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DEMOCRACIA VIVA 23
ago 2004 / set 2004
Entrevista
Dona Dijé
Reforma política
Almira Rodrigues
Cidadania
encurralada
Cândido Grzybowski
Cultura
Marcelo Carvalho
e d i t o r i a l
Dulce Pandolfi
Historiadora, diretora do Ibase,
pesquisadora do CPDOC/FGV
Coordenadores(as)
28 Internacional Erica Rodrigues
Desafios da participação cidadã nos Iracema Dantas
processos de inovação democrática Itamar Silva
Felipe Llamas Sánchez João Roberto Lopes Pinto
João Sucupira
38 Entrevista Leonardo Méllo
Dona Dijé Moema Miranda
Núbia Gonçalves
48 Especial
Mulheres que quebram o coco e extraem a vida DEMOCRACIA VIVA
Iracema Dantas ISSN: 1415149-9
Diretor Responsável
56 Crônica
Cândido Grzybowski
Ocultar e revelar
especial Alcione Araújo Conselho Editorial
Alcione Araújo
Mulheres que quebram
o coco e extraem a vida 58 Resenhas Ari Roitman
Eduardo Henrique Pereira de Oliveira
62 Opinião Ibase Jane Souto de Oliveira
Reflexões preliminares sobre espaços Regina Novaes
Rosana Heringer
públicos de participação no governo Lula
Nelson Giordano Delgado Coordenação Editorial
Flávio Limoncic Iracema Dantas
Diagramação
Imaginatto Design e Marketing
Fotos da Capa
Eraldo Platz, Almir Veiga (Agência JB)
e Evandro Teixeira (Agência JB)
Fotolitos
Rainer Rio
Impressão
J. Sholna
Tiragem
5 mil exemplares
democraciaviva@cidadania.org.br
artigo
Almira Rodrigues*
R e f o r m a
p o l í t i c a
1
4 Democracia Viva Nº 23
Reforma política e participação
líticos, que têm uma função pública a desem- No âmbito da discussão da reforma
penhar, contribuindo cada um, a partir de seus partidária, o projeto em tramitação na Câmara
referenciais político-ideológicos, para a constru- incorporou ações afirmativas visando ampliar a
ção de projetos de sociedade. Trata-se de abrir presença das mulheres na política, ao propor
espaços para a criação de outras possibilidades, duas medidas importantes: a destinação de pelo
de invenções de organização, de expressão e menos 20% do tempo de propaganda partidária
representação política e de experiências que gratuita na mídia para promover a participação
possam animar a vida política brasileira. das mulheres e a destinação de percentual
Por fim, a terceira questão diz respeito equivalente a 6% do fundo partidário para
ao monopólio da representação política pelos promover a formação e a participação política
homens. É cada vez mais generalizado o re- das mulheres. Esses dispositivos significam
conhecimento de que a reduzida presença das a regulamentação da utilização de recursos
mulheres na esfera da representação política é públicos e não devem ser compreendidos
uma forte expressão como interferência na autonomia partidária
da fragilidade e do (Rodrigues, 2004).
comprometimento O projeto manteve o dispositivo de
da democracia (Bar constituição de lista fechada com o mínimo
reiro et al., 2004). O de 30% e o máximo de 70% das vagas para
quadro de exclusão ambos os sexos, a exemplo do que já ocorre
das mulheres desse para a constituição de lista aberta. Nesse
espaço público é ponto, no entanto, é mister observar que,
grave. Apenas 15 na lista fechada, o sistema de cotas por sexo
países apresentam só é eficaz caso seja garantido o lugar de
participação de mu- mulheres e de homens na ordenação da lista,
lheres na Câmara impedindo que as mulheres sejam colocadas
Baixa, ou Câmara ao fim da lista e não logrem eleger-se. Dois
dos Deputados, su- exemplos que garantem iguais oportunidades
perior a 30%. O Brasil são marc antes pela sua eficácia. A Argentina,
encontra-se no grupo primeiro país a adotar as cotas em lei eleitoral,
de 70 países com pior em 1991, dispõe sobre a formação das listas
desempenho, inferior fechadas de forma que não se tenha mais do
a 10%. Em âmbito que dois nomes consecutivos do mesmo sexo
legislativo estadual e e já apresenta 30% de mulheres no Parlamen-
municipal, o percen- to. A França, primeiro país a se nomear como
tual de mulheres gira uma democracia par itária, adotou o sistema
em torno de 12% e, da paridade, com alternância eqüitativa entre
em âmbito executivo, homens e mulheres na formação da lista,
é bem abaixo. Esse nas eleições municipais de 2001, alcançando
cenário foi ampla- praticamente uma proporção meio a meio na
mente destacado na representação política nessa esfera.
IV Conferência Mun-
dial Sobre a Mulher,
Sociedade atenta
realizada em Beijing,
em 1995, que reco- Na participação política, é importante pensar
mendou o seu fir- a tríade: organizações da sociedade civil, re-
me enfrentamento, presentação política no âmbito do Estado e
mediante legislação partidos políticos. Quanto mais essas esferas
e políticas públicas, dialogarem, mais se estará aprofundando a de-
com ações afirma- mocracia. A fala de cada esfera consigo mesma
tivas. A partir de é necessária, mas insuficiente para se avançar
então, dezenas de na construção da cidadania, que é fruto da
países passaram a adotar o sistema de cotas gestão pública, e não da gestão partidária ou
por sexo em suas legislações, e já somam 75 corporativa. Nessa medida, o debate sobre a
os países que adotaram algum tipo de legis- reforma política precisa transpor a esfera da
lação sobre a questão, representando 45% representação política e adentrar os campos
dos países que têm instituições legislativas. da sociedade civil organizada e dos partidos.
6 Democracia Viva Nº 23
Reforma política e participação
Cada uma dessas esferas de ação Nessa medida, os movimentos feminis- * Almira
política apresenta lógica e forma de funcio- tas reivindicam que a reforma possa contribuir Rodrigues
namento próprias, merecendo investigações para que a política deixe de ser um território Socióloga, doutora
aprofundadas, principalmente na perspectiva masculino, machista, racista e homofóbico. em Sociologia pela
de suas relações e mediações. Na sociedade Também se espera que possa contribuir para Universidade de Brasília
brasileira, o espaço político da representação impedir a reprodução das práticas patrimoni e diretora colegiada
Referências bibliográficas
BARREIRO, Line et al. Sistemas electorales y representación NOGUEIRA, Marco A. Em defesa da política. São Paulo: Senac,
femenina en América Latina. Santiago: Nações Unidas/Cepal, 2004. 2001. (Série Livre Pensar, 6).
(Série Mujer y Desarrollo, 54). RIBEIRO, Renato J. Sobre o voto obrigatório. In: VANNUCHI,
BENEVIDES, Maria V. Nós, o povo – reformas políticas para Paulo; BENEVIDES, Maria Victoria; KERCHE, Fábio. (Org.). Reforma
radicalizar a democracia. In: VANNUCHI, Paulo; BENEVIDES, Maria política e cidadania. São Paulo: Perseu Abramo, 2003.
Victoria; KERCHE, Fábio. (Org.). Reforma política e cidadania. São RODRIGUES, Almira. Reforma política e ações afirmativas.
Paulo: Perseu Abramo, 2003. Política Democrática – Revista de Política e Cultura, Brasília, n. 7,
Quanta expectativa está indo por água abaixo! Ou, talvez, com a sensação de encur
ralamento, sentida por muitos e muitas de nós, nem conseguimos ver direito o que se
passa com o governo Lula. Estamos rodando desordenadamente, sem aceitar a armadilha
da macroorientação política. A vontade é investir contra, bater para romper. Não é possível
que tenhamos lutado contra todo um arcabouço de políticas econômicas que nos levaram
(FHC) em contraposição à sua própria teoria da dependência – em vão. Será que, como
diz Francisco de Oliveira, chegamos tarde, conquistando o poder político quando a pró-
pria política já havia sido seqüestrada por forças e interesses que estão em outro lugar?
Uma coisa é certa: tudo é contingenciado pelo orçamento, pelos tais “recursos
disponíveis”. Mas nisso não entram as decisões do Banco Central, tanto na definição do
superávit primário como em suas decisões de política monetária (juros, por exemplo),
8 Democracia Viva Nº 23
onal
sem dizer de onde virão os recursos para pagar curralou nossos sonhos e a própria ação. Isso
banqueiros e especuladores. Por que o essencial em relação a nós, naquele um terço que sempre
não é decidido no Congresso e só ficamos com votou em Lula. Menosprezamos as outras pes-
as conseqüências? Quem controla o Banco soas que, somadas, foram fundamentais para a
Central? Por que ele só presta contas e faz esmagadora vitória. O lugar delas no poder de-
acertos em esferas internacionais – no tal Fundo sequilibrou as forças e, o que ainda torna tudo
Monetário Internacional (FMI) e na casa de seu mais difícil, abriu o flanco para “aderentes” de
irmão xifópago, o Banco Mundial? Até mesmo sempre. À medida que o bonde de forças assim
simplesmente se nomeia quem representa o constituído começou a operar e mostrar as po-
Brasil nessas instituições, sem passar pela saba- líticas práticas, o assanhamento dos interesses e
tina do Senado como qualquer embaixador. A forças de sempre sobre o governo Lula deixou
autonomia do Banco Central é uma realidade, de ter escrúpulos e passou a festejá-lo. Quando
minha gente! Só falta escancarar. parecíamos avançar, superando o retrocesso
O jeito é pensar pontos de ruptura que que domina a política brasileira desde sempre,
apontem para frente e nos façam avançar. acabamos nós mesmos encurralados. Que sina!
Eles sempre existem. Senão, só nos restaria a Mantendo a perspectiva de radicalizar
rendição à tese de que a história acabou. Nada a democracia, precisamos analisar melhor o
como voltar ao ponto de partida. Precisamos quadro de forças, suas alianças e coalizões,
ser coerentes, retomando nossas análises sobre para saber onde incidir a ação e “resgatar” o
governos como expressão de correlação de for- governo Lula – ao menos fazê-lo mais amigável
ças, pacto de forças diferentes e contraditórias à participação da cidadania e, assim, torná-lo
em ação. Quando o governo Lula se formou e timoneiro de um novo rumo para o Brasil.
tomou posse, em janeiro de 2003, sem dúvida Continuar dessa forma não dá. Também não se
uma nova correlação de forças se constituiu trata apenas de tomar a envergonhada atitude
na sociedade brasileira. Um novo tipo de luta de sindicalistas da Central Única dos Trabalha-
política chegou ao centro do poder político dores (CUT), que batem pedindo desculpas.
e se irradia sobre o conjunto. Não é o que Aliás, este governo promoveu uma enorme
esperávamos, mas é o que temos. O problema transferência de quadros sindicais, seus aliados,
é que nossas expectativas não nos permitiram para os postos da estrutura do poder. Além do
ver o que realmente estava acontecendo e, que isso representa em termos de privação do
conseqüentemente, não analisamos bem o que movimento sindical de lideranças constituídas
fazer e como agir para radicalizar a democracia ao longo do tempo, acrescente-se o fato da
no novo quadro. Definitivamente, não estamos reestruturação nas empresas e o desemprego
diante de um novo modo de fazer política, com para se entender a relativa paralisia das centrais
um governo petista trazendo ao centro do po- sindicais. Enfim, uma força central da sociedade
der sua experiência participativa e renovadora civil no sentido da radicalização da democracia
da política. Mas estamos diante de um novo não vive no governo Lula, em sua expressão, o
governo, ao seu modo, diferente. momento mais favorável.
Já perdemos muito tempo esperando Vejamos mais de perto o conjunto, a tal
que o “nós lá” – na expressão do povão que correlação de forças no governo Lula. O que
festejou a posse de Lula – fosse uma substancial precisamos é tentar ver os grupos em disputa no
mudança de políticas e, sobretudo, do modo de centro do poder e sua irradiação para as outras
formulá-las, dando lugar central à participação. esferas políticas e a própria sociedade. Não são
Essa foi uma das grandes desilusões; pior, en- as tendências internas do PT e suas disputas que
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Cidadania encurralada
empresariais e uma nova cultura de trabalho. O presença no partido forjou uma fundamental
PT deve ao movimento sindical as suas principais aliança com novos setores sindicais mais radicais,
lideranças, com destaque para o próprio Lula, cuja liderança e legitimidade passaram a depender
hoje presidente do Brasil. Entre desenvolvimentis desse alargamento de bases sociais e espaços de
tas, sempre houve setores empresariais privados, atuação política. Por isso, faz parte do bloco de
muito dependentes do bom desempenho da ativistas populares todo um segmento sindical
economia nacional e sem grandes vôos próprios. identificado com a luta dos setores populares,
urbanos e rurais, que irrompem na política nos
últimos 20 a 30 anos.
Globalistas
Em termos
Chamo assim os setores que consideram as políticos, o impacto
forças de mercado o motor da economia, do bloco de ativistas
cabendo ao Estado – e, portanto, ao poder populares se fez sentir
político – criar o ambiente favorável às empre- na criação de uma
sas, ao capital financeiro e ao mercado. Nesse lógica em que o voto
bloco, incluem-se grandes empresas de capital e a representação
estrangeiro, empresas nacionais com estratégia se submetem e/ou
global (dado o seu porte) – com destaque para complementam por
grandes empresários beneficiados com as pri formas mais diretas
vatizações nas últimas décadas –, exportadores de participação e pela
e agronegócio, banqueiros e investidores em criação de novos ca-
papéis da dívida pública. Os globalistas são os nais permanente de
grandes propulsores do neoliberalismo como negociação e concer
visão e da globalização econômico-financeira tação. Centrando sua
dominante como modelo a ser seguido. Cabe força na questão da
destacar o segmento empresarial mais direta- exclusão/inclusão e
mente engajado na produção industrial. É um no tema da desigual-
grupo moderno e modernizador, que vê no dade de recursos e
desenvolvimento do Brasil a sua própria con- poder, bem como da
solidação como grupo de elite. Por isso, ao seu destruição ambien-
modo – com visão essencialmente capitalista e tal, esse bloco tem
globalista –, são desenvolvimentistas, base de levantado a bandeira
sua oposição e, ao mesmo tempo, intrínseca da democracia radi-
aliança com o novo pólo sindical desenvolvi- cal na luta política
mentista. brasileira das últimas
décadas. Deve-se a
esse bloco o fato de
Ativistas populares
que questões como
Esse é o bloco que sofreu mais transformações desigualdade de gê-
com a emergência na política dos segmentos nero, desigualdade
populares, urbanos e rurais. Sua origem, porém, étnico-racial, direito
é remota. O populismo trabalhista foi a sua à diversidade, direito
maior expressão no passado. Durante a ditadura à cidade, justiça am-
militar e na luta pela redemocratização, foram se biental, participação
constituindo novos sujeitos populares por meio na formulação e ges-
de movimentos e organizações. Esse é um dos tão de políticas pú-
pilares da democratização do Brasil. Sua irrupção blicas e tantas outras
na política, mesmo parcialmente (muitos grupos mais façam parte, hoje, de nossa agenda política.
continuam politicamente ausentes e, portanto,
invisíveis), a partir da luta por direitos e contra
Conservadores
a exclusão, faz a diferença. Por meio de seus
movimentos e organizações, vêm criando uma É um bloco que foi dominante na história política
cultura democrática nova, verdadeiras trincheiras brasileira. O clientelismo, o favor e a privatização
de defesa social e uma grande capacidade de da coisa pública são marcas maiores desse bloco
incidência nos processos políticos. Um número impressas em nossa vida política, ainda fortes hoje.
grande de ativistas aderiu ativamente ao PT. A Com uma atitude dominantemente autoritária,
esse bloco tem sabido se manter na política, sempre suas dissidências. Algumas prosperam e
mesmo de forma subalterna, mas influindo de podem virar novos partidos no futuro. Isso não
modo qualitativo na composição de outros blocos impede que, em dado momento, sejam simples-
de forças políticas na democracia brasileira. A clara mente dissidências, pouco ou nada contando na
origem latifundiária e oligárquica dos segmentos disputa de hegemonia.
integrantes marca profundamente sua atuação. Agora, é possível voltar à questão da
Mas ele tem penetração em tradicionais setores disputa entre petistas e tucanos como o nó
urbanos mais afeitos a privilégios do que direitos. atual da política brasileira. Para isso, precisamos
Sua penetração nos segmentos intermediários analisar as composições de blocos (ou de parte
mais baixos é maior do que se imagina, influindo deles) e a formação do bloco hegemônico, da
decididamente nos processos eleitorais, mesmo direção e da legitimidade política que constrói.
das grandes metrópoles. Destaca-se a sua ca- Precisamos distinguir as forças de base de cada
pacidade de representação política e controle do partido hegemônico e o modo como constitui
aparato estatal, no Parlamento, no Executivo sua hegemonia, atraindo e dando direção a ou-
e no Judiciário. Quanto mais distante estiver do tras forças, suas aliadas. Vejamos mais de perto
poder federal, maior é essa representação. Mas o caso de tucanos e petistas.
mesmo no plano central, em Brasília, nenhuma
pessoa que governe pode desprezar o poder de
Tucanato
fogo do grupo ruralista, uma das expressões mais
eficazes desse bloco, passando por cima da própria Os tucanos são uma combinação de setores
estrutura partidária. democrático-liberais do bloco desenvolvimentista,
A esses quatro blocos de forças políticas especialmente profissionais e intelectuais, com
principais é necessário agregar outros. Não são setores globalistas de vários tipos. O interessante é
exatamente blocos, mas têm atuação autônoma, que no processo de lutas políticas, quando tucanos
até por vezes imprevisível, mesmo sem poder de acabaram criando condições de se apresentarem
disputa de hegemonia. São, por isso, grupos su- como força hegemônica, globalistas cresceram
balternos disputados pelos outros e suas alianças. em importância e acabaram dando o rumo. Esse
O problema é que, dependendo das situações, fato explica por que, no Brasil, com os tucanos
seu papel acaba sendo muito importante. Chamo do PSDB, forja-se uma força impulsora das
a atenção, em particular, para o grupo corpora- políticas de globalização neoliberal, como no
tivista. Seus interesses mais específicos estão em resto da América Latina, mas com feições mais
primeiro plano, acima dos interesses da coletivi- democráticas, dada essa curiosa combinação.
dade, independentemente das conjunturas. No Um outro fundamental aspecto a destacar é que
período recente, cabe destacar o modo como se a conquista de hegemonia tucana no Brasil – os
comportou o Supremo Tribunal Federal e o Judici- oito anos de FHC – se faz em aliança com o
ário em geral – e também o importante segmento bloco conservador e, por meio dele, arrastou
composto por funcionários(as) públicos(as). Não oportunistas de todos os tipos. Isso não foi
é um grupo necessariamente conservador e nem gratuito. O namoro com Collor, desfeito em
democrata progressista. Militares, evangélicos(as) e tempo por Covas, jogou os tucanos em direção
outros segmentos incluem-se nesse grupo, alguns ao PFL e ao PMDB e, com eles, a oito anos de
formados em caráter circunstancial, em torno de domínio, nos limites impostos por tal aliança.
disputas e questões ad hoc. O grande número
de oportunistas da política brasileira deve ser
Petismo
incluído nesse grupo. Sua constante mutação
partidária e de posições é reveladora de suas O PT se constitui tendo no centro a aliança entre
motivações maiores. setores desenvolvimentistas democráticos, espe-
O que importa nessa análise do poder cialmente o novo segmento sindical-desenvol
sendo forjado por blocos de forças é que eles vimentista, e seus fundos de pensão, com os
mesmos são composições complexas e variáveis de ativistas populares. A hegemonia no interior
no tempo. Os partidos hegemônicos, como blo- do PT ficou com sindicalistas, mas a ampla
cos políticos, são composições derivadas, onde base de movimentos sociais e populares aderiu
se combinam forças originárias de diferentes em peso e imprimiu um claro caráter popular
blocos e que exercem poder de atração sobre o e democrático ao partido. Para a conquista do
conjunto de forças de cada bloco. Dissidências poder hegemônico na sociedade brasileira, o
existem, maiores ou menores, dependendo da PT se aliou a setores empresariais globalistas e
conjuntura de luta política. Cada partido tem arrastou parte significativa dos outros segmentos
12 Democracia Viva Nº 23
Cidadania encurralada
desenvolvimentistas, até aí reticentes diante do trama montada. Num primeiro esboço, podemos
petismo. Novamente, tal aliança não foi gratuita. identificar o momento da “celebração do poder”,
Diferentemente de tucanos, que têm globalistas quando ainda parecia que existia união entre nós
como parte de seu DNA, petistas fazem uma e várias iniciativas de participação foram apon-
espécie de engenharia genética para se aliar a tadas, como o Conselho de Desenvolvimento
essas forças. É a tal Carta ao Povo Brasileiro. Para Econômico e Social, o Conselho Nacional de
a nossa infelicidade, parece que o transgênico Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), as
político vingou e vem transformando o petismo. conferências. Logo veio o “rolo compressor” da
Mas há diferenças na hegemonia de petistas e votação das emendas e da manutenção do arrocho
de tucanos, tanto pela origem como, sobretu- fiscal, com juros estratosféricos. O sopro da partici-
do, pelo lugar do bloco conservador. O certo pação pareceu adquirir
é que o petismo no poder não é a hegemonia nova vida no momen-
do bloco de ativistas populares. Mas estão lá, e to da “consulta forte”
isso é intrigante. Como é intrigante também o do Plan o Plurianual
poder de barganha do enorme grupo de corpo (PPA). Mas teve sabor
rativistas sobre o governo Lula, especialmente de frustração, no fim
no Congresso. das contas. E assim
Tendo tal hipótese um mínimo de veracida- fomos levando o ano.
de, o passo seguinte para entender os impasses da E a cidadania militante
cidadania – a cidadania encurralada, da qual parto esperando, esperando,
– é analisar os momentos em que a hegemonia e as dissidências se
petista sobre o poder político se desdobra. Claro avolumando. O con
que a história fica com mais sabor pondo nome tinuísmo da política
e sobrenome aos principais atores desse enredo. macroeconômica fun-
Afinal, globalistas no governo Lula são Meireles, cionou como fator
Furlan e Rodrigues, todos até ontem aderentes do paralisante no primei-
tucanato. Palocci, entre eles, se presta como ga- ro ano deste governo.
rantia petista da aliança feita. Desenvolvimentistas O resultado econô-
de primeira linha são Dirceu, Mercadante, Lessa, mico foi pífio, mas o
Mantega, Dilma, Dutra (Petrobras), Luís Paulo e governo conseguiu
professor Luisinho (no Congresso) e tantas outras retomar o controle de
pessoas em postos-chave do aparato estatal. Na uma economia que
linha de frente de ativistas populares, temos Dulci, parecia desgoverna
Olívio Dutra, Marina, Rossetto, a envergonhada da, como a da Argen-
esquerda petista no Congresso. Uma importante tina na recente crise.
figura na construção da hegemonia petista é Tarso Para compen-
Genro, pelo seu papel de teórico político da pró- sar um bocado, o go-
pria aliança, em particular de desenvolvimentistas verno Lula tomou no-
com ativistas populares, o núcleo duro do PT. De vas iniciativas no front
toda forma, é visível a simplificação contida nesse internacional. Nesse
esforço, ao modo de meu guru Gramsci, de dar ponto, o petismo
nome aos personagens de nosso enredo político melhor se diferencia
atual. A realidade é muito mais complexa, sem do tucanato, apesar
dúvida. No entanto, ela pode ser entendida a partir de ambos buscarem
de construções que resgatam o sabor radicalmente o mesmo resultado:
humano envolvido nessa trama, nossa sina como uma maior presença
seres humanos vivendo em sociedades diversas e do Brasil nas transações econômico-financeiras
contraditórias. O incrível de tudo isso é a possi- e comerciais mundiais e um maior reconheci-
bilidade de ver os blocos do centro do poder se mento político, sem mudar muito as coisas. Os
irradiando sobre a sociedade brasileira, e para ver tucanos o fizeram buscando mostrar serviço
isso basta ler os jornais. Se juntarmos o bloco de segundo a cartilha do Consenso de Washington
oposição e as pessoas patéticas que o comandam, e, assim, estabelecer uma parceria com o G-8.
temos a trama política delimitada. Os petistas apostam na liderança dos países
Os momentos aqui definidos devem con- que estão de fora. Ao menos é esse o sentido da
siderar a fundo – e à maneira de uma sintonia celebrada vitória petista em Cancún, em setembro
fina – a evolução das contradições e lutas da de 2003, liderando o G-20. A formação do Ibsa –
*Cândido formado pela Índia, Brasil e África do Sul – vai na dada a forma como foi conquistada a hegemonia,
Grzybowski mesma direção. Devemos destacar a nova e mais um bloco precisa do outro, ou melhor, um bloco
Sociólogo, diretor arrojada política de reconstrução do Mercosul e não pode estar no poder sem o outro. Podem
do Ibase, coordenador- de sua ampliação para o conjunto da América do inverter-se posições, mas não se pode mudar a
geral do Projeto Sul, em contraposição à Área de Livre Comércio essência da hegemonia, da aliança original na
Monitoramento Ativo das Américas (Alca). É uma agenda renovada e conquista do poder, sem a qual o risco é acabar
da Participação da renovadora, mesmo se duplamente perigosa, pois o próprio governo. Por isso, a questão não é
Sociedade (Mapas)
tem como retaguarda interna um modelo de saber se o bloco desenvolvimentista pode ganhar
desenvolvimento marcadamente exportador e, a parada ou se o globalista manterá seu papel
também, nos leva a neste governo. A questão é o que pode resultar
uma difícil negocia- dessa aliança em termos de remodelagem do
ção entre mercados desenvolvimento brasileiro. Bastou a economia
e direitos humanos voltar a apresentar sinais mais positivos para que
nas relações interna- grande parte das diferenças acabe encoberta e o
cionais. governo retome a capacidade de iniciativa, como
O ano de 2004 estamos assistindo hoje.
começou com a re- O mais intrigante é o lugar de ativistas
forma ministerial, na populares, que não têm chance, mas não podem
da mais do que uma deixar o barco, pois, assim, desmorona o próprio
mexidinha para dei- PT, base da aliança para conquista de hegemonia.
xar tudo no mesmo O bloco de ativistas populares depende muito
lugar, acomodando, da própria sociedade, já que é por intermédio
porém, alia dos(as) dele que os ecos da participação e da pressão
novos(as) e opor- das ruas podem influir nos rumos do governo.
tunistas. Aí veio o Se não estamos diante de um modo participativo
momento Waldomiro radicalmente novo de fazer política, estamos
Diniz, de perplexi- diante de um governo diferente que, no fim, tem
dade, paralisando o na participação das ruas o seu flanco aberto e
governo Lula e re- sensível. Talvez aí esteja a oportunidade de fazer
duzindo a sua capa- avançar o governo Lula em resposta ao clamor
cidade de iniciativa. de amplos setores da sociedade brasileira, que
Entramos, felizmen- até lhe deu a vitória eleitoral e ainda o apóia,
te, no “abril verme- por mudança.
lho”, protagonizado De uma perspectiva de democracia radical,
pelo Movimento dos que ponha a cidadania no centro, todos os direitos
Trabalhadores Rurais humanos para todas e todos no país, buscando, de
Sem Terra (MST), que fato, a inclusão e a igualdade, a coisa está difícil.
ao menos nos acor- Impossível? Nem tanto. Mas o que temos não é
dou e nos apontou o o que almejamos. Pior, a participação cidadã não
caminho. Desgastes é o motor deste governo. Espaços de participação
de cá e de lá, uma existem e se multiplicaram muito. A qualidade
base parlamentar dela, de seu impacto, é que não mudou tanto. O
meio vaporosa, uma governo Lula ouve, mas parece não escutar. Muitos
agenda nada digni- movimentos, grupos e organizações da sociedade
ficante de votações, civil acreditaram nas possibilidades abertas por an-
como a história dos tigos e novos canais de participação, institucionais
bingos e, sobretudo, ou não. Mas pouco ou nada temos conseguido
o simbolismo envolvido na manutenção de até aqui. Daí a sensação do encurralamento, de
um salário mínimo lá embaixo, o pior parece termos caído numa armadilha que nos tirou poder
ter passado para o governo Lula. Entramos de iniciativa cidadã. Para sair do curral, o negócio
no período eleitoral, quando nada ainda está é se organizar e voltar às ruas. Armadilha, não!
definido e tudo é possível.
Cabe um pequeno comentário sobre a tal
disputa entre desenvolvimentistas e globalistas no
governo Lula. Sem dúvida, esses blocos não são
iguais, as disputas são reais. O problema é que,
14 Democracia Viva Nº 23
O Jornal da Cidadania é distribuído
para pessoas que têm pouco ou ne-
nhum acesso à informação crítica e
comprometida com a democracia.
Nossos leitores e leitoras são, espe-
cialmente, estudantes e professoras
e professores de escolas públicas
de todo o país. Mas também traba-
lhadoras e trabalhadores urbanos e
rurais, líderes comunitários, mora-
doras e moradores de comunida-
des pobres. São 60 mil exemplares
distribuídos gratuitamente.
16 Democracia Viva Nº 23
d
d a d e a d e s
Orçamento
participativo:
popular, dizia-se a mesma coisa. Democrata era o governo “do povo, pelo povo e para
o povo”. Portanto, nesse governo a população participaria ativamente. Tal era a filosofia
dos fossem “livres e iguais”, haveria democracia. No entanto, as pessoas não são iguais
e não têm formas de participação igualitárias. A universalidade do voto não significa que
18 Democracia Viva Nº 23
limites e
contribuições
de um
instrumento
de democracia
direta
cotidiana. Existe um questionamento sobre a própria representatividade da democracia,
visto que as pessoas sentem que suas necessidades, prioridades e desejos não são aten-
demanda por outras formas de participação popular, especialmente nas últimas décadas
Alguns teóricos chegam a considerar que só Olinda (PE) e Rio das Ostras (RJ). Quando o PT
há participação política efetiva quando existe assumiu o governo do estado do Rio Grande
democracia participativa, quando há formas de do Sul em 1998, houve uma tentativa de levar
o cidadão participar, decidir e opinar de forma o OP para a esfera estadual. Até então só havia
direta ou por meio das entidades das quais par- sido aplicado em municípios. Para analisar os
ticipa, especialmente na esfera pública, como pontos positivos e negativos do uso do OP no
orçamento participativo (OP), conselhos de processo de aumento da participação popular
direitos, ouvidorias etc. No entanto, a defesa em um governo democrático, utilizaremos o
de uma democracia participativa não implica exemplo de Porto Alegre, que foi o primeiro e
dizer que todas as formas de representação é, até hoje, seu modelo paradigmático.
devam ser necessariamente abolidas.
No Brasil, surge em 1988 a experi-
História do processo
ência do OP visan-
do à participação Nas eleições de 1988, em Porto Alegre, a frente
ativa da população popular (Partido dos Trabalhadores, Partido
na elaboração do Comunista Brasileiro, Partido Verde e Partido
orçamento. Nesse Socialista Brasileiro) foi vitoriosa. O principal
caso, a população compromisso político da coligação era com
é convocada não a democratização da gestão pública, com a
apenas para eleger participação ativa da população. Para trans-
seus dirigentes, mas formar o discurso em prática, o novo governo
também para discu- municipal criou, já no primeiro ano de man-
tir com eles como dato, o OP, uma nova maneira de formular e
será gasto o dinheiro acompanhar o orçamento público.
dos impostos. Em A idéia que embasava a criação do sis-
linhas gerais, o OP tema era viabilizar uma relação democrática e
é um processo pelo participativa entre o poder público municipal
qual a população e a população de Porto Alegre, com base na
decide, de forma di- discussão e definição de prioridades para a
reta, a aplicação dos cidade. Inicialmente foi realizada uma pesqui-
recursos em obras sa participante com o objetivo de definir as
e serviços que serão demandas para o exercício seguinte. Surgiu,
executados pela ad- então, a necessidade de regionalizar a cidade,
ministração munici- uma vez que a divisão administrativa não
pal. A Organização coincidia com a dos movimentos populares
das Nações Unidas e associações de bairro. Depois de vários en-
(ONU) considerou contros com lideranças comunitárias, a cidade
essa experiência uma foi dividida em 16 regiões, vigentes até hoje.
das 40 melhores prá- Em função de necessidades e demandas es-
ticas de gestão públi- pecíficas, essas regiões têm sido subdivididas
ca urbana no mun- em microrregiões.
do. Também o Banco Nesse primeiro ano, outra dificuldade
Mundial reconhece enfrentada foi o comprometimento de 98% da
o processo de parti- receita municipal com o pagamento de pessoal. É
cipação popular de óbvio que, nesse contexto, não havia a possibili-
Porto Alegre como dade de realizar investimentos na cidade, impos-
um exemplo bem- sibilitando o atendimento de qualquer demanda
-sucedido de ação que estivesse sendo reivindicada pela população.
comum entre governo e sociedade civil. A escassa participação durante os dois primeiros
Muitas outras prefeituras adotaram anos foi reflexo direto da conjuntura municipal.
a participação popular. No exterior, citam-se No ano de 1989, as expectativas da população
Saint-Denis (França), Rosário (Argentina), Mon- eram bem maiores que a capacidade de res-
tevidéu (Uruguai), Barcelona (Espanha), Toronto posta da administração, o que ocasionou um
(Canadá) e Bruxelas (Bélgica). No Brasil, é o retraimento na participação no ano de 1990.
caso de Belém (PA), Santo André (SP), Aracaju A participação se altera de forma crescente a
(SE), Blumenau (SC), Belo Horizonte (MG), partir do momento que o município readquire
20 Democracia Viva Nº 23
Orçamento participativo: limites e contribuições de um instrumento de democracia direta
22 Democracia Viva Nº 23
Orçamento participativo: limites e contribuições de um instrumento de democracia direta
Tabela 2
Primeiro segmento
do ensino fundamental
(ou menos) 64,1 49,5 39,4
Ensino médio
(completo ou não) 23,8 30,1 31,1
Superior
(completo ou não) 12,0 20,3 29,5
Fonte: <www.ongcidade.org>
Tabela 3
Rendimento familiar
em salários mínimos 2002 Delegados Conselheiros
Fonte: <www.ongcidade.org>
Tabela 4
Fonte: <www.ongcidade.org>
Tabela 5
Fonte: <www.ongcidade.org>
24 Democracia Viva Nº 23
Orçamento participativo: limites e contribuições de um instrumento de democracia direta
* Miriam de
Oliveira Santos
Mestre em Ciência
Política pela
UFRGS, doutora em
Antropologia Social
pelo Museu Nacional/
UFRJ, pesquisadora
associada ao Núcleo
Interdisciplinar de
Estudos Migratórios
(Niem-RJ) e professora
de Sociologia da
Referências bibliográficas Educação da UFRJ.
<www.ips.org>
26 Democracia Viva Nº 23
LO MUNDO P ELO MUNDO P ELO MUNDO
Desafios da
participação
cidadã nos
processos
de inovação
dania nos processos de tomada de decisões e nas agendas políticas, ou seja, mecanismos
[Traduzido do espanhol baseados em novas demandas participativas e novas práxis de inovação democrática.
por Ana van Eersel]
28 Democracia Viva Nº 23
acional
O ponto de partida para abordar a questão, tecnologia da informação.1 Essa nova cidada-
de uma perspectiva européia e espanhola, é o nia exerce sua participação gerando “lugares”
desajuste atual das instituições da democracia participativos nos processos de definição de
representativa ante as mudanças sociais, políti- problemas, na elaboração de diagnósticos, na
cas e culturais vividas por nossas sociedades ao elaboração de agendas políticas, na tomada
longo das últimas décadas. A situação configura de decisões e até mesmo na gestão de serviços
um diagnóstico, por assim dizer, de crise de públicos – esfera pública não-estatal. Até ago-
confiança cidadã no funcionamento tradicional ra, as práticas a ela associadas tiveram maior
das instituições da democracia representativa. expressão no âmbito local. Tal situação ocorre
Tal crise manifesta-se em tendências, com o por ser a esfera local o cenário privilegiado no
individualismo, cinismo, apatia política e abs- qual podem desenvolver-se experiências de par-
tencionismo eleitoral (em média, 40% de par- ticipação cidadã e de democracia participativa,
ticipação nas últimas eleições européias), que graças a uma lógica de escala e proximidade de
se relacionam com certas propensões sociais e governo, independentemente das articulações
culturais de caráter estrutural, como processos necessárias entre dimensão local e global, por
de consumismo acrítico (quando foram alcança- meio de redes internacionais e de sua influência
das condições de vida digna), enfraquecimento nas agendas políticas. Na dimensão política
de algumas identidades, desprezo pela esfera local, encontraremos expressões de um verda-
pública, perda de referentes políticos ou de- deiro exercício de participação cidadã e também
cepções e frustrações em virtude de processos respostas transformadoras para incorporar a
de corrupção. Esses fatos põem em evidência cidadania à tomada de decisões.
alguns dos sintomas da má saúde das institui- Isso evidencia um primeiro limite para
ções representativas, incapazes de dar respostas a participação cidadã. No universo da globa-
a novas demandas e conflitos emergentes que lização neoliberal, como muitos estudiosos e
especificaremos mais tarde. estudiosas assinalam, inexiste um “governo
Segundo esse diagnóstico, estaríamos mundial” que estabeleça e faça cumprir cer-
diante de um processo irreversível, de de tas regras no jogo das relações internacionais
sencontro entre cidadania e política que nos (econômicas, políticas, culturais etc.). As gran-
1 Pode-se mencionar o exemplo
situaria em um cenário futuro caracterizado des decisões internacionais são tomadas pelas das mobilizações produzidas na
Espanha na véspera das eleições
por uma cidadania despreocupada, desmoti corporações econômicas internacionais e pelos gerais de 14 de março de 2004,
vada e desconfiada em participar de assuntos organismos multilaterais (Fundo Monetário quando as pessoas se concen-
traram em frente à sede do Par-
públicos. No entanto, ante essas tendências Internacional, Banco Mundial, Organização tido Popular – à época, o partido
do governo – para reclamar por
catastrofistas e partindo de novas demandas Mundial do Comércio, entre outros) sob a informação e transparência em
participativas, surge uma nova cidadania mais pax norte-americana. Assim, há uma econo- relação aos brutais atentados
terroristas ocorridos em Madri
informada e reflexiva. Tal cidadania reivindica mia mundial, um mercado mundial que incide poucos dias antes, em 11 de
março. A falta de informação e
mais espaço nos processos de tomada de de- sobre a soberania dos Estados nacionais. Há, a manipulação informativa por
cisões e se afasta dos velhos formatos rígidos ainda, uma sociedade civil global que se forma parte do governo provocaram
uma mobilização realizada por
e hierárquicos de participação – como são os progressivamente. Mas não há um governo meio de mensagem através de
telefones celulares: “Passe-o”.
partidos políticos – para participar de espaços mundial. Dessa forma, a arquitetura do sistema O fato foi uma das razões da
e organizações cujo funcionamento é mais é estruturada fundamentalmente nas grandes virada eleitoral sem preceden-
tes na democracia espanhola,
horizontal e democrático. multinacionais e nos organismos multilaterais possibilitando que a coalizão
que contava com a maioria das
Essa é uma nova cidadania que diverge pouco democráticos, instituições muito distan- intenções de voto perdesse as
bastante das formas partidaristas tradicionais tes para propiciar qualquer tipo de mecanismo eleições para o partido da oposi-
ção, o PSOE, com um candidato
e que participa de movimentos sociais, ONGs de participação cidadã. Afinal, quem manda no novo nas eleições gerais.
ou espaços comunitários, pela utilização da mundo? Para solucionar problemas, a quem 2 É um direito que está incluído
30 Democracia Viva Nº 23
desafios da participação cidadã nos processos de inovação democrática
organizações sociais são pouco democráticas cífica define sua dinâmica social em um grupo
em seu funcionamento e em suas práticas. Ao ou contexto social determinado: um nível formal
contrário, a participação cidadã pode provocar a ou institucional (constituído pelo conjunto de
criação social, a partir da elaboração de propostas direitos e deveres mediante o qual a relação
nascidas da própria dinâmica social. Nesse senti- de pertencimento cívico expressa-se normativa
do, a participação cidadã também é um processo e institucionalmente); um nível ideológico ou
educativo, uma maneira de fazer pedagogia da cultural, que está relacionado com a construção
ação política, de inovar na cultura política e de identidades cidadãs, com aqueles critérios
poder entender a política como o exercício de culturais que dão sentido e pertencimento à
uma função pública diante do marketing e do comunidade. E, ainda, um terceiro elemento
benefício pessoal, como é comum constatar em de caráter práxico que abrange as práticas
muitas ocasiões. sociopolíticas realizadas pelo governo e pela
É necessário, cidadania, dentro do marco institucional e
pois, operarmos com das culturas cidadãs que configuram a esfera
o conceito de cida- pública – assim poderão ser compreendidas
dania baseado em as dificuldades relacionadas com a integração
três princípios funda- de imigrantes nas sociedades européias, como
mentais (Benedict o assinalam os(as) autores(as) mencionados(as)
e Morán, 2003, p. anteriormente. Finalmente, é necessário res-
47-48). Um deles saltar a necessidade de recuperar o centro do
diz respeito a uma componente sociopolítico da cidadania, que
concepção dinâmi- significa que o exercício da cidadania implica,
ca e relacion al de basicamente, converter-se em ator dentro da
cidadania na qual esfera pública.
as práticas sociais A participação da cidadania consistiria,
são o centro da ar- por meio da ação coletiva, em se tornar protago-
gumentação. Quer nista, para intervir ativamente e ter a capacidade
dizer que – em lu- de exercer influência no desenvolvimento de
gar de conceber a políticas públicas, assim como nos processos
cidadania como um sociais e políticos nos quais está presente.
conjunto de pres- Apesar disso, os processos participativos, ou
crições legais, que seja, a participação cidadã, não têm progredido
se concretizam em muito, na definição, elaboração e execução das
forma de direitos ou- políticas públicas, mesmo que venham sendo
torgados às pessoas a desenvolvidas experiências inovadoras, cujos
quem o Estado reco- resultados devem ser tomados em conta para
nhece formalmente encontrar o modo de ir avançando. Por outro
como membros da lado, é necessário ter cuidado com as modas
comunidade – essa participativas, porque pode ser construída uma
é uma instituição imagem utópica, desvinculada da realidade de
em constante movi- participação nas sociedades contemporâneas,
mento, definida pelas uma imagem do(a) cidadão(ã) hiperativo(a)
práticas sociais dos permanentemente mobilizado(a), que se adapta
diferentes atores e dificilmente às características estruturais e aos
encontra-se subme- limites da participação cidadã que definem o
tida a uma transfor- espaço público atualmente:
mação paralela aos 1. complexidade e multiplicidade dos temas
grandes processos de políticos – a agenda política cresce, torna-se
mudanças sociop o mais complexa, e isso pode pressupor um
líticas. Em decorrência, essa forma de cidadania limite para a participação cidadã. Por um
implica desenvolver identidades e sentimentos lado, a vida política não pode ser reduzida
de pertencimento e envolver-se na esfera pública a esquemas ideológicos simples, e as institui-
mediante diferentes tipos de práticas. ções e administrações não têm instrumentos
A segunda questão é o caráter multidi adequados para responder às demandas e aos
mensional. A cidadania está constituída por problemas crescentes (pobreza, crise do meio
uma série de elementos cuja inter-relação espe- ambiente, desemprego, educação, imigração
32 Democracia Viva Nº 23
desafios da participação cidadã nos processos de inovação democrática
etc.) por meio dos instrumentos tradicionais. 3. o tempo também pode ser um limite à par-
Além disso, aparecem fortes resistências ticipação, um tempo disponível finito que deve
no estabelecimento de mecanismos para a ser compartilhado com o trabalho, a família, o
tomada de decisões da cidadania. Por outro lazer, o lar, a formação, a educação etc. Pode-
lado, a complexidade e a amplidão dos temas -se esperar que a cidadania participe, mas não
podem ser um freio à participação, por ser que viva para participar, e isso tem a ver com
impossível estar minimamente informado(a) as possibilidades e a vontade de participar e
de todos os temas dos debates políticos. Ou exercer influência no espaço público.
seja, a falta de informação e de capacidade Assim, atualmente, o envolvimento
de compreensão pode ser um forte obstáculo ativo das pessoas em suas comunidades de
para o envolvimento na tomada de decisões; pertencimento, como em outras esferas da vida
2. a perda de centralidade da coisa pública pública, inclui um amplo leque de atividades e
nas experiências vitais das pessoas (frustra campos que abrangem desde a participação
ção), a ruptura das identidades coletivas política até a participação social organizada e
unitárias, a volatilidade dos laços comunitá- as diversas formas de trabalhos voluntários ou
rios que definem a pertencimento são, entre a participação comunitária e individual, em que
outras questões já vistas neste texto, limites encontramos pessoas ativas e pessoas passivas,
que tornam difícil pensar em indivíduos que como nas duas faces de uma mesma moeda
participem de maneira constante, reiterada (Benedicto e Morán, 2003, p. 47-48).
e uniforme;
Esquema explicativo 1
34 Democracia Viva Nº 23
desafios da participação cidadã nos processos de inovação democrática
Esquema explicativo 2
Quadro comparativo entre modelos
Dimensões
Modelo burocrático Modelo gerencial Modelo relacional
sobre / de
Fonte: elaboração a partir de Alguacil (2000) Bruguè e Gomà (2002); Font, Gomà e Subirats (2004).
intervir nas decisões que afetam suas vidas. • permite a integração dos procedimentos (aná-
É necessário que as políticas urbanas (locais, lise das necessidades, participação, decisão
sociais, econômicas, urbanísticas, ambientais, e avaliação) ao aspecto setorial (urbanismo,
culturais etc.) sejam decididas e aplicadas com saúde, cultura, emprego, meio ambiente,
a maior participação possível da população. jovens, mulheres, pessoas idosas etc.);
Sem dúvida, esse é o caminho mais longo e • permite articular, numa construção comu-
difícil, mas as piores políticas terminam sendo nitária, diferentes agentes que operam no
aquelas que partem de uma elaboração distante território – políticos, técnicos(as), entidades,
da população afetada. cidadãos(ãs), cidadania em geral – estabe-
O modelo relacional responderia lecendo fortes processos comunicativos.
ao seguinte passo: diante de processos de O acesso ao conhecimento da realidade
deslegitimização política e crise da “esfera social do entorno imediato e da cidade
pública”, o desafio político é impulsionar a potencializa um aprendizado recíproco en-
participação organizada de cidadãos e cidadãs, tre diferentes agentes que nele concorrem,
envolvidos na construção de seu futuro, para produzindo um conhecimento em comum
melhor satisfazer suas necessidades a partir e compartilhado;
da participação nas políticas públicas. Entre • conseqüentemente, determinam-se lugares
as práticas e os mecanismos anteriormente de encontro, onde cidadãos(ãs) decidem em
mencionados no contexto desse modelo rela- conjunto as políticas públicas locais e gera-se
cional, que compreende o desenvolvimento da a confiança necessária para compartilhar e
democracia participativa e, por conseguinte, um construir conjuntamente em prol de uma
planejamento participativo da esfera pública, po- certa socialização do poder;
dem ser destacadas algumas idéias que permitem • a capacidade de decisão é múltipla e
continuar impulsionando nossas democracias em compartilhada: significa uma maior trans-
direção a cenários de maior envolvimento cidadão parência, eficácia e eficiência na satisfação
no espaço público: das necessidades e resolução das carências
36 Democracia Viva Nº 23
desafios da participação cidadã nos processos de inovação democrática
melhorar a qualidade de vida nas cidades e ad podemos dizer que a participação ativa é uma *Felipe Llamas
ministrá-las de forma mais sustentável e partici- forma de inclusão na sociedade, assim como Sánchez
pativa. Isso pode ser realizado incorporando, a uma forma de aprendizado de atitudes e vínculos Sociólogo, mestre em
partir da vida cotidiana, a cidadania à política, democráticos. Isso leva implícito – pelo relacio- Política Territorial e
ao território, e sua correspondência (e recipro- namento com os “outros” – o reconhecimento Urbanismo e especialista
cidade, considerando-se que os problemas são como protagonistas e como atores sociais e em Práxis da Sociologia
globais e comuns a todas as pessoas) com o contribui para promover o exercício cotidiano do Consumo: Teoria e
Prática da Pesquisa de
âmbito global. da prática democrática.
Mercados; coordenador
Dentro dos limites da participação ci- Ser protagonista, ou seja, ser ator so-
técnico de programas
dadã, foram abordados os desafios e as novas cial, implica, de alguma forma, um exercício
europeus, no contexto
oportunidades que requerem uma adaptação de responsabilidade, de construção de iden- do Programa URB-AL, da
permanente e, também, novas formas de fazer tidade e autonomia, com comprometimento prefeitura de Córdoba,
e entender a política. Nessa situação, a relação nos processos de discussão, decisão, projeto Andaluzia,
entre os municípios e a cidadania surge como e execução de estratégias e práticas para dar na Espanha
uma oportunidade para favorecer uma nova go- soluções concretas a problemas concretos.
vernabilidade. Assim, as novas agendas políticas Este é o desafio mais importante: favorecer o
demonstram que podem contribuir para um potencial criativo de cidadãos e cidadãs, para
processo de inovação democrática e estão sendo transformar a realidade mais próxima e cotidia-
abordadas em alguns municípios, no marco do na. Nesse sentido, o âmbito local aparece, por
Fórum de Autoridades Locais pela Inclusão So- enquanto, como único cenário concreto para
cial: cultura como bem comum da humanidade o exercício da democracia participativa e do
(Agenda 21 da Cultura); cidadania e democracia chamado desenvolvimento sustentável integral,
participativa; gestão dos serviços públicos e como vimos a partir de alguns exemplos de
serviços de interesse geral; desenvolvimento ferramentas e práticas locais transformadoras,
sustentável e solidário dos territórios; direitos baseadas na participação cidadã na qual as
das pessoas na cidade; ação internacional das pessoas têm podido ser e são protagonistas.
autoridades locais pela paz; e cooperação para
o desenvolvimento ou acesso democrático à
informação e aos meios de comunicação.
A partir das idéias que foram expostas,
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VISTA
38 Democracia Viva Nº 9
Maria de Jesus Ferreira Bringelo é uma
quebradeira de coco que mora na comunidade
de Monte Alegre, no Maranhão. Dona
Dijé, como é conhecida, tem 53 anos e é
um exemplo de como a participação e a
organização comunitária fazem diferença
na conquista por direitos. Ela é uma das
fundadoras do Movimento Interestadual
das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB)
e coordenadora de políticas públicas da
Associação em Áreas de Assentamento no
Estado do Maranhão (Assema). Hoje, luta pela
aprovação de uma lei federal que garanta livre
acesso aos babaçuais, conquista já alcançada
em cinco municípios do Maranhão: “A lei foi
levada para Brasília pela deputada Terezinha
Fernandes, do PT, e está tramitando. Se for
aprovada, vai ser uma grande conquista”.
Sobre o papel dos movimentos sociais no
governo Lula, afirma: “Caímos no comodismo.
Agora, mais do que nunca, nós, dos
movimentos, poderíamos estar dando panos
ao governo Lula; e não estamos. Estamos
deixando o pessoal que sempre dominou,
aquela gente que sempre foi oligarquia e não
quer perder o poder, ficar grudado no Lula. Se
nós, movimento social, estivéssemos lá todo
dia, batendo, cobrando, tenho certeza de que
a coisa estaria melhor...”. Quem ousa discordar
da dona Dijé?
40 Democracia Viva Nº 9
23
dona dijé
AGOOUTUBRO/2000
2004 / SET 2004 41
entrevista
42 Democracia Viva Nº 9
23
dona dijé
sábado e domingo, pegávamos um caderno pensavam que íamos desistir, mas se engana-
e saíamos pelos povoados pedindo ajuda – ram. Mandaram construir uma cerca em toda
dinheiro mesmo! Só que nós não dizíamos a nossa comunidade e ficavam nos ameaçando,
muito bem pra que era essa ajuda. Algumas dizendo que tínhamos que ir embora. Fizemos
pessoas diziam: “Ah, essas mulheres querem é uma reunião e decidimos pôr abaixo a cerca.
uma bala”. Mas fomos lutando e nos organi- E qual foi a reação dos
zando e, quando já sabíamos mais ou menos fazendeiros?
o que e como fazer, resolvemos chamar os Dona Dijé: Aumentaram as ameaças!
companheiros. Os homens pegavam nas armas Todo santo dia aparecia um pistoleiro novo
mais pesadas, as mulheres eram pra pensar. na região. Eles ameaçavam nos matar, mas
Quem eram essas mulheres? a nossa negrada se armava de espingarda e
Dona Dijé: Vitalina, Nazi e eu. A primeira tudo mais que tives-
coisa que decidimos fazer foi contar o que se à mão e ficava
estava acontecendo em Monte Alegre, as esperando por eles.
ameaças que a gente sofria. Começamos a Ao mesmo tempo, a
escrever um monte de carta e enviar pra tudo Justiça continuava a
quanto era endereço que alguém tivesse. Nós mandar os despejos,
escrevíamos de noite, dentro das casas e qua- mas nós não saía-
se no escuro, tamanho era o medo... Sempre mos! Ia delegado,
ficava alguém vigiando a porta, enquanto uma oficial de justiça,
de nós escrevia as cartas. Nós tínhamos medo, polícia, advogado,
muito medo, medo, medo, muito medo... e nós não saíamos!
Medo de quê? Essas
Dona Dijé: Uma coisa incrível é que nem ameaças
tínhamos noção de que vivíamos na ditadura nunca foram
militar, nós lutávamos pela sobrevivência. Tudo cumpridas?
isso aconteceu de 1976 a 1979, mas não tí- Não houve
nhamos essa informação sobre política. Nosso mortes?
medo era bem mais próximo: se alguém nos Dona Dijé: Nun
delatasse, seríamos presas. Nessa época, tinha ca morreu gente!
muita mulher grávida na nossa comunidade – Mas muitos com-
inclusive eu –, e nosso medo era ir para prisão. panheiros levaram
Passamos dois anos sem botar roça, a saída era surras. Quando isso
só quebrar coco pra comprar comida e fazer o acontecia, rapidi-
dinheiro. Existe um ditado popular que diz que nho fretávamos um
negro não trabalha, que negro é preguiçoso. caminhão, enchía-
Você já pensou passar dois anos sem poder mos com homem e
plantar um pé de arroz, sobreviver só do ba- mulher da comuni-
buçu pra tudo? dade, só não iam as
O comentário nas cidades mais próximas mulheres grávidas,
era de que estávamos procurando confusão, para ir a São Luiz
diziam que aquele ninho de negros ia ser des- Gonzaga pressionar
manchado logo. Foi uma época em que muita o poder público.
gente foi expulsa da terra, daí os conflitos que Sempre insistimos
ficaram famosos. que a terra era nos-
Os grandes fazendeiros iam comprando as sa e que ninguém ia
terras, e as pessoas iam desocupando. Só que embora. Passamos
eles não conseguiram nos expulsar da nossa por essas ameaças de 1976 a 1979, quando
comunidade. Nosso lema era: “Nossa morada houve uma ordem de despejo. Como não
é aqui e a gente não vai sair”. a cumprimos, queimaram as nossas casas.
Quantas pessoas viviam Quando as casas
em Monte Alegre? foram queimadas?
Dona Dijé: Umas 97 famílias. Mesmo Dona Dijé: No dia 12 de novembro de 1979.
com o apoio que conseguimos de alguns Vivíamos sobressaltados por tantas ameaças.
advogados, a Justiça deu ganho de causa às Estávamos tentando fazer uma roça miudinha,
pessoas que compraram nossas terras. Com isso, quando uma menina avisou: “Gente, a polícia
AGOOUTUBRO/2000
2004 / SET 2004 43
entrevista
chegou no Monte Alegre”. Foi um desespero de vez em quando vinha um rezar uma missa.
quando ela disse que já estavam colocando Horas depois do acontecido, chega o Aroldo
nossas coisas no caminhão. A ordem era tirar Sabóia, o deputado. Ele tanto fez que conse-
tudo de Monte Alegre, e nossa reação primeira guiu levar a juíza que deu a liminar de despejo
foi pensar em nos esconder no mato. Naquele para ver as casas queimadas. Ele falou: “Tá
momento, pensei: “Nós não matamos, não aqui, trouxe a égua que mandou queimar as
roubamos, o que vamos ficar fazendo dentro casas de vocês”.
do mato?”. Aí, voltamos para as nossas casas E o que disse a juíza?
e já encontramos algumas vazias e outras Dona Dijé: Ela dizia que não tinha autori-
queimadas. Nem sei como, de repente veio a zado queimar aquele monte de casas, que ela
notícia de que um deputado – Aroldo Sabóia não sabia que isso poderia acontecer e que só
– estava tentando tinha dado autorização de despejo de três casas.
impedir o despejo. As mulheres foram se encostando na égua,
Mas já era tarde. e ela entrou no carro de costas. Teve medo.
Enquanto o Aroldo O nome dela não esqueço: Maria das Graças
procurava resolver Mendes Corrêa, era juíza da Comarca de São
nossos direitos na Luiz Gonzaga, em 1979.
capital, eles queima- Depois disso, vocês foram
vam nossas casas. O para onde?
desespero era enor- Dona Dijé: Continuamos em Monte Ale-
me. De repente, um gre! Não fomos embora! Fomos para o meio
temporal caiu, e eles do mato. Passamos três dias, pegando sol,
foram embora. Mas chuva e sereno. Eu tinha acabado de parir
disseram: “Amanhã um menino, e meu filho dormia numa caixa
de manhã cedo, a de papelão. Não tínhamos nem o que comer
gente volta”. nesses três dias; a igreja se mobilizou e ar-
Não acreditamos recadou arroz, farinha, massa, leite, açúcar,
que pudessem voltar café etc. Até as nossas facas de cortar carne,
e ficamos todos nas nossos machados, nossas espingardas, tudo,
casas que restaram. tudo, tudo, a polícia levou. A polícia deixou a
Mas, quando o sol comunidade totalmente desarmada. Ficamos à
esquentou, lá pelas mercê deles. Mas a igreja foi fundamental, nos
11 horas, voltou um ajudou com o que pôde, até mesmo a mobilizar
monte de polícia, outros municípios para fazer um barracão.
que nos mandou sair Como continuou a luta de vocês
de casa. Bateram nos depois disso? Onde foi construído
nossos companhei- esse barracão?
ros que tentavam Dona Dijé: Em Monte Alegre. Só depois
impedir o despejo. de um ano, começamos a construir as nos-
Ficamos lá vendo sas casas. Depois de muito tempo e muita
nossas casas serem resistência nossa, o Incra [Instituto Nacional
destruídas e sem ter de Colonização e Reforma Agrária] fez a desa-
o que fazer. propriação das terras, em 1985. Foram anos
Queimaram de incertezas e muita luta, mas nunca saímos
todas as casas? da nossa terra. No fundo, minha opinião é de
Dona Dijé: To- que não foi o governo que desapropriou nossa
das. E fizeram isso terra, nós é que lutamos por ela. Foi ao longo
também em outros povoados da região. O desse tempo que conseguimos nos organizar,
povo ficou sem eira nem beira. Nossas casas criar uma associação para Monte Alegre. Esse
eram de palha e taipa, o pouco que não quei- foi um lado positivo do conflito: aprendemos
mava era derrubado com trator. Só a igreja a nos organizar. Se não tivéssemos tido esses
não foi queimada. Ouvi quando um policial grandiosos conflitos, ainda viveríamos na igno
perguntou a outro se devia queimar a igreja rância dos nossos direitos.
também. Ele respondeu que não; era pra deixar Depois da desapropriação
que ela se destruía com o tempo. Era uma das terras, vocês continuavam
igreja improvisada, não tínhamos padre, mas a se reunir?
44 Democracia Viva Nº 9
23
dona dijé
Dona Dijé: Sim, e muito! Por volta de 1987, mulheres de estados mais próximos onde tem
era uma febre de reuniões e grandes assembléias maior densidade de babaçu. Fizemos o primeiro
entre as mais diferentes organizações de traba- encontro interestadual em 1991 ou 1992, não
lhadores. Juntava muita gente, e o papel das lembro exatamente a data.
mulheres acabou sendo o de fazer comida pra Nesse tempo todo, nossa maior batalha
aquele povão. Eu participava, mas tinha mesmo – e também nossa maior conquista – é levar
era que cuidar da lida. Além de ter uma casa, conhecimento para as bases. O movimento,
tinha os filhos pra dar de comer. E, se não fosse hoje, está institucionalizado e é legalmente uma
trabalhar, eles não comiam, era um monte de associação. Mas, para nós, continua sendo mo-
problema... Chegou um momento em que as vimento; essa formalização foi uma necessidade
mulheres decidiram: “Não vamos mais cozinhar da luta. São 24 coordenadoras, 12 titulares e
pra ninguém, porque, agora, vamos lá pra dis- 12 suplentes, tem coordenadora no Maranhão,
cussão. Os homens estão fazendo a coisa errada Piauí, Tocantins e Pará.
e, se não formos pra lá, vão continuar fazendo”. E qual é a luta específica
E aí começamos a abandonar a cozinha. Em do MIQCB neste momento?
1989, surgiu a Assema [Associação em Áreas de Dona Dijé: Queremos aprovar uma lei
Assentamento no Estado do Maranhão] e, junto,
um trabalho nas bases, principalmente
com as mulheres. Criamos o Grupo de
Estudos das Quebradeiras.
Como está Monte
Alegre hoje?
Dona Dijé: Lá, hoje, vivem 500
pessoas. Existe gente com 10, 12
filhos... Temos roça e animais. A lida
ainda é dura, mas estamos melhoran-
do aos poucos. Já temos luz elétrica
e água. Algumas casas são de tijolo,
mas ainda existe casa de taipa e co-
bertas por palha. Fizemos um projeto
pra reconstruir todas as casas, mas o
dinheiro não deu pra tudo. Quando o
morador tem uma condição melhor,
ele vai tocando pra frente. Temos
também uma escola, que este ano está
funcionando até a oitava série. Muitas
crianças estão na escola.
Agora que temos a terra, estamos
lutando para que seja reconhecida como
terra remanescente de quilombos. Toda
a história da comunidade prova que
somos remanescentes de escravos e
queremos que isso seja reconhecido.
Quando surgiu o
Movimento Interestadual
das Quebradeiras de Coco
Babaçu (MIQCB)?
Dona Dijé: Foi em 1990. Começa-
mos a juntar as mulheres de vários mu-
nicípios pra discutir. Nós já tínhamos
o tal grupo de estudos e acabamos
vendo que o mesmo problema que
existia no Maranhão também existia
em outros estados. Era um proble-
ma de várias mulheres. Resolvemos
criar um movimento que englobasse
AGOOUTUBRO/2000
2004 / SET 2004 45
entrevista
federal que garanta o acesso ao babaçu. A lei e tinham vergonha, não consideravam uma
foi levada para Brasília pela deputada Terezi- profissão. Hoje, somos quebradeiras assumidas.
nha Fernandes, do PT, e está tramitando. Se Construímos nossa identidade. Aonde quer que
for aprovada, vai ser uma grande conquista. uma de nós vá – São Luís, Brasília ou outra cidade
Já temos leis no estado do Maranhão e em –, agora ela pode dizer com orgulho: “Sou que
alguns municípios que impedem a queimada bradeira de coco, tenho uma vida digna, uma
e garantem às mulheres que elas possam profissão digna”.
fazer a coleta nas terras públicas e privadas. O que representa a Assema para as
Mas queremos ter uma lei que garanta esses quebradeiras de coco?
direitos no país todo. Dona Dijé: A Assema é a nossa cara; é
De que forma o associativismo a cara dos trabalhadores, das trabalhadoras,
empregado pela Assema melhorou das quebradeiras de coco. Aqui, entre nós,
a vida das famílias que vivem não existe divisão de tratamento, nós mesmos
do babaçu? administramos a nossa entidade. Se vamos
Dona Dijé: A primeira coisa que melhorou viajar, viajamos juntos. Não existe essa história
foi o nosso conhecimento de vida e dos direitos. de fulano vai num carro, beltrano vai em outro.
Antes, quebrar coco não era uma coisa digna. Vamos juntos pra todo lugar, aqui não existe
As mulheres que viviam do coco se escondiam separação. Homens e mulheres, todos mandam
igual. Quando discordamos, discutimos até
achar um meio-termo...
O movimento das quebradeiras
nunca tentou ingressar
na política formal?
Dona Dijé: Sim, nós temos uma verea-
dora, a Maria Alaíde, do Lago do Junco. Ela
já está pleiteando o segundo mandato. Ela
foi coordenadora da Associação de Mulheres
Trabalhadoras Rurais.
Sabemos que é importante ocupar todos
os espaços, na política e nas ruas. Fui a todos
os fóruns de Porto Alegre. Achei bom, muita
discussão. Consegui fazer algumas amizades,
fiz contatos importantes e aproveitei muito para
espalhar a nossa luta. Organizamos oficinas que
foram bastante procuradas. Foi um espaço de
troca muito bom. Isso faz parte da caminhada.
A senhora já passou por alguma
situação de racismo?
Dona Dijé: Olha, passamos o tempo todo
por isso. Uma vez me senti muito ofendida num
ônibus. A pessoa não falou nada, mas quando
eu e uma amiga entramos, ela olhou de um
jeito... Minha amiga sentou ao lado dela, e,
na mesma hora, a dona se levantou e foi sentar
em outro lugar. Eu me senti humilhada. Isso é
muito triste.
Mesmo aqui na nossa região existem
pessoas brancas que tratam a gente mal.
Quando sentamos pra conversar em algum
tipo de mobilização, sempre alguém diz: “Ali
tem um grupo de negros que não quer tra-
balhar”. Lembro também de uns fazendeiros
que sempre diziam que não davam um boi
pelos negros. Isso tudo não é racismo? Acho
isso horrível, mostra justamente que as pessoas
não têm clareza do que é a vida real. Nessas
bandas, as pessoas são muito ligadas em
46 Democracia Viva Nº 9
23
dona dijé
novela, mas assistir um jornal pra ver o que o problema? Fotos: José Silva Queiroz
AGOOUTUBRO/2000
2004 / SET 2004 47
Dona Geralcina, do Grupo de Mulheres de Santana
48
Democracia Viva Nº 23
Iracema Dantas*
especial
Mulheres
que quebram
coco e extraem
a vida
Por mais difícil que seja a vida das quebradeiras de coco e de suas famílias, chama a
atenção a forma como elas encaram a luta diária pela sobrevivência. Não há desânimo
volvido está presente o tempo todo. Na verdade, o que inicialmente se apresenta como
pobreza traz consigo um rico processo de conquistas. Se a luta atual é pela preservação
do babaçu e pela melhoria das condições de vida, na década de 1980 era pelo direito
de permanecer na terra. Se as condições de vida ainda não são as ideais, a maior dife-
rença, hoje, é a perspectiva de um futuro melhor. E elas acreditam – e fazem com que
Lago do Junco
Esperantinó-
Imperatriz
MARANHÃO
50 Democracia Viva Nº 23
Mulheres que quebram coco e extraem a vida
Agricultura e cidadania
Doralice é uma das mulheres que vivem em Santana,
Na comunidade de Santana, município de São município de São Luiz Gonzaga. Antes, ela trabalhava como
Luiz Gonzaga do Maranhão, está um exemplo agente da Pastoral da Criança
O Grupo de Mulheres de Santana reúne 15 famílias. A comunidade faz parte dos assentamentos da reforma agrária no Maranhão
Dora tem duas filhas, de 32 anos e 21 bomba que distribui para pontos ao redor de
anos. A mais nova, Nilde, está na Universidade todo o povoado. Como em todo o restante da
Federal do Maranhão, fazendo o curso livre de região rural, não há rede de esgoto e, conse-
Realidade Brasileira. Para Dora, a vida agora é qüentemente, instalações sanitárias.
muito melhor: “Nem se compara! Hoje temos O Programa de Produção da Assema,
a posse da terra. Passamos por muita coisa, do qual a experiência de Santana faz parte,
os conflitos foram grandes. Companheiros desenvolve um sistema de produção chamado
nossos do sindicato foram assassinados. Hoje agroextrativista, com base no modelo de agri-
não temos mais essas ameaças e aprendemos a cultura orgânica, e permite a recuperação da
plantar sem queimada”. A venda de compotas produtividade na agricultura familiar, ensinando
ainda não foi capaz de estabelecer uma renda técnicas que primam pelo respeito ao meio
mensal média. Por isso, as mulheres de San- ambiente. O trabalho teve início no município
tana têm discutido o investimento em outros de Esperantinópolis e foi ampliado para toda
produtos mais raros na região e a busca por a região do Médio Mearim. Em Lima Campos,
mercados externos. Segundo Dora, o fato de a o programa é desenvolvido na Associação dos
manga ser uma fruta comum no estado acaba Agricultores da Gleba Riachuelo. Lá, o consórcio
diminuindo o interesse pelas compotas e ge- de culturas inclui o plantio de banana, abaca-
léias: “Aqui existe muita mangueira. Com isso, xi, caju, jaca, mamão, leguminosas, árvores
as pessoas não ligam muito. Temos conversado madeireiras e a palmeira do babaçu. Em Lago
com o pessoal da Assema para saber como do Junco, as famílias trabalham com roças
plantar outras frutas e fazer outros produtos. orgânicas de arroz, milho, mandioca e feijão
Estamos testando vários licores e vendo como consorciadas, mais uma vez, com a palmeira
podemos levar nossa produção para outras de babaçu. No mesmo município, a Assema
cidades”. Além das atividades com agricultura assessora uma escola família agrícola, uma
orgânica e criação de animais, a comunidade cooperativa de refinamento do óleo de babaçu
de Santana tem um aspecto cultural muito e uma fábrica de sabonetes.
forte. As mulheres fazem questão de manter a Em Lago do Rodrigues, a Associação de
tradição das festas típicas que misturam aspec- Mulheres Trabalhadoras Rurais (AMTR), também
tos religiosos e profanos, especialmente as em assessorada pela Assema, criou uma oficina
homenagem a São Benedito e São Raimundo. de trabalho com papel reciclado e produz
Apesar do acesso ser dificultado por uma es- embalagens, bolsas e potes. Todo o processo é
trada em condições sofríveis – a maior parte do artesanal e até as tintas são retiradas da nature-
trajeto é de estradas de barro e areais, o que za. Lúcia, uma das responsáveis pelo trabalho,
ocasiona uma viagem de três horas até a cidade revela que as tintas usadas são feitas a partir do
de Pedreiras –, todas as casas têm energia elé- urucum, do açafrão e do maracujá. A fábrica
trica e há uma escola de ensino fundamental. fica nos fundos da sua casa e acaba sendo
Para retirar água do poço artesiano, há uma também um local de reunião das mulheres que
Lúcia, da Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais (AMTR), trabalha em uma oficina de papel reciclado. Os produtos são vendidos na Embaixada
do Babaçu
52 Democracia Viva Nº 23
Mulheres que quebram coco e extraem a vida
Toda a região do Médio Mearim é cercada por babaçuais e, de qualquer ponto, é possível avistar as imponentes palmeiras que nascem espontaneamente
integram o projeto. Para ela, que é viúva e tem as palmeiras em fase de crescimento). A alega-
seis filhas, o trabalho rende R$ 130 por mês e ção está sempre relacionada à necessidade de
complementa a pensão de um salário mínimo expandir o pasto.
deixada pelo marido: “Não teria como sustentar O Movimento Interestadual das Que
minhas filhas sem esse trabalho. Só assim elas bradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), uma ins-
podem ir à escola”. Lúcia, tal qual outras mu- tituição parceira da Assema e acompanhada
lheres da região, não deixou de quebrar coco e pelo Programa de Organização de Mulheres,
de ir para a roça: “Tudo depende do tempo que tem sido o principal articulador na luta pelo
a gente tem. Se tiver muita encomenda, dimi- acesso aos babaçuais. A iniciativa – que recebeu
nui o tempo pra roça e pra quebrar coco”. O o nome de Babaçu Livre – já conseguiu fazer
trabalho feito pelas mulheres da AMTR também com que cinco municípios do Médio Mearim
é vendido na Embaixada Babaçu Livre. Além dos aprovassem uma lei que garante às mulheres o
modelos produzidos cotidianamente, elas aceitam direito de coleta dos cocos em terras públicas e
encomendas para produtos específicos, como privadas. Além disso, as leis também proíbem
pastas para eventos e embalagens especiais. as derrubadas, os cortes de cachos e o uso de
Atualmente, as mulheres da AMTR estão ela- herbicidas. Para as mulheres que sobrevivem da
borando um novo produto. Ainda em fase de quebra do coco, garantir o acesso e a preser-
teste, elas criaram um óleo cosmético corporal vação dos babaçuais vai muito além da fonte
que junta o babaçu com a oriza (planta que de renda. Significa manter vivas suas tradições
veio da Índia há dois séculos e foi muito usada e o equilíbrio com o meio ambiente, já que o
na região como base de perfume). babaçu acaba impedindo que suas paisagens se
transformem apenas em capinzais para o gado.
O MIQCB articula, nos estados do Ma-
Babaçu livre
ranhão, Piauí, Tocantins e Pará, a luta de 300
Toda a região do Médio Mearim é cercada por mil mulheres que vivem prioritariamente da
babaçuais e, de qualquer ponto, é possível extração da amêndoa do babaçu. Mesmo no
avistar as imponentes palmeiras que nascem Médio Mearim, onde a palmeira de babaçu
espontaneamente. Isso não significa que o também é encontrada nas áreas de assenta-
acesso ao babaçu seja tranqüilo. Uma das atuais mento, a maior parte da plantação está nas
lutas das quebradeiras de coco está relacionada fazendas. Os municípios que já adotaram a Lei
ao fato de os fazendeiros da região limitarem do Babaçu Livre são Lago do Junco, Lago dos
ou mesmo impedirem que elas entrem em suas Rodrigues, São Luiz Gonzaga do Maranhão,
terras para fazer a coleta do coco. Alguns fa- Esper antinópolis e Capinzal do Norte (neste
zendeiros também vinculam o acesso ao repasse município, a lei foi aprovada, mas ainda não
de metade das amêndoas extraídas. Há ainda foi sancionada pelo prefeito). Ainda que, em
os que simplesmente derrubam as árvores e alguns locais, a lei não seja espontaneamente
envenenam as pindovas (assim são chamadas cumprida, pelo menos nesses cinco municí-
O trabalho de quebrar o coco é pesado e gera problemas de saúde na coluna e na região abdominal, causados pela posição flexionada em que as mulheres
permanecem e pelo peso que carregam
54 Democracia Viva Nº 23
Mulheres que quebram coco e extraem a vida
quantidade, elas trabalham durante toda ma- em que são obrigadas a permanecer por tantas * Iracema Dantas
nhã e também no início da tarde, de segunda horas e pelo peso que carregam ao levar a coleta Coordenadora do Ibase,
a sexta-feira. para suas casas. em visita ao Médio
Da palmeira do babaçu podem ser extra- Mearim, no Maranhão1
ídos mais de 60 subprodutos, entre os quais a
Fotos: José Silva Queiroz
palha usada nos tetos das casas, o cofo (cesto em
que armazenam os cocos, também conhecido
por pacará) e até uma ração animal. O trabalho
de quebrar o coco é pesado e acaba gerando
problemas de saúde na coluna e na região
abdominal, causados pela posição flexionada
Embaixada do Babaçu
Ocultar e revelar
Nas noites frias e enevoadas, sob a luz difusa dos postes, com os cobertores do abandono
alçados à cabeça, a silhueta do bando maltrapilho lembrava monges a murmurar orações pelo
pelas igrejas. Sempre em bandos, eles apareciam ao sol dos trópicos como zumbis de noites
maldormidas, com os mesmos cobertores, agora arriados ao ombro, lembrando togas. O bando
de magistrados que urdiam suas próprias leis desfilava como um tribunal ambulante. A doação
caridosa para proteger do frio, única cobertura do mísero legado, que oculta os indivíduos,
brancaleone, a marca registrada, a grife dos garotos e jovens adultos da banda deserdada dessas
terras. Utilitária e prosaica roupa de cama, de uso doméstico e hospitaleiro, o cobertor ganha
56 Democracia Viva Nº 23
Alcione Araújo
alcionaraujo@uol.com.br
Passa o tempo, as camisetas são alçadas do papéis criada pelo poder ilegal, o carrasco,
tronco à cabeça, e a calça encolhida à bermu- historicamente um encapuzado, exibe a cara,
da. Os corpos são seminus, mas os rostos são e sua vítima tem o rosto coberto. A leitura
encobertos – mal se divisam os olhos e a boca. simbólica sugere que os jovens delinqüentes,
É o exército de pelados encapuzados, melhor: que se encapuzam, põem a polícia no lugar
encamisetados. A luz, do dia ou dos flashs, dos torturadores.
já não revela nada. Exibe corpos genéricos e Nesse estranho teatro grego de másca-
esconde o rosto singular – de resto, uma rotina ras e corpos nus, renasce um signo que tem
para seres despersonalizados, que crescem na grandeza e história: os dois dedos em V. Foi
sombra e sobrevivem no anonimato. Não ter o glorioso V da vitória com que nossos pais e
cara protege da identificação policial e do avós se despediram dos pracinhas da FEB, de
martírio da perseguição. Para sobreviver é partida para a Itália, a fim de ajudar a conter a
preciso não despertar o narciso, não se cons- sanha nazista. Décadas mais tarde, ressigni-
tituir em pessoa humana. Afirmar-se diluído ficados, os mesmos dois dedos tornaram-se a
em bando ou gangue, sem individualidade: saudação dos militantes do sonho desejando
existir como espectro. Para sobreviver, re- paz e amor. Hoje, os bandos encamisetados
nunciar a ser. também erguem os dois dedos – um signo
E a camiseta, singela peça de vestuá- empobrecido e brutalizado – para festejar o
rio para ambos os sexos, para todas as ida- Comando Vermelho.
des e classes sociais, produto típico da moda Se uns precisam se esconder para
industrializada para consumo de massa, foi viver, outros precisam se mostrar para exis-
ressignificada. Como máscara, restaurando, tir. Em vez de despir o corpo para cobrir a
quem sabe, o significado do capuz com o cara, para aparecer pintam a cara e despem
qual a repressão da ditadura, ao fazer prisões o corpo.
ilegais e torturar, pretendia que o encapuzado
ignorasse quem o encapuzara. Na inversão de
58 Democracia Viva Nº 23
imagem do Senhor”. não tem o conhecimento especializado. Costa
A violência e a fraude deram origem Porto é cauteloso diante das modas eleitorais
a uma indústria, povoada por profissionais do momento, lembrando que elas falharam
conhecidos como bem-te-vi, cacetista, biju, no passado: “E uma vez que sempre se
xenxém, morte-certa e cá-te-espero, que anuncia, pela imprensa, o sentimento geral,
Rui Barbosa chamava de “produtos da larga no Congresso, para uma reforma política que
miséria social”. Eram pagos pelos chefes contemple, em um de seus itens principais,
políticos para intimidar a oposição e provocar a introdução de um sistema distrital misto,
desordens nas eleições. Havia ainda o “fósfo- a modos da Alemanha, cabe rememorar as
ro”, alguém fingindo ser outro eleitor. Alguns lições da história”.
votavam três ou quatro vezes no mesmo dia, Isso não significa que Costa Porto
utilizando, como artifício, disfarces ou ras- seja um entusiasta sem restrições do voto
pando a barba e o bigode. proporcional. Ao contrário, ele mostra seus
O ambiente tumultuado das votações problemas, como o de um deputado do Acre,
também influiu na oposição ao voto femini- que foi eleito sem nenhum voto (ele não votou
no. Um eleitor afirmou que “não submeteria em si mesmo porque estava fora do estado
a esposa ao vexame de levá-la a uma seção durante a eleição). Também aborda o caso
eleitoral. Algumas daquelas desordens, que recente de Enéas Carneiro, que, graças a seu
certamente presenciara, devem ter lhe deixado 1,5 milhão de votos, elegeu uma bancada
a impressão de que a política é um esporte na qual um dos deputados tinha apenas 302
violento, só para homens”. votos, enquanto um candidato que teve 100
As fraudes eram reconhecidas pela mil votos foi derrotado por causa da baixa
elite, que procurava justificá-las com base votação de seu partido.
em argumentos como o de Joaquim de Salles: Para Costa Porto, nossa história elei-
“Num país de analfabetos, as eleições reais toral é marcada pela “desobediência incivil”,
representariam um mal sem remédio”. Com na qual vigora um “desprezo continuado às
as manipulações do processo eleitoral, os par- regras”. A mentirosa urna é um bom apanhado
tidos poderiam escolher os candidatos mais das mazelas eleitorais no Brasil. Mas, ao se
ilustres e cultos para usá-los “como flores, concentrar nos problemas, dá a impressão de
para ornato de bancada”. que a história do voto no país é pior do que
A Revolução de 1930 trouxe muitas foi na realidade. Sempre houve políticos e
mudanças, como o sufrágio secreto e o voto movimentos sociais dispostos a melhorar o
feminino. Embora a construção da democracia sistema. Além disso, muitas das fraudes que
tenha sido interrompida pelos dois períodos ocorreram no Brasil também eram comuns
ditatoriais, o Brasil avançou bastante na trans- em democracias consolidadas, como a Grã-
parência eleitoral e na participação popular. -Bretanha (os “burgos podres”) e os Estados
Costa Porto passa rapidamente por esse longo Unidos (basta ver a última eleição presiden-
período, abandonando os relatos de fraude e cial). Fazem falta também uma discussão
se concentrando nas maneiras pelas quais o mais profunda sobre casos recentes, como o
sistema eleitoral, por vezes, distorce a vontade da Proconsult em 1982, e um debate sobre a
dos eleitores. segurança da urna eletrônica.
O autor analisa voto distrital e pro-
porcional em capítulos difíceis para quem Maurício Santoro
“O conjunto de contos
O último grupo de escritoras – dé-
cadas de 1980 e 1990 – possui como traço reunidos exibe caminhos
comum textos mais enxutos. Porém, sem
perder a capacidade narrativa, outros temas
são incorporados de forma direta ao cotidiano distintos percorridos por
dessas mulheres: violência, sexualidade, ma-
ternidade, opressão masculina etc. Merecem
destaque “Rondó”, de Ivana Arruda Leite, “O escritoras brasileiras,
pai”, de Helena Parente, e “Taxidermia”, de
Miriam Mabrini.
Nessas múltiplas vozes, que, de forma mas paralelos e concomi-
intimista, em sua maioria, recuperam vozes
e personagens femininos, uma destoa das
demais. A jornalista Marilene Felinto destoa tantes aos
por sua origem, já que a maioria das autoras
é oriunda da elite branca, brasileira. Marilene,
apesar de não possuir no conjunto de sua obra
processos de
um olhar detido no universo afro-brasileiro,
apresenta “Muslim: woman”. No conto, em
um aeroporto na África, as inquietações e
transformação vivenciados
inseguranças femininas tomam forma física
a partir de um diálogo silencioso entre a pro-
tagonista e uma mulher mulçumana.
pelas mulheres ao longo
As organizadoras conseguiram, com
essa obra, uma radiografia interessante de de um século”
muitas mulheres silenciadas ao longo de nossa
história literária, permitindo que leitores e lei- Lúcia Helena Vianna e Márcia Lígia
toras agucem sua curiosidade e multipliquem Guidin, no livro Contos de
as descobertas a partir de incursões nas obras escritoras brasileiras
dessas autoras.
Segundo as palavras das próprias
organizadoras, “antologias, por mais bem
intencionadas, são sempre espectros parciais”,
mas, como um dos objetivos da obra é incluir
um novo olhar dentro dos espaços literários,
o ideal seria que não houvesse uma visão tão
horizontal da produção literária feminina.
Apesar de o título da obra ser Contos de es-
critoras brasileiras, a produção das autoras
afro-brasileiras não foi contemplada. Então,
segue uma dica para o próximo número: Fernanda Felisberto
Conceição Evaristo, Miriam Alves, Jussara Professora da Pós-graduação de
Santos, Elisa Lucinda, Esmeralda Ribeiro e História da África e do Negro no Brasil
muitas, muitas outras. da Universidade Candido Mendes e
coordenadora do selo editorial Afirma
Reflexões
preliminares
sobre espaços
públicos de
participação
no governo
A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva representou um dos momentos mais importantes da
vida republicana brasileira. Pela primeira vez, forças políticas originárias do sindicalismo
e dos movimentos sociais surgidos nas décadas de 1970 e 1980, ainda que em aliança
com setores empresariais, chegaram ao governo federal. Nesse sentido, essa chegada
62 Democracia Viva Nº 23
Ao chegar ao governo federal, o Partido dos construção de uma nova hegemonia política
Trabalhadores (PT) reafirmou o compromisso, no país, baseada em valores democráticos e
assumido em suas muitas administrações muni- socialmente includentes.
cipais e estaduais, de enfatizar a participação da Faremos uma primeira análise, a partir de
sociedade civil na construção das políticas públi- informações colhidas pela equipe do Projeto Ma-
cas, recolocando o desafio de tornar produtivas pas, de duas experiências participativas criadas
as tensões entre as instituições da democracia ou estimuladas pelo governo Lula: os Conselhos
representativa e da democracia participativa. A de Segurança Alimentar (Conseas) estaduais e o
Constituição de 1988 já havia criado uma série processo de participação da sociedade civil na
de instituições que estimulavam a participação discussão do PPA 2004–2007.
da sociedade na formulação e na gestão das
políticas públicas, ainda que nem todas tenham
Alimentar a participação
sido plenamente desenvolvidas.
O governo Lula propôs-se a radicalizar O Consea estadual é um espaço público de
tal participação. Para isso, criou o Conselho de participação de representantes do estado e da
Desenvolvimento Econômico e Social, trouxe de sociedade civil na formulação e no controle
volta o Conselho Nacional de Segurança Alimentar social da implementação da política pública
e Nutricional (Consea), estabeleceu as consultas à estadual de segurança alimentar e nutricional.
sociedade civil no debate do Plano Plurianual (PPA) A partir das informações coletadas pelo Proje-
e propôs a realização de conferências nacionais, to Mapas, seguem algumas observações que
como as relativas às cidades, ao meio ambiente podem contribuir para a discussão a respeito
e aos direitos humanos. Ao que parece, fez isso das potencialidades e problemas enfrentados
tudo com a visão de que os novos espaços de pelo conselho.2
participação contribuem para o esforço coletivo A iniciativa do governo Lula de recriar o
de tornar mais democrático o padrão das políticas Consea nacional e incentivar a criação de Conseas
públicas no Brasil – confrontando as concepções estaduais – ou o fortalecimento dos que já existiam
elitistas de democracia, desafiando as concepções – foi importante pelo alargamento do espaço pú-
autoritárias do primado dos “técnicos” e da “técni- blico, tanto local como nacional, da emergência de
ca” no processo decisório estatal, questionando o novos sujeitos políticos e, portanto, da construção
monopólio do Estado sobre a definição do que é de uma cultura política democrática no país. O fato
público e do que deve constituir a agenda pública e de a iniciativa de criação do Consea ter partido do
contribuindo para a redução do clientelismo e para governo federal foi um fator considerável para a
uma maior transparência nas ações governamen- sua viabilização, já que, num país como o Brasil, o
tais (ver Dagnino, 2002, p. 162). O governo Lula governo federal continua relativamente muito forte
sugeria perceber que esses espaços eram institui- em relação aos governos estaduais.
ções adequadas à construção de novos consensos Ademais, a vitória de Lula para a Presi-
sociais capazes de alavancar uma nova hegemonia dência alimentou o entusiasmo das organizações
na sociedade brasileira, básica para a reversão do da sociedade civil quanto à importância dos es-
quadro de distribuição iníqua da renda, da riqueza paços públicos de participação, levando-as não
e do poder que marca a história do Brasil. só a pressionar o governo para criação desses
Com o objetivo de acompanhar os espaços espaços, mas também a projetar expectativas
de participação da sociedade civil na construção de de operacionalização e de funcionamento deles
políticas públicas do governo Lula, o Ibase propôs como campos para a radicalização da democracia.
a criação de uma rede de entidades da sociedade Assim, é possível sugerir que a iniciativa de criação
civil, de diferentes unidades da Federação, em do Consea, no início do governo Lula, e o apoio e
torno do projeto Mapeamento Ativo da Partici- a mobilização local das organizações da sociedade
pação da Sociedade (Projeto Mapas).1 Com esse civil foram, de modo geral, fundamentais para
projeto, pretende-se monitorar e avaliar tais a viabilização dos Conseas. Em estados onde o
espaços de participação, apontar seus entra- governo foi ou é, de alguma forma, hostil à sua
1 As entidades que formam
ves, erros estratégicos e inconsistências, assim criação/implementação e onde não há mobiliza- a rede do Projeto Mapas são:
como suas virtudes, acertos e potencialidades. ção importante da sociedade civil em torno dela, Cidades, Pólis/Fórum Nacional
de Participação Popular, Cedefes,
Conseqüentemente, o Projeto Mapas pretende o Consea estadual ainda não foi formado – por Ifas, Fase-MT, Fase-PA, Cese,
Cenap, Cepac, IPDA/GTA.
constituir-se em ator político, cujo objetivo é exemplo, em Goiás.
Os Conseas analisados pelo Projeto Ma- 2 Informações coletadas nos
contribuir para a radicalização da democracia estados de Minas Gerais, Bahia,
brasileira, a ampliação da esfera pública e a pas evidenciam – reafirmando resultados obtidos Tocantins e Mato Grosso do
Sul, no primeiro semestre
democratização do Estado e, também, para a em outras investigações – que são polarizados de 2004.
entre representantes do estado e de organizações qual balança o pêndulo depende da força política
da sociedade civil. Assim, tais iniciativas, que dos diferentes atores, em conjunturas diversas, e
apostam na possibilidade de atuação conjunta de o resultado é quase sempre provisório. Isso não
atores dessas duas esferas da sociedade, produ- deixa de ser uma conclusão talvez demasiado
zem relações tensas e atravessadas pelo conflito. otimista, pois em países de cultura política au-
Em outras palavras, todos os espaços públicos toritária, como o Brasil, é provavelmente mais
de participação são lugares de explicitação de realista supor que o pêndulo tenha uma atração
conflitos, que variam de natureza e intensidade. fatal pelo lado dos atores estatais.3
Para que esses espaços não fiquem imobilizados As tensões existentes entre esses dois tipos
ou sejam destruídos, a resolução dos conflitos deve fundamentais de atores sociais manifestam-se de
estar baseada na “argumentação, a negociação, diversas formas nos Conseas estaduais:
as alianças e a produção de consensos possíveis • na distribuição do número de membros entre
como seus procedimentos fundamentais” (Dag- representantes do estado e de organizações
nino, 2002, p. 144 e 150). da sociedade civil – em Mato Grosso do Sul,
Como hipótese, pode-se sugerir que os o Consea era constituído, em 1999, por dois
conflitos entre representantes do estado e de terços de membros da sociedade civil e um
organizações da sociedade civil expressam duas terço do governo estadual. Em 2002, a re-
concepções distintas, embora não incompatí- presentação tornou-se paritária, e o número
veis, acerca da participação. Uma concepção total de conselheiros(as) caiu de 27 para 14,
(implícita em gestores governamentais) entende de modo que a representação da sociedade
a participação como um modelo de gestão da civil foi diminuída em torno de 60%, e a do
política pública, e a outra (implícita em represen- governo, em cerca de 20%. Em Tocantins, o
tantes da sociedade civil) compreende-a como Consea possui 13 membros, 62% dos quais
processo de democratização da política pública. são representantes do estado, e 38%, de or-
Isso não significa que gestores não se interessem ganizações da sociedade civil. Na Bahia e em
pela democratização dos processos, nem que Minas Gerais, o Consea tem, respectivamente,
representantes de organizações da sociedade civil 21 e 41 membros, dos quais dois terços são de
considerem irrelevante a gestão da política. Sig- representantes da sociedade civil e um terço
nifica, sim, que as nuanças possíveis – quaisquer do governo. Em todos esses estados, houve
que sejam – não podem obscurecer o fato de ou há uma disputa permanente, entre os dois
que as posições ocupadas nos espaços públicos segmentos, no que se refere à composição do
pelos dois tipos de atores tendem a localizá-los Consea. Na Bahia e em Minas Gerais, a grande
prioritariamente no lado da gestão ou no lado representatividade obtida pelas organizações
da democratização das políticas. Como sabemos da sociedade civil deve-se basicamente à sua
por experiência, representantes de organizações mobilização e pressão, assim como ao papel
da sociedade civil, quando ocupam a posição de lideranças importantes, como dom Mauro
de gestores governamentais, tendem, de modo Morelli, em Minas;
geral, a deslocar a sua ênfase da democratização • na falta de interesse ou esvaziamento da
para a gestão. representação estatal nos Conseas estaduais
Essa é uma das razões pela qual a questão – de modo geral, os governos estaduais não
da “técnica” e de “técnicos” é um componente manifestam interesse real no funcionamento
tão importante nos conflitos que se manifestam autônomo do Consea. Embora seja conside-
nos espaços de formulação e de controle social rado positivo que o governo tenha aberto
sobre a política pública. Além disso, essa questão canais de participação, a forma como isso
está ligada precisamente à luta pela repartição tem sido feito é avaliada por lideranças de
do poder, entre atores da sociedade civil. Por organizações da sociedade civil como bastante
3 Isso não deve impedir que se um lado, o reconhecimento da legitimidade da conservadora: visa basicamente à legitimação
considerem os atores estatais
como um conjunto bastante
politização da “técnica” é uma forma pela qual de políticas ou de ações do próprio governo.
heterogêneo, especialmente os atores da sociedade civil reivindicam a partilha “Não se discute conteúdo, nem forma de
em sua posição diante da
questão dos espaços públicos desse poder. Por outro, a constante reafirmação fazer política. Não existe um processo novo
de participação e de controle
social das políticas públicas.
da indispensabilidade da “técnica” e de “técnicos” de discussão para a elaboração de políticas.
Como conseqüência, a luta é um argumento poderoso da burocracia estatal Ela vem do governo e deve ser implementada
pela radicalização da demo-
cracia deve estar atenta aos para reter a maior parcela possível desse poder. com o aval do Consea estadual”, disse, em
conflitos existentes, real ou
potencialmente, na burocracia
Essa é uma questão central da relação Estado/ entrevista, o presidente do Consea da Bahia.
estatal e na possibilidade de sociedade civil, continuamente reposta nos es- Em muitos casos, há manipulação do Consea
realização de alianças políticas
com segmentos específicos paços públicos de participação. O lado para o pelos governos estaduais: “Acaba sendo um
64 Democracia Viva Nº 23
Reflexões preliminares sobre espaços públicos de participação no governo Lula
conselho para ratificar decisões que já foram mobilização social, “há uma manipulação do
tomadas”, esclarece o presidente do Consea conselho pelo governo do estado, tentando
de Mato Grosso do Sul. “Tudo é feito em cima conduzi-lo para ações emergenciais (arre-
da hora, a sociedade não tem voz nem vez cadação de alimentos, cartão alimentação).
no Consea”. Já um conselheiro da sociedade A mídia reduz o combate à fome ao cartão
civil em Tocantins, quando foi entrevistado, alimentação e à cesta básica”. E também
declarou: “O dinheiro será investido quando, acrescentaram: “Se o conselho debatesse
onde e na hora que o governo quiser”; “Há as causas da fome, iria aparecer uma semen
um processo muito forte de cooptação das tinha para a discussão sobre reforma agrária,
lideranças, o que desestrutura as organizações reforma urbana”.
da sociedade civil representadas”. Na Bahia, não
Mesmo no caso de Minas Gerais – que é o obstante a parti-
exemplo de Consea estadual mais bem estrutu- cipação ativa da
rado do país e no qual a força da representação articulação Co-
da sociedade civil é bastante reconhecida mer (Comissão
– houve um esvaziamento da representação de Mobilização
governamental com a Lei Delegada 95 de do Fome Zero) na
2003, a qual estabelece que representantes arregimentação
do governo não seriam mais secretários(as) de organizações
de Estado, mas técnicos(as) de segundo ou da sociedade civil
terceiro escalões indicados(as) pelas secretarias. para a criação do
Com isso, a visibilidade política do Consea, es- Consea, a agenda
pecialmente na mídia, foi reduzida, bem como das reuniões do
a da agenda temática da segurança alimentar conselho foi pau-
e nutricional no estado. Ademais, essa situação tada, em 2003,
“acabou dando ao Consea MG mais o caráter basicamente pelo
de uma articulação da sociedade civil do que governo federal,
propriamente um órgão autônomo de parce- com exceção da
ria governo/sociedade”, conforme observa o preparação da
relatório do Consea mineiro; conferência esta-
• na relação entre governo federal, governo dual de segurança
estadual e Consea, o lançamento e a im- alimentar e nutri-
plementação do Programa Fome Zero pelo cional. O governo
governo federal representaram um estímulo federal interag e
– tanto da perspectiva dos governos como com o governo
das organizações da sociedade civil – para estadual e, por
a criação dos Conseas estaduais, pois muitas meio da Secre-
das atividades financiadas pelo programa nos taria Estadual de
estados têm de ser aprovadas pelo Consea. Ao Combate à Mi-
mesmo tempo, no entanto, a forma como séria e à Pobreza
o Fome Zero foi implementado parece ter (Secomp), solicita
criado também bastante confusão na relação a aprovação do
entre o próprio governo federal, o governo Consea para pro-
estadual e o Consea. No Mato Grosso do Sul, gramas estaduais
a entrevista com o presidente do Consea re- ligados ao Fome
vela que “há pouca relação entre as ações do Zero. O governo
Fome Zero nacional e o programa do governo estadual, para receber os recursos federais,
estadual. Não há ações integradas”. Além pressiona o Consea para que discuta e ela-
disso, o conselho estadual “não intermediou bore os pareceres rapidamente. Esse parecer
a criação dos Conseas municipais, que foi é encaminhado, então, à Secomp, que o
feita por decreto nacional. O Consea ficou dirige ao órgão federal correspondente. Se
alheio ao processo, não foi consultado nem o Consea não aprova o projeto, cria-se um
participou”. Em Tocantins, entrevistas com li- impasse, e o programa não sai. Se o Consea
deranças da sociedade civil sugerem que, não aprova os projetos, é o governo estadual que
obstante existam mais possibilidades para a decide quais programas serão implementados.
organização popular e mais recursos para a É interessante notar que não existe diálogo
66 Democracia Viva Nº 23
Reflexões preliminares sobre espaços públicos de participação no governo Lula
Mantida essa tendência do governo fe- tata convergência entre os projetos políticos dos
deral, aumentam as expectativas de incremento seus dois principais tipos de atores? É possível
dos conflitos e tensões entre Estado e sociedade evitar que os Conseas sejam esvaziados ainda
civil e de agravamento de um foco potencial de mais pelo desinteresse dos governos estaduais
enfraquecimento dos Conseas estaduais. Uma em consolidá-los? Quais são os atores da socie-
possibilidade de reação a essa tendência é por dade civil que têm mostrado interesse político
meio do estreitamento dos vínculos e interações por esses espaços e que os consideram como
entre os Conseas estaduais e o Consea nacional, espaços efetivos de intervenção/participação nas
o qual é pressionado para liderar a retomada, políticas públicas? Que atores relevantes na cena
na área de segurança alimentar e nutricional, política brasileira – ainda que tenham o tema da
do projeto de radicalização da democracia que segurança alimentar e nutricional em sua agenda
inspirou a sua criação. política – tratam de forma secundária a atuação
Em segundo lugar, os Conseas estaduais nesses espaços públicos e por quê? Como é pos-
considerados parecem sugerir a inexistência de sível acumular forças e conhecimentos de modo
compartilhamento de projetos políticos entre repre- a robustecer o movimento em prol da segurança
sentantes do governo estadual e das organizações alimentar e nutricional, tornando suas questões
da sociedade civil local. Em alguns casos, a posição cada vez mais visíveis e presentes na agenda
do governo estadual é claramente hostil à criação pública dos estados?
do Consea ou é favorável a seu pleno controle pela
representação estatal. Goiás e Tocantins parecem
Pensar à frente
exemplificar a situação. No caso de Minas Gerais,
em que a sociedade civil tem peso considerável O plano Brasil de Todos – Participação e Inclusão,
no Consea, as possibilidades de articulação ou base para a discussão pública do PPA 2004–2007,
de compatibilização das iniciativas do governo objetivava traçar uma estratégia de desenvolvi-
estadual com as prioridades e a concepção de mento voltada à inclusão social e à participação
segurança alimentar e nutricional do conselho têm da sociedade no processo de planejamento,
dependido do fato de que o Consea é presidido encerrando a meta de reorientar o histórico pa-
por dom Mauro Morelli, que, ao mesmo tempo drão de comportamento da economia brasileira
que é portador da legitimidade conferida pelas de concentrar renda e riqueza tanto em seus
organizações da sociedade civil, tem uma entrada momentos de crescimento como de recessão.
política considerável nos escalões superiores tanto Baseando-se no pressuposto de que é necessária
do governo federal como do estadual. Na Bahia, uma retomada dos princípios do planejamento
por fim, as possibilidades de compartilhamento de econômico e uma maior interlocução entre o
projetos políticos comuns são inviabilizadas pelas governo e a sociedade, o plano buscava dar
complicações que se estabeleceram nas relações respostas aos seguintes desafios: desconcentrar
entre governo federal (Programa Fome Zero), go- renda e riqueza; elevar a capacidade de geração
verno estadual e Consea, nas quais o conselho figu- de empregos da economia e traduzir ganhos de
ra como um intermediário de reduzida autonomia. produtividade do trabalho em aumentos reais
Quais são, então, os desafios que se dos rendimentos de trabalhadores(as), gerando
colocam para as organizações e movimentos da crescimento sustentado; e elevar a massa sala-
sociedade civil nessa perspectiva? Aparentemen- rial e constituir um mercado interno de massas.
te, é preciso rediscutir e colocar em questão as Tais respostas, no entanto, deveriam ser
expectativas quanto aos objetivos de espaços dadas no contexto da necessidade de manuten-
públicos de participação como os Conseas esta- ção do equilíbrio das contas públicas e de uma
duais. Que espaços públicos queremos que sejam? evolução favorável da relação dívida/PIB (Produto
O que significa radicalizar a democracia nesses Interno Bruto), ou seja, em uma situação de bai-
espaços? Trata-se de enfatizar a “politização” da xa capacidade de investimento do Estado. Para
política pública em contraposição à tendência de discutir o plano, foram realizadas audiências
representantes do governo de ressaltarem a sua públicas em todas as unidades da Federação,
gestão? Trata-se mais de construir um espaço reunindo representantes do governo federal,
público de articulação da sociedade civil para governos estaduais e sociedade civil. O que segue
pressionar e fiscalizar os governos nas questões é uma avaliação desse processo, realizada a partir
de segurança alimentar e nutricional do que cons- da coleta de informações do Projeto Mapas.5
tituir uma instituição autônoma de participação As avaliações a respeito do processo de
Estado/sociedade civil? É possível compatibilizar participação do PPA convergem para um primei-
gestão e democratização em espaços públicos, ro diagnóstico comum: a iniciativa governamen-
como os Conseas estaduais, em que não se cons-
tal de lançar esse processo de discussão é vista, ram muito mais para que representantes do
por diversos atores participantes, como muito governo apresentassem o PPA à sociedade
positiva. Pela primeira vez, um governo federal do que para que ela efetivamente discutisse
teria se colocado aberto à sociedade civil para que tipo de modelo de desenvolvimento o
discutir estratégias de desenvolvimento. Por seu país deveria trilhar. Houve um sentimento,
lado, a sociedade civil teria se visto pela primeira por muitas pessoas partilhado, de que a
vez diante do desafio de pensar o país como um participação só serviu para referendar um
todo, superando localismos e corporativismos, projeto de antemão decidido;
na expectativa de contribuir no debate sobre • problemas de continuidade – não houve um
um outro modelo de acompanhamento sistemático dos encami-
desenvolvimento para nhamentos posteriores aos fóruns. Não houve,
o país. Tal consenso sequer, clareza do que foi efetivamente incorpo-
se desdobra, no en- rado ao PPA a partir da realização dos diversos
tanto, em algumas fóruns estaduais. A seguinte constatação, da
críticas comuns ao equipe de Minas Gerais, é bastante incisiva:
processo: “Foi muito decepcionante observar que quase
• desorga- ninguém entre as pessoas entrevistadas em Mi-
nização – em Goiás, nas, que participou com maior ou menor grau
São Paulo, Tocantins de envolvimento na mobilização e organização
e Mato Grosso do da consulta para o PPA, tinha um mínimo de in-
Sul, a indefinição de formações sobre o uso de propostas originárias
responsabilidades, da sociedade civil no documento final do Plano
atrasos no repasse enviado pelo governo federal ao Congresso e
de informações e, dos encaminhamentos que estão ocorrendo no
no dia da realização Congresso Nacional”.
dos fóruns, longas O processo de consulta do PPA resultou
falas de autorida- largamente frustrante para muitas pessoas que dele
des não permitiram participaram, até porque, no Congresso Nacional,
que as entidades da o Plano foi submetido pelo governo federal à lógica
sociedade civil tives- do superávit primário, apresentada como uma
sem oportunidade questão eminentemente técnica, e não política.
de serem ouvidas. Nesse sentido, é problemático falar em projeto de
Em Mato Grosso do desenvolvimento, novo pacto social includente e
Sul, a realização do fortalecimento do mercado interno (como sugere o
fórum chegou a ser plano Brasil de Todos – Participação e Inclusão), se
adiada por proble- a política macroeconômica gira fundamentalmente
mas operacionais; em torno de superávits fiscais. Não obstante, é
• logística importante frisar que, para algumas pessoas que
– dificuldades varia- participaram, o processo PPA teve um importante
das impediram a pre- efeito pedagógico, talvez não previsto: consolidou-
sença, em diferentes -se, ou criou-se, para vários atores da sociedade
fóruns estaduais, de civil, a convicção da importância do orçamento
diversas entidades para a construção de um novo projeto de país.
do interior. No ge- Elisabeth Araújo, da Central dos Movimen-
ral, ONGs de desen- tos Populares de Alagoas, afirma textualmente:
volvimento rural, o “A capacitação que a gente teve antes do pro-
movimento sindical rural, associações e/ou cesso PPA – e a própria discussão do PPA – nos
cooperativas de agricultores e agricultoras mostrou que os espaços estão abertos e que a
familiares e movimentos de quilombolas e gente deve ocupá-los o mais rápido possível. O
indígenas não estiveram presentes em diversos principal dessa discussão foi compreender que a
estados. Em algumas ocasiões, os governos gente tem que ocupar esse espaço”. Desse modo,
estaduais não ofereceram qualquer auxílio, o processo de consulta do PPA teria desencadeado
e o apoio prestado por instituições federais, uma tomada de consciência e um movimento no
tético sobre a pesquisa, ver
Dagnino (2002).
como a Polícia Rodoviária Federal e a Caixa sentido de se evidenciar a centralidade da questão
Econômica Federal, não foi suficiente; orçamentária, cujos resultados dificilmente po-
5 Dados dos seguintes estados:
Alagoas, Amapá, Bahia, Goiás, • proposta fechada – os fóruns estaduais servi- dem ser mensuráveis no momento. Portanto, tal
68 Democracia Viva Nº 23
Reflexões preliminares sobre espaços públicos de participação no governo Lula
experiência merece algumas reflexões adicionais • o processo orçamentário, em sua dimensão *Nelson Giordano
que parecem importantes para as organizações legal, envolve não só o Executivo, mas também Delgado
e os movimentos da sociedade civil engajados o Legislativo, e a sociedade civil deve trabalhar Coordenador técnico
na luta pela radicalização da democracia e pela em toda a sua extensão. De nada adianta do Projeto Mapas e
efetiva redistribuição da renda, da riqueza e do democratizar o processo de participação na consultor do Ibase,
poder no Brasil: elaboração do PPA apenas no momento de professor do Programa
• os aparelhos de Estado possuem regras, nor- sua elaboração pelo Executivo, pois sua vota- de Pós-graduação
em Desenvolvimento,
mas e um cronograma que devem ser respei- ção e modificação pelo Legislativo constituem
Agricultura e Sociedade
tados e, quando necessário, modificados, mas momentos igualmente estratégicos. Para o
da Universidade Federal
que, ainda assim, nem sempre coincidirão com Legislativo, a participação popular é freqüen-
Rural do Rio de Janeiro
regras, normas e cronogramas da sociedade temente percebida como uma interferência (CPDA-UFRRJ)
civil. Portanto, uma melhor compreensão de indevida em suas prerrogativas, e isso constitui
tais possíveis problemas deve estar na base novo desafio: trabalhar as tensões entre os ele- **Flávio Limoncic
de uma melhor articulação entre ambos. Por mentos de democracia direta e de democracia Pesquisador do
outro lado, se, para vários(as) participantes participativa, tornando-os produtivos para a Projeto Mapas e
consultor do Ibase,
do processo de consulta, o governo buscou radicalização da democracia;
professor do Instituto
cooptar a sociedade civil, instrumentalizar • se a experiência do PPA não se revelou parti-
de Humanidades da
sua participação no processo de discussão cularmente promissora, ela evidenciou que a
Universidade Candido
do PPA, para outros(as) o governo vive uma discussão sobre modelos de desenvolvimento Mendes (Ucam)
tensão entre uma proposta inovadora de é estratégica para a sociedade brasileira. Se o
participação da sociedade civil e um aparelho plano Brasil de Todos – Participação e Inclusão
de Estado historicamente construído de for- evidencia a necessidade da construção de
ma autoritária e refratário à participação da uma nova correlação de forças na sociedade
sociedade. Portanto, democratizar o Estado brasileira, capaz de proporcionar os recursos
constitui desafio muito mais complexo do políticos necessários para o combate às
que apenas abrir espaços de interlocução desigualdades sociais e regionais e para a
(e não necessariamente de participação nas inclusão social, tal mudança na correlação
decisões), implicando a efetiva articulação de forças pode advir, com outras iniciativas,
entre os espaços públicos de participação e as da participação popular em espaços como o
diversas instâncias de planificação e de tomada do PPA. E não só: se os gestores da política
de decisões. Por fim, se a estrutura do Estado macroeconômica brasileira estão convencidos
brasileiro deve ser democratizada, não raro de que a substituição da política de austeridade
as entidades da sociedade civil encontram-se fiscal representa um alto risco, o processo PPA,
pouco preparadas para enfrentar o desafio de como processo de pactuação da estratégia
participar de iniciativas de longo escopo, como de desenvolvimento do país, constitui exata-
é o caso do PPA, e devem buscar qualificar-se mente um espaço em que a sociedade pode
politicamente para tal; discutir tal risco e decidir, democraticamente,
• o governo não é monolítico, e um processo se está ou não disposta a enfrentá-lo. Nesse
como o PPA, que envolve diversas agências sentido, se o processo PPA resultou frustrante,
governamentais, explicita isso de forma a centralidade da sua questão, o modelo de
bastante clara. Algumas agências, como os desenvolvimento, permanece urgente, tanto
Ministérios do Meio Ambiente e das Cida- para a sociedade civil como para os gestores
des, são mais abertas à participação, outras da política econômica.
menos, como os Ministérios da Fazenda e do
Planejamento. As entidades da sociedade civil
devem estar atentas a tal diversidade; devem
não só trabalhar em suas contradições, mas
também buscar incidir sobre elas, de modo a
contribuir para a democratização das agências
menos abertas à participação;
Referências bibliográficas
DAGNINO, Evelina. Democracia, teoria e prática: a participação de Janeiro: Paz e Terra, 2002 a.
da sociedade civil. In: PERISSINOTTO, Renato; FUKS, Mário. (Orgs.).
Democracia: teoria e prática. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.
______. (Org.). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. Rio
Ensaios
de
participação
O Projeto Monitoramento Ativo da Participação da Sociedade (Mapas) – lançado em 2
de julho por uma rede de instituições, sob a coordenação do Ibase e com financiamen-
nares da primeira etapa do projeto começam a ser divulgados, com base nas respostas
informação estratégica, uma ferramenta para subsidiar lutas setoriais, gerais e servir de es-
tímulo para que instituições aprofundem a democracia. A seguir, seis artigos de consultores
1 As seguintes instituições
compõem a Rede Mapas: Ibase,
Cidades, Pólis/Fórum Nacional
e consultoras do projeto em diferentes estados analisam esses resultados, com ênfase na
de Participação Popular, Ce-
defes, Ifas, Fase/MT, Fase/PA,
Cese, Cenap, Cepac e IPDA/GTA.
atuação da sociedade civil em torno do Plano Plurianual 2004/2007 (PPA) e do Conselho
70 Democracia Viva Nº 23
Mobilização versus autoritarismo na Bahia
Fátima Nascimento
Consultora nos estados da Bahia, Alagoas e Sergipe
Damien Hazard
Diretor regional da Abong NE2
O ano de 2003 será para sempre um marco na no têm visões diferenciadas de participação,
história da democracia no Brasil. Com o acesso ocasionando embates constantes na dinâmica
de Lula à Presidência da República, começava a dos conselhos ou mesmo no desenvolvimento
tão esperada alternância política e a abertura ao de iniciativas em que a participação popular
diálogo com os movimentos sociais. O caso da é condição para sua realização, em geral por
Bahia é significativo nesse sentido. O governo demanda dos financiadores. Neste contexto,
estadual não possui tradição de diálogo com algumas questões fazem-se necessárias: em
o conjunto da sociedade civil baiana e vê nas que medida o movimento social vai conseguir
ONGs apenas atores capazes de desenvolver influenciar e mudar a perspectiva de partici-
políticas compensatórias, principalmente de pação no governo estadual?Em que medida
natureza assistencialista. Mas nega praticamen- a participação nos conselhos, em especial no
te sempre o papel político da sociedade civil Consea, vai conseguir se firmar como uma
organizada, a não ser por pressão, chegando experiência de exercício de poder comparti-
freqüentemente a criminalizar movimentos lhado entre sociedade e estado, em que cada
sociais. um desenvolve uma função específica? Terá o
Seria prematuro dizer que a tendência de movimento social força e coesão para se impor
abertura ao diálogo melhorou, mas sua natureza diante de um governo autoritário e prepotente?
tem se modificado. A regional Abong NE2 – que Na prática, foram acentuadas as dife-
reúne 22 organizações na Bahia e três em Sergipe renças internas no próprio movimento social.
– se fortaleceu como ator político. Assumiu um Percebe-se também diferenças de âmbito ope-
papel fundamental em 2003 na mobilização da racional. Enquanto alguns grupos defendem
sociedade civil baiana e sergipana e na ocupação interesses imediatistas e corporativistas, outros
do espaço público. Foi a principal responsável defendem uma visão mais estratégica e global,
pela articulação que culminou com a criação dificultando a atuação e definição de priorida-
do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e des. As organizações da Abong NE2 enfrentam
Nutricional (Consea/BA), processo que envolveu ainda o dilema de serem poucas para responder
atores sociais, instituições, movimentos sociais à demanda crescente de participação, colocan-
e grupos populares organizados de todo o do o desafio não só de fortalecimento interno
estado. Configurou-se um movimento de dessas entidades, assim como de ampliação
construção pública de um conselho de política do associativismo na sociedade baiana e sergi-
que, para o governo, se não desnecessário, era pana. Isso sem contar que alguns segmentos
dispensável diante da existência da Secretaria sociais organizados, mesmo com a tentativa de
Estadual de Combate à Fome e à Pobreza (Se- inserção promovida pela associação, ficaram
comp), órgão criado no segundo mandato do ausentes desse processo de concertação.
governo César Borges (1998–2002). Mesmo com as limitações assinaladas,
A Abong NE2 coordenou o processo de a sociedade civil tem conseguido avanços
mobilização da sociedade para a organização significativos na busca de uma ruptura com o
das audiências públicas estaduais do PPA. Parti- autoritarismo do governo estadual. A título de
cipou da comissão organizadora da Conferência conquistas, vale ressaltar o caráter deliberativo
Estadual do Trabalho, cujo objetivo era discutir do Consea/BA, sua composição majoritariamen-
a reforma trabalhista. Passou ainda a integrar te da sociedade civil e o processo de debate
o Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural público sobre política de segurança alimentar,
Sustentável (CEDRS), onde tem colaborado com por meio de conferências regionais e estadual
os diversos segmentos sociais organizados na – cujo resultado apresenta indicativos para a
discussão sobre territorialidade. elaboração de um plano estratégico para a área.
A interlocução com o governo da Bahia
não tem sido fácil. Movimento social e gover-
A relação entre governo e atores sociais tem às injustiças sociais e com a conquista e am-
avançado a passos lentos, segundo avaliação pliação de direitos; e outro com instituições
do Coletivo de Entidades Parceiras em Políticas que nunca pleitearam espaços de participação
Públicas do Piauí (CEPPP), que reúne cerca de nos processos decisórios, como as Associações
15 entidades. Não é possível identificar a par- da Indústria, do Comércio, Sebrae, entre ou-
ticipação popular como uma marca de governo tras. Além dessas, começam a surgir no cenário
nem mesmo como meta ou intenção. novas instituições, principalmente fundações,
As entidades reclamam da falta de que trabalham com prestação de serviço, ge-
reconhecimento governamental do seu papel ralmente terceirização de serviços públicos, na
estratégico, principalmente ao considerar que parceria em projetos governamentais.
a história de vários agentes do atual governo As concepções de participação se apre-
se confunde com a história dos movimentos sentam diferenciadas: o governo compreende
sociais. Chegam a afirmar que em governos participação como presença, faz convites
anteriores, de tradição conservadora, apesar da pontuais às entidades para tomarem parte em
falta de respeito, havia algum reconhecimento eventos, programas e projetos prontos a serem
do seu potencial – embora tal reconhecimento executados; geralmente se coloca como o dono
resultasse no uso de mecanismos de distancia- da agenda e com direito de pautar os temas de
mento, imobilização e cooptação. acordo com suas necessidades imediatas. Não
Além das tensões ocasionadas pela pró- explicita claramente os objetivos para a partici-
pria composição da equipe de governo, outros pação. Passa a impressão de que o fato de ter
fatos têm sido decisivos no acúmulo de tensões entre seus quadros pessoas oriundas de movi-
entre governo e movimentos sociais. Entre eles, mentos sociais basta, não havendo necessidade
a demissão de 10 mil servidores(as) prestadores de ouvir as organizações representativas. Já os
de serviço, sob o argumento do cumprimento movimentos sociais entendem a participação
da lei, o que ocasionou a primeira greve de para além da presença e reivindicam a oportu-
servidores(as), mobilizando a opinião pública nidade de propor, tomar parte na construção
para o que foi considerada uma decisão arbi- e na implementação. Exigem que o governo
trária e injusta. O ato traumático somou-se a exercite a dimensão ampla da participação,
outros, como o despejo de famílias sem teto integrando as ações dos conselhos de políticas
de um terreno de propriedade do estado, com setoriais às políticas macrossociais, de modo
intensa violência policial, e a garantia, por via que repercutam nas ações dos diversos órgãos
judicial, da manutenção da cobrança de taxas a estatais. Esperam do governo a capacidade de
estudantes da universidade estadual. levar o diálogo à exaustão na busca da solução
Com exceção dos seminários regionais, de conflitos e procuram manter sua autonomia.
promovidos pela Secretaria de Planejamento Também reconhecem como urgente a articu-
com o objetivo de colher subsídios para a ela- lação das suas organizações, o fortalecimento
boração do PPA estadual e da elaboração do dos fóruns da sociedade civil que discutem as
Plano de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS), as políticas setoriais, a qualificação de integrantes
demais experiências que promoveram a escuta dos conselhos e a firmeza na orientação política.
do movimento social se deram por iniciativa Neste cenário, as conferências, consul-
do governo federal, repercutindo no estado. tas, criação de novos conselhos, embora cha-
Registra-se ainda que o processo do PPA estadu- mem a atenção e mobilizem numericamente,
al em nada se comunicou com o PPA nacional e não têm conseguido avançar em qualidade e
que o PCCS significou muito mais uma iniciativa em empoderamento dos setores historicamente
isolada de uma secretaria, longe de ser uma excluídos no Piauí.
marca de governo.
Na relação com o governo estadual e
federal no Piauí, percebe-se que predominam
sujeitos de dois tipos: um grupo historicamente
comprometido com as lutas de enfrentamento
72 Democracia Viva Nº 23
Ensaios de participação no Brasil
Nos últimos 20 anos, as classes populares federais. Apenas no Rio Grande do Sul foram
deste país romperam o cordão de isolamento realizadas 240 conferências municipais de se-
que as separava da participação política autô- gurança alimentar. Menos impressionantes, mas
noma. Encerramos mais de duas décadas de não menos significativos, têm sido os eventos
ditadura militar. Direitos básicos de cidadania nas áreas de meio ambiente, educação e saúde.
foram estendidos ao conjunto da população, Se algo falta, não é certamente a
não obstante sua precária qualidade. Com a vontade cívica de construir um país melhor.
abertura do voto às pessoas analfabetas, a partir Aparentemente, tampouco falta vontade po-
de 1988, e a retomada plena das liberdades lítica, já que a maioria dos governos mantém
políticas, estabelecemos efetivamente o sufrá- respeitáveis propósitos sociais e agendas par
gio universal. Essa afluência popular, sobretudo ticipativas, conferindo maior ou menor poder
nos meios urbanos, traduziu-se também no deliberativo à população, apesar das profundas
econômico, mesmo que por vias transversas, diferenças de sentido e de qualidade desses
em gradativa conquista de melhorias nas infra- processos. Estamos maduros para avançar na
estruturas urbanas, da vagarosíssima, porém agenda republicana, mesmo quando os resul-
constante, regularização fundiária de áreas de tados tornam-se cada vez menos expressivos.
ocupação, no acesso à educação e no desen É o caso da conjuntura atual, com honrosas
volvimento de imensas redes de produção e exceções, como o orçamento participativo de
comércio informal. Porto Alegre, agora também com uma face
Já a cidadania propriamente política das voltada para o funcionalismo municipal. Isso,
classes populares vem passando por um pro- no entanto, não diminui a febre instituinte que
cesso que vai além do ato de votar e ser votado. atravessa as dezenas e dezenas de conferências
Estima-se que existam hoje no Brasil algo ao que vêm se realizando de norte a sul do país,
redor de 30 mil conselhos setoriais nas esferas em todas as áreas possíveis e imagináveis.
federal, estadual e municipal. Grande parte das Existe, portanto, uma imensa deman-
políticas sociais em vigor é acompanhada por da de nação que não encontra espaço nas
conselhos locais que fiscalizam a aplicação dos possibilidades atuais da política. Certos(as)
recursos e seus resultados. Participam desses comentaristas econômicos, cinicamente, dizem
conselhos representantes comunitários das pró- que chegou o momento de cairmos na real, de
prias populações beneficiadas, prestadores(as) abandonarmos os sonhos de mudanças mágicas
de serviços, ONGs, governos, universidades e nas condições sociais existentes. Temos, então,
setores privados. Trata-se de uma fantástica o salário mínimo possível, as políticas sociais
aposta nas instituições democráticas. possíveis, o Estado possível. Temos a faca, mas
Atualmente, em mais de 140 cidades não podemos dividir os recursos, que já têm
brasileiras, desenvolvem-se experiências de or- dono. Para redistribuir o pouco que resta, é
çamento participativo, em que pessoas comuns preciso reduzir os salários do funcionalismo
podem participar diretamente em assembléias público e alterar suas regras previdenciárias,
para decidir o destino de parte dos recursos utilizar expedientes os mais diversos para suprir
públicos ou, pelo menos, podem influir na ges- as necessidades de caixa, atrasar pagamentos
tão dos serviços. Na área do desenvolvimento em geral e jogar a culpa nas outras esferas
urbano, em 2003, contando apenas a região governamentais. Ninguém mais fala em plane-
Sul (PR, RS e SC), realizaram-se 196 conferên- jamento, os governos parecem prisioneiros do
cias municipais das cidades, 54 conferências cotidiano, as batalhas são travadas a cada dia,
regionais e, claro, três estaduais. Na área de e o futuro é uma zona que não existe.
segurança alimentar, os números são ainda mais
impressionantes. Praticamente todos os médios
e grandes municípios passaram a desenvolver
políticas minimamente participativas para dar
conta do combate à fome, nem que seja para
se credenciarem como beneficiários de recursos
Na busca das informações sobre os espaços Boa parte de conselheiros e conselheiras não
de participação popular entre as organizações consegue se qualificar nem estudar a temática
sociais nesses estados, pudemos perceber da qual o conselho trata, pois a demanda é
questões importantes para reflexão. Um as- muito intensa. Isso desqualifica a participação,
pecto dessa temática é a visão geral de que os tornando essas pessoas meras observadoras, e
conselhos e demais espaços são fundamentais não definidoras de políticas.
para a consolidação da democracia do país. Um segundo fator é que muitos con-
Esses espaços são vistos como estratégicos à selhos ainda estão concentrados nas mãos
participação social e dos governos. São os que realmente definem
à definição de polí- agenda, pauta, propostas e encaminhamentos.
ticas públicas. Tal vi- O motivo merece uma reflexão mais complexa.
são parece ser com- Por isso, levantamos apenas algumas hipóte-
partilhada por atores ses. Uma primeira explicação é a fragilidade
sociais de diversos dos movimentos sociais, que, apesar de
campos de atuação, historicamente terem como bandeira de luta
como movimento a constituição de espaços de participação
sindical – patronato social para definição de políticas públicas,
e trabalhadores(as), não têm conseguido atuar com qualidade
movimento popular, nesse campo. Uma segunda questão é que
ONGs, governos. em alguns estados, principalmente nas re-
Apesar dessa giões Centro-Oeste, Norte e Nordeste, ainda
compreensão, há verificamos uma política municipal e estadual
uma visão negati- clientelista e baseada no “coronelismo”.
va da eficácia des- Essa forma de política, na qual a força, a
ses esp aços como corrupção, a manipulação e a ameaça ainda
de formulação de persistem, fragiliza os movimentos, tornando-os
políticas públicas. vulneráveis. É importante enfatizar que essa não
De acordo com boa é uma análise conceitual, são apenas pontos
parte das pessoas para reflexão. Seria preciso ir muito além para
entrevistadas, o for constatar tais fatores.
mato dos conselhos Outra questão levantada por muitos
não possibilita uma atores sociais é a possibilidade de resolução
real participação nas desses problemas por meio da efetivação de um
definições políticas, número menor de conselhos que integrassem
mesmo se tratando diversas temáticas afins. Esses “conselhos de
de conselhos delibe desenvolvimento” seriam compostos por grupos
rativos. O que pude de trabalho temáticos (saúde, educação, assis-
mos perceber é que tência social, segurança alimentar, agricultura)
há vários fatores que colaboram para essa visão. e seriam levados para o conselho principal a
Vamos nos ater neste texto apenas a três. fim de serem discutidos conjunta e integral-
Existe uma infinidade de conselhos mente. Assim, diminuiria as sobreposições e
municipais, estaduais e federais. Todos orga as políticas públicas poderiam ser integradas e
nizados por temáticas e políticas setoriais. não compartimentalizadas.
Isso compartimentaliza as políticas, fazendo Esses três pontos nos parecem ser os
com que haja sobreposição de definições e mais importantes para uma reflexão sobre os
contradições nas propostas dos conselhos. espaços de participação social, sua relevância,
Acontece também de as mesmas pessoas te- qualidade e possibilidade de se tornarem refe-
rem que participar de diversos conselhos, im- rência para uma democracia real.
possibilitando uma participação qualificada.
74 Democracia Viva Nº 23
Ensaios de participação no Brasil
76 Democracia Viva Nº 23
Ensaios de participação no Brasil
rina Silva e de movimentos e redes em educação colocar em segundo plano as reivindicações dos
ambiental, também foi convocada a I Conferên- movimentos sociais e incentivar monoculturas
cia Nacional Infanto-Juvenil pelo Meio Ambien- em larga escala com venda prioritária aos mer-
te, que reuniu mais de 5,2 milhões de pessoas, cados internacionais, por ora em cotação alta?
entre estudantes, professores e professoras e a Em fevereiro de 2004, o governo anun-
comunidade, em cerca de 15 mil conferências ciou um Plano Nacional de Florestas, mas os
nas escolas de ensino fundamental de todo o setores ambientalistas defendem que mono-
país – uma média de público de 360 pessoas cultura de pínus e de eucalipto não é floresta.
por escola. Foram 380 delegados e delegadas O plano estava em fase final de gestação no
entre 11 e 15 anos de idade, sendo 14 jovens período de realização do encontro e previa
por estado – à exceção de Pernambuco, com transformar a monocultura em iniciativa de
oito delegados e delegadas. A distribuição foi governo, envolvendo os ministérios da Agricul-
a seguinte: 4% de professores(as); 15% de es- tura, da Indústria e do Desenvolvimento e do
tudantes de ensino médio; 15% de estudantes Meio Ambiente.
de 1ª a 4ª série; 15% de integrantes da comu- Temas como esses lideraram as aten-
nidade; e 51% de estudantes de 5ª a 8ª série. ções dos movimentos em quase todos os
A tese-guia foi proposta pelo corpo estados, mas não conseguiram romper com
técnico do MMA e consultorias contratadas o isolamento temático que caracterizou as
em torno de seis megatemas que, teorica participações dos diversos atores. Cada um
mente, abarcariam a totalidade das questões deles dedicou-se prioritariamente a interferir
que precisariam ser enfrentadas na busca de no debate em sua área específica de com-
um desenvolvimento nacional assentado sobre petência: quem era originário de questões
bases sustentáveis social e ambientalmente. Os urbanas, por exemplo, dedicou-se a elas em
temas foram: recursos hídricos; biodiversidade todo o processo. O mesmo se repetiu com
e espaços territoriais especialmente protegidos os demais temas, exceto o das mudanças cli-
(unidades de conservação, áreas de proteção máticas, que, pela sua própria natureza, exigiu
ambiental, reservas e parques); infra-estrutu- uma intervenção sistêmica que incorporasse as
ra: energia e transportes; agricultura, pecuá- diversas interfaces do assunto.
ria, recursos pesqueiros e florestais; mudanças Até abril de 2004, as entidades que
climáticas; e meio ambiente urbano. participaram da conferência nacional ainda
Pelo menos 25 das 27 conferências es- não haviam recebido informações a respeito
taduais aprovaram moções que preconizavam de processos de acompanhamento da im-
restrições à utilização dos organismos geneti- plantação das propostas form ul ad as no en-
camente modificados (OGMs) e, em especial, contro e entregues ao poder público. Estava
críticas às seguidas liberações, por parte do prevista apenas a divulgação de um CD com
Executivo federal, da safra gaúcha contaminada as deliberações do evento. Há, entretanto,
por soja transgênica. Uma moção-síntese de um claro sentimento entre as entidades que
condenação aos transgênicos foi apresentada tomaram parte do processo de que houve um
e aprovada na conferência nacional em contra acolhimento seletivo das propostas formuladas.
ponto incisivo à política oficial. Todas as que convergiam com a proposta clás-
Outra questão que gerou mobilizações sica de desenvolvimento da política econômica
de pelo menos cinco dos mais populosos es- em vigor, ao que parece, seriam acolhidas. Mas
tados brasileiros de três regiões, que recolheu aquelas que se chocavam com as diretrizes ge-
amplo apoio de diversos movimentos soci rais da política econômica – como o estímulo
oambientalistas, como foi o caso do estímulo às mon oculturas da soja, das espécies celu
governamental às monoculturas do pínus e do lósicas e da criação de gado – continuariam a
eucalipto para produção de celulose. ser estimuladas pelo governo, a despeito dos
A pergunta intrínseca que os movimen- impactos sociais e ambientais que viessem
tos sociais fizeram na conferência, sob a forma a causar.
de propostas e de moções foi: “qual é o modelo
de desenvolvimento que se propõe para o Bra-
sil?”. Afinal, indagaram os(as) representantes
dos movimentos, a opção estratégica do gover-
no pelo negócio agrícola de exportação significa
Controle
social em saúde
para baixo, sufocam os municípios do ponto de vista dos recursos financeiros e dificultam
a capacidade gerencial instalada em cada um deles. Tais políticas são planejadas de forma
conjunturas locais. Para refletir, nesse contexto, sobre o controle social das políticas públicas
para saúde da mulher a partir da experiência local do Centro das Mulheres do Cabo (CMC), é
78 Democracia Viva Nº 23
aberto
Também precisamos nos reportar aos índi- e de mama, da prevenção das doenças
ces de pobreza e desenvolvimento humano sexualmente transmissíveis (DSTs) e do
do estado de Pernambuco. Segundo a Or- HIV, das doenças crônicas degenerativas,
ganização das Nações Unidas (ONU), 50% da saúde mental e das doenças causadas
da população se encontra abaixo da linha por condições de trabalho e má qualidade
de pobreza, e as mulheres são uma parcela de vida. As usuá rias ficam, em muitas si-
significativa dessa amostragem. Falar sobre tuações, sem alternativa de atendimento e
políticas públicas em saúde para mulheres têm que se contentar com atenção básica à
é fazer um recorte da condição feminina saúde do ponto de vista generalista.
nos vários contextos históricos da saúde A questão da mulher na saúde –
pública, principalmente no âmbito do SUS. como cidadã plena, e não meramente o ser
Esse sistema de saúde é uma conquista da responsável pela reprodução – foi posta em
sociedade brasileira na Constituinte Cidadã discussão pelo movimento de mulheres,
de 1988, pois coloca a saúde como um di- forte aliado no processo de construção do
reito de todas as pessoas e dever do Estado SUS. Podemos afirmar que o Programa de
e garante acesso universal aos serviços, à Atenção Integral à Saúde da Mulher (Paism),
eqüidade e à participação democrática da de inspiração feminista, contribuiu para a
sociedade no controle social das políticas mudança de postura do setor de saúde, ao
públicas. preconizar um elenco de ações com vistas
O olhar sobre a mulher no contexto a garantir atendimento integral à saúde da
da saúde pública, ao longo da história, se mulher, agora na condição de sujeito político
reduz aos aspectos reprodutivos, com rele- coletivo. Dessa forma, tornou explícitas as
vância para o binômio mãe/filho. Apesar da especificidades no campo da saúde repro
presença hegemônica das mulheres no setor de dutiva e sexual e também introduziu o
saúde, não só como gestoras e prestadoras de conceito dos direitos sexuais e reprodutivos
serviços, mas também como profissionais como direitos humanos.
(assistentes sociais, psicólogas, nut ri A partir de então, as mulheres pas-
cionistas, enfermeiras, auxiliares, atendentes, sam do status de mãe e procriadora para a
agentes comunitárias de saúde, médicas e condição de mulher em plenitude, e isso diz
voluntárias) e usuárias, elas são cotidiana respeito a direitos sobre o próprio corpo, exer-
mente desrespeitadas. As mulheres enfrentam cício livre da sexualidade e acesso a informa-
as intermináveis filas para conseguir a garan- ções confiáveis. Enfim, há maior consciência
tia de acesso aos serviços disponíveis para de sua identidade reprodutiva e feminina,
familiares, filhos e filhas, maridos, parentes, agora compreendida no contexto das relações
pessoas da vizinhança e para elas próprias, o de poder entre homens e mulheres.
que demonstra o descaso dos serviços de saú- Nesse ambiente, discutem-se a res-
de com o tempo das mulheres, “acostumadas” ponsabilidade social sobre a maternidade,
aos cuidados com a família e a comunidade. o aborto como questão de saúde pública, a
A lógica cultural de enfoque sobre criação de normas do planejamento familiar,
a população feminina na saúde percebe a a contracepção de emergência, a urgência
mulher como ser meramente reprodutivo de reduzir os índices de morbimortalidade
e torna invisíveis aquelas que procuram o materna, de combater prevalência do parto
serviço com outras demandas, a exemplo cesariano sobre o parto normal e de in-
da prevenção do câncer de colo de útero centivar a prática do parto humaniz ado.
ESpaço
do orçamento público em saúde em todos a saneamento, moradia, acesso à água de
os níveis de governo. Mais do que nunca, qualidade e segurança, e ao não-desenvolvi
é necessário estabelecer alianças com se- mento de atividades de trabalho e renda, além
80 Democracia Viva Nº 23
Controle social em saúde da mulher
* Silvia Maria dutiv os. É preciso estabelecer políticas aborto, terceira causa da mortalidade ma-
Cordeiro públicas articuladas em saúde da mulher terna no Brasil. A história do comitê mu-
Médica, coordenadora- para além da esfera da maternidade, bem nicipal está diretamente relacionada com
geral do Centro das como políticas de desenv olvimento susten- a luta das mulheres pela implementação
Mulheres do Cabo, tável com o condição para que se consiga a do Paism, sendo emb lemática a conquista
membro da Rede redução da mortalidade materna. de um espaço específico para a saúde da
Feminista de Saúde A visibilidade da mortalidade ma- mulher na estrutura da gestão pública.
e presidente do Comitê
terna como uma questão de saúde pública Nesse sentido, a Coordenação de Saúde da
Municipal de Estudo
se deve ao movimento de mulheres. As Mulher tem realizado esforços, por meio
da Mortalidade
Materna – Cabo
organizações locais têm contribuído de de intervenções est ruturadoras, em parceria
de Santo Agostinho.
maneira decisiva para a implementação com profissionais e o movimento de mu-
dos Comitês de Estudo da Mortalidade Ma- lheres, com vistas à melhoria da qualidade
terna, importante da atenção à saúde sexual e reprodutiva
estratégia para re- das mulheres. Uma das prioridades dessa
dução dos óbitos. coordenação é garantir as condições de
São objetivos dos funcionamento do Comitê Municipal de
comitês a identifi- Estudo da Mortalidade Materna.
cação dos casos e O perfil das mortes maternas ocor-
o estudo das cau- ridas no município tem acompanhado o
sas determinantes, padrão geral dos países pobres e em de-
bem com o a pro senvolvimento: mulheres jovens, com ges
posição de medidas tação do primeiro filho, afrodescendentes,
para sua red ução. procedência rural e/ou periferia urbana. A
No Cabo de Santo maior parte das mortes está relacionada
Agostinho, o comi- com as precárias condições da atenção obs-
tê foi implantado tétrica, com a baixa qualidade do pré-natal
em 1999 e é cons oferecido na rede de saúde e a ineficiente
tituído por pessoas qualificação técnica de profissionais. Por
responsáveis por influência do movimento de mulheres, o
gestões, profissio- comitê tem procurado human izar o estudo
nais da saúde, uma dos casos e as estatísticas, dando rele-
representante do vância à condição feminina e à situação
leg islat ivo e uma socioeconômica e cultural das mulheres,
rep res ent ant e do evitando, dessa maneira, a ban alização das
CMC. O comitê se mor t es e apresentando as recomendações
articula com o con- cabíveis para os(as) responsáveis pela ges-
junto dos Comitês tão pública e profissionais, no sentido de
de Estudo da Mor- contribuir para a redução da mortalidade
talidade Materna no materna. A prática e esse enfoque têm
estado e os Conse- cont ribuído para melhor ia da qualidade da
lhos Regionais de atenção à saúde da mulher no município,
Medicina e Enfer- resultado da valorização da participação
magem e mantém, da sociedade nas instâncias de gestão
ainda, um estreito e democrática.
permanente diálogo A experiência do CMC nos leva a
com o movimento refletir o lugar do movimento social nessas
de mulheres. instâncias. A qualidade da intervenção pas-
A ação polí- sa por um olhar crítico sobre a participação
Aberto
tica do comitê é direcionada para o monito- e por uma profunda clareza sobre as formas
ramento dos serviços de saúde, para forma- de articulação e mobilização de atores. Essa
ção dos profissionais da saúde reprod utiva, é uma condição para que processos históri-
de atenção básica à assistência obstétrica, cos transformadores sejam desconstruídos e
e para mobilização e sens ibilização das construídos – uma tarefa somente possível
comunidades por meio de reuniões, ofici- no marco da democracia.
ESpaço
nas e seminários temát ic os. Um dos temas
mais discutidos nesse espaço tem sido o
82 Democracia Viva Nº 23
AGO 2004 / SET 2004 83
cul c u lt u r a
Marcelo Carvalho*
84 Democracia Viva Nº 23
ura
acerca da
das ruas
A idéia de um povo já dado, sem devir, definitivo, sempre nos assombrou. Em nome
dessa entidade que mal esconde suas raízes platônicas, o senso comum brasileiro cons-
truiu outra: a do povo em formação, país do futuro que ainda encantará o mundo, ou,
na versão em negativo, a do povo que não tem mais jeito, ajuntamento “sem pedigree”
ideal: a primeira, uma idéia de povo nos esperaria já formatada no futuro, na qual nos
encaixaríamos assim que o tempo fosse propício (nossa salvação em uma formulação plena
fadados a não atingir, mas que vislumbraríamos de longe, como um escárnio da história.
Em muitos momentos, esse modelo ideal de civilizatório. Fraturas culturais, raciais, econômi-
povo se impôs (e ainda se impõe) como mais cas e políticas que davam vazão ao constante
real do que o povo das ruas, cambiante, em surgimento de povos brasileiros em inusitadas
movimento. A idealização sugere mesmo que e necessárias criações.
o(a) brasileiro(a) seja algo incompleto(a), cujos Durante séculos, essas terras viram
movimentos expressariam apenas cruzamentos crescer um país de quilombos, secretamente
caóticos e sem definição. Talvez seja preciso ou mesmo em contato com setores oficiais
abandonar a forma fixa, castradora e autoritária da sociedade de então. A mais emblemática
de uma idéia de povo que, mais cedo ou mais dessas formações sociais, o quilombo dos Pal
tarde, atualizaríamos. No entanto, retirados os mares, é o exemplo mítico de uma organização
modelos impostos, resta-nos uma “atualidade” social que não é baseada na exclusão racial e
de um estado de coisas de um povo existente? no escravagismo, recriando na Serra da Barriga
E se o povo não estiver dado? E se, justamente, (hoje, entre Alagoas e Pernambuco) um Brasil
é o povo o que falta? E se tal situação, em vez não-português e não-holandês. Eram 30 mil
da aparente negatividade inicial, pudesse ser habitantes livres vivendo em sociedades criadas
lida como dotada de uma positividade criadora, por movimentos individuais de fuga do cativeiro
constatada em um sobrevôo histórico? à revelia da repressão do sistema patriarcal,
Nascido por decreto durante a conquista organizando-se em sociedades quilombolas,
dos mercados orientais pelos portugueses, o onde a participação política, algo visceral e
Brasil é uma das conseqüências de primeira hora cotidiana, se dava pela alegria da liberdade
do expansionismo europeu. Os povos autócto- conquistada.
nes que aqui estavam foram, em primeiro lugar, Palmares foi destruído em 1694, mais
e salvo exceções, escravizados. Depois, foram de 200 anos antes da destruição de uma outra
empurrados para o interior do continente, comunidade, Canudos, pelo Exército brasileiro
mortos por doenças, despojados de sua cultura em 1897. Bello Monte, como seus moradores
ou mesmo assimilados à nova ordem político- e moradoras chamavam a comunidade, tinha
-social, no avanço dos colonizadores em busca uma expressiva parcela da população composta
de terras, metais e pastagens. Para preencher de ex-escravos(as), além de indígenas caimbés
o vazio de força de trabalho, foram trazidos e quiriris, o que dava a Canudos um perfil assi-
à força homens e mulheres da África. Essas milado aos quilombos. Os povos brasileiros se
pessoas foram administradas, como o resto reinventam nas brechas dos poderes oficiais.
dos bens das grandes fazendas de plantation, Um povo não é algo que esteja dado.
pelos poucos portugueses que ocupavam o Antigas totalidades – como povos da África e
topo da pirâmide social da época. Longe de Europa, Nigéria e ex-Iugoslávia – se mostram
uma formação espontânea, uma população hoje como diversidades que se reinventam cons-
foi pensada para ocupar o território, tendo em tantemente. Pluralidades que ora se encarnam
vista as necessidades do avanço mercantilista. em impulsos nacionalistas violentos (como na
Bem depois, passou-se a pensar o Brasil ex-Iugoslávia), ora permitem o avanço dos dis-
como uma espécie de “Estados Unidos sul- cursos internacionalizados das minorias.
-americano”, como um “cadinho de culturas”. E no Brasil? O que nos falta é um povo?
Mas, contrariamente aos vizinhos do Norte, nosso Temos povos, miríade de identidades coletivas
mito fundador incluiu a miscigenação como um nas culturas regionais, nas cidades, atravessan-
pretenso antídoto contra o racismo. Vislumbrou- do as divisas oficiais. Num momento, há uma
-se, então, uma utopia homogeneizada, a pátria coletividade ampla – quando o povo brasileiro
mestiça na qual muitos luminares da cultura comemora um gol da seleção de futebol –;
nacional apostaram, com as armas fornecidas por noutro, por exemplo, uma pequena comunidade
Gilberto Freyre. Uma idéia de “cultura mestiça” religiosa de uma cidade interiorana. Em toda
logo apropriada tanto pela postura que afirma parte, há formas existenciais que a cultura hu-
que em uma pátria de irmãos não há racismo mana foi capaz de criar no país, driblando as
como pelo discurso que propunha um único imposições de uma organização política oficial
povo que falasse em uníssono. Tal construção quase sempre desfavorável. Falta-nos a idéia de
do passado nacional, a despeito do brilhantismo um povo? Em todo lugar, existem povos cuja
e da importância da obra de Jorge Amado, por riqueza poderia efetivamente influenciar as
exemplo, não pôde considerar em sua plenitude instâncias oficiais na elaboração de alternativas
as diversas vozes dissonantes, que punham em de desenvolvimento que acolham a diversida-
evidência todas as fraturas de nosso processo de e as experiências coletivas em construção
86 Democracia Viva Nº 23
Considerações acerca da cidadania das ruas
incessante. São relações alternativas, uma vez jovem, embalada pelo socialismo, contracultura,
que não estão (e nunca estiveram) associadas revolução sexual, arte veiculada pela cultura de
à construção de um projeto coletivo nacional massa etc. Não apenas a Universidade de Berke-
que fosse cultural, política e economicamente ley, na Califórnia, pegava fogo. Paris assistiu à
inclusivo. Impasses de nossa coletividade. irrupção, em maio de 1968, do movimento de
Quem sabe não seja preciso, então, em estudantes liderados por Daniel Conh Bendit,
vez de perguntarmo-nos “onde está o povo?”, que, da ocupação dos prédios de universidades,
dirigirmo-nos para os espaços “onde falta um até mesmo a Sorbonne, ganhou a cidade e o
povo”, onde a potência criadora coletiva po- país. Estudantes receberam apoio de artistas,
derá se reinventar novamente, a partir de uma intelectuais, jornalistas. Com a adesão de
necessidade. Lá onde a oficialidade se ausenta, trabalhadores e trabalhadoras, foi deflagrada
povos se criam. No vão onde a coletividade não greve geral: fábricas, transportes públicos,
está ainda, mas onde precisa estar, um povo se jornais, correios, aeroportos, o país parou. Os
plasma, criativamente, inventando-se a cada protestos, que se iniciaram pela reforma do
obstáculo: um povo é algo que se constrói (e ensino, passaram a contestar o poder central
se desconstrói) a cada momento. Em uma de- e as instituições.
mocracia que se deseja com alto grau de vitali- No Brasil, em um momento quando falta-
dade, as populações se reinventam nos grandes va uma coletividade que se opusesse ao regime
encontros cívicos, quando a participação ativa de exceção que se instalara no país, aconteceu a
dos grupos sociais toma as ruas das cidades. Passeata dos 100 mil, em 26 de junho de 1968.
O foco da reivindicação dos(as) estudantes era
a intenção do governo de transformar as uni-
Caminhando e cantando
versidades federais em fundações, cumprindo
Na história recente do país, pós-64, houve acordos realizados pelo Brasil com a Agência
momentos brilhantes, quando parcelas da po- Norte-Americana para o Desenvolvimento In-
pulação tornaram-se protagonistas da história ternacional (Usaid). Mas o estopim que acabou
e coletivamente uniram suas vozes pelos vários por insuflar a passeata foi o assassinato do es-
sentidos diacrônicos da palavra democracia. tudante Edson Luís, de 17 anos, no restaurante
Havia uma atmosfera de rebeldia e universitário Calabouço, em março de 1968. O
contestação no mundo por parte da população incidente foi o ponto culminante de uma esca-
evandro teixeira/agência jb
Vladimir Palmeira fala aos(às) manifestantes na Passeata dos 100 mil (1968)
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Considerações acerca da cidadania das ruas
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Considerações acerca da cidadania das ruas
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