II, 7, III, 38 e VIII, 17.
3
Cf. VI, 19.
4
Cf. IV, 16.
profissão, limitar-me-ei, com poucas excepções, aos poemas em que ele a designa,
recorrendo a três lexemas: causidicus, patronus e aduocatus 5.
O termo mais vezes utilizado por Marcial é causidicus, um lexema relativamen-
te recente, segundo os etimologistas, pela primeira vez registado em Cícero, com
conotação claramente negativa. O arpinate explica o vocábulo, aproximando-o de
clamatorem aut rabulam – para Morais, no seu Dicionário, rábula é um “causídico
chicaneiro”− e contrapõe tal conteúdo a um “forense plurivalente, eficaz, subtil,
elegante”6, um quase divino antístite da arte oratória, ornado de profunda cultura
humanística e técnica, terror de criminosos e inimigos do Estado, defensor de víti-
mas inocentes, paladino emérito do bem comum, da honra e da paz em causas civis
ou públicas7.
Regressando ao epigrama de Marcial, facilmente detectamos marcas da carga
negativa que o poeta quer associar neste passo à actividade do causídico. O signifi-
cado imediato do adjectivo raucos é realidade incómoda quer para quem fala quer
para quem ouve, posta em evidência, a nível fónico, pelas assonâncias presentes no
verso8; os verbos utilizados complementam tal sensação, dilatada em três repeti-
das formas de presente durativo: extendit aplica-se a trabalhos e fadigas, tal como
exercet, que aqui não se vislumbra enquanto hipotética e realizadora subida ao alto
da fortaleza, para façanha heróica ou contemplativo descanso do espírito; conterit,
aplicado directamente à visita matutina dos clientes ao patronus, prática para Mar-
cial de tal modo violenta e destruidora que a virá a anunciar como motivo para o
abandono de Roma e regresso à terra-natal9, afecta igualmente, por extensão, con-
tinuidade textual e analogia, tudo quanto constitui, durante a manhã, o fervilhar
buliçoso do foro.
Ainda encontramos uma mensagem de condenação do causídico e que pode-
mos considerar típica do pensamento de Marcial, no dístico que constitui o epi-
grama V, 33. Não retira força – antes pelo contrário! – à maldição apotropaica de
destruição e ruína uae tibi causidice, com que termina o poema, o facto de estarmos
provavelmente perante uma ficção criada pelo poeta, denotada quer no anonimato
5
O quadro esboçado por Marcial não pode fugir à natureza satírica do género literário que cultivou e dá uma ideia par-
cial da realidade. Para lá das sombras que afectam a prática forense em Roma cuja descrição os epigramas privilegiam,
não podemos esquecer a importância que o Direito, enquanto legado romano, teve ao longo dos séculos e ainda hoje
conserva nas civilizações e culturas ocidentais. Continua a ser da maior utilidade ler o capítulo “Les Avocats” de uma
obra já com meio século: Ugo Enriço Paoli, Vita Romana. La Vie quotidienne dans la Rome antique. Édition française
revue et augmenté par Jacques Rebertat. Paris, Desclées de Brouwer, 1955, pp. 304-319. Nela encontramos uma síntese
clara duma realidade dinâmica e complexa, onde a mudança, por vezes, esconde certos traços ancestrais, como o carác-
ter obsequioso da assistência e do conselho jurídicos ou a distinção entre o estudioso teórico da causa ( Juris consultus) e
aquele que acompanhava o cliente e lhe aconselhava a melhor estratégia ou, a seu pedido, o podia substituir na apresen-
tação dos seus pontos de vista perante o tribunal (orator).
6
Cf. Orator, 30.
7
Cf. De Oratore, I, 201 s. Transcrevo a parte central do texto, que, para melhor compreensão, deve ser consultado na
íntegra: Non enim causidicum nescio quem neque clamatorem aut rabulam hoc sermone nostro conquirimus, sed eum virum,
qui primum sit eius artis antistes, (…).
8
Notem-se a repetição do ditongo au, da surda velar k e do estridente som i.
9
Cf. XII, 68.
Rodríguez López no estudo “El Abogado en Roma”, inserido na obra colectiva, sob responsabilidade dos editores
achou preferível acabar com esta situação e permitiu que recebessem honorários até
10.000 sestércios. Esta mudança pode explicar procedimentos diversificados por
parte dos advogados e as críticas de Marcial em alguns dos seus epigramas, centra-
dos nesta temática.
O causídico a que faz alusão em IX, 68 é merecedor de crítica por mostrar o di-
nheiro de forma ostentatória e desajustada à sua situação. Os seis dísticos elegíacos
destinam-se a satirizar os mestres-escola que, com gritaria e açoites matinais, infes-
tam os ares de barulho tão intenso que faz esquecer ferreiros ou a multidão ululante
no anfiteatro, e atormentam alunos e vizinhos da aula. O homem do Direito apa-
rece na cena, manifestando inequívoco poder económico e manias de novo-rico a
quem tivessem outorgado a dignitas de eques, ao encomendar uma estátua equestre
para o átrio da sua casa – se calhar, não sabe montar nem nunca o fez na vida –, não
se importando do incómodo que provocam o martelar do ferro, o atrito na bigorna,
o crepitar do fogo na forja ou, semelhantes a estas, outras praxes de Vulcano.
Nem sempre são socialmente justificáveis os rendimentos obtidos pelos advoga-
dos, mesmo quando dentro da lei21, mas a administração da justiça constitui uma
actividade dispendiosa e assim continua, ainda hoje, que deriva logicamente da
natureza e importância dos interesses que estão em jogo, ninguém se dispondo a
arriscar perder a vida ou a riqueza sem combater com os melhores meios que possa
adquirir. Pode haver, no entanto, alguns habilidosos que tentam fugir ao pagamen-
to devido, como nos conta Marcial em dois pequenos poemas, os dísticos I, 98 e
II, 13, em que é patronus a palavra escolhida para indicar a actividade de defensor
judicial.
No primeiro caso, a censura ao litigante Diodoro22, perfeitamente assumida
pelo sujeito poético que interpela o interlocutor Flaco e faz diagnóstico médico,
Jesús Mª García González e Andrés Pociña Pérez, En Grécia y Roma: Las Gentes y sus cosas, Granada, 2003, pp. 319-337,
cronologicamente delimitado “desde segunda mitade del s. II a.C. hasta las primeras décadas del s. I d.C.” (p. 324).
Informa-nos que sempre “algunos abogados ganaban grandes sumas de dinero e que desde tiempos de Augusto (…)
los honorarios serán exigibles judicialmente fuera del ordem procesal habitual (extra ordinem)”. O comportamento
indigno de muitos advogados acabou por ter eco em “la literatura romana [que] satirizó en múltiples obras su rapiñaría
y corrupción” (p. 326).
21
Quintiliano condena o piraticus mos de os advogados combinarem a remuneração que lhes será devida, antes de
prestarem o serviço aos seus clientes (Institutio Oratoria, XII, 7, 11-12). Esta prática é explicitamente reconhecida na
história que Marcial nos conta no epigrama VIII, 17, recorrendo a um diálogo gracioso mas chocante. Acabamos por
tomar consciência do desplante argumentativo de um advogado incompetente mas pudibundo, que exige pagamento
integral dos honorários, reduzidos a metade pelo cliente, depois de aquele reconhecer que não o defendeu devidamente,
desculpando-se com o facto de ter vergonha dos crimes por este cometidos. O risco de tais acordos monetários está
documentado em mais duas histórias vivas, jocosas e irónicas. Em VI, 35, o cliente invectiva o seu advogado Ceciliano
por ter criado uma situação ridícula e embaraçosa; obteve mais tempo para intervir e agora, sem nada de novo para
dizer, gasta-o, espreguiçando-se e bebendo água; é aconselhado a consumir a água da clépsidra. Em VI, 19, a queixa
é da mesma natureza, apesar de o defeito do advogado Póstumo ser precisamente o oposto: com verborreia e vaidade
desajustadas às circunstâncias, evoca cenas guerreiras e tópicos épicos aprendidos na escola, quando o litígio em causa
diz respeito simplesmente ao roubo de três cabrinhas.
22
Será por ironia que ele tem um nome que significa dom dos deuses. Este e os outros aspectos de seguida analisados
fundamentam que se fale numa construção artificiosa do epigrama, aspecto evidenciado por Citroni no seu comentário
(o.c., p. 299).
obtém-se à custa do paralelismo antagónico entre os dois versos, marcado pela ad-
versativa sed e por dois grecismos; a doença física dos pés expressa pela segunda pa-
lavra do texto, podagra, joga com a penúltima cheragra, doença moral que disforma
as mãos mesquinhas do caloteiro unhas-de-fome e o tolhem de pagar àquele que o
representou e defendeu no litígio.
O segundo dístico não é menos expressivo a patentear as custas da justiça 23,
que talvez pudéssemos ilustrar com o provérbio Mais vale um mau acordo do que
um bom litígio. O segundo verso, ainda que sintacticamente independente, é a con-
sequência lógica da realidade averiguada no primeiro – os magistrados judiciais
exigem dinheiro e mais dinheiro – e expressivamente exibida no quiasmo, no po-
lissíndeto do et, que contra o habitual é a primeira palavra, na anáfora do petit. A
conclusão é extraída por um sujeito pensante que se exprime em primeira pessoa e
a aplica, apesar de ter valor universal, em primeira-mão ao interlocutor a quem se
dirige, aconselhando-o, com um conjuntivo optativo, a evitar o tribunal.
Muitos dos que, olhando para o exemplo de advogados bem sucedidos, tenta-
vam a sua sorte, esperando apenas as prendas que os clientes quisessem oferecer,
não passaram da cepa torta. Neste contexto é muito interessante o epigrama IV, 46,
formado por 19 versos hendecassilábicos, em que a primeira palavra claramente nos
revela a sua temática principal: as Saturnais e o hábito de por essa ocasião se ofere-
cerem presentes, que, quando insignificantes, dão azo à veia satírica do poeta.
O protagonista da narrativa, toda ela em terceira pessoa, com o tempo verbal
do perfeito substituído quatro vezes24 pelo presente expressivo e visual, é o causídico
Sabelo, personagem fictícia, cujo nome ouvido por quatro vezes25, por remeter para
a origem sabina, tem com certeza o valor simbólico de saloio, sóbrio e frugal. Com
tal associação paradoxal entre uma profissão urbana e um provinciano, está criada
a ambiguidade, explorada ao longo de todo o texto. As primeiras linhas exibem
às escâncaras e com pompa e circunstância um advogado cioso do seu sucesso,
realizado e dotado de riqueza obtida de forma magicamente invulgar, à custa dos
presentes recebidos por ocasião das festas libertárias das Saturnais; este alerta inicial
confirma-se quando, no verso 6, a enumeração dos presentes recebidos nos leva
a desconfiar de estarmos a ser vítimas do feitio e intenções jocosas do autor, que
armadilhou o texto e o semeou com falsas pistas; mas só com muita atenção à subs-
tância (farinha, favas, salsichas, figos, cebolas, caracóis, queijo, azeitonas, guarda-
napos, meio alqueire ou seja 4,32 litros, libra e meia ou seja 486 gramas) evitaremos
deixar-nos enganar pela acumulação de presentes descritos durante 12 versos, pela
presença de produtos exóticos como a pimenta e o incenso, pela sugestão de múlti-
plas e diversas regiões, desde a Lucânia, Falérios e o Piceno à Síria, Líbia e Sagunto,
pelo recurso a lexemas normalmente aplicados a vasos ou objectos requintados ou
23
Título de Sic incipitur, p. 191.
24
Razões de ordem métrica (versos falécios) permitem concluir que uenit (v. 12) está no perfeito.
25
Sempre no final dos versos 1, 2, 5 e último. O estudo pormenorizado da colocação das palavras é um dos aspectos
estudado por Maria Cristina Pimentel. Cf. o. c., pp. 410 ss.
do verso 3: não tem espírito combativo nem aptidão para aguentar as acrimónias e
os dissabores das lides forenses. Mas, lembrado da condição vivida durante largos
anos, interpela os clientes de Roma e deseja que eles aproveitem com ambição a
oportunidade que a capital lhes oferece para frequentar os palácios dos poderosos.
A dificuldade de conciliar a sua vocação poética com as obrigações de cliente
pobre não protegido por um grande mecenas constitui o motivo principal de outros
poemas, em que a referência ao causídico só tem carácter negativo se a aproximar-
mos ao patronus.
Isto acontece claramente no epigrama X, 70, que gira em volta da actividade
diária do poeta, ocupado desde a hora primeira até à décima 28 com as obrigações
da sua condição de cliente, que de manhã visita o patrono e o acompanha nas suas
deambulações e à tarde vai buscar a espórtula. Apesar de toda esta actividade não
limitada ao período matinal, o destinado pelos Romanos ao negotium, ainda tem
de ouvir a censura do seu patrono, o poderoso Potito29, que lhe assaca a responsabi-
lidade de ser pouco produtivo no aproveitamento dos momentos de ócio para editar
em livro as composições poéticas.
A referência ao causídico surge em paralelo não só com o retor e o gramáti-
co, que vêm imediatamente depois, mas também com o cônsul e o pretor. Todos,
impantes de poder, importunam o autor, por vezes, reclamam os seus serviços ou
conselhos, lhe roubam tempo, o obrigam a participar em sessões de leitura pública,
o impedem de usufruir a vida e ocupar-se naquilo que mais lhe agrade, precisamen-
te escrever poesia. Repetem-se praticamente as mesmas ideias nas críticas amargas
que dirige a um outro patrono, de nome Labulo30, mesquinho na exigência de não
ver o seu séquito gregário de clientecos togados31 diminuído em uma unidade que
seja, ideias expressas em 15 versos falécios que constituem o poema XI, 24. Ao seu
protector, nada generoso e indigno do nome de mecenas32, assaca a responsabilida-
de de durante um mês não ter conseguido escrever nem uma página. No epigrama,
também o causídico surge entre um elenco de notáveis, representantes de Roma,
que lêem o poeta e o admiram, o louvam, dele usufruem, por um novo livrinho de
versos ansiosamente esperam: o viandante, o titular da ordem equestre, o senador,
o poeta33.
28
É inevitável pensarmos no epigrama IV, 8. As diferenças, no entanto, são muitas. Aqui, apenas se referem as horas
primeira, quinta e décima e o vocabulário acentua o carácter penoso das actividades que é obrigado a empreender, as
únicas descritas. O essencial da mensagem é, porém, o mesmo. Ele gostava de se dedicar ao otium de escrever poesia e
de não ter necessidade de perguntar, como o faz no final: Fiet quando, Potite, liber?
29
Mais uma vez o nome parece ter sido escolhido intencionalmente e com valor simbólico. O diminutivo sugere que o
poder não será tão grande como parece ou pelo menos é desprestigiante.
30
Diminutivo que significará pouco trabalhador.
31
Uso a expressão de Delfim Ferreira Leão, que assim traduziu um expressivo togatulorum (Epigramas, Vol. IV, 80).
A nota adstrita a este passo remete para outros poemas, onde encontramos um sintagma não menos vivo, grex togatus,
u.g. em II, 57.
32
Os defeitos deste patrono são invectivados em outros poemas, u.g. XII, 36 (Cf. Maria Cristina Pimentel, o. c., p.
285).
33
Neste caso, não é legítimo atribuir ao termo causidicus conotação negativa.
34
Cf. Maria Cristina Pimentel, o. c., p. 51.
Ao valor material das sardónicas junta-se a minúcia de serem entregues pessoalmente pela donzela, pormenor intro-
35
nomeiam a actividade de advogado e que espero nem tenha sido fastidioso nem
tirado a vontade de ler Marcial, estaremos mais habilitados a responder à pergunta
formulada no início?
É certo que Marcial não nos apresenta o mundo dos tribunais e a função da-
queles que nele representam os cidadãos, sob uma única luz, e a distinção não é
demarcada pelo uso de algum dos termos: causidicus não tem sempre, como em
Cícero e porventura em outros autores38, conotação negativa. Sem dúvida é esta que
predomina e o poeta compraz-se em acentuar que nunca optará por uma actividade
de explorador do próximo, por muito lucrativa que se apresente.
Há outros ofícios muito mais rendosos, incompatíveis com o seu estatuto social,
mas entre os que implicam preparação intelectual e ele, teoricamente, admite a hi-
pótese de desempenhar, o de advogado proporcionará ocasião de melhores regalias
do que o de retor ou gramático, precisamente o que acontece com amigos seus, aos
quais não assaca os defeitos tópicos da profissão, antes os adula devotamente. Deste
modo, justifica-se que apresente o causídico como seu inimigo principal, enquan-
to paradigma do negotium, ao qual se opõe o seu ideal de ócio literário. A opção
dilacerá-lo-á, repetirá que não é suficientemente recompensado pela sua actividade
literária e acabará por convencer-se de que os contemporâneos, apesar de todos os
esforços e empenhos, nunca virão a reconhecer-lhe mérito e, muito menos, o génio.
Teve de esperar, como na grande maioria dos artistas, pela fama post mortem, como
ele mesmo, de certo modo contrariado, acabou por aceitar: cineri gloria sera uenit
– é já tarde que às cinzas a glória chega 39; nesta hipótese, no entanto, dispôs-se a
aguardar por tal momento durante muito tempo: si post fata uenit gloria, non prope-
ro – se a glória só vem depois da morte, não tenho muita pressa 40. A fama não foi
fogo-fátuo, consolidou-se e continuamos hoje a lembrar o poeta: celebrámos este
ano os 1900 anos da sua morte, porfiamos em encantar-nos com a sua aparente
simplicidade, repleta de jogos e enigmas.
38
Nas Cartas de Plínio não encontramos este termo.
39
Cf. Marcial, I, 25, 8.
40
Cf. Marcialsd, V, 10, 12 e Epigramas, vol. II, p. 65.
*
Este trabalho tem por base o estudo introdutório que acompanha a nossa tradução portuguesa. Cf. Egéria - Viagem do
Ocidente à Terra Santa, no séc. IV (Itinerarium ad loca sancta) estudo e tradução: Alexandra B. Mariano, texto latino:
Aires A. Nascimento. Lisboa, Colibri,1998.
1
Jean Richard, Les récits de voyages et de pèlerinages, (Typologie des sources du moyen âge occidental, n.º 38), Brepols,
Turnhout, 1996, pp. 15-52. Não existe referência ao Itinerarium Egeriae porque a Typologie definiu como balizas crono-
lógicas o período de 500 a 1500.
o que, só por si, permite adivinhar o carácter determinado da sua autora, pois uma
viagem de tal envergadura exigiria, certamente, a mobilização de meios considerá-
veis, mesmo segundo os padrões da nossa época.
Tal facto pode ser deduzido, segundo informação do próprio texto, pela familia-
ridade com que Egéria refere a diaconisa Martana que teria encontrado na sua
visita a Selêucia e que teria a seu cargo um mosteiro na cidade.7 Mas é sobretudo a
referência explícita a um grupo de mulheres «veneráveis senhoras e irmãs»8, como
frequentemente lhes chama, a quem dirige o seu testemunho escrito que permite
que aceitemos como certa a sua condição de religiosa. Repare-se, por exemplo, no
parágrafo 23, 10: «Deste lugar, senhoras, minha luz, enquanto escrevia isto a Vossa
Caridade, era meu propósito, em nome de Cristo nosso Deus, ir logo à Ásia, isto é,
a Éfeso, para rezar por causa do santuário do santo e bem-aventurado apóstolo João.
Ora, se depois disto estiver ainda no meu corpo, e se puder conhecer outros lugares
contá-lo-ei em presença a Vossa Caridade, se Deus se dignar conceder-mo; ou pelo
menos, se um outro projecto me vier ao espírito, informar-vos-ei por escrito (...).»9.
Provavelmente estas senhoras são companheiras de mosteiro, pois esta proximidade
é reafirmada pela preocupação constante em relatar um conjunto de experiências
de base religiosa. A expressão iuxta Scripturas, que surge logo na abertura do texto -
«[os lugares] eram-nos mostrados seguindo as Escrituras10;» -, demonstra a vontade
de identificar (manifeste cognoui, 2, 7), por intermédio da visão, e recordar as raízes
históricas bíblicas11.
É a sua piedosa religiosidade (gratia religionis, 19, 5) e uma aguçada curiosidade
que não se envergonha de expor que a motivam a avançar. Atente-se no começo do
parágrafo 16, 3: «Então eu, como sou muito curiosa, comecei a perguntar que vale
era este onde um santo monge tinha feito para si agora um mosteiro, pois de facto
pensava que isto não tinha sido sem razão12.» A sua peregrinação tem, pois, um ob-
jectivo claro: obedecendo a uma inspiração divina (iubente Deo) procura reconhecer
com precisão os lugares que a tradição aceita como sagrados e que circunscreve a
7
23, 3: Nam inueni ibi aliquam amicissimam michi, et cui omnes in oriente testimonium ferebant uitae ipsius, sancta diaco-
nissa nomine Marthana, quam ego aput Ierusolimam noueram, ubi illa gratia orationis ascenderat; haec autem monasteria
aputactitum seu uirginum regebat. Quae me cum uidisset, quod gaudium illius uel meum esse potuerit, nunquid uel scribere
possum? - «De facto, encontrei ali uma das minhas melhores amigas, a quem todos no Oriente rendiam homenagem
pela sua vida, uma santa diaconisa de nome Martana, que eu tinha conhecido em Jerusalém onde ela tinha subido para
rezar; ora, ela dirigia um mosteiro de apotactitas e de virgens. Quando me viu, que alegria para ela e para mim! Como
poderei descrevê-la?»
8
3, 8: dominae uenerabiles sorores. Cf. também os parágrafos 19, 19; 20, 5; 23, 10; 46, 1 e 46, 4.
9
De quo loco, domnae, lumen meum, cum haec ad uestram affectionem darem, iam propositi erat in nomine Christi Dei
nostri ad Asiam accedendi, id est Efesum, propter martyrium sancti et beati apostoli Iohannis gratia orationis. Si autem et post
hoc in corpo fuero, si qua preterea loca cognoscere potuero, aut ipsa presens, si Deus fuerit prestare dignatus, uestrae affectioni
referam aut certe, si aliud animo sederit, scriptis nuntiabo. (...).
10
1, 1: ...ostendebantur iuxta Scripturas. Cf. 7, 2: singula loca, quae semper ego iuxta Scripturas requirebam; «(...) todos
os lugares, que eu procurava sempre seguindo as Escrituras;» e 5, 12: omnia loca quae ego semper iuxta Scripturas requi-
rebam, «(...) todos os lugares, que eu procurava ver sempre seguindo as Sagradas Escrituras;». Repare-se como Egéria
recorre ao pronome ego para marcar de forma incisiva o forte desejo que preside à procura.
11
A expressão é de Remo Gelsomino. Cf. Remo Gelsomino, «Egeria, 381-384 d. C: dalle radici romane alle radici
bibliche», Atti del convegno internazionale ..., pp. 245; 281.
Tunc ego, ut sum satis curiosa, requirere cepi, quae esset haec uallis ubi sanctus monachus nunc monasterium sibi fecisset;
12
uma área geográfica bem definida. Desloca-se de Bíblia na mão,13 de lugar em lu-
gar, e sempre que faz uma paragem solicita que lhe seja lido o passo das Escrituras
a que o local faz memória.
416).
19
V. Väänänen, «I due livelli del linguaggio orale nell`”Itinerarium Egeriae”», Atti del convegno internazionale..., p.
162.
20
J. G. Freire, «Três notas sobre a origem de Egéria: accedere, collum, pullus.», Separata do colóquio sobre o ensino do
latim, Lisboa, 1987, pp. 273-282.
tuguês «tamanho»; Freire apontou três momentos do Itinerário onde estão docu-
mentados usos do português: o passo do parágrafo 12, 3 onde o verbo accedere
surge em correspondência ao português «aceder»; a expressão in collo (em 31, 3)
com o valor de «ter ao colo», ou ainda, o vocábulo pullus (recorde-se a expressão
ante pullorum cantus, 24, 1) cuja permanência seria visível em alguns derivados por-
tugueses, como por exemplo a palavra «poleiro».
Aires A. Nascimento21, destacou ainda outras ocorrências que podem atestar
aproximações aos usos do português. Recordemos algumas. O termo loco deve ser
entendido em alguns passos na acepção de advérbio de tempo «logo», cf. 24, 8: «na
basílica que está logo junto da Anástase»22, e 46, 1: «estão logo, mesmo logo, os
padrinhos e as madrinhas»23. Também o verbo mittere pode traduzir-se, em dois
exemplos, num português de registo informal, por «meter»; tal sucede nos pará-
grafos 3, 8 e 9, 3: «meter a Alexandria;» e «mete da Tebaida a Pelúsio», respectiva-
mente.24 Quanto à expressão portuguesa «tudo a direito» é possível encontrar uma
correspondente no passo totum ad directum (3, 1).
O elenco das ocorrências latinas que remetem, quase automaticamente, para
vocábulos e expressões portuguesas compreende, ainda, a palavra pisinno/a, subs-
tituta de paruus na língua popular, a lembrar o adjectivo «pequeno/a», no grau
diminutivo: Ipse autem sanctus episcopus ex monacho est nam a pisinno in monasterio
nutritus est - «Quanto àquele bispo ele vem de monge; na realidade, desde pequeni-
no foi criado no mosteiro» (9, 2); e In eo ergo loco ecclesia est pisinna - «Neste lugar,
há uma igreja pequenina» (10, 9); a locução verbal facientes aquam (= aquari) e o
vocábulo foras, avançamos nós, não são estranhas se pensarmos no português «fazer
aguada» e «fora».
A espontaneidade e coloquialidade do texto deriva, certamente, do seu carácter
epistolar. Este formato epistolar é marcadamente notório no texto pela referência
expressa às dominae, irmãs companheiras de mosteiro, para quem endossa a sua
relação de viagem, como anteriormente já referimos. Os termos afectuosos com
que se lhes dirige – uenerabiles, animae meae/lumen meum, uestra affectionem - são
próprios de uma cultura eminentemente cristã 25 evidenciando a postura de piedosa
humildade da monja e são apenas um magro exemplo do vocabulário cristão que
abunda no Itinerarium. Os verbos declarativos, tais como referam (10 ocorrências26)
e nuntiabo (1 oc.), acentuam a ligação entre a narradora e as suas correspondentes,
mas muitos outros, como aio (171 oc.), dico (171 oc.) e requiro (11 oc.), por exemplo,
21
Aires A. Nascimento, «V. Väänanën, Le Journal-Épître d`Égérie (Itinerarium Egeriae). Étude linguistique», Revista
Euphrosyne, 16, Lisboa, 1988, p. 438. Apresentamos, para as diferentes atestações, a tradução do autor.
22
in basilica, quae est loco iuxta Anastasim (...).
23
stant etiam loco patres uel matres(...).
24
Cf.: Egyptum autem et Palestinam et mare Rubrum et mare illut Parthenicum, quod mittit Alexandriam (3, 8) e quod
transiebat per Arabiam ciuitatem, id est quod mittit de Thebaida in Pelusio (9, 3).
25
Cf. P. Maraval, op. cit., 1982, p. 54.
26
Seguiu-se a concordância lematizada elaborada pela equipa do Projecto VERLAME (JNICT).
que são empregues em várias situações demonstram o forte desejo de procura e im-
primem uma coloquialidade espontânea ao texto, marca de um estilo próprio que
parece radicar na linguagem falada. É a coloração vulgar do latim da peregrina para
que Prinz27, Díaz y Díaz28, e mais recentemente P. Maraval29, chamaram a atenção.
Esta coloquialidade é também acentuada pelo recurso a repetições de vocábulos;
de pronomes demonstrativos; de partículas (em especial nam, autem e ergo); aos
pleonasmos (do tipo ita...ita; tam...tam, etc.); à utilização de expressões de valor
superlativo, de diminutivos ou restritivos (tais como ingens, ualde, satis.30).
Tratando-se de um relato de viagem, o vocabulário empregue pela narradora
acusa necessariamente essa progressão espácio-temporal que é evidenciada na pri-
meira parte da narrativa pelo recurso a verbos de movimento como ascendere (3, 1;
11, 4), descendere (3, 2; 7, 7; 16, 5; 20, 5; 36, 2), ambulare (4, 5), exire (4, 6), mouere
(16, 5), accedere (20,1), ire (25, 6; 44, 3), reuertere (19, 3), etc.
A visão ocupa, igualmente, um papel de destaque enquanto meio priviligiado
de captação do real que transparece ao nível das escolhas vocabulares A tal facto
não é alheia a circunstância da monja entender a viagem enquanto trajecto de enri-
quecimento e aprendizagem e de desvendamento e revelação para si e para todos os
que partilham da sua experiência. Assim ela vê o local sagrado e em seguida recor-
da a circunstância que aí ocorreu ou a personalidade que o distingue recorrendo à
oração e à leitura de codice31 que funcionam como rituais de ligação entre o mundo
físico captado visualmente e a sua contrapartida espiritual. Esta fidelidade ao real,
assegurada pela confirmação visual, é explicitada pelo recurso a dois verbos preferi-
dos, os verbos uideo (73/3 oc.) e ostendo (55 oc.). O primeiro distingue os momentos
em que a peregrina é a primeira a captar e descrever o que a motiva, enquanto que
o verbo ostendo é empregue nas situações em que ela beneficia e recebe apoio das
pessoas com quem se relaciona, normalmente monges a quem qualifica de santos.
A originalidade do relato não se esgota no estilo ou nas escolhas lexicais. A sin-
taxe do texto também é precursora. Com efeito, um dos traços mais característicos
da narrativa diz respeito à ordem das palavras na frase. Esta, apesar de livre, revela
uma notória tendência sujeito-verbo-objecto - (S)VO -, que é típica das línguas
românicas32.
27
O. Prinz, Itinerarium Egeriae, Heidelberg, 1960, p. V.
28
M. C. Díaz y Díaz, Antología del latin vulgar, Madrid, Gredos, 1962, p. 79.
29
P. Maraval, op. cit., 1982, p. 52.
30
Cf. V. Väänänen, Le Journal-Épître d`Égérie (Itinerarium Egeriae). Étude linguistique, Helsinki, 1987.
31
O vocábulo codex (cf. também 33, 2) era empregue no século IV para designar a Bíblia.
32
V. Väänänen, op. cit., p. 106.
Itinerários
Ao nível da estrutura a narrativa constrói-se pela articulação entre duas partes
perfeitamente distintas. A primeira (parágrafos 1 a 23), que contempla o relato das
viagens, os encontros com monges e bispos, a enumeração dos espaços percorridos e
visitados, as referências ao tempo gasto em cada trajecto; e a segunda (24 a 49), onde
se procura descrever com grande pormenor a liturgia de Jerusalém e cujo objectivo
está claramente definido nas palavras de abertura do parágrafo 24: «Ora, para que
Vossa Caridade saiba que ofícios têm lugar cada dia nos lugares santos, julguei de-
ver dar-vos disso conhecimento, sabendo que teríeis gosto em conhecê-los.33»
A narrativa torna-se coesa pela complementaridade entre estes dois grandes blo-
cos. O primeiro é fortemente sustentado pela noção de espaço, porque corresponde
ao registo das impressões que o percurso de visita a locais de interesse religioso sus-
citou; o outro é dominado, genericamente, pela componente temporal, porquanto
se assume como descrição detalhada de cerimónias litúrgicas compreendidas num
calendário determinado.
Num é notória a tentativa pedagógica de recuperação de um conhecimento
religioso comum que parte dos textos sagrados, pela verificação do seu contraponto
real, veja-se a viagem ao Sinai, a visita ao túmulo de Job; com o outro procura-se
alargar esse saber, através de referências específicas aos ofícios sagrados da Cidade
Santa, recordemos, a título de exemplo, as cerimónias da festa da Epifania ou a
descrição das festas Pascais.
A primeira parte da narrativa que contempla as viagens desenvolve-se assente
em quatro macro-sequências ou agrupamentos de parágrafos a que chamaremos
itinerários (I), cujo espaço dominante, ponto de partida e de retorno, é Jerusalém,
excepto na última sequência que coincide com o regresso à pátria (cf. 17, 1).
O I 1 compreende o percurso até ao Sinai (1 - 9); o I 2 a visita ao monte Nebo
(10 - 12); o I 3 a ida à terra de Job (13 - 16); e o I 4 a viagem à Mesopotâmia (17
- 23)34. Ao nível do discurso, estas macro-sequências são demarcadas entre si por
frases introdutórias de conteúdo e estrutura similar permitindo a diferenciação en-
tre as várias viagens nucleares, mas criando também uma uniformização e coesão
ao nível da estrutura interna do texto35.
A estes quatro itinerários subjaz uma articulação encadeada de micro-sequên-
cias, os capítulos, de maior ou menor extensão, que permitem acompanhar com mi-
33
Vt autem sciret affectio uestra, quae operatio singulis diebus cotidie in locis sanctis habeatur, certas uos facere debui, sciens
quia libenter haberetis haec cognoscere.
34
Discordamos, neste ponto, da proposta de Hélène Pétré (Éthérie - Journal de voyage, Paris, 1948, p. 27. = Sources
Chrétiennes, n.º 21) relativamente à definição do capítulo que marca o início da última sequência.
35
Cf. 10, 1: «Em seguida, passado algum tempo, e por vontade de Deus, houve novo intento de ir até à Arábia, isto é, até
ao monte Nebo» - Item transacto aliquanto tempore et iubente Deo fuit denuo uoluntas accedendi usque ad Arabiam, id est
ad montem Nabau; 13, 1: «Em seguida, após algum tempo, quis ir também ao país de Ausítis (...)» - Item post aliquantum
tempus uolui etiam ad regionem Ausitidem accedere e 17, 1: «Em seguida, em nome de Deus, passado algum tempo, (...)
quis também, por vontade de Deus, ir à Mesopotâmia da Síria (...)» - Item in nomine Dei, transacto aliquanto tempore (...)
uolui, iubente Deo, ut et ad Mesopotamiam Syria accedere. Não temos a introdução à primeira grande sequência, porque
a parte inicial da Peregrinatio não chegou até nós; o texto apresenta lacunas no início e no fim.
O valor do testemunho
Para além do seu valor literário e linguístico, o Itinerário é um texto fundamen-
tal do ponto de vista histórico-cultural. Quem pretendesse encetar uma viagem aos
lugares santos encontraria nele, certamente, um conjunto de informações que ultra-
passariam a esfera religiosa. Indicações que lhe facilitariam a viagem, já o dissemos,
e referências a aspectos linguísticos, geográficos e etnográficos que permitiriam o
conhecimento de algumas particularidades regionais ou da situção política na zona
à época.
Veja-se, por exemplo, a descrição que faz dos faranitas suscitada pela viagem
empreendida de Farã a Jerusalém – que decorreu de 21 de Dezembro de 383 a 1
de Fevereiro de 384. Como nos diz Egéria, eles teriam desenvolvido um original
sistema de orientação no deserto: «Ora, os faranitas, que costumam caminhar por
ali com os seus camelos, colocam sinais de lugar em lugar e através destes sinais se
guiam e assim circulam durante o dia, ao passo que de noite são os camelos que se
guiam pelos sinais. E que dizer? Graças a este costume, os faranitas já caminham
de noite com mais certeza e segurança neste lugar do que qualquer homem pode
P. Maraval destaca que é no Itinerarium Egeriae que se encontra atestado pela primeira vez este vocábulo e sublinha a
36
caminhar naqueles lugares onde existe uma estrada aberta.41». Também os isáurios
merecem a sua atenção quando chega a Selêucia na província de Isáuria em Maio
de 384. Segundo a autora, este povo que habitava as montanhas do Tauro era co-
nhecido pelas suas incursões e pilhagens: «Mas para voltar ao assunto, há, pois, uma
grande quantidade de mosteiros42 ali sobre esta colina e, no meio, um muro grande
que circunda a igreja onde está o santuário; este santuário é muito belo. Por outra
parte, quanto ao muro foi ele construído para guardar a igreja dos isáurios, que são
bastante maldosos e que frequentemente se dedicam à pilhagem, não fossem tentar
qualquer acção próximo do mosteiro que está ali para servir a igreja.».43 Recorde-
mos ainda a alusão ao estabelecimento de fortes e postos de soldados e oficiais que
zelariam pela manutenção da ordem em percursos instáveis, como por exemplo o
trajecto entre Clisma e a cidade de Arábia, que a monja teria efectuado de 2 a 5
de Janeiro de 384: «Há, pois, de Clisma, isto é, do mar Vermelho até à cidade da
Arábia quatro etapas pelo deserto; contudo pelo deserto em cada etapa existem
postos de soldados e oficiais que nos escoltavam sempre de um forte a outro forte.
Neste itinerário, pois, os santos que estavam connosco, isto é, os clérigos e monges,
mostravam-nos todos os lugares, que eu procurava sempre seguindo as Escrituras;
de facto, uns ficavam à esquerda, outros à direita do nosso itinerário, uns mais longe
do caminho, outros mais perto.»44.
Com efeito, as viagens na época implicavam dificuldades acrescidas, pela in-
segurança geral45, pela pouca comodidade, pela lentidão dos meios de transporte,
pela dificuldade extrema de alguns percursos. Gregório de Nissa, escritor contem-
porâneo de Egéria faz-nos o seguinte retrato: «Uma mulher não pode empreender
uma viagem tão longa sem ter com ela alguém para a proteger; a debilidade natural
41
Cf. 6, 2: Faranite autem, qui ibi consueuerunt ambulare cum camelis suis, signa sibi locis et locis ponent, ad quae signa se
tendent et sic ambulant per diem. Nocte autem signa cameli attendunt. Et quid plura? Diligentius et securius iam in eo loco
ex consuetudine Faranitae ambulant nocte quam aliqui hominum ambulare potest in his locis, ubi uia aperta est.
Recordem-se, a título de exemplo, os mosteiros fundados por Melânia-a-Velha e Rufino, em Jerusalém no século IV
42
(Paládio, Hist. laus., 46, 5 - PL, t. 74), e de Paula e S. Jerónimo em Belém (Jerónimo, Epist., 66, 14; 108, 14).
43
Cf. 23, 4: Sed ut redeam ad rem, monasteria ergo plurima sunt ibi per ipsum collem et in medio murus ingens, qui includet
ecclesiam, in qua est martyrium, quod martyrium satis pulchrum est. Propterea autem murus missus est ad custodiendam
ecclesiam propter Hisauros, quia satis mali sunt et frequenter latrunculantur, ne forte conentur aliquid facere circa monaste-
rium, quod ibi est deputatum.
44
7, 2: Sunt ergo a Clesma, id est a mare Rubro, usque ad Arabiam ciuitatem mansiones quattuor per heremo, sic tamen per
heremum, ut cata mansiones monasteria sint cum militibus et propositis, qui nos deducebant semper de castro ad castrum.
In ergo itinere sancti, qui nobiscum errant, hoc est clerici uel monachi, ostendebant nobis singula loca, quae semper ego
iuxta Scripturas requirebam; nam alia in sinistro, alia in dextro de itinere nobis errant, alia etiam longius de uia, alia in
proximo.
45
Havia no entanto zonas mais seguras onde não era necessário recorrer, por exemplo, à escolta de soldados. Tal sucedeu
na passagem, efectuada por Egéria em Fevereiro de 384, da cidade de Arábia até Jerusalém (cf. 9, 3): «Ora, a partir dali
nós dispensámos os soldados que nos haviam prestado ajuda em nome da autoridade romana, durante o tempo em que
tínhamos andado por regiões pouco seguras; agora, porém, como era a via pública do Egipto que atravessava a cidade de
Arábia, isto é, aquela que vai da Tebaida a Pelúsio, a verdade é que já não era necessário incomodar os soldados.» - Nos
autem inde iam remisimus milites, qui nobis pro disciplina Romana auxilia prebuerant, quandiu per loca suspecta ambulaue-
ramus; iam autem, quoniam ager publicum erat per Egyptum, quod transiebatur per Arabiam ciuitatem, id est quod mittit
de Thebaida in Pelusio, et ideo iam non fuit necesse uexare milites.
do seu sexo exige que a ajudem a subir para a sua montada, que a ajudem a descer.
É preciso necessariamente que a amparem nos percursos difíceis. Quer se trate de
um amigo ou de um mercenário que lhe preste os seus serviços, ela não conseguirá
evitar a censura; e se se entregar ao estrangeiro ou ao servidor, ela violará as leis de
castidade.» 46
No entanto é com felicidade e satisfação que a monja suporta as provações da
longa viagem. Recordemos as dificuldades da subida ao monte Sinai: «Assim, pois,
por vontade de Cristo nosso Deus, ajudada pelas preces dos santos que me acompa-
nhavam e com um grande esforço, porque era preciso subir a pé, pois não se podia
de todo subir em sela, a verdade é que este esforço não se sentia, por aquela parte;
de facto, não se sentia o esforço, porque o desejo que eu tinha via-o realizar-se, por
vontade de Deus; (...)»47 e a viagem ao túmulo de Job: «Em seguida, após algum
tempo, quis ir também ao país de Ausítis, para visitar o túmulo do bem-aventurado
Job e aí rezar. Via, com efeito, muitos monges que vinham dali para Jerusalém para
visitar os lugares santos e rezar; ao falarem pormenorizadamente daqueles lugares
criaram em mim um maior desejo de me impor o esforço de ir também até àque-
les lugares, se é que se pode falar em esforço quando uma pessoa vê o seu intento
realizar-se.»48
Todos estes elementos permitem imaginar uma mulher a quem a devoção enche
de coragem, que procurou através da peregrinação, e da leitura e oração, reviver e
recuperar, para si e para outros, um conhecimento que se fixa nas Escrituras. O
modo como Egéria nos relata as suas experiências, a curiosidade e a vivacidade
simpática que imprime ao seu relato deixam depreender, igualmente, os contornos
de uma abertura de espírito ao exotismo e às diferenças de usos e costumes estran-
geiros. É este maravilhamento perante o que vê e ouve, não apenas o que já conhece
e pretende confirmar mas também o que lhe é desconhecido, passado para a escrita
de uma forma singela a que não é alheia a sua condição de religiosa que torna a sua
relação de viagem um testemunho singular. O Itinerarium da monja Egéria é, pois,
uma representação do mundo mas, como qualquer relato de viagem, é fundamen-
talmente um testemunho sobre ela própria.
46
ΠΕΡΙ ΤΩΝ ΑΠΙΟΝΤΩΝ ΕΙΣ ΙΕΡΟΣΟΛΥΜΑ
3, 2: Hac sic ergo iubente Christo Deo nostro, adiuta orationibus sanctorum, qui comitabantur, et sic cum grandi labore,
47
quia pedibus me ascendere necesse erat, quia prorsus nec in sella ascendi poterat, tamen ipse labor non sentiebatur ex ea parte
autem non sentiebatur labor, quia desiderium, quod habebam, iubente Deo uidebam compleri (...).
48
13, 1: Item post aliquantum tempus uolui etiam ad regionem Ausitidem accedere propter uisendam memoriam sancti Iob
gratia orationis. Multos enim sanctos monachos uidebam inde uenientes in Ierusolimam ad uisenda loca sancta gratia ora-
tionis, qui singula referentes de eisdem locis fecerunt magis desiderium imponendi michi laboris, ut etiam usque ad illa loca
accederem, si tamen labor dici potest, ubi homo desiderium suum compleri uidet.
1
Arist. Rh 1375a28-29
Está claro que si la ley escrita es contraria al caso, se debe recurrir a la ley común y a argumentos de mayor equidad y
justicia.
2
Hay continuos ejemplos de esto. Cf. entre otros D 39, 41; Aischin 3.8 y Lys 10, 32.
3
MIRHADY, David C., “Aristotle on the Rhetoric of Law”, GRBS 31, 1990, pp. 393-410.
móstenes, y seleccionar los pasajes que nos parece tienen relación con los consejos de
Aristóteles al tratar sobre el uso de la ley como referente de la justicia y del recurso a
la ley natural y a la equidad. El discurso es una graphe paranómon, una acusación de
ilegalidad, con la que el orador intenta que no siga adelante la propuesta del acusado
de otorgar una corona al Consejo del que él había formado parte, para premiar la
labor llevada a cabo por dicho organismo. La acusación de la ilegalidad de la pro-
puesta se basa en que el Consejo no había cumplido el deber al que estaba obligado
de construir un determinado número de trirremes. El tipo de argumentación que
sigue Demóstenes es el de anticiparse a las posibles objeciones del acusado. En este
sentido anima a los jueces durante todo el discurso a que se limiten a la aplicación
de dicha ley y no presten atención a esas objeciones que, según él, quedan al margen
del asunto. De ahí que, en lo que se refiere a la ley como prueba retórica, Demós-
tenes centre su argumentación en recordar a los jueces el juramento dicástico, en
interpretar el espíritu del legislador, en destacar los beneficios que supone al bien
común el seguimiento de la ley y la adecuación del veredicto a ella y en considerar
la ley un modo de defensa ante oradores que pueden caracterizarse personalmente
por su falta de principios morales. Los pasajes que hacen referencia a todo esto son
los que vamos a analizar, poniéndolos en relación con las afirmaciones de Aristóteles
al respecto.
El juramento dicástico lo pronunciaban todos los que podían actuar como jue-
ces en Atenas, es decir, los ciudadanos varones adultos mayores de 30 años4. Su
fórmula5 incluía el compromiso de juzgar no solo en conformidad con la ley (kata;
tou;" novmou") sino también según la opinión más justa ().
Este juramento, con la mención explícita de la fórmula “según la opinión más justa”
(), suponía para los jueces6 una interpelación a su concien-
cia en lo referente a obligación moral de mantener en su actuación los principios
que guiaron al legislador.
Aristóteles cuando expone los argumentos que deben utilizarse cuando la ley
no está a favor del orador interpreta el significado de dicha fórmula como “que no
hay que servirse con exclusividad de las leyes escritas” 7. Y cuando se refiere a los ar-
gumentos que se apoyan en la ley dice que dicha fórmula “no sirve para pronunciar
sentencias al margen de la ley, sino para que no haya perjurio si es que se desconoce
4
TOOD S.C., The Shape of Atenian Law, Oxford, 1993, pág. 83.
5
Cf. Pólux, Onomasti. VIII 10. Se encuentra con frecuencia mencionada en los oradores (D 23, 96-99; 20, 118; Aischin
3, 8 y Lys 10, 32). El texto parece ser el que encontramos en D. 24. 149-51, aunque incompleto. Cf. al respecto Harrison
1968-71: II pág. 48 y Todd 1993, pp. 54-55.
6
BISCARDY, Arnaldo., “La gnome dikaiotate et l’interpretacion des lois dans la Grèce ancienne”, RIDA 17, 1970, pp
219-232.
7
Arist., Rh, 1375a29-30
lo que dice la ley”8. Como ya hemos dicho, no se encuentran en los oradores afir-
maciones del primer tipo, pues mencionar la posibilidad de dictar una sentencia
contraria a la ley escrita, supondría un desprecio a las leyes y, en consecuencia, una
merma de su prestigio, pero sí algunas en que se insta a que la sentencia sea confor-
me a lo justo () omitiendo e ignorando la mención de la ley escrita.
En el discurso que estamos tratando, al final de la introducción, refiriéndose a
la defensa que hará el acusado, Demóstenes exhorta a los jueces a votar de acuerdo
con lo que han jurado y menciona lo justo antes de hacer referencia a las leyes:
“Sé claramente que este no podría decir nada simple, ni justo y que intentará engaña-
ros fingiendo y forjando argumentos malévolos ante cada uno de estos asuntos... en
favor de no que seáis persuadidos a votar lo contrario a lo que habéis jurado, y para
que no dejéis libre a este que es digno de castigo por parte vuestra por muchas cosas,
prestad atención a lo que diga9.
8
Arist., Rh,1375b16-18:
9
D. 22, 4:
10
D. 22, 8:
Pero si como dice la ley y deben hacer quienes han prestado juramento, se-
vera y sencillamente liquidáis los pretextos y resulta patente que les habéis
privado de la recompensa porque no han construido las naves, todos, varones
atenienses, os entregarán construidos los trirremes, por haber visto que ante
vosotros todo lo demás ha sido considerado de menor importancia que la
ley11.
11
D. 22, 20
12
D. 22, 39: i.
D. 22, 43: :.
13
No habéis prestado juramento para juzgar esos asuntos, sino el hecho de si propuso o no su moción conforme a las
leyes.
14
D. 22, 45:
Ahora hay algo que vosotros debéis considerar: si en ese precio valoráis la constitución, las leyes vigentes y vuestro
juramento; en efecto, si absolvéis a ese individuo, que tan a las claras ha presentado proposiciones contrarias a las leyes,
daréis la impresión a todos de haber preferido esas sumas de dinero a las leyes y a vuestro juramento.
15
D. 22, 56:
De modo que, cuando diga eso , acordaos de vuestros juramentos y tened en cuenta, respecto de la acusación, que ahora
no se está tratando de recaudación de impuestos, sino acerca de si es menester que las leyes sigan teniendo autoridad. Y
si en relación con estos asuntos (la forma en que, desviando vuestra atención de la ley, intentará engañaros y las réplicas
que contra esas maniobras os conviene recordar para no permitírselo), aunque mucho todavía puedo decir, como consi-
dero que lo ya dicho es suficiente, lo dejaré estar.
Pues el que legisló esa ley consideraba que era menester no poner la cuestión
a merced de la capacidad de los oradores, sino dejar fijado mediante una
disposición legal lo que cabía imaginar que era justo y al mismo tiempo,
conveniente para el pueblo17.
Hay otro pasaje de Aristóteles, tratando de prevenir los motivos subjetivos que
pueden hacer que en el veredicto de los jueces se desvíe de lo que establece la ley,
dice que “nadie escoge lo que es bueno en absoluto sino lo que es bueno para él”18 y
que “el miembro de una asamblea y el juez tienen que juzgar inmediatamente sobre
casos presentes y determinados, a lo que muchas veces les viene ya unida la simpa-
tía, el odio y la conveniencia propia, de suerte que ya no resulta posible establecer
suficientemente la verdad, y más bien oscurecen el juicio razones de placer o pesar”19
y Demóstenes utiliza el consejo en el mismo sentido:
“porque por esa razón, varones atenienses, tiene ese carácter la ley...para que
no sucediese que el pueblo fuera persuadido o engañado” 20.
“el legislador (...) Solón si se disponía a legislar de forma que esas sus leyes
(...) satisficiesen a los audaces y los expertos en el uso de la palabra, pensaba
que los simples ciudadanos no podrían obtener justicia de la misma manera
que ellos” 21.
Hay finalmente una utilización muy oportuna por parte de Demóstenes de
16
Arist. Rh 1375b3 1375b5:
17
D. 22, 11:
18
Arist. Rh 1375b19 ./
19
Arist. Rh 1354b7-11:
20
D. 22, 11:
D. 22, 25:
21
Conclusión
Los pasajes son solamente una selección que ilustra lo que queremos mostrar.
La tarea del orador en la composición del discurso con respecto a las leyes no es
únicamente la de elegir las leyes adecuadas y justificar el procedimiento, sino que
implica además toda una elaboración retórica que le permita conectar su demanda
con la mentalidad de los jueces en lo relativo a la justicia y a las leyes, de forma que
su autoridad moral quede a salvo. Para ello debe subordinar la argumentación basa-
da en la ley a la basada en la equidad como principio de justicia, ya que cuando la
equidad toma el lugar del principio de justicia que está incorporado a la ley general,
la ley general como tal permanece válida 23.
Esto implica, por una parte, el que sea un presupuesto de los oradores al diri-
girse al auditorio, el que en algún momento del discurso se deje un campo abierto
a una argumentación no ceñida a la ley y a un veredicto que, sin mencionar al ley,
se califica como “justo”. Implica también una continua reflexión sobre el contenido
de la ley, en forma de aclaraciones y racionalizaciones a veces excesivas, siguiendo
en esto el consejo de Aristóteles (Rh. 1374b 13) “mirar no a la ley, sino al legislador;
no a la letra sino a la inteligencia del legislador; no al hecho, sino a la intención; no
a la parte, sino al todo”.24
De este modo deja abierto el campo a considerar la justicia por encima de la
ley. La ley no se discute ni se pone en tela de juicio porque la ley es general y no
pierde validez por no ser aplicada en este caso concreto.
22
D. 22, 30:
23
VON LEYDEN, W., “Aristotle and the concept of law”, Phylosophy 42, 1967, pp. 1-19.
24
Arist. Rh. 1374b 13:
Bibliografía
CAREY, Cristopher., “Nomos in Attic Rhetoric and Oratory”, JHS CXVI, 1996,
pp 33-46.
CAREY, Cristopher., “Artless proofs in Aristotle and the orators”, BICS XXXIX,
1974, pp 95-106.
KUYPERS, K., “Recht und Billigkeit bei Aristoteles”, Mnemosyne SER 35, 1937,
pp. 290-301.
MIRHADY, David C., “Aristotle on the Rhetoric of Law”, GRBS 31, 1990, pp.
393-410.
SOUBIE, André, “Les preuves dans les plaidoyers des orateurs attiques II”, RIDA
21, 1974, pp. 77-134.
SOUBIE, André, “Les preuves dans les plaidoyers des orateurs attiques”, RIDA 20,
1973, pp. 167-253.
VON LEYDEN, W., “Aristotle and the concept of law”, Phylosophy 42, 1967, pp.
1-19.
António Melo
UCP - Braga
antmelo@braga.ucp.pt
1
Do adjectivo grego didaktikóç, «próprio para ensinar ou instruir».
2
A afluência de numeroso público a Olímpia, por ocasião das competições desportivas, motivou o exercício da arte
retórica: vide, nomeadamente, Pausânias, Descrição da Grécia, VI, 23, 7, que menciona a recitação de discursos impro-
visados e de toda a espécie de obras escritas; Platão, Hípias Menor, 368 b-e, onde se faz referência à participação deste
sofista nestes concursos artísticos; Lísias, Discurso em Olímpia, 2, fala de «uma parada da inteligência no lugar mais
belo da Grécia». A presença simultânea destes concursos revela a importância que na mentalidade grega se conferia a um
desenvolvimento harmonioso do corpo e do espírito, que ganha expressão na máxima gravada no frontão do templo de
Delfos, onde se adorava o deus Apolo «nada em demasia» (Cf. Platão, Cármides, 165 a).
3
Citado por Miguel Guzmán Peredo, A história dos desportos olímpicos, Lisboa, 1992, p. 16. Uma resenha do movi-
mento olímpico moderno pode ser consultada em Conrado Durántez, Olímpia y los juegos olímpicos antiguos, Ma-
drid, 1975, «El resurgimiento de Olímpia», II vol., pp. 335-409. Para mais pormenores sobre os Jogos Pan-Helénicos,
sobretudo os Olímpicos, e sua importância vide Francisco de Oliveira (coord.), O espírito olímpico no novo milénio,
Coimbra, 2000; J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos.1 – Génese e evolução de um conceito, Coimbra, 21993, pp.
Se bem que haja actividades desportivas que exigem muito pouco esforço físico,
como o xadrez e as damas, entre outras, são, contudo, «as actividades desportivas
de índole física que, pelo modo como solicitam o empenhamento das diferentes
áreas da personalidade do indivíduo e, sobretudo, pelo seu elevado teor interactivo,
revelam um maior potencial educativo»4, como declarou Marcos Onofre5, no âm-
bito das comemorações do Ano Europeu da Educação pelo Desporto. Ainda neste
contexto, a maratonista portuguesa, Rosa Mota, havia de sublinhar que, «havendo
desportos colectivos nas escolas, estaremos a preparar os nossos jovens para o futu-
ro, porque temos de pensar em conjunto, contrariar o individualismo, que é cada
vez maior»6.
Foram estes os pressupostos que motivaram o tema desta nossa reflexão. É deles
que vamos partir para uma aproximação ao conceito de ócio, tema que nos é pro-
posto para esta reunião magna.
No plano etimológico, o vocábulo ócio nada tem a ver com a ociosidade no
mundo actual, «a mãe de todos os vícios», como frequentemente é designada7. De
facto, o sentido deste termo deve aproximar-se do substantivo grego scol», que
significa fundamentalmente «descanso, repouso, tempo livre»8, mas também com-
preende a nobre ocupação própria de um homem livre, em tempo de ócio: o estu-
do9. Deste modo, o ócio é entendido como cultura do espírito. Para Aristóteles, a
essência de uma vida verdadeiramente humana consiste na busca da felicidade, que
144-154; Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos de história da cultura clássica. I – Cultura Grega, Lisboa, 81997, pp.
339-348; G. A. Christopoulos – John C. Bastias (eds.), The Olympic Games in Ancient Greece, Atenas, 1982; H. W.
Pleket, «The participants in ancient Olympic games: social background and mentality», in Coulson and Kyrieleis
(eds.), Proceedings of an international symposium on the Olympic Games (5-9 September), Atenas, 1992, pp. 147-152; S. G.
Miller, Arete. Greek sports from ancient sources, Berkeley, 1991.
4
Escola Revista, Lisboa, 2004, p. 3.
5
Professor Auxiliar na Faculdade de Motricidade Humana, da Universidade Técnica de Lisboa.
6
Escola Revista cit., p. 2.
7
Vem a propósito fazer uma referência à expressão latina taedium uitae que, no âmbito da periodização das literaturas
em vernáculo, referencia os românticos que padecem do mal du siècle; o ídolo do tempo foi o escritor inglês Lord Byron
(1788-1824). Entre nós, o carácter desta geração identifica-se, geralmente, com o estado de espírito que nos é transmiti-
do pelas palavras de Carlos dirigidas a Joaninha: «Eu estou perdido. E sem remédio, Joana, porque a minha natureza é
incorrigível. Tenho energia demais, tenho poderes demais no coração. Estes excessos dele me mataram...e me matam!»
(Almeida Garrett, Viagens na minha terra, Lisboa, 1963, pp. 308-309). Para outros pormenores, vide Vítor Manuel de
Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, Vol. I, Coimbra, 71986, pp. 547-548.
8
Vide Platão, Apologia de Sócrates, 36 d-e, a célebre passagem em que Sócrates, ao invocar a sua inocência perante a
Assembleia dos Heliastas, sugere como sentença alternativa, embora com propósito provocatório, ser distinguido pela
cidade e obter, assim, sustento gratuito no Pritaneu: «O que merece um homem que assim procedeu? Algo de bom,
cidadãos de Atenas, se é que me cumpre propor algo de acordo com os meus méritos! Uma boa recompensa, que me
conviesse. E que recompensa pode convir a um homem nobre como sou e vosso benemérito, e que necessita de ócio para
vos exortar? A tal homem, Atenienses, nada há que convenha tanto como o ser sustentado pelo Pritaneu. É isso muito
mais conveniente para mim do que para um desses que venceu as corridas de carros de dois cavalos, ou de quadrigas
nos Jogos Olímpicos, porque esse vos torna felizes apenas de aparência, enquanto eu vos torno felizes de verdade. Além
disso, esse não precisa que o sustentem, enquanto eu preciso» (Platão, Apologia de Sócrates, tradução, prefácio e notas
de Pinharanda Gomes, Lisboa, 21993, pp. 81-82).
9
Este vocábulo deriva do substantivo latino studium, que pode significar «dedicação, afeição» mas também «aplicação
ao estudo»; do substantivo grego deriva o substantivo latino schola que, de início, designava «ócio dedicado ao estudo»,
vindo a especializar-se no sentido de «lugar onde se ensina».
corpo do que com a mente, é manifesto que as crianças devem ser entregues aos
cuidados de um mestre de ginástica e de um preparador físico; aquele dotará os
corpos de boa forma, este treina-os para os exercícios»20.
Não obstante esta continuidade de pensamento na cultura grega, há uma dife-
rença entre os dois autores: em Platão, as reflexões sobre a música precedem as da
ginástica – «depois da música, é na ginástica que se devem educar os jovens… edu-
cados nela cuidadosamente desde crianças, e pela vida fora» (Rep., 403 c-d)21 –, as-
segurando «que a ginástica conveniente é simples, e acima de tudo a dos guerreiros»
(Rep., 404 b)22, pois esta formação contínua tem como finalidade a preparação de
cidadãos aptos para a defesa da polis23. O contrário sucede na Política de Aristóteles
que, fiel à tradição do mundo homérico, coloca a ginástica a preceder a música na
educação dos jovens24. Além disso, enquanto Platão (Rep., 536 e) sustenta que «os
esforços físicos, praticados à força, não causam mal algum ao corpo»25, Aristóteles
opõe-se, ao afirmar que «até à adolescência deve praticar-se ginástica com mode-
ração, evitando uma alimentação pesada e exercícios violentos, a fim de que nada
obste ao pleno desenvolvimento físico» (Pol., 1338 b 38-41)26. Prova de que os
excessos podem redundar em prejuízo do corpo, «é que, de entre os vencedores
dos Jogos Olímpicos normalmente apenas vislumbramos dois ou três Esparta-
nos bem sucedidos, contando com adultos e crianças (de facto, a exigência do
treino físico a que foram sujeitos desde tenra idade acabou por esgotar-lhes as
20
Aristóteles, Política, edição bilingue cit., p. 569. A ginástica superior (γυμναστική) pratica-se no ginásio e a sua
finalidade é desenvolver, através de um exercício metódico e de um regime alimentar apropriado, as qualidades físicas
do guerreiro e do atleta, tendo em vista preparar o futuro cidadão para o serviço militar e as competições desportivas.
Por seu turno, na palestra, o mestre (παιδοτρίβης) prepara o corpo do jovem para exercícios físicos mais elaborados.
Aristote, Politique, texte établi et traduit par Jean Aubonnet, T. III (deuxième partie), Livre VIII, Paris, 1989, p. 96.
Numa passagem anterior (Ibid., 1334 b 21-28), o estagirita já havia justificado a sua opção pela educação do corpo, em
primeiro lugar: «Ora, da mesma forma que o corpo antecede a alma na ordem temporal da geração, também a parte
irracional é temporalmente anterior à parte dotada da razão. Prova dessa antecedência é o facto de os recém-nascidos
e crianças manifestarem ânimo, vontade e apetite, ao passo que a razão e a inteligência apenas se manifestam com o
avançar da idade. Eis porque o cuidado do corpo deveria necessariamente preceder o da alma, surgindo o cuidado com
os desejos logo a seguir. Contudo, e em vista da razão que se deve cuidar primeiro do desejo, tal como é em vista da alma
que se deve cuidar primeiro do corpo». Aristóteles, Política, edição bilingue cit., p. 545.
Platão, A República, introdução cit., pp. 136-137. Veja-se, a propósito, a importância destas considerações morais:
21
«A mim não parece ser o corpo, por perfeito que seja, que, pela sua excelência, torne a alma boa, mas, pelo contrário, a
alma boa, pela sua excelência, permite ao corpo ser o melhor possível»(Ibid., 403 d).
22
Platão, A República, introdução cit., p. 138.
23
Cf. ibid., 410 c sq.
24
Pode ler-se em A República (521 e): «Anteriormente, a educação que lhes atribuímos era pela ginástica e pela música».
Platão, A República, introdução cit., p. 329.
25
Ibid., p. 355.
26
Aristóteles, Política, edição bilingue... cit., p. 571. Da mesma forma que condena a especialização, alheia ao espíri-
to grego do homem livre, Aristóteles verbera as cidades que procuram dotar as suas crianças de uma compleição atlética,
em detrimento das formas e do desenvolvimento harmonioso do corpo (Pol., 1338 b 9-11). Segundo ele (Pol., 1335 b
8-12), «a melhor compleição é a intermédia. Devem possuir uma compleição exercitada, sim, mas em tarefas não vio-
lentas nem em tarefas exclusivas, como é o caso dos atletas; devem orientar-se para actividades de homens livres, o que
se aplica, por igual, a homens e mulheres». Ibid. Após a adolescência, ambos os filósofos comungam a mesma opinião
quanto à necessidade de exercícios árduos: Rep., 537 b e Pol., 1339 a 5-10.
dade Greco-Romana», Humanitas, 47-I (1995) 489-497 e Henri-Iréné Marrou, Histoire de l éducation dans l antiquité.
Tome I: Le monde grec. Paris, 1981, pp. 325-326 que, a propósito da paideia helenística, afirma que ela procurava um
equilíbrio e harmonia completa «do corpo e da alma, do carácter e do espírito, da sensibilidade e da razão».
36
A tradição faz recuar a origem dos jogos, em Roma, aos tempos de Rómulo. Em Tito Lívio encontramos a descrição
célebre do rapto das Sabinas, que sucedeu durante os jogos em honra do deus Conso (Desde a Fundação da Cidade,
I.9-13).
37
Com efeito, em 186 a. C., para celebrar a sua vitória sobre os Etólios, Marco Fúlvio Nobilior organiza, pela primeira
vez, este tipo de jogos, com a presença de muitos atletas gregos. Neste ano, por sua iniciativa, também foram introduzi-
das as uenationes ou caçadas. Cf. Tito Lívio, Desde a Fundação cit., XXXIX.22.2. A Etólia era uma região montanhosa
que se situava a Norte do Golfo de Corinto, na Grécia Antiga; estes povos, no séc. IV a. C., chegaram mesmo a dominar
a Anfictionia de Delfos.
38
A mesma opinião é partilhada por Marcial (Epigramas VII.32, por exemplo). O historiador romano Tácito (Anais,
XIV.20), numa reflexão paradigmática, aproxima a opinião daqueles que se opõem agora a este género de jogos à pers-
pectiva dos que outrora já se manifestaram contra a construção de um teatro, o que só veio a suceder com Pompeu, que,
em 55 a. C., mandou erigir o primeiro edifício permanente. Maria Cristina Pimentel, «O espírito agónico no Alto
Império», in: Francisco de Oliveira (coord.), O espírito olímpico cit., maxime pp. 127-132.
39
IX.80.2. Lúcio Aneu Séneca, Cartas a Lucílio, tradução, prefácio e notas de José António Segurado e Campos,
Lisboa, 22004, p. 344.
40
Trata-se de uma imitação dos Jogos Olímpicos gregos, com provas gímnicas, hípicas, concursos musicais e poéticos.
instituídos sob o impulso do imperador Nero. A sua morte havia de precipitar o fim
destes jogos. Mais tarde, com Domiciano, iniciam-se os ludi Capitolini (86 d. C.),
em honra de Júpiter, que se realizam de quatro em quatro anos.
Se bem que estes festivais sigam o modelo dos Jogos Olímpicos, bem diferente,
contudo, é o espírito que os anima. Com efeito, em Roma, estes certames são ape-
nas espectáculos de inconfessáveis desígnios políticos; em troca da diversão ofereci-
da, buscavam os soberanos a aura popularis41. Da mesma forma se compreende que
tenha sido estranha à mentalidade romana a concepção do otium enquanto activi-
dade intelectual produtiva e que parece ter chegado a Roma através do Círculo dos
Cipiões42. Para os Romanos, com efeito, otium significa essencialmente tempo livre
das actividades públicas, os negotia. Marco Cornélio Frontão, preceptor do futuro
imperador Marco Aurélio, vai adoptar a expressão otium liberum.
Em tempo de ócio, o romano ocupava-se em actividades de lazer, procurando o
prazer do jogo. O divertimento era próprio de todas as idades: enquanto as crianças
jogavam a bola e o pião ou se recreavam com o arco e com carros de brincar, os
adultos, que também jogavam a bola, deleitavam-se nos banquetes ou distraíam-se
com os dados, a pesca, o atletismo, a natação, o hóquei43.
É desta última modalidade desportiva que passamos a apresentar um testemu-
nho quinhentista, no âmbito da pedagogia dos Jesuítas. Trata-se de um episódio
secundário que aparece na tragicomédia Iosephus, representada no Colégio das Ar-
tes de Coimbra, em 1574. O seu autor é o mestre jesuíta Luís da Cruz, de que se
celebra este ano o IV centenário da sua morte44. Este colégio, fundado em 1548 por
D. João III, havia de ser entregue aos Jesuítas a 10 de Setembro de 155545, pelo então
Este festival distinguia-se do certame olímpico apenas na sua periodicidade: realizava-se de cinco em cinco anos.
41
Maria Cristina Pimentel, «O espírito agónico... » cit., maxime pp. 140 e 150. Esta ligação dos jogos à política já é
visível nas lendas das origens de Roma, com o célebre Rapto das sabinas (Cf. supra, nota 36). Para mais pormenores vide
Francisco de Oliveira, «Actividades de lazer em Roma», in: Francisco de Oliveira (coord.), O espírito olímpico... cit.,
pp. 111-126; Id., «Teatro e poder em Roma», in: As Línguas Clássicas. Investigação e Ensino, Coimbra, pp. 121-142.
42
A propósito, é significativa uma passagem da carta que Plínio o Moço dirige a Minúcio Fundano (I.9): «Por isso tam-
bém tu, logo que tenhas oportunidade, abandona esse estrépito, essas correrias inúteis, esses trabalhos completamente
estéreis, e entrega-te ao estudo ou ao otium. Pois é melhor, como disse o nosso amigo Atílio, com muita sabedoria e
espírito ao mesmo tempo, estar ocioso (otiosus) do que não fazer nada». Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira,
Estudos de história da cultura clássica. II – Cultura Romana, Lisboa, 21990, p. 388. Um dos primeiros elogios à sabedo-
ria, entre os Romanos, encontra-se em Énio, nos Anais, VII.125-129, 130-131, 136-153; VIII.156-161. Cf. id., ibid., p.
126.
43
Cf. Francisco de Oliveira, «Actividades de lazer... » cit., p. 111; D. Mancioni, Giochi e Spettacoli, Roma, 1987; J.
Guillén, Vrbs Roma. Vida y costumbres de los romanos. Vol. II. La Vida Publica, Salamanca, 1980; R. C. Beacham,
Spectacle Entertainments of Early Imperial Roma, New Haven, 1999; R. Auguet, Cruauté et civilisation: les jeux romains,
Paris, 1970; Ugo Enrico Paoli, Vrbs : la vida en la Roma Antigua, Barcelona, 1990, capit. XXI «Diversiones y recreos de
grandes y pequeños», pp. 307-320.
44
A obra dramática deste autor mereceu honras de publicação: Tragicae comicaeque actiones, a regio Artium Collegio
Societatis Iesu, datae conimbricae in publicum theatrum. Lugduni, apud Horatium Cardon, 1605. Pôde ainda contar com
uma edição quinhentista, uma paráfrase do Livro dos Salmos, com 150 cânticos: Bíblia. V. T. Psalmi. Latino. Versioni
metriche. Interpretatio poética latine in centum quinquaginta psalmos. Ingolstadii, ex cudebat Adam Sartorius, 1597.
45
Na sessão solene de abertura deste Colégio a 1 de Outubro, agora sob a jurisdição da Companhia de Jesus, o P.e Pedro
Perpinhão vai proferir a oração de sapiência De societatis Isesu gymnasiis, et de eius docendi ratione.
46
O ambiente cultural de Coimbra, centro do saber do Portugal de Quinhentos, onde se havia formado o dramaturgo
P.e Luís da Cruz, era bem o reflexo do magistério e até do convívio de grandes mestres europeus. Vide Séneca, Tragé-
dias, introdução, tradução e notas de Jesus Luque Moreno, Madrid, 1979.
47
Iosephus, I.01.141: 165 Quão incerta a vida se diz no seu curso! Vide António Maria Martins Melo, O P.e Luís da
Cruz S.J e a tragicomédia Iosephus. Tomo II. Edição crítica, Braga, 2002. Dissertação de doutoramento dactilografada;
Id, Teatro Jesuítico em Portugal no Século XVI: a tragicomédia Iosephus P. Luís da Cruz, S.J., Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian / Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2004.
48
A instabilidade da fortuna é um tema glosado na história da literatura grega, e. g., por Simónides (fr. 6 Diehl) e Pín-
daro (II.ª Ode Olímpica, vv. 35-37; VII.ª Ode Olímpica, vv. 95-96). Na literatura latina, podemos verificá-lo, e. g., em
Névio (fr. 16 Strelecki), Salústio (Catilina, VIII.1; Jugurta, I.3), Virgílio (Eneida, VIII.16, 578-580), Tito Lívio (Desde
a Fundação da Cidade, II.12.7) e Séneca (Cartas a Lucílio, V.47.10). A instabilidade da fortuna também é de inspiração
senequiana: Troades, vv. 1-9, 260-275; Phaedra, vv. 1144-1153; Hércules Oetaeus, v. 132; Agamemnon, vv. 407-413;
Thyestes, vv. 32-36. Cf. Nair de Nazaré Castro Soares, Teatro clássico no Século XVI. A Castro de António Ferreira:
fontes – originalidade, Coimbra, 1996, p. 41.
49
Iosephus, I.01.161-162: 165 Isto sucede, digo eu, pela providência / da divindade que governa o mundo .
50
Ibid., vv. 162-168:
Sed arbiter
Etiam actionum quisque conciliat sibi
Peiora rerum, ex sorte commutabili:
Potiora iuuenis sed mihi optaui Deo
Opem ferente: namque cum fugi mei
Peregrinus odium fratris atque auunculum
Adii Labanum a patria extorris domo.
‘..ainda assim, é cada um de nós, como árbitro das suas acções, que da sorte mutável tira para si as piores coisas. Porém,
eu, ainda jovem, escolhi coisas melhores para mim, com o auxílio de Deus. Com efeito, como peregrino, evitei o ódio
do meu irmão e, exilado da casa paterna, fui para casa de meu tio Labão.’
Para mais pormenores, vide António Maria Martins Melo, A controvérsia do livre arbítrio, no tempo de Góis, in: Con-
51
gresso Internacional Damião de Góis na Europa do Renascimento, Braga, 2003, pp. 703-718.
52
Iosephus, I.01.264-265: 165, “...embora sejas entre os teus irmãos pelo amor o primeiro”.
53
Ibid., I.02.235: 165, ‘Peço-te, ó Deus, esperança firme da minha vida’.
tanto, denuncia ao pai a má vontade dos irmãos mais velhos (Aetate grandiores auer-
sissimi) e narra-lhe o sonho da ceifa: Quod messis illud somnium?54 – pergunta-lhe seu
pai. Incrédulo do sonho e seu simbolismo, incentiva José a ir ao encontro dos seus
irmãos, de quem não tem notícias, pois há muito estão ausentes na pastorícia, para
os lados de Siquém (ouesque rura nunc Sichemia / Fortasse totis obtinent ouilibus)55.
Entretanto, conhecedores do sonho, Dã e Gad, em conjunto, sentenciam a morte de
José (Ego perdidissem, qui uolet me perdere)56 e suscitam o apoio dos outros irmãos
(Narremus ista fratribus)57.
Manifesta-se, deste modo, nos irmãos de José, a paixão da inveja, que deriva
do desejo de glória, da ambição das honras: rivalizamos com as pessoas que nos
são chegadas, mais familiares58. Para o desfecho trágico anunciado, ajudam à nossa
compreensão as palavras de Dário, em Os Persas, de Ésquilo: «a insolência, quando
floresce, produz a espiga / da desgraça, cuja ceifa é toda feita de lágrimas»59.
José cumpre a vontade do pai e vemo-lo, na peça, errante por veredas expostas
aos perigos da floresta (infesta saepe belluis teterrimis)60, a ser ajudado por um tran-
seunte que admira os rebanhos de Jacob.
O espectador começa a temer pela sorte imerecida do seu herói, vítima de um
infortúnio que ele mesmo poderá vir a sofrer. É o despertar da compaixão que o
temor e a empatia fazem suscitar ao público espectador61. Introduz-se o episódio do
podador e do camponês, um intermezzo lúdico, típico da comédia que serve para
desanuviar a tensão dramática.
Mas logo recomeça a actio, com a inveja fraterna no auge. O espectador é, as-
sim, lançado para o centro dos acontecimentos – in medias res, conforme é prescrito
pela Arte Poética horaciana –, e elimina-se a descrição de pormenores fastidiosos.
Com efeito, a tragédia não é uma narrativa cronológica, «antes põe em cena, através
de situações paradigmáticas e intemporais, a fragilidade do humano, a inconsistên-
cia dos bens terrenos, o destino do homem»62.
Recrudesce a tensão dramática.
José aproxima-se; os irmãos amaldiçoam a sua vinda e decidem-se pelo ho-
micídio. Opõe-se a moderação de Rúben que, em alternativa, há-de sugerir o seu
encarceramento numa cisterna das proximidades (est in proximo / Cisterna luco…
54
Ibid., v. 274: 166, ‘Que sonho da ceifa é aquele?’
55
Ibid., vv. 313-314: 166, ‘As ovelhas agora os campos de Siquém / com quase todos os redis ocupam.’
56
Ibid., I.03.348: 166, ‘Eu mataria quem me quisesse matar.’
57
Ibid., v.349: 166, ‘Vamos contar isto aos nossos irmãos.’
58
Aristóteles, Retórica, 1387 b 24-26; 1388 a 1-16.
59
Vv. 821-822. Vide tradução em Maria Helena da Rocha Pereira, Hélade... cit., p. 199.
60
Iosephus, I.05.402: 166, ‘ameaçados, frequentemente, por feras terribilíssimas.’
Aristóteles, Retórica, 1385 b 20-34. O temor ( ) e a compaixão (
61
) são os efeitos específicos da tragédia
(Retórica, 1453 b 11-14).
62
Nair de Nazaré Castro Soares, «Dramaturgia e actualidade do teatro clássico: matéria e forma na tragédia quinhen-
tista», in: I Congresso da APEC. Raízes greco-latinas da cultura portuguesa, Coimbra, 1999, p. 174.
Gratius epulabimur
Si ludus acuet ligneae stomachum pilae,
Baculis recussae, et intra metas conditae.
Omnes
Placet, eia metis pone Iuda terminos.
63
Iosephus, I.08.594-596: 167, ‘há nos bosques / mais próximos uma cisterna... /... que ali sepultado expire o menino’.
64
Iosephus, I.11.862: 167, ‘Deliciosos manjares hão-de vir com um vinho entorpecedor’.
65
Ibid., v. 740: 167 ‘Dancemos, vivamos em cheio estas alegrias’.
66
Veja-se, para confronto, esta passagem nas Sagradas Escrituras (Génesis, 37.23-25): «Quando José chegou junto dos
irmãos, estes despojaram-no da túnica comprida que usava e, agarrando-o, lançaram-no à cisterna. Esta estava vazia e
sem água. Depois, sentaram-se para comer. Erguendo, porém, os olhos, viram uma caravana de ismaelitas que vinha de
Guilead.» Bíblia Sagrada, versão dos textos originais, Difusora Bíblica, Lisboa, 2003, p. 77.
67
Iosephus, I.10.780-783.
Voltem para aqui o vosso olhar. Do sul, voltado para os pluviosos reinos
o carvalho será o limite; (do Norte, voltado) para as estrelas Setentrionais,
o freixo silvestre68.
A sorte há-de ditar a eleição daquele que será o primeiro a jogar, segundo a
proposta de Judá:
Inicia-se o jogo e os irmãos trocam a bola entre si; Judá será o vencedor, como
proclamam as palavras de Zabulão: Vicisti, o inclyte Iuda 72. Não se pense, contudo,
que por lhe ter sorrido a vitória, a sorte vai estar sempre do seu lado; Simeão recorda
ao grande vencedor:
68
Iosephus, I.11.795-796.
69
Número cuja simbologia se perde na noite lendária dos povos. As Sagradas Escrituras também revelam a sua presença
e, v. g., no Novo Testamento, pode significar a unicidade de Deus trinitário, a repetição do «Cordeiro de Deus», na
Santa Missa ou sinal de arrependimento, com o pecador, por três vezes, a bater no peito.
70
Iosephus, I.11.797-799.
71
Ibid., v. 805-806.
72
Ibid., v. 832: 168, ‘Venceste, ó bravo Judá!’
73
Ibid., v. 835-836.
74
François Dainville, L´ éducation dês jésuites (XVI e -XVIIIe siècles), Paris, 1978, maxime pp. 519-533.
Inácio de Loiola, Constituições da Companhia de Jesus anotadas pela Congregação 34 e Notas Complementares aprova-
75
Eborensis diligentia. In unum collecta, et in Quattuor volumina distributa. Ad Philippum I Portugaliae regem inuictissi-
mum. Romae. Ex Bibliotheca Georgij Ferrarij MDCII.
mendáveis ao príncipe79.
Idêntico espírito anima o humanista bracarense, Diogo de Teive, que atribui
aos exercícios físicos um grande valor na formação integral da personalidade, reco-
mendando a sua prática80.
Como vemos, o desporto tem ocupado um lugar de relevo na cultura ocidental:
desde Hipócrates que se reconhece a importância do exercício físico para uma vida
mais saudável. Da sua história, havemos de concluir que se trata, essencialmente, de
uma manifestação humana, imprescindível na formação integral dos cidadãos, cor-
porizada no velho adágio mens sana in corpore sano, já acima mencionado. À natu-
reza intrínseca do desporto pertence a dimensão religiosa: a sua ausência conduziu
o homem ao relativismo que explica a absolutização do mercantilismo ocidental81.
Apesar disto, o desporto, enquanto escola de formação humana norteada pelos mais
nobres ideais, continua a perdurar, pelo menos, na mente de alguns praticantes,
ainda que profissionais. Neste sentido, torna-se gratificante recordar as palavras
do guarda-redes Gianluigi Buffon, proferidas em tom de desabafo, em Guimarães,
após o afastamento da selecção italiana: «O desporto deve ser uma escola de valores;
o que vamos nós ensinar às crianças? Para as crianças que vêem futebol, o que lhe
vamos dizer?!...»
79
Na Idade Média, a cultura física era vista em função do adestramento nas armas. Nair de Nazaré Castro Soares, O
Príncipe Ideal no Século XVI e a obra de D. Jerónimo Osório, Coimbra, 1994, pp. 299 e 427-428.
80
Diogo de Teive, Epodos Que Conte m Sentenças Úteis A Todos os Homens, A’s quaes se acrescentão Regras para a boa
educação de hum Príncipe, trad. no vulgar em verso solto por Francisco de Andrade (conforme à ed. De Lisboa, 1565).
Lisboa. Na Of. Patr. De Francisco Luiz Ameno, MDCCLXXXVI; Nair de Nazaré Castro Soares, Tragédia do Príncipe
João de Diogo de Teive, introdução, texto, tradução e notas. Coimbra, 1999, p. 34.
81
A propósito, vide José M. Alejandro, «Nuestro occidente deportivo», Razón y Fe, 152, N.os 690-691 (1955) 39-56 e
J. Huizinga, Homo ludens. Essai sur la fonction sociale du jeu, tradução de Cécile Seresia, Paris, 1951.
António Moniz
U. Nova de Lisboa
am.moniz@fcsh.unl.pt
Introdução
A dicotomia clássica otium versus labor, ou negotium, fruto da consciência cul-
tural e civilizacional que decorre do envolvimento individual e colectivo da espécie
humana na Cosmogonia, representa, em qualquer estádio histórico, ou pré-histó-
rico, a necessidade dialéctica de conciliar o esforço com a fruição, a acção com a
contemplação, o trabalho com o lazer.
O mito da aurea aetas, literariamente esboçado por Hesíodo, resume não ape-
nas a concepção tendencialmente decadentista da História humana, levemente con-
trariada com a idade dos heróis, mas também a natural inclinação para a inércia, de
pouco valendo, pelo menos à primeira vista, a compensação mitológica e religiosa
que faz do Homem um colaborador da criação divina. No entanto, não é despicien-
do o prazer que resulta de um trabalho concluído, em termos de realização pessoal
e colectiva, espécie de shabat bíblico no éden contraditório da vida quotidiana.
Por outro lado, apesar de todos os reveses que a História contemporânea regista,
não deixa de ser aliciante avaliar e contemplar, ao invés da tendência decadentista
que transparece desse mito hesiódico das Idades, a enorme evolução positiva que a
Humanidade pôde traçar ao longo de séculos e milénios, em termos económicos,
sociais, políticos e culturais: da barbárie para a civilização, da escravidão para a
liberdade, da ignorância para o conhecimento, da miséria para a dignidade e a
qualidade de vida.
As Geórgicas, de Virgílio, e A Criação do Mundo, de Torga, vão constituir objec-
to comparativo de dois mundos civilizacionais, no âmbito da representação cosmo-
gónica: o mundo antigo e o mundo contemporâneo. O otium e o labor desenharão
a bissectriz que iluminará a consciência do estádio evolutivo de cada mundo, na
dialéctica Homem-Natureza e Homem-Sociedade.
1. As Geórgicas, de Virgílio
Situado no âmago da História de Roma e do mundo antigo, na expectativa de
uma nova aurea aetas, com o advento messiânico de César Augusto, Virgílio evoca a
sociedade agrária sobre a qual se edifica esse mundo, formulando o objecto épico do
seu canto1 numa cardeal divisão quaternária: a agricultura (livro I)2; a silvicultura e
1
“[...] hinc canere incipiam” (Geórgicas, I, 5).
2
“Quid faciat laetas segetes” (I, 1).
3
“[...] ulmisque adiungere uitis” (I, 2).
4
“[...] quae cura boum, qui cultus habendo / sit pecori” (I, 3-4).
5
“[...] apibus quanta experientia parcis” (I, 4).
6
“Vos, o clarissima mundi / lumina, labentem caelo quae ducitis annum” ( I, 5-6).
“Liber et alma Ceres, uestro si munere tellus / Chaoniam pingui glandem mutauit arista / poculaque inuentis Acheloia
7
potentem / accipiat, [...] an deus immensi uenias maris ac tua nautae / numina sola colunt” (I, 25-28.29).
16
“[...] da facilem cursum atque audacibus adnue coeptis, / ignarosque uiae mecum miseratus agrestis / ingredere et
uotis iam nunc adsuesce uocari” (I, 40-42).
17
“Ante Iouem nulli subigebant arua coloni; / ne signare quidem aut partiri limite campum / fas erat : in medium
quaerebant ; ipsaque tellus / omnia liberius, nullo poscente, ferebat” (I, 125-128).
18
“Ille [Iuppiter] [...] ignemque remouit / […] et silicis uenis abstrusum excuderet ignem” (I, 129. 131).
19
“Nec tamen, haec cum sint hominumque boumque labores / uersando terram experti” (I, 118-119).
20
I, 121-122.
21
“Ille [Iuppiter] malum uirus serpentibus addidit atris” (I, 129).
22
“[...] praedarique lupos iussit” (I, 130).
23
“[...] pontumque moueri” (I, 130).
24
I, 45-146.
25
“Prima Ceres ferro mortalis uertere terram / instituit” (I, 147-148).
26
“[...] interque nitentia culta / infelix lolium et steriles dominantur auenae” (153-154).
27
“[...] primusque per artem / mouit agros, curis acuens mortalia corda” (I, 122-123).
28
“[...] nec torpere graui passus sua regna ueterno” (I, 124).
29
“Ac prius ignotum ferro quam scindimus aequor, / uentos et uarium caeli praediscere morem / cura sit ac patrios
cultusque habitusque locorum, / et quid quaeque ferat regio et quid quaeque recuset. / Hic segetes, illic ueniunt felicius
uuae, / arborei fetus alibi atque iniussa uirescunt / gramina” (I, 50-56).
“Nonne uides croceos ut Tmolus odores, / India mittit ebur, molles sua tura Sabaei, / at Chalybes nudi ferrum uiro-
30
42
“Possum multa tibi ueterum praecepta referrre, / ni refugis tenuisque piget cognoscere curas” (I, 176-7).
43
“Illic, ut perhibent, aut intempesta silet nox / semper et obtenta densetur nocte tenebrae, / aut redit a nobis Aurora
diemque reducit ; nosque ubi primus equis Oriens adflauit anhelis, / illic sera rubens accendit lumina Vesper” (I, 249-
251).
44
“Contemplator item, cum se nux plurima siluis / induet in florem et ramos curuabit olentis” (I, 187-8).
45
“[...] nunc te, Bache, canam, nec non siluestris tecum / uirgulta et prolem tarde crescentis oliuae” (II, 2-2).
46
“[...] diuisae arboribus patriae” (II, 116).
47
“Sola India nigrum / fert hebenum” (II, 116-7).
48
“[...] solis est turea uirga Sabaeis” (I, 117).
49
“Media fert tristis sucos tardumque saporem / felicis mali” (II, 126).
50
II, 114.
51
Cf. II, 134-139.
52
II, 149-150.
53
II, 155-157.
54
“Tyrrhenisque fretis immititur aestus Auernis?” (II, 164).
55
“Salue, magna parens frugus, Saturnia tellus, / magna uirum: tibi res antiquae laudis et artis / ingredior, sanctos ausus
recludere fontis, / Ascracumque cano Romana per oppida carmen” (II, 173-176).
“[...] haec Decios, Marios magnosque Camillos, / Scipiadas duros bello et te, maxime Caesar, / qui nunc extremis
56
Asiae iam uictor in oris / imbellem auertis Romanis arcibus Indum” (II, 169-172).
57
“Ver adeo frondi nemorum, uer utile siluis; / uere tument terrae et genitalia semina poscunt. / Tunc pater omnipotens
fecundis imbribus Aether / conjugis in gremium laetae descendit et omnis / magnus alit magno commixtus corpore
fetus. / Auia tum resonant auibus uirgulta canoris / et Venerem certis repetunt armenta diebus. / Parturit almus ager,
Zephyrique tepentibus auris / laxant arua sinus; superat tener ómnibus umor; / inque nouos soles audent se germina
tuto / credere, nec metuit surgentis pampinus Austros / aut actum caelo magnis Aquilonibus imbrem: / sed trudit gem-
mas et frondis explicat omnis. / Non alios prima crescentis origine mundi / illuxisse dies aliumue habuisse tenorem /
crediderim; uer illud erat, uer magnus agebat / orbis et hibernis parcebant flatibus Euri, / cum primae lucem pecudes
hausere uirumque / terrea progenies duris caput extulit aruis / immissaeque ferae siuis et sidera caelo. / Nec res hunc
tenerae possent perferre laborem, / si non tanta quies iret frigusque caloremque / Inter. Et exciperet caeli indulgentia
terras” (II, 323-346).
58
“Nec non Ausonii, Troia gens missa, coloni / uersibus incomptis ludunt risuque soluto, / oraque corticibus sumunt
horrenda cauatis, / et te, Bacche, uocant per carmina laeta tibique / oscilla ex alta suspendunt mollia pinu” (II, 385-
389).
59
“[...] Redit agricolis labor actus in orbem / atque in se sua per uestigia uoluitur annus. / Ac iam olim, seras posuit cum
uinea frondis / frigidus et siluis Aquilo decussit honorem, / iam tum acer curas uenientem extendit in annum / rusticus
et curuo Saturni dente relictam / persequitur uitem attondens fingitque putando” (II, 401-407).
60
II, 412.
61
“Contra non ulla est oleis cultura” (II, 420).
62
“Poma quoque, ut primum truncos sensere ualentis / et uires habuere suas, ad sidera raptim / ui propria nituntur
opisque haud indiga nostrae” (II, 426-428).
63
II, 458-460.
64
“[...] illic saltus ac lustra ferarum / et patiens operum exiguoque assueta iuuentus, / sacra deum sanctique patres;
extrema per illos / iustitia excedens terris uestigia fecit” (II, 471-473).
65
“Si non ingentem foribus domus alta superbis / mane salutantum totis uomit aedibus undam / nec uarios inhiant pul-
chra testitudine postis / inclusasque auro uestis Ephyreiaque aera, / alba neque Assyrio fucatur lana ueneno / nec casia
liquidi corrumpitur usus oliui, at secura quies et nescia fallere uita, / diues opum uariarum, at latis otia fundis, / spelun-
cae, uiuique lacus, et frigida Tempe / mugitusque boum mollesque sub arbore somni / non absunt” (II, 461-471).
66
“Me uero primum dulces omnia Musae, / quarum sacra fero ingenti percussus amore, / accipiant caelique uias et
sidera monstrent, / defctus solis uarios lunaque labores, / unde tremor terris, qua ui maria alta tumescant / obicibus
ruptis rursusque in se ipsa residant, / quid tantum Oceano properent se tingere soles / hiberni, uel quae tardis mora
noctibus obstet” (II, 475-482).
67
“Sin, has ne possim naturae accedere partis, / frigidus obstiterit circum praecordia sanguis / rura mihi et rigui place-
ant in uallibus amnes, / flumina amem siluasque inglorius. O ubi campi / Spercheosque et uirginibus bacchata Lacaenis
/ Taugeta! O qui me gelidis in uallibus Haemi / sistat et ingenti ramorum protegat umbra!” (II, 482-489).
“Felix qui potuit rerum cognoscere causas, / atque metus omnis et inexorabile fatum / subiecit pedibus strepiumque
68
bélico pintado70, sobretudo as guerras civis71, e o exílio72, contrasta com esta ideali-
zação agrária, o trabalho sem repouso do agricultor,73 a afectividade familiar74 e as
festas agrícolas em honra de Dioniso75.
Roma torna-se, assim, a mais bela maravilha do mundo: “et rerum facta est pul-
cherrima Roma / septemque una sibi muro circumdedit arces”76.
O Livro III, dedicado à pastorícia, através da invocação de Pales77, canta o
memorável pastor do Anfriso78, as florestas e rios do Liceu79. Dirigido ao leitor, que
tem o privilégio do otium80, o Livro contempla, ainda, os mitos de Euristeu81, Busí-
ris82, Hilas83, Delos84, Hipódamo85 e Pélops86, mas, principalmente, César Augusto,
deus colocado no meio do templo87, e as suas vitórias no Nilo e na Ásia88.
O poeta não deixa de se auto-referenciar, ao pretender, com a sua obra, uma
via de acesso à glória, simbolizada na coroa de oliveira, para si e para a sua bela
Mântua89.
“Sollicitant alii remis freta ruuntque / in ferrum; penetrant aulas et limina regum. / Hic petit excidiis urbem mi-
70
serosque Penatis, / ut gemma bibat et Sarrano dormiat ostro : / condit opes alius defossoque incubat auro ; hic stupet
attonitus rostris ; hunc plausus hiantem / per cuneos, geminatus enim, plebisque patrumque corripuit” (II, 503-510).
71
“[...] gaudent perfusi sanguine fratrum” (II, 510).
72
“[...] exilioque domos et dulcia limina mutant / atque alio patriam quaerunt sub sole iacentem” (II, 511-512).
73
“Agricola incuruo terram dimouit aratro: / hinc anni labor, hinc patriam paruosque nepotes / sustinet, hinc armenta
boum meritosque iuuencos; / nec requies, quin aut pomis exuberet annus / aut fetu pecorum aut Cerealis mergite culmi
/ prouentuque oneret sulcos atque horrea uineat” (II, 513-518).
74
“Interea dulces pendent circum oscula nati, / casta pudicitiam seruat domus, ubera uaccae, lacteae demittunt, pin-
guesque in gramine laeto / inter se aduersis luctantur cornibus haedi” (II, 523-526).
“Ipse dies agitat festos fusuque per herbam, / ignis ubi in medio et socii cratera coronant, / te, libans, Lenae, uocat,
75
pecorisque magistris uelocis iaculi certamina ponit in ulmo, / corpora agresti nudat praedura palaestra” (II, 527-531).
76
II, 533-535.
77
Deusa dos pastores e das pastagens: “Te quoque, magna Pales, [...] canemus” (III, 1).
78
Rio da Tessália: “[...] et te, memorande, canemus, / pastor ab Amphryso” (III, 1-2).
79
Monte da Arcádia, consagrado a Pã “[...] uos, siluae, amnesque Lycaei” (III, 2).
80
“[...] quae uacuas tenuissent carmine mentes” (III, 3).
81
Rei de Micenas: “[...] Eurysthea durum” (III, 4).
82
Rei do Egipto: “[...] inlaudati [...] Busidiris”” (III, 5).
83
Companheiro de Héracles, raptado pelas ninfas, seduzidas pela sua beleza: “Hylas puer” (III, 6).
84
Ilha de Latona, mãe de Apolo e Ártemis: [...] et Latonia Delos”.
85
Filha de Enómao e mulher de Pélops: “Hyppodameque” (III, 7).
86
Filho de Tântalo, que o pai mandara servir aos deuses num banquete, sendo por eles restituído à vida: “[...] umeroque
Pelops insignis eburno, acer equis” (III, 7-8).
87
“In medio mihi Caesar erit templumque tenebit” (III, 16).
88
“In foribus pugnam ex auro solidoque elephanto / Gangaridum faciam uictorisque arma Quirini / atque hic undan-
tem bello magnumque fluentem / Nilum ac nauali surgentis aere columnas. Addam urbes Asiae domitas pulsumque
Niphaten / fidentemque fuga Parthum uersisque sagittis / et duo rapta manu diuerso ex hoste tropaca / bisque trium-
phatas utroque ab litore gentis (III, 26-33). Mox tamen ardentis accingar dicere pugnas / Caesaris et nomen fama tot
ferre per annos, / Tithoni prima quot abest ab origine Caesar” (III, 46-48).
89
“Temptanda uia est, qua me quoque possim / tollere humo uictorque uirum uolitare per ora. / Primus ego in patriam
mecum, modo uita supersit, / Aonio rediens deducam uertice Musas; / primus Idumaeas referam tibi, Mantua, palmas;
/ et uiridi in campo templum de marmore ponam / propter aquam, tardis ingens ubi flexibus errat / Mincius et tenera
praetexit harundine ripas (III, 8-15). Ipse caput tonsae foliis ornatus oliuae / dona feram” (III, 21-22).
90
“Interea Dryadum siluas saltusque sequamur / intactos, tua, Maecenas, haud mollia iussa” (III, 40-41).
“Te sine nil altum mens incohat. En age, segnis / rumpe moras; uocat ingenti clamore Citaeron / Taugetique canes
91
domitrixque Epidaurus equorum; / et uox adsensu nemorum ingeminata remugit” (III, 42-45).
92
“Optima quaeque dies miseris mortalibus aeui / prima fugit; subeunt morbi tristisque senectus / et labor, et durae
rapit inclementia mortis” (III, 66-68).
93
“Omne adeo genus in terris hominumque ferarumque / et genus aequoreum, pecudes pictaeque uolucres / in furias
ignemque ruont: amor omnibus idem” (III, 242-244).
94
“Quid juuenis, magnum cui uersat in ossibus ignem / durus amor?” (III, 258-259).
95
III, 284-285.
96
“Interea toto non setius aere ningit [...]. Ipsi in defossis specubus secura sub alta / otia agunt terra congestaque robora
totasque / aduoluere focis ulmos ignique dedere” (III, 367. 376-378).
97
“Hic noctem ludo ducunt et pocula laeti / fermento atque acidis imitantur uitea sorbis” (III, 379-380).
98
“It tristis arator / maerentem abiungens fraterna morte iuueneum / atque opere im medio defixa relinquit aratra. /
Non umbrae altorum nemorum, non mollia possunt / prata mouere animum, non qui per saxa uolutus / purior electro
campum petit amnis; at ima / soluontur latera atque oculos stupor urget inertis / ad terramque fluit deuexo pondere
ceruix” (III, 517-524).
99
L. III, 525-526.
100
“Protinus acrii mellis caelestia dona / exsequar” (IV, 1).
“Admiranda tibi leuium spectacula rerum, / magnanimosque duces totiusque ordine gentis / mores et studia et
101
“Sin autem ad pugnam exierint nam saepe duobus / regibus incessit magno discordia motu; / continuoque animos
102
uogi et trepidantia bello / corda licet longe praesciscere; / namque morantis / Martius ille aeris rauci canor increpat, et
uox / auditur fractos sonitus imitata tubarum; / tum trepidae inter se coeunt, pinnisque coruscant / spiculaque axacuunt
rostris aptantque lacertos / et circa regem atque ipsa ad praetoria densae / miscentur magnisque uocant clamoribus
hostem” (IV, 67-76).
103
“Verum, ubi ductores acie reuocaueris ambo, / deterior qui uisus, eum, ne prodigus obsit, / dede neci; melior uacua
sine regnet in aula” (IV, 88-90).
104
“Solae communis natos, consortia tecta / urbis habent magnisque agitant sub legibus aeuom / et patriam solae et
certos nouere Penatis / uenturaeque hiemis memores aestate laborem / experiuntur et in medium quesita reponunt”
(IV, 153-157).
“Namque aliae uictu inuigilant et foedere pacto / exercentur agris; pars intra saepta domorum / narcissi lacrimam et
105
lentum de cortice gluten / prima fauis ponunt fundamina, deinde tenacis / suspedunt ceras; aliae spem gentis adultos /
educunt fetus; aliae purissima mella / stipant et liquido distendunt nectare cellas” (IV, 158-164).
106
“Aut ueluti lentis Cyclopes fulmina massis / cum properant, alii taurinis follibus auras accipiunt redduntque, alii
stridentia tingunt / aera lacu; gemit impositis incudibus antrum; / illi inter sese magna ui bracchia tollunt / in numerum
uersantque tenaci forcipe ferrum: / non aliter (si parua licet componere magnis) / Cecropias innatus apes amor urget
habendi, / munere quamque suo” (IV, 170-178).
107
“Omnibus una quies operum, labor omnibus unus: / mane ruont portis; nusquam mora; rursus easdem / uesper
ubi e pastu tandem decedere campis / admonuit, dum tecta petunt, tum corpora curant; fit sonibus, mussantque oras
et limina circum. / Post, ubi iam thalamis se composuere, siletur / in noctem, fessosque sopor suos occupat artus” (IV,
184-190).
“Praeterea regem non sic Aegyptus et ingens / Lydia nec populi Parthorum aut Medus Hydaspes / obseruant. Rege
108
corpora bello / obiectant pulchramque petunt per uolnera mortem” (IV, 215-218).
110
“Ille operum custos” (IV, 215).
“[...] deum namque ire per omnis / terrasque tractusque maris caelumque profundum: / hinc pecudes, armenta,
111
uiros, genus omne ferarum, / quemque sibi tenuis nascentem arcessere uitas” (IV, 221-224).
112
“[...] scilicet huc reddi deinde ac resoluta referri / omnia, nec morti esse locum, sed uiua uolare / sideris in numerum
atque alto succedere caelo” (IV, 225-227).
“His quidam signis atque haec exempla secuti / esse apibus partem diuinae mentis et haustus / aetherios dixere” (IV,
113
219-221).
114
“Atque equidem, extremo ni iam sub fine laborum / uela traham et terris festinem aduertere proram, / forsitan et,
pinguis hortos quae cura colendi / ornaret, canerem biferique rosaria Paesti, / quoque modo potis gauderent intiba riuis
opes animis, seraque reuertens / nocte domum dapibus mensas onerabat inemptis. / Primus uere rosam atque autumno
carpere poma; / et, cum tristis hiems etiamnum frigore saxa / rumperet et glacie cursus frenaret aquarum, / ille comam
mollis iam tondebat hyacinthi / aestatem increpitans seram Zephyrosque morantis” (IV, 130-138).
116
“Haec super aruorum cultu pecorumque canebam / et super arboribus, Caesar dum magnus ad altum / fulminat
Euphratem bello uictorque uolentis / per populos dat iura uiamque affectat Olympo” (IV, 559-562).
117
“Illo Vergilium me tempore dulcis alebat / Parthenope studiis florentem ignobilis oti / carmina qui lusi pastorum
audaxque iuuenta” (IV, 563-565).
118
“Tytire, te patulae cecini sub tegmine fagi” (IV, 566).
“Todos nós criamos o mundo à nossa medida. [...] O mundo simples dos simples e o complexo dos complicados”
119
(Miguel Torga, Prefácio à tradução francesa d’ A Criação do Mundo, Julho de 1984, p. 5).
120
“[...] crónica, romance, memorial, testamento -, tu dirás, depois da última página voltada, se valeu a pena ser visi-
tado” (Ib).
121
Ib.
122
“Tomou o Senhor Deus ao homem e pô-lo no paraíso de delícias” (A Criação do Mundo, Lisboa, C.L., 2001, p. 15).
123
“Ó escolas, semeai!...” (Ib.).
“Homem, olha que és terra! / Lembra-te que hás-de morrer! / Que hás-de dar uma estrita conta a Deus / Do teu bom
124
Maria Cavaca, na cava das vinhas125. O mundo rural, com toda a sua sensualidade,
regurgita nas festas, como a do São João das Fontainhas126.
A terra natal, Agarez, “oásis assinalado por copa de negrilho” no “mapa on-
dulado” que se estendia na descida para Vila Real, prendia o sujeito da escrita e
da narração “à condenação da enxada”, como na Bíblia127, no conservantismo das
coisas e dos acontecimentos128. O regresso a esse espaço, após uma experiência de
ausência no Porto, permite redescobrir os prazeres autênticos, como o das comidas
familiares, e o reencontro com as pessoas conhecidas129.
O Segundo Dia, marcado pela adolescência, amplia os horizontes europeus do
sujeito ao tropicalismo brasileiro, com toda a sua riqueza pletórica, na vasta extensão
dos cafezais, dos canaviais, dos arrozais, da mata virgem, do capim, das manadas de
gado, da usina, do alambique, do afro-brasileiro130. Esta “pujança tropical”131 não só
espantava o recém-chegado132, como lhe acelerava o crescimento físico e psicológi-
co133. Em contraste, porém, com a prosperidade da fazenda agrícola134, as carências
do adolescente acentuavam o cansaço do trabalho físico135. Após cinco anos de
“O coro da Maria Cavaca [...] cheirava a pólen e acicatava apenas os instintos. Assim como havia comidas próprias
125
para cada serviço sopas de mel e vinho nas malhadas, torresmos com batatas a nadar em pingo nas podas -, também em
cada um se cantava ou reinava de sua maneira. Nas segadas, já se sabia: – Aqui d el rei! / – Que tens? / – Cortei-me na
mão da ceitoira... / – Quem te cura? / – Pedra dura. / Quem te ama? / – A Mariana. / – Quem leva o burro?” (Ib.).
“O São João das Fontainhas encheu-me o coração e os sentidos. Nenhum arraial a que tinha assistido até ali se lhe
126
comparava. Bailes, manjericos, gente aos encontrões... Até tascas havia! (Ib., p. 45).
127
“Comerás o pão com o suor do teu rosto” (Gén.3, 19).
128
“Em casa nada mudara. A mesma pobreza, a mesma fuligem, o mesmo caldo. As galinhas esgadanhavam no quin-
teiro, o porco grunhia no cortelho, a burra roncava na loja” (Id., p. 47).
129
“Mas a minha saudade tornava surpreendente cada reencontro. As comidas outrora enjoadas sabiam-me bem, ouvia
chiar um carro à porta a vê-lo passar, queria saber de tudo e de todos” (Ib.)
130
“Mas a visão alargou-se, pouco depois. Havia ainda quilómetros e quilómetros de cafezais, encostas plantadas de
cana-de-açúcar, várzeas cobertas de arrozais, extensões enormes de mata virgem (porque o que eu vira eram simples
capoeirões), montes e montes cobertos de capim, onde pastavam grandes manadas de gado, o engenho, a usina, o alam-
bique, um rio do tamanho do Corgo e pretos e pretas a torto e direito. A seguir, meu tio, que me mostrava a fazenda,
ia vendo, ouvindo e fixando nomes. Inhame, mandioca, quiabo, manga, abacaxi, jacarandá, tucano, araponga... Nada
do que aprendera em Agarez servia ali. Nem os ninhos eram iguais. Alguns, suspensos das árvores, pareciam lampiões
pendurados. Os pássaros cantavam doutra maneira, os frutos tinham outro gosto, e, onde menos se esperava, havia
cobras disfarçadas, enormes, bonitas, sempre de cabeça no ar, à espera” (Ib., p. 76).
131
Ib., p. 90.
“Mal podia acreditar que nascesse e crescesse milho assim cultivado, de mais a mais quatro pés juntos, sem sacha,
132
nem rega. E que cada um desse três ou mais espigas. Toda a gente, porém, garantia que sim, e, se o diziam, devia ser
verdade (Ib., p. 77). Flores que o senhor Valadares nem sonhava, crescia por toda a parte aos montes, sem ninguém as
olhar; ao pé do tamanho dos jacarandás, coitado do negrilho! Em vez das leiras, fazendas. Quatro ou cinco juntas de
bois a puxar a um carro!” (Ib., p. 78).
133
“Mas enquanto que o corpo se desenvolvia em tamanho todos os dias tinha a impressão de não caber na roupa
-, a alma apenas medrava em amargura. Amargura de me sentir injustamente odiado por minha tia, de ser como um
estranho para meu tio, de viver aperreado no seio da liberdade” (Ib., p. 90).
“A fazenda ia de vento em popa. Os velhos cafezais, capinados, pareciam outros; os novos, já plantados por nós, dava
134
gosto vê-los; os pastos limpos, estavam cobertos de gado; nos canaviais mal se rompia; as roças verdejavam, semeadas de
milho; os porcos engordavam no chiqueiro” (Ib.).
135
“E eu sequioso de ternura, sem a receber, comido de desejos, sem os satisfazer, moído de trabalho, sem uma palavra
de aplauso” (Ib.).
magoada, negava-se a cobrir de saudades prematuras esse chão já só vislumbrado, esquecido de que não guardava apenas
dele imagens tristes” (Ib., p. 141).
“Foi um alívio quando recebi carta de meu tio a anunciar a partida. Pouco ou nada me prendia mais àquela pequena
137
cidade [Ribeirão], cheia de sol, com os seus cedros velhos no Jardim Público, o seu Ginásio de dois andares, e o seu enge-
nho de café na Rua Afonso Pena. Vivera nela o tempo possível da ilusão. O espírito que ia do desespero cego à esperança
lúcida. A minha inquietação já não cabia ali” (Ib., p. 129).
138
“Tinha fome de ser como aquele rio, que de novo corria ao lado, livre, forte e caudaloso, levando apenas à tona
outros troféus: os dentes postiços de minha tia, que me mordiam, e o seu vestido de folhas, que me envergonhava” (Ib.,
p. 135).
“Poucos progressos fizera em relação às musas. Em Ribeirão imitava Casimiro de Abreu; agora, lido, arremedava
139
Antero. Do pé para a mão, saíam-me catorze decassílabos filosóficos, que até o inferno tremia” (Ib., p. 170).
140
“Mal abandonara a Vanguarda, fundara uma revista independente, Facho, que morreu ao nascer. As boas intenções
de fazer dela um farol de nova luz não bastaram. Sobrestimara as próprias forças. Pudera discordar das antigas compa-
nhias, tivera a coragem de abandonar o movimento e arrastar com todas as consequências, mas faltava-nos a voz para
dizer aonde queria ir. E falhei. [...] Com o tempo, porém, fui aprendendo a formular mais claramente o que ali apenas
soubera balbuciar, arranjei colaboradores, e consegui lançar outra folha, Trajecto, que eu dirigia, mas a que o Gonçalo
e o André estavam também intimamente ligados” (Ib., pp. 227-228).
141
“E os dois homens opostos viviam dentro de mim. O campónio de Agarez, a caminho da formatura, pragmático,
acautelado, instintivamente necessitado de prolongar a espécie; e o poeta, sedento de absoluto, inconformado com a
precariedade das coisas terrenas, insocial e rebelde. Igualmente poderosas, as duas forças exigiam igual aceitação” (Ib.,
p. 186).
142
“Queríamos uma arte rebelde, enraizada no circunstancial. A Vanguarda nunca valorizara suficientemente a realida-
de. O velho mundo burguês, abalado nas estruturas, estrebuchava nas vascas da agonia, desenhavam-se além-fronteiras
num subjectivismo macerador. Essa pertinaz atitude introspectiva diminuía o alcance do esforço renovador que empre-
endera, de que sentia legítimo orgulho, mas que só esteticamente dera frutos positivos” (Ib., p. 229).
143
“Sabíamos que mergulhar de mais a pena nessa tinta rubra implicava alguns riscos. De tanto reclamar justiça, a
voz solidária acabaria por ser monótona. Uma página de prosa a enumerar misérias obstinadamente, redundaria num
fastidioso relatório. E, em vez de poemas e romances, teríamos panfletos ou reportagens. Sacrificar o individualismo
criador no altar colectivo, era apagar na terra a chama da singularidade e do imprevisto. Por isso, procurávamos um
caminho de liberdade assumida, onde nem o homem fosse traído, nem o artista negado.” (Ib.). “Até nisso Trajecto fora
uma revista aberta e generosa. [...] Como eles, queria uma arte enraizada na sociedade, se em verdade havia alguma que
o não estivesse. Exigia, no entanto, que nenhuma realidade, por mais premente, esmagasse o artista e o privasse da li-
berdade criadora. Individualista impenitente, opunha-me ao controlo colectivo, à negociação do variado e do múltiplo”
(Ib., p. 246).
144
“Herdara de meu Pai o sentimento de fazer bem feitas todas as coisas em que me metesse. De maneira que trabalhava
a valer. Repetia as tentações do sono às horas dele, e abria mastóides na morgue, em vez de atender as musas” (Ib.).
145
Ia descobrindo, de resto, algumas novidades naquele pequeno território médico. O drama murado da surdez, por
exemplo, - um dos pesados tributos que o homem desta civilização de ruídos traumatizantes teria de pagar ao futuro.
Até ali, era a cegueira que eu julgava a suprema clausura humana, longe de supor que havia ainda outra pior: a perda da
audição. Só agora avaliava em toda a medida a solidão de uma criatura sem diálogo possível” (Ib., p. 247).
146
“Por que não poderia o poeta ficar ali, naquela terra de artistas, a polir a alma e o entendimento? Por que não renegava
ele os companheiros analfabetos, os pais analfabetos, a pátria analfabeta, e nascia de novo num sítio do mundo onde as
próprias raízes mergulhavam em túmulos etruscos?” (Ib., p. 295).
147
“Já a rodar em terras alpinas, nem a própria grandiosidade da paisagem, agora duma dignidade inacessível monta-
nhas coroadas de neve debruçadas sobre a limpidez dos lagos adormecidos -, os erguia da rasteira pequenez habitual. Por
ali tinham passado os Césares de todas as idades, sem que o tropel dessas glórias perturbasse a quietude dos píncaros e
das águas. Deixa oportuna para uma fácil meditação, onde a cegueira do poder, as artimanhas da cobiça, a indecência
do oportunismo e todas as formas da degradação humana ouvissem a reprovação da consciência” (Ib., p. 302).
148
“À noite, quando nos encontrávamos no hotel e desfiavam o rosário de deslumbramentos, ia comparando aquela
Paris de ida e volta com o que nela viviam desterrados. E ficavam-me na mão duas realidades opostas: uma feérica, outra
funérea. Uma de fruições, outra de penitências” (Ib., p. 320).
149
“Faltava-me o dicionário da terra, a gramática da paisagem, o Espírito Santo do povo. Além de que é preciso pagar
a liberdade. E a minha está lá. Aqui, tenho quase a certeza de que nunca passaria de um enraizado lírico revolucionário
de má consciência” (Ib., p. 327).
150
“E foi então, quando naquele cenário romântico a fervilhar de mocidade, a cabra a lembrar as aulas, que o velho
mestre, numa melancolia súbita, que o álcool possivelmente favorecera, escancarou as portas da alma, que o pudor mal
deixara entreabrir no dia do nosso primeiro encontro. Para além da amargura do desterro, havia uma outra razão de
sofrimento, mais cruciante ainda: o estar divorciado dos seus alunos, a falta do calor de gerações sucessivas, que se lhe
revezassem nos olhos e no coração. E falou da alegria de ensinar, da aventura de cada lição, do jogo apaixonante e diá-
rio de atracções espontâneas e repulsões vencidas, de telepatias naturais ou conquistadas entre a cátedra e as carteiras.
Investigar, sim, mas para alimentar a fome de cada nova leva de curiosidades, para maior poder de comunicação com
a avidez que o interrogava. O amor à ciência, evidentemente, mas por amor a quem vinha procurá-la, por intenção de
quem o pedia...” (Ib., p. 328).
“Porque não seguira o conselho do Tavares? Ficava, e, em vez de pegar estaca em Paris, ia juntar-me a outros poetas
151
que cantavam e combatiam nas trincheiras de Madrid, a Spender, a Machado, a Hernández, a Alberti. Se morresse,
morreria dignamente, a bater-me por um ideal; se sobrevivesse, teria pela existência fora a paz do dever cumprido” (Ib.,
p. 337).
152
“Foi nessa terra [Leiria], assim discretamente entendida como chão sagrado de amor e de prova, que me dispus a
continuar, com redobrada aplicação, o exercício de curar e o suplício de escrever, sem ilusões de qualquer ordem quanto
às aplicações, quanto às dificuldades da empresa. O ambiente político, que se tornara asfixiante, estrangulava todas as
independências e desiludia as mais firmes determinações. [...] A trabalhar como trabalhava durante o dia a ver doentes
e parte da noite agarrado aos livros -, em poucos meses estaria apto a usar honestamente o espéculo e o bisturi. Quanto
à caneta, se não vinha mais aparada da viagem, trazia pelo menos outra humildade. Em face de alguns exemplos cru-
ciantes, ficara a saber que é lento e penoso o caminho da arte, e que nele só o esforço aturado conta verdadeiramente”
(Ib., pp. 346-347).
153
“A verdade, porém, é que os doentes, quando procuravam um médico, não queriam encontrar um homem, mas um
taumaturgo. Inquietações, dúvidas, terrores traziam-nos eles. E de nenhum modo entendiam que o semideus se des-
mentisse. Condenavam-no tanto pela incerteza confessada como por uma certeza inconfirmada. Se dizia morre, tinha
de morrer; se dizia vive, tinha de viver. A esperança tem uma vertente irracional. Incapaz de distinguir a clarividência
clínica da vidência bruxa, o enfermo vincula o médico indelevelmente à fama do primeiro êxito ou do primeiro fracasso”
(Ib., pp. 356-367).
“Obcecado pela linguagem escrita, monólogo gráfico esperançado apenas na réplica mental de hipotéticos leitores,
154
quase que me esquecera de reparar no milagre da oralidade, da comunicação directa, franca, livre, sem ambições qui-
méricas de antologia e perenidade. A palavra temperada pelo sal da boca, arredondada pela graça labial, ágil ou morosa
consoante a urgência da oralidade, e sempre ajudada pela presença e atenção dos ouvintes. [...] E aí estava eu metido na
pele dum simples narrador, Xerazade masculino, a encher o vazio das horas, a dar voz à mudez das coisas. [...] Embora de
longa data advogasse uma arte viva, onde a circunstância palpitasse significativamente em cada linha, uma arte inserida
no contexto temporal, empenhada, sem deixar por isso de ser arte e ser livre, só agora tentava dar expressão plena a este
propósito” (Ib., p. 369.373).
155
“Em nenhuma outra de Portugal era tão indecisa a fronteira entre o urbano e o campestre. As vinhas e os prados
entravam por ela dentro numa fusão natural. De qualquer miradouro que se olhasse, viam-se telhados e copas, calçadas
e feno. As veigas do Liz cercavam-na dum lado, e os do Lena do outro. No meio, campanários, chaminés e outeiros
granjeados. Daí talvez a circunstância feliz de o bucólico de 600 [Rodrigues Lobo] e de o mordaz oitocentista [Eça de
Queirós] poderem sentir com igual intensidade, a respirar-lhe os ares, a frescura das brisas pastoris e o mormaço das
paixões humanas” (Ib., p. 354).
156
“Tudo no seu [Agarez] tinha concretização. Deus estava presente na hóstia, a Primavera nos renovos, o amor na arca
do bragal. Não havia domingo sem missa, festa sem foguetes, entrudo sem orelheira. [...] Necessitado de contemplar
de tempos a tempos o cenário da meninice, de provar os frutos da terra e beber água da fonte, de ouvir o sino dobrar e
repicar, de me sentar à lareira paterna e de sentir nos ombros o peso da ancestralidade, nos intervalos, às vezes longos
e atribulados, bastava-me uma comunhão telepática, a certeza íntima de trazer o selo da origem impresso no barro da
carne” (Ib., p. 374).
“O homem só se descobre a descobrir. E descobria até que ponto ele é capaz de reverter a seu favor os próprios malefí-
157
cios da desgraça. Em vez de me deixar destruir pela força da agressão, surpreendia-me a desviar a brutalidade da energia
desencadeada contra mim no exame minucioso das minhas íntimas reacções, exacerbadas pela acuidade reforçada dos
sentidos acossados. [...] A verticalidade de meu Pai dera-me a medida do homem: um ser em que toda a grandeza conce-
bível tinha a obrigação de se reflectir. [...] Um veleiro sueco veio lançar ferro mesmo no centro da minha retina. Depois
de grandes esforços, consegui ler-lhe o nome: Ariane. E pus-me a transfigurar o barco na filha de Minos, enquanto eu
próprio, Teseu dentro do labirinto, sonhava receber dela o fio libertador. [...] Não seria que no mundo de hoje, onde o
trabalho está dissociado da vocação, o homem arrasta os dias num compromisso equívoco, a protelar o advento da sua
boa hora, sem iniciativa, sem alternativa e sem protesto, até que o hábito dá com ele impotente e conformado?” (Ib., pp.
393. 404. 431. 436).
158
“E, quase sem eu dar conta, quando fui a ver, ao lado desse livro aplicadamente descoberto, tinha outro ludicamente
inventado, onde uma fauna estranha se movia a cumprir com romanesca naturalidade as leis da vida e da morte. A ideia
de o escrever ocorrera-me nos tempos do Aljube, quando, fascinado, passava horas infindas a contemplar os jogos amo-
rosos das pombas nos telhados da Sé. Afinal, a ternura, como os demais sentimentos, era património comum de toda
a Criação... E lembrei-me de fazer uma surtida no misterioso mundo dos irracionais. [...] Acostumado à insinceridade
humana, o espírito tropeçava na sinceridade animal” (Ib., p. 460).
159
“Cada vez mais sensível à pulsação natural da vida, observava os Velhos cheio de curiosidade e respeito. [...] A passear
pela veiga fora ao lado de Jeanne, quase que sentia tangível essa verdade polarizadora. Havia não sei que força latente a
comandar o ritmo vital que nos rodeava. Cada astro a seguir a sua trajectória, cada bicho a obedecer submisso à sua lua,
cada árvore a florir pontualmente na sua primavera” (Ib., pp. 461. 462).
160
“Quanto oiro fino incrustado no cascalho grosseiro! Quanta solidariedade sem retórica na malga do caldo estendida
caridosamente a uma boca faminta! Quanta riqueza de sentimentos, numa palavra piedosa gemida ao pé do sofrimento
alheio. E rendia-me, contrito, àquela ligação de humanidade, que só agora entendia na justa medida. Ele, masculino, a
assumir de manhã à noite toda a carga de responsabilidades. As suas e as da comunidade. A repartir salomonicamente
as águas de regadio, a festejar com fé singela a Senhora do amparo, a presidir revestido de autoridade ao conselho do
povo. Ela, feminina, a borboletear à sua volta, de engaço, roca ou seitoira na mão. Ambos certos no mundo, que parecia
ter ali o centro físico e metafísico” (Ib.).
161
Cf. Geórgicas, III, 284 s. O destino fizera de mim um nó cego de angústias, sempre apertado, mesmo nos velhos
momentos. Insatisfeito ao cabo de todas as realizações, obcecado pela fuga do tempo, rolado como um seixo na torrente
dos dias, nenhuma hora me sabia ao gosto sonhado (Ib., p. 462).
“Em equilíbrio perfeito com as forças da natureza, [meu Pai] sabia até onde podia ir em cada gesto e em cada ac-
162
ção. Sentia o cansaço das leiras, como o seu próprio. E só faltava repartir com elas o almoço e o jantar quando as via
enfraquecidas. Lia nos astros melhor do que eu nos livros. Movia-se no mundo na paz de quem o entendia de todas as
maneiras. Talvez por isso, não tinha medo de o deixar, como minha Mãe. Dava a impressão de caminhar para a sepul-
tura com urbanidade” (Ib., p. 465).
163
“O meu projecto de vida sempre fora o mesmo: cumprir-me. Ser como homem uma autenticidade tácita e como
artista uma aflição expressa. Nada mais. Por isso, temia igualmente a dissolução passiva na sociedade e a integração
activa nele” (Ib., p. 471).
“[Meu Pai] Sabia que desde Camões não havia poetas felizes. Por isso, a sua preocupação não era contra a poesia, mas
164
[de Coimbra], a testemunhar ao vivo pelo ano fora o desenrolar das estações. Primeiro, o sono das seivas, surdo e cego a
todas as invernias; a seguir, cada pálpebra semiaberta, a espreitar curiosa a luz primaveril; depois, o esplendor impudico
das folhas e das flores estivais; por fim, a grande icterícia romântica do Outono” (Ib., p. 473).
166
“Desde menino que tinha um sentido agónico, cada dia, cada hora, cada minuto. À espera da morte.” (Ib., p. 489).
“Mas diante das grandes ruínas é que via claramente como eram vãos os sonhos de qualquer perenidade. Apesar de
167
tudo. Tirava da peregrinação um ensinamento: embora precária, só a arte valia realmente a pena. As instituições passa-
vam, os impérios ruíam, e apenas ela durava, se não no seu esplendor original, ao menos amparada, remendada, copiada
pela devoção dos homens” (Ib.)
“O mundo parecia-me vazio, espectral, sem sentido. Nada nele me apetecia. Nem a comida, nem o ar que respirava.
168
A minha natureza profunda sentia-se abalada nas raízes. Era um sentimento de catástrofe para além de toda a com-
preensão. Faltava-me agora não sei que justificação primordial. [...] Os gados necessitavam de ser alimentados, as leiras
de ser cavadas, os frutos de ser colhidos. [...] A morte batera pela primeira vez à minha porta. [...] Agora a mão sinistra
tocara carne de que eu era carne. Sabia que nunca mais voltaria a ser o mesmo. Fora atravessado por um relâmpago
negro” (Ib., p. 502).
169
“A Primavera estava no seu esplendor. A azálea amarela, à entrada do portão, parecia um sol vegetal. Os lilases
enchiam o ar de perfume quente. As glicínias caíam em festões do muro do quintal. Nos campos, em aleluia também,
as papoilas sorriam e as espigas ondulavam. E era através deste festival cósmico que o cortejo avançava, moroso, em
direcção ao cemitério” (Ib.).
170
“Esse sentimento profundo do nada irremediável a que o homem estava condenado, velho em mim, tornou-se obsi-
diante a partir daí, e agravava a visão pessimista do mundo, que sempre tivera, e que a aparência voluntariosa disfarçava.
Costumava dizer que era um homem de esperança desesperançado” (Ib., p. 503).
171
“Continuava cada vez mais convencido de que o homem, embora condenado a um destino social, começava por ser
um indivíduo. Dizia-mo o entendimento e mostrava-mo diariamente a prática médica. Anos e anos de experiência clíni-
ca tinham-me ensinado a ver sempre em cada criatura a solidão irremediável que ela é nos momentos cruciais. Nascia-se
sozinho, sofria-se sozinho, morria-se sozinho, por muito amor e solidariedade que houvesse no mundo. [...] Simplesmen-
te, a nossa tragédia era tal que nunca o bálsamo de que dispúnhamos chegava à fundura das feridas” (Ib., p. 528).
172
“Por mondas sucessivas, a minha vida ia-se estremando. A lei das Parcas, os desentendimentos e as circunstâncias
reduziam-na pouco a pouco a uma essencialidade tendinosa. O supérfluo banido dos livros, as relações expurgadas dos
entusiasmos pueris. Antecipava-me às desilusões agindo em qualquer ilusão. O desaparecimento do velho [Pai] como
que clarificara de repente a realidade a meus olhos. Encarava as coisas e as pessoas com outra lucidez. Tinha a impressão
de convalescer de uma grande doença” (Ib., p. 530).
173
“Quisesse ou não quisesse, durasse o que durasse, tudo estava consumado. [...] Sem direito ao amor e à inspiração,
despojado de ambições e a redoirar a esperança à sobreposse, nem a lição de Agarez, a cavar por descargo de consciência,
a costeira maninha das courelas, me podia valer. De ora em diante, como lenitivo, só o cilício cruciante da meditação.
Sim, a vida ia continuar. Outros dias viriam cheios de sol, de flores e de frutos. Mas não seriam meus” (Ib., p. 561).
Conclusão
Separados no tempo e no espaço, Virgílio e Torga, convergem, todavia, na cele-
bração épico-lírica da terra mater, espaço económico e ecológico, natural e cultural,
objecto de intervenção dos deuses e dos homens, de trabalho e de lazer.
Ambos celebram a criação do mundo, a transição do caos para o cosmo, como
arquétipo da acção humana. Mas, enquanto o primeiro concede o primado das
atenções ao objecto descrito, predominantemente exterior ao sujeito da escrita, o
segundo representa-se narcisicamente como centro do mundo.
Ambos reflectem sobre a condição humana, na sua envolvência ecológica, ambos
caracterizam a identidade cultural dos povos de que se ocupam, ambos manifestam
motivações de carácter didáctico-pedagógico, embora o segundo, mais embaraçado
nas teias do pessimismo, transmita a imagem de um mundo menos luminoso.
Produtos estéticos de uma determinada cosmovisão, à escala dos respectivos
parâmetros subjectivos e espácio-temporais, as Geórgicas de Virgílio e A Criação
do Mundo de Torga, moldadas em diferentes formas de expressão literária, um em
poesia, outro em prosa, ultrapassam, cada qual à sua medida, as limitações culturais
das respectivas épocas, para se projectarem na transtemporalidade das obras-primas
da Humanidade.
E sta comunicação irá apresentar dois tipos de problemas que se colocam ao tra-
dutor português de Platão, no que respeita a ambiguidades, e que lhe dificul-
tam a tarefa, pois se traduzir é «dizer quase a mesma coisa»1, não é, efectivamente,
a mesma coisa: «quase» faz toda a diferença.
O primeiro problema que analisaremos é o levantado pelo verbo eimi, um dos
mais complexos verbos da língua grega 2. Na realidade, um filólogo não fica emba-
raçado perante einai, que pode traduzir, consoante os contextos, por ser, estar ou
existir, obtendo, deste modo, uma frase inteligível e facilmente compreendida na
nossa língua. Apenas não daria conta das ambiguidades que o verbo tinha para
quem o ouvia e para quem o usava no séc. V a.C.
O segundo problema resulta do facto de, em Grego, a função das palavras nas
frases ser determinada pelo caso e não pelo lugar que nelas ocupam, tornando, as-
sim, algumas anfibologias difíceis de transpor.
Em textos filosóficos, nomeadamente em Platão e, neste caso específico, no
Eutidemo3, o tradutor terá que se aperceber destes sentidos e tentar que o leitor mo-
derno consiga apreender a variedade que o texto lhe apresenta4.
Se assim não fosse, as graças (e graçolas) que se podem ler no diálogo que ele-
gemos não teriam provocado as reacções que o autor descreve: os que ouviam os
sofistas a argumentar «quase morriam de satisfação, a rir e a bater palmas!» e que
«pouco faltou para que também as colunas do Liceu aplaudissem e se regozijassem»
(303b).
Vejamos um primeiro exemplo (283b-d). Clínias, um jovem amigo de Sócrates,
está a ser interrogado pelos irmãos Eutidemo e Dionisodoro (que se dizem sabedo-
res de tudo e tudo poderem ensinar). Estes perguntam a Sócrates e a Ctesipo, outro
jovem, amigo de Clínias:
«–Diz-me tu, Sócrates» disse ele «e vocês também, vocês que dizem desejar
que este jovem se torne (genesthai) sábio, estão a dizê-lo por brincadeira, ou
desejam-no de verdade e com seriedade?»
1
Umberto Eco, 2005, Dizer Quase a Mesma Coisa. Sobre a Tradução. Lisboa, Difel.
2
Charles H. Kahn, 2003, The Verb «Be» in Ancient Greek (with a new introductory essay), Indianapolis. Hackett.
3
A tradução usada é a da nossa autoria, publicada na Imprensa Nacional-Casa da Moeda, em 1999.
4
Esta parte da comunicação tem um carácter demonstrativo, fazendo contraponto com a apresentada por José Trindade
Santos, «Falácias, antíteses e paradoxos em torno de ser e existir».
« – Ora bem» - disse ele - «pelo que afirmam, vocês pretendem que ele se
torne sábio?»
« – Absolutamente.»
« – E neste momento» continuou «Clínias é sábio ou não?»
« – Ele diz que não, mas não é de se gabar» respondi.
« – E vocês» prosseguiu «desejam que ele se torne (genesthai) sábio, e que não
seja (einai) ignorante?»
Confirmámos.
« – Portanto, querem que ele se torne no que não é (ouk estin), e que deixe de
ser (meketi einai) o que é agora (esti nun).»
Ao ouvir isto, fiquei perturbado, mas ele continuou apesar da minha per-
turbação.
e disse:
« – Logo, se o que desejam é que ele deixe de ser quem é agora, o vosso desejo,
ao que parece, é que ele morra.»
« – As coisas que não são, são alguma outra coisa, ou não são?»
« – Não são.»
« – Então não há nenhum lugar onde as coisas que não são sejam?»
« – Nenhum lugar.»
« – E será possível alguém agir sobre coisas que não são, de modo a que,
quem quer que seja, produza essas coisas que não são em lado nenhum?»
« – Penso que não» disse Ctesipo.
« – Ora bem, quando os oradores falam ao povo, não estão a agir?»
« – Sim, estão» concordou.
« – Portanto, se agem também produzem?»
« – Sim.»
« – Falar é, então, agir e produzir?»
Concordou.
« – Então ninguém diz as coisas que não são, pois assim já produziria qual-
quer coisa... ora tu acabas de concordar que ninguém seria capaz de produzir
o que não é. Assim sendo, pelas tuas palavras, ninguém diz mentiras e, se
Dionisodoro diz, diz a verdade e as coisas que são.»
Sistematizando:
1. Mentir é dizer as «coisas que não são».
2. As «coisas que não são» são as coisas que não existem.
(Defendemos que esta inferência esteja subjacente, pois só assim se percebe o
modo como o argumento continua):
3. Como não posso dizer «coisas que não são» (isto é, que não existem).
(Assunção, aqui, do sentido existencial)
4. Porque se as dissesse passavam a existir.
5. E se existem são verdade.
6. E ao dizer as coisas que são, digo coisas que são verdade.
7. E se são verdade, não posso mentir.
« – Mas ele diz as coisas que são de um certo modo e não como elas são de
facto.»
Ctesipo reconhece, agora, estas ambiguidades. As «coisas que são» (ta onta)
equivalendo a «coisas que existem» mas não necessariamente equivalendo a «coisas
verdadeiras». Assim, estamos perante um jogo baseado nos sentidos predicativo e
existencial por um lado, e veritativo, por outro, fazendo equivaler «dizer as coisas
que existem» a «dizer a verdade». Esta tese que defende a impossibilidade de men-
tir continua no sofisma que se segue (sequencial ao anterior e que vai de 284c até
285a):
« – Eis então a tal pergunta grosseira:» - disse eu - «Se não cometemos erros
ao agir, ao falar ou ao pensar, por Zeus, se isto é assim, o que vieram vocês
ensinar?» (287a-b)
« – Vejamos» - disse ele - «há enunciados para cada uma das coisas que
são?»
« – Perfeitamente.»
« – E como cada uma é ou como não é?»
« – Como é.»
« – Pois se te lembras, Ctesipo» disse «há pouco demonstrámos que ninguém
diz uma coisa como ela não é, pois o que não é, obviamente ninguém o diz.»
(285e-286a)
Dionisodoro (o sofista que aqui fala com Ctesipo) está a defender que é impos-
sível a contradição, pois atribui um sentido existencial a cada uma das coisas que
são, isto é, «cada uma das coisas que existem». O que aqui se afirma é que não se
pode falar do que não existe (aqui considerado o mesmo que não é), «pois o que não
é, obviamente ninguém o diz». Vai, então, apresentar quatro razões que justificam
Também (3) não pode haver contradição se ambos falam de objectos diferen-
tes.
E, para finalizar, (4) não há contradição se uma pessoa fala e a outra está calada.
Assim sendo,
e noutra complemento directo (sendo que em grego pode ser lida sempre das duas
maneiras) sob pena do leitor não ter acesso o jogo de palavras no original. Digamos
que em português há uma falácia evidente por parte dos sofistas, já que mudam a
sintaxe, falácia essa que não existe, efectivamente, em grego, onde houve apenas
um aproveitamento de uma possibilidade da sintaxe grega (a particularidade das
orações infinitivas terem sujeito e complemento directo no mesmo caso) para levar
o interlocutor a aceitar uma das estruturas e a não poder contradizer-se ao ser con-
frontado com a outra.
Atendamos ao exemplo:
« – Quer dizer que tu sabes o que convém a cada artesão?» perguntou ele «E
a quem convém primeiro forjar, sabes?»
« – Sei. Ao ferreiro.»
« – E fazer cerâmica?»
« – Ao ceramista.»
« – E degolar, esfolar e, cortando em pequenos pedaços a carne, fazer cozer
e assar?»
« – Ao cozinheiro» respondi.
« – Portanto se alguém fizer o que é conveniente, agirá bem?»
« – Muito bem.»
« – Pois então, pelo que tu dizes, convém o cozinheiro cortar em pedaços e
esfolar? Concordaste com isto ou não?»
« – Concordei, mas desculpa-me lá...»
« – É então evidente» continuou «que, se alguém degolar e cortar o cozinhei-
ro em pedaços, o cozer e o assar, estará a fazer o que convém; e se alguém
forjar o próprio ferreiro ou modelar o ceramista, também este agirá como
convém.» (301 c-d)
5
João Andrade Peres e Telmo Móia, 2003, Áreas Críticas da Língua Portuguesa, Lisboa, Caminho, pp. 258/9.
a forma entendida por Sócrates - quer como complemento directo dessa mesma
oração («convém cortar o cozinheiro»).
Com os exemplos destes dois géneros de problemas pretendemos mostrar como
não pode haver uma atitude inflexível por parte do tradutor, procurando seguir
uma determinada posição teórica sobre a tradução, pois a prática concreta do texto
no seu contexto (e os contextos filosóficos são especialmente sensíveis) é o que de-
termina as opção de manter ou resolver as ambiguidades.
A o longo dos séculos, muitos autores manifestaram nas suas obras vários as-
pectos da vivência feminina e, alguns deles, revelaram uma atitude misógina.
Hesíodo, na sua Teogonia e nos Trabalhos, apresenta a criação da mulher como
um mal profundo cuja curiosidade desencadeou o mal – Pandora (mulher que nos
escritos cristãos se assemelha a Eva). Para além deste autor, outros manifestaram
uma atitude semelhante, nomeadamente Eurípedes. Para ele, quem não falasse
mal das mulheres, seria um infeliz. Esta atitude de carácter anti-feminista revela-se
sobretudo na tragédia Hipólito.
Contudo, n’As Bacantes (apesar de no final da obra as suas heroínas serem con-
denadas) o autor apresenta uma visão diferente sobre as mulheres, inserindo-as num
culto onde predominava a orgia. Esta tinha um carácter sagrado e estava intima-
mente ligada às religiões de mistérios. O culto dionisíaco, vindo de terras longín-
quas, apareceu na Grécia cerca do século XII a.C. Como o próprio deus refere no
prólogo d’As Bacantes:
[…] Importa que esta cidade se convença de que carece das minhas danças e
dos meus mistérios e se aperceba de que vingo a honra de minha mãe Sémele,
manifestando-me aos homens como a divindade que Zeus nela engendrou […].2
1
Eurípedes, “As Bacantes”, in Ifigénia em Áulis. Electra. As Bacantes, p. 180.
2
Idem, pp. 180-181.
- Pai! Podes vangloriar-te de ter engendrado filhas como jamais algum mortal
deitou ao mundo. De todas, deves orgulhar-te ainda mais de mim que abando-
nei o tear e a lançadeira para me engrandecer, submetendo as feras às minhas
mãos. Trago nos meus braços a prova da minha insigne coragem […].5
depois dele ter abolido a sua identidade corporal. Simbolicamente, o seu sacrifício
manifesta a renúncia definitiva da imagem narcisista do homem que se opunha à
mulher. Penteu pretendia saciar a sua curiosidade observando o culto, mas não que-
ria disfarçar-se de mulher. Contudo, recusar o ritual dessa loucura sagrada levaria à
morte. Ao aceder à transformação operada por Dioniso, Penteu inicia um processo
de perda gradual da razão que o leva a confundir a divindade com um touro. O
seu estado racional dera lugar à irracionalidade. Neste sentido, o carácter feminino
do culto dionisíaco, abolindo a virilidade e a racionalidade masculinas, faz ressaltar
uma certa virilidade feminina.
A mulher é, no fundo, a iniciadora dos mistérios dionisíacos. O seu compor-
tamento quebra as barreiras do gineceu, do seu papel como esposa e como mãe,
livrando-a do casamento e remetendo-a para o espaço sagrado da montanha cujo
mestre será o próprio Dioniso efeminado. Assim, participar no culto exprime a
abolição da barreira entre o sexo masculino e o sexo feminino, possibilitando ple-
namente a ambivalência do desejo, ou seja, o realizável e o de qualquer coisa que
se perdeu (a Idade do Ouro). Por outras palavras, diríamos que o culto dionisíaco,
através do delírio orgiástico, corresponde a um arquétipo cujo objectivo remete
para a abolição do tempo. A sua finalidade como rito é uma manifestação clara da
nostalgia do regresso ao tempo mítico das origens, ao Grande Tempo, ou seja, à
eternidade e imortalidade. Essa nostalgia do tempo perdido deve-se à insatisfação
da mulher cuja condição humana é baseada em leis morais e sociais que a remetem
para um plano inferior. Dilacerada, ela vive separada no mundo à parte do gine-
ceu. O desejo de recuperar a Unidade Perdida leva à transgressão através do culto
dionisíaco.
O ingresso das mulheres de Tebas no culto, ainda que sob o poder de uma vin-
gança, tem subjacente a ostricidade da casa, as leis, a moral, as ordens impostas pelo
poder do rei (Penteu). Assim, a obra de Eurípedes comporta em si determinados
símbolos e ritos que implicam a presença da coincidência dos opostos (coincidentia
oppositorum). É a nostalgia do Paraíso perdido que obriga a transcender os contrá-
rios. Através dos ritos dionisíacos é possível aceder ao começo (in principio, in illo
tempore) onde não há leis nem proibições. Fugindo às regras do poder masculino
instituído, o novo culto, simbolicamente, representa a forma como as mulheres es-
caparam à vigilância dos respectivos maridos, pais ou irmãos, através da folia e da
abolição de todas as barreiras impostas pelo homem:
6
Idem, p. 225.
- […] Quero passeá-lo pelas ruas de Tebas em trajos femininos. O terrível guer-
reiro cujas ameaças ainda há pouco todos temiam, será objecto do riso dos Teba-
nos. Com estas mãos vestir-lhe-ei o trajo com o qual entrará no Hades, após ter
sido degolado pela própria mãe […]10.
12
Michel Maffesoli, L’Ombre de Dionysos, Dionysos – contribution à une sociologie de l’orgie, col. « Sociologies au Quo-
tidien », Paris, Méridiens/Anthropos, 1982, p. 23.
- […] Nisto, vi três danças sagradas, três coros de mulheres, conduzidas por Au-
tónoe, por Ino e por sua mãe Agave. Todas elas dormiam com os corpos ao aban-
dono, umas recostadas na rama pilosa dos abetos, outras sobre folhas de carvalho,
a cabeça tombando, ao acaso, no chão […]. Caíram então sobre as reses que
pastavam e, sem usarem qualquer espécie de arma, ofereceram aos nossos olhos
um espectáculo inacreditável. Uma delas ergueu nos braços uma vaca de tetas
túmidas que mugia. Outras deixaram em pedaços os vitelos e as bezerras. Por
todo o lado voavam costelas e cascos fendidos. Pedaços de carne viva, pendendo
dos abetos, pingavam sangue. Com os cornos enraivecidos, os touros jaziam por
terra, derrubados por mil mãos femininas. Em menos tempo do que aquele que
levas para baixar a pálpebra sobre a tua pupila real, elas dilaceraram a carne
que os revestia […]. Às pontas de ferro das lanças elas opunham a sua carne
invulnerável […]13.
13
Eurípedes, op. cit., pgs. 208-210.
14
Idem, p. 182.
dont le dionysiaque reste le modèle achevé, est avant tout sensuel. Il célèbre ce qui de
multiples manières nous rattache à la terre et à ses plaisirs»15.
Assim, a morte de Penteu acaba por simbolizar o fim da barreira que se opunha ao po-
der da fecundidade da mulher cuja expressão máxima está representada na figura da Magna
Mater. Participar no culto dionisíaco da montanha corresponde à prática do culto de Cíbele,
a deusa que, como afirma Lynn E. Roller, «era a Grande Mãe de Aristófenes, bem como de
Eurípedes»16. Participar no culto da deusa implicava o sacrifício masculino do filho/amante,
sendo Átis o símbolo maior da emasculação que iria ser seguida pelos sacerdotes de Cíbele.
Curiosamente, é para restaurar o “reino” da mãe (Sémele) que outra mãe (Agave) sacrifica
o filho, restaurando desta forma o culto da Magna Mater. Por outro lado, existem diversos
elementos comuns aos dois cultos - a orgia, o sacrifício, os animais, a presença da montanha
(espaço sagrado da Grande Deusa), a vegetação luxuriante - que remetem para a fertilidade da
Terra Mãe associada à fertilidade feminina. Além disso, não podemos esquecer que o próprio
Dioniso fora iniciado de Cíbele.
O coro das Bacantes reflecte igualmente a presença constante do carácter sagrado da Gran-
de Deusa e a forma como elas se apresentam em cena realça a semelhança entre o culto de
Cíbele e o culto dionisíaco:
(Sai pela Direita. O Coro das Bacantes entra na Orquestra pela Esquerda. Vêm toucadas de
serpentes, coroadas de folhas de carvalho, hera e esmilace. Trazem peles de corço, brandem os tirsos,
agitam os tamboris, fazem soar os cequins e tocam flauta, dançando e rodopiando ao som destes
instrumentos.)17
O “Hino à Mãe dos Deuses” de um autor grego anónimo do século VI a. C. reflecte as
semelhanças do culto dionisíaco com o culto de Cíbele e sintetiza aquilo que se depreendeu do
nosso estudo - a inversão do papel da mulher e a exaltação do sagrado feminino n’As Bacantes
de Eurípedes:
Canta-me, Musa de voz clara, filha do grande Zeus, a Mãe de todos os deuses e de todos os
humanos; ela tem prazer em ouvir o ressoar das castanholas e dos tímpanos e o rugido das flautas,
o grito dos lobos e dos leões de olhos brilhantes, o eco das montanhas e dos vales cobertos de árvores.
Saudações para ti também e para todas as deusas que se reúnam a ti na canção18.
Bibliografia
ELIADE, Mircea, História das Ideias e Crenças Religiosas, vol. 2, trad. Daniela de
Carvalho, Paulo Ferreira da Cunha, Porto, Rés, s/d.
MOSSÉ, Claude, La Femme dans la Grèce Antique, col. « Historiques », Paris, Édi-
tions Complexe, Éditions Albin Michel, 1983.
Alessandra Oliveira
FXT / U. Coimbra
alessandrajonas@hotmail.com
Q uedições
cabe à poesia criar uma ilusão capaz de justificar e harmonizar as contra-
inerentes ao real defendera-o já, cinco séculos antes de Cristo, Górgias
de Leontinos, o célebre sofista autor do Elogio de Helena1. Na sua peça O Rancor,
Hélia Correia, longe de propor a simples reabilitação da heroína épico-trágica,
convida-nos precisamente a reflectir sobre o papel da poesia na construção das an-
títeses que reproduzem a natureza plural da realidade: aparência/essência, onoma/
pragma, heroicidade/humanidade. Assim, numa leitura bem actual do mito clás-
sico, em que um sentimento tão humano como o amor - tomado como reverso do
ódio e do rancor - se impõe aos valores heróicos celebrados pelos poetas antigos,
a autora parece explorar a ambiguidade de que se reveste a figura de Helena - se-
duzida ou sedutora, vítima ou culpada - ao mesmo tempo que liberta as restantes
personagens do rígido esquema de acção ao qual estão confinadas pelo estatuto
elevado que lhes confere a poética aristotélica. Comprova-se, deste modo, o ca-
rácter multívoco do mythos, que vemos dar origem a representações bem diversas,
consoante perspectivado sob o ângulo da psicologia feminina ou de valores marca-
damente masculinos, recriado à luz da tradição ou reinventado pela sensibilidade
da autora.
Esta dinâmica de oposições em que assenta toda a estrutura dramática surge,
desde logo, implícita na relação que se estabelece entre o título, O Rancor - sugestivo
do realce que será concedido aos sentimentos, desejos e motivações configuradores
da dimensão humana das personagens - e o subtítulo, Exercício sobre Helena, que
remete para a grandiosidade heróica dos onomata da ficção épico-trágica. Tais antí-
teses serão asseguradas, no decurso da acção dramática, pelas próprias personagens
que, assumindo o papel do poeta, se encarregarão de criar um mundo de engana-
doras aparências, no qual o seu estatuto de heróis é recuperado e a sua condição de
real humanidade escamoteada.
No início do Acto I, o pomposo discurso ensaiado por Menelau (cf. p. 11), a
evocar, pela reduplicação de epítetos e fórmulas, a grandiloquência da epopeia ho-
1
Cf. Romeyer-Dherbey, Gilbert, Os sofistas, Lisboa, Edições 70, 1986, p.43: «Porque o real está dilacerado pelas
contradições, o mundo humano exige uma tomada de posição e este mundo humano está por fazer, e é, de acordo
com a etimologia, à poesia que Górgias se dirige para o fazer. A tomada de posição a favor de um dos contrários não é
atitude de força, mas uma pacificação pela poesia, no sentido amplo do termo diríamos hoje pela arte». Com efeito, para
demonstrar o poder harmonizador e unificador da arte (em particular, da poesia) sobre a mente humana, dividida por
acção de um real múltiplo e contraditório, Górgias aduz, no parágrafo 18 do Elogio de Helena, o exemplo dos «pintores
que saciam a vista quando a partir de múltiplas cores e corpos completam, com perfeição, um corpo inteiro, uma figura
inteira».
Menelau: Eu, Menelau, rei da Lacónia, rei de Esparta, a dotada de tão bravos
habitantes que nunca precisou que erigissem muralhas para reforço da defe-
sa, eu, Menelau, da casa dos Atridas, te dou as boas-vindas, ó meu filho. (...)
(Suspendendo o discurso): Mas não vem, essa mulher? (Chamando) Etra! A
tua rainha, onde está ela? (...
não é senão a mulher comum, que, seduzida pela beleza de Páris e movida pelo
desejo, abandonara a monotonia de uma relação meramente contratual e até as
responsabilidades maternais, para viver a experiência de uma arrebatada história
de amor. A ambiguidade da personagem parece ser, contudo, o reflexo das con-
tradições que dividem a mente humana. Na verdade, se umas vezes reclama
a tranquilidade de uma vida anónima, outras, parece não abdicar do papel da
heroína; e se primeiro refuta a fantasiada versão dos poetas acerca da causa da
Guerra de Tróia, no momento seguinte, vemo-la encenar o espectáculo patético
da rainha escravizada por uma culpa que antes se recusara a aceitar. De facto, é
o papel do poeta que Helena assume2 quando explora o efeito trágico do quadro
simbólico que ela mesma compõe na cena inicial do Acto II (cf. p. 47-49). As-
sim, a rainha em farrapos lavando obsessivamente o chão que diz coberto de
sangue pretende ser a metáfora da mulher torturada pelo remorso do morticínio
de Tróia, buscando desesperada e inutilmente a redenção.
Helena (esfregando o chão): Não sai, não saem estas manchas. Olha. O san-
gue de Páris. (...) (insistindo) Veio agarrado a mim todo este sangue, escor-
reu-me pelas pernas à medida que eu ia caminhando. (pp.47,48)
A Etra, porém, cabe desmascarar o fingido delírio de Helena, cuja dor - ape-
nas aparente - não revela senão o desejo de recuperar o estatuto de heroína
perdido:
Etra: Ela e as suas grandes atitudes!... Imitas muito bem as loucas, queri-
da. Mas não conseguirás enlouquecer. Somente os inocentes enlouquecem.
(p.48)
Etra: (...) Mas tu não tens remorsos, Helena. Tens saudades. Eu própria, às
vezes, dou por mim a bocejar. E no entanto nunca experimentei um grandio-
so destino, desses que dão depois matéria para os trágicos. (p.49)
Por sua vez, o tíbio Menelau, a quem um papel secundário foi reservado na
2
De acordo com Ingrid Holmberg (1995, 26-28), já na Ilíada, Helena parece assumir uma função análoga à do poeta.
Com efeito, enquanto borda num manto púrpura os combates em seu nome travados entre Gregos e Troianos (II. 3. 125-
129) ou mesmo quando descreve os guerreiros aqueus, na famosa cena da Teichoscopia (II. 3. 182-242), vemo-la recriar,
sob o ângulo da sua subjectividade, os quadros de guerra em que se movem os heróis, ciente que está da imortalidade
com que os cantos dos vates coroam os homens (II. 6. 354-58).
Percebe-se, assim, que o rancor destas mulheres não é senão o espelho do desa-
mor a que são votadas pelos homens, demasiado absorvidos pelos assuntos de guerra
ou preocupados apenas com as formalidades que requer a aparência de harmonia
conjugal. Por esta razão, as personagens femininas não abdicam da vivência do
amor e da sexualidade (com excepção de Etra, que em Helena inveja as paixões
nunca vividas), um desafio aos repressivos valores masculinos, que se paga também
com o ódio ou o rancor.
Daqui se infere que o conflito amor/ódio, à semelhança do que se verifica com
a antítese guerra/paz, resulta, em última análise, das divergentes concepções da
realidade que separam o universo de homens e mulheres.
Ao sugerir-se a natureza multímoda do real, que não existe senão enquanto
representação subjectiva, confirmam-se as teses sofísticas acerca da impossibilidade
de aceder à essência das coisas, ao mesmo tempo que se dá expressão à célebre
máxima de Protágoras: «O Homem é a medida de todas as coisas»3.
Provado o carácter inacessível da verdade, assistir-se-á, então, ao triunfo da apa-
rência sobre a essência. Ora, o retomar, no epílogo, da ilusória ordem inicial, em
que as personagens parecem interpretar o papel de que a poesia as investiu, define,
pois, a estrutura em anel do argumento, testemunho do seu pendor vincadamente
retórico. Ensaia-se, assim, o teatro da harmonia familiar, que as próprias Erínias
são chamadas a integrar, transformadas agora - por obra do poder criador das
personagens-poetas - em «simples bailarinas de banquete» (cf. didascália p.105).
Encarregadas de divertir os heróis, prefiguram a ilusão de felicidade forjada pelos ho-
mens para escapar a uma realidade de sofrimentos ou tão só ao remorso que mitiga
a consciência. As desgraças presenciadas atribui-as, assim, Menelau a «um pesadelo
horrível» (cf. p.106). Helena, por sua vez, retoma o traje sumptuoso do Acto I e a
peruca egípcia, cujo simbolismo se revela em pleno quando a protagonista introduz
uma nova versão do mito (a mesma que Eurípides adopta na tragédia Helena), coin-
cidente com a da palinódia de Estesícoro que constitui a epígrafe da obra:
3
Do pensamento de Protágoras, convirá, sobretudo, destacar a afirmação da natureza subjectiva do real, consubstancia-
da nas palavras introdutórias do tratado A Verdade: «O Homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são,
das que não são enquanto não são.» (fr. B. I.). Ora, esta tese do homem-medida vem legitimar um outro postulado tam-
bém implicado na leitura do mito de Helena proposta por Hélia Correia: « (...) a respeito de tudo há dois discursos que
se contrariam um ao outro.» (apud Romeyer-Dherbey: 1986, 18). O argumento de O Rancor parece, assim, construir-se
em grande medida, sobre o ponto de conexão estabelecido entre as doutrinas sofísticas de Górgias e Protágoras, que
defendem uma verdade não absoluta, mas relativa ao indivíduo.
BIBLIOGRAFIA
CORREIA, Hélia, O Rancor. Exercício sobre Helena, Lisboa, Relógio D’Água, 2000.
DUPRÉEL, E., Les sophistes. Protagoras, Gorgias, Prodicus, Hippias, Neuchâtel, Ed. du
Griffon, 1948.
EURIPIDE, Hélène, Texte établi et traduit par Henri Grégoire et Louis Méridier, Paris,
Les Belles Lettres, 1973.
GRIFFITH, J. G., Some thoughts on the Helena of Euripides, JHS 73 (1953) 36-41.
HOLMBERG, Ingrid E., Euripides’ Helen: most noble and most chaste, AJPh 116 (1995)
19-42.
KOMORNICKA, A. M., Hélène de Troie et son ‘ double’ dans la littérature grecque (Homère
et Euripide), Euphrosyne 19 (1991) 9-16.
PAPI, Victors and sufferers in Euripides’ Helen, AJPh 108 (1987) 27-40.
SILVA, Maria de Fátima Sousa e, Crítica do Teatro na Comédia Antiga, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1997.
1. Introdução
O consagrado dueto otium / negotium, uma das expressões do binómio arma /
toga na cultura romana, tende, em Cícero, a uma coabitação inequívoca, passando
pela valorização do lazer e dos espaços e momentos em que se fazia, pelo tratamento
do negotium como instinto inato, pela sua inclusão no conceito epicurista de prazer,
pela politização do otium litteratum e sua ancoragem no conceito de ciência supre-
ma e de virtude.
Intentarei descortinar esses vários registos no Tratado da República de Cícero,
incluindo na construção do diálogo — dos trechos de carácter parenético, como o
preâmbulo do livro I e o fecho da obra, à data dramática, ao cenário do diálogo, aos
intervenientes e à mensagem geral.
Ac primum agros quos bello Romulus ceperat divisit viritim civibus, docuitque
sine depopulatione atque praeda posse eos colendis agris abundare commodis
omnibus, amoremque eis otii et pacis iniecit, quibus facillime iustitia et fides
convalescit, et quorum patrocinio maxime cultus agrorum perceptioque frugum
defenditur.
Assim, primeiro repartiu pelos cidadãos, por cabeça, as terras que Rómulo
conquistara na guerra e ensinou que, sem razias e sem saque, cultivando os
campos, eles podiam ter em abundância todas as comodidades, e instilou
neles o amor ao ócio e à paz, com os quais muito facilmente se fortalecem a
justiça e a confiança, com cujo patrocínio melhor se defende o cultivo dos
Retomo aqui ou reformulo parte do material da Introdução à minha tradução Cícero, Tratado da República, Lisboa,
1
Temas&Debates, 2008.
Todavia, maior ênfase é posta no conceito de otium como uma espécie de refor-
ma política ou cum dignitate otium, que tem um dos exemplos em Catão, modelo
de governante ideal (Rep.1.1)2:
M. vero Catoni homini ignoto et novo, quo omnes qui isdem rebus studemus
quasi exemplari ad industriam virtutemque ducimur, certe licuit Tusculi se in
otio delectare, salubri et propinquo loco. Sed homo demens ut isti putant, cum
cogeret eum necessitas nulla, in his undis et tempestatibus ad summam senectu-
tem maluit iactari, quam in illa tranquillitate atque otio iucundissime vivere.
Is enim fueram, cui cum liceret aut maiores ex otio fructus capere quam ceteris
propter variam suavitatem studiorum in quibus a pueritia vixeram, aut si quid
accideret acerbius universis, non praecipuam sed parem cum ceteris fortunae
condicionem subire, non dubitaverim me gravissimis tempestatibus ac paene
fulminibus ipsis obvium ferre conservandorum civium causa, meisque propriis
periculis parere commune reliquis otium.
É que, sendo o tipo de pessoa a quem era lícito ou colher, no ócio, maiores
frutos do que outros, por causa do variado encanto dos estudos em que pros-
perara desde a puerícia, ou então, no caso de algo mais amargo acontecer a
todos, não sofrer reveses da fortuna superiores, mas iguais aos dos outros,
2
Cf. J.-N. Robert (2002), Caton ou le Citoyen. Biographie, Paris.
3
Lucrécio, 2.1-10 e Rep.1.fr.1e: oblectationem otiis; e 1.1 ad finem: blandimenta voluptatis otique.
Também neste trecho subjaz a legitimidade do otium cum dignitate, agora ex-
plicitado na forma de otium litteratum. Mas ambos os passos colocam esse otium
cum dignitate na dependência de uma obrigação mais alta, sobretudo em momentos
de crise ou tempestade, o dever de intervenção política, isto é, o negotium. Nessa
intervenção política enquadra-se, como veremos, uma forma de otium litteratum
não inútil, a teorização política.
Cícero tinha consciência de que aos ideais da intervenção política activa se opu-
nham ambições de poder pessoal, temas retóricos como o da ingratidão popular ou
o da desconsideração pela glória atribuída pelo vulgo, a tendência estóica para um
ideal de sabedoria puramente especulativa e a valorização epicurista de um otium
quietista, uma ataraxia considerada como critério de prazer.
Contra um ideal de vida puramente especulativo ou theoretikos, Cícero enqua-
dra a noção de otium no conceito de virtude, concebida como inato instinto de
acção cívica (Rep.1.1 e 1.3):
Unum hoc definio, tantam esse necessitatem virtutis generi hominum a natura
tantumque amorem ad communem salutem defendendam datum, ut ea vis om-
nia blandimenta voluptatis otique vicerit.
gava o ideal de participação a todos, não apenas aos sábios ou a uma elite tradicio-
nal, como ainda englobava o negotium no conceito de voluptas, assim compatibili-
zando a intervenção política com o hedonismo epicurista.
Mas a grande preocupação de Cícero consiste em reforçar de forma inequívoca
a vertente prática do conceito de virtude. Ora quase todas as mais de duas dezenas
de ocorrências de virtus ‘virtude’ se relacionam com acção prática, com intervenção
exterior e política, não com um ideal de vida contemplativa ou especulativa.
Assim, depois de, logo em 1.1, afirmar que o amor ao bem-estar comum é natu-
ral, Cícero vai demonstrar que a virtude não é contemplação e deleite, que a virtude
contém uma dinâmica relacional que se traduz em participação política4. Desta
forma, a política é transformada em basilike episteme ‘ciência rainha’ (Rep.1.2-3):
Nec vero habere virtutem satis est quasi artem aliquam nisi utare; etsi ars qui-
dem cum ea non utare scientia tamen ipsa teneri potest, virtus in usu sui tota
posita est; usus autem eius est maximus civitatis gubernatio, et earum ipsarum
rerum quas isti in angulis personant, reapse non oratione perfectio. nihil enim
dicitur a philosophis, quod <non> ab iis partum confirmatumque sit, a quibus
civitatibus iura discripta sunt, (…) ergo ille, civis qui id cogit omnis imperio
legumque poena, quod vix paucis persuadere oratione philosophi possunt, etiam
iis qui illa disputant ipsis est praeferendus doctoribus. (…) quem ad modum ‘ur-
bes magnas atque imperiosas’, ut appellat Ennius, viculis et castellis praeferendas
puto, sic eos qui his urbibus consilio atque auctoritate praesunt, iis qui omnis
negotii publici expertes sint, longe duco sapientia ipsa esse anteponendos.
E a verdade é que não basta possuir virtude, como se fosse uma arte qual-
quer, se ela não for usada. E embora uma arte possa ser mantida, como co-
nhecimento em si, ainda que não seja usada, a virtude reside totalmente no
seu uso prático. Ora o seu uso supremo é a governação de uma cidade e a
concretização, por actos, não por palavras, daquelas mesmas coisas que esses
apregoam a um canto5. Na verdade, de tudo aquilo que os filósofos dizem, e
refiro-me ao que é dito com rectidão e honestidade, <não> existe nada que
não tenha sido alcançado e confirmado por aqueles que fixaram leis para as
suas cidades. (…) Portanto, o cidadão que, por meio do seu poder e da san-
ção estabelecida pelas leis, a todos obriga a fazer aquilo que, com o seu ensi-
namento, o filósofo a poucos persuade a fazer, também ele deve ser preferido
aos próprios mestres que discorrem sobre essas questões. (…) De verdade,
tal como julgo que “as urbes grandes e poderosas”, como as designa Énio,
devem ser preferidas aos lugarejos e aos castros, assim também considero que
4
Ver também Rep.1.12, 33, 3.4 e toda a doutrina do Sonho de Cipião. Para a relevância e originalidade desta posição,
cf. K. Büchner (1976), Somnium Scipionis. Quellen, Gestalt, Sinn, Wiesbaden, esp. p.73-81.
A tradução de angulis por “a um canto” é inspirada em Górgias, 485d, na versão de M. Pulquério, Platão, I, Lisboa,
5
aqueles que, com seu conselho e autoridade, presidem a essas urbes, devem,
mesmo em sabedoria, de longe levar a palma sobre aqueles que não tomam
parte em nenhum negócio público.
neque enim hac nos patria lege genuit aut educavit, ut nulla quasi alimenta exs-
pectaret a nobis, ac tantummodo nostris ipsa commodis serviens tutum refugium
otio nostro suppeditaret et tranquillum aut quietem locum, sed ut plurimas et
maximas nostri animi ingenii consilii partis ipsa sibi utilitatem suam pignerare-
tur, tantumque nobis in nostrum privatum usum quantum ipsi superesse posset
remitteret.
É que a pátria não nos gerou e educou na condição de não esperar de nós
como que alimento algum e de, estando ela própria ao serviço da nossa co-
modidade, fornecer ao nosso ócio um refúgio seguro e um lugar tranquilo
para repouso, mas na condição de ser ela a receber os mais numerosos e me-
lhores recursos do nosso espírito, do nosso engenho e do nosso discernimen-
to, e de conceder, para nosso uso privado, somente o que lhe for supérfluo.
3. A exemplificação no diálogo
A união otium / negotium é exemplificada em vários registos artísticos e temá-
ticos do diálogo.
6
Rep.1.15: “tenho todo o tempo livre para os meus livros”.
tões de astronomia7 e pela historiografia. Mas também serviu como tribuno militar
de Cipião Emiliano no cerco de Numância em 134-133, foi cônsul em 105 e cola-
borou na governação da Ásia em 94/93. No seu exílio em Esmirna teria relatado, a
Cícero e a seu irmão Quinto8, o debate que constitui o Tratado da República, a que,
ainda jovem, pelos 25 anos, teria assistido. Torna-se, por essa via, a ligação entre o
passado e o presente.
Gaio Lélio o Sábio (190-) teve uma carreira política e militar paralela à de
Cipião Emiliano, de quem era muito amigo e de quem fora legado na Terceira
Guerra Púnica, comandando o assalto final a Cartago. Foi cônsul em 140 e, no
ano de 132, tomou parte activa na legislação contra os adeptos de Tibério Graco,
onde poderá ter exercido a sua craveira de jurista (1.20). é referido como orador de
grande cultura, o que lhe teria valido o cognome de Sapiens ‘Sábio’, mas virado para
questões práticas9. De facto, sem negar algum interesse nos estudos da astronomia
e de todas as ciências teóricas gregas, ele procura sempre “assuntos da maior impor-
tância” (1.30) e é ele quem propõe o tema central do diálogo, “a melhor forma de
constituição” (1.33).
Lélio entra acompanhado de três outras personagens: os seus dois jovens genros,
os jurisconsultos Quinto Múcio Cévola Áugure, cônsul em 117, de sensibilidade
estóica, que só diz uma réplica (1.33, onde significativamente usa a palavra discere
‘aprender’), e Gaio Fânio, cônsul em 122, adepto do estoicismo, orador e historia-
dor; e por Espúrio Múmio, membro do séquito do Emiliano na missão diplomática
ao oriente, seguidor de Panécio e defensor da aristocracia (cf. 3.46-48), o qual, ape-
sar de nunca ter alcançado o consulado, foi colega de Cipião na censura, em 142, e
com ele participou na Terceira Guerra Púnica.
A última personagem a apresentar-se é Mânio Manílio, o mais velho de todos,
“homem prudente, encantador e de todos querido” (1.18), famoso jurisconsulto (cf.
1.20) e cônsul em 14910.
Considerando este conjunto de personalidades na sua globalidade, o primeiro
aspecto a salientar é que, tal como na República de Platão, há mais do que uma
geração ou, pelo menos, vários níveis etários entre os participantes no debate11.
Significa tal facto que se está perante um acto de transmissão de conhecimento
entre gerações, o que é congruente com a tradição pedagógica romana e perfeita-
mente compatível com a ideologia do mos maiorum, que se traduz na necessidade
de guardar a memória dos costumes ancestrais. Na perspectiva da dualidade otium
7
Cf. Rep.1.17: “até sob as próprias muralhas de Numância costumava por vezes indagar comigo sobre este género de
eventos”.
8
Rep.1.17: “para nós, é o autor deste diálogo”; cf. 1.13.
9
Ver logo em Rep.1.19: “Acaso já explorámos o que diz respeito às nossas casas e ao Estado, para estarmos a investigar
o que se passa no céu?”
10
Tivera Cipião Emiliano como subalterno no início da Terceira Guerra Púnica (6.9), podendo representar assim a
geração anterior, pois já pelo ano de 169 brilhava como jurisconsulto (3.17).
Suponho poderem ser assim determinados os níveis etários: o de Mânio Manílio e Lélio; o de Múmio, Filo e Cipião,
11
que funciona como centro; e o de Tuberão, Múcio Cévola, Fânio e Rufo (cf. A Ático, 4.16.2)
12
Cf. A. Lintott (2003), The Constitution of the Roman Republic, Oxford, 1999, repr. paperback. p.161-181.
13
Cf. J. E. G. Zetzel (1995), Cicero, De re publica. Selections, Cambridge, p.15 e C. Nicolet (1988), L’ inventaire du
monde. Géographie et politique aux origines de l’Empire romain, Paris, cap. III, para as cosmovisões; para a ética estóica,
ver J. M. Rist (1969), Stoic Philosophy, Cambridge; A. A. Long (1974) Hellenistic Philosophy. Stoics, Epicureans, Sceptics,
New York; M. Pohlenz (51978), Die Stoa. Geschichte einer geistigen Bewegung, Göttingen.
Quare sint nobis isti qui de ratione vivendi disserunt magni homines (ut sunt),
sint eruditi, sint veritatis et virtutis magistri, dum modo sit haec quaedam, sive
a viris in rerum publicarum varietate versatis inventa, sive etiam in istorum
otio ac litteris tractata res (sicut est) minime quidem contemnenda, ratio civilis
et disciplina populorum, quae perficit in bonis ingeniis, id quod iam persaepe
perfecit, ut incredibilis quaedam et divina virtus exsisteret.
Por isso, aqueles que dissertam sobre as regras de vida, tenhamo-los por gran-
des homens, como de facto são, por eruditos, por mestres da verdade e da
virtude. Na condição de que — tenham elas sido inventadas por varões ilus-
tres e versados na variedade dos negócios públicos, tenham elas sido tratadas
também no ócio e nos escritos dos mesmos —, não sejam minimamente
negligenciadas, como têm sido, a teoria política e a organização dos povos, as
quais, como já frequentemente aconteceu, fazem com que nos homens bem
dotados surja uma virtude incrível e divina.
14
Ver 1.1, 12, 33; 3.4, 10-12; 6.15: “É que os homens foram gerados com a seguinte condição: para zelarem por aquele
globo que vês no meio deste templo e que se chama Terra” .
Giovanni Panno
U. Pisa – U. Tübingen
theoros@web.de
between real inhabitants and citizens2. This last group is subsequently divided into
four groups or wealth classes3. What does however let the Laws stand out against
the background of the other historical references is that the scholé is a condition
for the good of the entire sphere of the city. On the other hand, this idea does not
support the hypothetical division between a group of wise men and the undistin-
guished many, who neither practice philosophy nor have scholé. In fact, all of the
citizens of Magnesia are expected to have leisure, even if a different corpus of wise
men – the nocturnal council, or college de veille4 – stays in a position that is admin-
istratively difficult to define.
The equality of the city has to be viewed from the division into the ones who
have the right to participate in the magistracy and to vote and the ones who simply
inhabit the colony as metics and slaves. The latter are structurally excluded from the
true political life of the polis, although they have to exercise a part of that ascholia
necessary to provide the scholé of the real citizens5. Nevertheless, when the Athe-
nian Stranger – protagonist of the dialogue – speaks about the „sÒthj of the city,
he does not comprehend the biggest sphere of the inhabitants, but only the small
sphere of Magnesia’s population.
In order to check the plausibility, both philosophical and political, of the con-
cept of scholé, it is necessary to understand which particular declination of equality
is thought to be operating under the division into four classes6.
A significant passage of the Laws7 makes it clear that between the two equali-
ties, the arithmetic, more democratic – in the sense of ancient Greece – and the
geometric, based on the principle of natural differences, the Legislator has to com-
promise. What is necessary to accomplish, through a proper measure, is that the
equality respects natural diversity, because «equal rewards become unequal (t¦
‡sa ¥nisa) if they were distributed to men who are unequal (to‹j ¢n…soij)».
Even if the geometrical equality is the most difficult to recognize („de‹n), it is the
truest (¢lhqest£thn) and the best one (¢r…sthn)8.
2
Pol…thj is distinct from metics, slaves and servants, see Leg. 743 c7, 846 d 5, 613 e 5.
3
Leg. 920 a-c. For citizens as gewmÒroj (landholders) see 919 d 4, as ™picor…oj (inhabitants) see 846 d 2. See
Schöpsdau (2003), p. 332-333.
4
This is not the appropriate context to discuss the value of the choice of Brisson (2000) p. 162 for veille, éveil et vigi-
lance, that I like to remember here as an elegant and good solution, independent of the arguments that Brisson uses to
support his position.
5
Through this division of work, the slaves and metics were an important part in the hypothetical economy of the life
en logo of the citizens.
6
«[…] It follows that for many reasons, and for the sake of equality of opportunities in the city, there must be unequal
property-classes […] Quarrels will be avoided because honors and offices will be distributed as equally as possible on the
basis of proportional inequality (æj „sa…tata tù ¢n…sJ summštrJ)». 744 b 3 – All the translations I propose here
are based on the work of Pangle (1980) with few corrections also with the help of Saunders’ translation (1970).
7
Leg. 757 b-e.
8
Leg. 757 b 8. I use here the known definition of these types of equality that may refer not simply to the classification
of Archytas (DK 47 B2) for the three kinds of musical proportion, but probably to the Pythagorean sources. Precious
are the pages of M. I. Santa Cruz, On the Platonic Conception of Equality, in M. Migliori, Linda M. Napolitano
The discontent of the many (tîn pollîn)9 also forces the Legislator to use
the arithmetical equality, and it is his task to choose the right measure (mštrwn)
in order to have the correct mixture of quality and quantity10. What seems very
important to me, in this context, is not merely the mechanism of tuning the natu-
ral differences through the law, but that this movement should correspond to the
one of the plexus scholé/ascholia. Where the latter refers to an action of the law upon
the life of the citizens, the former deals with a characterization of the action of the
citizens. Also, the ones who belong to the two inferior wealth classes have as noble
scholé as the members of the upper wealth classes. Although the Athenian Stranger
seems to prefer the principle of aristocratic participation, really the goal of his choice
is neither an arithmetical nor a geometrical equality, but the virtue of the polis. In
order to achieve this virtue, the ones who have to handle and produce are the resi-
dent metics and their slaves (again, not the slaves of the citizens)11. Since everything
that concerns earning money is seen as a limitation of freedom, or better, as a dis-
persion of energies to be concentrated on the achievement of virtue, the questions
are the following: what does it mean to be a citizen? Which are their activities12? In
order to answer these questions, one must understand whether there is a real dialec-
tic between scholé and ascholia. Therefore, I propose a commentary of the following
long, but necessary quotation from the Laws:
I at least affirm that the causes are the non regimes which I’ve often men-
tioned in the earlier arguments – democracy and oligarchy and tyranny.
None of these is a regime, but all would most correctly be termed “factions”
(stasiwte‹ai). For none of them (oÙdem…a) constitutes a voluntary
(˜kÒntwn) rule over voluntary (˜koàsa) subjects, but instead a voluntary
rule (˜koàsa) always with some violence (b…v), over involuntary subjects
(¢kÒntwn). Since he is afraid the one ruling will never voluntary allow
the one ruled to become noble, or wealthy, or strong, or courageous, or in
any way warlike. These, then, are the two principal causes of nearly every-
thing, and certainly of the things just mentioned. Now the present regime,
which we are legislating, has escaped both of the causes we’ve described. For
it presumably dwells in the greatest leisure (scol»n), and they are free as
regards one another (™leÚqero… te ¢p’¢ll»lwn), and because of these
Valditara, D. Del Forno (ed.), (2004), pp. 272 – 288, here p. 275 note 3.
9
Leg. 747 e 4.
S. Leg. 691 c – e, where it is simple to recognize that the prominence of the category of meixis is constitutive for the
10
laws they would be the least likely, I think, to become lovers of money. So
it’s likely and reasonable that the establishing of such a regime would, alone
of all existing regimes, allow for the warrior education and play (paide…an)
that has been elaborated, once the elaboration has been correctly completed
(¢potelesqe‹san) in speech (tù lÒgJ)13.
If the last verb (¢potelšw) says how important the content of this passage
is14, the central items of education and freedom are played towards the background
of the problem of time. Under the two listed causes, false constitutions and love
for richness15, I am interested here in the latter, because it is directly related to the
choice between scholé and ascholia. The lowest point of scholé, as that is most distant
from the true realisation of virtue, both for the single citizen and for the polis, is
the life of the trader, who searches only to accomplish an impossible point of rich-
ness towards the necessities. The lover of richness spends his time at a low level of
quality, then his time is a p£nta crÒnon ¥scolon16. That is said to be the exact
contrary of the scholé, which means freedom for the city and the citizens. The trad-
er’s ascholia is a time empty of being virtuous, a time totally deprived of real time,
because he takes care (™pimšleia) only of private things (tîn „d…wn)17. If the
ascholia tends to the horizon of the private and scholé is identified with the freedom
of the whole state and of the citizens’ regards for one another, the latter is not only a
contemplative activity, but an activity that takes care of the whole. As a profession,
the citizenship in the Laws may resemble the philosophy in the Phaedon18, where
taking care of richness and the body prevents the practice of philosophy.
The banishment of trade from the necessities of life and the strong control upon
property, in addition to the use of an internal value and membership of determi-
nate wealth classes19, are all measures thought to free the citizen from the weight
of material necessities. These solutions also preserve the citizens from the risk of
not recognizing the right hierarchy of goods, and thus not being integrated into
13
Leg. 832 b 10 to 832 d 7.
Leg. 767 a-b about the judges and most of all 718 b-c, for the effect of the laws to make the city makar…a kaˆ
14
eÙda…mona, happy and blessed. For the translation is important to notice that ‘subject’ is not in the Greek text.
15
As Muller correctly notes, in, the passages on war and on wealth belong to a non liberal registry, closely related to
the Spartan one, but then we are told that the good constitution is based on scholé (loisir) and freedom. It is a pity that
the author does not see that this mixed character is just a further explanation of the measure in the laws of Magnesia.
S. muller (1997), p. 215.
16
Leg. 831 c 4. As Anastasiadis notes this of chrónon áscholon is a hapax for Plato, although the number of recurrences
of the family of the word ascholia is extremely modest. Except Leg. 807 c-d and these already quoted passages 832 c-d,
there are about a dozen cases in Plato’s whole work.
17
Leg. 831 c 5.
Phaed. 66 d. Because of the slavery of body «we are hindered to practice philosophy (kaˆ ™k toÚto ¢scol…an
18
¥gomen filosof…a)». The breaks from this slavery are defined as scol¾. S. Sassi (1986), p. 125 and the problem
of Crit. 110 a. The study of ancient myths begins when man has reached a comfortable position (scholé) in respect to
the necessities of life.
19
Everyone was assigned to these classes as he hypothetically came to the colony.
the structure of the city. Belonging to this sphere frees the citizens through the
one permitted form of slavery – that to the laws20. I am going to clarify this point,
implicating the concept of voluntary acceptance of the laws, in order to understand
which type of scholé Magnesia has to offer.
S. Leg. 715 d: «I [the Athenian Stranger] have now applied the term “servants of the laws” to the men usually said to be
20
rulers […] because I hold that it is this above all that determines whether the city survives or undergoes the opposite».
21
Leg. 919 d 6.
22
See for example 790 c for the first education of the babies, 664 c-d, for the ones, who are no longer able to sing,
because they are too old, and instead they tell the myths of the city. For the feast in the context of leisure s. Demont
(1996) p. 23. For the citizenship as a time-consuming profession s. Meyer (2003), p. 213.
23
Leg. 817 b.
view24, because the citizens are at the same time the spectators and the actors of
this tragedy. The use of wine is integrated in this educational system in order to
practice self-control25 and self understanding. This dialectic between self and com-
munity is typical of the scholé of Magnesia, although it is difficult to comprehend
this almost complete organisation of a domain, which, from a modern perspective,
is recognized as a private one. The consumption of wine defined as a diatribÁj26,
a pastime, is a good example of what, in the common opinion (dÒxa) of ‘modern
people’ and of Plato’s contemporaries, belongs to the space of scholé, namely to what
is not regulated by rules. Nevertheless, it is indispensable to the whole educational
apparatus of the Law. Wine loses its disorganized character as a means of exiting
from the sphere of the self: in Magnesia it frees the old members from their fears
and permits them to sing the song of the Laws to the young. The spaces of game
and play know a similar treatment, since they seem to lose their ritual character of
unboundedness, therefore becoming the mimesis that prepares the citizens for real
life, as for example the imitation in war dances or choir songs27.
In spite of the weight the playing holds in the Laws, the citizen of Magnesia
could not be described as the homo ludens of Huizinga: the structure of the polis
seems to fill in every aspect of life, so that there remains no time of exception (Au-
snahmezustand), no time for a differentiation of time. From the perspective of the
paideia, the whole day has to be occupied by paidia. The overlapping of play and
education leaves few possibilities to escape from the ordinary life, the gewöhnliches
Leben of the homo ludens28. The plays and games of the Laws are bounded by the
guidance of the law and its mediation, and their institutionalisation is related to the
health of the constitution itself:
I assert that in all the cities, everyone is unaware that the character of the
games played is decisive for the establishment of the laws (perˆ qšsewj
nÒmwn), since it determines whether or not the established laws will persist
(mon…mouj). Where this is arranged, and provides that the same persons
always play (toÝj aÙtoÝj pa…zein) at the same things, with the same
things, and in the same way, and they have their spirit gladdened by the same
toys, there the serious customs (t¦ spoudÍ ke…mena nÒmima) are also
24
Pangle (1980) describes the entire Laws as a banquet (p. 203-4), because «a more important intoxicant is philosophy
or its mythic imitation», what resembles Symposion and the bacchic delirium of the philosopher (218 b 1-2).
Leg. 647 e. Wine as f£rmakon (drogue) puts one before oneself, when allows one to express and permits one to have
25
the presence of the other gods, and especially Dionysus, at this mystery-rite (telet¾n) and play (paid…an) of older
men, which he has bestowed on human beings as a drug (f£rmakon) that heals the austerity of old age».
32
Leg. 803 e. Compare 659 e as well, for the intertwined character of play, music and education: «But since the souls of
the young cannot sustain seriousness, these incantations are called “games” and “songs”, and are threaded as such. It’s
just like when people are sick and their bodies are weak»
theology as the Laws show. Originally I tried to think of the passage from scholé
to ascholia as the moment of periagwg¾ in the cave’s myth of the Republic33, as
a sort of ritual conversion from the darkness of the unknowing to the light of the
idea. In the Laws, there is no specific point in time where this passage could take
place, for the periagwg¾ is certainly described as a psychical movement, but also
as a universal and progressive one34. It could be applied to the social order, since the
elements of Plato’s philosophy communicate with one another. It seems however
difficult to fit in a possible schema, that is not necessary a platonic one, in which
the ascholia corresponds to the bad movement of the universal soul, and the scholé
to the good one. The justification raises its difficulty if I consider that the ascholia of
the citizens is in any case a state of virtue suited to the virtue of the whole35.
heaven is necessarily driven around under the supervision and ordering of either the best soul or the opposite». S. also
Leg. 893 c – d, Tim. 34 c and Phil. 19 a-b.
35
«More particularly, the sphere of scol» is directed towards the virtues and the supreme purpose», as Anastasiadis
(2004), p. 72 states.
36
For the problem in the Parm. 156 c-e see Sasso (1998), p. 46, and Giannantoni (1995) p. 18, who sees a variation
between a punctual and a timeless quality of the ideas. For Tim, 37 d see Brague (1982), p. 39-45. To compare the
e„kë de kinhtÒn tina a„înoj of Tim. 37 d with the time of the Laws, is necessary to think of the movement
in the city of Magnesia, especially the movement of the soul in the tenth book, but that would take the argumentation
too far from the strict problem of scholé.
37
Leg. 666 d, 667 a. S. Dixsaut (2003), p. 261.
38
Leg. 665 b. In 678 a, on the contrary, exaiphnes is used just in temporal meaning, without ontological or political
implication, as in 944 b and in 866 d. Finally, 712 e is not related to time, but to the condition of the Stranger, to whom
Klenias poses an unexpected question. In this sense it could have something to do with the state of the advancement of
the dialogue, or with the difference between the historical constitutions and the one en logo, but it could also be just a
part of the choreography of the dialogue.
The work of the Athenian Stranger and his old fellows as legislators of Magnesia
is not subjected to the necessity. The character of the game of a time entirely dedi-
cated to something without the need to do it, seems to offer a different perspective
on the value the scholé of the Laws. If the object of Plato’s last dialogue is an inquiry
that takes the form of a moderate game concerning laws and played by old men40, it
lays bare a character of leisure that was not found in the artificial life of the citizens.
This leisure presents the state of a time external to the time in which the life is pro-
jected. The dialogue as a tragedy presents two different perspectives to consider the
time. These are both fictional, but in the imagination of the dialogue, the scholé be-
comes something other than the time the citizens spent, and yet it does not lose its
political character. ScolÁj ¢polaÚomen informs the Athenian Stranger, «we’re
enjoying leisure/free time», as a necessary condition of the proof and choice of the
laws41. But what does this complete inquiry into «every aspect of the laws» mean? Is
it a state possible only in an external position in respect to the projected life of the
city, or can it be practised also by the citizens?
The three old men walk in the direction of the cave of Zeus and speak about
the laws they can recollect for a new Cretan colony. Klenias is in charge of choosing
the constitution and the law for the colony of his fatherland, Megillus contributes
to the discussion, bringing the tradition of Sparta, and the Athenian Stranger leads
the dialogue, changing often into monologue. There is a time of the exposition of
the Laws, of their discussion, and this corresponds to the time of the game and
scholé of the three old men. In the polis they draw, there is a place not directly for
the activity of the law giver, but for that of the law keeper: the nocturnal council.
Through the scholé the dimension of the writing of the Laws communicates with
the dimension of the life projected for the colony. At the same time the discussion
39
Leg. 858 b-c.
40
Leg. 685 a 7 and Leg. 769 a. Then our prudent game of the elderly would have been played in a noble fashion thus
far.
41
Leg. 781 e.
out of the frame of the constitution refers in a mirrors’ play to the possible discus-
sion about the nomoi in the nukterinÒj sullogÒj.
The question is now if this particular use of scholé also means a caesura between
the one and the many in the city. If there seemed not to be a variation in the quality
of time between the different classes, how is the order of the city in the domain of
the different levels of wisdom?
It is unusual that the scholé belongs here neither to the domain of private nor to
that of public. The dialectical thought that takes care of the structure of the polis, as
do the members of the nocturnal council, is recognized to have an oblique position:
at the same time a temporal one, at the gate of the day and night, and a qualita-
42
Eur., Suppl. V. 209 and 883.
43
S. Leg. 964 d.
44
Leg. 763 b S. Lefka (2003), 158.
45
S. Leg. 961 b 7. Compare Resp. 374 e for the scholé of the Guardians. Here I would see one of the character that let
Plato’s political thought differ from the one of Aristoteles. The political and polemical praxeis (actions) in the Ni-
comachean Ethics are described as ascholoi, because they are not chosen for their own tšloj (goal), in contrast to the
intellectual actions (1177 b 4). In the case of the Laws, when we consider the nocturnal council and the legislator as
philosophers, it is difficult to set as true that the «prerogatives ascribed to the philosopher is the complete availability of
one’s own time (scholé) and freedom» as Gastaldi (2003), p. 143.
tive one. This expropriation of both private and public character of the action of
the nocturnal council is intertwined with the character of pr£xewn, the actions
themselves. The work of the nocturnal council deals not only with the exercise of
a political activity as can be the one of the magistrates or of virtuous citizens, but
also with the production of the politics in the Laws. In this sense, the scholé of the
nocturnal council cannot find a predetermined placement in the system of Mag-
nesia, because it contributes to the conservation of the system itself, as a point that
is at the same time inside and outside the polis. This condition at the metaphorical
border of the politics of the Laws also determines the absence of true political power
in the sense of the relation between order and obedience. Although this sullÒgoj
is said to be the head of the city, the way in which it operates is through controlling
the harmony of the singular nomoi and their connection to the universal reason, the
nous. In this sense, the nocturnal council is the place in which the possible differ-
ence in respect of the polis is controlled and elaborated. Where does the possibility
of the difference in the city come from?
It deals with the role of the observer (theoros), who travels in other lands and
brings back the different customs and behaviours, with the goal to check if they
are good enough and useful for Magnesia. The theoros is physically external to the
Cretan colony, but what he brings to the constitution of Magnesia is central to
the conservation of the laws. The identity of the city finds its foundation on the
exchange with the difference.
Even if the activity of the theoros happens beyond the borders of the city, it
keeps an important characteristic for the theme of the time in the Laws: his activity
is in fact a particular scholé, namely a time completely full (ple…w) of scholé.
If certain citizens desire to observe (qewrÁsai) the affairs of the other hu-
man beings (t¦ tîn ¥llwn ¢nqrèpwn pr£gmata) at greater leisure
(kat£ tina ple…w scol»n), no law is to prevent them46.
46
Leg. 951 a 5-7.
47
Leg. 808 b. For the historical characterization of the importance of sleeping s. Schöpsdau (2003) p. 564.
nal is much clearer: in the moment of the trial, the citizens are expected to use their
scholé to be present,
let the vote be taken openly (faner¦), but before this let our judges sit
down in a row right next to one another, in order of age, directly facing the
accuser and the defendant, and let all the citizens (p£ntej), as many as are
at leisure (Ósoiper ¥gwsi scol»n), stand as serious listeners to such
trials48.
Therefore it is not only a prerogative of the lawgivers and the member of the
nocturnal council to act with scholé. In any case, the freedom of the citizens is not
revoked since their scholé is not really the same as that of the nocturnal council or
of the theoros. The problem is to comprehend the nature of this freedom, since it
doesn’t seem to be a choice, although the passage in 832 b 10 to 832 d 7 quoted
above tells about willingness to spend the time that is supposed to be free from the
necessities of life. «There should be a schedule regulating how all the free men spend
all their time, beginning almost at dawn and extending to the next dawn and rising
of the sun»49.
The strict order of time seems to present a contradiction to the statement that
the constitution of Magnesia offers a maximum of freedom50 and scholé. It would
be a conceptual and historic mistake to consider the freedom of the Laws as the
possibility to act beyond the physical and systemic borders of the polis: individual
freedom is never considered; here it is considered only according to the t£xij of
the city. Scholé and free time are correlated with the freedom in and of the polis, not
with the freedom of the individuals. The scholé is then a qualitative state of acting
in the time ordered by the polis.
48
Leg. 855 d 4 – 7.
49
Leg. 807 d 6.
50
S. the first quotation of the paper, in particular 832 d.
51
S. Muller (1997) p. 70 note 5. S. also the critic of Popper, (1973, it. 2002, p. 130), who mixes the argumentations
of Republic and of the Laws, two works that have to be read together, but that also present some important contextual
differences. It is difficult, for example, to follow Piper (1948). Interesting, however, is his use of the word Entproletar-
isierung, although it is not justified in a totally different conceptual field. «Ausweitung des Daseins über den Bezirk
der bloß nutzenden, «knechtlichen» Arbeit hinaus, Eindämmung des Bereichs der artes serviles zugunsten der artes
liberales». S. Piper, p. 71, and Welskopf (1962).
¢p’¢ll»lwn, free in regards to one another52. In this dialogue scholé does not
mean inactivity and self alienation from the world. The history of thought will
follow this conceptual drift through the Roman thinker until the Renaissance53.
This kind of characterization of scholé, which could apparently be attributed to the
nocturnal council or to the theoros, is absent from the Laws. The scholé is a dimen-
sion of the ta heautou prattein (to play one’s own role) in the Laws54, where I find
the definition of voluntary closely related to the definition of freedom, as it was
quoted in the first passage. Is this the freedom of the city, however, to belong to a
pre-ordered system of education that determines how the time will be spent? If one
of the mistakes of the other constitutions compared to the Laws is the lack of will-
ing acceptance of the nomoi, it may appear paradoxical, but the time free from the
needs of the city corresponds to the time that can be joined for the Good of the city
self. What changes in the perspective of the Laws? The willingness of the citizens
seems to be the new decisive factor. In the Laws, the citizens are expected to obey
the different nomoi, because they are convinced of their goodness, not because they
are obliged to follow their prescriptions. This also justifies the figure of the theoros,
to apprehend the different laws of the city, because Magnesia does not have to live
only in the habit of their laws, but with an understanding of them55, which can be
reached through the comparison with the laws of other cities. Regarding the per-
suasive aim of the nomoi and of the preludes in Magnesia, I would like to add no
more than what can be found in almost all the commentaries on the Laws. I think
that the most persuasive argument for the reader of the Laws is the new relation
between law and nature in the tenth book, which can also explain the reason for
the voluntary acceptance of the laws.
They are indeed a product of a techne, but the first producer of techne is the
soul, whereas the laws themselves are close to human nature. To respect the nomoi
means to respect the order of the soul – and of the soul of the universe. The problem
of freedom in regards to one another can only be explained through subjection to
the law: all the citizens are slaves of the law, and then all are free in respect to the
nous.
If everyone has to serve the polis, in spite of the existence of a hierarchy of
knowledge, there is political equality before the law. And exactly the factor that
seemed to represent a risk to freedom appears to be the one that makes it possible,
since the homogeneity of the time and the repetition of the same role signifies
52
S. Muller (1997) p. 215, note 2 «Cette liberté des hommes les uns par rapport aux autres est tout le contraire de la
fusion communautaire, caractéristique de certains formes de vie collective pré-étatique ou des phénomènes de foule».
53
I am not going to describe the history of the concept, but the impression that I get from ancient and Latin fonts is
that the idea of the exclusion from the active society was always present. It only ran parallel to the other philosophical
or more political variations on the theme.
54
That each one plays his own role, belongs to the Republic as to the Laws, as a figure of the political transposition of
the dialectic between one and many, that is elaborated inside the assembly of the nocturnal council and that serves as a
moving basis for the Laws themselves. S. Leg. 965 b-c.
55
S. Leg. 951 b 3.
Bibliography
Des Places, E., Les Lois. In Oeuvres complètes. Texte établi et traduit par Éd-
ouard Des Places, Auguste Diès, Lois Gernet, Lês belles lettre, Paris 1951 ;
Freedom of the city of Magnesia frees from «exploitation» and the «exercise of arbitrary power» (Stalley, 1998, p.
56
156).
57
Leg. 774 a. I would like to report here the different translations of this passage. Eyth: «wenn aber jemand nicht
gutwillig gehorcht, sondern sich im Staate wie einen Fremdling und Sonderling anstellt». Schöpsdau: «wenn aber je-
mand nicht freiwillig gehorcht, sondern sich absondert und sich von jeder Gemeinschaft im Staat fernhält». Saunders:
«If anyone disobeys (except involuntarily) and unsociably keeps himself to himself». Zadro: «Se però un cittadino non
accetta questi principi volontariamente e come un straniero vuol vivere nello stato…». Pangle: «If, despite this, some-
one voluntarily disobeys, estranging himself and not sharing in the city…».
And without masks? I am aware of the implications of this passage in 738 e with the problem of mimesis and theatre,
58
Schöpsdau, K., Nomoi I-III, übersetzt und kommentiert, Vandenhoeck & Ru-
precht, Göttingen 1994;
Zadro, A., Platone, dialoghi, VII, Le Leggi, Laterza, Bari (1983, first ed. 1952).
Arendt, H. (1958) The Human Condition, Chicago, trad. it. Vita Activa, Fabbri,
Milano 1964 ;
Balaudé, J. F. (2000), Le temps dans les Lois, «Revue Philosophique», pp. 3-20 ;
Brisson, L. e Scolnicov, S., (edited by), (2003), Plato’s Laws. From Theory
into Practice. Proceedings of the VI Symposium Platonicum. Selected Papers, Academia,
Sankt Augustin, here Brisson/Scolnicov (2003).
Casertano, G. (1995), Le parti, le forme ed i nomi del tempo nel Timeo platonico,
in Atti del XXXII Congresso Nazionale della Società Filosofica Italiana, a cura di
G. Casertano, Loffredo, Napoli, pp. 147-150;
Giannantoni, G., (1995) Il concetto di tempo nel mondo antico fino a Platone,
in Atti del XXXII Congresso Nazionale della Società Filosofica Italiana, a cura di
G. Casertano, Loffredo, Napoli, pp. 9-23;
Lefka, A., (2003) Souveraineté divine et liberté humaine dans les Lois, in Brisson/
Scolnicov 2003, pp. 155-164 ;
Lisi, F., (2001), Plato’s Laws and its historical Significance. Selected Papers of the I
International Congress on Ancient thought, Salamanca 1998, edited by Francisco L.
Lisi, Academia, Sankt Augustin 2001, pp. 111-114;
Meyer, S. S., (2003), The moral dangers of labour and commerce in Plato’s Laws, in
Brisson/Scolnicov (2003), pp. 206-214;
Migliori, M., Napolitano Valditara, Linda M., Del Forno D., (ed.) (2004), ,
Plato Ethicus. Philosophy is Life, Academia, Sankt Augustin;
Popper, K. (1973), The Open Society and its Enemies, it. tr. La società aperta e i
suoi nemici, Armando 2002;
Sassi, Maria Michela, (1986), Natura e storia in Platone, Storia della Storiografia,
9, pp. 104-128;
Weiler, I., (2000), Arbeit und Arbeitslosigkeit im Altertum, in Sigot (2000), pp.
39-66;
Welskopf, E. C., (1962), Probleme der Muße im Alten Hellas, Rütten & Loen-
ing, Berlin.
Ioanna Papadopoulou
U. Peloponeso
iopa@otenet.gr
Introduction
This paper explores the thesis and the antithesis in the ancient Greek and Ro-
man Theatre and is divided in two parts: the first chapter deals with the function of
the oppositions in the Hippolytus of Euripides; in the second part we briefly discuss
how Seneca’s conception of the same mythological background, in his Phaedra,
creates an antithesis to the Euripidean play.
1
See J. Blomqvist, ‘Human and Divine Action in Euripides’ Hippolytus’, Hermes 110 (1982) 339-414, esp. 406 ff.
Right until the Exodus, Hippolytus will try to present himself as the most pru-
dent and decent man (vv. 994-5; v. 1000 when he bids farewell to the city; v. 1191;
v. 1242 while encountering the sea-monster bull). He feels sorry because in the eyes
of his father he is an abuser (vv. 1070-1). Progressively, and without him becom-
ing aware of it, his solitude changes: the Chorus sympathises with his suffering (v.
1149: he is not worth of a atê), and the Messenger is on his side too (v. 1250 ff.). In
the Exodus, Hippolytus underlines his guiltlessness to his father (v. 1383: ‘I haven’t
done any wrong’; v. 1364), and the father-son opposition ends with forgiveness and
with Hippolytus’ pleading his father to cover him because he is dying (v. 1458).
‘Cover my head’, ‘Be silent’, ‘I fear you might speak’ (vv. 243, 245, 251, 279;
sigan vv. 173, 281; v. 294, 394: the Nurse begs Phaedra not to be silent; v. 330:
Phaedra is holding back information),8 that is Phaedra’s position (thesis) as well as
her opposition to others, the Chorus and the Nurse. The initial position was given
again by Aphrodite (vv. 28-29): the heroine is portrayed in the Prologue as a sad
woman that remains silent (vv. 38-9); she has fallen in love due divine intervention,
and theoretically this places her among the followers of Aphrodite, since Phaedra
has also built a temple in honour of the goddess of love ‘epi Hippolytôi’ (vv. 31-3).
Phaedra is found in a peculiar isolation, though different from Hippolytus’.
Her loneliness forms her own opposition to the rest of the world. The heroine wants
to die (v. 139, the Chorus is worried), the symptoms of the death-wish are visible on
her body (vv. 198-200; v. 274). Her odd behaviour creates the notion that she suf-
fers from an inexplicable disease (nosos), which according to the Chorus is a divine
fury (mania, v. 141 ff.) that is either caused by infidelity (v. 152) or by the death of
Theseus (v. 155) or is even attributed to a possible pregnancy (v. 161). The Nurse de-
scribes that the queen behaves inconsistently and cyclothymically; she asks obscure
things (like water from the mountains, v. 212-4), she changes her mind repeatedly,
she says and unsays (v. 181-3). In this manner ‘society’ creates the image of an in-
sane Phaedra (vv. 237-8: a daemon is torching her; v. 269: unknown disease; v. 283:
beyond any doubt it is madness).
The heroine herself testifies her situation cryptographically and in opposed
terms: ‘My hands are pure, but a miasma is in my mind’ (v. 317); ‘A friend is kill-
ing me without me and him wanting it’ (v. 319). When Phaedra’s silence is broken
under the Nurse’s pressure, the calamity of the heroine gets lined up among the
impure loves of her family, and her own death also derives from love (vv. 337, 401).
Actually, the women of the Chorus and the Nurse cannot understand that Phae-
dra’s ‘disease’ is only her defence to Aphrodite’s plot (cf. v. 1304); it is her attempt to
reinforce sensibility (sôphrosyne), even through her suicide (vv. 399, 419 ff.). Death
is her only way-out, her salvation from her passion, since Phaedra wants, above all,
8
For a discussion on the subject, see Ch. Segal, ‘Confusion and Concealment in Euripides’ Hippolytus. Vision, Hope,
and Tragic Knowledge’ Métis 3 (1988) 263-282; cf. J. Gilbert, Change of Mind in Greek Tragedy (Hypomnemata 108),
Goettingen 1995, pp. 92-6.
to be counted among the chaste women (v. 430).9 Based on her obvious antithesis
towards the rest of the world and on her consciousness regarding her fatal passion
for her stepson (v. 672 ff.), Phaedra chooses definitely to die (v. 723) and to get even
with the ‘perfect’ Hippolytus by forcing him to participate in the passion (v. 729
ff.);10 her plan is to make him suffer and thus make him learn to be sensible.11
The leitmotif of thesis and antithesis, of the two sides, is also demonstrated in
the case of the Nurse, who too behaves inconsistently. She wants to die when she
learns the true reason for Phaedra’s strange behaviour, and when she makes up her
mind, she advances the power of love as a common place (vv. 439-49), and she pres-
sures Phaedra to accept it, arguing that the rejection of love is a hubris to the gods
(v. 474). According to Phaedra, the Nurse ‘speaks well, but says obscene’ (v. 503).
We should add that the contradiction between silence-hiding and revealing char-
acterizes the Nurse’s behaviour as well; for instance she asks Phaedra persistently
to break her silence by resorting to a supplication (vv. 495-300), and then she asks
Hippolytus with supplication and by oath to keep silent (v. 603).
In this frame of constant oppositions, the Chorus sings an escape song (v. 732
ff.); the women wish they could fly like a bird to another world of misfortune and
disaster (psychology of analogy) or to a world of happiness.12
For Theseus his late wife is the bird that slipped from his hands and left for
Hades (vv. 827-9). In the interaction of silence and uncovering, Theseus holds, like
the other heroes, a peculiar position: he wishes to speak to his son, although for a
moment he is silent (vv. 882, 911). For the king it is the letter that dins (v. 878), in
other words he accepts as an irrefutable witness not the alive, his son, but the dead,
his wife (vv. 971-2).
Due to this contrast, the father-son relationship is illustrated as a reverse, op-
posed and therefore absolute subjective reality. For instance, Theseus believes that
his son was killed by the father of some woman he had rapped (cf. vv. 1164-5: Hip-
polytus as a serial ravisher). The divine interference leads Theseus to a change; he
realises that his son is brave, full of forgiveness and compassion (v. 1450). Now it
is Theseus’ turn to fly away like a bird, as Artemis says (v. 1292), because now it is
he who is the bad one, the malicious among the chaste (v. 1315), whereas Hippoly-
tus, according to Artemis, is the eukleês (v. 1299), just like Phaedra was, according
to Aphrodite. The king, last in the chain of silence, wishes he had been silent, he
wishes he had never uttered the curse (v. 1412).
In the end, Aphrodite destroys all three, as Hippolytus states (v. 1403).13
9
Phaedra suicides motivated by fear of shame; cf. E.P. Garrison, Groaning Tears: Ethical and Dramatic Aspects of
Suicide in Greek Tragedy, Leiden 1995.
10
Cf. L.P. Parker, ‘Where is Phaedra?’, Greece & Rome (G&R) 48 (2001) 45-52.
11
The lines are omitted by Nauck. On the subject see D.B. Lombard, ‘Hippolytus’ pathei mathos-the lesson portrayed
in the Hippolytus of Euripides’, Antike und Abendland (A&A) 34 (1988) 17-27.
12
Cf. Barlow, op.cit., p. 38 ff.
13
However, Phaedra’s love will not be kept silent, as Artemis foretells in the Exodus (vv. 1429-30).
Throughout the play, the heroes of Euripides oscillate between two poles: what is
right and wrong, what they are allowed to do or to say and not (e.g. Nurse v. 177;
Phaedra v. 339 ff.; Hippolytus v. 988). They are bounded by supplications, oaths of
silence and anavowed secrets, in which also the Chorus takes part by giving oath
to Phaedra and thus the women cannot tell the truth to Theseus (v. 712 ff.). The
antithesis between what the heroes feel and what they say, between what they think
or believe of themselves, or what they wish others would think of them (prudence
and need for renown) and what the others believe of them is crucial, until reconcili-
ation in repentance, regret and forgiveness.
14
See e.g. B. Zimmermann, ‘Seneca und die roemische Tragoedie der Kaiserzeit ‘, Lexis 5-6 (1990) 203-14, esp.
212-4.
15
We do not intend to discuss in this paper if Seneca wrote the plays for the recital hall or for the theater, but we tend
to agree with A. Hollingworth, ‘Recitational Poetry and Senecan Tragedy: Is There a Similarity?’, The Classical World
(CW) 94 (2001) 135-144.
16
On the subject regarding Phaedra see E. Lefèvre, ‘Quid ratio possit? Senecas Phaedra as stoisches Drama’, Wiener
Studien (WS) 82 (1986) 131-160. For a more general approach see: T.G. Rosenmeyer, Senecan Drama and Stoic Cos-
mogony, Berkeley 1989, N.T. Pratt, ‘The Stoic Base of Senecan Drama’, Transaction and Proceedings of the American
Philological Association (TAPhA) 78 (1948) 1-11; cf. also R.G. Tanner, ‘Stoic Philosophy and Roman Tradition in
Senecan Tragedy’, Aufstieg und Niederschlag der Roemischen Welt (ANRW) vol. 2, 32. 2 (1985) 1100-33.
we traced in the Greek play has developed in a more general opposition of Seneca
towards the Euripidean tradition and dramaturgy. We would say −admitting that
this is an exaggeration− that if Seneca regarded the tragedy of Euripides as a thesis
for the myth, he gave his antithesis to it.17 This opposition is clear not only in the
structure of Phaedra, since the divine Prologue and the theophany-dea ex machina
are absent, but in the plot and also in the portrayal of the heroes and in the drama-
turgy.
Since the gods do not take part in the plot, the setting of the positions and op-
positions is transferred to the hands of the heroes. Humans become the centre of the
myth in a very different way compared to the Greek drama.18 It seems that Seneca
is looking for - or trying to explain - the reasons and the motivations of the choices
or the actions.19 In this framework, for instance, it is stressed out that Phaedra has
ceased loving her husband, and Seneca adds an explanation: Theseus’ adultery (vv.
91-9). But in outlining Phaedra’s character and her passion for Hippolytus, adultery
is not used −quite expected under the circumstances− as a reaction or revenge; it is
marked out more as a sign of her loneliness.
In this rational exploration of the myth, Phaedra reveals her love to Hippolytus,
being absolutely certain that Theseus will not return from his journey to the Under-
world; in this case she is a widow and therefore free to love anyone she pleases (see.
vv. 240, 634-5). Of course, in her passion, her lust, Phaedra reaches the exaggera-
tion, she loses her dignity and she behaves as a beggar of love (vv. 664-71) uttering
the characteristic phrase miserere amantis (‘have pity for a lover’).20 Furthermore,
when Hippolytus does not respond to her love, she wishes to die by his very hand
(v. 710 ff.). The Nurse has already stressed out that Phaedra’s passion is unnatural
(see e.g. vv. 171-7: Perge et nefandis verte naturam ignibus).21
Theseus also explains, in terms of reason, the rape committed by his son as a
result of the latter being violent (which was also apparent in the hunting-scene of
the Prologue). The austere, restricted way of life which his son has chosen results in
his being dangerous; in other words, according to Theseus, the young man’s long
chastity leads him to the other edge, that of rough harming (vv. 909-12).
Hippolytus stresses out his difference to the others, but not his isolation, with
the way of life that he has chosen to follow. He becomes absolute, rough; he is not
a modest and decent servant of Artemis, but a man full of an irrational misogyny
(vv. 558-64). His hatred towards women is extended even to his own mother (vv.
17
Cf. H.M. Roisman, ‘A New Look at Seneca’s Phaedra’ in G.W.M. Harrison (ed.), Seneca in Performance, London
2000, pp. 73-86, esp. pp. 83-4.
18
Cf. G.O Hutchinson, Latin Literature from Seneca to Juvenal, A Critical Study, Oxford 1993, pp. 124-7 ‘Extrava-
gance’, and pp. 160-164 ‘Structure and Cohesion’.
19
Cf. A. Schiesaro, The Passion in Play: Thyestes and the Dynamics of Senecan Drama, Cambridge (CUP) 2003.
20
See also Ch. Segal, Language and Desire in Seneca’s Phaedra, Princeton 1986, esp. p. 150 ff.
21
On the function of nature in Phaedra see A.J. Boyle, ‘In Nature’s Bonds: A Study of Seneca’s Phaedra’, ANRW vol.
2, 32. 2 (1985) 1284-1346.
578-9), and the irrationality of his feelings is apparent when he cannot give a rea-
sonable explanation for his misogyny (see v. 230 ff., 555 ff., 566 ff.). The Nurse tries
in vain to talk sense into him, to show him how wrong his way of thinking is, to
make him realise how unnatural his way of life is. The Chorus offers another reason
for Hippolytus’ fall, which can also be regarded as an indirect explanation of Phae-
dra’s lust: Hippolytus’ beauty is beyond words (vv. 736 ff.). But, as it is stated in this
choral song, rarely do handsome men have a good end (v. 821: ‘rarely the beauty of
a men is not unpunished’-Ravis forma viris (saecula perspice) impunita fuit).
On the other hand, Phaedra does not conceal or hide her passion, she is not
silent, she does not desire to die; she commits suicide in the last act, and she does
not do so out of despair nor to protect her good reputation.22 In the Roman play,
the heroine takes the responsibility of her feelings, she makes her own choices (v.
113, 178 ff.; v. 591: aude, anime, tempta...), and she herself reveals her passion to
her stepson. Furthermore, Phaedra is searching and thinking of ways to cover this
nefarious relationship by marriage, since, as aforesaid, she believes Theseus to be
dead, and in this case the relationship of stepmother-stepson does not exist and, in
addition to this, Hippolytus must assume power of the city (v. 620 ff.).
The rape accusation is an act of the Nurse (v. 725 ff.), who has attempted initial-
ly, with obstinacy, but in vain, to make Phaedra see reason (see e.g. vv. 130, 143).
Then she makes up the story of the false rape aiming to protect her lady. Phaedra,
trapped in this lie, accuses Hippolytus of assault on Theseus, but only when the life
of her beloved nurse is in danger (vv. 883-5).
It should be added that in the heroine’s first monologue Seneca composes a
suasoria (vv. 85-128), a speech in defence, presenting Phaedra as a victim of cir-
cumstances. Some of the arguments in her defence are Theseus’ marital infidelity,
Phaedra’s absolute loneliness and helplessness in her passion (in contrast to her
mother’s love-story with the bull) and Aphrodite’s curse on all women of her clan
to get involved in pious love-affairs.
A point of antithesis to the extant play of Euripides is that the heroine is not
interested in her eukleia, but she is more concerned with the satisfaction of her
passion. As for Hippolytus, Seneca’s young chaste hero does not care to behave as
a sôphrôn man. At the end of the play he is already dead, so he never forgives his
father, who is left only with his guilty conscience.
Since the centre of the gravity is obviously transferred from the gods to human
actions and the lack of common sense, Seneca, being a Stoic, places the opposition
between rational and irrational as the main subject of his play. His own thesis is the
anxious question-answer of Phaedra to the Nurses’ efforts to teach her the right way
of morality and sense; Quid ratio possit?, ‘What can reason do?’, Phaedra wonders
(v. 184). Still, it seems that even in the irrationality of Phaedra’s passion Seneca
22
Cf. e.g. the recent short article of M. Magnani, ‘ La reputazione di Fedra’ in O. Vox (ed.), Ricerche euripidee (Satura
1), 2003, pp. 69-63.
provides a logical explanation: the Nurse (vv. 201-10) refers to the ‘policy of love’;
the pure love is for the poor people, and the irrational passions hit only the rich,
because the affluence of goods makes them ask always for more.
There is an antithesis between Phaedra’s irrational feelings and Hippolytus’ and
Theseus’ behaviour: the heroine is aware of the excessive passion, and its rejection
leads her to harm Hippolytus after being manipulated by the Nurse, and when she
feels that she has no way-out.
It is not her intention to make Hippolytus participate in her passion and to
teach him a lesson. On the other hand, Theseus and Hippolytus do not seem to
realise their wrong-thinking.23
Seneca presents in a first level the story of an unreturned love, which due to the
intervention of fortuna (cf. the chorus v. 980)24, due to unforeseen factors, such as
the Nurse’s attempt to protect her lady and vice versa, takes a dangerous turn; and
then it takes the form of an irrational, conscious and yet unwilling fall of a man
from the woman that loves him.
Hippolytus, who is in direct opposition to Phaedra’s love, reacts with exces-
sive anger, range and hatred to her feelings, and he never reaches the point of self-
judgment, as the hero in Euripides’ play. He is portrayed less as a pious young man
and more like a violent hunter. In this aspect lies the tragic antithesis: the hunter of
the Prologue becomes the prey, and the true hunters are the women that love him
and his own father.
In Phaedra, Theseus, although he does not encounter his son, keeps the same
line of action as in the Greek play. In the beginning he reacts heartlessly to the
news of his death (vv. 998-9), but he does weep when he hears the details about
his son’s death from the Messenger; he expresses his own inner antithesis, between
the father’s feelings and the husband’s who avenged his wife’s abuse: ‘I wanted to
kill him for his guilt, but I weep, because he is lost’ (occidere volui noxium, amissum
fleo, v. 1117); ‘I am crying because I destroyed him, not because I lost him’ (Quod
interemi, non quod amisi, fleo, v. 1123).
Theseus also weeps, while trying to find out the truth from Phaedra; he cries:
‘Don’t my tears move you?’ (Lacrimae nonne te nostrae movent?, v. 881,). The strong
opposition between Theseus and Phaedra becomes clear in the last act. She reveals
the truth about Hippolytus’ innocence and his wrong condemnation, and then she
commits suicide with Hippolytus’ sword, whereas Theseus, who loved and believed
her blindly, now condemns her and hates her deeply.
In a higher level, Seneca gives the antithesis under the prospect of the stoic
On the suject see V. Wurnig, Gestaltung und Funktion von Gefuehlsdarstellungen in the Tragoedien Senecas, Interpre-
23
doctrine. Both Hippolytus and Phaedra live against Nature. Especially the heroine,
because of her desire, does and feels things that are unnatural for her both as a
woman and as a sensible human being; she lives contrary to Nature as defined by
Roman Stoicism. The Nurse’s speech (vv. 451 ff.) with the reference to nature and
providence, offers a characteristic example of stoic thought, and under this view it
is made apparent that not only Phaedra, but Hippolytus as well, lead an unnatural
life (see v. 454).
Regarding the imagery, Seneca creates two oppositions: Hippolytus’ world is
described as a world of freedom and light in the Prologue; his world comes in con-
flict in the next act with Phaedra’s world, which is outlined as the world of water
and sea, of irrational supplication for love and captivity. The latter finally prevails,
with the disaster by the sea-bull becoming its symbol. Respectively, the hole play
is a reverse movement from and to the Underworld: Theseus returns from Hades,
where he went alive and of his own free will; his comeback signals the going down
of Hippolytus, who dies unwillingly, and of Phaedra, who suicides, namely dies
willingly.25
It should be added that regarding the antithetical pairs or double sides of a
definition in a single line they do occur in Seneca’s play, but only on the grounds of
hesitation. For example: Phaedra says when confronting Hippolytus: ‘I call you as
my witness, oh Gods, I do not wish what I wish’ (Vos testor omnis, caelites, hoc non
volo / me volle, v. 604-5); ‘I want to speak and recoil from it’ (Lobet loqui pitetque,
v. 637).
These are the oppositions of Seneca as a representative of Roman tragedy to-
wards the Greek prototypes: the gods exist only like distant shadows, they do not
intervene drastically, and it is the game of self-knowledge and the limits of ration-
ality that lay down the terms of the drama. Down to the bottom line, Phaedra’s
suicide could be regarded from the standpoint of the stoic departure as a heroic
action of a wise human, since, after Hippolytus’ death, she faces a not worth-living
life. Instead, she chooses to follow him in the Underworld and to get united with
him there (vv. 1183-4). Theseus, blind from his love, sees the truth too late, whereas
Hippolytus never does. The three of them get destroyed, but it is not a constant
thesis and antithesis that leads them to this point. Only one antithesis exists and
remains throughout the play: Phaedra’s lust for Hippolytus, Hippolytus’ rejection
to any sort of sexual love, and Theseus hatred for Hippolytus and, after the reveal-
ing of the truth, his hatred for Phaedra (vv. 1279-80).26 The three of them together
introduce examples of the disastrous results that the lack of reason creates, when
the unlimited, unnatural passion, including love, anger, rage and hatred, prevails.
25
On a different approach on the subject see D. Henry and B. Walker, ‘Phantasmagoria and Idyll: An Element of
Seneca’s Phaedra’, Greece & Rome (G&R) 13 (1966) 223-39.
26
Cf. C. Garton, ‘The Background to Character Portrayal in Seneca’, Classical Philology (CPh) 54 (1959) 1-44.
Conclusion
Seneca, by focusing on reason, and more generally on Roman Stoicism, re-
formed the myth of Hippolytus, not only in terms of structure, but also in terms of
content, without taking into account the Euripidean leitmotif of thesis and antith-
esis. He sketched a firm and unvarying antithesis among the heroes, who experi-
ence quite difficult situations and react with excessive feelings (anger, rage, passion),
which become dangerous for their own existence as human beings.
The end of both tragedies was given by the Greek mythology: Phaedra dies (com-
mits suicide), Hippolytus dies, Theseus survives, but the course to the tragic end of
the family drama differs. Euripides provided - in his second Hippolytus - outlines of
real, genuine emotions, he examined the pathology that results in unexpected reac-
tions aiming at the inner contradiction of the heroes and the opposition between
the self and the others, until the final despair (the case of Phaedra, partly also of
Theseus), regret, repentance and forgiveness (Hippolytus and Theseus). Seneca, in
his Phaedra, apart from his antithesis towards the parameters of Euripides’ tragedy,
introduces the opposition of reason and irrationality, natural and unnatural desires
and feelings, and the fall that stems from the lack of stoic wisdom and rational
judgement in human choices and actions.27
27
On the reception of the Phaedra-myth see M. Stadter Fox, The Troubling Play of Gender: The Phaedra dramas of
Tsvetaeva, Yourcenar and H.D., Selinsgrove 2001.
Luís Pereira
U. Algarve
lmpereira@ualg .pt
Introdução
A dimensão lúdica da aprendizagem tem vindo, cada vez mais, a ser valorizada,
muito devido à proliferação de computadores, cada vez mais baratos e cada vez
mais sofisticados. E, naturalmente, ao desenvolvimento da Internet. No entanto,
essa dimensão lúdica só se torna interessante no caso de levar a uma mais efectiva
aprendizagem. Caso contrário, é estéril e enganadora.
Neste trabalho1 quisemos testar as potencialidades do jogo Língua Latina, do
qual falaremos a seguir. O estudo foi aplicado a alunos do 1º ano de Línguas e Li-
teraturas Modernas da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade
do Algarve que tinham iniciado o estudo do Latim naquele ano lectivo. Pensamos
que as suas conclusões poderão ser aplicadas, de igual forma, a alunos do ensino
secundário que estejam a iniciar o estudo desta língua clássica. O estudo é constitu-
ído por três abordagens, ainda que pouco aprofundadas: plano quantitativo, plano
descritivo e plano qualitativo.
2. Plano quantitativo
Através deste estudo pretendemos averiguar até que ponto o jogo de computa-
dor “Lingua Latina” permite uma mais efectiva aprendizagem de uma declinação?
O estudo foi realizado em ambiente de aula, na disciplina de Latim Elementar,
do 1º ano, por motivos que se prenderam com a disponibilidade dos alunos e com a
tentativa de conciliar um conteúdo programático com a realização do estudo. Neste
sentido, este estudo situa-se no plano quase experimental. De facto, ao trabalhar
com os alunos de um grupo já constituído – a turma – a aleatorização completa da
amostra fica comprometida.
Dos alunos presentes na aula, foram seleccionados 14. Eliminámos os alunos
repetentes, bem como os que já haviam tido latim no ensino secundário (já conhe-
ciam a 4ª declinação), porque interessava que os alunos não dominassem este con-
teúdo. Daqui se poderá inferir que não foi realizado um pré-teste, pois se os alunos
desconheciam este item, seria despropositada a sua realização.
Desses 14 alunos, formaram-se dois grupos: experimental e controlo (Tabela 1).
Na tentativa de salvaguardar a equivalência dos grupos, afinal o garante da validade
do estudo, seleccionámos os elementos constituintes do grupo de controlo através
do processo de aleatorização, através de um sorteio.
20
18
16
14
12
Nota Final
10
11
8
N= 7 7
Multimédia Tradicional
Tipo de estudo
3. Plano descritivo
Aproveitando este estudo, quisemos também abordar o tema num plano des-
critivo. Assim, inquirimos os alunos do Grupo Multimédia. As respostas a esse
questionário (Anexo 3) permitir-nos-ão tirar algumas conclusões interessantes. An-
tes, será só necessário localizar esta abordagem: um estudo não experimental, do
tipo survey explicativo. Além de descrever, temos o objectivo de tentar determinar
relações entre as variáveis.
Mais uma vez, as conclusões a retirar são pouco claras, devido ao número dimi-
nuto de inquiridos: os 7 elementos do GM.
O questionário, preenchido anonimamente, tinha duas partes distintas: a pri-
meira relativamente ao computador e à Internet; a segunda relativamente ao jogo e
ao estudo de 4ª declinação.
Tecnologias
Nota Total
Razoavelmente Bastante Muito
18,0 1 1 0 2
18,5 1 0 0 1
19,0 1 0 0 1
19,5 0 1 0 1
20,0 0 1 1 2
Total 3 3 1 7
Tabela 3: Correlação entre as notas e o desejo de ver as tecnologias mais utilizadas na aula.
Outras variáveis que poderiam suscitar interesse cruzar seria o número de vezes
que cada aluno frequenta a Internet por semana e o seu desejo de ver as tecnologias
mais presentes na sala de aula. Através da Tabela 5, verifica-se que os alunos que
menos navegam na Internet são os menos interessados nas novas tecnologias nas
aulas.
Sublinhamos o facto de um aluno que diz navegar todos os dias na internet e,
apesar disso, ter apenas uma expectativa razoável no que toca ao multimédia e sua
incrementação nas aulas. (Tabela 5)
Tecnologias
Navegação Total
Razoavelmente Bastante Muito
Raramente 2 1 0 3
uma ou duas 0 1 1 2
três ou quatro 0 1 0 1
todos os dias 1 0 0 1
Total 3 3 1 7
Tabela 5: Cruzamento entre o número de vezes/semana na internete o desejo de ver as tecnologias mais
utilizadas na aula.
Quanto aos aspectos considerados mais úteis, a escolha foi unânime: a correc-
ção imediata. De facto, uma das mais valias do software educativo tem a ver precisa-
mente com o feedback imediato. O aluno poderá estar a trabalhar sozinho e, mesmo
assim, saber a cada passo se o seu trabalho está, ou não, correcto. (Tabela 8)
4. Plano Qualitativo
O questionário que serviu de base à abordagem descritiva continha duas ques-
tões que pediam aos alunos para apresentarem:
i) alguns motivos por que gostariam de ver as tecnologias mais utilizadas na
aula;
ii) razões para serem realizadas mais actividades idênticas à experimentada es-
pecificamente nas aulas de Latim.
a utilização dos computadores e também é um instrumento pelo qual não nutro uma
grande simpatia (sujeito 2).
Ainda um outro ponto de vista: as novas tecnologias ajudam bastante, mas o
método tradicional é auto-suficiente quando existe interesse por parte dos alunos (su-
jeito 4). Interesse que poderá ser accionado pelas tecnologias, segundo a opinião de
alguns elementos já citados.
Um dos elementos demonstra uma posição conciliadora entre os dois métodos:
creio que possa ser muito benéfico, mas o método tradicional também o é. No meio está
a virtude, conclui de forma apaziguadora o sujeito 3.
5. Análise Crítica
O estudo que realizámos, sendo, em rigor, a nossa primeira experiência neste
campo, apresenta algumas deficiências: umas que já detectámos, outras que ainda
não conseguimos apontar.
Obviamente que o número de participantes no estudo é bastante diminuto. Já
referimos que resultou das circunstâncias de termos realizado o estudo numa tur-
ma e termos tido de eliminar os alunos repetentes. Isto levou a que, por exemplo,
6. Conclusão
Para o problema que formulámos (até que ponto a aplicação multimédia “Lín-
gua Latina” permite uma mais efectiva aprendizagem de uma declinação?) tínhamos
em mente que a aplicação multimédia dotaria os alunos de uma maior capacidade.
No entanto, durante a realização do estudo apercebemo-nos de que a utilização da
aplicação tinha o revés de ocupar bastante tempo. Além disso, os alunos sentem que
interiorizam bastante utilizando simplesmente caneta e papel.
Por outro lado, pudemos desde logo constatar um grande entusiasmo: sentia-
se a motivação dos alunos do Grupo Multimédia, que pareceram, de certa forma,
agradavelmente surpreendidos com as potencialidades do jogo. Como vimos, eles
apreciaram sobretudo a correcção imediata.
Um aspecto muito importante é a exploração que o professor faz de um jogo
como este. Apesar de não ser mensurável em nenhuma das questões e das respos-
tas, estamos certos de que a disponibilização de uma dada aplicação multimédia
aos alunos, sem nenhuma explicação não é, de todo em todo, a melhor opção. O
professor deverá explicar o funcionamento, exemplificar e deixar o aluno testar a
aplicação. Depois desta apresentação, os alunos poderão até vir a encontrar poten-
cialidades que terão escapado ao professor.
Não ficámos, no entanto, suficientemente esclarecidos em relação à capacidade
superior do programa em relação ao estudo habitual. Talvez nem fosse o essencial,
já que, pelo menos, é evidente que os alunos se sentiram bastante motivados e in-
teressados. E, se não for mais eficaz, não diminui o nível de aprendizagem. Ora,
se as tecnologias os fazem sentir mais interessados, a opção pela sua inclusão em
ambiente de aula parece ser acertada.
caixa onde o aluno deve palavra latina e respectiva tradução percentagem de respostas
escrever o caso pedido (pode-se optar entre 6 línguas – certas obtidas
excepto o português)
ANEXO 2
Pós Teste
a) nominativo do plural
b) dativo do plural
c) dativo do singular
d) genitivo do plural
a) porticum
b) porticus
c) porticuus
d) nenhuma das anteriores
a) manibus
b) manu
c) mano
d) mane
a) ablativo do singular
b) ablativo do plural
c) ablativo e dativo do singular
d) dativo do singular
a) nominativos do plural
b) nominativo do singular
c) genitivo do singular
d) todas as anteriores
a) porticuum
b) porticum
c) porticorum
d) porticium
7. De que género é a palavra veru, -us?
a) masculino
b) feminino
c) neutro
d) masculino ou feminino
8. Em que casos pode estar genu (genu, -us)?
a) nominativo do singular
b) nominativo e vocativo do plural
c) genitivo do singular
d) todas as anteriores
a) corna
b) cornus
c) cornua
d) cornia
a) exercitorum
b) exercituum
c) exercitus
d) nenhumas das anteriores
a) senatibus
b) senatus
c) senatubus
d) qualquer uma das anteriores
a) ablativo
b) dativo
c) vocativo
d) qualquer uma das anteriores
a) arci
b) arcua
c) arcus
d) arcuum
15. Uma palavra de tema em –u, cujo nominativo do plural é em –us, é do género:
a) masculino
b) feminino
c) neutro
d) opção a) ou b)
a) no plural
b) no singular
c) no plural ou no singular
d) currus não pode ser sujeito
a) neutro
b) masculino ou feminino
c) todas as anteriores
d) se tiver o nominativo em –u, é do género masculino
ANEXO 3
Questionário
Em cada um dos itens, assinale com uma cruz a resposta mais adequada, correspondendo os números,
sendo que 1 é o mais baixo e 5 o mais alto.
I – O COMPUTADDOR E A INTERNET
1. O estado da questão
Na obra Um deus passeando pela brisa da tarde, de Mário de Carvalho – um
romance histórico cuja acção decorre na Lusitânia, nos tempos de Marco Aurélio e
do seu sucessor Cómodo (primeira metade do séc. III d. C.) –, assiste-se a uma ge-
neralizada agitação política e social, motivada não apenas por constantes incursões
de povos árabes, mas também pelo aparecimento de um novo movimento religioso,
que se identifica com o sinal do peixe e se vai insinuando e espalhando por toda a
parte. Estão em confronto dois mundos: o velho mundo romano, representado, en-
tre outros, pela figura de um duúnviro que via tudo a desabar em seu redor e tinha
dificuldade em compreender o que se passava, e um novo movimento religioso e
sectário, que condenava e desprezava esse velho mundo, contrapondo-lhe a mensa-
gem de Cristo.
Como esclareceu o próprio Mário de Carvalho numa entrevista na qual jus-
tificava o teor e alcance da sua obra, o romance levanta a questão, que continua
irrespondível, da queda de um grande império. Dizia então o autor:
“ As minhas preocupações não podem deixar de estar presentes nos livros que faço.
Quando escrevo um livro sobre a Lusitânia romana – Um Deus Passeando… –, deve
ser claro para o leitor que estou a pensar nos dias de hoje, sem com isso procurar
fazer um paralelismo estrito, que as situações não são comparáveis. Essa inquietação
minha está lá. Alguma coisa na queda do Império Romano me incomoda. Sei que há
bibliotecas sobre o assunto, mas não percebo muito bem.”1
1
Entrevista publicada na revista Ler (do Círculo de Leitores), nº 34 (Primavera de 1996), pp. 40-49, p. 46. Sobre o re-
curso ao romance histórico como forma de avaliar o tempo presente, veja-se Osvaldo Silvestre, “Mário de Carvalho:
Revolução e contra-revolução ou um passo atrás e dois à frente”, in Colóquio / Letras, nº 147/148 (1998), pp. 209-229
(pp. 218-220), e Maria de Fátima Marinho, “O sentido da história em Mário de Carvalho”, in Revista da Faculdade
de Letras “Línguas e Literaturas”, Porto, XIII, 1996, pp. 257-267.
2
Veja-se, de Pierre Grimal, “La philosophie de l’histoire face à l’angoisse de notre temps”, in Rome, La Littérature et
l´Histoire, Tome II, Rome, École Française de Rome, 1986, pp. 1261-1273.
3
Peter Brown, O fim do mundo clássico, Lisboa, Verbo, 1972, p. 126, fala na complexidade e multiplicidade das cau-
sas do colapso do governo imperial, somando aos motivos de ordem moral os de ordem económica e social. Sobre esta
matéria veja-se também Pierre Riché, As invasões bárbaras, Mem Martins, Publicações Europa-América, s. d. (1992),
e ainda André Piganiol, Histoire de Rome, Paris, Presses Universitaires de France, 1977 (6ª. ed.), pp. 501-522, que
defende que Roma não morreu de morte natural, foi assassinada; vd. igualmente Averil Cameron, The Later Roman
Empire, AD 284-430, London, Fontana Press, 1993, pp. 190-194, sobre a impossibilidade de decidir sobre o que pesou
mais no desfecho do Império do Ocidente; a mesma opinião é expressa por Balsdon em Roma, Historia de un Império,
Madrid, Ediciones Guadarrama, 1970, pp. 240 e seguintes.
4
Informação colhida em Arther Ferrill, La caída del Império Romano: Las causas militares, Madrid, Biblioteca
EDAF, 1998 (1986), p. 21.
2. As laudes e os nota
A chamada grandeza de Roma nunca deixou de causar, a Romanos ou estran-
geiros, uma forte impressão. Pela monumentalidade da cidade e do Império, pela
sua extensão no tempo e no espaço, pela sua organização, “los romanos de todas
partes llegaron a creer en la Roma aeterna, la ciudad eterna.”.9 E não faltam sinais
dessa crença, que cedo se transformou em mito. Roma foi venerada como dea Roma
e o povo romano tinha a sua própria divindade protectora, o seu genius, que se vê
profusamente retratado no tipo monetário GENIO POPVLI ROMANI, ao longo
do período imperial. Cunhado e divulgado por todo o império, este tipo de moeda
ao genius – ao Genius P. R.., celebrado como garante da dominação de Roma sobre
o universo –, funcionava como uma espécie de slogan propagandístico, que acentu-
ava a universalidade de Roma e a unidade imperial.10 Estes conceitos, juntamente
com os de civilização, paz e eternidade, definirão, por largo tempo, a ideia de Roma
5
Para uma visão actualizada do problema, consulte-se Arther Ferrill, op. cit., em especial o capítulo I. Sobre o
período que vai de Marco Aurélio a Anastásio, fazendo a ponte entre o Império Romano e o Império Bizantino, veja-se
Roger Rémondon, La crise de l’empire Romain, P.U.F., Paris, 1970.
6
Jean-Rémy Palanque, Le Bas-Empire, Paris, P.U.F., 1971, p. 6.
António Estrela Teixeira, A Herança de Roma (Conhecer a Europa), Mem Martins, Publicações Europa-América,
7
2001, cap. II e cap. VIII. Sobre o pensamento de Edward Gibbon, veja-se Gilbert Highet, La tradición clásica, II,
México, Fondo de Cultura Económica, 1996 (3ª reimpr.), pp. 89-102.
8
Arther Ferrill, op. cit., p. 20.
9
Arther Ferrill, op. cit., p. 20.
10
Moedas com a legenda Genio Populi Romani podem ver-se em Michael Grant, op. cit., Pl. 3, nº 3 e 1. Segundo
Michel Christol, “Rome et le peuple romain à la transition entre le Haut et le Bas Empire: Identité et tensions”, in
AA.VV., Identità e Valori: Fattori di Aggregazione e fattori di crisi nell’esperienza politica antica, Roma, “L’Erma” di Brets-
chneider, 2001, p. 210, foi Floro (II, 1.2) quem mais pôs em relevo a entidade histórica representada pelo povo romano,
referido como princeps populus, uictor gentium orbisque possessor.
Roma. Por isso lembra (XXXVII, 22) como Cipião Emiliano chorava perante a destruída (por ele) Cartago, citando as
famosas palavras de Heitor quando se despedia de Andrómaca (Ilíada, VI, 448-449): “Um dia virá em que ela há-de
morrer, a sagrada Ílion, e Príamo e o seu povo…”. Segundo P. Grimal, op. cit., p. 1262, os Romanos tiveram a angústia
do fim do nome romano.
14
Veja-se Virgilio. Enciclopedia Virgiliana, vol. IV, Roma, 1996, s.u. Roma, cols. 516-556.
II, 13, 29), “cidade tão bela e florescente”, ou hoc domicilium clarissimi imperii, for-
tunatissimam pulcherrimamque urbem (Cat. III, 1), “sede do mais ilustre império,
esta cidade cheia de opulência e beleza”, enquanto Marcial (10.103.9) considera
pulcherrima e domina a sua amada Roma: moenia dum colimus dominae pulcherrima
Romae (“enquanto eu habito as admiráveis muralhas de Roma imperial”). Quanto à
expressão urbs aeterna (epíteto que surge pela primeira vez em Tibulo) e ao conceito,
os exemplos da sua ocorrência poderiam multiplicar-se,15 embora deva observar-se
que nem todos partilhavam deste sentimento de orgulho pela grandeza e perenida-
de de Roma.16
Mas é no tempo de Augusto que a afirmação de uma confiança inabalável na
majestade e eternidade de Roma surge com a máxima força. A Pax Romana e a
Roma Aeterna constituem então como que um binómio indissociável, assegurado
pela figura do Princeps e pela protecção divina, como se conclui da leitura de Vir-
gílio, Horácio e Propércio, três grandes figuras que, cada um a seu modo, aderiram
(apesar das hesitações) ao programa político de Augusto e à ideologia do seu princi-
pado, ou ainda de Tito Lívio, cuja obra histórica tem sido vista como uma celebra-
ção épica de Roma em prosa. Na verdade, o sentimento de que a cidade de Rómulo
estivera, desde as suas origens, sob uma especial protecção divina está presente em
muitos textos antigos, nomeadamente neste famoso passo do prefácio ao Livro I do
Ab urbe condita, de Tito Lívio:
15
Símbolo de eternidade, a Fénix ornamentava desde Adriano as moedas imperiais. E “Vossa Eternidade” (Aeternitas
Vestra) tornou-se título e vocativo corrente dirigido ao Imperador (vd. Auguste Dupouy, Rome et les Lettres Latines,
Paris, Librairie Armand Colin, 1935, pp. 216-217. É conhecida uma inscrição monetária, dos tempos de Constâncio II
e Constante (c. 348-350), que celebra a renovação dos tempos através da representação de uma fénix radiada e a legenda
Fel(ix) Temp(orum) Reparatio. Uma inscrição dedicatória de uma estátua de Aion em Elêusis diz que o monumento foi
erigido “pelo poder de Roma e a eternidade do Império” (veja-se Luisa Musso, “Governare il tempo naturale. Provedere
alla felicitas terrena. Presiedere l’ordine celeste”, in Serena Ensoli ed Eugenio La Rocca (a cura di), Aurea Roma. Dalla
città pagana alla città Cristiana. Roma, ‘L’Erma’ di Bretschneider, 2000, pp. 373-388, p. 377, nn. 50 e 51).
Interessante, a este título, o artigo de W. V. Harris, “Roma vista desde fuera”, in Semanas de Estudios Romanos, Uni-
16
versidad de Valparaíso, vol. XI (2002), pp. 51-64, onde se recordam comentários mais ou menos hostis a Roma e ao seu
imperialismo. Do ponto de vista dos povos vencidos, deixou testemunho, por exemplo, Júlio César (De bello Gallico VII,
77, 15-16), que atribui ao chefe gaulês Critognato expressões como – aeterna seruitus e perpetua seruitus – que evocam,
por contraste, a eternidade de Roma (aeterna Vrbs) e do seu poder. O domínio absoluto de Roma pressupõe a submissão
absoluta dos outros.
17
Tito Lívio, Ab urbe condita, prefácio ao Livro I, §§ 6-8, em tradução de Paulo Farmhouse Alberto.
Este texto espelha bem a forma como Tito Lívio interpretou, na qualidade de
historiador augustano, a mensagem que o Princeps quis legar à posteridade. Segun-
do lembrou A. Espírito Santo, no século de Augusto, ao ideal estético da sobriedade
e harmonia correspondia, na política, o ideal da ordem e da paz augustana, “que
se alimentava da propaganda de uma Roma nascida à sobra de uma providência
protectora e destinada a permanecer para sempre.”18
Outros historiadores seguiram os passos de Tito Lívio, como o grego filo-ro-
mano Dionísio de Halicarnasso, que foi para Roma em 29 a. C., depois da vitória
de Augusto em Actium, e aí se associou à ideologia do principado. Nas suas Anti-
guidades Romanas não deixará de tentar provar que os primórdios de Roma foram
grandes e gloriosos e que a sua hegemonia foi superior à dos outros povos em im-
portância e duração. São muito sugestivas estas suas palavras (3. 5): “Eu escrevo
sobre uma cidade que é a mais ilustre de todas e sobre factos mais brilhantes do que
quaisquer outros. Não sei que mais hei-de dizer.”
Voltando aos poetas augustanos, é inegável que todos afinaram pelo diapasão
do Princeps. A admiração e confiança de Virgílio na superioridade do estado roma-
no é bem conhecida e está já patente na Buc. I, quando Títiro compara Roma às
outras cidades:
nas potencialidades de Roma e do Império, acreditando que esse império não teria
fim, como profetizou Júpiter (imperium sine fine dedi) no início da Eneida, e como
decorre de tantas outras expressões dessa confiança infinita. Virgílio, por exemplo,
exprime essa confiança inabalável num passo de uma emoção incontida, o epicédio
a Niso e Euríalo - dois troianos unidos por fortes laços da amizade e caídos em
combate:
Aen., IX, 446-449: “Afortunados um e outro! Se algum poder têm os meus cantos, / nenhum dia vos verá sair da
24
memória dos tempos, / enquanto a casa de Eneias se apoiar sobre o rochedo imóvel do Capitólio / e o senhor romano
conservar o império.”
25
Sobre esta matéria, leia-se Don Fowler, Roman Constructions. Reading in Postmodern Latin, cap. 9 (“The Ruin of
Time: Monuments and Survival at Rome”), Oxford University Press, 2000.
26
Arnaldo Espírito Santo, in R. M. Sobral Centeno (Coord.), Civilização Clássica – Roma, p. 256.
florescentes, o que pode ser, e tem sido, entendido como um sinal e um aviso de que
o mesmo poderia acontecer a Roma.27
Com a chegada do século II d.C., que representa a época de ouro do Impé-
rio, voltam a surgir manifestações admirativas relativamente ao mundo romano.
O retor Élio Aristides (c.117 - c.181), por exemplo, compôs, talvez por ocasião da
celebração dos novecentos anos da fundação da cidade, em 147 d.C., um Elogio de
Roma, um discurso panegírico no qual escreveu, a dado passo:
Roma é, para Aristides, incomparável. Este retor grego tinha a convicção de que
o Império Romano não era apenas superior aos seus predecessores – em extensão,
duração e organização – mas era o resultado da obra dos outros, que prepararam a
sua grandeza. Defensor de uma concepção teleológica do destino romano, Aristides
estava também convicto de que vivia na época melhor e mais civilizada de sempre. 29
Comungava, além disso, do dogma oficial da eternidade de Roma, como se deduz
do modo como encerra o Elogio de Roma, nos §§ 108-109. Em palavras que contêm
todos os ingredientes próprios do encómio, designadamente na associação do ady-
naton à prece, diz Aristides:
27
Veja-se o interessante artigo de Philip Hardie, “Augustan Poets and the Mutability of Rome”, que lembra que
Lucano não foi o primeiro romano a tomar consciência do facto. Já em 146 a. C. Cipião Emiliano, vendo Cartago
destruída, “was prompted to muse on the mutability of Fortune and to wonder what the future might hold for Rome”
(op. cit., p. 59-60).
28
Elogio de Roma, § 101 (cit. de Marie-Madeleine Martin, Le Latin Immortel, Vouillé, Diffusion de la Pensée
Française, 1971, p. 25).
29
O Elogio de Roma, de Élio Aristides, é considerado um dos primeiros elogios da civilização, que é obra e cimento
do Império romano (Alain Michel, La philosopfie politique à Rome d’Auguste à Marc Aurèle, Paris, Armand Colin,
1969, p. 338, n. 16). M. Rostovtzeff considera este discurso como “a melhor descrição, mais detalhada e completa que
possuímos sobre o império romano no século II. Não se trata apenas de um testemunho de admiração sincera perante a
agudeza de Roma, mas também de uma magistral análise política, tão rico em ideias como solidamente fundamentado”
(cit. de Alejandro Bancalari Molina, “Antonino Pio y la Paz Romana: algunos alcances y propuestas”, in Semanas
de Estúdios Romanos, vol. XI (2002), p. 94).
florir na primavera.”30
historiador, para quem Roma era a Vrbs aeterna, uma urbs sacratissima, um templum
totius mundi e caput mundi. E a confiança de Amiano na perenidade de Roma era
a tal ponto inabalável que, nas suas palavras, (XIV, 6, § 3), Roma viveria enquan-
to houvesse homens: uictura dum erunt homines Roma. Mas – como adverte Italo
Lana – o historiador falava com o coração, e a sua visão da história revela-se trágica,
pois resulta da contradição “entre a fé do historiador na eternidade de Roma e a
realidade evenemencial que vê uma decadência progressiva e instancável do Império
submetido aos assaltos dos bárbaros”.35 Por esta altura, Libânio, um retor grego de
Antioquia, orgulhoso do seu passado e da sua alta cultura grega, lembrava como a
sua cidade e muitas outras cidades gregas viviam cingidas, cercadas pela “cadeia de
ouro dos Romanos”.36
Por fim, também Claudiano – “o último poeta clássico latino”, que nasceu por
volta de 370, quando as pressões dos Hunos sobre as fronteiras se faziam sentir e
obrigavam Alanos, Ostrogodos e Visigodos a lançar-se contra Roma –, compôs em
400 o De consulatu Stilichonis, um poema panegírico a celebrar o ano do consu-
lado do grande general Estilicão, “seu principal patrono e herói máximo dos seus
poemas”.37 Nele faz um extraordinário elogio de Roma (III, 130-173), no qual louva
a extensão ilimitada do Império e a ausência de fronteiras – quod cuncti gens una
sumus, nec terminus unquam / Romanae ditionis erit (vv. 159-160) –, bem como a
organização e a força civilizadora das leis.
A par do encómio da grandeza de Roma, surge – como já foi dito – a formula-
ção de uma prece pelo seu futuro, que se deseja eterno. Confiantes na grandeza da
cidade, que acreditavam gozar da protecção dos deuses, os Romanos formulavam
preces no sentido de que para sempre Roma continuasse a gozar dessa providência
divina. Um exemplo absolutamente paradigmático desta atitude é o de Horácio
quando, associando-se ao sentimento geral de que uma nova era de felicidade che-
gou, se dispõe a celebrar no Carmen Saeculare (‘Canto Secular’), vv. 9-12, em regis-
to hímnico, a cidade de Roma:
Mas Horácio não era o único a colocar Roma e a sua perenidade sob o olhar
dos deuses. O motivo convertera-se em topos da poesia augustana e assim o vemos
tratado também por Propércio, que conclui a sua elegia IV, 2 com uma significativa
prece por parte do deus Vertumnus (deus das mudanças…) a Júpiter (vv. 55-56): sed
facias, diuum sator, ut Romana per aeuum / transeat ante meos turba togata pedes, isto
é: “Ó Pai dos Deuses, possas tu fazer que eternamente o povo / togado de Roma vá
sempre passando aqui aos meus pés.”39 Per aeuum, eis aion, até à eternidade.40
Tal como sucede aqui, este voto ocorre, geralmente, a concluir uma obra de to-
ada panegírica ou similar, ao estilo das preces dirigidas às divindades protectoras do
estado romano. O Panegírico de Plínio-o-Moço tornar-se-á, a este título, um exem-
plo clássico ao invocar, in fine orationis, os deuses protectores do império.41 Mas
já um século antes, nas Metamorfoses de Ovídio – a última obra composta antes
da relegatio (8 d.C.) –, exactamente antes do epílogo, surge uma grande invocação
aos deuses protectores de Roma (Penates, Quirino, pai de Roma, Gradivo, seu pai,
Febo e Vesta e Júpiter, e a todos os demais deuses), a pedir “que tarde a surgir, que
surja quando [o poeta] já tiver morrido, o dia em que Augusto, depois de abandonar
o mundo que governa, possa aceder ao céu e atender de longe as preces dos seus
súbditos.”42 Pouco tempo depois, também o historiador Veleio Patérculo, que consi-
derava o principado como um felicissimus status, conclui a sua obra formulando um
uotum aos deuses: que ao imperador vigente suceda, o mais tarde possível, alguém
com capacidade para sustentar o poderio romano. Eis o seu uotum:
“Sol vivificador, que no teu carro brilhante / fazes nascer e fechas o dia, que renasces sempre diferente / e o mesmo,
38
possas tu não contemplar nada de mais magnífico / do que esta cidade de Roma!” Como uma prece, os versos contêm o
vocativo da divindade invocada e o conjuntivo precativo possis; quanto ao elogio de Roma, ele é dado pela força totali-
zante de nihil e o poder magnificador da forma comparativa maius.
39
Propércio, Elegias, IV; tradução de J. A. Segurado Campos. Philip Hardie, op.cit. p. 75, comenta assim o passo:
“the pax Romana of an urbs aeterna”.
40
Na opinião de Luisa Musso (op. cit., pp. 377-378), a eternidade do império (Roma aeterna) coincide com a eternidade
dos imperadores e é promessa de imortalidade. E a mesma autora acrescenta: “Al concetto di eternità si lega l’aspettativa
di renouatio e, ad essa, il mito dell’aurea aetas e della temporum felicitas. L’individuazione della radice di aion nel latino
iuuenis costituisce un’ulteriore prova dell’incidenza dell’idea di rinnovamento perpetuo nella definizione del tempo
eterno.” Percebe-se que, na mente dos Romanos, a ideia de uma Roma aeterna vai de par com a ideia de pax aeterna e
de pax ubique, uma espécie de slogan que, com maior incidência no século III d. C., circulará em muitas moedas. Sobre
esta matéria será da maior utilidade ler Robert Étienne, “Aeternitas Augusti – Aeternitas Imperii”, 1984 (artigo que
não foi possível consultar).
41
Plinius, Pan., XCIV: In fine orationis praesides custodesque imperii deos, ego consul pro rebus humanis, ac te praecipue,
Capitoline Iuppiter precor, ut beneficiis tuis faueas, tantisque addas muneribus perpetuitatem. […] Non te distringimus uotis.
Non enim pacem, non concordiam, non securitatem, non opes oramus, non honores: simplex cunctaque ista complexum unum
omnium uotum est, salus principis. […]. Este voto termina pedindo que o Imperador (Trajano) tenha muito tempo de
vida e que, quando tiver de ser substituído, o sucessor seja digno de o substituir e de ocupar o Capitólio.
42
Ovidius, Met. XV, 868-870: tarda sit illa dies et nostro serior aeuo, / qua caput Augustum, quem temperat, orbe relicto,
/ accedat caelo faueatque precantibus absens!
“Cumpre-me concluir esta obra com um voto. Júpiter Capitolino, e tu, Mar-
te Gradivo, fundador e sustentáculo do nome romano, e tu, Vesta, guardiã
do fogo perpétuo, e vós, divindades todas que elevastes o poder do Império
Romano ao mais alto cume do mundo, em nome de todos eu vos imploro e
suplico: guardai, conservai, protegei este regime, esta paz, <este príncipe>,
e, quando ele tiver cumprido, durante um enorme espaço de tempo, o seu
posto aqui na terra, destinai-lhe, o mais tarde possível, sucessores, mas su-
cessores tais que os seus ombros consigam aguentar o peso do império do
mundo com a enorme força com que, como sentimos, aguentou o presente,
e que os projectos de todos os cidadãos, ou piedosos ...”43
Com este uotum termina, de forma incompleta (faltarão talvez as últimas pala-
vras), a História Romana de Veleio Patérculo, concluída pelos anos 30 ou 31, quando
o princeps reinante era o imperador Tibério.44 Júpiter Capitolino, o pai dos deuses,
Marte (Gradivo), deus fundador (por ser pai de Rómulo) e sustentáculo do império,
e Vesta, símbolo da eternidade de Roma, e todos os numes, sem excepção, todos são
convocados para protegerem o imperador e o império. Este uotum final compartilha
claramente da técnica do panegírico, mas será de igual modo um equivalente, no
dizer de Joseph Hellegouarc’h, dos uota imperiais habituais em tempos de crise –
uma espécie de God save the King (ou the Queen) dos tempos antigos... Na verdade,
o texto do uotum é significativo a vários títulos, quer por encerrar a obra, quer pela
importância do hipotexto virgiliano para que remete e que celebra igualmente a
grandeza do Império, quer pela funda ressonância religiosa e política das suas pa-
lavras. Romani imperii molem... São palavras que fazem lembrar Virgílio, no início
da Eneida, quando alude ao imenso esforço que foi necessário fazer para erguer o
poderoso império romano.45 É ainda o peso simbólico de termos como auctor (da
família etimológica de Augustus: ‘aquele que faz crescer’, ‘aquele que é propício’),
stator (‘aquele que mantém estável’, ‘sustentáculo’, ‘fundador’) e custos (‘guarda’,
‘protector).46 O comentário de Ronald Syme a este respeito é muito significativo:
43
Velleius Paterculus, Histoire Romaine, tome II, livre II, cap. CXXXI: Voto finiendum uolumen sit. Iuppiter Capi-
toline, et auctor ac stator Romani nominis Gradiue Mars, perpetuorumque custos Vesta ignium et quidquid numinum hanc
Romani imperii molem in amplissimum terrarum orbis fastigium extulit, uos publica uoce obtestor atque precor: custodite,
seruate, protegite hunc statum, hanc pacem, <hunc principem> eique functo longissima statione mortali destinate successores
quam serissimos, sed eos quorum ceruices tam fortiter sustinendo terrarum orbis imperio sufficiant quam huius suffecisse sensi-
mus, consiliaque omnium ciuium aut pia.... Note-se como, por razões de escrúpulo religioso, a invocação a Júpiter, Marte
e Vesta é seguida de um indefinido totalizante, quidquid numinum (isto é, “todas as divindades”, sem excepção). Esta é
bem a expressão de um receio ancestral, de fundo supersticioso e tipicamente romano: o medo de que o orante se possa
ter esquecido de uma qualquer divindade, por mais insignificante que fosse.
44
Natural da Campânia, V. Paterculus nasceu c. 19 a. C. e terá morrido em 31 d. C. Deixou uma Historia Romana
em dois livros, que começava com as origens míticas de Roma e terminava com a morte de Lívia, mãe de Tibério, no
ano 29.
45
Aen. 1.33: Tantae molis erat Romanam condere gentem.
46
Neste uotum note-se ainda a forma extulit (de ecfero, effero, ‘elevar acima de’, ‘erguer’), que não deixa de evocar o
extulit que figura no v. 24 da Buc. I de Virgílio – um verso de exaltação de Roma.
Roma
Prima urbes inter, diuum domus, aurea Roma.
(“Roma, primeira entre as cidades, morada dos deuses, áurea Roma”)
no entanto era já um tempo de declínio. Por isso F. Peschoud, no seu livro Roma
Aeterna, tecerá críticas a Ausónio, acusando-o de ter atravessado o seu século como
um cego: não viu o perigo bárbaro, nem o conflito entre pagãos e cristãos, nem a
luta contra a heresia, nem a destruição do poder papal, apesar de Graciano ter sido
assassinado quase debaixo dos seus olhos (em 383).51
Mas o caso mais flagrante de elogio da Urbe surge já depois do saque de Roma
e procede de Rutílio Namaciano, indefectível admirador da grandeza da cidade. De
origem galo-romana, veio a dada altura para Roma (quando seu pai era governador
da Etrúria) e aí fez carreira, sendo nomeado prefeito da Vrbs em 414. Três anos mais
tarde regressa à Gália e, provavelmente durante a viagem, escreveu um poema inti-
tulado De reditu suo, no qual descreve a viagem desde Roma até Luna. Composto
em 417 d.C., o poema ficou inacabado. Nele o poeta, que sofre com a visão das
ruínas que se lhe deparam na sua viagem, deixa bem expressa a sua profunda admi-
ração por Roma, mesmo depois de a ter visto saqueada pelas hordas de Alarico, em
410. Admira a grandeza da cidade e acredita no seu renascimento, convicto de que
viverá eternamente.52 Apesar de bem conhecidos os versos em que, através de uma
apóstrofe sumamente laudatória, Rutílio Namaciano continua a celebrar a grandeza
da rainha do mundo, vale a pena lembrá-los:
51
F. Peschoud, Roma Aeterna. Études sur le patriotism romain dans l’occident latin à l’ époque des grandes invasions,
Neuchâtel, Institut Suisse de Rome, 1967, p. 130 (informação colhida em Giancarlo Mazzoli, art. cit., pp. 77-91,
p. 81).
52
Vide Enzo Marmorale, História da Literatura Latina, II, Lisboa, Estúdio Cor, 1974, p. 121. Pela mesma altura (c.
417), Paulo Orósio escreveu uma História Universal para explicar que o Império era castigado pelos seus vícios.
53
Rutílio Namaciano, Sobre o seu regresso, I, 47-54 e 63-66: Exaudi, regina tui pulcherrima mundi, /inter sidereos Roma
recepta polos! Exaudi, genitrix hominum genitrixque deorum, / non procul a caelo per tua templa sumus./ Te canimus semper-
que, sinent dum fata, canemus: / sospes nemo potest immemor esse tui. / Obruerint citius scelerata obliuia solem / quam tuus ex
nostro corde recedat honos. (...) Fecisti patriam diuersis gentibus unam; / profuit iniustis te dominante capi. / Dumque offers
uictis proprii consortia iuris, / urbem fecisti quod prius orbis erat. Note-se o recurso expressivo ao adynaton nos vv. 53-54,
relativo à absoluta impossibilidade de o poeta um dia esquecer Roma. Este adynaton não pode deixar de evocar aquele
que Títiro utilizara na Buc. I de Virgílio, quando se referia à impossíbilidade de esquecer algum dia o seu benfeitor,
aquele que lhe permitira que conservasse as suas terras, um “deus” (isto é, Octávio, na linguagem cifrada do poeta).
54
Veja-se Prudence, Psychomachie, Contre Summache, Paris, Les Belles Lettres, 1992, pp. 96-97.
S. Hieronymus, Epist. Ad Heliodorum, LX, 16: Horret animus temporum nostrorum ruinas persequi. Viginti et eo
55
amplius anni sunt, quod inter Constantinopolim et Alpes Iulias cotidie Romanus sanguis effunditur. Scythiam, Thraciam,
Macedoniam, Dardaniam, Daciam, Thessaliam, Achaiam, Epiros, Dalmatiam, cunctasque Pannonias Gothus, Sarmata,
Quadus, Alanus, Hunni, Wandali, Marcommani uastant, trahunt, rapiunt. [...] Romanus orbis ruit […]. As referências
geográficas deste texto dizem respeito aos países e regiões do norte e oriente do Império Romano, então as mais amea-
çadas pelas investidas dos povos bárbaros.
56
Veja-se referência a estes tempos conturbados e ao saque de Roma em Orósio, História Apologética (o livro 7 das His-
tórias contra os Pagãos e outros textos), edição de Paulo Famhouse Alberto e de Rodrigo Furtado, Lisboa, Edições
Colibri, 2000, pp. 11-13 (da Introdução) e §§ 39-40.
Roma corrueret? (‘Quem poderia crer que Roma, vitoriosa no orbe inteiro, desa-
basse?’) E numa carta (Epist. 123, 16) comenta o estado de decadência da cidade
eterna, ao mesmo tempo que se interroga, dando sinal de uma enorme inquietude:
Quid saluum est, si Roma perit? Como se se interrogasse: Como será o mundo depois
da queda de Roma?
Recordemos o passo:
“Há já algum tempo, do mar do Ponto até aos Alpes Júlios, que não eram
nossas as terras que são nossas e há trinta anos que se combatia no centro das
regiões do império […]. Quem teria acreditado que Roma teria de combater
no seu interior não pela glória mas pela sua segurança; mais do que isso, que
teria não de lutar, mas sim de resgatar a sua própria vida com o ouro e todos
os seus bens. Agora, admitindo que tudo acabe em bem, não temos nada a
tirar aos inimigos a não ser os bens que perdemos. Um apaixonado poeta,
falando do poder de Roma, diz: ‘Que é que te basta, se Roma é pouco?’
Podemos transformá-lo neste outro elogio: ‘Que é que se salva, se Roma
perece?’.”57
57
S. Ieronymus, Epist., 123, 15-16. Olim a mari Pontico ad Alpes Iulias non erant nostra quae nostra sunt et per annos
triginta, fracto Danubii limite, in mediis Romani imperii regionibus pugnabatur. Quis hoc crederet […] Romam in gremio
suo, non pro gloria sed pro salute pugnare; immo, ne pugnare quidem, sed auro et suppellettile uitam redimere? Nunc, ut pros-
pero fine eueniant, praeter nostra quae amisimus, non habemus quid uictis hostibus auferamus. Potentiam Romanae Vrbis
ardens poeta describens, ait: Quid satis est si Roma parum est? Quod nos alio mutemus elogio: Quid saluum est si Roma perit?
Séculos antes, Tácito (Historiae, IV, 74) atribuira a Petilius Cerialis, comandante de tropas, palavras que admitiam
a eventualidade da destruição do Império: “Com efeito - praza aos deuses que não! -, se os Romanos são expulsos [da
Gália], que acontecerá se não uma guerra universal?”
58
Nicholes Purcell, “La ciudad de Roma”, in Richard Jenkins (ed.), El Legado de Roma, Barcelona, 1995, p. 379.
4. Em conclusão
Ao longo deste percurso pela história romana, em busca de testemunhos de
uma forte crença na eternidade de Roma, foi possível encontrar indícios diversos
dessa crença, alguns dos quais de clara propaganda política. Já os sinais contrários,
talvez vítimas de silenciamento, são em número exíguo. Compreende-se, por isso,
que se possa ter afirmado (como H.-I. Marrou, em Decadência romana ou Antigui-
dade tardia?) sobre o fim do Império: “Os contemporâneos da queda do Império
Romano do Ocidente não tiveram consciência de tal coisa”.60 Afirmação semelhan-
te fez o conhecido Peter Brown, que opinou, a respeito do desaparecimento do
Império Romano do Ocidente – um desfecho algo repentino, a julgar pelas mostras
de renascimento no século IV: “Para os contemporâneos, a falência dos imperadores
do Ocidente, no século V, foi a crise mais imprevista do Estado Romano”.61
De um modo geral os Romanos sabiam que a um império sucede outro, e que o
império de Roma fatalmente haveria de perecer, como os demais. Mas a eternidade
de Roma tornara-se uma crença e um dogma. Foi um mito que muitos defenderam
mesmo quando já as condições objectivas o não permitiam.
59
Cit. de R. Jenkyns (ed.), El legado de Roma, p. 39. E o tema das ruínas de Roma deu origem, nesse tempo, a inúmeros
poemas. Ianus Vitalis (que morreu em 1560) celebrizou-se com o epigrama, em latim, De Roma Antiqua, que foi tradu-
zido pelo poeta francês Du Bellay, pelo espanhol Francisco de Quevedo e por alguns outros poetas. Sobre este epigrama
e as traduções que dele foram feitas, veja-se Américo da Costa Ramalho, “As ruínas de Roma”, in Idem, Estudos sobre
a época do Renascimento, Coimbra, 1969, pp. 297-317.
60
H.-I. Marrou, em Decadência romana ou Antiguidade tardia?, trad. port. de Henrique Barrilaro Ruas, Lisboa, Edito-
rial Aster, 1979, p. 103. Mas logo de seguida alerta para o carácter paradoxal desta afirmação, pois não faltam – afirma
- testemunhos escritos do sentimento de uma decadência generalizada e irreparável. Esses testemunhos encontram-se
reunidos na obra de P. Courcelle, Histoire littéraire des invasions germaniques, Paris, Études augustiniennes, 1964 (3ª.
Ed.), de que existe trad. portuguesa na ed. Vozes, Lda., de 1955.
61
Peter Brown, O fim do mundo clássico, p. 105. O mesmo Peter Brown afiança (p. 127): “Grupo algum de Romanos
idealizara jamais Roma tão entusiasticamente como os poetas e oradores do fim do séc. IV e começos do século V. O
mito de Roma, que havia de obcecar os homens da Idade Média e do Renascimento – Roma aeterna, Roma concebida
como o clímax da civilização, destinado a continuar para sempre –, não foi criado pelos homens do Império Romano
clássico, foi um legado directo do forte patriotismo do mundo latino do fim do século IV.”
1
Hägg (1983: 103)
Podríamos dividir en tres grandes grupos los elementos religiosos con los que
nos vamos a encontrar al acercarnos a estas novelas. Primeramente, las divinidades.
Éstas intervienen a menudo en el transcurso de los acontecimientos, tanto a favor
como en contra de los protagonistas, aunque en ocasiones su presencia se limita a
simples referencias que el autor nos brinda en determinados momentos. Los motivos
que han guiado a éste en la elección de cuáles influyen de manera decisiva y cuáles
aparecen fugazmente es uno de los aspectos sobre los que más ha reflexionado la crí-
tica, con la intención de concluir si es o no accidental. Un detalle a tener en cuenta
y de carácter muy significativo es que tales dioses ya no pertenecen únicamente al
tradicional panteón griego; estamos ante nombres que, como Isis o Apis, dejan tras-
lucir la progresiva influencia que en la mentalidad griega de época helenística e im-
perial iban teniendo los elementos orientales, asimilados completamente y cada vez
en mayor número. No son en ningún caso divinidades nuevas, sino dioses o diosas
que han adquirido una dimensión totalmente distinta a la que poseían antes. En
muchas ocasiones se trataba de figuras relegadas a un segundo plano, como Helio,
que pese a sus atribuciones de divinidad solar había sido completamente eclipsado
por un dios fuerte, en este caso Apolo. Otra buena prueba de este proceso sería el
imparable ascenso de Tyche, una diosa atestiguada ya en Homero o Píndaro pero
que en este momento gozará de un poder y respeto tales que se la llegó a considerar
erróneamente una deidad nueva, producto de la época.
En segundo lugar se situarían las festividades, cultos y rituales de diverso tipo
que se suceden de forma continua en las páginas de estas obras. Aquí están incluidas
las grandes celebraciones que se realizaban en honor de ciertos dioses en algunas
ciudades y en los centros importantes de culto. En ocasiones, el primer encuentro de
los dos jóvenes se produce en un templo, durante uno de estos festivales religiosos.
El templo es otro de los elementos cuyo papel resulta esencial en el desarrollo de la
trama. En él también tiene lugar a veces el desenlace y se produce la acción de gra-
cias a la divinidad por permitir el ansiado reencuentro. Además de estas referencias,
también se mencionan en numerosas ocasiones diferentes tipos de ritos pertenecien-
tes al ámbito de la vida cotidiana, tales como funerales, casamientos, etc.
Por último, y como tercer gran bloque, situaríamos todas aquellas alusiones a
otras prácticas habituales en la forma de entender el hecho religioso de los griegos,
como por ejemplo la consulta de oráculos y adivinos, o las diferentes clases de
ofrendas. Otro motivo que se repite es el de los sueños proféticos. Los personajes
tienen con frecuencia ensoñaciones cuyo sentido se les escapa en un principio y que
sin embargo acaban adquiriendo significado completo a medida que se suceden
los hechos. Estos últimos pueden quizás no estar propiamente relacionados con las
creencias religiosas, pero no es menos cierto que encontramos numerosos ejemplos
en la tradición en que los dioses revelan por medio de sueños a los hombres sus
intenciones o se sirven de ellos para persuadir a los mortales de actuar de una cierta
manera, para que así se vea cumplido lo que a veces el Destino y a veces su volun-
tad (o su capricho) ordenan. Esto dota, sin duda alguna, de un carácter religioso a
este tipo de sueños. Otras creencias sin vinculación directa con las que podríamos
denominar oficiales pero que son tan antiguas o más que ellas tienen también su
lugar en la novela. Nos referimos a la superstición y a todas aquellas prácticas con
ella relacionadas, que se superponen y se mezclan en ocasiones con aspectos de la
esfera del Más Allá y de todo lo relativo a la muerte.
Esta gran abundancia de motivos relativos a la religión que se suceden a lo largo
de la trama de estas obras ha llevado a determinados autores a considerar la novela
como un género de carácter fundamentalmente religioso, vinculado de manera par-
ticular a cultos de tipo mistérico.
Ya en las primeras décadas del siglo veinte, Karl Kerényi, con su Die griechisch-
orientalische Romanliteratur in religionsgeschichtlicher Beleuchtung 2, planteó por vez
primera la hipótesis de un origen religioso de la novela. Kerényi veía un claro pa-
ralelo entre su estructura narrativa y los mitos en que se basaban los cultos de tipo
mistérico que dominaban el panorama religioso de la época, y más concretamente
el mito egipcio que narra la historia de Isis y Osiris. Para él, tras el esquema argu-
mental que encontramos en todas las novelas que se nos han conservado se hallaría
la representación en clave simbólica de la incansable búsqueda que Isis realizó a lo
largo del Nilo para encontrar los restos de su esposo, Osiris, al que el malvado dios
Seth, su propio hermano, había asesinado y más tarde descuartizado, tirando sus
restos -catorce pedazos – al río.
La repetición de este esquema, si bien con ciertas variaciones en cada caso, se-
ría una constante en toda la producción novelesca, a juzgar por los testimonios de
los fragmentos que de otras obras han llegado hasta nosotros, por lo que podemos
considerarlo como una de las principales convenciones del género. En él, una pareja
de enamorados es repentinamente separada, generalmente por haber despertado
alguno de ellos la ira o la envidia de un dios a causa de su comportamiento o
de su extremada belleza. A partir de ese momento, deberán sufrir penalidades sin
número que pondrán a prueba la fortaleza de su amor y su fidelidad al ser amado
hasta que, una vez satisfecha la sed de venganza de la divinidad y apagada su ira,
ven recompensados sus padecimientos y se produce al fin el reencuentro tras el que
podrán disfrutar para siempre de una vida feliz entregados a su amor y libres de
preocupaciones3.
Todo esto podría reducirse a una fórmula tan sencilla como es la de separación
– búsqueda – reencuentro, cuyo patrón coincidiría con el de la historia de la diosa
Isis, en la que están basados los rituales de iniciación a su culto, y en general los de
todos aquellos cultos de carácter mistérico. Debe notarse que es también la misma
2
(1927).
3
Encontramos referencias sobre este aspecto en la totalidad de autores que se ocupan de la descripción de las princi-
pales características del género, entre las que se encuentra esta simpleza estructural y la repetición del mismo esquema
argumental. Sirvan de ejemplo las palabras de Hägg (1983: 3): “Mostly, we are concerned with simply adventure stories
which have love, travel and violence as their main constituents. Sometimes, violence is replaced by a stronger admixture
of emotions, by a marked taste for sentimentality”.
4
Merkelbach (1962).
trina y prácticas rituales. Serían, pues, capaces de descifrar una parte del código
de símbolos, pero no su totalidad. En último término estaría la lectura de aque-
llas personas sin relación directa con esos cultos y un conocimiento de ellos nada
profundo. Estos individuos leerían la novela quedándose tan sólo en lo superficial,
considerando el género como una mera fuente de entretenimiento, un texto que
no requería ni excesiva concentración ni esfuerzo intelectual. El género narrativo
debería, por tanto, ser observado desde una perspectiva eminentemente religiosa,
no literaria, ya que la intención primordial de estos textos no sería otra que la ex-
presión de elementos pertenecientes al culto al que la obra en cuestión se adhiriera,
de diferentes clases y de una manera más o menos simbólica y accesible. Vemos,
pues, que la faceta literaria quedaría relegada a un lugar muy secundario en la labor
de creación (fabricación sería quizás más apropiado en este caso) de la novela, al no
existir en ella una pretensión artística. La deficiente caracterización de los persona-
jes (aún de los principales), las incoherencias en el desarrollo de la trama general y
de las líneas argumentales paralelas a ésta o cualquier otra de las deficiencias que
observamos en el ámbito compositivo se justificarían de este modo, ya que no eran
requisitos indispensables para la consecución del objetivo perseguido, realizado a
través de un autor al que ni se le exigiría ser original ni estar particularmente dotado
para la literatura.
La perspectiva predominante entre los estudiosos del género es contraria a esta
tesis, a la que consideran totalmente exagerada y fuera de lugar.5 Pese a ello, no
podemos negar los muchísimos méritos que esta rama de investigación posee. En
primer lugar, y de forma general, por haber sido capaz de concentrar el interés de la
crítica en una materia que hasta ese momento se encontraba en el más absoluto de
los olvidos. Y es que la novela se hallaba aún marcada por el estigma que las concep-
ciones filológicas tradicionales (y que se encontraban en boga incluso muy avanzado
ya el pasado siglo) le habían impuesto. Tales planteamientos, que tomaban como
punto de referencia y valor de comparación la época clásica, despreciaban un género
como la novela, una forma a la que no consideraban digna de una gran atención, en
primer lugar porque pertenecía a un periodo ya de por sí decadente para ellos, y en
segundo, por las propias carencias que como obra literaria tenía.6 La interpretación
en clave religiosa que de ella se hizo, iniciada como veíamos por Kerényi y desarro-
llada y reforzada por Merkelbach, cambió totalmente las perspectivas de la crítica y
convirtió al género en un auténtico objeto de estudio. Otro de los innegables méri-
tos que hay que reconocerle radica en la importancia otorgada al elemento religioso
presente en las diferentes obras que lo componen, en el que nadie había reparado
5
Cf. Reardon (1971: 393 403). Estas páginas de la obra de Reardon, un completísimo estudio del desarrollo de las
diferentes formas literarias en los siglos II y III de nuestra era, nos ofrecen un excelente panorama de la polémica susci-
tada por las interpretaciones de la novela en clave religioso – mistérica. Cf. también Blánquez (1996: 81 – 82), breve
y ordenada presentación de las diferentes teorías acerca de este tema.
6
Resulta paradigmática a este respecto la obra del filólogo alemán E. Rohde (1876), buena prueba del negativo talante
de la crítica tradicional en su acercamiento al género.
7
Hidalgo de la Vega (1990: 199)
sociológicas que se han impuesto en las últimas décadas.8 Éstas defienden que la
novela no es sino la respuesta literaria a una “specific social reality, the large world
of Hellenistic and early imperial times”, que surge ante las nuevas inquietudes que
se le presentan al hombre de la época, “lost in a world too big for him”9. Ya hemos
hablado de los riesgos de afirmaciones tan categóricas, pero también resulta inne-
gable que el hombre tiene una forma distinta de plantearse las cosas. Hablar de
cambio no significa necesariamente que estemos haciendo referencia a un hecho
traumático. La manera de entender la vida no es algo que pueda variar de la noche a
la mañana, y las “novedades” de que aquí hablamos no han surgido por generación
espontánea, sino que se deben en su mayor parte a un lento proceso de evolución
que permite que sentimientos y actitudes que antes permanecían en un segundo
plano hayan ganado terreno y salgan a la superficie. Podemos afirmar pues, con
Reardon, que la novela surge cuando frente a esta situación diferente “some writers
spread their wings in the new air and began to use the form, to use it to talk about
the new society”10. Pero este enfoque de carácter eminentemente sociológico no
olvida la grandísima importancia que el hecho religioso tenía como parte de esa
sociedad, y es en este punto donde una y otra teorías se cruzan, aunque después
continúen por caminos distintos. De hecho, aunque este sector de la crítica defien-
de como función primordial de la novela el entretenimiento de los lectores, no se
excluye totalmente la posibilidad de que en determinadas circunstancias este tipo
de obras tuviera un efecto similar al de la propaganda religiosa, pero siempre, eso sí,
dentro de un contexto muy determinado y nunca de forma general. La diferencia
está, por tanto, en la importancia otorgada a este aspecto, pues frente a quienes lo
sitúan como fundamento del género, estos autores optan por concederle, en el me-
jor de los casos, un discreto papel secundario.
Hasta ahora nos hemos limitado a la mera exposición teórica de las principales
direcciones seguidas por la crítica a la hora de examinar el papel que el elemento
religioso desempeña dentro de las novelas. También hemos apuntado, aunque bre-
vemente, la fría acogida que, en sus diferentes variantes, han recibido los intentos
por situar el plano cultual en la base del género. Por último, hemos hecho mención
a la visión que predomina entre los estudiosos, aunque sin entrar en excesivos deta-
lles aún. Ha llegado pues el momento de analizar tales perspectivas desde un punto
de vista crítico, que nos permita definir con claridad cuánto de verdad hay en cada
una de ellas y hasta qué punto son aceptables para intentar explicar el fenómeno
que nos ocupa.
8
El punto de partida debe situarse con la publicación de la obra de B. E. Perry (1967), que marcó un antes y un después
en la crítica sobre la novela, con su ataque a los planteamientos evolucionistas que dominaban los estudios sobre los
géneros literarios y que, en el caso de la novela, postulaba, en su obra ya citada, Rohde. En la misma línea de Perry,
aunque con planteamientos mucho más moderados, encontramos a autores como Reardon (1969) (1991), Hägg (1983)
o Holzberg (1995) entre otros.
9
Reardon (1991: 172).
10
Reardon (1991: 12)
Al igual que ocurre con los que defienden una intención proselitista del género,
nuestro enfoque es parcialmente sociológico, lo que no supone una contradicción
porque, como ya hemos dicho antes, su visión no hace sino resaltar la importancia
que la religión tenía en la vida de la época, hecho por otra parte indiscutible. La
diferencia está en que de ese presupuesto ellos derivan que su constante y acusada
presencia en la novela obedece a un impulso consciente del autor, cuyo propósito
principal sería la exaltación de la figura de algún dios en particular. Esto supone
relegar a un segundo plano (pues no llegan a negar su existencia) las motivaciones
literarias del género, además de ofrecer una visión del mismo muy limitada al dar
tal relevancia al hecho religioso, que no es sino una más (aunque eso sí muy im-
portante) de las facetas que conforman la sociedad en que se desarrolla la novela y
que, en conjunto, determinan lógicamente su fondo y su forma. Sin embargo, esto
no quiere decir que, pese a ser fácilmente rastreables en obras y periodos anteriores,
los numerosísimos elementos relativos a la religión que aparecen a lo largo de toda
la trama sean tan sólo motivos literarios heredados de la tradición, utilizados por
parte del autor simplemente como artificio estilístico o alarde de erudición. La elec-
ción de estos motivos y su pervivencia en la novela no son casuales. Debemos tener
en cuenta el contexto en el que se componen, un momento en el que la religión es
parte fundamental en la vida del hombre y se ha impuesto una nueva concepción
del hecho religioso, mucho más cercana e intensa, y muy estrechamente ligada a
sentimientos y emociones, elementos éstos muy presentes en la novela.
Veamos ahora la definición que hace Reardon de la novela: “extensive narrative
fiction in prose, destined for reading and not for public performance, describing the
vicissitud and psychological torments of private individuals, culminating in their
ultimate felicity, and achieving through the presentation of their fears and aspira-
tions the satisfaction of similar emotions in the reader”11. Es esa última frase la que
resulta verdaderamente clave para hallar respuesta a una serie de interrogantes que
nos conducirán al verdadero sentido de la novela como forma literaria, a partir del
cual podremos establecer, de manera definitiva, la función del elemento religioso
dentro del género. Dice Reardon que el lector de novelas siente como suyas las vici-
situdes y penalidades que sufren los protagonistas de la obra en el transcurso de sus
aventuras, así como sus deseos y esperanzas. Vemos que aquí se produce una iden-
tificación entre dos mundos aparentemente tan distintos como el real y el ficcional.
Si los lectores son capaces de experimentar paso a paso durante la lectura las mismas
sensaciones que los personajes, se debe a que observan que están sujetos a idénticos
temores, que se encuentran manejados por fuerzas a las que ellos están igualmente
sometidos y que es la inquebrantable esperanza en una vida feliz la que guía tam-
bién sus pasos. Esto no es más que la prueba de que la novela, y todos los elementos
en ella representados no son sino un fiel reflejo de la sociedad en la que está escrita,
y que surge en respuesta a las necesidades de esa sociedad y de los individuos que
11
Reardon (1991: 100).
12
Reardon (1991: 28 - 29). A propósito de este nuevo tipo de héroe son también las reflexiones de Perry (1967: 47 y
ss.) o Schmeling (1974: 130 - 159).
13
Beck (1982: 527 540).
14
Griffiths (1978).
15
Cf. Hägg (1983: 101 - 104).
16
Cf. Reardon (1991: 171 - 173).
dístico ni, por tanto, asegurar de forma categórica que éste no se haya explotado
en algún instante para que estas obras desempeñaran dicha función proselitista,
o que algunos lectores se hubieran visto inconscientemente influidos por las refe-
rencias que se hacen a determinados dioses y a ciertos aspectos de su culto. Pese a
ello consideramos que no puede hablarse de una propaganda organizada como la
base ni de esta obra ni del género: “Whereas the Aretalogies of Isis emanated from
Egypt and were griten doubtless by a devoted priesthood, the novels were not the
result of an organized institutional propaganda. They expressed rather the impact
made by the Isis-religion on individual authors whose style and presentation varied
considerally”.17
De todo lo que acabamos de decir se deduce el hecho de que la explicación
religiosa aplicada al género por una serie de autores no es falsa, sino tan solo incom-
pleta. La novela, básicamente, tiene como objetivo el entretenimiento, pero un tipo
de entretenimiento que apela a las emociones e inquietudes espirituales íntimas del
lector, que eran, como ya hemos dicho, las mismas que las de los personajes de las
novelas que leía. El tema central de éstas, pese a que las consideremos reflejo del
conjunto de la sociedad de la época, es el individuo, ese individuo asustado por su
soledad ante el mundo, que confiará su única esperanza de salvación y felicidad al
amor, el principio en el que encontrará, por fin, su verdadera identidad. A través
de las trepidantes aventuras y peligrosas situaciones que viven los protagonistas en
la obra, y del ansiado final feliz con que ésta concluye, el lector, que experimenta y
siente como suyo todo lo que ocurre, calma su necesidad de emociones y obtiene
satisfacción a sus propios deseos y temores. Sin embargo, y pese a la fuerza que tiene
el elemento individual en estas obras, todo lo que en ellas ocurre son experiencias
humanas, algo que trasciende finalmente de lo particular. De ahí que el aspecto
psicológico tenga una presencia tan acusada en ellas. El punto de vista desde el que
debemos, por tanto, analizarla, se encuentra entre lo sociológico y lo psicológico.
Sociológico en la medida en que es una creación de y para su época, acorde a las
necesidades y exigencias de ésta, y psicológico en cuanto a que, como parte de la
sociedad que son, los individuos son los destinatarios finales de la obra, y es a ellos
a los que busca conmover, impactar y, finalmente, recompensar. La finalidad de la
novela es satisfacer a su público, y lo hace a un doble nivel: el puramente lúdico,
que podríamos denominar de evasión y, por otro lado, el inconsciente, en que la
novela cumple una función de psicodrama, pues permite a los lectores, a través de
experiencias ajenas, solucionar sus propias contradicciones y encontrar remedio a
sus miedos y angustias.
17
Griffiths (1978: 425).
Bibliografia
BECK, R., “Soteriology, the Mysteries, and the Ancient Novel: Iamblichus Babylo-
niaca as a Test Case,” in U. Bianchi, M. Vermaseren, eds., La Soteriologia dei Culti
Orientali nell’Impero Romano . Études Préliminaires aux Religions Orientales dans
l’Empire Romain 92, Leiden, 1982, pp. 527-540.
BLÁNQUEZ, C., “Isis en la novela clásica”, en R. Rubio (ed.), Isis. Nuevas perspec-
tivas, ARYS 4, Madrid, Ediciones Clásicas, 1996, pp. 77 – 93.
HÄGG, T., The Novel in Antiquity, Berkeley - Los Angeles, University of California
Press, 1983.
HUET, P. D., Traité de l’origine des romans, 1671 (Reprint 1942, ed. A. Kok.,
Amsterdam).
REARDON, B. P., Courants Littéraires Grecs des IIe et IIe Siècles Après J.-C., París,
Belles Lettres, 1971.
REARDON, B. P., The Form of Greek Romance, Princeton – N. J., Princeton Uni-
versity Press, 1991.
D urante muitos anos, o romance grego foi considerado como um género me-
nor, como uma forma trivial de literatura, destinado a um consumo popular1
e a um público juvenil ou pouco instruído.2 Intimamente associado a esta ideia,
criou-se o preconceito de que o sexo feminino seria o público-alvo e o principal
consumidor deste tipo de narrativas. 3 No entanto, hoje em dia, a incidência sobre
o “feminino” representa um dos factores decisivos da sua reabilitação, constituin-
do um campo fértil de investigação e a faceta que confere maior actualidade a
estas obras de cariz romanesco. O papel central que a figura feminina desempenha
no enredo e a proeminência e determinação das protagonistas face à passividade e
fragilidade de carácter dos seus congéneres masculinos têm contribuído para mul-
tiplicar, nas últimas décadas, os métodos e formas de abordagem, desde a aplicação
da teoria da recepção,4 passando pelas perspectivas antropológica5 e psicanalítica6
até à leitura de índole feminista.7
A primeira, ao atribuir à mulher o papel de leitora assídua e principal destina-
tária do romance, conduz inevitavelmente ao reforço da tese de uma significativa
melhoria do seu estatuto social e grau de literacia.
A segunda passa pela representação da mulher como elemento integrante de
*
Os textos traduzidos dos romances Quérreas e Calíroe de Cártion, As Efesíacas de Xenofonte de Éfeso e Os Amores de Leu-
cipe e Clitofonte de Aquiles Tácio foram extraídos dos volumes publicados na Colecção Labirintos de Eros, Edições Cosmos,
Lisboa, 1996, 2000 e 2005, respectivamente.
1
O primeiro a chamar a atenção para a faceta popular do romance grego foi ROHDE (1914:354-5), seguido por HI-
GHET (1949:165) e por PERRY (1967:5). Para uma leitura e interpretação do romance grego como género popular,
como literatura de consumo ou paraliteratura, vide FUSILLO (1994). Tese contrária é defendida por BRIOSO SÁN-
CHEZ (2000 e 2001) e NIMIS (2004).
2
Sobre o público do romance vide, inter alios, REARDON (1976:130 e 1991:41), LEVIN (1977), SCHMELING
(1980:cap.5), GARCÍA GUAL (1988, cap. 2), WESSELING (1988), WINKLER (1988:1568), TREU (1989), BOWIE
(1992,1994 e 2003), STEPHENS (1994), PERKINS (1995:60) e HAYNES (2003:2-3 e 6-9). Mais recentemente, ainda,
no último capítulo de um estudo que consagra aos mitos da ficção, CUEVA (2005) defende a tese de que o público a que
eram destinados os romances gregos teria presumivelmente um nível elevado de educação e cultura, para poder entender as
subtis alusões de carácter mitológico que enxameiam aquelas obras, sobretudo as de carácter mais sofisticado.
3
O único testemunho explícito da existência de um público feminino é o de Fócio, que refere, no resumo que faz das
Maravilhas de Além- Tule de António Diógenes, a dedicatória que este autor teria endereçado à sua irmã, Isidora, no início
do romance. Sobre a questão do público feminino, vide SANDY (1982:61), HäGG (1983:95-96), JOHNE (1987:24,
1989:158, 1996:204-207), EGGER (1988:33-44), LIVIABELLA – FURIANI (1989:105-106),WIERSMA (1990:111),
HOLZBERG (1995:35), BREMMER (1998), FUSILLO (2003:304) e HAYNES (2003: 4-6 e 9-10).
4
Cf. WINKLER (1990), ELSOM (1992), MONTAGUE (1992) e EGGER (1994).
5
Cf.RUBIN (1975), RABINOWITZ (1993), ZEITLIN (1996:1e passim) e HAYNES (2003: 13-14e passim).
6
Cf. HAYNES (2003:14-15).
7
Ibid.: 11-13.
sociadas à diferença sexual,11 a tarefa que tem vindo a ser levada a cabo por esta cor-
rente é a de encetar uma re-leitura da história literária e social. Essa nova abordagem
inscreve-se no contexto da progressiva consciência da importância das mulheres no
processo civilizacional e apela à re-descoberta de uma experiência autenticamente
feminina, que incida sobre a identificação do lugar da mulher na esfera literária,
elegendo como tarefa essencial a identificação das estruturas de constrangimento e
coação que conduzem à construção cultural do feminino. 12
Ora, fazendo a dupla masculino/feminino parte integrante da estrutura narra-
tiva dos romances gregos, é minha intenção, nesta comunicação, interpelar os dois
termos dessa relação (masculino/feminino) na base da construção de uma dinâmica
de género de carácter bipolar, e no quadro de um jogo dialéctico de mútuas depen-
dências e tensões, de equívocos e cumplicidades. Estou convencida de que tal tarefa
representará um passo para a decifração desse enigma, desse sistema semiótico de
contornos singulares que são as relações entre os dois sexos, tanto no campo da
literatura como da vida.
Partindo do princípio de que nenhuma teoria por si só é susceptível de expli-
car as ambiguidades, as tensões e contradições inerentes à construção do género
nos romances, recorrerei, sempre que me parecer oportuno, a leituras ditadas pelas
orientações metodológicas das teorias anteriormente expostas.
O romance grego é terreno privilegiado para um debate sobre o género na anti-
guidade. Temas como a violência e aspectos que lhe estão associados, como raptos,
violações e martírios, assim como a defesa intransigente da castidade por parte,
sobretudo, das protagonistas, levantam a questão de saber se tais comportamentos
se inscrevem num espaço ideológico dominado por preceitos androcêntricos de tipo
tradicional, ou se, pelo contrário, um conjunto de circunstâncias culturais e sociais
da Época Imperial terá forçado o cânone literário a acolher a diferença feminina no
11
Vide, inter alios, CIXOUS (1981:90-91), CIXOUS/CLÉMENT (1989), LAQUEUR (1992). Por sua vez, Judith BU-
TLER, cujas teses geraram polémica, vai mais longe na crítica à dimensão artificial da postura dualista, “ao diluir todas
as categorias e ….legitimar comportamentos sexuais até aí considerados marginais, afirmando a heterossexualidade como
socialmente determinada.” (Gil 2002:11, n.5).
12
A tendência dominante da crítica literária de pendor feminista vai no sentido de uma exclusiva concentração na “ex-
periência feminina”. Dentre as várias correntes que corporizam essa busca da diferença específica na escrita das mulheres,
destaco a chamada “ginocrítica”, que se apresenta como a “re-descoberta de uma ‘experiência autenticamente feminina’,
que incide sobre a mulher como produtora de significado…..e sobre a linguagem feminina …”(HAYNES 2003:11). As
adeptas desta teoria, que tem como seu expoente máximo SHOWALTER (1979:25 e 1985), defendem a tese que as
imagens da mulher, filtradas pela óptica masculina, são imagens estereotipadas e, por isso mesmo, fatalmente incompletas.
No entanto, conforme acentua HAYNES (2003:12), esta teoria, a ser aplicada integralmente, deixaria de parte muita da
literatura clássica, incluindo as obras que agora nos ocupam, uma vez que muitas das representações do feminino, bem
como a imagem das relações entre os sexos são tradicionalmente construídas e divulgadas através de textos com assinatura
masculina. Este facto não exclui, no entanto, à partida, o valor hermenêutico deste tipo de abordagem, como mais uma
tentativa de aproximação analítica aos textos clássicos, tanto mais que tem sido utilizada, com alguma proficiência, por
autoras feministas daquela área, como CULHAM (1990:162) e LEFKOWITZ (1981:31). Nesta mesma linha e no campo
da literatura de inspiração bíblica, há que ser sensível ao alerta de BROOTEN (1985:80), ou seja, ao facto de que a história
das mulheres na época dos primeiros cristãos deveria estar antes de tudo centrada nas próprias mulheres e não no retrato
que nos é delas transmitido pelos homens. Ainda no campo da literatura feminista, destaque-se a obra de FIORENZA
(1983,1988 e 1992), que tem tido uma repercussão assinalável na área dos estudos do Novo Testamento.
13
Cf. KONSTAN (1994:7).
relata a sua reacção ao ver pela primeira vez a amada,18 mas também quando, um
pouco mais à frente, a representa como uma festa para os olhos,19 dando um passo
em frente na conceptualização do ser feminino como objecto. As instruções de Clí-
nias sobre como conduzir uma relação amorosa e as repetidas generalizações sobre
o comportamento feminino (a mulher comparada a um animal a domesticar, que
apresenta uma predisposição instintiva para o amor: a sua resistência resulta apenas
do pudor que esconde o seu desejo) (I,9-10), distanciam-nos cada vez mais da con-
cepção da heroína como sujeito, sublinhando a sua conformidade com um padrão
uniformizado do feminino.
A écfrase do jardim da casa de Clitofonte, que vem a seguir (I,15),20 aponta
também para este estereótipo: o jardim é considerado um espaço de delícias para
fruição do olhar, contendo a maior e mais suculenta de todas no seu seio: Leucipe.
No decurso da narrativa, outras écfrases, representando Andrómeda (III,7) e
Filomela (V,3,4-8) enfatizam a relação entre beleza e violência patentes na descri-
ção de Europa e prenunciam os futuros ataques à integridade da heroína. O facto
de estas descrições se situarem imediatamente antes do falso sacrifício (a primeira)
e da pretensa decapitação (a segunda), demonstra claramente a sua conexão com
os acontecimentos que se seguem, conexão esta tornada explícita pela sugestão de
Menelau de adiarem a viagem a Faros: “Os intérpretes de sinais dizem que se de-
vem levar a sério as histórias contadas nos quadros que podemos encontrar quando
saímos para tratar de algum negócio; dizem ainda que o que há-de acontecer será
análogo ao que é contado na história do quadro” (V,4,1).
Em nenhum outro local do romance a exibição de violência perpetrada contra
o corpo da mulher é tão explícita como na cena do falso sacrifício. Clitofonte obser-
va, imóvel, os salteadores a enterrarem o punhal no corpo de Leucipe, as vísceras a
saltarem e os bandidos a banquetearem-se com elas.21 O narrador, que, da sua ópti-
ca restritiva, apenas nos pode transmitir os próprios sentimentos, ao apropriar-se do
exemplo da sofredora Níobe,22 opera uma singular transferência de personalidade,
18
{SH *¥ ,É*@<, ,Û2×H •BT8f8,4<q iV88@H (•D Ï>bJ,D@< J4JDfF6,4 $X8@LH 6"Â *4• Jä< ÏN2"8:ä< ,ÆH J¬<
RLP¬< 6"J"DD,Ãq ÏN2"8:ÎH (•D Ò*ÎH ¦DTJ46è JD"b:"J4.
“Mal a vi, fiquei perdido. É que a beleza fere, mais penetrante do que um dardo, e através dos olhos corre para a alma, pois
é pelo olhar que passa a ferida amorosa.” (I,4,4).
19
@Ê :¥< *¬ –88@4 J± ("FJDÂ :,JDZF"<J,H J¬< º*@<Z<, ¦(ã *¥ J¬< ,ÛTP\"< ¦< J@ÃH ÏN2"8:@ÃH NXDT< Jä< J,
J-H 6`D0H BD@FfBT< (,:4F2,ÂH 6"Â •6DVJå 2,V:"J4 6"Â :XPD4 6`D@L BD@,82ã< •B-82@< :,2bT< §DTJ4.
“Os outros mediram o prazer pelo estômago, mas o meu festim esteve nos olhos: regalado com o rosto da donzela,
numa contemplação sem mistura e saciado até mais não, retirei-me, ébrio de amor.” (Aquiles Tácio, Leucipe e Clitofonte,
I,6,1)
20
Para a análise desta écfrase, vide BARTSH (1989: 50-52) e FUTRE PINHEIRO (2001:129-30).
21
São notórias as semelhanças entre este episódio e os rituais de canibalismo descritos nos fragmentos recentemente desco-
bertos das Fenicíacas de Loliano (sec II d. C.), onde se descreve igualmente o sacrifício de um jovem num cenário bárbaro
e aterrador, semelhante ao que nos é descrito em Aquiles Tácio. Para uma visão de conjunto destas práticas místico-rituais,
de carácter iniciático, bem como das suas implicações na polémica que se gerou entre cristãos e pagãos nos séculos II e III
d.C., vide PENA (2005:83-84, n.33).
22
Níobe era filha de Tântalo e Dione e irmã de Pélops. Diz- nos Hesíodo que casou com Anfíon, de quem teve dez filhos
e dez filhas. Um dia vangloriou-se de ser superior a Latona, que só tinha dado ao mundo dois filhos. Apolo e Ártemis
decidiram vingar a ofensa feita à mãe: com as suas flechas dizimaram toda a descendência de Níobe, à excepção de Clóris,
futura esposa de Neleu e mãe de Nestor. Apiedado com a dor da inconsolável Níobe, Zeus transformou-a num rochedo
de onde brotam as suas lágrimas como de uma nascente.
23
Cf. EGGER (1990:310 n.3), ELSOM (1992:216) e HAYNES (2003:58). Esta última autora comenta que Clitofonte
“enfatiza o poder insistente da voz masculina”.
«z+(ã *¥ 6"Â (L:<¬ 6"Â :`<0 6"Â (L<Z, 6"Â «< ÓB8@< §PT J¬< ¦8,L2,D\"<, ¼ :ZJ, B80("ÃH 6"J"6`BJ,J"4
24
:ZJ, F4*ZDå 6"J"JX:<,J"4 :ZJ, BLDÂ 6"J"6"\,J"4. ?Û6 •NZFT B@J¥ J"bJ0< ¦(f.»
«Eu estou indefesa, só, mulher! A minha única arma é a liberdade, que não pode ser destruída por golpes, nem cortada
pelo ferro, nem consumida pelo fogo. É a única coisa que não vos entregarei, nunca!» (Aquiles Tácio, Leucipe e Clitofonte,
VI,22,4).
25
Para um estudo dos mitos no romance grego, vide CUEVA (2004) e LÓPEZ FÉREZ (2004).
Tereu corta-lhe a língua e diz a Procne que a irmã morrera. Filomela, decide, então
enviar a Procne a notícia do seu rapto, tecendo a história numa tela que lhe envia.
Procne, ao tomar conhecimento do rapto da irmã, vinga-se, matando o seu próprio
filho e dando-o em refeição a Tereu. Depois da refeição, as duas irmãs mostram-lhe
os restos do filho. Tereu, em fúria, lança-se sobre elas de espada desembainhada mas
elas transformam-se em pássaros: Filomela, numa andorinha, Procne, em rouxinol
(na versão latina de Higino, Filomela será o rouxinol e Procne a andorinha) e Tereu
em poupa.29
O traço mais significativo deste mito reside na capacidade que as imagens têm
de transmitir uma mensagem e também no facto de as mulheres adquirirem a fa-
culdade de falar através de uma tarefa que simbolicamente lhes silencia a voz: o fiar
e tecer a lã no interior do oikos.
Se compararmos esta descrição com as écfrases masculinas da Ilíada e da Enei-
da, a diferença radica, logo à partida, na natureza dos objectos descritos: por um
lado, o escudo, associado à actividade guerreira, símbolo da virilidade masculina;
por outro, a tapeçaria, tradicionalmente ligada à mudez recatada das mulheres. A
oposição prolonga-se na relação que um e outro objecto têm com a fala. O escudo
é um instrumento da voz masculina, que perdura através dos tempos e que propicia
a conquista da glória que os poetas imortalizam. Mas a tapeçaria pode também
ser a fala das mulheres, o equivalente pictórico da sua voz calada. Assim, o mito
de Filomela dá voz ao silêncio feminino, unindo em estreita cumplicidade o poder
da imagem e a sua capacidade de representação, e a voz da mulher que criou essa
imagem.
Por seu lado, a educação de Cloe foi objecto de um estudo notável de Winkler
que demonstrou que a jovem se tornou de forma problemática, no decorrer da ac-
ção, “cada vez mais uma aprendiza muda”.30 Mesmo quem não adere à ideia de que
Longo tenha tentado denunciar uma ordem social falocrática à qual se submetem
as mulheres, não deixará de ser sensível ao modo como as heroínas são, durante o
seu percurso de aprendizagem, progressivamente desapossadas do direito de fazer
ouvir a sua voz, que, tanto no campo da mitologia grega, como no da realidade do
tempo, é um instrumento de poder.31
Quanto a Leucipe, referimos atrás o comentário provocatório que dirige a Ter-
sandro, comentário esse que codifica o seu comportamento sob uma perspectiva
radicalmente oposta à da leitura masculina da condição feminina que tinha pon-
tuado a narrativa até esse momento. Deve, no entanto, sublinhar-se que este mer-
gulho, por assim dizer, na subjectividade da protagonista está intimamente ligado
à defesa obstinada da sua castidade. Leucipe, que, no início do romance, parecia
querer emancipar-se da tutela maternal, à medida que o relato progride vai sendo
Resumo elaborado por Armando Duarte Senra Martins, no âmbito do Mestrado “A écfrase e a tradição ecfrástica”,
29
«Manda vir os instrumentos de tortura. Que venha a roda: aqui tens os meus
braços, estica-os. Que venham também os chicotes: aqui tens as minhas cos-
tas, açoita-as. Que tragam o fogo: aqui tens o meu corpo, queima-o. Que
tragam também o machado: aqui está o meu pescoço, corta-o. Vós sereis
os espectadores de um novo tipo de combate: uma simples mulher em luta
contra todos os instrumentos de tortura e a todos vence.» (Aquiles Tácio,
Leucipe e Clitofonte, VI,21,1-2).
3.Ora, é precisamente neste ponto que me quero deter por breves instantes.
A insistência na castidade, tanto masculina como feminina, constitui um terreno
fértil, propício a diferentes leituras no que diz respeito aos estudos de género.32 Po-
deríamos intitular esta alínea como a retórica ao serviço da castidade. De facto, tác-
tica geralmente utilizada pelas heroínas na defesa da sua honra é o uso da retórica.
Elas aliam, à força emocional, que lhes confere um poder erótico inconsciente,33 a
habilidade para manipularem situações em espaços públicos, tradicionalmente co-
notados com o masculino. Veja-se, por exemplo, a resposta de Calírroe às investidas
preliminares do Grande Rei, mediadas pelo Eunuco Artaxates:
«9¬ (•D @àJT» N0FÂ «:"4<@\:0<, Ë<" ¦:"LJ¬< •>\"< ,É<"4 B,4F2ä J@Ø
:,(V8@L $"F48XTH. +Æ:Â *¥ 2,D"B"4<\F4< Ò:@\" A,DF\*T< (L<"46ä<.
9¬ Fb, *X@:"\ F@L, :<0:@<,bF®H §J4 B,DÂ ¦:@Ø BDÎH JÎ< *,FB`J0<. 5"Â
(•D —< ¦< Jè B"D"LJ\6" :0*¥< ÏD(4F2±, :,J• J"ØJV F@4 P"8,B"<,Ã,
8@(4FV:,<@H ÓJ4 JÎ< (-H •BVF0H 6bD4@< ßBXDD4R"H )4@<LF\@L *@b8®.
1"L:V.T *¥ BäH FL<,JfJ"J@H ßBVDPT< •(<@,ÃH J¬< $"F48XTH
N48"<2DTB\"<, ÓJ4 @Û6 ¦D” *LFJLP@ØH (L<"46ÎH •88• ¦8,,Ã.»
32
Num estudo recente, LATEINER (1988:186-88) acentua que o rubor que frequentemente aflora à face das perso-
nagens femininas e, por vezes também, das masculinas, em situações de embaraço ou crise interior, são o emblema
apropriado para exprimir pressões psicológicas conflituosas e coerções sociais. Sinal de sensualidade inocente ( o pudor
de Caricleia e Calírroe torna-as mais desejáveis aos olhos masculinos) ou de um erotismo declarado, o rubor desnuda a
personagem aos olhos do leitor, que tem, assim, livre acesso ao espaço íntimo daquela, partilhando, com agrado e com
prazer, desse mundo que, de outra forma, lhe estaria vedado. Para uma história do pudor, vide BOLOGNE (1990).
33
Cf. EGGER (1988:60).
«Seria mais apropriado que o meu irmão Teágenes falasse, pois é decoroso, a
meu ver, que uma mulher guarde silêncio e que seja o homem a falar numa
reunião de homens.» (Heliodoro, As Etiópicas, I,21,3).
facto de nos oferecer uma visão mais depurada das relações entre os sexos, mas tam-
bém pelo significado simbólico que encerra,34 tal não significa que não encontremos
também, nos restantes romances, traços que se afastam da versão idiossincrática do
comportamento masculino.
Num género literário que floresce em plena época imperial, a guerra é o elemen-
to aferidor do heroísmo daquele que é considerado o sexo forte. Apesar de Quéreas
ser o único herói a escolher o campo de batalha como o local indicado para exibir
a sua coragem, nos outros romances o tema da iniciação guerreira subsiste como
modelo, estando sempre no horizonte como um desenvolvimento narrativo possí-
vel. Mas esta convenção não resiste também a um olhar mais atento. O exemplo
mais esclarecedor do aproveitamento cómico do tema encontramo-lo no amanei-
rado Aquiles Tácio, onde o campo de batalha se transfere metaforicamente para o
campo dos afectos: Sátiro instrui Clitofonte sobre os segredos do amor, associando
este à actividade guerreira. Eros é um deus viril e marcial e não permite hesitações
nem cobardias, mas exige coragem e rapidez no ataque.35
Encontramos ainda outros indicadores de uma alteração nos padrões tradicio-
nais da masculinidade. Dada a ênfase colocada na capacidade de persuasão das
heroínas, é clamorosa a falta de confiança dos heróis nesta matéria. Dáfnis, após
ter tentado arquitectar um discurso razoável em sua própria defesa na sequência da
acusação dos Metímnios, destrói imediatamente todo o impacto que as suas pala-
vras possam ter tido, ao desfazer-se em lágrimas (II,16), numa cena reminescente do
comportamento de Telémaco na Odisseia (II,80-81).
A falta de estratégias defensivas de todos eles, a sua aparente passividade face
à adversidade introduz uma nota discordante em comparação com o engenho das
heroínas. Assim, quando o barco de Quéreas é capturado, é-nos dito que ele e
Policarmo suplicaram que os vendessem a um só dono (III,7), atitude que revela
grande sentido de lealdade mas que é completamente falha de dignidade. Mas o
comportamento de Clitofonte é talvez aquele que nos dá a chave para compreender-
mos esta aparente inferioridade masculina. A sua condescendência em submeter-se
aos irracionais e violentos ataques de Tersandro (V,23,5-7 e VIII,I,3-5) faz supor
que este elemento de heroísmo romanesco constitui uma paródia ao auto-domínio
que se deveria esperar de qualquer representante da alta sociedade da época. Gase-
lee, tradutor da edição da Loeb, não resiste a introduzir uma nota a propósito da
passividade de Clitofonte perante os impropérios que Tersandro dirige a Leucipe.
Diz ele: “o leitor ... chegado a este ponto, conclui que o herói deste romance é um
cobarde da pior espécie”.36 É evidente que, para um gentleman da era vitoriana, o
34
A propósito, vide FUTRE PINHEIRO (1993).
35
«}+DTH, ì (,<<"Ã,, §N0, *,48\"H @Û6 •<XP,J"4. {?D”H "ÛJ@Ø JÎ FP-:" ñH §FJ4 FJD"J4TJ46`<q J`>@< 6"Â
N"DXJD" 6"Â $X80 6"Â BØD, •<*D,Ã" BV<J" 6"Â J`8:0H (X:@<J".»
«Eros, nobre senhor, não permite cobardias. Olha como toda a sua aparência é marcial: um arco, uma aljava, flechas e
uma tocha, todo viril e pleno de audácia.» (Aquiles Tácio, Leucipe e Clitofonte, II,4-5).
36
GASELEE (1969:390-1, n.1), apud KONSTAN (1994:23).
BIBLIOGRAFIA
EGGER, B., “Women and Marriage in the Greek Novel: The Boundaries of Ro-
mance”, in Tatum, J. (ed), The Search for the Ancient Novel (Baltimore/London,
The Johns Hopkins University Press, 1994) 260-80.
EGGER, B., “Zu den Frauenrollen im griechischen Roman. Die Frau als Heldin
und Leserin”, in Groningen Colloquia on the Novel I (Groningen, Egbert Forsten,
1988) 33-66.
EGGER, B., Women in the Greek Novel: Constructing the Feminine (diss. PhD)
(University of California at Irvine, 1990).
ELSOM, H.E., “Callirohe: Displaying the Phallic Woman”, in Richin, A. (ed),
Pornography and Representation in Greece and Rome (New York/Oxford, Oxford
University Press, 1992), 212-30.
FUSILLO, M., “Letteratura di Consumo e Romanzesca”, in Lo Spazio letterario di
Roma antica. I: La produzionee la circolazione del testo, Giuseppe Cambiano, Lucia-
no Canfora, Diego Lanza (eds.), vol. 1.3 (Roma, 1994) 323-73.
FUSILLO, M., “Modern Critical Theories and the Ancient Novel”, in Schmeling,
G. (ed.), The Novel in the Ancient World, (Boston/Leiden, Brill Academic Publish-
ers, Inc, 2003) 277-305.
FUTRE PINHEIRO, M., “Do Romance Grego ao Romance de Cavalaria: as Eti-
ópicas de Heliodoro e a A Demanda do Santo Graal” in Actas do IV Congresso da
Associação Hispânica de Literatura Medieval vol. IV (Lisboa, Edições Cosmos, 1993)
147-54.
FUTRE PINHEIRO, M., “A(s) Voz(es) do Silêncio”, in A Voz de Paço d’Arcos, nos
87-88-2ª série-Dez/Jan 2000.
FUTRE PINHEIRO, M., “The Language of Silence in the Ancient Greek Novel”,
in Jakel S., & Timonen (eds.), The Language of Silence, vol. 1 (Turku, Turun Yli-
opisto, 2001) 127-40.
GARCÍA GUAL, C., Los Orígenes de la Novela (Madrid, Ediciones Istmo, 19882).
GASELEE, S., (ed.), Achilles Tatius (Cambridge Mass., Harvard University Press,
1969).
GIL, I.C., Mitografias. Figurações de Antígona, Cassandra e Medeia no drama de
expressão alemã do século XX (diss. Dout.) (Universidade Católica Portuguesa, Fa-
culdade de Ciências Humanas, 2002).
HäGG , T., “Some Technical Aspects of the Characterization in Chariton’s Ro-
mance”, Studi Classici in Onore di Quintino Cataudella vol.2 (Catania, 1972) 545-
56.
HäGG, T., The Novel in Antiquity (Berkeley and Los Angeles, University of Cali-
fornia Press, 1983).
HAYNES, K., Fashioning the Feminine in the Greek Novel (London/New York,
Routledge, 2003).
HELMS, R., Character Portrayal in the Romance of Chariton (The Hague/Paris,
1966).
HIGHET, G. The Classical Tradition, (Oxford, Oxford University Press, 1949).
Feministe Theory and the Classics (London/New York, Reutledge, 1993) 1-22.
REARDON, B.P, “Aspects of the Greek Novel”, Greece and Rome 23 (1976) 118-
131.
REARDON, B.P., The Form of Greek Romance (Princeton NJ, Princeton Univer-
sity Pres, 1991).
ROHDE, E., Der griechische Roman und seine Vortäufer (Leipzig, Breitkopf und
Härtel, 19143) (reimp. Darmstdt 1974; originalmente publicado em 1876).
RUBIN, G., “The Traffic in Women: Notes on the Political Economy of Sex” in
Reiter R.R. (ed) Toward an Anthropology of Women (New York/London, Monthly
Review Press, 1975) 157-210.
SANDY, G.N., Heliodorus (Boston, Twaynes Publishers, 1982).
SCHMELING, G., Chariton (New York, Twayne Publishers, Inc.,1974).
SCHMELING, G., Xenophon of Ephesus (Boston, Twaynes Publishers,1980).
SCHMELING, G., (ed.) The Novel in the Ancient World (Boston/Leiden, Brill,
2003).
STEPHENS, S.A., “Who Read Ancient Novels?”, in in Tatum, J. (ed), The Sear-
ch for the Ancient Novel (Baltimore/London, The Johns Hopkins University Press,
1994) 405-18.
de TEMMERMAN, K., “Abortion in Chariton’s Callirhoe: A Historical Approa-
ch”, in Boletim de Estudos Clássicos vol. 36, Coimbra (2001) 69-79.
TREU, K., “Der antike Roman und sein Publikum” in Huch H. (ed), Der Antike
Roman, (Berlin, Akademie-Verlag, 1989) 178-97.
WESSELING, B., “The Audience of the Ancient Novels”, GCN 1 (1988) 67-79
WIERSMA, S., “The Ancient Greek Novel and its Heroines: a Female Paradox”,
Mnemosyne 43, Fasc. 1-2 (1990) 109-123.
WINKLER, J. J., “The Education of Chloe: Hidden Injuries of Sex”, in The Cons-
traints of Desire: The Anthropology of Sex and Gender in Ancient Greece (New York/
London, Reutledge, 1990) 101-26.
WINKLER, J.J., “The Novel”, in Grant M. and Kitzinger R. (eds), Civilisation o
mondo reale nel romanzo antico (Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane,1989) 45-
106.
ZEITLIN, F.I., Playing the Other: Gender and Society in Classical Greek Literature
(Chicago/London, University of Chicago Press, 1996).
1
Um dos textos mais antigos, conhecidos, que menciona este mito, Il. IX, 141-158, refere que Agamémnon tinha três
filhas: Crisótemis, Laódice e Ifianassa. Laódice tem sido interpretada como sendo Electra e Ifianassa como sendo uma
variante de Ifigénia, ainda que S., El. 157, 531-541, distinga ambos os nomes. Crisótemis é também uma das persona-
gens da Electra de Sófocles. Note-se que os Poemas Homéricos parecem desconhecer o mito da imolação de Ifigénia a
Ártemis.
2
Apollod., Bibl. II, 4, 3; Ov., Met. IV, 665ss.
3
Jz 11.
4
Od. III, 309-310.
5
Od. XI, 410.
Mas nesse mesmo poema, a rainha de Argos não era necessariamente a assas-
sina material de Agamémnon, atribuindo-se o acto em si ao amante, o filho de
Tiestes8.
A Oresteia de Ésquilo não só comprova a faceta malquista de Clitemnestra na
cultura grega, como a desenvolve. Já se afirmou, contudo, que a rainha de Argos
tanto é uma vilã como uma heroína, no sentido positivo. De algum modo, essa
interpretação estaria mesmo de acordo com a teorização aristotélica9. Assim, Cli-
temnestra tanto seria uma vilã porque age voluntária e deliberadamente, com total
conhecimento de causa, como seria heroína, visto que é uma vítima da injustiça e
por isso compelida a agir10. Se Homero se centrava sobretudo na primeira faceta,
Aristóteles valorizaria decerto a segunda. Efectivamente, não seria difícil encontrar
simpatizantes das duas causas.
A Oresteia tem também sido entendida como uma reflexão sobre a justiça divi-
na e etiologia do tribunal ateniense. Nesse sentido, Clitemnestra, e também Egisto,
representam a velha ordem e a vendetta (ius sanguinis) própria de uma sociedade
de honra e vergonha (themis), enquanto Orestes e a superação do seu dilema en-
6
Od. XI, 422, 425.
7
Od. XI, 427-434, 436-439. Usamos a tradução de F. Lourenço. Sobre Pandora, ver Hes., Op., 90-105. e Od. XXIV,
196-202.
8
Od. IV, 524-537. Em XI, 410, lemos que quem matou Agamémnon foi Egisto com a ajuda de Clitemnestra.
9
Arist., Po. 1452b30-1454b18.
10
S. MacEwen, «Views of Clytemnestra, Ancient and Modern. An Introduction» in S. MacEwen, ed., Views of Clytem-
nestra, Ancient and Modern, Lewiston/Queenston/Lampeter, 1990, 4-5. Neste mesmo artigo, a Autora enuncia uma
síntese de todo o tipo de comentários que a figura de Clitemnestra tem merecido por parte de filólogos e historiadores.
Com estas palavras, aliás ignoradas no resto da peça e sem quaisquer conse-
quências ao nível do diálogo, Clitemnestra manifesta melhor que em qualquer ou-
tra parte a condição da mulher abandonada pelo homem que assume o seu papel de
guerreiro, revelando que o seu sofrimento é tão grande ou maior do que o daquele
que parte. É importante salientar, contudo, com Lefkowitz, que Ésquilo não pre-
tende que Clitemnestra se tenha tornado um homem, afinal, a deusa Ártemis adora
caçar e matar16. Mas teve um comportamento masculino, como é o de Ártemis, que
juntamente com Atena e Héstia são deusas virgens e, como a primeira, guerreiras,
uranianas. Clitemnestra aproximou-se da faceta uraniana, assumiu uma máscara
do mundo celeste, para reagir à sua condição inferiorizada.
Ao analisarmos a personagem trágica feminina no contexto da Grécia do século
V, porém, percebemos de imediato um paradoxo. A mulher grega entra numa con-
dição ingrata, ao ser colocada como figura central: apesar de protagonista e desse
modo projectada para primeiro plano, é trazida de dentro do oikos para a polis,
alcançando desse modo um protagonismo que não lhe é devido, contradizendo
o ideal feminino dos Gregos17. Como dizem Lefkowitz e MacEwen, para que as
heroínas sejam vistas de uma forma simpática, devem defender a philia ou alguns
outros valores relacionados com o oikos, e de uma forma feminina18. Não é esse o
caso de Clitemnestra que recusa a philia e almeja salvar o Estado ao matar o seu
chefe. Clitemnestra é uma femina politica e isso é algo de constranjedor ou mesmo
de repugnante para a época que a definiu. Compare-se com o que sobre elas diz
15
A., A. 861-874. Tradução de M. Oliveira Pulquério.
16
M. Lefkowitz, Women in Greek Myth, 120.
S. MacEwen, «Oikos, Polis and the Question of Clytemnestra» in S. MacEwen, ed., Views of Clytemnestra, Ancient
17
and Modern, Lewiston/Queenston/Lampeter, 1990, 31. Cf. X., Oec. 7, 30, que afirma que o lugar da mulher é no oikos,
enquanto o do homem é a polis.
18
S. MacEwen, «Oikos, Polis and the Question of Clytemnestra», 29-31. A Autora considera a personagem paradoxal em
si mesma: «Is Clytemnestra the victim or the villain then? The answer of course is a non-answer: because she is a woman
trying to be the savior of civilization, she is the villain, and because women are always the enemy of civilized virtues, she
is the victim of her own paradoxical situation».
Da morte de Egisto não falo: sofreu o castigo que a lei reserva aos adúlteros.
Quanto àquela que planeou esta abominação contra um homem, de quem trou-
xe no seio o peso dos filhos, fardo então querido, hoje odiado, como está à vista
de todos: que te parece ela? Moreia ou víbora? Em qualquer caso, um ser capaz
de infectar pelo simples contacto, sem morder, pelo só efeito da sua audácia e da
19
Th. II, 45.
20
F.I. Zeitlin, «The Dynamics of Misogyny: Myth and Mythmaking in the Oresteia», Arethusa 11/1-2, 149-150.
M. Lefkowitz, Women in Greek Myth, 120-122; S. MacEwen, «Oikos, Polis and the Question of Clytemnestra», 17,
21
nota que Clitemnestra também representa «animal passions and barbarian nomoi».
1125-1127, uma vaca. A análise destes atributos foi feita por A.I.R.S. Rodrigues, Valores masculinos e femininos na Grécia
Antiga. Abordagem antropológica da sociedade e de textos mitológicos e trágicos, Lisboa, 1992, 597-611.
24
A., A. 20-21.
25
S. MacEwen, «Oikos, Polis and the Question of Clytemnestra», 27.
Apesar de ser uma figura «feminilizada», de modo a criar a antítese, é nela que a rainha se apoia: «Nele eu tenho o
26
28
B.X. DeWet, «The Electra of Sophocles- A Study in Social Values», Acta Classica 20, 1977, 29-30. A. Betensky, «Aes-
chylus’ Oresteia: the Power of Clytemnestra», Ramus 7, 1978, 11-25.
29
A., A. 1431-1437.
30
A., A. 10, em tradução de M.O. Pulquério. Mas nem sempre, na cultura grega, Clitemnestra aparece deste modo.
Chega a ser sugerida como uma mater dolorosa. Assim talvez a possamos considerar, se tivermos em conta que também
a sua prole, como a de outras matres dolorosae, foi entregue em sacrifício; mas que aqui reage, vingando-se... Sobre Cli-
temnestra como mater dolorosa no Télefo de Eurípides, ver E.C. Nelson, «Clytemnestra in Illustrations of the Telephos
Myth» in S. MacEwen, ed., Views of Clytemnestra, Ancient and Modern, Lewiston/Queenston/Lampeter, 1990, 35-51.
31
M. Shaw, «The Female Intruder: Women in Fifth-Century Drama», CP 70, 1975, 265-266, sintetiza os aspectos
definidores do conflito masculino/feminino na tragédia: 1º um homem, agindo como homem, age de modo a afectar
uma mulher; 2º a mulher sai do oikos e reage, opondo-se ao homem; 3º a mulher assume actos próprios do homem; 4º
impõe-se uma nova ordem entre homem e mulher. Sobre a especificidade do feminino na tragédia, N. Loraux, Façons
tragiques de tuer une femme, Paris, 1985.
muerte del niño queda asimilada, de esta forma, a la muerte del héroe por la ciudad,
cuya memoria es celebrada en el ámbito de la comunidad a través de la competición
atlética, donde, como en el campo de batalla, el noble puede hacer ostentación pú-
blica de sus proezas y demostrar su valor mediante la victoria personal y la derrota
del adversario. Los juegos funerarios, instituidos con motivo de la celebración ho-
norífica de un héroe muerto en combate, colaboran de esta forma en la imitación
de un enfrentamiento en el que se mide la aretê personal de aquellos que integran la
comunidad de la que formaba parte el héroe que ha dado su vida por ella y que por
ella recibe, a cambio, la compensación de un honor equiparable.
La tragedia de Alejandro hace, sin embargo, de este momento celebrativo un
problema cívico: el problema de la participación, de la discriminación de una no-
bleza política. El momento marco de la celebración de los juegos funerarios divide
la tragedia en dos mitades, el antes y el después de las competiciones atléticas,
protagonizadas por Alejandro. Estos dos momentos dramáticos se desarrollan, a su
vez, en forma de enfrentamiento; en ellos tiene lugar otro modo de confrontación,
en este caso verbal: el agôn correspondiente a los episodios que anteceden y suceden
a los juegos. Los juegos dirimen en el ámbito de la acción la controversia verbal que
los precede y cuyas consecuencias se debatirán también posteriormente.
La hypothesis relata que Alejandro, maniatado, es presentado ante el rey Príamo
por un grupo de pastores que no soportan la insolencia del joven en su trato diario3.
Es posible que ésta fuera la primera aparición de Alejandro en escena y que, entre
otros motivos de acusación, los pastores adujeran como prueba última de la hybris
del boyero su insólito deseo de tomar ahora parte en los juegos. El rey atiende la
situación de discordia o revuelta popular que se ha originado en torno a Alejandro
y adopta el papel de juez que dirime la confrontación. El joven debía de defenderse
de las acusaciones de los demás pastores con tal vehemencia (insistiendo proba-
blemente en su deseo de participar en las competiciones atléticas para demostrar
su valor) que Deífobo –quien, al parecer, se encontraba en compañía de su padre
Príamo– interviene también en el debate en contra del boyero. Finalmente, el rey,
impresionado por las razones y la actitud de Alejandro –que, según la hypothesis,
refutó uno a uno a sus acusadores4 –, permite al pastor que participe en los juegos
funerarios.
La participación de Alejandro en los juegos resulta una anomalía excepcional:
por su condición de pastor, está, en principio, excluido de este tipo de celebraciones
públicas5. Es un hombre del campo, ajeno a la ciudad; su espacio es el de la natura-
leza, el de las montañas del Ida, donde apacienta los ganados del rey a cuyo servicio
3
Hypothesis, ll. 15-17.
4
Hypothesis, ll. 17-21. La hypothesis dice “a sus calumniadores” (), pues ha dejado claro desde el principio
que la naturaleza noble de Alejandro era verdaderamente superior a la de un pastor (ll. 13-14), como hijo de reyes que
era; de ahí que el orgullo del joven sea legítimo y las acusaciones de los demás pastores queden convertidas en meras
calumnias.
5
Sobre las fuentes antiguas y la bibliografía moderna al respecto, cf. Scodel 1980: 84.
se encuentra. Es, por lo tanto, un siervo sometido por necesidad a los esfuerzos de
un trabajo ajeno. Los juegos funerarios, por el contrario, constituyen otro tipo de
esfuerzo en su calidad de povnoi, un esfuerzo absolutamente gratuito que se hace
muestra de libertad y excelencia, y cuyo premio es inalienable. Junto con los ritos
funerarios, los juegos son manifestación pública de un mundo organizado en valores
sociales, expresión de un esquema moral determinado por el lugar que ocupan sus
participantes en la sociedad heroica6. De ahí la insistencia del discurso de Deífobo
en señalar la condición servil y miserable de los congéneres ( ) de Alejandro7,
el supuesto pastor a quien, en definitiva, se dirige Deífibo como antagonista.
Los términos en los que se expresa el discurso de Deífobo destacan las oposi-
ciones siervo/señor ( /), noble/miserable (kalov"/kakov") con las que
éste quiere subrayar el hiato insalvable que separa al pastor de aquéllos con quienes
pretende equipararse y medirse en competición. Para Deífobo, el esclavo carece de
disciplina [Texto 2] y sus intereses son groseros por cuanto están dictados por la
necesidad y atienden exclusivamente a su sustento [Texto 3]. Los fragmentos con-
servados son exiguos, pero nos permiten adivinar la contrapartida de la diferencia:
al contrario que los esclavos, los kaloi miran hacia algo más que el alimento necesa-
rio, dando muestras de su libertad en el mundo de la acción. De ahí que un kakos
no pueda medirse con un kalos en la pugna por la aretê.8
Alejandro, sin embargo, refuta estos principios desplazando significativamente
los términos de la oposición a otro tipo de categorías semánticas; al mismo tiempo,
invierte los valores de los términos enfrentados, socavando los cimientos de la moral
tradicional (aristocrática). El pastor, que no acepta la condición de esclavo que los
demás quieren imponerle9, prefiere trasladar la diferencia del ser al tener: su condi-
ción no es la de la esclavitud sino la de la pobreza10, de forma que los términos que
se oponen son los de riqueza/pobreza ( /) en un régimen de valores
también sociales y morales [Texto 4]. Lo extraordinario es que Alejandro confiere
precisamente el valor superior a la pobreza, que en el mundo antiguo, especialmente
de época arcaica y clásica, solía, sin embargo, ser considerada óbice de la virtud11.
Muy al contrario, para Alejandro la pobreza impone un régimen de vida austero y
eficaz, a diferencia de la riqueza, cuya vida muelle y regalada promueve la inacción
6
MacIntyre 1987: 156 y 163.
7
Frr. 11 (= 50 Nauck 2) y 13 (= 59 Nauck 2).
8
Ni siquiera en un régimen democrático como el ateniense se niegan tales presupuestos. Cf. Adkins 1972: 65-67. Sobre
la conciencia de clase o status de la aristocracia ateniense y su kalokagathia, incluso en los siglos V y IV a. C., cf. Ober
1989: 251-252.
9
Algo que reprocha incluso a sus compañeros de esclavitud, a quienes trata de hacer ver que llevan el nombre de esclavos
por puro azar, no porque esa sea su condición natural o su talante. Cf. fr. 8 (= 57 Nauck 2), si aceptamos, junto con la
mayoría de editores y estudiosos de esta obra, que era Alejandro quien pronunciaba estos versos. Vid., al respecto, Scodel
1980: 30 y Jouan & Van Looy 1998: 63, nota 47.
10
Cf. Scodel 1980: 30. Este cambio posee también tintes políticos: mientras que la oposición esclavo/señor pertenece al
ámbito del oikos, la oposición pobre/rico pertenece al de la polis. Cf. Citti 1978: 20 y 25.
11
Cf. Adkins 1972: 63 y 115-116.
12
La transmisión textual del pasaje ofrece una variante de interés, en este sentido, que merece la pena consignar. Cle-
mente de Alejandría (Strom. IV 5. 24, 3) transcribe paivdeuma, frente a Estobeo IV 33, que transmite . Cf.,
sobre esta cuestión, Jouan & Van Looy 1998: 65, nota 53.
13
Fr. 16 (= 54 Nauck 2).
14
Hypothesis, ll. 19-21.
15
Algo que es probable que el propio Alejandro hubiera valorado en su intervención anterior. Si era Alejandro la persona
loquens del fr. 15 (= 61 Nauck 2), entonces reprochaba muy posiblemente a Deífobo, a quien tildaba con cierta ironía de
“sabio” por la elocuencia de que había hecho gala en el debate, que sus palabras no se correspondieran con sus actos.
En efecto, Deífobo no podrá demostrar su superioridad sobre el pastor cuando compitan en las pruebas atléticas de los
juegos.
16
Cf. frr. 22 (= 18 Snell) y 28. 6 (= 43. 41 Snell).
17
Sobre este tipo de aretê competitiva en el mundo griego, incluso de época clásica, cf. Ober 1989: 250-251.
en efecto, se siente «dolido en su fuero interno» por considerar que «un esclavo ha
privado a hombres libres del premio merecido»18: la tensión que genera la desigual-
dad establecida en la diferencia se hace, en este caso, extrema y exige una drástica
reparación que restituya el orden originario19.
Toda competición por la excelencia despierta este tipo de tensión, donde el éxi-
to se hace garantía de superioridad y la derrota de sometimiento. Que esta tensión
comunitaria no derive en revuelta depende del acatamiento del resultado por parte
de los vencidos, que quedan reducidos a una situación de inferioridad respecto al
vencedor. En el ámbito de la competitividad, la victoria es la prueba del valor, y
cuanto mayor es el éxito, tanto mayor es la aretê demostrada. En el ámbito de la
comunidad participativa, la superioridad conferida por el éxito deviene poder y
otorga al vencedor una condición libérrima respecto a los vencidos. Coronado con
la victoria, Alejandro, tras haber dado muestras de comportarse como un hombre
libre entre libres, se hace de pronto con un kratos20 que designa su dominio, pero
con connotaciones de ilegitimidad que lo asimilan al tirano21.
La reacción de Deífobo es consecuencia de este gradiente de anomías que ha
provocado la participación de Alejandro en los juegos22. Tiene por finalidad la res-
titución del orden político y social de la ciudad, que ha sido puesto en jaque, así
como la consideración moral de los que han sido públicamente deshonrados23. La
anagnorisis evita que el medio de esta reparación sea la muerte, pero cumple el
mismo efecto: al reconocer la naturaleza noble del supuesto pastor, la competición
reduce la diferencia mediante la igualdad de los participantes y la victoria se acepta
en términos no cualitativos.
El reconocimiento de Alejandro como hijo de Príamo y Hécuba, ¿viene, enton-
ces, a refutar las palabras del pastor sobre el verdadero valor, nobleza y educación?
18
Si aceptamos los suplementos de Wilamowitz. Así, dice Deífobo: ] [/
] [ (fr. 25. 9-10 = Nauck 2). Cf., también, los fragmentos 28. 1-2 (=43. 36-37
Snell) y 29. 3 (= 43. 73 Snell).
19
Recordemos que Deífobo había señalado en el fragmento *12 (= 976 Nauck 2) los peligros de indisciplina y orden
que entrañaban los esclavos, un rasgo típico de la diferencia con el hombre libre, es decir, con el ciudadano. Cf. Ober
1989: 270.
20
[ / , asume Héctor en su conversación con Deífobo en el fr. 26. 14-15 (= 43. 98-99 Snell).
21
Cf. Adkins 1972: 67-69, para quien “the more success, the more arete; and the person who has the most arete of
all, in a city that contains one, is the tyrant. (...) The tyrant has become the most agathos and the most eleutheros, for
eleutheria is manifested in ruling over others and in not submitting to the rule of others oneself. (...) The tyrants seem
frequently to have risen to power by championing the cause of the kakoi”. Después de haber defendido una nobleza no
exclusivamente de cuna sino fruto, sobre todo, de una sobria educación en la pobreza, la imagen del vencedor, oriundo
del campo, asimilado a los kakoi e introducido en la fortaleza por los vítores de la ciudad, hace especialmente plausible
esta similitud. También en el régimen de gobierno democrático, kratos está unido a nikê, aunque esta relación trate de
neutralizarse a través de la persuasión. Cf. Loraux 1997: 19.
Recuérdense las palabras del propio Deífobo en el debate anterior a los juegos, fr. 9 (= 51 Nauck 2): /
22
24
Así, Buxton 2002: 184, para quien “Through the medium of tragic myth, Athenian society was able to test the we-
aknesses in its own structures in such a way that, however terrifying the consequences within the dramatic frame, the
society which held that frame could continue to function”. Cf., también, Wohl 1998: xxiii-xxiv, xxvi y 186, nota 19,
donde concluye: “tragedy ultimately limits the openness of the questions it asks”. Más radical, aun admitiendo ciertas
críticas sensibles, es Citti 1978: 269-270, para quien la tragedia es un instrumento al servicio de la ideología del estado
y, por consiguiente, de la clase dominante, tanto en los fueros de la propiedad como de la política.
Se ha discutido sobre la influencia en el Alejandro de Eurípides del pensamiento de Antifonte y otros sofistas acerca
25
de la igualdad entre libres y esclavos, pero, como concluyera Citti 1978: 206, “è estremamente significativo il fatto che
Euripide faccia enunciare sulla scena i principi di Antifonte, perché i fatti diano loro la più clamorosa smentita”. Cf.,
también, Scodel 1980: 88-89.
26
Cf. Ober 1989: 251, quien, precisamente, señala: “The growth of democracy in the fifth century resulted in major
changes in the political role aristocrats were able to play in Athens (...) but some of the key concepts underpinning the
ideology of aristocracy –the belief in the inheritability of attributes, the association of inborn attributes with a distinc-
tive pattern of behavior, and the conviction that some individuals deserved special privileges as their birthright– were
extremely tenacious and survived into the fourth century and beyond. Consequently, there remained much that was
identifiably “aristocratic” in the political ideology of democratic Athens”. Sobre el “assorbimento culturale” de estos
principios en la tragedia, en general, y en Eurípides, en particular, vid., también, Citti 1978: 20-21 y 205.
27
Como observara Scodel 1980: 89, “The argument of Paris is still valid, for his defeat of his brothers proves that his
early life has influenced him for better”.
28
Hypothesis, ll. 27-28 y fr. *32 (= 935 Nauck 2), *33 (= 968 Nauck 2), **34 (= 414 adesp. Nauck 2) y, también, fr. *40 (=
1082 Nauck 2), ya sea pronunciado por Afrodita o por Casandra.
29
Sobre la imagen de Alejandro como quintaesencia de , cf. Scodel 1980: 90.
Texto 1: Hypothesis
± 11
5 ± 9
± 10
10
± 9
15
. 1-2
20
25
30
tregó la criatura [a un pastor] para que fuera expuesta. [Pero un boyero lo encontró
y] lo crió como a un hijo, dándole por nombre Alejandro {Paris}. Hécuba, por su
parte, deplorando aquel día y, al mismo tiempo, considerándolo merecedor de una
compensación honorable, lloró, por un lado, al expósito y, por otro, convenció a
Príamo para que instituyera en su honor unos [muy espléndidos] juegos. Transcurri-
dos veinte años, el joven parecía de un natural [superior] al del boyero [que lo había
criado]. Los otros pastores, dado su soberbio trato, lo ataron y lo llevaron a presencia
de Príamo. Cuando fue interrogado ante el rey, [se defendió con facilidad], venció a
cada uno de sus injustos acusadores y se le permitió tomar parte en los juegos que se
estaban celebrando en su honor. En la carrera, en el pentatlón y en el pugilato [ven-
ció, por lo que] enfureció a Deífobo [y los suyos], quienes, al ver que habían sido
vencidos por un esclavo, juzgaron conveniente que Hécuba le diera muerte. Una
vez se hubo presentado Alejandro, Casandra, enloquecida, lo reconoció y se puso
a profetizar los acontecimientos venideros, y a Hécuba, cuando se disponía a darle
muerte, la detuvieron. Como hubiera comparecido el que lo crió, se vio forzado a
decir la verdad debido al peligro. Así pues, Hécuba reencontró a su hijo
<DEÍFOBO> Indisciplinados en el trato son los hijos de los esclavos.
<ALEJANDRO> Con vistas a la valentía, una mala decisión es para los hom-
bres la riqueza y los refinamientos en exceso; la pobreza, en cambio, es lamentable,
pero, con todo, nutre a hijos más esforzados y activos.
Bibliografía
Buxton 2002 = R. Buxton, “Time, space and ideology: tragic myths and the
Athenian polis”, en J. A. López Férez (ed.), Mitos en la literatura griega arcaica y
clásica. Madrid, 2002, 175-189.
Ober 1989 = J. Ober, Mass and Elite in Democratic Athens. Rhetoric, Ideology,
and the Power of the People. Princeton, 1989.
Vítor Ruas
U. Açores
vrua@notes.uac.pt
voz silenciosa das mulheres gregas tornou-se pública em raros momentos da história
literária grega.8 Safo constitui um exemplo significativo da emergência de uma voz
feminina no contexto da lírica arcaica.
Na tragédia grega, a representação de papéis femininos proeminentes obedece a
um esquema complexo de referencialidade. Os discursos das heroínas mais proemi-
nentes são reveladores de uma mestria assinalável na arte elocutória própria dos ho-
mens de Estado. E estas heroínas fazem uso dessa mestria para desafiar e subverter o
poder instituído. Se atendermos ao facto de que a mulher ateniense não possuía um
poder público decisório, facilmente se perceberá que estas figuras femininas postas
em cena pelos poetas trágicos funcionam, pela sua heroicidade e espírito corajoso,
como veículos de alteridade. Através destas figuras, são aprofundados certos temas
dificilmente aceites por grande parte dos cidadãos atenienses num outro contexto
mais realístico, que não o da representação dramática9. Na tragédia grega, estas
heroínas transportam assim para cena, de forma camuflada, pensamentos inconfes-
sáveis, verdades difíceis de partilhar, que faziam parte do leque das preocupações
mais prementes de que se ocupavam os espíritos masculinos intelectualizados. As
questões por que estas heroínas mais se debatem revelam, por sua vez, um conflito
latente entre os deveres de família e os deveres de Estado.
Com efeito, a representação dramática criava um ambiente de liberdade extra-
ordinária para a problematização de inquietações latentes10. Dado o carácter nacio-
nal de que se revestiam as representações trágicas, pois a verdade é que faziam parte
de um conjunto de actividades promovidas pelo Estado, as preocupações levadas a
cena pela mão dos tragediógrafos eram assim transmitidas a um vasto público, que
certamente se aperceberia da estratégia retórica a que a representação dessas heroí-
nas obedecia. Estas preocupações eram, aliás, um tema recorrente na cena política
dominada pela longa crise da democracia ateniense, que perdurou até ao momento
em que Atenas ficou submetida ao poder de Filipe da Macedónia.
Nas histórias que colocaram em cena, os tragediógrafos gregos fizeram ouvir a
8
Vide Lightman, M. & Lightman, B., Biographical Dictionary of Ancient Greek and Roman Women: Notable Women
from Sappho to Helena, New York, 2000.
9
Segundo Froma Zeitlin, as heroínas trágicas surgem “as antimodels as well as hidden models for the masculine self ”
(in “Playing the other: theatre, theatricality and the feminine in Greek drama”, in Winkler, J. & Zeitlin, F. (eds.),
Nothing to Do with Dionysos? Athenian Drama in Its Social Context, 69). Sobre este mesmo assunto, escreve Judith Moss-
man: “I believe that the Greek tragedians did try to make their female characters sound, not like real women, but at least
like tragic women, as opposed to tragic men; that they did this because individuality is vital for tragedy and for Greeks
gender would have been a vital part of a character’s individuality; that they used a wide range of methods which inclu-
ded the adaptation of tragic language and rhetoric; and that the effect on their plays varied, because characterization can
be put to so many different purposes, but usually, in one way or another, made them considerably more complex and
challenging. I do not think that the fact that the plays were written by men, and acted by men for an audience composed
(largely or wholly) of men necessarily invalidates any of these answers” (in “Women’s Speech in Greek Tragedy: The
Case of Electra and Clytemnestra in Euripides’ Electra”, Classical Quarterly 51.2 (2001): 375).
10
A este respeito, esclarece Mark Griffith: “Athenian tragedy provides an extraordinarily richly textured, and often
contradictory, babble of rival voices, as the various characters are embodied, masked, and endowed with speech by their
authors and actors. Dramatic impersonation is a form of contestation and pretension, of laying claim to and trying out
voices and roles that are not normally our own” (in “Antigone and Her Sister(s): Embodying Women in Greek Tragedy”,
in Lardinois, A. & McClure, L. (eds.), Making Silence Speak. Women’s Voices in Greek Literature and Society, 135).
11
Para explicitar este aspecto caracterizador da tragédia grega, refere Mark Griffith o seguinte: “Training in use of
the body (with or without the voice) in performance of this or that social role, whether in play or in ritual (or even in
athletics and war), was second nature to most Greeks.” (ibidem, 119).
12
Sobre este assunto, cf. McClure, L., “The City of Words: Speech in the Athenian Polis”, Spoken Like a Woman.
Speech and Gender in Athenian Drama, 15-19; Mossman, J., op. cit., 375.
13
Vide, sobre estas questões, Goldhill, S., “The language of tragedy: rhetoric and communication”, in Easterling, P.
E. (ed.), The Cambridge Companion to Greek Tragedy, 127-150.
Clitemnestra
Na primeira peça da Oresteia de Ésquilo,14 em Agamémnon, podemos obser-
var na figura de Clitemnestra um exemplo do papel paradoxal e ambíguo que as
personagens femininas proeminentes assumem na tragédia grega. A forma como
esta heroína combina o discurso próprio dos homens de Estado com o discurso
geralmente associado às mulheres constitui o principal aspecto desta contradição. E
a ambiguidade da sua linguagem é representativa dos perigos que a arte elocutória
apresenta num momento de consolidação da democracia ateniense.
Em Agamémnon, Clitemnestra apresenta-se como uma figura pública, uma mu-
lher de Estado, cuja autoridade política (kratos) lhe advém do facto de o seu marido
se encontrar ausente, há dez anos, na guerra de Tróia, na qualidade de comandante
das tropas aqueias. Este estatuto confere-lhe uma “máscula vontade” (v. 11)15, como
assinala o vigia que, no tecto da sua casa, aguarda o sinal do facho anunciador da
queda de Tróia. O mesmo estatuto atribui a Clitemnestra a qualidade de porta-voz
da sua casa; e permite-lhe regular os meios de comunicação com o exterior, como se
pode verificar no conhecimento que a heroína exibe acerca da sequência geográfica
percorrida pelo fogo mensageiro (vv. 281-316)16.
Na ausência do marido, Clitemnestra associa-se politicamente a Egisto, acaban-
do por tornar-se sua amante. A ligação de Clitemnestra a Egisto é entendida como
a reunião de esforços para a consecução de um objectivo comum – fazer valer uma
dupla vingança que tem como alvo a mesma vítima, Agamémnon. Desta forma, o
poder de Clitemnestra surge apoiado por um homem que, na retaguarda, a auxilia
na função de comando da sua casa. A partilha do poder entre os dois aparece bem
clara nos últimos versos de Agamémnon, quando Clitemnestra intervém para pôr
fim à animosidade verbal travada entre Egisto e o Corifeu: “Deixa ladrar à vonta-
de: somos os senhores desta casa, connosco vai entrar tudo na ordem” (vv. 1672-
1673)17.
A expectativa de que algo vai mal na casa real surge, logo no início da peça, pela
boca do vigia, quando, já na posse da notícia do regresso do seu senhor, se decide a
dar a boa nova, rematando a sua fala nestes termos: “O resto calo: um grande boi
pesa sobre a minha língua. A própria casa, se tomasse voz, exprimir-se-ia muito cla-
ramente. Pela minha parte, falo de boa vontade com os que sabem; com os que não
sabem esqueço tudo.” (vv. 35-39)18. Estas palavras do vigia denunciam, de forma ve-
Cf., em tradução portuguesa, Ésquilo, Oresteia: Agamémnon, Coéforas, Euménides (tradução de Manuel de Oliveira
14
lada, a ligação amorosa que Clitemnestra mantém com Egisto, além contribuírem
para a conjugação de indícios de uma cilada iminente. Nesta atitude, Clitemnestra
contrasta, de modo significativo, com Penélope. A heroína de Ítaca aguardou pelo
regresso de Ulisses, defendendo-se, com estratagemas ardilosos, dos pretendentes
que com ela queriam partilhar o poder da sua casa. A obsessão de que Penélope teria
de escolher um de entre os pretendentes demonstra claramente que o poder só pode
ser usufruído por mulheres temporariamente. Assim, na consecução do seu acto
criminoso, Clitemnestra não age isoladamente. O apoio masculino garante que a
sua acção seja bem sucedida. Em face desta situação, o espectador ateniense teria
concluído que uma tal atrocidade infligida a Agamémnon apenas se tornou possível
graças à ajuda da acção masculina, sem a qual Clitemnestra não teria conseguido
realizar os seus intentos. E convém aqui lembrar que a própria Medeia cometeu os
seus crimes (matou Glauce e Creonte, bem como os filhos que tivera de Jasão) com
a ajuda dos seus dotes de feiticeira e com a garantia dada por Egeu de a acolher em
Atenas, se ela lhe desse descendentes.
Nos diálogos que entabula com o coro e com o seu próprio marido, Clitem-
nestra mostra-se deferente e cortês, fazendo eco das virtudes femininas que nela
seriam de esperar. Ao mesmo tempo, Clitemnestra mostra-se também persuasiva e
detentora de uma capacidade argumentativa que se poderia dizer ser fruto de uma
qualidade inata adestrada pelo exercício oratório, como convinha ser apanágio de
um homem de Estado da Atenas democrática. E, unindo sedução a persuasão, esta
heroína atinge o ponto mais elevado das suas potencialidades argumentativas no
momento em que convence o seu marido a pisar o tapete de púrpura (v. 910), fazen-
do-o incorrer num acto sacrílego, ao ser recebido em sua casa como um deus. Nas
falas que profere antes de cometer o seu crime, Clitemnestra mostra grande facili-
dade de dissimulação, sobretudo nos momentos em que as suas palavras veiculam
um certo encanto mágico19. Neste aspecto, a heroína encarna o tópos da persuasão
feminina que, de um modo geral, a tradição literária associa às mulheres20.
Por outro lado, a linguagem de Clitemnestra é polissémica. Nela abundam me-
táforas e ambiguidades, que têm como finalidade ludibriar os seus interlocutores
masculinos. Aliás, a característica mais digna de realce na actuação de Clitemnestra
consiste precisamente na habilidade que esta figura evidencia em combinar dois
tipos de registos elocutórios, um habitualmente associado ao género masculino,
outro ao género feminino. A respeito da dupla natureza do discurso feminino, A.
Bergren salienta que as mulheres gregas são capazes de produzir dois modos elocu-
O passo mais representativo deste encanto mágico compreende os versos 958-974. Para uma exposição pormenorizada
19
sobre esta faculdade de Clitemnestra, vide McClure, L., “Logos Gunaikos: Speech and Gender in Aeschylus’Oresteia”,
Spoken Like a Woman. Speech and Gender in Athenian Drama, 80-92; e Foley, H., “Tragic Wives: Clytemnestras”,
Female Acts in Greek Tragedy, 207-211.
20
Sobre este assunto, vide McClure, L., “Gender and verbal Genres in Ancient Greece”, Spoken Like a Woman. Speech
and Gender in Athenian Drama, 32-69; acerca da persuasão sedutora, vide, sobretudo, 62-68.
21
Cf. “Language and the Female in Early Greek Thought”, Arethusa 16 (1983): 70.
22
Sobre esta questão, vide Winkler, J. J., “Double Consciousness in Sappho’s Lyrics”, The Constraints of Desire. The
Anthropology of Sex and Gender in Ancient Greece, New York – London, 1990, 174-175. A seguinte passagem é esclarece-
dora: “Women in a male-prominent society are thus like a linguistic minority in a culture whose public actions are all
conducted in the majority language. To participate even passively in the public arena the minority must be bilingual;
the majority feels no such need to learn the minority’s language” (ibidem).
Antígona
Em Antígona de Sófocles,25 a heroína que dá o nome a esta tragédia viola os
estereótipos convencionais da obediência e submissão femininas. O confronto que
Antígona estabelece com o poder instituído vota-a ao isolamento no seio da sua co-
munidade e tem como derradeiro fim a sua própria morte. A coragem e determina-
ção de Antígona não se conjugam com o seu estatuto de parthénos, uma jovem sob
a alçada, para todos os efeitos, de um ser masculino. Esta figura trágica demonstra
igualmente uma conduta que a tipifica como agente de ordem moral. A obstinação
e poder decisório de Antígona são visíveis sobretudo ao nível do registo linguístico.
O seu discurso contrasta, de forma significativa, não só com o discurso de outras
figuras femininas colocadas em cena, mas também, e de modo ainda mais expres-
sivo, com o discurso de uma individualidade masculina que personaliza o exercício
do poder, Creonte26.
Antígona coloca as leis eternas e imutáveis dos deuses acima das determinações
humanas. Age de acordo com a sua consciência ética, não se subordinando às leis
que considera injustas ditadas pelos humanos. Prefere, assim, abandonar a vida,
quando tinha pela frente a força da sua juventude e a perspectiva do amor corres-
pondido, pois estava noiva de Hémon, o filho do rei. O isolamento a que se vota
Antígona é típico do herói sofocliano27. Ela mantém-se resoluta e fiel a um dever,
ainda que, por esse dever, tenha de pagar com o preço da vida. Aos olhos do espec-
23
Esta é a posição de Laura McClure: “The trilogy thus demonstrates not only that women’s speech must be regulated
by the polis and kept out of the public sphere, but also that persuasion, if it is to benefit the democratic city, must be stri-
pped of deceptive, feminine guile, since this duplicitous speech potentially subverts normative social categories, catego-
ries that the masculine speech of the law court, and tragic drama, seek to produce and maintain.” (in “Logos Gunaikos:
Speech and Gender in Aeschylus’Oresteia”, Spoken Like a Woman. Speech and Gender in Athenian Drama, 72).
24
Cf. Plutarco, Péricles, 16.
Cf., em tradução portuguesa, Sófocles, Antígona (introdução, versão do grego e notas de Maria Helena da Rocha
25
Pereira), Coimbra, 19872. Será esta tradução que, neste estudo, servirá para as transcrições feitas ao texto sofocliano.
26
Em relação ao registo linguístico de Antígona, refere Mark Griffith: “Her voice is unusually individual and insis-
tent, and it carries with it associations that are both manly and feminine, dutiful and transgressive, enlightened and
narrow, typical and unique.” (in “Antigone and Her Sister(s): Embodying Women in Greek Tragedy”, in Lardinois, A.
& McClure, L. (eds.), Making Silence Speak. Women’s Voices in Greek Literature and Society, 130).
Sobre o isolamento do herói sofocliano, vide Romilly, J., “Sófocles, ou a Tragédia do Herói Solitário”, A Tragédia
27
Grega, Lisboa, 1999, 73-100; e, ainda, Pulquério, M. O., Problemática da Tragédia Sofocliana, Coimbra, 1968 e
Fialho, M. C., “Sobre o Trágico em Antígona de Sófocles”, in Jabouille, V. et alii, Estudos sobre Antígona, Mem
Martins, 2000, 29-50.
tador ateniense, era, desta forma, colocada em cena a oposição entre o individual e
o social, aparecendo, por conseguinte, a pólis como mediadora entre o indivíduo e
o mundo.
A defesa que Antígona apresenta para o seu acto de insubmissão ocorre em três
momentos cruciais da peça: no diálogo que Antígona entabula com a sua irmã, Is-
mena; na cena em que a heroína se justifica perante a autoridade política de Tebas,
encarnada na pessoa de Creonte; e no momento em que, perante o coro, e estando
ela prestes a ser levada para o seu túmulo abobadado, o seu pensamento é assaltado
por inúmeras interrogações.
A peça abre com um diálogo travado entre as duas irmãs, Antígona e Ismena,
através do qual o espectador fica imediatamente a par do argumento central da
peça. Neste diálogo, as duas irmãs defendem posições antagónicas: Antígona mos-
tra-se resoluta a desafiar a autoridade política, manifestando vontade de conceder
honras fúnebres ao seu irmão, Polinices; Ismena, por seu turno, tenta dissuadi-la
desse intento. Assim, Antígona surge como a virgem (parthénos) rebelde que ousa
obstinadamente confrontar o poder instituído, invocando, para justificar a sua ati-
tude, um dever a que se sente obrigada, não só para com os deuses, mas também
para com a sua progénie, ao passo que Ismena ilustra a virgem recatada e submissa
às directrizes do poder instituído, que ela considera ser pertença dos homens28. São
estes os argumentos de Ismena: “E agora, que só restamos nós as duas, vê lá de que
maneira ainda pior acabaremos, se, contra a lei, vamos transgredir o édito dos so-
beranos ou o seu poder. Pelo contrário, é preciso lembrarmo-nos de que nascemos
para ser mulheres, e não para combater com os homens; e, em seguida, que somos
governadas pelos mais poderosos, de modo que nos submetemos a isso, e a coisas
ainda mais dolorosas. Por isso eu rogo aos que estão debaixo da terra que tenham
mercê, visto que sou constrangida, e obedeço aos que caminham na senda do po-
der. Actuar em vão é coisa que não faz sentido.” (vv. 58-68)29.
Estas palavras de Ismena são reveladoras da sua posição comedida e ponderada
face à delicada situação com que é confrontada, sendo os argumentos que invoca
completamente consentâneos com o seu estatuto de parthénos, uma virgem sob a
alçada do seu tio, Creonte. A submissão de Ismena ao poder masculino deriva, não
só do facto de ser uma mulher, como também do facto de não possuir protecção
paterna, nem fraterna, uma vez que o seu pai e os seus irmãos se encontram mortos.
Neste sentido, Ismena aceita o seu destino com resignação; e, através de um com-
portamento submisso ao seu tutor, procura desligar‑se dos males da sua progénie e
abrir caminho para um futuro mais feliz.
Em face dos argumentos da irmã, Antígona mostra-se concentrada num só e
28
A colisão entre Antígona e Ismena leva Mark Griffith a concluir que, neste episódio, estamos perante “a single-
minded Antigone” uersus “a conventional-minded Ismene” (in “Antigone and Her Sister(s): Embodying Women in
Greek Tragedy”, in Lardinois, A. & McClure, L. (eds.), Making Silence Speak. Women’s Voices in Greek Literature
and Society, 127).
29
Cf. op. cit., 41.
único objectivo: honrar os deuses e a sua família, dando honras fúnebres a Polini-
ces. À medida que Ismena tenta dissuadi-la de desafiar o poder de Creonte, Antígo-
na não se preocupa em contrariar os argumentos da irmã. O que para ela é mais
importante é saber se pode contar com a sua ajuda. E, a partir do momento em que
verifica que terá de agir sozinha, rejeita por completo Ismena, abandonando-a ao
seu destino (vv. 69-70; 536-560). Ao proceder deste modo, Antígona demonstra que
lhe é impossível cortar os laços que a ligam à sua família, pois, segundo afirma, o
seu acto será exemplificativo da sua nobreza (vv. 37-38); e, não o realizar, será visto
como uma traição (v. 46). O seu acto é entendido como um crime sagrado (v. 74)
que conduzirá a uma morte nobre (v. 72; 96-97). No entender de Helene Foley,
a desobediência de Antígona demonstra que ela permanece phílē (amada) do seu
phílos (amado) Polinices.30
Como podemos verificar, Ismena encontra-se integrada na sua comunidade,
apesar da posição extremamente fragilizada que ocupa no seio da casa real de Tebas.
De forma inversa, Antígona exclui-se autonomamente da sua comunidade, manten-
do um elo de ligação biológico e psicológico à sua família. E, em defesa desse elo,
nada a detém, nem mesmo a própria morte.31
O contraste entre estas duas figuras femininas verifica-se igualmente ao nível
do registo linguístico. No diálogo travado entre as duas irmãs, abundam os termos
de afecto; faz-se uso do dual; e também são frequentes os pronomes possessivos.
Estas marcas linguísticas caracterizam o ambiente privado e o contexto familiar em
que a cena se desenrola.32 Contudo, cada uma destas duas personagens apresenta
uma rhēsis personalizada. No discurso de Ismena, abundam termos abstractos; e,
por isso mesmo, o seu discurso é feito de generalizações que deixam transparecer
a sua submissão aos poderosos e a sua obediência às leis vigentes. Esta observação
torna-se ainda mais visível particularmente na sua fala mais extensa (vv. 49-68), que
está repleta de construções sintácticas complexas, onde as modalizações potencial e
condicional adquirem um lugar de relevo.
Por oposição, o discurso de Antígona é marcado essencialmente por termos con-
cretos, que reflectem, de forma bastante nítida, a sua obstinação e poder decisório.
O vocabulário simples e incisivo, o emprego de frases pequenas e pouco complexas
e ainda as repetições insistentes contribuem, globalmente, para a identificação do
discurso de Antígona como sóbrio, mas consistente. Trata-se, de facto, de um regis-
to discursivo sólido, denunciador da firmeza e segurança desta figura trágica. Além
disso, é um discurso dotado de um elevado grau de efeito persuasivo, que tem como
30
Cf. “Sacrificial Virgins: Antigone as Moral Agent”, Female Acts in Greek Tragedy, 174.
31
Para comprovar o antagonismo entre as duas irmãs, Mark Griffith decifra os nomes destas duas figuras femini-
nas: Ismena significa ‘nativa de Tebas’, estando este nome relacionado com o ‘Hismeneus’, o rio tebano; por seu lado,
Antígona significa ‘de volta para nascer’, um nome que liga a heroína à sua progénie (cf. “Antigone and Her Sister(s):
Embodying Women in Greek Tragedy”, in Lardinois, A. & McClure, L. (eds.), Making Silence Speak. Women’s Voices
in Greek Literature and Society, 132, n. 40).
32
Sobre o contexto familiar deste episódio, refere Helene Foley que as duas irmãs se encontram, inicialmente, em
“close philia” (in “Sacrificial Virgins: Antigone as Moral Agent”, Female Acts in Greek Tragedy, 174).
Greek Literature, Oxford, 1990, 18-19; Palmer, R. H., “The Circle of Inquiry”, Tragedy and Tragic Theory. An Analyti-
Por conseguinte, os três grandes tragediógrafos que a tradição nos legou – És-
quilo, Sófocles e Eurípides – partilham a mesma estratégia, declaradamente retó-
rica, no que diz respeito ao modelo de representação das figuras femininas mais
proeminentes. É perfeitamente notória a atenção que estes poetas gregos colocam
na encenação de papéis femininos poderosos e subtis, para a exploração de verda-
des psicológicas profundas que eles procuram ver desveladas perante o público que
assistia às representações dramáticas, maioritariamente constituído por homens, se
não mesmo exclusivamente42. O recurso a figuras femininas, e não masculinas, com
uma forte personalidade e dotadas de atributos e competências originariamente
conferidos aos homens, permite a configuração de uma realidade conceptual, apa-
rentemente em pouco ou nada conforme à realidade vivencial da Atenas do século
V a. C. Desta forma, fica assegurada a aceitação por parte do público dessa mesma
realidade posta em cena, estimulando a sua curiosidade de ver tratados problemas
individuais ou políticos de grande gravidade, situados no contexto de um passado
remoto, que é o da história mitológica grega.
A escolha de figuras femininas extraídas do passado mitológico torna-se um
forte atractivo, constituindo um verdadeiro mecanismo de captatio beneuolentiae,
visto que essas figuras transportam consigo uma carga pesada de conhecimentos
que as tornam figuras exemplares e, por conseguinte, dignas de ser ouvidas. Ora, é
por esta razão que se pode, desde logo, antever que se tornam inevitáveis as implica-
ções sociais e políticas para a audiência masculina e detentora do poder, que, desta
forma, é chamada a reflectir sobre tensões e conflitos que estavam na ordem do dia
entre os espíritos intelectuais.
cal Guide, Westport, Connecticut – London, 1992, 105-131; e Sifakis, G. M., “The Function of Poetry”, Aristotle on
the Function of Tragic Poetry, Heracleion, 2001, 23-30. Segundo G. M. Sifakis, a poesia consiste na representação da
verdade sob a forma de generalizações, verdade essa que está relacionada com as crenças colectivas e ideologia de uma
sociedade histórica específica; assim, a tragédia grega, uma vez que está ligada ao nascimento da democracia ateniense,
apresenta um avanço significativo, menos convencional e mais empírico, da forma de perspectivar a vida humana (p.
30). Cf., ainda, Palmer, R. H., “Introduction: the Problem of Understanding Tragedy”, Tragedy and Tragic Theory. An
Analytical Guide, Westport – London, 1992, 1-14; Hall, E., “The sociology of Athenian tragedy”, in Easterling, P. E.
(ed.), The Cambridge Companion to Greek Tragedy, 93-126; e Serra, J. P., Pensar o trágico. Categorias da tragédia grega
(tese de dout.), Lisboa, 1998.
42
Para alguns comentadores, esta questão parece não estar completamente esclarecida. Vide, sobre o assunto, Podle-
cki, A., “Could Women Attend the Theater in Ancient Athens?”, The Ancient World 21 (1990): 27-43; Henderson,
J. W., “Women and the Athenian Dramatic Festivals”, Transactions of the American Philological Association 121 (1991):
133-147; Goldhill, S., “Representing Democracy: Women at the Great Dionysia”, in Osborne, R. & Hornblower,
S. (eds.), Ritual, Finance, Politics: Athenian Democratic Accounts Presented to David Lewis, Oxford, 1994, 347-369. He-
lene Foley, por seu lado, considera que um número limitado de mulheres, provavelmente mais velhas e não-cidadãs,
assistia às representações dramáticas, bem como alguns metecos, estrangeiros e escravos (cf. “Introduction”, Female Acts
in Greek Tragedy, 3, n. 1).
Introducción
No hace más de treinta años, se creía todavía que el castigo de Adán y Eva por
su pecado en el Paraíso había consistido en tener que trabajar con el sudor de nues-
tra frente. Hoy han cambiado tanto las cosas, que casi se podía decir: “¡dichoso pe-
cado!” (la misma paradoja que se dice, en otro sentido, ya que gracias a aquel pecado
vino Jesús a salvarnos). ¡Cuánto ha cambiado hoy nuestra valoración del trabajo!
El trabajo que nosotros sentíamos como algo penoso, en estos tiempos de la
posmodernidad se siente como un paraíso perdido: aquel trabajo nos daba indepen-
dencia, un status, una condición especial, una justificación moral, una legitimación
cívica que constituía una fuente de derechos, de seguridad social, de defensa contra
arbitrariedades, de capacidad de negociación, de solidaridad; le daba un sentido cu-
rricular a una vida seriamente concebida, nos anclaba en las instituciones: el matri-
monio, el consumo, la adquisición de una vivienda: el trabajo nos daba derechos.
Hoy lo que se reclama es sencillamente el derecho al trabajo, un trabajo es-
table como el de antes. El trabajo de hoy día, cuando se consigue (los índices de
paro son en mi país muy altos) es temporal, precario, irregular, deslocalizado,
sumergido=ilegal (falsas becas, falsos contratos en prácticas), muchas veces es servil
(servicio doméstico, repartidores, camareros, chóferes, ancianos, etc.), cambiante,
subcontratado... Así que un buen estudiante deja los estudios; le preguntamos -¿por
qué? –es que me ha salido un trabajo; he entrado en el ejército... y se ve lógico.
Lo digo para mostrar lo relativas que son nuestras valoraciones del trabajo,
según la época, y según la clase social. Porque, claro, que conste que también hoy
día hay buenos trabajos, más que buenos, excelentes, los contratos blindados, de
futbolistas, de minorías.
Pues ¿cómo fue en la antigüedad clásica? ¿En Roma?
Una foto fija nos dice que hay 3 tipos de trabajo, según la clase social, y tres
actitudes distintas:
- Está el trabajo manual, onus, labor, considerado como algo penoso: va acom-
pañado de aerumna et sudore. Este trabajo se impone como pena o condena: (con)
demnare ad metalla, ad opera publica. El trabajo manual es considerado como algo
servil, frente a la liberación relativa propia de los trabajos liberales y los solaces crea-
tivos del arte o la artesanía, que producen opera, manufacta.
- Pero el trabajo de las clases medias es otra cosa: negotium gerere, lo que “hace
que no nos oxidemos, lo que nos quita el moho” (según Catón), la gestión de nues-
tros asuntos, sobre todo si es sobre bienes muebles y comercio, está también llena
de cura = epimeleia, y está más o menos considerado según la época y según la
clase social a la que se pertenezca. Para un caballero, que vive y medra gracias a sus
negocios, la industria como diligencia, eficiencia y eficacia en la gestión es su mejor
virtud.
en Calvi, era orador, y llegó a cónsul el 30 y en el 45 dne. Se casó incluso con Julia Livilla, hija de Germánico (Tac. Ann.
6.15), lo que lo introdujo en la familia imperial; a pesar de que los Vinicios eran también advenedizos en Roma.
berio a partir de la muerte de Augusto; los últimos 16 años de Tiberio (años 14-30
dne, caps. 2.124-131 simplemente) tan sólo enumeran el nuevo sistema de valores
mientras se enumeran de forma sumaria los hechos. Cosa interesante de por sí (A.
DIHLE (1979). “La figure de Tibère chez Tacite et V.P.”, Mél. P. Wuilleumier, París,
B. Lettres, pp. 167-183)
Están excluidos de la HR los últimos años de Tiberio, el reino de terror tras la
conjura y caída de Sejano (31 p.C.) Ya que la HR fue concluida en el año 30. Son
años terribles (“Tiberio al Tíber”, Suet. Tib. 75.1) que dejaron a la posterioridad
una imagen de Tiberio como un monstruo, imagen que influye en los historiadores
posteriores: Tácito, Suetonio y Dion Casio.
B. Manuwaldt (“Herrscher und Historiker”) ha hecho ver cómo existen dos
Tiberios, uno anterior al 31 y otro posterior, apoyándose en Tac. Ann. 6.51: mo-
rum quoque tempora illi diversa. Tácito afirma también que en los tiempos en que
Tiberio estuvo bajo Augusto como privado o como general fue egregio: egregium
vita famaque quoad privatus vel in imperiis sub Augusto fuit. La bipartición de la vida
de Tiberio se puede ver también en Sen. Clem. 1.1.6; Suet. Cal. 6.2. Tib. 41-42.1;
Casio (57.7.1; 13.16; 19.1&8; 58.28.5).
Expresaba quizás Veleyo la vox publica? El propio Veleyo lo dice Id solum voce
publica dixisse satis habeo (2.124.2): “me conformaré tan sólo con eso, con expresar
la convicción general”, haciéndose así portavoz de la opinión pública de la época.
Vox publica no hay que confundirlo con la versión oficial, aunque todos sabemos la
influencia que el poder tiene sobre la “opinión pública”. Pero no es un propagandis-
ta: I. Lana ha escrito un libro: Velleio P. o della propaganda; como si Veleyo fuera un
autor al servicio del aparato de propaganda del Principado. Es dudoso que existiera
tal aparto de propaganda.
Veleyo ¿historiador falaz?: Incluso se ha ganado Veleyo la fama de ser un histo-
riador falaz. R. Syme, “The mendacity in Velleius”, A.J.Ph. XCIX, 1978, pp. 45-63.
Basándose en Syme, muchos críticos consideran globalmente su obra poco objetiva,
pero el caso es que constantemente lo usan como “una cantera de citas a pie de
página” (Ulrich Schmitzer). ¿Cómo puede mentir, si habla para sus coetáneos sobre
hechos contemporáneos?
Pienso que no hay que considerar a Veleyo ni como un admirador ciego del
Principado, ni como un historiador falaz, que mienta conscientemente sobre los
hechos. Lo más que puede hacer es organizar los hechos de forma retórica.
Veleyo es un admirador del Principado, no ingenuo, sino que elabora su mate-
rial retóricamente:
- También desordena los hechos. Así se alude a la muerte de Lucio y César in-
mediatamente antes del retorno de Tiberio a Roma (2.102.3), como si la llegada de
Tiberio hubiera compensado de su pérdida y con ello se cumpliera el plan sucesorio
de Augusto: Bernd Manuwald, “Herrscher und Historiker”, p. 22-25 ); siempre a
favor de la causa de Tiberio. Pero ¿con qué objetivo?
- El haber sabido ver el pasado con una nueva mirada desde el hito que represen-
tó la apelación de Augusto en el año 31 a tota Italia antes de la Batalla de Accio.
- Y por otro lado, hacer ver la tradición en la Historia de Roma de la política de
Tiberio, quien supo atraer a las clases medias e itálicas a la administración.
de Italia, a partir del llamamiento que hizo a tota Italia antes de la B. de Accio
(-31), convocando a los municipios itálicos como nación, para conjurar el peligro de
secesión del Oriente por parte de Antonio : iuravit in ver(ba) mea tota Italia sponte
sua et me bel(li) quo vici ad Actium ducem depoposcit, Aug. Res gestae 25: «Toda Ita-
lia, espontáneamente, juró fidelidad a mi persona, eligiéndome como general en la
Guerra que gané en Accio».
- Y en la nueva política de Tiberio de atracción de las clases medias e italianas.
Y sin embargo, no fue hasta Augusto cuando Italia tuvo una cierta unidad e
identidad. Lo que pasa es que «Augusto (Syme: 442) tuvo la inmensa suerte de
contar con un poeta épico que cantara a Italia, una persona cuyos versos y senti-
mientos se armonizaron tan fácilmente con sus propias ideas y su propia política.
En Virgilio, encontramos el llamamiento augústeo a Italia de forma espontánea y
maravillosa»
«Salve, tierra espléndida de mieses, tierra de Saturno, grande por tus grandes
hombres».
Italia queda unificada por Virgilio gracias a los mitos fundadores de la Eneida,
como rica en tierras, rica en hombres, capaz de conquistar el mundo y unificada
entorno a Roma y al César Octavio. Nada menos que eso es lo que le ofreció Vir-
gilio a Augusto:
Pero realmente Italia como nación no existía. No existía (según dice Gabba,1978 :
24) conciencia nacional itálica en la Antigüedad, sino simplemente un cierto lazo
moral.
«…the concept of the nation-state did not exist in Republican Italy…» (Sal-
mon: 157).
tica se continuará hasta Claudio, quien reconoce en la Tabla de Lyon (= Tac. Ann.
11.24) los antecedentes de esa política: “Es una medida nueva que adoptó mi abuelo
Augusto y que siguió mi tío Tiberio, el disponer que fueran senadores toda la flor de
las colonias y de los municipios, los más ricos y nobles de ellos”5.
En el caso de Tiberio parecía además que estuviera enojado con la aristocracia
romana, que se mostraba empeñada en el retorno de la República y que en todo
caso, apoyaba a la familia de Agripina y Germánico, que constituía la legítima
sucesión de Augusto y de la que credabaturque, si rerum potitus foret, libertatem
redditurus; unde Germanicum favor et spes eadem (Tac. Ann. 1.33).
Tiberio.
Ve en esa lucha épica, en el devenir histórico de Roma, el genio que la define:
su capacidad de integración de extranjeros y de las clases medias.
Biografía
Por eso no tiene que extrañar que el tipo de micro-texto más abundante en la
Historia de Roma sea la biografía de estos personajes (Sauppe). Es verdad que en cada
episodio de la Historia de Roma suele cambiar el personaje principal. Casi siempre
es un personaje el que constituye la unidad temática de cada capítulo; otras veces
abarca dos y más capítulos; pero son los personajes y no las épocas, ni los procesos,
ni sus causas, los que van dando el tema a los diversos capítulos.
Pero esto se debe matizar, al menos para las partes que se conservan íntegras.
Así los doce primeros caps. del libro II desarrollan una tendencia cultural incluso
motivada por la caída de Cartago, que no es precisamente considerada un gran
triunfo de Roma; hay diversos conspectus sobre la colonizaciones romanas, la li-
teratura, etc. Y en las últimas partes del libro II, un personaje (y su antagonista)
suele protagonizar su época: Mario/Sila; Pompeyo/César, Augusto/M.Antonio, o
Tiberio. Pero de todas formas, predomina la biografía, ciertamente.
Esta forma de construcción biográfica, permite que por su Historia desfilen y
sean estudiadas personalidades como L. Mummio, que es puesto en parangón nada
menos que con Escipión, el destructor de Cartago, de cuya familia (2.1.1) dice: po-
tentiae Romanorum prior Scipio viam aperuerat, luxuriae posterior aperuit... También
los Gracos (que gozan de una gran simpatía aun no siendo Veleyo precisamente
un revolucionario), Mario, Druso. Pasa también Cicerón, por el que siente Veleyo
una gran admiración, por haberse hecho a sí mismo: qui omnia incrementa sua sibi
debuit, vir novitatis nobilissimae. O Cornelio Balbo el gaditano (2.51.3), o Ventidio
Baso, también hispano, que vivió dos triunfos, uno como cautivo y otro como
triunfante (2.65.3), y que llegó de muletero a cónsul; Marco Agripa, el ministro,
amigo y yerno de Augusto era también virtutis nobilissimae, y por su valor se hizo
acreedor de la más alta nobleza, pero labore, vigilia, periculo invictus, parendique,
sed uni, scientissimus, aliis sane imperandi cupidus et per omnia extra dilationes positus
consultisque facta coniungens: “Por sus cualidades era acreedor de la más alta noble-
za, invencible en lo que toca a esfuerzo, diligencia y asunción de riesgos; sabiendo
obedecer, aunque tan solo a uno; que a los demás le gustaba tenerlos a su servicio.
Nunca hubo nada que le impidiera llevar a cabo sus propósitos, ni soportó su dila-
ción”.
C. Un Ethos Nuevo
No se conforma Veleyo con proyectar sus intereses, los de su status y los de los
itálicos en la HR, sino que hace ver el ethos nuevo que comporta la nueva situación,
constituyéndola a base de dos valores fundamentales, que adquieren un signifi-
cado distinto del tradicional y que se articulan de distinta forma que en la época
Carisma:
Tampoco descuida Veleyo el caracterizar a Tiberio como investido de excelsitud
carismática: tantaque unius viri maiestas (2.124.1): “la enorme majestad que carac-
terizaba a ese hombre”. Ya en el cap. 2.94.2 lo presenta con el porte de un príncipe:
Ti. Caesar... qui protinus quantus est sperari potuerat visuque praetulerat principem...
Lo compara con Augusto por la edad en que se inició su carrera (2.61.1): undevi-
cessimum annum ingressus, tal como se dice en Acta D.A. 1: annos undeviginti na-
tus. Nos lo presenta nutrido con preceptos divinos; en 2.94.2: innutritus caelestium
praeceptorum disciplinis, por haber sido educado en la casa de Augusto. Sus éxitos en
Armenia (2.94.4) preparan ya el aura carismática del futuro príncipe. La urbe y el
orbe sufren con su pérdida: sensit terrarum orbis digressum a custodia Neronem urbis
(2.100.1), y disfrutan con su retorno, que garantiza la eternidad del imperio: laetiti-
tiam illius diei concursumque civitatis et vota paene inserentium caelo manus spemque
conceptam perpetuae securitatis aeternitatisque Romani imperii (2.103.4). Por algo
Augusto en su adopción dijo: hoc, inquit, rei publicae causa facio (2.104.1). Mucho
de carismático tiene el cap. 2.104, en el que se describe la emoción de los soldados
en la presencia de Tiberio o la de aquel germano que lo toma por un dios (2.107). El
triunfo de Tiberio en Germania es tanto mayor cuando se lo compara con el fracaso
de Lolio o de Varo (2.122). Se le describe como asistido de la Fortuna.
Es también como Hércules, quien se ganó la ascensión al Olimpo por sus tra-
bajos. Quizás por eso no se ahorra Veleyo los aspectos negativos, las grandes difi-
cultades que tuvo Tiberio hasta alcanzar el poder y luego las traiciones, desengaños,
desagradecimientos, que sufrió (2.130.3-4).
Los cargos son cargas, o como reza la antítesis y paradoja clásica, la jefatura del
estado es una endoxos douleia, un “esfuerzo penoso lleno de honor”. Ya dice Cic. Pro
Sest. 139: que quienes buscan los honores aliis otium quaerere debent et voluptates,
non sibi. Sudandum est iis pro communibus commodis, adeundae inimicitiae, subeun-
dae saepe pro re publica tempestates.
Moles et onera son palabras que frecuentemente aparecen en Veleyo referidas al
príncipe.
Virtus = industria
Pero la virtud más auténtica de Tiberio va asociada a la utilidad: Veleyo dice
de Tiberio (2.114.1): o rem dictu non eminentem, sed solida veraque virtute atque
utilitate maximam, experientia suavissimam, humanitate singularem: “¿Qué cosa más
poco importante de relatar, pero más propia de una sólida y auténtica virtud y
provecho, sumamente agradable en la práctica e incomparable en su humanidad!”,
y se refiere a la institución de las ambulancias y del botiquín de campaña. Afirma
seguidamente: tanquam distractissimus ille tantorum onerum mole huic uni negotio
vacaret animus: “como si no tuviera otra cosa a la que prestar su atención, como si
estuviera libre del peso enorme de las obligaciones”. El peso de las preocupaciones
primordiales es parangonado con el de las ocupaciones más elementales. Se trata,
como se ve, del tópico de la cura ducis: la preocupación por las tropas, sus necesi-
dades y su salud.
Conclusión
Por encima de los reproches a Veleyo de falta de objetividad, de abuso del géne-
ro biográfico, del elogio y hasta de la oración (el cap. 131 con que se cierra la obra),
hemos de reconocerle a Veleyo el mérito siguiente: el haber sabido leer en la historia
de Roma una constante, i.e., la tendencia integradora propia de la cultura romana.
Dice Hannah Arendt, De la historia a la acción, p. 41: “La historia aparece cada vez
que ocurre un acontecimiento lo suficientemente importante para iluminar su pa-
sado (en este caso, la apelación de Augusto a toda Italia). Entonces la masa caótica
de sucesos del pasado emerge como un relato... lo que el acontecimiento iluminador
revela es un comienzo en el pasado que hasta aquel momento estaba oculto... (cobra
un nuevo sentido la fundación de Roma, la leyenda de Eneas, las fundaciones grie-
gas de la Magna Grecia, la secuencia de homines novi)... la mirada del historiador
no es más que la mirada científicamente entrenada (y aquí interesada) de la com-
prensión humana”.
Veleyo detenta la perspectiva italiana; la perspectiva, no tanto del inmigrante
cuanto del hombre de negocios o de acción, que quiere la nacionalidad para par-
illud vero sine ulla dubitatione maxime nostrum fundavit imperium et populi Romani
nomen auxit, quod princeps ille creator huius urbis Romulus foedere Sabino docuit etiam
hostibus recipiendis augeri hanc civitatem oportere. Cuius auctoritate et exemplo nun-
quam est intermissa a maioribus nostris largitio et communicatio civitatis.
Ésa es la clave para explicar la Historia de Veleyo: su discutida objetividad, el
predominio de la biografía y el recurso en una obra de Historia al elogio. Y es que
Veleyo está inmerso en la realidad contemporánea del Principado, cuyo régimen le
“concede ogni possibilità di carriera e di gloria” (Lana: 60). El Principado le da la
espalda al régimen aristocrático republicano y a su política de botín, y da acceso al
gobierno a nuevas familias de extracción plebeya o extranjera, cuyos valores son el
trabajo y el servicio al Estado. Tácito (Ann. 3.55) lo reconoce con resentimiento:
“Hombres advenedizos procedentes de los municipios, de las colonias e incluso
de las provincias eran incluso reclamados para formar parte del Senado y aportaron
las riquezas de sus lugares de origen. Ellos llegaron gracias a su capacidad de ahorro
doméstico, y basándose en su riqueza y laboriosidad, a una vejez sumamente adine-
rada, conservando todavía su primitiva manera de pensar”.
BIBLIOGRAFÍA
V ivemos hoje, no limiar do séc. XXI e do III milénio d.C., num mundo mar-
cado por profundos conflitos de interesse e acentuadas oposições de toda a
espécie. Frequentemente, tomamos conhecimento através da comunicação social
da multiplicação de actos anti-semitas, anti-islâmicos ou anti-cristãos; somos in-
formados da profanação de locais sagrados de culto, de cemitérios, sinagogas, mes-
quitas ou igrejas; sabemos de agressões e injúrias de carácter racista contra alvos de
diferentes etnias, credos ou cores. Para muitos, trata-se da factura da globalização,
do preço a pagar pelo multiculturalismo e pela necessidade de coexistência de
grupos diferentes e, por vezes, antagónicos. Em muitos casos, o factor religioso é
apontado como a causa da conflitualidade, das incompreensões, do extremar de
posições.
Sem pretender retirar lições da história antiga, é por vezes extremamente esti-
mulante olhar o passado e verificar como as sociedades antigas lidaram com as suas
antíteses, com os seus diferentes grupos de interesses, com os antagonismos que
inevitavelmente albergaram no seu seio.
O exemplo da antiga cidade cosmopolita de Alexandria é um dos mais fasci-
nantes e interessantes estudos de caso, pela multiplicidade de tensões que conhe-
ceu, nomeadamente no período ptolomaico, e pela forma, eu diria original, como
superou algumas. No início da dominação ptolomaica, na viragem do séc. IV a.C.,
a forte antítese entre greco-macedónios imigrados e egípcios autóctones colocou re-
almente novos problemas e novos desafios ao poder político, geneticamente oriundo
da Macedónia, mas residente no Egipto.
Fundada em 331 a.C. por Alexandre Magno, no Delta ocidental, intencional-
mente voltada para a bacia mediterrânica, numa zona calcária pouco elevada, em
frente da ilha de Faros, Alexandrea ad Aegyptum está, pelo seu nome e pela sua
glória como grande cidade do mundo antigo – foi capital político-cultural durante
cerca de 1000 anos1 –, indelevelmente vinculada à figura daquele que lhe deu o
nome e que foi o seu fundador.
Na escolha do local, com o auxílio dos seus conselheiros, Alexandre Magno
teria considerado, sobretudo, as enormes possibilidades estratégicas oferecidas pelo
*
O essencial deste artigo foi igualmente publicado, com outro título, na Revista Lusófona de Ciências das Religiões, Ano
VI, 2007, nº 12.
1
Capital política do Egipto desde o fim do século IV a.C. até ao século VII d.C., isto é, durante cerca de mil anos,
Alexandria manteria, no fundo, a sua importância comercial e cultural até à Idade Média. O seu declínio iniciar-se-ia,
a partir de 646, com a conquista árabe, mas só seria efectivo com o estabelecimento definitivo do Cairo como capital e
centro cultural, em 968.
lugar (em contraste, por exemplo, com Canopo ou Pelúsio), mau grado o desafio ge-
ográfico que tal empresa constituía (face à inóspita e perigosa costa e às deficientes
características da terra para a agricultura)2. Daí o seu directo envolvimento nas ceri-
mónias de fundação que os escritores antigos mencionam (ex.: Plutarco3, Arriano4 e
Quinto Cúrcio5). Estes autores referem-se também à forma de clâmide que a cidade
apresentava, com os 6 Km no sentido este-oeste e menos de 2 no eixo norte-sul6.
Seria, contudo, com Ptolomeu I Sóter (305-285 a.C.), o fundador da dinastia
Lágida, que Alexandria cresceria, em termos geográficos e demográficos, e se im-
plantaria como primeira cidade cosmopolita do seu tempo, atraindo Gregos e Per-
sas, Macedónios e Judeus, Indianos e Africanos, Sírios e Anatólios, Mesopotâmicos
e Gauleses, a «desnorteante variedade» de povos e de culturas, tão típica do período
helenístico pós-Alexandre, a que, por exemplo, Maria Helena Rocha Pereira faz
alusão7.
Capital dos Lágidas e do Egipto Greco-romano, cidade de militares, funcio-
nários, negociantes, intelectuais e artistas, centro urbano e monetário de enorme
pujança, Alexandria viria a tornar-se, como sabemos, no maior centro comercial,
industrial e cultural-científico do mundo helenístico civilizado. A cidade não era
só um autêntico empório do mundo da época, aonde afluía todo o tipo de bens e
mercadorias, de praticamente todas as proveniências geográficas, como inclusive
substituiu Atenas como principal centro de irradiação do helenismo.
Os Ptolomeus referiam-se a Alexandria como estando não no Egipto, mas «junto
do Egipto», Alexándreia pròs Aigyptôi8. Esta terminologia de referência testemunha,
portanto, a situação excepcional de Alexandria: a cidade era, simultaneamente, por
um lado, o local de residência real e a capital do reino ptolomaico – e, dessa forma,
obrigatoriamente, parte integrante do território geográfico do Egipto – e, por outro
2
Cf. André Bernand, Alexandrie la grande, Paris, Hachette, 1996, pp. 27-37.
3
Plutarco, 26.
4
Arriano, III, 2, 1-2.
5
Q. Cúrcio, IV, 8, 6.
6
A concepção do plano da cidade é atribuída ao arquitecto Dinócrates de Rodes que seria assim o responsável pelas
larguíssimas ruas principais que se cruzavam (retícula hipodâmica) e que durante toda a Antiguidade tanto surpreen-
deram todos os visitantes da cidade (Cf. Estrabão, XVII, 1, 8). A cidade estava dividida em cinco secções ou bairros,
claramente diferenciados consoante a população que os habitava, designados, como indica Fílon de Alexandria (século
I), pelas cinco primeiras letras do alfabeto grego, de α (alfa) a ε (épsilon). O bairro mais importante da cidade era,
logicamente, aquele onde se situava o palácio real, na zona do Grande Porto, entre o mar e a Via Canópica, a principal
rua que a atravessava de leste a oeste.
7
Cf. M. H. Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica. I Volume. Cultura Grega, 7ª ed., Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1993, p. 522.
8
Como já escrevemos, toda e qualquer tentativa de reconstituição imaginária da antiga Alexandria, além da referência
obrigatória ao centro cultural ímpar que a cidade sempre foi, tem que considerar um primeiro indício das suas particu-
lares e excepcionais condições e privilégios que é o seu próprio nome Alexándreia pròs Aigyptôi, isto é, «Alexandria junto
do Egipto». No período romano, as nomenclaturas Alexandrea ad Aegyptum, Alexandrea apud Aegyptum, Alexandria in
Aegypto ou Alexandrea quae est in Aegypto consubstanciavam a mesma realidade e o próprio título do prefeito romano
do Egipto era sintomático desta dicotomia: praefectus Alexandreae et Aegypti, «prefeito de Alexandria e do Egipto» (Cf.
José das Candeias Sales, «Alexandrea ad Aegyptum. Protótipo de metrópole universal» in Discursos. Língua, Cultura e
Sociedade, II Série, nº 5. O Imaginário da cidade, Lisboa, Universidade Aberta, Dezembro 2003, pp. 83-105).
mas incluía também os Sírios, os Judeus, os Samaritanos e outros imigrantes semitas provenientes dos quatro cantos do
império ptolomaico além-mar (Cf. J. Rowlandson, Ob. Cit., p. 335).
12
Claude Vial, Les Grecs de la paix d’Apamée à la bataille d’ Actium, 188-31, Paris, Éditions du Seuil, 1995, p. 24.
Cf. Jean Ducat, «Grecs et égyptiens dans l’Égypte dans l’Égypte lagide: hellénisation et résistance à l’Hellénisme» in
13
Entre Égypte et Grèce. Actes du colloque du 6-9 Octobre 1994, Paris, Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, 1995,
pp. 72,73.
debout et étude iconographique, EPRO 94, Leiden, E. J. Brill, 1983, pp. 2 e ss.
21
A Serápis foram consagrados inúmeros templos (Serapeum ou Serapeion) por todo o território egípcio. Os mais co-
nhecidos são, indubitavelmente, os de Alexandria e de Mênfis. O de Alexandria, situado no bairro sudoeste de Rakotis,
na tradicional zona residencial dos Egípcios, a pouca distância do centro cívico, era realmente um autêntico santuário
multicultural: segundo dois rituais distintos, havia dois cleros a oficiar, um grego e outro egípcio. Ao que parece, a fun-
dação do templo data dos reinados de Ptolomeu III (246-221 a.C.) e de Ptolomeu IV (221-204 a.C.), embora se admita
que o local já estava dotado de sacralidade desde os primeiros tempos da cidade.
Fig. 2 - Alexandria, com a Via Canópica em destaque. Ao fundo, à esquerda, na parte mais elevada
a oeste da cidade (a colina de Rakotis), vê-se o Serapeum, no enfiamento do Porto Eunostos e do Magnus
Portus da capital lágida.
britânicas.
O mítico e primevo casal Osíris-Ísis da tradição faraónica cedeu lugar nos mo-
numentos helenísticos à inseparável dupla Serápis-Ísis. O novo casal divino mar-
caria todo o período ptolomaico. O culto a Ísis, como expressão da antiga religião
egípcia, foi também sempre alvo da política religiosa dos Lágidas23. Em Alexandria,
a antiga deusa egípcia assumiria funções completamente inusitadas no âmbito dos
seus atributos, como protectora da navegação e dos marinheiros (Ísis Pharia, «Ísis,
senhora do mar»; Ísis Pelagia, «Ísis, deusa do mar» e Ísis Euploia, «Ísis da feliz nave-
gação»),. Esta «nova» Ísis de Alexandria foi representada ora com roupagens gregas
(chiton ou peplos e himation), ora com vestes de origem egípcia, embora sob reinter-
pretação «à grega»24. O seu renovado guarda-roupa atestava o novo período e fulgor
da sua existência e o profundo processo de helenização a que foi sujeita (Fig. 3).
Durante os Ptolomeus, em Alexandria, a «carreira» de Ísis decorrerá sempre um
pouco à sombra de Serápis25. Na chôra (a «terra natal» de Ísis, por assim dizer), no
entanto, Serápis nunca alcançaria a devoção popular dedicada à antiga deusa Ísis,
pelo menos por parte da população indígena – a maioria demográfica do país, não
esqueçamos. Não é, por isso, de estranhar que haja muito mais estátuas de Ísis do
que há de Serápis26. Ainda assim, há inúmeros testemunhos do culto serapiano,
quer ex-votos, quer estátuas de diversos tipos (talhas, candeias, terracotas, bustos em
mármore, grandes estátuas de madeira, etc.), que assinalam o seu relativo sucesso
popular, sobretudo em Alexandria.
23
Cf. F. Dunand, Le culte d’Isis dans le bassin oriental de la Méditerranée. I. Le culte d’Isis et les Ptolémées, EPRO 26,
Leiden, E. J. Brill, 1973. p. 27.
24
Em relação às vestes e aos símbolos distintivos de Ísis, vide Iside. Il mito. Il misterio. La magia, Milão, Electa, 1997,
pp. 86, 98, 108 e 111. A antiga deusa egípcia conservará, porém, alguns dos seus antigos atributos: coroa, sistro, sítula
e nó isíaco nas vestes.
25
Também em Canopo, Ísis estava ligada a Serápis, sendo venerada como «a condutora das Musas» (Cf. A. Bernand,
Alexandrie des Ptolémées, Paris, CNRS, 1995, p. 84; Id., Alexandrie la grande, p. 132).
26
Além das representações sob forma antropomórfica, Serápis e Ísis são também figurados, sobretudo no período roma-
no, sob forma animal: duas serpentes coroadas com os seus respectivos atributos, evocando o aspecto de «bons génios»
e garantes da prosperidade e fertilidade do solo.
Fig. 3 - Estatueta em bronze de Ísis (alt.: 27 cm) enquanto deusa do porto de Alexandria. Séculos II-I
a.C. (Ägyptischen Museum, de Berlim).
27
O jovem Harpócrates alexandrino era representado de pé, nu ou com uma simples clâmide no braço esquerdo, um
pouco desengonçado, segurando o corno da abundância, insígnia da prosperidade do reino. Os elementos que recordam
a sua origem indígena são a coroa pschent (a dupla coroa branca e vermelha da antiga realeza egípcia) e o dedo indicador
na boca (gesto típico dos antigos deuses-criança egípcios). Este gesto incitou os imigrantes gregos a identificarem-no
como deus do silêncio. Nas emissões monetárias romanas, Harpócrates surgirá coroado com a pschent, com o uraeus,
a serpente fêmea protectora de divindades e faraós, ou, então, emergindo de uma flor de lótus, referência ancestral da
tradição mitológica egípcia para o nascimento dos deuses-criança, designadamente no âmbito cosmogónico hermopo-
litano. Esta última iconografia está também presente em terracotas e em numerosos relevos de templos ptolomaico-
romanos.
28
No período romano, na função de deus dos mortos e da mumificação, Anúbis surge representado nos túmulos de
Alexandria (ex.: catacumbas de Kom el-Shugafa). Era o equivalente egípcio de Hermes e chegou a ser honrado sob a
forma de Hermanúbis, cujo nome mais não é do que a contracção da onomástica das duas deidades. Hermanúbis foi a
segunda divindade autenticamente helenística, isto é, criada no apogeu do alexandrinismo.
Bibliografia
Fontes
KIESSLING, Emil, «La genèse du culte de Sarapis à Alexandrie», CdE 47, janvier
1949, pp. 317-323.
KOENEN, Ludwig,, «The Ptolemaic king as a religious figure» in AAVV, Images
and ideologies. Self-definition in the Hellenistic world, Berkeley/ Los Angeles/ Lon-
don, University of California, 1993, pp. 25-115.
LECLANT, Jean, «Isis, déesse universelle et divinité locale, dans le monde gréco-
romaine» in Bulletin de Correspondance Hellenique. Supplément XIV. Iconographie
classique et identités régionales, Athènes, École française d’Athènes, 1986, pp. 346,
347.
PEREMANS, Willy, «Étrangers et égyptiens en Égypte sous le règne de Ptolémée
Ier» in AncSoc 11/ 12, Leuven, Katholieke Universiteit Leuven, 1980/ 1981, pp. 213-
226.
«Les mariages mixtes dans l’Égypte des Lagides» in Scritti in onore di Orsolina
Montevecchi, Bologna, Editrice Clueb, 1981, pp. 273-281.
PETIT, Paul; LARONDE, André, La Civilisation Hellénistique, 7ª ed., Paris, PUF,
1996.
QUAEGEBEUR, Jan, «Cultes égyptiens et grecs en Égypte hellénistique« in Egypt
and the Hellenistic World. Proceedings of the International Colloquium. Leuven. 24-
26 May 1982 (edited by E. Van’t Dack, P. van Dessel and W. van Gucht), Lovanii,
1983, pp. 303-324.
ROCHA PEREIRA, M. H., Estudos de História da Cultura Clássica. I Volume.
Cultura Grega, 7ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
ROWE, Alan, «Part I. Discovery of the famous temple and enclosure of Serapis at
Alexandria» in Supplément aux Annales du Service des Antiquités de l’Égypte, cahier
nº 2, 1946, pp. 1-94.
ROWLANDSON, Jane, «Ville et campagne dans l’Égypte ptolémaïque» in An-
drew Erskine (Dir.), Le monde hellénistique. Espaces, sociètés, cultures. 323-31 av.
J.-C., Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2004, pp. 327- 345.
SADEK, Ashraf Iskander, «Alexandrie, fille de Rakotis et fruit des relations egypto-
grecques» in Le Monde Copte. Revue trimestrielle de la culture copte, nºs 27-28, Paris,
S. I. P. E., 1997, pp. 7-20.
SALES, José das Candeias, As divindades egípcias. Uma chave para a compreensão do
Egipto antigo, Lisboa, Editorial Presença, 1999.
«As campanhas de Alexandre Magno e a definição de uma (nova) identidade polí-
tico-cultural no final do séc. IV a.C.» in Discursos. Língua, Cultura e Sociedade, III
Série, nº 1, Regiões/ Identidade, Lisboa, Universidade Aberta, 1999, pp. 57-90.
«Alexandrea ad Aegyptum. Protótipo de metrópole universal» in Discursos. Língua,
Cultura e Sociedade, II Série, nº 5. O Imaginário da cidade, Lisboa, Universidade
Aberta, Dezembro 2003, pp. 83-105.
SHOUCRI, Mounir, «Alexandrie hier et aujourd’hui» in Le Monde Copte. Revue
trimestrielle de la culture copte, nºs 27-28, Paris, S. I. P. E., 1997, pp. 63-69.
STAMBAUGH, J. E., Sarapis under the early Ptolemies, EPRO 25, Leiden, E. J.
Brill, 1972.
SWINNEN, Wilfried, «Sur la politique religieuse de Ptolémée Ier» in Les syncré-
tismes dans les religions grecque et romaine. Colloque de Strasbourg (9-11 juin 1971),
Paris, PUF, 1973, pp. 115-133.
TAKÁCS, Sarolta A., Isis and Sarapis in the Roman World, Leiden/ New York/
Köln, E. J. Brill, 1995.
TINH, V. Tran Tam, Sérapis debout. Corpus des monuments de Sérapis debout et
étude iconographique, EPRO 94, Leiden, E. J. Brill, 1983.
VIAL, Claude, Les Grecs de la paix d’ Apamée à la bataille d’ Actium, 188-31, Paris,
Éditions du Seuil, 1995.
WITT, R. E., Isis in the Graeco-roman World, London, Thames and Hudson,
1971.
“E Eros, o mais belo dos deuses imortais, aquele que enfraquece os mem-
bros, aquele que, no peito de todos os deuses e de todos os homens, domina
o espírito e a vontade sábia.”
O poeta põe-nos, assim, perante uma entidade que, juntamente com a Terra,
1
Embora não seja esta a minha intenção neste momento, é sempre possível comparar as duas designações – a grega e a
latina – e os respectivos sentidos para se perceber que logo aí nos deparamos com algumas diferenças. Enquanto œrwj
indicava, a par de amor ou de desejo apaixonado por uma pessoa ou por um objecto, uma alegria apaixonada, cupido
tinha as acepções (para além de paixão ou desejo apaixonado) de desejo, inveja, cupidez, ambição desmedida. Por outro
lado, há toda uma família de palavras que lhes estão associadas que nos confirmam essa diferença semântica entre o
termo grego e o latino.
2
Cf. H. D. F. Kitto, Os Gregos (tradução e prefácio de José Manuel Coutinho e Castro, revisão de Maria Helena da
Rocha Pereira), Coimbra, Arménio Amado, Editor, Sucessor, 1980, pág. 417.
Hesíodo, Teogonia, 120-122: ºd’ ”Eroj, Öj k£llistoj ™n ¢qan£toisi qeo‹si, / lusimel»j, p£ntwn d
3
2. Eros adolescente
Esta não é, contudo, a representação mais conhecida do deus. Frequentemente
é associado ao Amor e a Afrodite, que diversos autores consideram como sua mãe6.
E é este o aspecto que pretendo abordar mais desenvolvidamente.
Ainda em Hesíodo, podemos constatar um traço que une ambos os deuses: tal
como Eros é um princípio de vida, capaz de promover a fecundidade e de vivificar
a natureza, também Afrodite, filha de Úrano, o é, estendendo-se o seu poder a to-
4
Cf. Ésquilo, Antígona, vv. 781-800 (trad. de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, INIC, 19872): “Eros invencível
no combate, / Eros que as riquezas destróis, / que estás de vigília às faces tenras / da donzela, / vagueias sobre o mar e
nos campos! / Não te evitou nenhum dos deuses / nem dos humanos de curta vida: / quem te possui / enlouquece. /
Tu desvias dos justos o ânimo, / fá-los injustos para o seu mal, / tu, que excitaste esta contenda / nos parentes; / vence,
porém, da formosa noiva / a luz brilhante do seu olhar, / das grandes leis par no poder; ri-se, / invencível, / Afrodite.”.
5
Cf. Aristófanes, Aves, vv. 693-699, que parodia esta versão: “No princípio era o Caos e a Noite e o negro Érebo e o
vasto Tártaro; mas não existiam a terra, o ar e o céu; no seio infinito do Érebo, logo de início, a Noite de asas negras
gerou um ovo vazio, do qual, com o correr das estações, surgiu Eros, o desejado, as costas brilhando com asas douradas,
como turbilhões de vento. Ele, unindo-se ao Caos alado, durante a noite, no vasto Tártaro, originou nossa raça [a das
aves] e, a primeira, conduziu-a para a luz.” (C£oj Ãn kaˆ NÝx ”ErebÒj te mšlan prîton kaˆ T£rtaroj eÙrÚj:
/ gÁ d’ oÙd’ ¢¾r oÙd’ oÙranÕj Ãn: ‘Eršbouj d’ ™n ¢pe…rosi kÒlpoij / t…ktei prètiston Øphnšmion
NÝx ¹ melanÒpteroj òÒn, / ™x oá peritellomšnaij éraij œblasten ”Erwj Ð poqeinÒj, / st…lbwn
nîton pterÚgoin crusa‹n, e„këj ¢nemèkesi d…naij. / Oátoj dš C£ei pterÒenti migeˆj nÚcioj kat¦
T£rtaron eÙrÝn / ™neÒttwsen gšnoj ¹mšteron, kaˆ prîton ¢n»gagen e„j fîj.).
6
A genealogia do deus é bastante discutível entre os poetas gregos. Para Alceu, Eros é filho de Íris e de Zéfiro; Acusilau
(segundo um escólio de Teócrito) apresentava-o como sendo filho do Éter e da Noite; Eurípides (de acordo com o mesmo
escólio e como se pode ver no Hipólito, vv. 530-534) atribui-lhe Zeus como pai; Sócrates, no Banquete 203 cd, apresenta
para o deus dois progenitores alegóricos, Pénia e Poros. Já antes, no mesmo diálogo de Platão, Fedro (178 bc) afirmara
que Eros não tinha pais. No entanto, a questão da atribuição da maternidade a Afrodite parece ser bastante antiga: Safo,
por exemplo, já o considera filho de Afrodite e de Úrano (embora o referido escólio de Teócrito apresente a versão de que
seria filho da Terra e de Úrano). Na arte, é sobretudo a partir do século III a. C. que Eros é representado como filho da
deusa, aparecendo ambos como mãe e filho nas pinturas de vasos por volta de 380 a. C.
dos os seres vivos – homens, animais e plantas. E é por associação de sentido que
estas divindades assumem a função de protectoras do amor, dada a ligação estreita
existente entre este e a fecundidade. No entanto, até aqui há uma diferença na sua
concepção: Eros, transformado em deus do amor, é uma força invencível, difícil de
suportar, cria tensão e desejo, embora não personifique o amor físico, que pertence
ao domínio de Afrodite.
Para melhor compreender a relação entre os dois convém referir a existência de
duas Afrodites, a Urânia e a Pandémia, resultantes de duas tradições distintas7. O
facto de existirem duas Afrodites pressupõe a existência de dois Eros – um é um
deus, filho de Afrodite Urânia e, tal como a mãe, afastado da Matéria; o outro é
uma divindade, o Amor universal, associado à Alma universal. É deste último que
dependem todos os Amores. Além disto, Eros era simultaneamente companheiro
da deusa e princípio cosmogónico que presidia à perpetuação da geração.
Do mesmo modo, na literatura e na arte ambas as divindades se encontram
associadas, podendo ser representadas de formas bastante distintas. Em Safo, Eros
surge como uma divindade cósmica pertencente ao séquito de Afrodite, embora se
reconhecesse que ele possuía um determinado prestígio de que estavam desprovi-
das todas as outras divindades que acompanhavam a deusa. Eurípides8 apresenta-o
como guarda de Afrodite. É uma divindade que não recebe qualquer tipo de ve-
neração, mas que possui um terrível poder sobre os homens, provocando-lhes uma
série de desgraças. Afinal foi a ele que foram confiadas as chaves dos prazeres da
deusa! Aliás, mais adiante, o Coro acentua o poder de Eros sobre o coração dos seres
vivos9, um poder partilhado com Afrodite.
Nesta passagem encontramos já um dos traços mais constantes das represen-
tações de Eros: as suas asas. Elas estão presentes nas mais diversas obras literárias,
mas também na arte. Esta apresenta-o frequentemente como um jovem, filho de
Afrodite, implicante e travesso, quase sempre alado e carregando um arco e a aljava
de flechas. As asas têm grande importância na representação do deus, recordando as
antigas divindades da natureza e sugerindo a ideia da força e do impulso do amor.
Esta figuração faz de Eros, simultaneamente, uma força oculta e monstruosa, uma
potência cósmica que penetra o universo, mas também o amor amargo-doce, capaz
de confundir sentimentos e lamentos10.
7
Estas baseiam-se nas versões de Hesíodo e dos poemas homéricos. Enquanto Hesíodo afirma que Afrodite nasceu da
espuma do mar, devido à emasculação de Úrano, a tradição homérica apresentava-a como filha de Zeus e Dione, que
teria casado com Hefesto. Com base nestas duas genealogias Platão (Banquete 180 d) estabeleceu a distinção entre duas
Afrodites – a Pandémia, filha de Zeus e Dione, seria uma simples divindade do prazer, enquanto a Urânia reflectia o ca-
rácter nobre e sagrado do amor conjugal. Também Plotino distinguiu entre duas Afrodites, considerando a Urânia como
a Alma celeste, filha da Inteligência divina e, como tal, totalmente separada da matéria, e a Pandémia como a Alma do
mundo, que continha todas as almas e todas as Afrodites (cf. Plotino, II. 2, 3; III. 9, 9; V. 8, 13).
8
Cf. Eurípides, Hipólito, vv. 538 ss.
9
Cf. Idem, Ibidem, vv. 1269 ss. (trad. de Frederico Lourenço, Lisboa, Edições Colibri, 1993): “e contigo o das asas
brilhantes e variegadas, que os abrange com um rapidíssimo bater de asa. Ele voa sobre a terra e sobre o marulhante mar
salgado. Eros enfeitiça aqueles em cujo coração desvairado irrompe, alado e fulgente de ouro.”.
10
Esta figuração de Eros alado já se encontra em poetas arcaicos, como Anacreonte, que alude às suas asas brilhantes
3. Eros criança
Provavelmente uma das mais conhecidas alusões a Eros, neste período, será a
de Apolónio de Rodes12, nos Argonautas, quando Afrodite procura o filho a fim de
lhe pedir que atinja Medeia com uma das suas flechas, para que esta se apaixone
por Jasão. E aqui já estamos perante uma criança, que brinca com Ganimedes no
Olimpo. E ao mesmo tempo uma figura de contrastes: se, por um lado, tem poder
para gerar o amor em alguém, por outro, faz batota para ganhar a Ganimedes. E é
também uma criança rebelde e esperta, que negoceia com a mãe as vantagens que
retirará do favor que lhe vai prestar.
Mas não é a única. A Antologia Grega oferece-nos uma recolha de epigramas
(sobretudo nos livros V e XII da Antologia Palatina, onde se centram os epigramas
amorosos) onde Eros, o deus do amor, é representado como uma criança alígera,
armada de arco e flechas, sempre pronta a ferir o coração de qualquer ser vivo, seja
mortal ou imortal. Apesar de ser normalmente uma criança travessa, um dos epí-
tetos que a qualifica é o de doce (glukÚj), como no epigrama fúnebre de Asclepí-
ades13. E isto é acompanhado por versões em que a pequenez do deus é associada à
graça, como no seguinte epigrama do livro IX:
como o ouro. Sobre a interpretação das asas nas representações de Eros como potência da natureza, veja-se Silvana Fasce,
Eros. La figura e il culto (Genova, Istituto de Filologia Classica e medievale, 1977), que o associa ao vento.
11
A este respeito veja-se Silvana Fasce, op. cit. e Antoine Hermaris, Hélène Cassimatis e Rainer Vollkommer, s. v.
“Eros”, in Lexicon Iconographicum Mythologiæ Classicæ, III/1: Atherion-Eros, Zürich und München, Artemis Verlag,
1986, pp. 917-922.
12
Cf. Apolónio de Rodes, Argonautas, III. 95 ss.; 114-154.
13
Cf. Ant.. Pal., VII. 217, 2.
Como podemos ver, o seu tamanho, o facto de ser pequeno, faz com que seja
acompanhado pela graça, em concordância com a tendência helenística para as
coisas pequenas. No entanto, esta faceta agradável do deus não é a mais apresenta-
da pelos poetas. Árquias, por exemplo, lamenta-se porque esta criança o maltrata,
lançando contra ele as suas flechas15. Esta mesma ideia é expressa no epigrama 176,
do mesmo livro, ou no 157 do livro IV, que nos apresentam Eros como uma criança
terrível, capaz das piores acções: a rir faz correr sangue humano; armado de uma
espada é responsável por várias mortes; além disso, diverte-se com o sofrimento
alheio e com os insultos que lhe lançam. Aliás, Meléagro é insistente nas censuras
que faz ao deus, que representa como uma criança insolente, travessa, selvagem,
sem respeito por ninguém e cujo maior prazer é ferir os outros16. No entanto, esta
criança, ao saber que pretendem vendê-la, chora e o seu choro comove os que pre-
tendiam vendê-la.
É um ser de contrastes: por um lado, é tão terrível que ninguém assume a sua
paternidade. O mesmo Meléagro afirma que “o pai não é este nem aquele”17; isto ao
mesmo tempo que lhe atribui uma filiação materna, com alusões à Odisseia – a mãe
é mulher de Hefesto e amante de Ares; a avó materna é o mar. Ou seja, Meléagro
fá-lo descender duplamente de Afrodite, como mãe aquela cuja representação foi
associada à Pandémia e como avó a Afrodite primeira, primordial, a Urânia. Mas
Eros é também uma criança inocente, que gosta de brincar e de dormir. A dormir
parece ser incapaz de atormentar quem quer que seja. Isto fica bem patente em
epigramas como o de Mariano, o Escoliasta ou o de Platão, o Jovem18. Em ambos
os epigramas, o deus dorme suavemente, sem armas. Mariano qualifica o seu sono
como ‘suave’, Platão mostra-o dormindo a sorrir, entre botões de rosas, tão calmo
que até as abelhas se passeavam nos seus lábios.
E este contraste entre a criança terrível e a criança calma mantém-se como uma
constante. Paralelamente a Mariano ou a Platão, outros poetas, como Alfeu ou Es-
tatílio Flaco, receiam que o deus, mesmo enquanto dorme, lhes prepare um sonho
amargo19. Também quando brinca o deus é temido. Meléagro queixa-se de que o
14
Ant. Pal., IX. 784: M¾ nemšsa baio‹si: c£rij baio‹sin Ñphde‹: / baiÕj kaˆ Paf…hj œpleto koàroj
”Erwj.
15
Cf. Ant. Pal., V. 58.
Cf. Ant. Pal., V. 178, sobretudo vv. 3-7 (“Nasceu travesso e alado; faz feridas profundas com as unhas; muitas vezes,
16
no meio do choro, ri. Além de uma constante impassibilidade, é conversador, de olhar penetrante, selvagem, nem mes-
mo para a mãe é afável: é em tudo um monstro.”).
Ant. Pal., V. 180, 6. Já em V. 177, 5-6 o poeta afirmava que nem Céu, nem Terra, nem Oceano pretendem ter gerado
17
deus joga à bola com o seu coração 20, ou de que joga aos dados com a sua vida 21,
num claro desrespeito pelos sentimentos alheios.
É um ser de tal modo terrível que Mosco de Siracusa construiu um epigrama
em que Afrodite o procura designando-o como escravo fugitivo22. Vale a pena a sua
leitura, pois constitui uma das melhores descrições do deus:
“A pele não é branca, mas como o fogo; os olhos penetrantes e de fogo; mau
coração, doce conversa, porque não pensa como fala. A voz é de mel, mas de
fel o seu pensamento, quando se irrita. É um vigarista que não diz a verdade,
uma criança enganadora que brinca de forma cruel. Na cabeça tem belas
madeixas, mas na face tem atrevimento. As mãozitas são pequeninas, mas
ferem ao longe; ferem até ao Aqueronte e ao reino de Hades. Tem o corpo
nu, mas o espírito está bem escondido. Com asas, como um pássaro, voa
para uns e para outros, homens ou mulheres, e repousa nos corações. Tem
um arco muito pequeno e sobre ele um dardo; este, embora pequeno, chega
até ao céu. Tem uma aljava de ouro nas costas, onde estão as flechas ponte-
agudas com que muitas vezes me fere. Tudo é selvagem, tudo, mas o que é
pior é uma pequena chama com que inflama o próprio sol. Se o apanhares,
prende-o para mo trazeres; se o vires chorar, cuidado!, para que não te enga-
ne, se rir, então amarra-o; e se quiser abraçar-te, foge: o seu beijo é perigoso,
os seus lábios, veneno. Se disser ‘toma, ofereço-te todas as minhas armas’,
não toques as ofertas enganadoras: as armas foram temperadas no fogo.”
Estamos, como já disse, perante uma descrição que reúne os principais dados
da caracterização de Eros: uma criança com pele cor de fogo, belas madeixas, face
atrevida, olhos penetrantes; corpo nu, mas nas costas um par de asas e uma aljava
cheia de flechas; um arco e um dardo. É, com todos estes atributos, uma criança pe-
rigosa, que alia os traços infantis às armas que possui e que dispara sobre qualquer.
É também enganadora: tem uma conversa e uma voz doces, mas um mau coração
e um pensamento de fel; é vigarista, selvagem, brinca de forma cruel. Até os lábios
são venenosos e o seu beijo perigoso. Ou seja, estamos perante um ser cheio de
contrastes, em que beleza, suavidade, doçura, se opõem à maldade, à crueldade, ao
pensamento enganador.
E é tentador despender mais tempo com este epigrama, que nos reaproxima
do tema do colóquio (embora menos do título desta comunicação). Vejamos mais
pormenorizadamente as oposições aqui presentes: o branco, próprio das crianças e
da sua inocência, por oposição ao fogo, da pele e do olhar, que caracteriza Eros. É
o primeiro sinal negativo, neste epigrama, relativamente ao deus. Aliás, o poema dá
20
Cf. Ant. Pal., V. 214.
21
Cf. Ant. Pal., XII. 47.
22
Ant. Pal., IX. 440.
grande relevância ao fogo; para além dos olhos e das faces, ele possui a chama que
pode inflamar o sol e todas as suas armas foram temperadas no fogo. Sobretudo este
último aspecto é passível de ser associado ao epigrama já referido de Meléagro que
nos diz que a mãe era mulher de Hefesto. Mas há o outro aspecto do amor – as suas
conotações no campo amoroso. Realmente, Eros é constantemente associado ao
fogo. Além das associações feitas neste epigrama, ainda podemos acrescentar as de
que queima a alma, é ardente como o fogo, ou de que possui uma tocha. Tudo isto
é facilmente relacionável com a simbologia do fogo, associado às paixões, principal-
mente o amor e a cólera. O fogo é também símbolo de renovação e de regeneração
periódica, podendo ter um significado sexual. Mas é, por outro lado, uma forma
de purificação e de iluminação, um fogo espiritualizante, associado a ritos de inci-
neração, ao sol, que transmite uma intenção de espiritualização e de luz. Ou seja, a
comparação com o fogo nada tem de secundário no epigrama; pelo contrário, é um
dos atributos do deus que contribui para conservar a ligação à divindade primordial
de Hesíodo, o poder forte, capaz de dominar tudo e todos e, simultaneamente, a
força fecundante, reprodutora. E esta simbologia é mais um dos contrastes deste
epigrama, em que Afrodite procura o filho chamando-lhe escravo fugitivo. Ao po-
der inerente ao deus, contrapõe-se a escravatura, a falta de direitos, que já se vira, até
certo ponto, em autores anteriores, como Eurípides ou Safo, que se referiram a Eros
como sendo o “guarda do quarto nupcial de Afrodite”, ou seu serviçal.
Poderíamos supor que a este tipo de representação estará subjacente uma depen-
dência de Eros relativamente a Afrodite: dado que ambos eram divindades tutelares
do amor, não implicaria isso que um tivesse a supremacia? Como estabelecê-la? A
resposta de alguns estudiosos, nomeadamente dos alegoristas, prende-se com a no-
ção de Afrodite como Urânia, a deusa dos amores castos e a quem se opunha Eros,
ficando assim dependente da deusa, o que parece ser claro por comparação com o
conto de Amor e Psique, em que esta também é designada por Afrodite como sendo
sua escrava.
Há, ainda, o tamanho: Eros é uma criança. E esse aspecto é acentuado pelo
poeta de várias formas: não só pelo própria caracterização como criança, mas pelas
mãos. O poeta usa o diminutivo (mãozitas), tal como faz com o adjectivo – peque-
ninas em vez de pequenas. Esta insistência no diminutivo reforça a pequenez do
deus. Os seus acessórios também são pequenos: o arco e o dardo. Além disso, tem
realmente comportamento de criança: o atrevimento, o brincar, o chorar, o abraçar
e o beijar são características associadas às crianças. Contudo, não é por ser uma
criança pequena, por possuir acessórios igualmente pequenos, que o deus se torna
menos perigoso. Pelo contrário: as mãos são pequenas, como as suas armas, mas
têm um grande alcance. Atingem locais tão afastados como o Aqueronte, o Hades,
o céu. É uma criança, mas cruel nas brincadeiras e enganadora, o que é reforçado
pelas antíteses beijo/perigo e lábios/veneno.
Além disto, há outras antíteses no epigrama: o mau coração opõe-se à doce con-
versa; a voz de mel ao pensamento de fel; a nudez do corpo à ocultação do espírito.
O deus mostra os seus aspectos mais sedutores e é a mãe que chama a atenção para
os outros. Seduz para atrevidamente magoar, ferir, enganar.
E isto traz contrapartidas para o deus. Como criança que é, recebe o tratamento
adequado; mas como ser cruel que também é, vê-se vítima de atitudes mais duras.
Aludi já ao epigrama de Meléagro em que o poeta pretende vender o deus, acaban-
do por se deixar comover pelas suas lágrimas. Há aqui um misto entre a atitude que
se tem para com a criança e para com alguém mais velho. No entanto, outros poetas
há que lhe dão maior punição: estou a referir-me a três epigramas da Antologia de
Planudes, em que o deus nos aparece como prisioneiro23. Para dois dos poetas – Mé-
cio e Crinágoras – esta nova faceta é uma forma de impedir que o deus atormente os
mortais. “Para os mortais as tuas cadeias são o descanso do sofrimento, terror; (...).
Vê a chama que ateavas nos corações mortais, agora extinta pelas tuas lágrimas”,
diz Mécio. Crinágoras insiste noutro aspecto – é um castigo merecido, já que tanto
magoou os homens. Por isso, é escusado esperar piedade, porque não haverá quem
o liberte24. Mas aqui temos nova antítese: Sátiro considera que não vale de nada
prender o deus, pois quem o prendeu estava já prisioneiro do deus25. São, na verda-
de, duas antíteses: o contraste entre o epigrama de Sátiro e os outros dois e o jogo
de palavras que faz do prisioneiro alguém que por sua vez prende os outros.
Mas este grupo de epigramas revela-nos uma outra característica de Eros: tam-
bém é ladrão. Mécio, entre outros vocativos, usa o de “ladrão de corações”, que a
qualquer leitor parece perfeitamente natural. No entanto, num epigrama da Anto-
logia Palatina, Diófanes de Mirina considera que Eros deveria ser chamado triplo
ladrão, com base nos argumentos de que não dorme, é insolente e está sempre
pronto para despojar os outros. Principalmente o último aspecto é corroborado por
um outro epigrama que nos conta que Eros roubou as roupas das Cárites26, muito
embora este episódio esteja mais próximo da criança traquinas e irreverente, cujo
objectivo é assustar ou envergonhar os outros.
Eros, porém, não é sempre um ladrão bem sucedido. Um poema de Mosco
mostra-nos como o deus pode ser atingido da mesma forma que atinge. É o caso
deste poema, em que Eros, estando a roubar mel de uma colmeia, foi picado por
uma abelha:
“Certa vez, estando Eros, armado em ladrão, a roubar cera dos cortiços,
23
Veja-se Ant. Plan., 195, 198, 199, respectivamente da autoria de Sátiro, Mécio e Crinágoras.
24
Ant. Plan., 199: “Chora e geme apertando os músculos das mãos, traidor; mereces isto. Não há quem te venha liber-
tar; não olhes implorando piedade. Tu mesmo desfizeste em lágrimas os olhos dos outros, espetaste no coração setas
amargas e destilaste o veneno dos desejos inevitáveis, Eros. As dores dos mortais são para ti risíveis; és afectado por
aquilo que fazes. É justo.”.
25
Ant. Plan., 195: “Quem reteve assim o deus alado? Quem reteve com cadeias o fogo rápido? Quem tocou a aljava
ardente e amarrou as mãos apertadas, de tiro rápido, prendendo-as a uma sólida coluna? Isto é um vão consolo para os
homens; este mesmo prisioneiro não prendera já a sua alma?”
26
Cf. Ant. Pal., IX. 616: “Um dia, quando as Cárites se banhavam aqui, o pequeno Eros roubou as vestes divinas e
fugiu; deixou-as nuas, envergonhadas de aparecerem fora da porta.”.
É a comparação de Eros com a abelha, não apenas pelo tamanho, mas também
pelo tipo de dor que ambos são capazes de provocar nos outros: do mesmo modo
que Eros é uma criança meiga e doce, também a abelha é um animal minúscu-
lo, mas ambos são capazes de provocar sofrimentos terríveis. Ao mesmo tempo,
deparamo-nos com um meio excelente para punir esta criança insolente e atrevida
– ferindo-a com o mesmo tipo de armas de que ela se serve para atingir os outros.
É, aliás, o mesmo tipo de punição que encontramos no epigrama 251 da Antologia
de Planudes, em que Eros acaba por ser castigado pelas próprias armas que usa, visto
que Némesis criou um segundo Eros.
Mas a figura de Eros é cheia de contrastes. Tal como é um ser irrequieto e im-
pertinente, pode surgir a nossos olhos também como um ser útil, capaz de auxiliar
quem precisa. Eros é, por exemplo, cocheiro do carro da beleza, tarefa que não só
é referida num epigrama de Meléagro, como está atestada em representações de
arte. É possível confirmá-lo pela referência feita a uma ametista em que se encontra
gravada uma representação de Eros, montando um cavalo-marinho e conduzindo-o
com as rédeas, ou ainda por uma moeda de Siracusa, de finais do século V a. C.,
que representa o deus conduzindo a galope uma quadriga, onde se encontra uma
Nice que o coroa.
Outras actividades são atribuídas a Eros, principalmente as que implicam um
maior contacto com a natureza. É assim que nos deparamos com epigramas onde o
deus realiza tarefas de pastor, lavrador ou jardineiro. O poeta Mirino28, por exem-
plo, dá-nos a conhecer um Eros pastor, que guarda o rebanho de Tírsis, enquanto
este dorme à sombra de um pinheiro. Por seu turno, Mosco mostra-nos um Eros
lavrador que, pousando as suas armas, atrela os touros ao jugo para semear trigo29.
Aliás, na mesma Antologia, temos um epigrama em que o próprio deus se vangloria
de ser um camponês modesto, nascido de uma ninfa das redondezas, que apenas
se ocupa dos jardins30. É, aliás, este o mesmo Eros, amigo dos jardins, que encon-
tramos em Dáfnis e Cloe, quando Filetas descreve a criança que encontrou no seu
jardim31: um rapazinho branco como o leite, dourado como o fogo, que, nu e só,
brincava como se o jardim lhe pertencesse. Com uma rapidez incrível, esta criança
27
Mosco, XIX (in Bucolici Græci, recensuit A.S.F. Gow, Oxford, O.C.T, University Press, 1958.
28
Cf. Ant. Pal., VII. 703.
29
Cf. Ant. Plan., 200.
30
Cf. Ant. Plan., 202.
31
Cf. Longo, Dáfnis e Cloe, II. 3-7.
escapulia-se das mãos de Filetas, sempre que este corria atrás dele, receoso de que
lhe estragasse o jardim. Tem um sorriso doce e encanta qualquer pessoa com a
maior facilidade; e uma voz mais suave do que o canto do rouxinol e da andorinha.
O seu ar de criança, contudo, é enganador, como ele mesmo deixa claro ao dizer a
Filetas que não é realmente uma criança, mas que é mais velho do que Crono. É a
associação entre duas divindades – o deus primordial de Hesíodo e o do Amor, que
estava presente quando Filetas, na juventude, cantava e tocava para a sua amada
Amarílis. É o mesmo deus que pretende unir Dáfnis e Cloe.
Mas esta relação com o trabalho, este carácter auxiliador do deus, está também
sujeita a controvérsia. Meléagro apresenta-o como “pescador” de almas, numa fun-
ção – a de pescador – que também está documentada na arte, seja a pescar à linha,
seja, num barco à vela, um grupo de quatro Eros, em que dois remam, enquanto os
outros dois pescam. No entanto, no epigrama de Meléagro, o que parece ser salien-
tado é a sua função de divindade do amor, que apanha as pessoas para o sofrimento
que lhe é inerente.
Por fim, e associado a este aspecto, gostaria de me referir à ligação de Eros com
a natureza e que terá contribuído para que fosse considerado uma força fecundante.
Já fiz referência a um epigrama em que o deus dorme entre botões de rosas, ou à
sombra de plátanos. Mas há também aqueles que comparam com ele um jardim32,
estabelecendo o contraste entre o facto de ser pequeno, mas gracioso. Não é o tama-
nho que torna um deus mais atractivo para os outros, tal como não faz um jardim
melhor, mais encantador. O mesmo se pode dizer dos bosques, frequentemente
associados ao deus. Não desconhecendo que nalgumas regiões da Grécia, o culto de
Eros era realizado em bosques sagrados (como em Atenas ou Leuctras, por exem-
plo), Mariano, o Escoliasta, alude ao bosque de Eros33, fazendo dele uma descrição
maravilhosa: para além das árvores, agitadas por um ‘suave Zéfiro’, possui ainda
um prado orvalhado, flores que brilham por todo o lado, uma cascata de água, uvas
e azeitonas e nele é também possível ouvir o rouxinol e a cigarra. É claramente Eros
como deus da fecundação que aqui está, realçando assim todo o carácter multifa-
cetado deste deus.
Além de tudo isto, e para terminar, Eros é a divindade dominadora. Ao mesmo
tempo que se queixam dos sofrimentos que lhes são causados por este deus, os po-
etas referem também o sofrimento que ele causa aos outros deuses34, ou as ameaças
que lhes faz. Chega, por exemplo, a ameaçar o próprio Zeus, ou a responder-lhe se
se sente ameaçado pelo pai dos deuses. Não será de espantar, pois, que o deus reaja
da mesma forma com outras divindades.
32
Cf. Ant. Pal., IX. 666.
33
Cf. Ant. Pal., IX. 668.
34
Perfeitamente esclarecedor do domínio que o deus exerce sobre mortais e imortais é o oráculo de Apolo, que Apuleio
nos oferece no conto de Amor e Psique, onde o deus é caracterizado como sendo “um monstro cruel, feroz e viperino que,
voando pelo ar, atormenta e fere cada um com fogo e ferro, que faz tremer o próprio Júpiter, por quem as divindades são
assustadas e os rios e as trevas do Estige ficam aterrados.” (Apuleio, Metamorfoses, IV. 33. 1-2).
Há, porém, um epigrama que gostaria de referir, pois apresenta, a par do seu
domínio da natureza, mais um exemplo de uma antítese. É o epigrama de Marco
Argentário que nos mostra o deus montando um leão35:
Para além de estar bem patente o domínio que o deus exerce sobre o rei da selva,
o que comprova a capacidade de Eros para dominar qualquer outro ser mais frágil,
mais efémero, o que me parece ser de realçar neste momento é a oposição entre o
deus, a sua caracterização como criança, e o seu poder, o domínio que consegue
exercer sobre qualquer ser vivo, independentemente da sua condição.
Julgo que é evidente que nas representações de Eros encontramos vários tipos
de antíteses: entre as próprias representações do deus – a divindade primordial de
Hesíodo, o efebo da época clássica ou a criança do período helenístico que tão
facilmente se popularizou. Mas também, dentro de um mesmo tipo de representa-
ção, entre os vários modos como é caracterizado, ou as suas diversas qualidades e
capacidades.
35
Ant. Pal., IX. 221.
F alar de Antígona é falar desse fascínio que dura há quase 2500 anos, no mun-
do literário e artístico, por esta figura criada por Sófocles no teatro grego em
meados do século V a.C. Não temos, como é evidente, a pretensão de estabelecer
aqui, neste curto espaço de tempo que nos foi atribuído, o historial da sua recepção
no mundo das letras ocidental, mas tão somente fixar algumas das suas linhas de
força da sua recepção no teatro europeu e, muito particularmente, no teatro por-
tuguês do século XX.
Propomo-nos pois partir dos traços delineados pelo seu criador e das principais
etapas que marcam a sua actuação enquanto personagem trágica para assim veri-
ficar os pontos de contacto e/ou os pontos de ruptura que as sucessivas reinterpre-
tações face ao hipertexto consagraram em diferentes momentos da nossa história
cultural.
Ao estudar o mito, Simone Fraisse1 distingue na Antígona de Sófocles seis mi-
temas que nos ajudarão a relembrar as principais sequências do enredo e a melhor
delimitar as inúmeras figuras e funções de que se reveste a personagem grega.
1
Simone Fraisse, Le mythe d’Antigone, Paris, A. Colin, 1974.
Pela sua solidão face aos acontecimentos trágicos, graças à sua obstinação e à sua
reivindicação de uma liberdade total, Antígona opera a sua passagem de modelo he-
lénico à consagração de uma figura incontornável do teatro moderno. Até ao século
XIX, o teatro italiano, francês e alemão souberam desvendar os mistérios do texto
de Sófocles através da circulação das inúmeras traduções de Antígona. Da primeira
manifestação em italiano __ estou a referir-me à tradução de Luigi Alamanni em
1533 __ às reproduções em francês de Calvy de la Fontaine em 1542 2 ou de Antoine
de Baïf em 1573 à tradução alemã de Hölderlin em 1804 ou ao drama de Frohne
em 1852, o caminho estava aberto na definição de uma trajectória ascendente rumo
à apropriação e remodelação das sucessivas figuras antigónicas estabelecidas, como
vimos, pelo modelo helénico. Os finais do século XVI coincidirão com o início
daquilo a que alguns chamaram a “cristianização do mito”3. Com efeito, a peça
2
Tradução inédita conservada na biblioteca municipal de Soissons.
3
Retomamos aqui a expressão de Simone Fraisse, op. cit, p. 37.
Esta virgem pagã, firme no seu rochedo da agonia, é a irmã das nossas irmãs
que, todas as noites, nas suas celas, rezam pela absolvição de todos os culpa-
dos do universo.6
Anos mais tarde, Júlia Bartet dá-nos conta, nas páginas que escreve sobre esta
actuação, do seu fascínio pela heroína grega. Vale a pena escutarmos as suas pala-
vras que reflectem o seu percurso no processo de criação desta personagem. Após
breves considerações sobre aquilo que denomina “criação espontânea”, a actriz não
pode deixar de realçar dois aspectos que lhe parecem essenciais na personagem gre-
ga: o culto da família e o culto dos mortos:
4
A peça viria a ser representada em 1944 no teatro Charles-de-Rochefort e, no ano seguinte, no teatro do Vieux-
Colombier numa adaptação de Thierry Maulnier.
5
Pensamos aqui muito particularmente na tradução de Vittorio Alfieri datada de 1776 e representada em Roma em
1782.
6
Maurice Barrès, Le voyage de Sparte, 1906, p.101.
7
Júlia Bartet, “Quand j’étais Antigone”, Comédie Française, 16e année, 5e Liv., p. 457; 460-461.
Ora é sobretudo este último aspecto que, segundo a actriz, representa a essência
do mito de Antígona:
É justamente porque ela é mulher que ela só escuta o seu coração e procede
por intuição. Ora, ao escutar o seu coração, pensando apenas na sua ternura
pelo seu irmão, ela fez a maior descoberta moral da antiguidade: descobriu
a consciência (…) Ao personificar Antígona, nunca antes tinha tido tanto a
sensação de dizer as palavras que valem para todos os tempos e de consagrar
a modéstia dos meus esforços a uma criação concebida sob o aspecto da
eternidade.9
8
Idem, Ibidem, p.462.
9
Idem, Ibidem, p. 464.
10
Referimo-nos à figura da mulher resistente à tirania definida no início deste trabalho.
e, por outro, o culto da família por parte de Antígona que a conduz à revolta contra
a lei civil, contra o abuso de poder, contra toda e qualquer forma de tirania. Quan-
do, em plena ocupação alemã, a Antígona de Jean Anouilh é representada no teatro
de l’Atelier em Paris (4 de Fevereiro de 1944), um passo decisivo é dado naquilo a
que chamamos a “politização do mito”. A figura de Antígona auto-proclamou-se
a voz da Resistência, a voz daqueles que ousam dizer “não” a qualquer forma de
opressão política num olhar renovador sobre o mito e sobre a teatralidade:
É esta figura de rebelião contra o despotismo que será transportada para o tea-
tro português de forma a servir, como em França, o teatro e a política.
António Sérgio, à imagem de Jean Anouilh, fará da sua “obrinha”, como dizia,
desse “estudo social em forma dialogada”, posta a circular clandestinamente em
1931 como “manifesto-drama”, a proclamação dos “direitos da livre consciência
humana e da lei racional, a que se leva o espírito, eterna e imprescritível”12. O
autor português soube acompanhar a evolução do olhar sobre o mito fazendo com
que este ascenda ao plano mais trágico das acções, o plano da consciência:
Anos mais tarde, a Antígona de Júlio Dantas, representada pela Companhia Rey
Colaço-Robles Monteiro no Teatro D. Maria II a 20 de Abril de 1946, marca mais
uma etapa na edificação da figura política de Antígona. Suspeita de conspiração
contra o rei, o autor coloca a figura feminina dotada de um forte sentido político.
Ao “revoltar-se contra a injustiça dos fortes”14 em nome do cumprimento do dever
11
Jean Anouilh, Antígona, tradução de Manuel Breda Simões, Lisboa, Ed. Presença, 1965, p. 17.
12
António Sérgio, Pátio das Comédias, das Palestras e das Pregações. Jornada Primeira-Jornada Sexta, Jornada Sexta,
Lisboa Inquérito, 1958, 28.
13
A. Campos Matos, Diálogo com António Sérgio, Lisboa, Ed. Presença, 1989, pp. 23-24.
14
Júlio Dantas, Antígona, Peça em 5 actos, inspirada na obra dos poetas trágicos gregos e, em especial na Antígona, de
A esta nova consciência assim reabilitada pelo texto dramático português alia-
se, do ponto de vista da representação, a questão da teatralidade. Tal como Jean
Anouilh o tinha perfeitamente conseguido no palco francês, também António Pe-
dro, melhor que ninguém, soube trazer esta problemática para a luz da ribalta,
numa tomada de consciência de que aquilo que se observa é a própria vida que se
quer imitar e apreender, alinhando, no palco, ilusão e realidade:
que a nossa própria voz […] Vão entrar Antígona e Isménia que, como Po-
linices e Etéocles, são filhos de Édipo e de Jocasta que era sua mãe e foi sua
mulher. O pai arrancou os olhos quando soube do incesto em que vivera. A
mãe enforcou-se no cinto da sua própria túnica. Tudo o que fizeram, tudo
o que vão fazer, excede a medida quase sempre miserável do homem. Por
isso o comovem. Não são gente: são personagens de tragédia. Dá a luz toda
aqui à frente. Não, não! Vermelho deste lado e verde daquele para as figuras
contrastarem bem.19
do tema, não se afastando da estrutura do modelo sofocliano; e a dos que […] da-
riam primazia à visão da Antígona-mulher, rompendo com a estrutura referencial”23.
Nesse sentido, não poderíamos terminar sem uma breve mas necessária referência à
visão feminina que, nos anos 50, emergiu em Portugal e que, em jeito de antítese, se
sobrepôs a esta visão masculina, viril e heróica de Antígona. Hélia Correia afirmará
a propósito da criação sua heroína em Perdição – exercício sobre Antígona :
Não quis degradar a dimensão heróica de Antígona, mas dei-lhe mais uma
humanidade, até porque a tomei na infância e acompanhei o seu crescimento
doloroso, o que implica uma aproximação mais afectiva à personagem.24
Eis pois que os mortos se recolherão para sempre e não mais poderão ser
vistos nem ouvidos.
Também as malhas do destino estão abertas. Já não prendem ninguém.
Como Antígona e a Ama no seu túmulo, como Creonte no seu torno, os
homens estão a partir de agora completamente sós. Ignorarão as outras lin-
guagens. Sentirão o pavor, o frio do Inverno, e nada nem ninguém lhes há-de
responder.
Hão-de ser cavalgados pelo orgulho e pelo desespero. Pararão a um passo
dos abismos. E ficarão a vida inteira a perguntar-se como teria sido se ousas-
sem e perdessem. Como a pequena Antígona.25
23
Carlos Morais, Máscaras portuguesas de Antígona, Univesidade de Aveiro, colecção Ágora-Suplemento, 2001, p. 10.
24
Jornal de Letras, 21.9.1993, p. 25.
25
Hélia Correia, Perdição – exercício sobre Antígona, Florbela. Teatro, Lisboa, D. Quixote, 1991, p. 58.
26
Georges Steiner, Antígonas, Lisboa, Relógio d’Água, 1995, prefácio.
27
António Pedro, op. cit., a voz do encenador, pp. 257-258.
28
Apresentamos aqui uma listagem das estreias (e não de todas as representações), nas diferentes salas de espectáculo
portuguesas, das peças dramáticas que põem em cena a personagem de Antígona a nível do teatro profissional e amador.
Baseamo-nos, para o efeito, sobretudo na obra coordenada pela prof.ª Maria de Fátima Sousa e Silva, Representações de
Teatro Clássico no Portugal contemporâneo, Edições Colibri-Facudade de Letras da Universidade de Coimbra, 1998, na
qual poderão encontrar dados complementares relativos ao teatro lírico e escolar, entre outros.
Sófocles, Antígona
1
O espectáculo intitulado Viagem à Grécia: fragmentos e Antígona incluía, para além do texto de Sófocles, excertos de
Sophia de Mello Breyner Andersen.
2
O espectáculo produzido pela companhia do Algarve ACTA teve por título A Tumba de Antígona e teve em digressão
por Portimão, Albufeira, Tavira, Loulé, Vila Real de Santo António e Almada, de Novembro a Janeiro de 2005.
1. É sabido por todos os helenistas que o verbo “ser”, em Grego clássico, einai, é
correntemente usado com quatro sentidos, para nós totalmente distintos:
1. predicativo – A é B;
2. existencial – A existe;
3. identitativo – A é A;
4. veritativo – A é verdade.
mando e negando “é”: 6.3-9), forçados pelo “hábito dos olhos, ouvidos e língua”
(7.3-5a). Por isso, não compreendem que o ser:
3
Aquilo que Platão expressará pela identificação do ser e das Formas com o saber.
4
Se o digo, é porque é (constituindo o discurso como uma outra realidade); se é, é verdade e existe, com os atributos que
lhe são conferidos: vide Eutidemo 283e-284c, passim; Crátilo 429d-430a; Teeteto 167a. O diálogo platónico Eutidemo,
bem como o tratado aristotélico Refutações sofísticas, são dedicados ao inventário das inúmeras falácias a que os sofistas
recorriam para exibirem a sua perícia em disputas verbais.
tas por einai não se manifestam no nosso verbo “ser”, residindo na fusão5 dos quatro
sentidos do verbo grego, de forma a nenhum deles emergir separado, originando
confusões e falácias, já na Antiguidade exploradas pelos sofistas. Veja-se o seguinte
trecho do frg. 3a, de Górgias:
“Pois, se o não ser (to mê einai) é(1)6 não ser, o não ser (to mê on) é(2) não
menos que o ser (tou ontos). Pois, o não ser (to mê on) é(3) não ser e o ser ser;
de modo a as coisas (ta pragmata) serem(4) (einai) nada mais do que não
são(5).”
5
A metáfora da fusão foi cunhada por M. Furth, “Elements of Eleatic Ontology”, Journal of the History of Philosophy
6, 1968, 111-132. O problema da “fusão” não se reduz ao da “confusão”, como pretende J. Barnes (), mas na nossa
incapacidade de a compreender.
6
As traduções de einai foram numeradas para facilitar a referência.
7
Foi para resolver problemas destes que a Teoria das Formas terá sido concebida: vide Parm. 129a-130a.
8
Se os encararmos como nomes das classes das coisas “que são” e “que não são”, além de propriedades pelas quais as
coisas “são” e “não são” (Parménides 2.7, 3, 6.1-2 passim).
9
Ou seja, coisas que não existem, que não são o que são (porque mudam), que não são outras.
10
Foi para evitar este paradoxo que, supõe-se, Antístenes, ou um pensador anónimo, interditou toda a predicação não
identitativa (Platão Sof. 251b-c; Aristóteles Met. V 1024b32-33). O interdito abole ainda o equívoco da leitura da ne-
gação, como contradição e diferença: “Um cavalo não é um boi”, logo, não é um cavalo e não existe (vide Plat. Eutid.
297d-298e, na tradução de Adriana Nogueira para Imprensa Nacional-Casa da Moeda, de 1999).
da existência, como predicado separado: o que quer que não seja, predicativa ou iden-
titativamente, não poderá existir (porque “só o ser pode ser, enquanto o nada não
é”: Parménides 6.1b-2a).
mente existente”, “ser que realmente é”, ou semelhantes. Todavia, sejam quais forem os termos escolhidos, o sentido da
expressão não pode ser captado pelo leitor, se ignorar a problemática que a justifica.
O anacronismo é só aparente, pois a terminologia filosófica da tradição forma-se a partir da obra de Aristóteles,
14
muito mais do que da de Platão. Aliás, a compreensão global e crítica da teoria das Formas acha-se expressa na obra do
Estagirita, não nos diálogos platónicos.
15
A questão é a da distinção do “é” da existência do da predicação (Mill, Logic I.IV.I; vide C. Kahn, “The Greek Verb
“To Be” and the Concept of Being” Foundations of Language 2, 1966, 245-265; The Verb ‘Be’ and its synonyms, The
Verb ‘Be’ in Ancient Greek Dordrecht/Boston 1966. Mas evidentemente não poderemos esquecer a discussão kantiana
sobre a existência, como predicado. Para o debate sobre o “é” existencial, no Sofista, vide G. Owen, “Plato on not-being”
Plato I, G. Vlastos (ed.), Garden City 1971, 223-265) e a crítica de Lesley Brown, “Being in the Sophist: a Syntactical
Enquiry” Oxford Studies in Anc. Ph. 4, 1986, 49-70.
de que foi alvo desde o século do florescimento do género literário em questão até
à Época Imperial.
Assim, o coro em Séneca proporciona momentos especialmente interligados
com a acção dramática, apesar de muitas vezes se revelar desconhecedor do rumo
da acção, tal como acontece no início da segunda ode coral de Tiestes. Efectivamen-
te, o coro não é apenas um entremez com a funcionalidade de fazer a separação dos
cinco actos canónicos. Prova disso mesmo é o tratamento feito de temas muitas
vezes explorados, essencialmente, pelos poetas líricos e elegíacos latinos da Época
Clássica. Numa sequência bastante linear da tradição literária, Séneca herda temas
e motivos – que acabam por se transformar em topoi – também já característicos
da produção literária dos poetas arcaicos gregos, como Safo, Alceu, ou mesmo,
Arquíloco.
Temas como o perfil e actividades do rei ideal, o otium, a ataraxia, assim como
a instabilidade e fragilidade da existência humana, topoi expressos no motivo maior
que é a breuitas uitae, ou ainda a saudade ou nostalgia da mítica Idade do Ouro
adquirem significações diversas daquelas que detinham em épocas anteriores, facto
bem espelhado ao longo de algumas odes corais de Tiestes e Agamémnon.
De entre os temas anteriormente referidos, surge um que justifica a sua impor-
tância pela grande actualidade que em si encerra: os privilégios do poder real e o
perfil do governante ideal.
Sendo este um tema que ocorre em algumas odes corais senequianas, destaca-se
a reflexão feita sobre ele na segunda intervenção do Coro em Tiestes, onde é ma-
nifestada a crença de que as qualidades de um bom Rei não são mensuráveis em
termos materiais, mas, única e exclusivamente com base em critérios e propriedades
morais. Por isso, os versos 348 a 368 permitem a enumeração dos verdadeiros va-
lores pelos quais se deve reger, constantemente, o governante ideal; destes valores
indispensáveis na conduta do bom Rei destacam-se aqueles que permitem que o
governante enverede pelo caminho da bona mens e que, simultaneamente, possa
ser comparado a um sábio estóico. Por oposição, são referidos nos versos anteriores
(versos 345 a 347) os elementos cuja posse deve o rei ideal desprezar, pois não são
eles os símbolos de uma verdadeira realeza1; a riqueza e as possessões materiais não
têm importância e valor, quando comparadas com elementos tão essenciais quanto
os elementos de foro moral e relacionados com valores que devem ser cultivados no
1
Regem non faciunt opes,
non uestis Tyriae color,
non frontis nota regia,
non auro nitidae trabes :
vv. 344-347
2
Me dulcis saturet quies,
Obscuro positus loco
Leni perfruar otio,
Nullis nota Quiritibus
Aetas per tacitum fluat.
Sic, cum transierint mei
Nullo cum strepitu dies,
plebeius moriar senex.
vv. 393-400
3
Cf. Garcia Fuentes, M.ª Cruz, «Presencia Horaciana en los coros de Séneca», pág. 93: «Ambos presentan muchos
puntos en común a lo largo de su existencia: son poetas, están cercados de poder, sus protectores les obsequian con todo
tipo de dádivas, pregonan y practican la ética y la moralidad estoica; detestan la ambición, el afán de acumular riquezas;
aconsejan a disfrutar del presente sin preocuparse por el futuro y se inclinan por la áurea mediania.»
uma desordem cósmica4 que essa, sim, encontra paralelo na vida real.
Perante a nefasta sympatheia tôn olôn dos elementos naturais face aos crimes
perpetrados5, o Coro assume um tom pessimista que acaba por dominar a produção
trágica senequiana. Na verdade, a tragicidade dos coros senequianos é veiculada
pelo pessimismo incutido aos topoi da literatura latina a que recorreu Séneca.
Temas como a brevidade da vida, a fragilidade da condição humana, o ideal da
ataraxia, ou ainda a fruição do dia que passa sob o olhar atento do destino que rege
a vida humana são motivos literários extremamente explorados pelos autores líricos
da época Augusta, em quem Séneca bebe toda a sua influência. No entanto, ao lon-
go das odes entoadas pelo Coro, quer em Tiestes, quer em Agamémnon, os temas são
aproveitados de uma forma bastante distinta, se tivermos em conta o simbolismo
que estes mesmos adquiriam na produção poética do século I d.C.
Com Séneca, os topoi literários abordados distanciam-se já da ideologia que
tinham adquirido durante o áureo período da Pax Augusta. A Idade da perfei-
ção, tantas vezes cantada pelos poetas alexandrinistas e muitas vezes louvada por
Horácio e Virgílio (como constatamos na Bucólica I) não passa de uma miragem,
quase como se nunca houvesse existido. A referência ao cataclismo universal, bem
como à ingente desordem cósmica por ele provocada, alude bem à impossibilidade
de retorno a uma idade que parece ter tido a sua expressão máxima no Século de
Augusto. É a diferença existente entre Séneca e os líricos: estes últimos tomaram
contacto com a Idade do Ouro propriamente dita, enquanto Séneca apenas pode
ansiar nostalgicamente por essa era mítica.
A degradação, em termos de valores e princípios, implicitamente tratada pelos
temas corais, reflecte-se num tema fulcral e de grande importância para a compre-
ensão de uma época: o ideal de governante.
Este tema surge disseminado ao longo das duas tragédias – nomeadamente no
terceiro Coro de Agamémnon e no segundo de Tiestes – demonstrando, desta forma,
as concepções filosóficas, estóicas e epicuristas, que presidem à definição de um
governante correcto e justo, do qual não foram representantes Agamémnon, nem
tão pouco Atreu, seu pai.
Pretende-se, portanto, através da reflexão profunda em relação a este tema, uma
abertura simultânea à reflexão sobre os meandros do poder na época coeva a Séneca.
A tirania, situação política que Séneca vive intensamente, é duramente repudiada e
posta em contraste supremo com a forma de governo ansiada para a grande cidade
de Roma; a corrupção de costumes é fortemente criticada, tal como acontecia no
décimo sexto Epodo horaciano, através do qual o povo romano era severamente
Os versos 830 a 874 de Tiestes reflectem o conjunto de premonições feitas pelo Coro, em relação ao que se irá suceder
4
no plano cósmico, depois da subversão da ordem natural provocada pelos crimes hediondos cometidos por Atreu.
5
A alusão ao desvio do olhar de Febo Apolo, símbolo do abandono a que a luz solar expôs os seres humanos, faz denotar
a conspurcação de que é alvo o cosmos, após os crimes perpetrados. A recusa dos elementos naturais em participarem
no sangrento banquete estende-se, por consequência, aos elementos do Coro; efectivamente, o horror e incredibilidade
sentidos são expressão da repulsa e do intento de alheamento perante os nefastos acontecimentos.
condenado6.
Por isso, os temas sobre os quais reflecte nas suas odes não são mais do que pro-
jecções gerais dos problemas encontrados na sua própria sociedade, bem como das
soluções que se lhe afiguram como as mais acertadas e correctas moralmente.
Temas que tinham sido anteriormente abordados pelos líricos como reflexo po-
sitivo de uma época de prosperidade em termos políticos e sociais passam a ser
conotados de uma forma pessimista. A aurea mediocritas, a brevidade e fragilidade
da vida, enquanto topoi, passam a ser vistas como o símbolo da decadência de uma
época, por contraste com a perspectiva extremamente positiva a que foram associa-
das, por intermédio da produção literária doa autores líricos da época Augusta.
Assim, os coros revelam, na sua estrutura, uma fundamental antinomia latente
entre ócio e vida pública que, apesar da aparente contradição, podem ser concilia-
dos e, num plano mais abrangente, funcionam como contraste face à sociedade e
época da produção dramática.
Com Séneca surge uma alteração no âmbito da tradição literária e os topoi, tão
frequentemente postos ao dispor da literatura Latina, alteram-se de modo conse-
quente, para demonstrar a degradação vivida na sua época e personificada, paradig-
maticamente, pela figura máxima do Império: Nero.
Desta forma, os coros senequianos evidenciam-se como a forma mais eficaz e
velada de preconizar um grito de revolta contra os excessos vividos pela sociedade
romana, tão contrário ao sentido moral e filosófico do poeta.
BIBLIOGRAFIA
HORACE, Odes et Épodes. Texte établi et traduit par François Villeneuve. Paris,
Les Belles Lettres, 22002.
DAVIS, P. J., «The Chorus in Seneca’s Thyestes», CQ XXXIX.2 (1989), pp. 421-
435.
ainda o sabor a trevas instalado na cena, Helena repete, com arroubos de lirismo,
o luto familiar, transformando até, por efeito da emoção, as dúvidas em certezas. A
morte de Menelau, que Teucro mencionara como apenas um boato, é agora lamen-
tada como um golpe efectivo a penalizar uma Helena na realidade inocente (203-
211, 277-279). E a somar ao rol de vítimas que, por seu intermédio ainda que contra
sua vontade, partiram deste mundo, a suposta viúva de Menelau acrescenta-se, à
lista das suas vítimas, ela que ‘para todos os efeitos está morta, mesmo se em vida’
(285-286). Mata-lhe a alma a consciência do seu papel aniquilador; mas morta está
também Helena para todos aqueles que dela apenas conhecem o fantasma de opró-
brio que, em Tróia, oculta a realidade honesta e sofredora da verdadeira Helena.
A ideia de que Menelau está morto, que a heroína elabora e acentua, permite
algumas breves e interessantes reflexões sobre a morte e a incidência que tem entre
os philoi. A sorte de uma viúva, compelida ao abandono ou a uma nova aliança que
repugna, repõe a questão antes suscitada por Teucro do efeito que sobre os vivos im-
primem os que deixam a vida. Algo se desenraíza na existência de um ser humano,
quando os que lhe são próximos se lhe antecipam no caminho do Hades. Sente-o
Helena na dor de uma vida onde o elo que a unia ao marido se quebrou (293-299);
do mesmo modo que o experimenta Teucro, exilado da pátria e da família pela
morte do irmão. Suicídio é, por isso, uma ideia que sobrevém, para redimir uma
vida sem sentido e, quem sabe, para proporcionar à sua vítima um lastro de glória.
Quando à forca, uma solução vergonhosa e inaceitável, Helena prefere a dignidade
do golpe de uma espada (299-302), a memória de Ájax, o irmão de Teucro, regressa
ao nosso espírito (94-102). Nesta conclusão sobre o desaparecimento de parentes
que conduz ao aniquilamento dos que lhes sobrevivem, como que se encerra um
primeiro movimento da peça, que impõe a rainha de Esparta como um agente de
irremediável condenação.
Atingido este ponto extremo, o coro lança uma tábua de salvação que permite
o início de uma caminhada ascendente em direcção à luz. Quem sabe se afinal o
boato que chegou da morte de Menelau é falso e o herói e marido não está, apesar
das aparências, vivo … (306-307). Aqui começa uma espécie de ressurreição para
o Atrida, como também para Helena, que se alongará em sucessivas etapas até à
redenção total. As dúvidas que o coro levanta justificam uma consulta à profetisa
Teónoe; e, por vistosa consequência, Menelau em pessoa e a resposta tranquili-
zadora da sacerdotisa chegam ao mesmo tempo. Inverte-se por completo o negro
pressuposto anterior: Menelau está vivo. Mas nem por isso a salvação e o restabe-
lecimento do herói no curso normal da existência são imediatos. Porque, antes de
mais, Menelau vive para sofrer um novo processo de perigo e de ameaças de morte.
Neste sentido, o Egipto funciona para o Atrida como uma segunda Tróia, de onde,
com todos os riscos, vai tentar outra vez resgatar Helena.
É através de uma velha porteira que lhe chega o eco dos primeiros perigos (439-
440). Impotente em si mesma, a velha dispõe apenas de um azedume agressivo
para transmitir uma tremenda mensagem: há perigo de morte para os Gregos, no
limite, à ideia de suicídio, esse belo quadro de aniquilamento romântico que une
para sempre dois amantes desesperados à sombra do túmulo, sempre sob o patro-
cínio compadecido de Proteu (982-987). A caminho da vida e da felicidade, ou da
morte e da pacificação final, Menelau não abdica do seu papel de salvador de He-
lena da ameaça de rivais indesejados (989-990). Toda esta crise faz da iminência da
morte a senhora da cena. Mas a morte não é, no contexto de uma peça de aventuras,
portadora de pena e de terror, como entidade punitiva ou fatalmente destruidora.
Por trás das sombras que a moldam oculta-se o brilho da racionalidade, que a torna
numa alternativa de vida e num argumento poderoso de salvação.
Não surpreende, portanto, que, quando obtida a anuência de Teónoe os dois
fugitivos passam à execução do dolo do faraó, a morte simulada apenas em palavras
‘seja o seu recurso principal: que Menelau, vivo, consinta em ser declarado morto’
(1050) é a chave de um plano de que Helena é o cérebro. A Helena que sofrera dos
males da duplicidade é a mesma que agora receita o desdobramento de personali-
dade como caminho de salvação. Coniventes na estratégia, os dois compõem nos
pormenores um quadro convincente de morte, a que não faltem prantos e trenos,
o cortejo fúnebre do náufrago sobre as próprias ondas que o vitimaram, a presença
dolorosa da viúva e dos companheiros enlutados. A Menelau cabe, no drama que se
encena, um duplo e contraditório papel: o de, em vida, se tornar mensageiro da pró-
pria morte. A caminho da redenção, Menelau completa um trajecto que a peça tinha
anunciado desde o princípio: dado como morto na mensagem de Teucro, o senhor
de Esparta pisa vivo o solo egípcio; mas para que, além da vida, possa recuperar o
status de soberano e de herói, bem como as prerrogativas de marido, é preciso liqui-
dar o náufrago, para que o verdadeiro Menelau renasça enfim das próprias cinzas.
No contraste entre os véus de viúva que revestem Helena com os trajos condignos
que finalmente envolvem Menelau (1087-1089, 1186-1190, 1281-1283, 1383-1384),
Eurípides dá ao seu público o efeito visual de uma espécie de rito de passagem que
redime e traz de volta à luz uma alma ensombrada. Funeral e bodas conhecem,
num grande momento de teatro, uma paradoxal harmonia. Helena, por seu lado,
demite-se do papel de fada de destruição para, sob as cores do luto, se assumir como
talento protector. Cada um dos heróis acaba, portanto, de cumprir o seu destino,
para ganhar, por mérito próprio e por generosidade divina, o tão desejado regresso
à normalidade e à vida. O último obstáculo, a paixão de Teoclímeno por Helena,
vence-se com facilidade, porque o dolo vai ao encontro dos anseios mais profundos
do faraó: a cedência da amada e a morte de Menelau. Morte e amor ganham, nesta
ficção enganadora, uma expressão de ironia vistosa, que usada com mestria pelos
senhores de Esparta lhes garante vida e fuga bem sucedida. Para trás ficou uma rota
de sofrimento, ditado pelos caprichos de um acaso que tem prerrogativas de um
verdadeiro deus (711-715): “Como a divindade é coisa insondável, flutuante e vária.
É ela quem revolve a seu bel prazer, conduzindo-o de um lado para o outro, o nosso
destino. É um que sofre, outro que escapa durante um tempo para logo mergulhar
na desgraça. Porque impossível é gozar uma ventura estável durante a vida inteira” –
Carmen Soares
U. Coimbra
carmensoares@iol.pt
1
Sobre a noção de , tradicionalmente traduzida por ‘amizade’, indicamos apenas alguns títulos bibliográficos
de referência: F. Oliveira, “O conceito de filia de Homero a Aristóteles”, Humanitas 25-26 (1973-74) 217-35; M.
Scott, “Philos, philotês and xenia” AC 25 (1982) 1-19; M. W. Blundell, Helping friends and harming enemies. A study
in Sophocles and Greek ethics (Cambridge 1989); D. Konstan, Friendship in the classical world (Cambridge 1997) e “Re-
ciprocity and friendship”, in G. Gill et alii, edd., ' (Oxford 1998) 279-301.
2
De que os mais célebres exemplos são os casos da esposa de Candaules, da rainha Masságeta, Tómiris, de Artemísia de
plano de salvação do marido e de apenas quatro dos seis filhos que possuía, uma
vez que os outros dois serviram de passadiço colocado sobre o brasido que rodeava a
casa em chamas. No entanto a motivação destas mortes, sublinhe-se, é de natureza
altruísta, factor que, de alguma forma, retira ao filicídio os contornos de crime he-
diondo. De reter também a expressão clara de uma aliança de esforços maternos e
paternos, cabendo à mãe conceber o plano e ao pai tomar a deliberação de executá-
lo (nítida distinção dos papéis diversos reconhecidos a cada um dos educadores).
Na mesma linha de construção narrativa insere-se o episódio da salvação de
Ciro recém-nascido, futuro rei dos Medo-Persas (I 111-113). Atemorizado por uma
possível usurpação do trono, anunciada em sonhos (I 107), Astíages, senhor da
Média e avô de Ciro, ordena a exposição do bebé às feras. A boa estrela do infante
quis, no entanto, que não fosse essa a sua sorte3. Entregue por Hárpago, homem de
confiança do monarca, às mãos de um boieiro, o filho de Mandane escapou à morte
graças à sábia intervenção da que veio a ser a sua mãe adoptiva, a esposa do refe-
rido boieiro. Desta feita trata-se de uma inteligência astuta, materializada no dolo
da substituição de Ciro pelo seu filho nado-morto. Vestido com os atavios reais, o
bebé do humilde Mitradates passava na perfeição pela criança condenada. Executar
o plano delineado pela mulher oferecia, julgamos nós, ao boieiro a vantagem acres-
cida de prover a sua casa de descendência e de não incorrer no crime reprovável de
matar um inocente (I 112, 3).
Ao embuste terá igualmente que recorrer uma mãe grega, Labda de Corinto,
para salvar a vida do seu filho, o anunciado usurpador do poder da cidade. Temen-
do o cumprimento do oráculo, a família da progenitora, os Baquíadas, delibera a
morte à nascença do futuro governante, Cípselo (V 92 ). Tal como sucedera na
empresa de Creso para preservar a vida de Átis, também aqui a tyche comanda os
destinos humanos. Contemporânea da obra de Heródoto, a tragédia grega do séc.
V a. C tinha como ingrediente obrigatório do pathos dramático a determinação
inflexível do Destino. Os mortais, se bem que subjugados aos deuses e à Moira, não
se reduzem, porém, ao papel de espectadores passivos do teatro da vida humana. Há
os que lutam inutilmente contra as decisões do fado – como Creso, pela salvação
de Átis – e os que – como Labda – contam com a colaboração da ‘Sorte dos deuses’
( , V 92 3). Num primeiro momento foi esta o agente da salvação,
uma vez que, com um sorriso inesperado, a criança desarmou dos seus propósitos
o algoz. Quebrando o pacto anteriormente firmado com os restantes membros da
pseudo-embaixada de felicitações aos pais do infante, o visitante que primeiro segu-
rou nos braços o menino não o lançou de imediato ao chão. Já no exterior da casa,
os dez enviados acusam-se mutuamente do fracasso da missão, decidindo voltar
atrás para terminar o serviço. É então que a progenitora, astutamente colocada à es-
cuta, arquitecta a forma de ludibriar os assassinos. Escondendo o filho no sítio mais
Halicarnasso, conselheira militar de Xerxes, e de Améstris, esposa deste mesmo soberano.
3
Como dirá Astíages ao neto, no momento do seu reconhecimento no filho do boieiro: é graças ao teu destino que te
encontras vivo (I 121).
improvável de ser encontrado, uma colmeia desactivada, que se julga ladeada por
outras em funcionamento, Labda contribui para o sucesso que o destino reservava
ao seu rebento. Diferentemente do sucedido com Ciro, na presente situação coube
em exclusivo à mãe a elaboração e a execução do plano de salvamento do recém-
nascido em perigo.
Com o modelo do progenitor-salvador mal sucedido prende-se a atitude de
vingança. O assassinato de um filho desperta, tanto na figura paterna como na
materna, a mais profunda mágoa, justificativa mesmo de cruéis ajustes de contas.
Do lado bárbaro é a rainha viúva dos Masságetas quem protagoniza a aviltante hu-
milhação do responsável pela morte do seu filho (I 212-214). Coberto de vergonha,
devido à captura por Ciro do seu contingente embriagado, o príncipe Espargápises
tomara a única decisão honrosa à luz do código guerreiro: suicidar-se4. Aos títulos
de suserana poderosa, estratega excelente e combatente exímia, soma o de mãe vin-
gativa. Derrotados os Persas na mais violenta das batalhas travadas entre Bárbaros
(I 214,1), a rainha presta homenagem à memória do filho, ultrajando o cadáver
do inimigo através da imersão da sua cabeça num odre de sangue. Por ser viúva,
Tómiris está de alguma forma constrangida a somar ao seu tradicional papel de
referência materna o de referência paterna. Se juntarmos a essa contingência o facto
de Tómiris pertencer a uma das etnias bárbaras mais primitivas, a dos Masságetas,
mais verosímil se torna para o destinatário grego das Histórias este retrato de mãe,
vingadora implacável.
O padrão social helénico não reconhece à mãe um tal poder, que mais a apro-
xima do código masculino do que do feminino. É certo que Tómiris não é um
exemplo de uma mãe comum, nem mesmo Bárbara. Contudo era no seio de uma
comunidade não grega que ainda se podiam encontrar mulheres guerreiras, descen-
dentes das Amazonas, as Saurómatas (IV 110-117). Era também do conhecimento
do público contemporâneo de Heródoto que, no âmbito do mito e da literatura trá-
gica, figuravam mães portentosas, basta lembrar uma Clitemnestra (Grega) e uma
Hécuba (Troiana). Heródoto, através do retrato de Feretima de Cirene, demonstra
ainda que, mesmo ao nível da realidade histórica, não há uma distinção absoluta
entre uma soberana bárbara e uma grega. É verdade que Feretima vê recusado o
pedido de oferta de um exército, solicitado ao tirano de Salamina de Chipre. Quem
lhe vai proporcionar os meios para tirar desforço armado do assassinato do filho é
um Persa. Semelhante colaboração, para além de proporcionar ao Bárbaro o pre-
texto para atacar mais uma população grega, não provoca nenhuma fricção com o
código social feminino do seu país. Como anota Heródoto já para o final da sua
obra, a oferta de um exército a uma mulher constitui um presente tipicamente persa
(IX 109, 3). Aliás, a saga da vingança da mãe do ex-tirano da colónia grega norte-
africana remata com a confirmação do que poderíamos chamar de “barbarização”
4
Vd. A. J. L. van Hooff: “espera-se que um chefe, se for derrotado, ponha termo à vida” (From autothanasia to suicide.
Self-killing in classical antiquity, London 1990, 108).
5
Em IV 43 indica-se a empalação como o castigo recebido por um sobrinho de Dario, punido desta forma pelo seu cri-
me de violação de uma nobre persa (IV 43). Também Polícrates, tirano de Samos, será morto e empalado por um persa,
Oretes (III 125, 3). Quanto à condenação da prática de empalar os vencidos, leiam-se as seguintes palavras do general
Pausânias: Semelhante comportamento convém mais a Bárbaros do que a Gregos; todavia, mesmo àqueles, censuramo-lo (IX
79, 1).
corpo da princesa. O texto grego, no que toca à atitude da jovem, é claro: trata-se
de ordens ( ) que se limita a executar ( , II 121 e 3).
Embora não aceite pela moral grega, o comércio do corpo de mulheres livres é uma
prática que, em vários passos da obra, Heródoto deixa perceber como característica
da alteridade do Bárbaro6.
Nem sempre, contudo, um descendente é tão submisso como a filha de Ramp-
sinito. Magoado com o homicídio de uma das pessoas que, provavelmente, mais
amava, a mãe, Lícofron de Corinto corta relações com o responsável pelo crime, o
pai (III 50). A forma como Periandro reage ao mutismo e total indiferença do filho
espelha o perfil de um progenitor autoritário, incapaz de assumir uma atitude afec-
tiva. Essa incapacidade percebe-se pelo facto de ser apenas com argumentos e razões
de natureza político-social que empreende esforços sucessivos para reconduzir ao
lar Lícofron. A expulsão por si decretada não passara de uma reacção impulsiva ao
alheamento deliberado do jovem. Porém, privado por decreto do pai e por vontade
própria de todo o apoio de conhecidos e amigos, Lícofron em breve se vê reduzido
à condição miserável de mendigo. Esta pareceu ao tirano de Corinto a ocasião
perfeita para chamar o filho à “sua” razão. Bastava-lhe submeter-se à vontade do
pai. E, em troca, receberia o quê? O poder e o património paternos. Estes são os
valores, exclusivamente materiais, que Periandro pode oferecer ao filho. Fracassada
uma primeira aproximação, só a velhice levará o tirano a uma nova tentativa de
reconciliação. As palavras que lhe atribui Heródoto não escondem quaisquer laivos
de arrependimento, o que significaria uma revisão dos valores comungados por este
pai. Acima de tudo, Periandro mantém-se inflexível até ao fim, uma vez que o mo-
tivo que o leva a trazer o filho a Corinto é de natureza política e não emotiva, i. e.,
resume-se à sua incapacidade para continuar a controlar e a administrar os assuntos
do estado (III 53, 1). À imagem do sucedido com outros pais bárbaros acima men-
cionados –Creso, Hárpago, Eobazo e Pítio– também este Grego acaba por perder o
filho em quem depositava todas as esperanças7. Uma vez mais coube à descendência
pagar com a vida a culpa dos progenitores.
Para o fim do nosso estudo guardámos um episódio que harmoniza o conflito
que se pode gerar entre a philia familiar e a política. Não raro, como vimos acima,
as relações mútuas de solidariedade entre pais e filhos vêem-se comprometidas pelo
apoio ou obediência de um dependente ao seu senhor. Em tais circunstâncias a per-
da da geração constitui para os progenitores um dano insuportável, transmitindo-se
ao receptor das Histórias uma mensagem clara de lamento do infortúnio doméstico.
6
Vejam-se os casos das raparigas lídias solteiras, obrigadas a prostituirem-se para angariarem o próprio dote (I 93, 4
e 94, 1), o das Líbias Gindanes (cujo mérito era avaliado pelo número de homens que as possuíram, IV 176), o uso da
partilha comunitária dos serviços sexuais das mulheres entre os Masságetas (I 216, 1), os Agatirsos (IV 104) e os Nasa-
mões (IV 172, 2) e a prostituição sagrada, praticada na Babilónia (que consistia em que todas as mulheres tivessem de
vender o seu corpo, uma vez na vida, no interior do templo da deusa do amor, Milita, entregando à divindade o soldo
obtido, IV 199).
7
Tal como o rei da Lídia, o outro filho varão que possuía tinha uma enfermidade, desta feita do foro mental, que não
o habilitava à governação (III 53, 1).
O exemplo do persa Boges (III 107) oferece a particularidade de, (pelo menos) aos
olhos da mentalidade do seu povo e na opinião de Heródoto, ilustrar como o sa-
crifício da vida dos filhos pode ser enquadrado na glorificação do pai. Realmente,
conforme já vimos para o caso do príncipe Masságeta, no contexto de uma derrota
militar, o código de honra do guerreiro autorizava o suicídio, evitando, dessa forma,
a humilhação da captura. Diante da incapacidade de sobreviver ao cerco dos Ate-
nienses, essa foi a via por que optou o sátrapa persa. Esgotados os víveres da cidade,
ergueu uma pira, sobre a qual colocou, depois de os imolar, filhos, mulher, concu-
binas e criados. A unidade que em vida devia ser a família traduz-se na inseparabi-
lidade na morte, daí que o Persa, ateado o fogo, se lance às chamas8. O texto não
deixa dúvidas quanto à motivação sócio-política deste acto. O receio de manchar a
imagem de guerreiro excelente e fiel servidor do rei determinou a sua decisão. Boges
vê-se, assim, elevado ao estatuto de herói nacional, admirado mesmo pelos Gregos,
conforme se depreende das palavras com que o historiador encerra o episódio: É pois
com justiça que, ainda hoje, por essa razão é elogiado pelos Persas (VII 107, 2).
Em resposta às interrogações de abertura da nossa análise, podemos tirar várias
conclusões. Heródoto, por meio dos seus retratos de pais e mães protagonistas de
episódios maiores das Histórias, contribui para a construção, na Antiguidade, e para
a percepção, no presente, de vários modelos educativos. Tanto apresenta situações
de convergência de atitudes e valores paternos e maternos (protecção e salvação da
vida dos filhos e vingança das suas mortes), como revela uma distinção nítida entre
as competências reconhecidas a cada uma das partes (com a mãe a pensar e o pai
a agir). Embora não haja no texto indicação expressa de repúdio de determinado
comportamento paterno ou materno, a verdade é que o desfecho das histórias de
Creso/Átis e Periandro/Lícofron ilustram que, quer do lado bárbaro quer do grego,
se encontram educadores com falhas graves de carácter. A permissividade do rei
lídio contrasta flagrantemente com a inflexibilidade do tirano de Corinto. Nem um
pai que avalie superficialmente os problemas nem um outro obstinado em demasia
parecem poder ser modelos de formação recomendáveis. Quanto à influência da
origem étnica dos progenitores na sua forma de pensar e agir, verifica-se não haver
contrastes de fundo em qualquer um dos sexos.
Em suma, ultrapassadas diferenças funcionais de pormenor, a mensagem que
perdura é a de unidade familiar. Pais, mães e filhos constituem um todo, cujo pa-
radigma máximo de integridade se espelha no sacrifício colectivo perpetrado pelo
persa Boges. Por certo que o conteúdo trágico e a grandeza ética do quadro, ainda
que pintado com as cores exóticas do universo bárbaro, permaneceram no imagi-
nário contemporâneo da obra e hão-de perdurar no posterior como dignum laude
exemplum.
8
A. J. L. van Hooff inventaria vários exemplos posteriores a Heródoto de generais ou cidades inteiras que optam por
um fim honroso entre as chamas, em vez da rendição vergonhosa (cf. op. cit., 57-9).
D esde sempre, o homem viu no alimento a fonte da vida, aliado a forças divi-
nas, às quais seria necessário agradar, oferecendo os mais variados sacrifícios,
para que elas lhe fossem favoráveis. Por essa razão, o tempo não era gasto apenas
no trabalho, havia momentos de pausa para honrar a divindade. Eram esses mo-
mentos de descanso, de otium, em que se cantava, dançava, comia e bebia, que
perpetuavam as suas crenças do passado.
O homem aprendeu então a conhecer o ciclo da Natureza, as estações coman-
dadas pelos equinócios e solstícios, a reparar que nos campos tudo morria mas, um
tempo mais tarde, voltava a nascer com os primeiros raios do sol crescente. Começou
a adorar a Tellus Mater que lhe dava em cada renovação do ciclo, o necessário para
a sua subsistência. Mas essa relação tinha de ser recíproca, a vida era-lhe concedida,
em contrapartida deveria honrar a divindade, para que esta não lha resgatasse. E é
deste contrato dádiva - promessa que nascem as primeiras formas de culto: a dança,
o canto, as oferendas em cereais, frutos, flores, o sacrifício de animais e, entre povos
mais selváticos, imolações de humanos. Assim nascem as primeiras manifestações
religiosas (do latim religare, a ligação do homem com a divindade) que, praticadas
por uma comunidade, tomam o nome de festas, cerimónias, festividades.
O vocábulo festa tanto se pode referir a uma celebração religiosa, em família,
como é o Natal, a uma diversão como é o Carnaval, ou a uma comemoração, de
uma empresa por exemplo, mas o que é comum em todas elas é o carácter de rup-
tura em relação à vida quotidiana, “é um momento de loucura, de transgressão.”1
Assim, classificam-se em festas religiosas, cristianizadas, como o Natal e a Páscoa;
festas sociais, familiares (casamentos, baptismos, funerais) ou nacionais (um evento
histórico, por exemplo); e as ligadas ao trabalho, à faina agrícola, como a vindima,
ou marítima, como o baptismo e lançamento de um barco novo à água. Uma outra
distinção há ainda a fazer entre festas oficiais (decretadas pelo governo, por exemplo
o 10 de Junho) e festas populares (organizadas pelo povo).
Ernesto Veiga de Oliveira denomina festividades cíclicas as festas que estão
directamente relacionadas com estações do ano e, na maioria, relacionadas com
os trabalhos dos campos. Quanto a Rocha Peixoto, outra autoridade no campo da
etnografia portuguesa, afirma que “as festas populares de hoje têm, de ordinário, a
origem nos cultos naturalistas de outrora (...) Aí está, entre muitos, o simbolismo
1
Festas e Celebrações Cristãs, pp. 9/10
2
Rocha Peixoto, Etnografia Portuguesa, p.51.
E é nesse limite entre a vida selvagem e a vida dita culta, que encontramos algo
que integra qualquer dos cultos referidos- a música, manifestando-se no canto e
3
Mircea Eliade, História das Crenças e das Ideias Religiosas,p.206.
4
Jean-Pierre Vernant, Figuras, Ídolos, Máscaras, p.184
na dança, algo inato, na opinião de estudiosos, como Ken Dowden, que afirma
que “Dance is not something that was invented, but is found everywhere and is part
of human nature” , corroborando com uma citação de Quintiliano, em Educação do
5
embora festejada nos primeiros dias de Junho, tinha o culto associado ao de seu pai,
o deus Helerno, celebrado a 13 de Fevereiro, pelos Fábios.
Quanto à proveniência da cerimónia, são inúmeras as semelhanças com ritos
agrários da Antiguidade Clássica.
As Dionisíacas Campestres, celebradas em Dezembro, eram festas de aldeia,
com desfile de máscaras, seguindo em procissão um enorme falo. Dioniso era o
deus portador de máscara. Nas Bacantes, Penteu não reconhece Dioniso devido à
máscara que ele usa, antropomorfizada, apresentando-se com a fisionomia de um
jovem estrangeiro, lídio . Nas Grandes Dionisíacas, celebradas em Março-Abril,
9
5
Ken Dowden, European Paganism, p. 178.
6
Idem, p.178
7
Philippe Walter, Mythologie Chretienne- Rites et Mythes du Moyen Age, p. 39
8
Idem, p. 43
9
Idem, p.177
cabra.
As Saturnalia romanas celebravam o triunfo da Primavera sobre o Inverno, da
vida sobre a morte, a igualdade entre os homens no tempo em que Saturno habitara
o Lácio, escravos mascarando-se com os objectos dos seus senhores e vice-versa.
Ora, o Cristianismo vai adaptar essas festividades às práticas religiosas cristãs,
permitindo os comportamentos desregrados desse período carnavalesco por um
curto espaço de tempo, até porque antecede, de imediato, o jejum da Quaresma,
como preparação para um período profundamente religioso como é o da Páscoa.
O actual Carnaval terá derivado das saturnais romanas que se realizavam por
altura do início do ano, não esquecendo que o ano, anteriormente ao calendário
fixado por Júlio César, começava em Março. Com o novo calendário instituído, a
data fixou-se em meados de Dezembro. Assim, o renascer do novo ano, e esse cele-
brado nas Saturnais, seria por altura de Fevereiro ou Março, que, citando Ernesto
de Oliveira, seria “um período de completa liberdade licenciosa(...) a festa e a orgia
eram permanentes, e desaparecia a distinção entre senhores e escravos” 10
- Dia da espiga
Trata-se da celebração da ascensão de Jesus Cristo ao Céu.
Em Salir, a festa do Dia da Espiga iniciou-se em 23 de Maio de 1968, sendo
actualmente este dia o feriado municipal. Proveniente de ritos agrários antigos,
ela marca o início da época das colheitas, aliás demonstrado no cortejo pela rua
principal, representando a actividade agrícola e o artesanato, com alfaias agrícolas
e produtos da região, onde não falta o medronho, a amêndoa, a alfarroba, nem os
raminhos tradicionais de espiga, simbolizando a união entre o profano e o religioso,
comuns a outras partes do país, constituídos por, além da espiga de trigo, que signi-
fica abundância, tronquinhos de oliveira (a paz), papoilas (a alegria), malmequeres
brancos (a prata), e malmequeres amarelos (o ouro). Também nesse dia, acordando
ao troar de foguetes, Salir apresenta arraial popular, as ruas ornadas de flores que
10
Ernesto de Oliveira, Festividades Cíclicas em Portugal, p.38
nos fazem pensar nas festas romanas em honra a Flora, mãe da Primavera, a deusa
dos campos floridos.
- As Maias (1 de Maio)
Embora Ernesto Veiga de Oliveira não encontre ligação das Maias às festas
em honra a Flora, as Floralia, não deveremos excluir esta hipótese. No templo do
Quirinal, uma das sete colinas onde foi erigida Roma, em que a deusa era venerada
pelos Sabinos antes da fundação de Roma, que a ornamentavam com grinaldas
de flores, realizavam-se festas para celebrar o renascer da vida, na Primavera, com
jogos e danças praticadas por mulheres desnudadas, que, com o tempo deu lugar a
meninas enfeitadas com flores. No nosso tempo, ainda se vêem raminhos de gies-
tas- as maias- sobre portas e janelas No que diz respeito a manjares cerimoniais que
acompanhavam os festejos, no Algarve ainda são tradição os queijinhos de Maio, de
figo seco e amêndoa, denominado em Monchique de “bolo do tacho”.
Outono/Inverno
Depois de cultos solares, reflectindo a vida na Natureza, surge agora o culto dos
mortos, com o declínio da Natureza. Tal como Perséfone, também Dioniso visita o
mundo subterrâneo, simbolizando a morte de tudo o que vive, para renascer depois,
na Primavera.
11
José Maria Blázquez, Primitivas religiones Ibéricas, II, p. 49.
se coloca o Menino, rodeado de vasos com verduras, que parecem cabeleiras e que
se semeiam uns meses antes, as “searinhas” referidas por José Duarte . Também 12
em Olhão, ainda se usa semear-se várias plantas em vasos com o pedido de boas
colheitas.
- a missa do galo na noite de 24 para 25, sendo o galo símbolo solar em religiões
pagãs.
- a árvore de Natal: outrora, no solstício de Inverno, decorava-se casas e templos
com verduras e maçãs.
- a consoada: em todo o país se junta a família, para partilhar o manjar, na noi-
te de 24, com o tradicional bacalhau, couves, polvo, filhós de abóbora (a abóbora
desde sempre foi vista como purificadora, excomungando as forças maléficas), e no
Algarve degusta-se as deliciosas azevias de batata-doce.
12
DUARTE, Pe José da Cunha, Natal no Algarve- Raízes Medievais, p.112: “As searinhas, colocadas junto ao menino
testemunham que, com a vinda do Messias, vai germinar na terra uma vida nova”
13
DUARTE, Pe José da Cunha, Natal no Algarve- Raízes Medievais, p.228
Bibliografia
ELIADE, Mircea, História das Crenças e das Ideias Religiosas, Tomo I, Volume 2,
tradução de Roberto de Lacerda, Zahar, Rio de Janeiro, 1978.
Festas e Celebrações Cristãs, trad. de Manuel de Aguiar, Edições Paulistas, 1979.
www.terrasportugal.com
«A cordeira gentil
que enterneceu Camões
foi decerto a mulher
única que o amou
e que amoravelmente remendou
suas roupas de pobre vagabundo
repartido em pedaços pelo mundo».
VIEIRA, Afonso Lopes, «Diname», «Para um recital camoneano»,
in Resistência, Revista de Cultura e Crítica, Lisboa, 1977, p. 25.
p 42.
9
Cf. LOURENÇO, Eduardo, «Camões ou le temps de la raison oscillante». In Camões 1525-1580. Le temps de Camões
par Vasco Graça Moura; Camões et le temps par Eduardo Lourenço, Bordeaux, L’Escampette, 1994, p 41.
10
Cf., AUBERT, Jean-Marie, La femme – antiféminisme et christianisme, Paris, Cerf, 1975, pp.14 sqq ; 29 sqq.
Na sociedade ateniense, por exemplo, o papel da mulher limitava-se ao espaço do lar, sendo portanto alheia à vida
11
política e social, ainda que a cortesã exercesse um papel importante na vida cultural. Em Esparta, o âmbito de afirmação
da mulher era mais amplo, mas só o humanismo estóico nos dá uma concepção elevada da mulher (que todavia não se
compara à posição do homem que gozava de uma liberdade ilimitada). Cf. Idem, ibidem, pp 14 e sqq.
16
Cf., a propósito, MENDES, João, Teoria Literária, Lisboa, Verbo, 1986, pp. 18-20.
17
Idem, ibidem, p. 19
18
A complexidade do real é expressa em Camões por uma dualidade tradutora das várias faces da cultura. Além da líri-
ca, Os Lusíadas combinam binómios como, por exemplo, a ambição como motora da acção versus a recusa da ambição,
motivo de injustiças e traições; o elogio do monarca vs a crítica e denúncia da sua conduta; a exaltação pelo canto do
«peito ilustre lusitano» vs a constatação de que a pátria está povoada de «gente surda e endurecida»; o espírito de aventura
vs a política de fixação; o herói Gama vs o Velho do Restelo, etc. Cf. SOARES, Maria Luísa de Castro, «A ideologia
bipolar d’Os Lusíadas: O Velho do Restelo e o Herói Gama», in, op. cit., pp 281-298.
A obra camoniana é, no dizer de Óscar Lopes, «meditação original e efabulada acerca do destino humano, onde se
19
encontram já imaginativamente delineadas as antinomias irredutíveis de qualquer progresso humano». Cf. LOPES,
Óscar, «Camões como poeta das antinomias do progresso». In Camões, 1, Lisboa, Caminho, 1980, p 10.
Cf., a propósito, CUNHA, Maria Helena Ribeiro da, A dialéctica do desejo em Camões, Lisboa, Imprensa Nacional-
20
cas» embelezadas pelo lirismo. No primeiro episódio, D. Maria, filha de Afonso IV de Portugal e rainha de Castela por
casamento, vem pedir auxílio ao pai na luta contra os mouros. O segundo episódio é a «história», que é mito, dos amores
de D. Pedro por Inês e do trágico assassinato desta, que «Aquele depois de morta (...) fez rainha», (idem, 3.132)
30
CAMÕES, Luís de, Rimas, (Texto estabelecido e prefaciado por A. J. Costa Pimpão), Coimbra, Atlântida, 1973, p
161.
31
Idem, p 164.
32
Idem, ibidem.
33
Por prolongamento, o amor correlaciona-se com o tema da saudade, da insatisfação, com o arquitema da separação
física dos amantes como motivo de dor («Aquela triste e leda madrugada», p 157) ou da separação irreversível pela morte
da amada, que a memória e o canto perpetuam e em relação a quem o eu lírico veicula o desejo de realização transcen-
dente: («Alma minha gentil, que te partiste», p 156; «Ah! Minha Dinamene ! Assi deixaste», p 167; «Quando de minhas
mágoas a comprida», p 166).
34
Cf. CUNHA, Maria Helena Ribeiro da, cit., maxime, pp 31-38. As dialécticas camonianas decorrentes da temática
do Amor são, segundo a autora: «razão e sentidos, o material e o metafísico, o “vivo e puro amor” e a “baixeza”», p 30.
35
SARAIVA, António José, cit., p 61
res e deve dar o fruto ao poeta, no presente, enquanto é bela e jovem, pois a vida é
breve e garantida a velhice. Daí a ameaça do conquistador ou a «mentira» de amor,
o carpe diem, em aliança com o colligo, virgo, rosas:
A mulher é alma, porque é pura e deusa, mas é também corpo, porque é linda e
semi. A tese admite a antítese. A mulher é, na sua própria definição, a comunhão dos
dois termos: Vénus e Laura. Erigida em tal base definitória, a sua funcionalidade na
relação com o homem é a de envolvê-lo igualmente numa contradição fundamen-
tal. E o paradoxo consiste precisamente em retomar a teoria do «estado incerto»
petrarquista ajustada à sua experiência pessoal povoada de irrealização, engano,
tormento, enfim, desconcerto:
43
Idem, p 128.
44
Idem, p 128.
45
Idem, p.126.
46
Idem, p.126.
47
Idem, p.126.
E, a fechar, surge a causa de tais efeitos: «...só porque vos vi, minha Senho-
ra49.»
O desconcerto individual ou psicológico resulta não só da visão de uma figura
de mulher como ainda do entendimento do amor como campo de contradição, tal
como é definido em «Amor é um fogo que arde sem se ver50». Essa abordagem do
enamoramento e suas derivações na análise subjectiva, na visão paradoxal do amor
e na mundividência do eu lírico revelam, sem dúvida, um progressivo afastamento
da vivência do amor como modelo ideal: a expressão dialéctica do mundo que se
sonha e do mundo que se tem51. Na verdade, as concepções optimistas nas Rimas
são o resultado de uma confiança no homem52 em harmonia com o amor, com a
mulher e com a natureza53, que é vector minoritário da lírica camoniana. Além dis-
so, traduzem uma concepção da relação homem - mulher em Camões, sendo que o
homem é sempre o agente e o (in)feliz beneficiário.
Para um poeta que «em várias flamas variamente ardia54», em verdade, pouco
importam as mulheres, que foram muitas; importa a «firmeza» do mesmo Amor, na
diversidade das mulheres amadas:
«Que estas foram várias é - no dizer de António Sérgio- coisa evidente; e tam-
bém evidente, supomos nós que da maior diversidade no sensível (desde a Dama
48
Idem, p.118.
49
Idem, p.118.
50
Idem, p 119. A própria construção do soneto, com base nas figuras da oposição, busca inspiração no referido modelo
de Petrarca. (Itálicos nossos).
51
A condição agónica do homem, a reflexão inquieta sobre a responsabilização pela desventura existencial e a exaspe-
ração emocional como única resposta começam, de facto, já a desenhar-se em sonetos de feição petrarquista, em que é
perceptível um debate íntimo sobre o erotismo, isto é, um encaminhamento maneirista. Disso são exemplos, o soneto
«Pede o desejo, Dama, que vos veja» (Idem, p 120) e a canção «Fermosa e gentil Dama, quando vejo» (Idem, p 203).
52
No caso português, basta lembrar os Descobrimentos e uma euforia nacional quase generalizada deles resultante, que
se exprime nos textos dos mais diversos géneros. A confiança de domínio do mundo é vivida por literatos, pelo povo
português em geral e mesmo pelos monarcas. Este ideário é revelador de um optimismo antropológico e duma euforia
naturalista próprios da mundividência renascentista. Cf. SOARES, Maria Luísa de Castro, Dimensão profética e idealis-
mo humano de dois poetas da espiritualidade portuguesa, Vila Real, UTAD, 1999, pp 31-35; 90-93. Sobre a ambiência dos
Descobrimentos e o seu enquadramento sócio-cultural e histórico-literário, cf. Idem, «Vida áulica e ideal do cortesão no
Renascimento e em Damião de Góis», in Damião de Góis na Europa do Renascimento, Braga, Publicações da Faculdade
de Filosofia da UCP, (2003), pp 553-564.
53
Sobre o sentido naturalista do Renascimento português, vide CIDADE, Hernâni, O conceito de poesia como expressão
da cultura. Sua evolução através das literaturas portuguesa e brasileira, Coimbra, Coimbra editora, 1957, pp 89-90.
54
CAMÕES, Luís de, Rimas, op. cit., p 166.
loira que ficou em Lisboa até à pretidão da Bárbara escrava); e que a todas elas
atribui o poeta o mesmo carácter psicológico – o mesmo tom moral- parece-nos
também incontestável55».
A mulher é um mero objecto, ou «quase mais não é do que um pretexto. O que
importa é “sofrer” o amor – a sua insatisfação, o seu desejo56». O amor não depende
da mulher amada, mas revela-se antes como um estado inerente ao sujeito: perma-
nece em questão o homem. Este, enquanto eu lírico, assume mesmo, por vezes, a hi-
pertrofia do eu pela singularidade do seu sofrimento, ao conceber-se como o «mais
desgraçado que jamais se viu57». Do divórcio entre o sujeito lírico e a vida marcada
pelo erro, pela Fatalidade irremediável e pelo amor58, resta-lhe afirmar a sua supe-
rioridade na dor, a sua nobreza perante o sofrimento infligido: «O [tormento] que
para ninguém se consentiu,/ Para mim só mandou que se inventasse59.»
Na epopeia Os Lusíadas, a humildade do eu empírico, que o enquadramento
no estrato social da pequena nobreza não favorece60 («Mas eu que falo, humilde,
baixo e rudo, / De vós não conhecido nem sonhado?61 »), conjuga-se com a superio-
ridade e a missão do homem culto:
«Nem me falta na
vida honesto estudo,
com longa experiência misturado,
nem engenho, que aqui vereis presente,
cousas que juntas se acham raramente62»
55
SÉRGIO, António, «Questão prévia dum ignorante aos prefaciadores da lírica de Camões» in Ensaios, IV, Lisboa, Sá
da Costa, 1972, p 20.
56
MATOS, Maria Vitalina Leal de, «Auto-retrato de Camões: a hipertrofia do eu», in Colóquio-Letras, 20, Lisboa,
(1974), p16.
57
CAMÕES, Rimas, op. cit., p 182. Este verso, que é a chave de ouro do soneto «O dia em que eu nasci moura e pereça»,
surge como como uma dupla justificação dada à «gente temerosa»: a da razão de recusa do dia do seu nascimento e a
do cenário de violência e apocalipse desejado pelo poeta. Sobre as relações paragramáticas intertextuais do soneto com
a Bíblia, cap. III do Livro de Job e enquadramento do poema na apocalíptica, Cf., SOARES, Maria Luísa de Castro,
Dimensão profética e idealismo humano de dois poetas da espiritualidade portuguesa, op. cit. pp 51-52.
58
Cf., e. g. «Erros meus, má fortuna, amor ardente/ em minha perdição se conjuraram». CAMÕES, Rimas, cit.
59
Idem, p 163.
60
FERNANDES, Rogério (op. cit.) faz notar que: «os pequenos nobres, os fidalgos pobres, a camada mais baixa da
fidalguia que, vivendo do desempenho de cargos administrativos e militares (...), já não pertencia verdadeiramente à
classe senhorial se não pela mentalidade e por alguns traços ideológicos». E o mesmo autor salienta que estes estratos
vêem a sua situação «agravada brutalmente», quer pela «alta dos preços e as exacções fiscais», quer pela «corrupção e
desorganização da administração pública, do crescente endividamento externo, das dissipações ostentatórias da alta
nobreza e do carácter parasitário da sua actividade» (p. 382). Sobre a situação económica, social, cultural e ideológica
do tempo de Camões, Vide CASTRO, Armando, Camões e a sociedade do seu tempo, Lisboa, Ed. Caminho, 1980, pp.
42-75; 91-98; 105-108, 116-125.
61
CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, 10.154.
Idem,10.154 Note-se, nestes versos, a tríade educativa clássica (natura, ars, studium, – natureza (engenho), instrução
62
(honesto estudo) e exercício (experiência) – que surge, no século XVI, nos diferentes autores. Esta tríade remonta aos
pré-socráticos e conhece grande divulgação entre os sofistas e, sobretudo, a partir deles (vide Platão, Fedro 269 d e
Leis 792 e; Aristóteles, Política 1132 a 39; 1137 a 1; Ética a Nicómaco, 1179 b 20; Retórica,1410b 6-7).
63
CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, 10.155.
64
Este deus − a um tempo, representante das forças da Natureza e dos próprios interesses de Venezianos e Mouros, que
os portugueses vão eclipsar − é um oponente à audácia dos heróis e temeroso da sua divinização.
65
Idem, 6. 28.
66
Idem, 6. 29.
Todavia o Criador, «o Sumo Deus, que por segundas / causas obra no mundo,
tudo manda70» é inacessível à criatura, «vista cega e mente vil71». Apenas a capacida-
de infinita de Deus pode abranger o Infinito que é Deus72. É, porém, surpreendente
verificar o paradoxo camoniano ou o mistério da incompreensão de Deus a par da
Sua percepção, pois que a Providência a tudo assiste e «tudo manda73»; tudo são
«Obras da mão divina veneranda74».
Transcendência divina, de modo algum significa exterioridade em relação à his-
tória e ao homem português. O herói camoniano não é avassalado pelo espírito de
Deus, mas também não é abandonado unicamente aos seus recursos. Deus solicita
o homem sem o forçar e respeitando a sua liberdade. A expansão da «Fé e do Impé-
rio75» é o dever e a Vontade divina, espécie de obrigação que se apodera do homem
interior, mas sem o coagir ou violentar. Com isto, o espírito de Deus é distinto do
homem, que pelo seu corpo está vinculado à matéria e pela sua alma se ergue ao
Divino, procurando transcender a sua zoologia, conforme o enunciado pelo credo
67
Idem, 10.82: «Aqui, só verdadeiros, gloriosos/Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,/ Júpiter e Juno, fomos fabulosos/
fingidos de mortal e algo engano./ Só para fazer versos deleitosos/Servimos (...)» (Itálicos nossos). Note-se, porém, que o
mito não é «jogo puro, senão figuração transcendente do real» (Cf. CIDADE, Hernâni, «O Significado e o Valor Es-
tético d’Os Lusíadas», in: «Prefácio» a Os Lusíadas, op. cit., p. XLV). António José SARAIVA, com idêntica ideologia,
afirma que «Camões não via na mitologia uma mera alegoria, mas a manifestação de uma verdade profunda». E ao
interrogar-se «sobre o grau e a qualidade da crença que Camões conferia» ao espírito cavaleiresco que glorifica no seu
poema, conclui: «O espírito cavaleiresco é, pois, para Camões, a ideologia louca, a ideologia crida como crença, mas não
como verdade» (Cf. SARAIVA, António José, «Os Lusíadas, o Quixote e o problema da ideologia oca» in Vértice, Junho
de 1961. Reproduzido in: Para a História da Cultura em Portugal, vol. II, Porto, Publicações Europa-América, 1972, p.
178 e p. 183, respectivamente).
68
Júpiter representa o próprio Deus de católicos: «Por espíritos mil que têm prudência,/governa o mundo todo que
sustenta» Cf. CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, 10. 83.
69
Idem, 10. 83.
70
Idem, 10. 85.
71
Idem, 10. 81.
Cf. as explicações à estrofe 81 (canto 10) feitas por CIDADE, Hernâni (Os Lusíadas, ed. cit., p. 225), as quais consi-
72
MIRANDOLA, Pico della, Oratio de hominis dignitate,(Discurso sobre a dignidade do homem - Trad. parcial), in
76
tempo sua ordem, já sabida;/ O mundo, não; mas ainda tão confuso,/ que parece que dele Deus se esquece».
80
Idem, p. 199.
81
Na linha de Santo Agostinho (que retoma a «teoria das Ideias» platónica, ajustando-a à filosofia cristã), Camões reto-
A ideia homem como ser superior que abarca o mundo e constrói a história, de-
fendida por Camões épico, transmuta, no lírico, para a noção de homem como o ser
que dialecticamente se faz e se revela apenas no além-de-si ou totalidade realizada,
sob a forma de Transcendência.
Na epopeia, congrega-se no homem o progresso contínuo e a sua realização
definitiva. Na dinâmica textual, surge uma visão do homem que se transforma, em
ma a doutrina da iluminação agostiniana. Para Santo Agostinho as ideias existem em Deus, de onde o homem as colhe
por uma espécie de iluminação, a que Camões chamou «graça» divina («Sôbolos rios»). O que importa salientar é que a
via do ascetismo platónico se orientou para a via da corrente mística agostiniana. Segundo esta, o crente pode entrar em
comunhão com Deus, pela vida contemplativa e pelo êxtase.
82
A quebra do equilíbrio, a expressão do movimento encontra-se, aliás, em outras formas de arte, nomeadamente, a
escultórica.
83
Da importância do poema nos dão conta as considerações da crítica. Cf. O modelo de tripartição das redondilhas
«Sôbolos rios que vão», proposto por JÚNIOR, A. Salgado («Camões e “Sôbolos rios”. Ensaio de interpretação destas
redondilhas», in Labor, Sep. do vol. X, Aveiro, 1935, pp 1-68) ; as interpretações posteriores do poema; as limitações das
leituras temporais e políticas da simbologia de «Sôbolos rios»; os modelos de bipartição e a versão do poema no Cancio-
neiro de Cristóvão Borges e, por fim, a nova tripartição das redondilhas, no quadro de uma «estética arquitectónica». Cf.
MATOS, Maria Vitalina Leal de, Introdução à poesia de Luís de Camões, Lisboa, ICALP,1980, pp 81-95, maxime, p 85.
84
CAMÕES, Rimas, cit, p114.
virtude das vicissitudes que enfrenta; progride através de uma gesta de realização
universal de valores sobre-humanos. A epopeia de Camões, cujo propósito é o de
cantar «o peito ilustre lusitano» vem defender a ideia de que os Portugueses foram
feitos para dominar. Mais do que um povo feito de homens reais, é do Ser ideal que
o poeta fala: é daquilo que o poeta gostaria que o homem fosse85.
A saudade de Deus que caracteriza o sujeito de «Babel e Sião», nas Rimas, tem
como contrapólo o herói activo e empreendedor d’ Os Lusíadas. Este define-se pelo
dinamismo, pela consciência de que tudo está sujeito a uma evolução, a uma força
propulsiva cujo climax é, a nível textual, o episódio da Ilha dos Amores, prémio para
os nautas, estímulo para os heróis, promessa de eternização e espaço de humani-
dade futurante, porquanto constitui profecia de advento de um homem português
ideal86.
Tentar conciliar o providencialismo histórico com o evemerismo do homem
divinizado: eis o ideal camoniano do homem, na epopeia. Um tal paradoxo é po-
rém, resolvido no teísmo − através dos conceitos de ficção e realidade, ou melhor, de
falsidade dos deuses mitológicos ao serviço de uma Verdade: a fé.
No que à mulher diz respeito, a dualidade alma/ corpo (ideal/ sensual) per-
petua-se sempre, uma vez que o poeta preconiza o seu existir simultaneamente e
de modo duplo. Trata-se, afinal, de duas faces duma mesma e complexa realidade
humana.
Uma vez abordadas as antinomias inerentes à mulher e ao homem encarados
individualmente, retomamos no nosso discurso a questão de saber o grau de opo-
sição e de identidade entre ambos os sexos que já começa a ficar delineada. Existe
uma diferença efectiva entre a mulher e o homem na obra de Camões. Encarada
dentro dos moldes da mística feminina ancestral, a primeira é sempre visionada, de
acordo com a sua relação com o homem, a quem cabe a responsabilidade e a acção.
Porém, o homem não é apenas o principal foco de interesse do nosso autor, mas de
85
Camões, como ninguém, soube ver os sinais iniludíveis da decadência na metrópole como na Índia, reconhecer os
sintomas da desagregação do país causada pelas incompetência, ambição, adulação de funcionários, capitães e gover-
nadores capazes de negarem o rei, a pátria e o próprio Deus. Vários autores se debruçaram sobre as críticas tecidas por
Camões às classes detentoras do poder n´Os Lusíadas. E são unânimes em considerar que elas visam, além do rei, as
classes privilegiadas, desde religiosos à alta nobreza ostentatória. As críticas tecidas por Camões aos Portugueses, no-
meadamente às classes privilegiadas detentoras do poder, são múltiplas. Sobre aquelas dirigidas ao rei, seus ministros
e favoritos, vide: SÉRGIO, António, Em torno das ideias políticas... cit., pp. 31-46; FERNANDES, Rogério (op. cit.).
Críticas ao monarca (p. 388), à classe senhorial ou nobre (pp. 385-386 e 394); aos homens de religião (387 e 389); VE-
LOZO, Francisco José, «Um soneto de Camões contra D. João III», Garcia de Orta, 1972, p. 25. Sobre as ideias políticas
na obra de Camões, e contendo uma perspectivação do poeta sobre os vários estratos sociais, também são inúmeros os
estudos. Entre eles, lembramos SÉRGIO, António, Em torno das ideias políticas de Camões. Seguido de Camões panfletá-
rio [Camões e Dom Sebastião], Lisboa, 1977; ALBUQUERQUE, Martim de, A expressão do poder em Luís de Camões,
Lisboa, 1988; CALMON, Pedro, O Estado e o Direito n’Os Lusíadas, Lisboa-Rio de Janeiro, Dois Mundos, 1945; BEAU,
Eduard Albin, «A realeza na poesia medieval e renascentista portuguesa», Boletim de Filologia, XV (1954-1955), 306 e
sqq.; XVI (1957), 176 e sqq.; XVII (1965), 72 e sqq.; LÁFER, Celso, «O problema dos valores n’Os Lusíadas. Subsídios
para o estudo da cultura portuguesa do séc. XVI», Revista Camoniana, S. Paulo, 2, 1965, p. 72 e sqq.; RIBEIRO, José
Silvestre, Estudo moral e político sobre Os Lusíadas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1853.
86
Cf. SOARES, Maria Luísa de Castro, Camões e Pascoaes. Dimensão profética e idealismo humano de dois poetas da
espiritualidade portuguesa, cit., pp 207-217.
Assim considera Pascoaes a epopeia d’Os Lusíadas, quando afirma acerca «do Poema, que é o próprio mar feito verbo.»
87
Cf. PASCOAES, Teixeira de, Os Poetas Lusíadas, Lisboa Assírio & Alvim, 1987, p. 82.
88
Cf. o conceito de «moral heróica» de ALBUQUERQUE, Martim de, «O Valor Politológico do Sebastianismo», in: op.
cit., p. 291. E ainda a sua tese acerca do «antimaquiavelismo» peninsular que o crítico caracteriza pelo «proceder fidalgo»
contrastante com o «actuar maquiavélico»: «À moral utilitária − diz-nos − (...) contrapõe-se a acção fidalga, baseada na
virtude e na acção esforçada, não no resultado e no êxito» (Idem, ibidem, p. 269).
89
Citamos a Carta, depois de posta «em leitura nova e correntia» (p. 23) pelo seu comentador Xavier da Cunha.
90
Idem, ibidem, p. 27.
91
Idem, ibidem, p.24.
Verso de Terêncio, O homem que se puniu a si mesmo, I, 1, 25. (Trad.: «Sou homem e penso que nada do que é humano
92
me é estranho».
samente histórica, é tendenciosamente nacional e lusocêntrica. Vide, e.g.: Crónica de D. João I (Textos Escolhidos,
Editorial Verbo, Lisboa, 1971, p. 31 e sqq.).
96
CAMÕES, Os Lusíadas, 10. 2-5.
97
Idem, 10. 76-141. A subida ao monte que Tétis convida Gama a fazer pode relacionar-se com o percurso ascético, fun-
damental para se atingir o estado de heroicidade. Recorde-se que a montanha goza do simbolismo da transcendência:
“...ela é alta, vertical, elevada, próxima do céu, [...] o encontro do céu e da terra, morada dos deuses e termo da ascensão
humana” Dicionário de Símbolos.
98
CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, 5. 41.
Cf., CAMÕES, Luís de, Rimas, op. cit., «Ah! Minha Dinamene! Assi deixaste» (p.167); «Alma minha gentil, que te
99
de Florença, Salamanca, Oxford, Lovaina e Paris. A esta convivência internacional veio juntar-se o convite à leccio-
nação, em Portugal, de mestres estrangeiros e medidas culturais como a reforma das Universidades e a fundação do
Colégio das Artes.
107
Salientamos a obra da escritora, em latim, SIGEIA, Luísa, Colloquium habitum apud Villam inter Flaminiam Ro-
amanam, et Blesillam Senesem, (...) Ulissiponae, ano Salutis MDLII (trad. francesa de SAUVAGE, Odette, Dialogue de
Deux jeunes filles. Sur la vie de Cour et la vie de retraite, Paris, Presses Universitaires de France, Fondation Calouste
Gulbenkian, 1970). A acção da obra passa-se em três dias e consiste num diálogo entre duas personagens femininas,
sendo que uma delas defende a vida rústica e a outra a vida de corte. No seu debate, muito é dito sobre as qualidades e
defeitos que caracterizam os príncipes, os cortesãos, as mulheres na corte, em particular, e a mundividência do séc. XVI
português, em geral. Cf. pp. 82 e sqq.
108
Cf. SARDE, Michelle, «Le temps de la chair : Renaissance… pour les hommes seulement», in Regard sur les Fran-
çaises, Paris, 1989, pp 318-346.
109
CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, 10. 154. Sobre a cultura e a educação, cf. GARIN, Eugenio, L’Éducation de l’ homme
moderne, 1400 –1600, trad. Francesa, Paris, 1968, pp 89 e sqq.
110
Cf. SARDE, Michelle, «Le temps de la chair : Renaissance… pour les hommes seulement», in op. cit., p 318.
superar todas estas carências não faltam, porém, as palavras elogiosas a defini-la:
a graça, a doçura, «aquele não sei quê/ que espira não sei como»111 e toda uma
terminologia epocal, que Camões segue mas não servilmente. De infracções aos
cânones petrarquistas vigentes dão-nos conta as endechas a Bárbara escrava, onde
são elogiados não os cabelos louros, nem os olhos claros, nem a tez nívea, mas uma
beleza invulgar:
«Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde a opinião
que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor112.»
111
CAMÕES, Luis de, Rimas, op. cit., p 271.
112
Idem, p 89.
113
Idem, p 124.
114
Idem, ibidem.
115
Idem, p 280.
1
J. - C. margolin, Érasme précepteur de l’Europe, Paris, 1995.
2
Sobre a vulgarização desta obra em Portugal, vide JOAQUIM DE CARVALHO, Estudos sobre a cultura portuguesa do
séc. XV. I, Coimbra, 1949, pp. 17-18.
3
Petrarca, o primeiro humanista, principalmente no De sui ipsius et multorum ignorantia (1367), exprime a sua aversão
ao formalismo escolástico dominado por Aristóteles e Averróis e invoca o pensamento de Platão, Cícero e Santo Agos-
tinho.
4
Vide E. GARIN, “Ricerche sulle traduzioni di Platone nella prima metà del XV secolo”, Medioevo e Rinascimento
Studi in onore di B. Nardi. Firenze, 1955, p. 339-374, maxime, p. 345-346; IDEM, Storia della filosofia italiana, I, II
parte, caps. II e III, Torino, 1966.
5
A violenta disputa que, em meados do século XV envolveu vários humanistas, entre eles Giorgio Gemisto Pletone e
Giorgio de Trebisonda, encontrou vitalidade ainda no séc. XVI, aquando da polémica que opôs Pierre de la Ramée, no
seu ataque aos esquemas da lógica aristotélica, ao famoso jurista português António de Gouveia (Cf. deste autor o seu
Pro Aristotele responsio adversus Petri Rami calumnias Paris, 1545).
6
Vide P. O. KRISTELLER, “The moral thought of Renaissance humanism”, Chapters in Western civilization, I, Co-
lumbia, 31961, p. 302 e 308-309.
7
WALTER ULLMANN, Radici del Rinascimento (tra. ital.), Roma-Bari, 1980, p. 31-35; 52-72; 136-137; 208-209;
222-225; FRANCESCO COLASSO, ‘Umanesimo giuridico’, Umanesimo e Scienza politica (Atti del Congresso In-
ternazionale di Studi Umanistici, Roma-Firenze, 1949), a cura di Enrico Castelli, Milano, 1951, p. 57-58; NUNO J.
ESPINOSA GOMES DA SILVA, Humanismo e direito em Portugal no séc. XVI. Lisboa, 1964, p. 31 e sqq.
8
W. Ullmann, Radici, p. 137.
9
Cf. Prosattori latini del Quattrocento, a cura di E. Garin, Milano-Napoli, 1952, p. 716-791.
Vide HANS BARON, La crisi del primo Rinascimento italiano. Firenze, 1970, cap. VI, maxime, p. 135-143; PETER
10
BURKE, The italian Renaissance culture and society in Italy, Cambridge, 31987, p. 38.
11
PETRARCA, Epistolae familiares, Ep. XXIV, 3. Ed. V. ROSSI, vol. IV, Firenze, 1942, p. 226 e sqq.
1994, p. 100-116.
14
Cf. B. L. ULLMAN, The humanism of Coluccio Salutati. Padova, 1963, p. 28 e sqq.; W. ULLMANN, Radici, cit.,
p. 209 e sqq.
Este desabrochar para uma nova era vem acompanhado de um enorme interesse
pela educação e pela formação de uma sociedade renovada. O espírito cívico é assim
indissociável do ideal educativo renascentista.
A defesa de uma formação individual, moral e física, a designada educação
moderna — que torna o homem formado nas humaniores litterae, mais livre, mais
humano, capaz de dirigir a sociedade civil — é a reivindicação da autonomia da
cultura, como guia moral da humanidade.
É neste contexto que o ideal do príncipe perfeito do Renascimento vai ter ori-
gem. Ao próprio Petrarca cabe a primeira formulação deste ideal no seu De repu-
blica optime administranda liber, seguido de um De officio et uirtutibus imperatoriis
liber15. Petrarca, na verdade, “aveva stabilito un modelo umanistico con uno spechio
per i principi, dedicado a Francesco il Vecchio Da Carrara nel 1373”16.
Na dinastia de Avis, a leitura de Regimentos de príncipes era considerada essen-
cial à formação do governante, como no-lo dá a entender o passo da carta dirigida
pelo infante D. Pedro a D. Duarte, por ocasião da sua subida ao trono17:
«e como quer, Senhor, que visse muitos Livros com singulares doctrinas aos
Reys e Princepes quaes deveem seer, e vós delles tenhaaes muytos, porem
porque me parece que fallam geeralmente das virtudes que a todo homem
perteence, eu antre a todas escolherey aquellas que ante Deos, e os que ver-
dadeiramente julgam fazem ho Rey mais glorioso».
15
Vide FRANCISCI PETRARCHAE FLORENTINI Opera. Basileae, per Sebastianum Henricpetri, 1581. Tomo I, De
republica optime administranda liber (p. 372 e sqq.) seguida de De officio et uirtutibus Imperatoriis liber (p. 386 e sqq.),
(cota da B. N. Paris: Z 565).
16
Cf. HANS BARON, La crisi cit., p. 146.
Cf. Carta inserta por RUI DE PINA, Chronica do Senhor Rey D. Duarte, cap. IV. Vide Crónicas de Rui de Pina. Intro-
17
muito mais antiga”, de fins do séc. XIV ou começos do séc. XV (J. Leite de Vasconcelos, Lições de Filologia portuguesa,
Lisboa, 21926, p. 136).
20
Sobre “a preferência da gente culta portuguesa de Quatrocentos pelo humanismo florentino, de que Vergério foi um
dos representantes”, vide JOAQUIM DE CARVALHO, Estudos sobre a cultura portuguesa do séc. XV, I, Coimbra, 1949,
p. 158; Cf. também M. GONÇALVES CEREJEIRA, O Renascimento em Portugal, I, Coimbra, 1917, p. 57 e sqq.
21
Vide Nair de Nazaré Castro Soares, ‘A Virtuosa Benfeitoria, o primeiro tratado de educação de príncipes
em português’, Biblos 69 (1993) -Actas do Congresso Comemorativo do 6º Centenário do Infante D. Pedro (Coimbra, de 25
a 27 de Novembro de1992), Coimbra, 1993, p. 289-314. Entre as traduções levadas a cabo na corte de Avis, refiram-se
o Panegírico de Trajano de Plínio-o Jovem, e o De re militari de Vegécio.
22
Vide a carta dedicatória do Infante D. Pedro, que introduz a sua versão do Livro dos oficios: Infante Dom Pedro, Livro
Esta obra tem para nós o interesse de revelar Caiado como um fiel discípulo do
ideal cívico do humanismo italiano. Como Petrarca e Salutati faz a exaltação da vida
activa, do facere subordinado à ratio e ao consilium, a apologia da interpenetração
do ius e da ciuitas, da indispensabilidade do direito à rei publicae gubernatio.
Em Portugal, além das Ordenações régias, há todo um conjunto de leis decor-
rentes da função legislativa dos soberanos, que adquirem valor de direito positivo e
são recolhidas, a pedido do rei, em colectâneas ou compilações33.
A valorização intelectual do governante e o seu poder legislativo, que a trata-
dística medieval descurava, prendem-se ambos com a consolidação do conceito de
soberania no séc. XVI, apoiado por uma corrente de nacionalismo jurídico, que
exalta a personalidade régia e suas funções.
A laicização progressiva da cultura nacional está bem reflectida nos tratados de
pedagogia e parénese ético-política, documentos privilegiados, a par dos Livros de
Horas, do ideal humano do Renascimento.
A elaboração teórica do modelo de governante no humanismo renascentista
português não é alheia às novas concepções filosóficas do mundo, do direito e do
estado34 e prende-se também necessariamente com a nossa realidade histórica. Esta
é, pode afirmar-se, a principal marca de originalidade do modelo de príncipe no
humanismo português.
Frei António de Beja, na sua Breve doutrina e ensinança de príncipes, dividido
em três partes, correspondentes às virtudes sabedoria, justiça e prudência, abre com
longas transcrições do De hominis dignitate de Giovanni Pico della Mirandola 35.
É precisamente na obra de Cataldo, que marca, com a sua vinda de Itália para
Portugal, em 1485, o início do Humanismo Renascentista entre nós, que vamos
encontrar os primeiros elogios de feição humanista, onde as letras, a formação, a
cultura das figuras retratadas nas suas composições, precedem todos os outros pre-
dicados. E Cataldo ocupa-se nem só de figuras masculinas, mas de mulheres da alta
nobreza, a quem, indiscriminadamente, intitula de Sibilas, pelo sua cultura, pelo
seu saber.
Por ser deveras expressivo, refiro o elogio que Cataldo faz de João Rodrigues Sá
de Meneses — o famoso tradutor, em verso, de três Heroides de Ovídio, no Can-
cioneiro Geral —, em carta dirigida ao seu aluno D. Pedro de Meneses, conde de
Alcoutim36:
33
Vide e.g. as Leis extravagantes collegidas e relatadas pelo licenciado Duarte Nunes de Lião, per mandado do muito
alto e muito poderoso rei Dom Sebastião nosso Senhor. Coimbra, na Real Imprensa da Universidade, 1796.Sobre o
que se passa nos vários estados italianos, em Espanha, França, vide o artigo de V. PIANO-MONTANI, ‘Problèmes des
États de la Renaissance’, Pouvoir et institutions en Europe au XVIème Siècle (XXVII Colloque International de Tours),
Paris, 1987, p. 8-11.
34
Vide CABRAL MONCADA, Filosofia do direito e do estado. Vol. I, Coimbra, 1947, p. 90.
35
Vide JOSÉ V. DE PINA MARTINS ‘Frei António de Beja, discípulo de Pico della Mirandola’, Revista da Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa, III série n. 8 (1964), 91-142. MÁRIO TAVARES DIAS, Introdução e notas à sua
edição do tratado de Frei António de Beja, Breve doutrina e ensinança de príncipes, p. 28, 103 e sqq.
36
A. Costa Ramalho, Latim Renascentista em Portugal (Antologia), Coimbra, 1994 (1ª ed. 1985), p. 56-59.
«E não posso, mesmo contra vontade, passar em silêncio [...], João Rodri-
gues, de quem eu não sei dizer em que mais se distingue, se na bela aparência
física ou se no talento, boas maneiras e óptimos costumes, se na eloquência
suave e na experiência dos negócios. [ ] E não se contenta com as riquezas
paternas e dos antepassados, como é usual em quase todos os nobres nos
tempos que correm, mas dedica-se às letras com tal persistência, quer lendo,
quer escrevendo, quer interrogando os mais conhecedores, como se por elas
tivesse que ganhar a vida.»
‘...Portanto o rei que deseja com louvor desempenhar o seu cargo deve ter
vários reis, companheiros de ofício, pois de outra forma perderá em vão o
seu esforço, a sua dedicação e até a própria vida na governação do reino. Reis
é o que eu chamo àqueles que são dotados de virtude régia, ainda que não
possuam qualquer reino’.
37
Vide Hieronymi Osorii Lvsitani, Episcopi Algarbiensis Opera omnia [...] in Quattuor uolumina distributa,
Romae, MDXCII. D. JERÓNIMO OSÓRIO, no início do livro IV do seu De regis institutione et disciplina (I, 356, 10),
ao aludir à dignidade do nome de rei e à definição do seu munus exprime a complexidade do seu desempenho, na pátria
portuguesa, tão ampla e diversificada:
38
IDEM, De regis institutione et disciplina , livro VIII (Opera Omnia, I, 538-4-19).
39
IDEM, De regis institutione et disciplina , livro VI (Opera Omnia, I. 425. 62 - 426. 7: Rex igitur, qui munere suo cum
laude perfungi cupit, multos Reges muneris socios habeat necesse est: aliter enim frustra studium, & industriam, atque adeo
uitam in Regno tuendo consumet. Reges autem appello, qui uirtute Regia ornati sunt, quamuis Regnum minime possideant.
40
DAVIDE BIGALLI, Immagini del principi. Ricerche su politica e umanesimo nel Portogallo e nella Spagna del Cinque-
cento. Milano, 1985, p. 27.
41
Cf. VITORINO MAGALHÃES GODINHO, L’ économie de l’empire portugais au XVème et XVIème siècles. Paris,
Assim se compreende que seja dada grande importância ao papel dos cortesãos,
dos conselheiros do rei, que se pretende sejam prudentes no conselho, experimen-
tados na arte de governar e na condução da guerra. O papel político destes conse-
lheiros ultrapassa em muito a simples ajuda do rei, pelo que deveriam ser educados
e instruídos de forma idêntica ao soberano, para poderem sobressair em virtude e
em competência, na prossecução do bem comum, afirma D. Jerónimo Osório, em
longas considerações42.
A complexidade da máquina administrativa do estado, causada pela expansão
em África e no Oriente, vai fazer ascender aos altos cargos civis e militares um ele-
vado número de homens especializados, provenientes em grande parte da burguesia
endinheirada e cultivada. Entre eles, ocuparam papel de relevo os juristas: foi esta
uma das causas que levou grande parte da população estudantil a cursar direito.
Assim se compreende a grande concorrência existente entre os muitos juristas sa-
ídos das universidades, que foi causa da sua má reputação, a de “causíficos”, que
complicavam o direito e instigavam a demandas, com intenções lucrativas43. A no-
breza acorre à corte para poder realizar as suas aspirações de classe privilegiada. Os
membros do clero enxameiam o paço como confessores, pregadores, capelães, aios
e preceptores de príncipes. A nobreza rural, no entanto, continua a lutar com sérias
dificuldades e sente diminuídas as suas prerrogativas. Os lavradores e os mesteirais
vivem em situação desfavorecida, num país onde a agricultura é desprezada e não
há fontes de produção, a não ser o comércio dos produtos orientais que se esvaem
na troca de bens de primeira necessidade.
É esta situação da política interna um dos factores da ambição, da inveja, da
adulação e da hipocrisia da corte, que é retratada e criticada em profusão nas obras
literárias do nosso século de ouro.
Podemos afirmar com Gioacchino Paparelli, tendo em conta a realidade portu-
guesa, que poucas épocas históricas apresentam, como o Renascimento, duas face-
tas tão nitidamente distintas44.
Por um lado, a torre de marfim, as academias, o petrarquismo de corte, o gosto
do idílio e da beata solitudo, a tratadística moral que parte da realidade concreta
para a preceptística ideal.
Por outro lado a “realtà effettuale”: as guerras, as violentas lutas de poder, a obra
de Maquiavel com a ruptura da moral e da política, a afirmação da ciência política
com Jean Bodin; a actividade económica; as ciências naturais, as invenções e as
descobertas geográficas.
Inadequado seria caracterizar a época do Renascimento por qualquer destes as-
pectos, sem lhes indagar uma linha de continuidade e um fundo comum, espacial,
temporal e material.
O otium, o uiuere sibi et Musis, típico da cultura do Renascimento que vai ao
encontro do Odi profanum uulgus et arceo horaciano (Carm. 3.1.1), encontra entre
nós cultores como António Ferreira e Sá de Miranda.
Paralelamente, assiste-se ao gosto de viver na corte. É grande a atracção que esta
representa no século de Ouro europeu como promessa de segurança e bem-estar, de
riqueza e de honras terrenas, do otium como ideal cortesanesco.
Mas é essa corte, em contrapartida, muitas vezes, fonte de desilusões: os autores
quinhentistas exprimem sempre o propósito de se retirarem para a vida privada,
de se contentarem com o bastante para viver decorosamente, sem aborrecimentos,
intrigas e iniquidades. O De curialium miseriis de Enea Silvio Piccolomini empresta
múltiplos argumentos que se tornaram verdadeiros tópoi, nos nossos humanistas, de
Luísa Sigeia a D. Jerónimo Osório, de Sá de Miranda a André de Resende.
Luísa Sigeia é mesmo o exemplo de menina da Corte, que integra a já designda
Academia feminina da Infanta D. Maria que, inspirando-se sobretudo em Petrarca,
nas Tusculanas de Cícero, em Tertuliano e Plutarco escreve um Diálogo latino entre
duas jovens sobre a vida de corte e a vida solitária, Duarum uirginum colloquium de
uita aulica et priuata (1552)45.
É ainda a corte, ponto de encontro e ao mesmo tempo de fricção entre dois ide-
ais opostos de solitudo e de societas, de otium e de vita civile, que está na origem de
uma literatura de fundo idílico-pastoril, com grande representação entre nós.
A “Arcadia”, locus amoenus, surge como estado de alma e como categoria perene
do espírito humano — a ânsia de evasão do real e do viver procul negotiis que San-
nazzaro modelarmente exprime46.
Mas os poetas do Renascimento italiano, Petrarca, Bembo, Ariosto, Sannazaro
— conhecidos em Portugal e em toda a Europa —, e os autores clássicos, Virgílio,
Horácio, Lucrécio, Ovídio e os elegíacos latinos, na sua espiritualidade e na sua
sensualidade, foram fonte de inspiração da expressão poética quinhentista47.
O traço que mais parece afligir os poetas desta época é o da profunda insegu-
rança, provocada pela rápida sucessão dos acontecimentos, pela mudança que o ho-
mem não pode controlar e sofre passivamente, pela existência de uma ordem divina,
perfeita e verdadeira, mas inacessível e velada aos homens, sujeitos por isso ao poder
da Fortuna48. Por contraste à insegurança e instabilidade do quotidiano, surgem
as idealizações da repousada vida no campo, da vida afortunada dos lavradores, de
Odette Sauvage, Luísa Sigeia. Dialogue de deux jeunes filles sur la vie de retraite (1552). Présenté, traduit et
45
Coimbra, 1992.
48
Cf. eg. Luís de Camões, Rimas. Texto estabelecido e prefaciado por A. J. Costa Pimpão. Coimbra, Atlântida,
1973, p. 199.
49
Vide Sylvie Deswarte, Il ‘perfetto cortegiano’ D. Miguel da Silva, Roma, 1989.
Veja-se a dedicatória do Epitalâmio pastoril a António de Sá no casamento de sua filha, in Poesias de Francico de Sá de
50
Miranda. Edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Halle, 1885, p. 501; vide ainda, a este propósito, a carta de Antó-
nio Pereira Marramaque a Diogo de Castro, referida por Eugenio Asensio, Estudios Portugueses, Paris, 1974, p. 168.
Garcia de Resende, Cancioneiro geral. Fixação do texto e estudo por Aida Dias. Lisboa, Imprensa Nacional,
51
— fuor della consuetudine del profano vulgo, como postulava Il cortegiano53 —, que
exprimiu admiravelmente os contrastes do sentimento amoroso, o debate passional,
em termos de petrarquismo e neoplatonismo, segundo a sensibilidade e os cânones
literários do seu tempo54. Assim cantou o amor nos mais diversos tons, dando ex-
pressão às dicotomias espírito-sentidos, alma-corpo, verdade-ilusão, que têm por
eixo a estrutura binária do amor, a espiritual e a sensual55.
Ficino, através da versão latina do Corpus Platonicum e dos importantes e ex-
tensos comentários ao Banquete de Platão, o De amore, e às Enneades de Plotino
— figura cimeira do neoplatonismo, no século III d.C. —, torna‑se o principal
responsável pela difusão na cultura europeia do neoplatonismo e pelo proliferar de
grande número de diálogos e tratados sobre o amor, de que são exemplo Gli Asolani
de Bembo, já conhecidos de Sá de Miranda, e os Dialoghi d’ amore do português
Leão Hebreu.
No tempo em que alvorecia a modernidade e se reconhecia à vida activa um pa-
pel superior ao da vida contemplativa, a temática amorosa e a visão secularizante do
amor invadem todos os géneros literários, desde a novela sentimental ao romance
de cavalaria, desde a poesia lírica à arte dramática, à epopeia.
Se a obra de Platão ou os tratados neoplatónicos renascentistas fornecem aos
poetas do século XVI, a trama metafísica da doutrina do amor platónico, é sobretu-
do Petrarca quem faz a síntese admirável de todas as componentes líricas, fornecidas
pela tradição.
É através de antíteses abstractas, de uma sugestiva imagética da interioridade e
de metáforas conceituosas, capazes de exprimirem a dialéctica amorosa, que o poeta
de Arezzo impõe à literatura europeia um verdadeiro código poético, o petrarquis-
mo, ou dá o tom petrarquizante à expressão do amor cortesanesco56.
Portugal, intervindo no debate teológico-filosófico sobre a vida contemplativa e
a vida activa com o discurso retórico de autores como Luísa Sigeia, João de Barros,
D. Jerónimo Osório e Frei Heitor Pinto, vai ser palco da expansão ultramarina e
conciliar, na sua política de dilatação da fé e do império, as antinomias clássicas
otium/negotium e arma/toga, definidoras do ideal humano desse tempo.
Apesar de toda uma literatura de carácter moralista e parenético se editar em
Portugal no século XVI, é sobretudo o negotium, a vida activa, que a gesta lusa
53
Baldassare Castiglione, Il Libro del Cortegiano. Introduzione di A. Quondam, Milano, Garzanti, 1981:
Lib. IV, Cap. LXI, p. 439. Neste mesmo Lib. IV, no cap. LI, p. 426-427, Castiglione, pela boca do interlocutor Pietro
Bembo, define “o que é o amor e em que consiste a felicidade, que podem ter os enamorados”, como “o desejo de fruir a
beleza” e de ascender, através da particular beleza da amada, à Divindade, fonte universal de beleza, bondade, sabedoria.
Sobre os graus deste processo intelectivo do amor platónico, cf. ainda Lib. IV, maxime caps. LXVII- LXX, p. 446‑452.
54
Refiram-se, a título de exemplo: o soneto de Camões representativo do seu neoplatonismo, Transforma-se o amador
na cousa amada ; e os sonetos expressivos do seu petrarquismo Amor é um fogo que arde sem se ver, cheio de antíteses e
oximoros, e Alma minha gentil, que te partiste, onde surge o tema da separação dos amantes pela morte da amada.
55
Vide Maria Helena Ribeiro da Cunha, A dialéctica do desejo em Camões, Lisboa, 1989, p. 30.
56
Vide Rita Marnoto, O petrarquismo português do Renascimento e do Maneirismo, cit., cap.II, 3: «O petrarquismo
face à tradição cortesanesca», p. 208-230; cap. III, 4; «Processos de interferência sígnica», 443-504; e cap. IV, 2: «A
revitalização da poesia cortesanesca», p. 545-556.
in Actas do VI Forum Camoniano — «Os mares de Camões» — Centro Internacional de Estudos Camonianos da
Associação para a Reconstrução da Casa-Memória de Camões (Constância, 30 e 31 de Julho de 1998), Lisboa, 2000,
pp. 41-54.
60
Vide H. OSORII, Opera omnia, I, 253.1-254.39 (as citações que surgem no corpo do texto deste artigo, são feitas
pelos Opera omnia, volume I, e apresentam sempre só os números das colunas e das linhas em que se inclui o passo
referido).
Inicia esta obra, logo no primeiro livro (263.51), com um ataque à filosofia —
enaltecida nas Tusculanas de Cícero67 — encarada do ponto de vista dos seus de-
tractores como mera especulação teórica, na linha dos filósofos naturalistas, como
Tales e Arquimedes, apresentados como exemplos significativos de alheamento do
mundo. A apresentação desta vertente negativa da filosofia e do filósofo, negligente,
afastado das realidades, distante dos homens e dos seus costumes, de que a comédia
aristofânica é a principal fonte de transmissão, cabe a Lourenço Pires de Távora
(263.51-277.21). Embaixador da corte portuguesa em Roma, distingue-se não só na
carreira diplomática, que lhe mereceu louvores e consideração, mas também pelas
qualidades militares, manifestadas nos cargos que desempenhou quase até ao fim
da vida. É ele que fala em nome da facção política portuguesa — multorum opinio
— que era a favor das armas, em detrimento das letras (I. 264.4-18).
As cortes de 1562 tinham-se pronunciado neste sentido. O cap. 24º destas cor-
tes revela eloquentemente o estado de espírito do povo e a sua exaltação patriótica,
despertada pelo cerco de Mazagão: «Que os Estudos de Coimbra se desfação por
serem prejudiciaes ao Reyno, e a renda se applique para a guerra, e quem quizer
aprender vá a Salamanca, ou a Pariz e não haverá tanto Letrado sobejo, nem tantas
demandas»68.
Osório, para conferir verosimilhança ao seu diálogo, não pode deixar de dar
expressão a esta mentalidade. Assim se defende, para se rebater cabalmente ao longo
do diálogo, a educação cavaleiresca, a educação medieval, que dava grande impor-
tância à arte militar, aos exercícios da guerra.
Curiosa é a forma como o autor, neste primeiro livro, associa a educação ca-
valeiresca e o ataque à filosofia. Surge deste modo naturalmente o topos “armas e
letras”, que o Pro Archia ciceroniano divulgou, onde é evidente a intencional ligação
com a realidade portuguesa.
A diatribe contra a filosofia e as letras em geral, identificadas com a inacção e
a ociosidade (I. 264.26-265.30) — o otium no sentido literal e não o otium cum
dignitate louvado por Cícero —, sustenta toda a argumentação de Távora.
A crença na possibilidade de a virtude ser ensinada (272.42-50), não de forma
teórica, mas prática, de par com o enaltecimento da vida activa e operativa, que
conduz ao progresso, leva Távora a concluir pela inutilidade, e mesmo prejuízo, da
dedicação à filosofia (273.44-46). Defende o princípio de que a malícia adornada
da cultura e das mais nobres disciplinas, sobretudo da eloquência (273.56 e sqq.),
conduziram à ruína de florescentes repúblicas. Aliás, a perda dos maiores impérios
deve-se a homens eruditos — Péricles, Alcibíades, Crítias e Demóstenes — que
tiveram por mestres filósofos como Anaxágoras, Sócrates, Platão.
A evocação de aspectos negativos de personalidades que desempenharam um
papel de relevo no desenvolvimento da democracia ateniense é por si só reveladora
67
CÍCERO, Tusc. e.g. 5.5.; cf. também Off. 3.5. Este passo das Tusculanas, em que Cícero define a filosofia e suas
virtualidades é com frequência citado ou imitado pelos humanistas.
68
Vide QUEIROZ VELLOSO, D. Sebastião (1554-1578) Lisboa, 1945, p. 62-63.
da argumentação falaciosa, que se liga, em última análise, com o debate ético que
surgiu na época helenística sobre a importância do saber prático ou da sabedoria
contemplativa.
A aliança da erudição à eloquência tendenciosa (274.34 e sqq.) e o papel desta
na destruição da república é um sofisma que se prende com argumentos colhidos no
Diálogo dos oradores — atribuído a Tácito, que estabelece uma ligação entre o fim
da república e o florescimento da arte oratória69.
Como resposta a Távora, no que respeita à filosofia e sua utilidade, o sentido da
palavra filosofia clarifica-se no desenvolvimento da argumentação como conheci-
mento global enciclopédico, como sabedoria. No livro VI (444.53 - 447.3) afirma-
se que esta se adquire com a ajuda das letras (449. 50-53) a que o príncipe dedicará
‘o tempo indispensável à formação do carácter, à aquisição do saber régio’ (449.
57-58). Estas palavras incluem uma refutação aos argumentos de Lourenço Pires
de Távora, traduzidos também nos próprios exemplos de figuras notáveis da cena
política ateniensa por ele criticadas no livro I.
A terminar, o De regis institutione et disciplina dá resposta cabal às considerações
do livro I: a filosofia que deve ornamentar a república não é a que Távora identifica
com a ociosidade, nem a ostentação do saber dos sofistas, mas a uigilantiae magistra
— do livro V das Tusculanas de Cícero — que leva ao amor da salvação pública
(532.34-44).
E, além disso, podemos concluir, a proposta de uma educação cavaleiresca e o
enaltecimento da vida activa, que dispensa o estudo reflectido, punham em causa
o labor do filósofo, do teólogo, do homem de letras, enfim, a essência da própria
cultura humanista que era necessário defender.
Osório vai provar a necessidade de firmes apoios na formação régia. Entre eles
avulta o cultivo das letras que é tanto mais imprescindível quanto maior é a condi-
ção social. A temática horaciana, retomada pela tragédia de Séneca, da maior expo-
sição e vulnerabilidade dos lugares mais altos serve de suporte à ideia da necessidade
da maior diligência posta na educação dos reis.
No entanto, o gosto de D. Jerónimo Osório pela vida militar, que o seu bió-
grafo e sobrinho testemunha70, revela-se bem em palavras cheias de entusiasmo e
ardor pelo culto das armas, de acordo com o sentimento nacional: os soldados, que
cobrem de glória o seu príncipe e arriscam a vida pela protecção da república, de-
vem merecer a maior gratificação e reconhecimento do príncipe pela sua coragem e
magnanimidade (489.23-490.25). O tom crítico das palavras de Osório à realidade
portuguesa transparece nas longas considerações que faz a este respeito (490.25-
491.13).
Uma nova ordem de considerações se apresenta: cabe ao rei, no desempenho do
seu ofício, não só exercitar os homens de armas, mas também moderá-los e instruí-
69
O Diálogo dos oradores foi descoberto em 1425 e obteve larga divulgação no séc. XVI.
H. OSORII, Op. omnia, I, p. 2: Multa enim ad militiam excitabant; maiorum scilicet exempla, animi magnitudo sin-
70
71
Nair de nazaré castro soares, O príncipe ideal no século XVI e a obra de D. Jerónimo Osório cit., p.
326.
See Ismene Lada-Richards, Initiating Dionysus: Ritual and Theatre in Aristophanes’ Frogs (Oxford: Clarendon Press,
1
1999): 17-44.
2
Hooker (1980: 178) dates the Gerytades to 408 B.C.E. Aristophanes’ plays dealing with contact between inhabitants
of the upper and lower worlds were undoubtedly influenced, at least to some extent, by Eupolis’ Dêmoi, “which brought
back to life Solon, Miltiades, Aristides, and Pericles.” See Thomas K. Hubbard, The Mask of Comedy (Ithaca: Cornell
University Press, 1991): 200; see also Kenneth J. Reckford, Aristophanes’ Old-and-New Comedy (Chapel Hill: University
of North Carolina Press, 1987): 408.
3
Albeit a mortal who may take on divine qualities, as Lada-Richards (1999: 327) points out.
4
See especially Charles P. Segal, “The Character and Cults of Dionysus and the Unity of the Frogs,” HSPh 65 (1961):
207-242; P. Epstein, “Dionysus’ journey of self-discovery in the Frogs of Aristophanes,” Dionysius 9 (1985): 19-36;
Richard F. Moorton, “Rites of Passage in Aristophanes’ Frogs,” CJ 84 (1988-1989): 308-324; Mark Padilla, “The Hera-
clean Dionysus: Theatrical and Social Renewal in Aristophanes’s Frogs,” Arethusa 25 (1992): 359-384; Steven Forde,
“The Comic Poet, the City, and the Gods: Dionysus’ katabasis in the Frogs of Aristophanes,” Interpretation 21 (1993-
1994): 275-286; Lada-Richards 1999: passim.
and gestures” in Aristophanes, writes John Vaio.5 In Frogs, Aristophanes takes his
Athenian audience to visit the underworld, but in the course of their imaginary
journey they discover that the customs and inhabitants of the underworld bear
many similarities to those of Athens. Thus, the comic poet blurs the distinctions
between the upper and lower worlds. This not only creates humor, but also points
out the deterioration of his city and its citizens.
As the play opens, Dionysus, dressed like Heracles, goes to the real Heracles
home to seek advice about a journey to the underworld. One intersection in this
episode between the customs of Athens and the underworld occurs when Dionysus,
upon learning from Heracles that he will have to pay Charon two obols to be fer-
ried to the underworld, notes the power of two obols in the upper world (141). As
Moorton notes, two obols was “a comic inflation of the legendary obol for Charon,”
but two obols may also have been the price of admission to the play the Athenians
were watching.6 By having entrance into both Hades and the theater in Athens cost
the same price, Aristophanes blurs the distinction between Athens and underworld.
Heracles additional detail that the Athenian hero Theseus brought down the obols
adds a further link between the underworld and Athens.
A similar intertwining of customs appears in the subsequent meeting with
Charon, who tells Xanthias that he will not allow slaves on his boat unless they
fought at Arginusae (190-91), after which Athenian slave combatants were freed
and granted citizenship.7 While Xanthias cannot enjoy the privileges granted to
Athenian slaves after Arginusae, Dionysus also appears rather un-Athenian as he
reveals his inexperience in rowing and with the sea (204).8 Dionysus education in
becoming more Athenian begins as he rows across the lake and hears “the ghosts of
frogs which once lived at Athens” (215-219).9 Not only is the fee to enter the under-
world an Athenian one, but also the frogs in the underworld are Athenian.
John Vaio, “On the Thematic Structure of Aristophanes’ Frogs,” In Hypatia: Essays in Classics, Comparative Literature
5
and Philosophy Presented to Hazel E. Barnes on her Seventieth Birthday. Edited by William M. Calder III, Ulrich K.
Goldsmith, and Phyllis B. Kenevan (Boulder, Co.: Colorado Associated University Press, 1985): 91.
Moorton 1989: 311. For the two-obol admission fee and uncertainty regarding its history, see Arthur Pickard-Cam-
6
bridge, The Dramatic Festivals of Athens (Oxford: Clarendon Press, 1953): 270-73.
7
For more on this subject, see B. Baldwin, “Medical grounds for exemptions from military service at Athens,” CPh
62 (1967): 42-43; W. B. Stanford, Aristophanes: Frogs (London: Bristol Classical Press, 1958): 132; Dover 1993: 279;
Sommerstein 1996: 217. The citizenship granted to the slaves after Arginusae may have had some sort of limitations
placed upon it.
8
The characterization of Dionysus as un-Athenian is not consistent, however, because in the beginning of the play, for
example, Dionysus was well-aware of the sort of jokes Athenian comic poets employed to make the audience laugh.
Contrast Segal (1961: 228), who describes Dionysus in the Frogs as “a peculiarly Attic god.” Segal, however, is thinking
of Aristophanic Dionysus in comparison with Euripides portrait of Dionysus in Bacchae. For Aristophanes’ inspiration
for the rowing scene, see A. M. Wilson, “A Eupolidean Precedent for the Rowing Scene in Aristophanes’ Frogs,” CQ 24
(1974): 250-252 and the same author’s “Addendum to ‘A Eupolidean Precedent for the Rowing Scene in Aristophanes’
Frogs,’” CQ 26 (1976): 318.
9
Dover 1993: 223. Moorton (1989: 312) notes, “scholars are divided over whether the frogs are dead or alive, and inhab-
iting the underworld or upper world.” Sommerstein (1996: 177) agrees with Dover that the frogs Dionysus encounters
are the spirits of Athenian frogs.
After Dionysus’ encounter with the frogs, Aristophanes continues to link Ath-
ens and the underworld. Upon being reunited with Xanthias, Dionysus asks his
slave if he “saw those father-beaters and perjurers.” Xanthias answers affirmatively
and then asks, “Why, didn’t you?” Dionysus responds, “Yes, by Poseidon, I did
and I can still see them now!” (276). Dionysus’ remark refers to Aristophanes’
audience. Aristophanes both breaks down the barrier between actor and audience
and eliminates the distinction between his real audience and the inhabitants of the
underworld. Such a remark transports the spectators to the underworld and links
Aristophanes’ fellow Athenians with some of the underworld’s notorious inhabit-
ants. We note also that father-beaters (patraloiai) are connected to the intellectual
movement that Aristophanes associates with Socrates and Euripides. In Clouds,
Pheidippides becomes a patraloias (1327) after being educated at Socrates’ school.
Later in Frogs (773), Pluto’s slave mentions the patraloiai as being enthralled with
Euripides’ poetry after his arrival in the underworld.10
In addition to Aristophanes linking his audience with some of the underworld’s
most notorious inhabitants, the playwright even brings Dionysus’ own priest into
the underworld. At line 297, Dionysus, terrified by the image of Empusa, runs to
the front of the orchestra and begs the priest of Dionysus, who would have been
sitting in the front row, “Priest, keep me safe, so I can come to your party [after the
performance].”11 Here, Aristophanes turns “religion topsy-turvy” as “a god begs a
human for protection,” as well as, in some sense, places Dionysus’ Athenian priest
in a netherworld version of the theater.12
Another link between the underworld and Athens emerges during the parodos
of the second chorus, who, like the frogs, have an Athenian connection, as they are
initiates to the mysteries at Eleusis (part of Athenian territory). By the time of the
initiates’ delivery of the parabasis (686), Aristophanes has substantially blurred the
antithesis between Athens and underworld. This clears the way for him to establish
and explore the most important (in this writer’s opinion) antithesis in the play:
what is useful (chrêston) for Athens and what is not useful.
At lines 727-33, the initiates complain that Athens is turning its back on the
“well-born, virtuous, honest, fine, upstanding men, reared in wrestling-schools and
choruses and culture” and is embracing “men of base metal, aliens, redheads, low
fellows of low ancestry, johnny-come-very latelys, whom formerly the city wouldn
t have used… even as scapegoats” (727-33). The initiates in the underworld con-
clude by urging the audience of the upper world to “honour the honest again”
(chrêsthe tois chrêstoisin authis, 735).
10
See also Birds 1337 ff., where a patraloias tries to enter the city in the clouds and is rejected.
11
Stanford 1958: 98; Dover 1993: 230; Sommerstein 1996: 181.
Sommerstein 1996: 181; Niall Slater, Spectator Politics: Metatheatre and Performance in Aristophanes (Philadelphia:
12
University of Pennsylvania Press, 2002): 186. See also Niall Slater, “The Lenaean Theatre,” ZPE 66 (1986): 263. In
this article, Slater makes the case for the Lenaea’s productions being held at a theater in the precinct of Dionysus at
Limnais.
While at first glance the initiates’ remarks may seem out of place with what has
come before and what will follow, the two groups of citizens just described resem-
ble those who embrace the poetry of Aeschylus and Euripides. Those in Aeschylus
audience were virtuous old coinage, while Euripides’ audience members are char-
acterized as base coinage.
After the parabasis, an unnamed slave of Pluto tells Xanthias how Euripides be-
came popular in the underworld. He explains that when the most skillful person in
a profession on earth dies and descends to the underworld, that person is rewarded
with, among other things, maintenance in the Prytaneum (764). Note again the
similarity between Athens and the underworld. Not only does the underworld have
a Prytaneum, but also the underworld’s inhabitants have a custom similar to the
Athenians, who rewarded their “victors in the panhellenic games” with mainte-
nance in the Prytaneum.13
A further elimination of the antithesis between Athens and underworld oc-
curs when Xanthias hears that the crowd of evildoers in the underworld embraced
Euripides as their champion. Accordingly, Pluto’s slave laments that “the honest
(chrêston) are few” (783) both in the underworld and on earth.14 In making this
comment, Pluto’s slave shatters the dramatic illusion “as he waves [his] hand toward
the audience”, as the Greek words hôsper enthade indicate.15 Note also that the slave
s use of the word chrêston recalls the parabasis, in which the initiates’ final injunc-
tion to the audience was to “honor the honest” (chrêsthe tois chrêstoisin, 735).
As the episode ends, Xanthias learns that Dionysus will judge the contest be-
cause, among other reasons, Aeschylus regarded the Athenians as villains (toichôru-
chous, 808). The use of the noun toichôruchous echoes its only other occurrence in
the play (line 773), where Pluto’s slave mentioned the toichôruchoi as part of the
crowd in the underworld who were enthralled with Euripides’ poetry. As Slater
notes, “If we needed any further assurance that Hades is just another version of
Athens, this dialogue [between Xanthias and the slave] provides it.”16 The toichôru-
choi in the underworld love Euripides and the toichôruchoi in Athens would un-
doubtedly judge him as their champion. As for the fictional Aeschylus’ rejection of
the Athenians as judges in the contest, this deviates from the real Aeschylus’ own
choice in his Eumenides, in which his fellow Athenians served as jurors for Orestes’
trial. In the five decades since the Eumenides was first staged, Aristophanes has
Aeschylus lose confidence in the Athenians’ ability to judge.
After the episode between the two slaves concludes, preparations for the contest
begin as Dionysus, Aeschylus, and Euripides take the stage. Pluto is also present,
but he does not speak until the play’s conclusion (line 1414). While the contest oc-
13
Dover 1993: 287. See also Stanford 1958: 138; Sommerstein 1996: 222-23.
14
The translation of chrêston as “honest” is my translation.
15
Dover 1993: 288.
16
Slater 2002: 192.
curs in the fictional underworld, the subject matter focuses on real concerns in the
upper world, namely what sort of instruction a playwright should provide for citi-
zens. Thus, the contest that Dionysus will judge is not merely between Aeschylus
and Euripides, but a contest over the Athens of old and the Athens of Aristophanes
own time. Aristophanes spent the first half of the play blurring the distinction be-
tween upper world and underworld, but now he returns to the very clear antithesis
he established in the parabasis, the antithesis between the current citizens of Athens
(represented by Euripides) and its citizens of old (represented by Aeschylus).
After some initial verbal sparring between the two poets, the formal analysis
of poetry begins at line 1120. With respect to this paper’s thesis, the three main
critical contests that follow are good fun, but have little concern with the antithesis
of earth and underworld. At lines 1119-1250, the two playwrights criticize each
other’s prologues. At lines 1261-1363, the tragedians parody each other’s lyrics. At
lines 1364-1413, the pair compete to determine who composes the heaviest lyrics.
The final contest between the two tragedians returns to issues that concern the
Athenian polis. At line 1411-13, Dionysus indicates to Pluto that he has not made
up his mind between the two poets because “One of them I consider to be a re-
ally great [sophon] poet, and the other I enjoy [hêdomai]!” In the first half of Frogs,
Dionysus had disguised himself as Heracles in imitation of that hero’s journey to
the underworld. At the play’s conclusion, Dionysus may have set aside the costume,
but the choice he must now make recalls a parable about Heracles attributed to
Prodicus of Ceos, who may have been one of Euripides’ teachers and with whom
Aristophanes was also familiar.17 The so-called “Choice of Heracles,” partially pre-
served in Xenophon’s Memorabilia (2.1.21), relates how Heracles encountered the
personifications of Aretê and Kakia and had to choose which of them to follow.
Thus, in a manner reminiscent of Prodicus’ Heracles, Dionysus, at the crucial
juncture of his “journey of self-discovery” as Epstein calls it, must choose between
Aeschylus and Euripides.18 When crossing into the underworld, Dionysus had ap-
peared rather un-Athenian, describing himself as un-Salaminian and admitting
that he had little knowledge of seamanship. By the play’s end, however, Dionysus
appears more Athenian as he challenges the two playwrights to comment on what
Athens should do about Alcibiades.19 As Epstein points out, Dionysus is becom-
ing less concerned with his own interests and more concerned with the interests of
Athens. Hooker, holding a similar view, finds that Aristophanes “makes his opin-
ion clear by setting two attitudes in stark opposition to each other: the public and
communal versus the private and selfish.”20 The concern with Athens is clear as the
words polis and politês occur eleven and three times respectively in the play’s last
17
See Clouds 361, Birds 692, Fragment 490 Kock.
18
Compare Segal (1961: 227), who describes Dionysus’ journey as a “rebirth or rediscovery of himself.”
19
On Dionysus’ growth as a character, see also Slater 2002: 183.
20
Hooker 1980: 171; see also Lada-Richards 1999: 109.
125 lines.21 At lines 1420-21, Dionysus returns to the antithesis of chrêston versus
achrêston established earlier when he gives the two playwrights their final chal-
lenge:
I came down here for a poet; and why? So that the City [polis] may survive
and go on holding her choral festivals. So whichever of you is going to give
some good [chrêston] advice to the City, that is the one that I think I’ll be
taking back with me.
After the playwrights speak, Dionysus again recalls Prodicus’ Heracles. At lines
1433-34, Dionysus remarks, “By Zeus the Saviour, I can’t make up my mind. One
of them has spoken intelligently [sophôs] and the other intelligibly [saphôs]!” Faced
with the antithesis of intelligence (Aeschylus) versus intelligibility (Euripides), Di-
onysus focuses on the welfare of the polis and urges the playwrights, “Just give me
one more suggestion each about a way...for the City to secure her survival” (1436).
After Euripides’ proposal, Aeschylus, echoing Aristophanes’ injunction in the
parabasis for the Athenians to “honour the honest again” (chrêsthe tois chrêstoisin
authis, 735), questions Dionysus before making his suggestion (1454-55): “Well,
first tell me about the City, who does she honour [chrêtai]? Is it the honest [chrês-
tois]? When Dionysus informs him that the polis “takes pleasure in villains [ponêr-
ois, 1456],” Aeschylus wonders how such a city can be saved. Dionysus responds,
“You’d better find a way, if you want to rise to earth again” (1460). Aeschylus,
perhaps alluding to the character of Sisyphus from one of his own plays the de-
ceased Sisyphus tricked Pluto into allowing him to return to the upper world , tries
to trick Dionysus by saying that he will give his advice when they reach the upper
world, but Dionysus orders him to offer his advice from the underworld (1461-62).
Aristophanes blurred the distinction between earth and underworld throughout
the play, but Dionysus establishes very clear boundaries for Aeschylus here. Because
Aeschylus has the opportunity to gain a reward even greater than Homeric Achilles
longed for not only to return to the upper world, but also return to his previous
station in life , the playwright offers his advice.22
After Pluto urges Dionysus to make a decision, Aeschylus is chosen. Although
Aristophanes blurs the antithesis between earth and underworld in Frogs, in the
end the playwright does not have Dionysus choose Euripides, whose poetry blurred
the distinction between existence upon the earth and existence in the underworld.
At lines 1477-78, Dionysus concludes his rejection of Euripides by quoting one
of the tragedian’s own lines to him: “Who knows if life is truly death”, a remark
adapted from Euripides’ Polyidus (638 Nauck) and/or his Phrixus (833.1).23
21
See polis at 1419, 1420, 1423, 1429, 1431a and b, 1436, 1454, 1458, 1501, 1530; politês at 1427, 1446, 1487.
For a comparison of Aristophanic Aeschylus and Achilles, see T. A. Tarkow, “Achilles and the Ghost of Aeschylus in
22
After Pluto, Dionysus, and Aeschylus return to Pluto’s house for some enter-
tainment before their departure, the chorus praise Aeschylus for his intelligence
and wisdom and condemn Euripides for ruining tragedy by infusing his plays with
Socratic nonsense (1491-95). When Pluto returns with Dionysus and Aeschylus,
Aristophanes continues to blur the distinction between Athens and the underworld
as he has Pluto urge the playwright to “Save our [my italics] city” (1501).24 Pluto also
brings Aristophanes’ audience into the underworld as he tells Aeschylus to “educate
the foolish [anoêtousa] folk there, many as they are” (1502-3).
Aeschylus’ return to the upper world holds the expectation that both tragedy
and Athens will benefit. Moreover, Aeschylus, ensuring that similar pedagogical in-
tegrity will exist in the underworld, tells Pluto to give his chair as master of tragedy
to Sophocles. Thus, even at the play’s conclusion, Aristophanes blurs the antithesis
between upper and lower worlds as he establishes as heads of the tragic arts in both
realms two poets who will provide the inhabitants with good instruction.25 Ae-
schylus will establish “communal order” in the upper world, while Sophocles will
establish it in the underworld.26
Slater (2002: 205) notes that Aristophanes’ use of the possessive “our” may be “a compliment to Athens, but it may
24
be a dire warning: Pluto was not a divinity much honored with worship or gladly acknowledged in ancient Greece.”
As Dover (1993: 382) notes, Scaliger rejected the reading hêmeteran because “the god is not an Athenian.” Our thesis
that Aristophanes continually blurs the antithesis between Athens and underworld obviously supports the reading of
hêmeteran.
25
For a pessimistic view of Aeschylus’ return to Athens, see C. H. Whitman, Aristophanes and the Comic Hero (Cam-
bridge: Harvard University Press, 1964): 256.
26
On Dionysus establishment of “communal order,” see Segal 1961: 215-16.