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Havia uma estátua de Javé no templo de Jerusalém?

Uma das maiores pressuposições da exegese bíblica contemporânea consiste no


chamado «aniconismo» javista, expresso no mandamento: «Não farás para ti nenhuma
imagem esculpida…» (Dt 5,8), que se julgava antiquíssimo, remontando aos tempos de
Moisés. Assim, acreditava-se que o aniconismo existira desde o início, de modo que o
culto de Javé não contemplaria imagem ou representação alguma. E a arqueologia
parecia confirmar esta suposição: efectivamente, nunca se encontrou nenhuma imagem
ou representação iconográfica do Deus de Judá e de Israel1.
Ultimamente, porém, alguns estudiosos têm posto em causa esta suposta «evidência»,
baseados sobretudo numa nova releitura de alguns textos bíblicos, particularmente dos
textos deuteronomistas. Mas vamos por partes.

O aniconismo em Israel
Tryggve N. D. Mettinger foi quem mais aprofundou a questão do aniconismo em Israel
e no contexto mais vasto do Médio Oriente antigo2. Nos seus escritos, este autor
estabelece duas distinções. Em primeiro lugar, postula uma diferença entre um
aniconismo de facto, pré-exílico e que Israel partilha com o mundo semita ocidental, e
um aniconismo programático, a partir do exílio (expresso no segundo mandamento) e
mais específico a Israel. O primeiro seria tolerante e, em muitos casos, teria coexistido
com outras expressões icónicas (por exemplo, a representação de deusas); o segundo,
absolutamente combativo, iconofóbico e iconoclasta. Em segundo lugar, Mettinger
distingue ainda entre um aniconismo materializado (expresso, por exemplo, nas
«estelas» cúlticas) e um aniconismo vazio (representado pelos «querubins» e,
eventualmente, pelos «bezerros» de Betel). O primeiro constitui uma representação da
divindade, mas sem tomar forma antropomórfica ou teriomórfica. O segundo
pressuporia uma presença invisível da divindade: no caso de Jerusalém, os querubins
constituíam o suporte da presença invisível de Javé-Sabaoth; e o mesmo aconteceria,
segundo alguns exegetas, em Betel, onde os bezerros serviam de suporte à presença
invisível de Javé (concebido como um deus da tempestade, à maneira de Baal em
Ugarite, que também é representado sobre um bezerro).
Em relação ao aniconismo materializado no culto de «estelas», Mettinger não tem
dificuldade em enumerar variadíssimos exemplos, de Mari à Arábia pré-islâmica,
passando por Biblos, Tirzah, Dan, Láquis, Arad ou Petra. No que toca ao aniconismo
vazio, o próprio reconhece maior dificuldade de argumentação (fundada sobretudo na
iconografia fenícia), e a sua interpretação fundamenta-se numa construção teológica
desenvolvida desde 1982, mas que foi criticada ainda recentemente3. Segundo
Mettinger, o Primeiro Templo tinha desenvolvido uma teologia específica a Javé-
Sabaoth (isto é, o Senhor dos «Exércitos [celestes]), segundo a qual Javé habitava o seu
templo-palácio de Jerusalém, «entronizado» sobre os querubins e reinando sobre Sião,
garantindo a sua segurança e inviolabilidade. A catástrofe do exílio foi um rude golpe
para esta teologia, dando origem a duas outras, pós-exílicas: nos meios sacerdotais
(Ezequiel e P), a teologia de Sabaoth foi substituída pela teologia da Kabod (a «Glória»
divina); e, nos meios deuteronomistas, pela teologia do Shem (o «Nome» divino, pois,
Deus, esse habita agora nos céus). O aniconismo programático destas duas teologias
(em Dt 5 e Ex 20) seria, deste modo, a continuação do aniconismo de facto da teologia
do Sabaoth, do Deus invisível entronizado sobre querubins.
A imagem (cultual) de Javé
Como dissemos, recentemente alguns autores puseram em causa esta «tradição»
anicónica. Segundo eles, durante a monarquia, houve imagens da divindade nos
principais templos/santuários javistas (Samaria, Betel e Jerusalém) e o segundo
mandamento, no contexto do exílio, é uma reacção ao desaparecimento dessas imagens.
Se é verdade que não existem «evidências» do que acabamos de dizer, há porém alguns
indícios que convém ter em conta4.
H. Niehr refere alguns textos bíblicos antigos e os salmos para justificar a existência de
uma imagem cultual de Javé no templo de Jerusalém. Esses textos falam do templo
como a «casa» de Javé (cf. Ex 15,17; Sl 26,8), significando que Javé habita realmente
no tempo, de modo visível (icónico) ou não. Ora, a Bíblia fala frequentemente em ver
«a face de Deus» (cf. Sl 24,6; 42,3) ou em apresentar-se «diante do Senhor» (cf. Dt
16,16), de oferecer-lhe oblações e libações (cf. Nm 6,17), ou ainda mencionando as suas
«vestes» (cf. Is 6,1; Sl 60,10), o que pode indiciar que se está cerca de uma
imagem/representação de Javé. Além disso, parecem existir alusões a procissões com a
imagem divina (cf. Sl 24,7.9) ou um festival anual em honra do Deus nacional, que saía
do seu templo em peregrinação (cf. Sl 68). Quanto à linguagem da «entronização» (de
Javé), frequente nos salmos «reais», pode simplesmente aludir ao facto de o «rei»
representar/ser imagem de Javé, aquele que se senta sobre os querubins (cf. 1 Cr
29,20.23). Neste sentido, as teologias do Shem ou da Kabod viriam sobretudo responder
a um vazio: a «imagem» cultual da divindade ou se perdeu durante a destruição de
Jerusalém (cf. Jr 8,19; 12,7-8; Ez 8,12), ou deixou de ser tolerada.
Por seu turno, M. Köckert encontra um argumento mais decisivo no estudo de Dt 4, um
texto considerado pelos exegetas como tardio (da época persa). O segundo
mandamento, originalmente, não compreendia a proibição das imagens, mas apenas a
proibição do culto aos deuses estrangeiros (cf. Dt 5,9-10, que seguiria normalmente
5,7). A introdução das tradições (e da teofania) do Sinai na Tora tornou caducas as
representações/imagens de Javé. O exílio, precisamente, é explicado à luz da «idolatria»
dos antepassados. Por isso, as imagens devem ser banidas (Dt 4,9-24) e, portanto, são
proibidas (Dt 5,8)5. Para esta corrente teológica, Deus «mora» agora na Tora. Alguns
anos antes, quando ainda não existia o Segundo Templo, o autor de P afirmava que o
conjunto do Universo constituía o templo de Javé-Eloim, e que a sua
imagem/representação se encontrava, não em estátuas, mas no próprio ser humano –
«criado homem e mulher» (Gn 1,26), constituindo esta perspectiva uma evolução da
teologia exílica da Kabod (que vemos ainda expressa em Ezequiel).
Em suma: se é verdade que existe uma tradição anicónica entre os Semitas ocidentais,
expressa no culto das estelas, este aniconismo pode ter coexistido com expressões
icónicas, sobretudo nos grandes santuários (Samaria, Betel e Jerusalém), mais expostos
a influências estrangeiras (o culto de imagens). Por outro lado, o aniconismo «vazio»,
defendido por Mettinger, é cada vez mais difícil de sustentar: os chamados «tronos de
Astarté» na Fenícia, o suporte/altar de Tanach, etc., estavam realmente vazios ou neles
era colocada uma imagem cúltica da divindade?
1
Recentemente foi exposta uma imagem representando, supostamente, Javé e Achera, e que pode ser apreciada no livro de
O. KEEL, L’Eternel féminin. Une face cachée du Dieu biblique, Labor et Fides, 2007, p. 48 (trata-se do catálogo de uma
exposição realizada no Musée de l’Orient, em Friburg, Suíça).
2
T. N. D. METTINGER, No graven image? Israelite aniconism in its ancient Near Eastern context, Almqvist & Wiksell Int.,
1995; ID., «Israelite aniconism: developments and origins», in K. VAN DER TOORN (ed.), The Image and the Book: Iconic
Cults, Aniconism, and the Rise of Book Religion in Israel and the Ancient Near East, Peeters, 1997, pp. 173-204; ID., «A
Conversation with my Critics: Cult Image or Aniconism in the First Temple?», in Y. AMIT et al., Essays on Ancient Israel in
its Near Eastern Context, Eisenbrauns, 2006, pp. 273-296.
3
Cf. A. WOOD, Of Wings and Whells: A Synthetic Study of the Biblical Cherubim, Walter de Gruyter, 2008. Para o nosso
autor, cf. T. N. D. METTINGER, The Dethronement of Sabaoth: Studies in the Shem and Kabod Theologies, C. W. K. Gleerup,
1982.
4
Estes indícios são retirados dos artigos de H. NIEHR, «In Search of the YHWH’s Cult Statue in the First Temple», in K. VAN
DER TOORN (ed.), The Image and the Book: Iconic Cults, Aniconism, and the Rise of Book Religion in Israel and the Ancient
Near East, Peeters, 1997, pp. 73-96; e de M. KÖCKERT, «Suffering from Formlessness: The Ban on Images in Exilic Times»,
in B. BECKING-D. HUMAN (ed.), Exile and Suffering, Brill, 2008, pp. 33-52.
5
A arqueologia comprova, efectivamente, que apenas na época persa desaparecem em Yehud todo o tipo de imagens (cf. E.
STERN, «Religion in Palestine in the Assyrian and Persian Periods», in B. BECKING-M. KORPEL [eds.], The Crisis of Israelite
Religion, Leiden, 1999, pp. 245-255.

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